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Biografia de Fiódor Dostoiévski

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) foi, nas palavras do crítico


literário Otto Maria Carpeaux, senão o maior escritor do século XIX, com
certeza o mais poderoso. E, de fato, a voz de sua obra é como um eco
retumbante, impossível de ignorar, que transpassa os ouvidos de todos aqueles
que se dedicam a perscrutar a alma humana. É vasta a sua influência; não há
escritor, filósofo, artista, teólogo ou psicólogo do século XX que não tenha sido,
em maior ou menor grau, marcado pela obra do escritor russo.
Nietsche, numa carte endereçada à Overbach (7 de março, 1887), afirma que sua
profunda admiração pelo velho russo, e o descreve como “o único psicólogo que
tem algo a me ensinar”, um escritor de uma intuição psicológica sem par na
história da literatura mundial. Freud, no famoso artigo Dostoiévski e o
parricídio (1928), reputou o romance Os irmãos Zaramazov, junto com Édipo
Rei de Sófocles e Hamlet, de Shakespeare, como uma das três opus magnum da
literatura de todos os tempos. Sartre atribui a Dostoiévski o nascimento do
existencialismo; James Joyce o coloca como fundador da prosa moderna; e, em
solo brasileiro, sabe-se o deslumbramento atroz que Nelson Rodrigues
amentava pelo escritor russo. Conta-se que certa feita um erudito, com abusada
ironia, perguntou ao Nelson: “O que é que você ler?”. E, mui casta e
humildemente, o anjo pornográfico responde: “Dostoiévski”. O erudito insiste:
“Que mais?”. Nelson repete: “Dostoiévski”. Do alto da sua altivez de quem já
devorara 40 mil livros, o erudito teima espantado: “Só?”. Ao que vem a resposta:
“Dostoiévski”. Para o maior dramaturgo brasileiro, poder-se-ia viver para um
único volume de Dostoievski.
E assim as referências poderiam seguir ad infinitum, porque, como já foi dito,
não há nenhum grande nome posterior a Dostoiévski que não esteja em divida
com a sua obra.

Dostoiévski era um escritor que escrevia com a pena da dor e a tinta do sangue,
num estado explosivo; sua obra versa sobre temas tão universais quanto
perturbadores: o significado do sofrimento e da culpa, o livre-arbítrio, o
cristianismo, o racionalismo, o niilismo, a pobreza, a violência, o assassinato, o
altruísmo, além de esgravatar vivamente transtornos mentais ligados à
humilhação, ao isolamento, ao sadismo, ao masoquismo e ao suicídio. Não por
menos, é denominado às vezes como um romancista filosófico, outras como
romancista psicológico. E, de fato, enquanto o leitor corre as linhas de livros
como Crime e Castigo, O Idiota, Os Irmãos Karamazov, Notas do Subsolo, Os
Demônios e tantos outros, não pode evitar que pululem da cabeça as perguntas:
“Quem é este homem? Como é possível um homem assim? Como ele pode
escrever tudo isto?”. São justamente essas perguntas que pretendo responder
neste trabalho.

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, filho do médico Mikhail Dostoiévski e da


dona de casa Maria Dostoevskaia, nasceu em Moscou no dia 11 de novembro de
1821. A família não era abastada nas economias, apesar de – coisa peculiar da
sociedade russa de então – possuir em casa seis serviçais. Nessa época, a Rússia
vivia sob a mão repressora do Estado do Tzar Nicolau I, e um amplo movimento
de insatisfação diante do regime czarista ganhava força com a intelligentsia.
Além disso, a laia intelectual russa padecia de uma profunda crise espiritual e
moral; haviam rompido com os antigos valores do cristianismo ortodoxo para se
voltarem às ideias vigentes na Europa, de modo que, às vezes num otimismo
ingênuo, outras num afã desesperador, se via forçada a buscar e estabelecer um
novo conjunto de valores. Dostoiévski não escapará desse zeitgeist; o contrário,
não só cairá de cabeça nos dilemas do seu povo, como também será aquele que
os expressará de maneira mais contundente.
Em sua juventude, o escritor russo foi educado dentro do cristianismo ortodoxo,
educação esta que marcará profundamente a sua alma e, consequentemente, a
sua obra. No entanto, desde jovem também se dedicara aos estudos de
humanidades, lendo muita literatura francesa, muita filosofia alemã,
acompanhando periódicos científicos e em dia com os últimos debates políticos.
E foi ainda jovem que veio a perder ambos os pais. Maria Dostoevskaia morrera
em 1836 e Mikhail Dostoiévski – famigerado por sua avareza e violência –, em
1839, supostamente pelas mãos dos próprios servos, ressentidos por maus
tratos. Mais de uma vez Dostoiévski desejara a morte do pai, e durante toda a
sua vida um angustiante sentimento de culpa o acompanhará em decorrência
desse desejo – sentimento que vara toda a sua obra e estudado por Freud no
artigo já mencionado, “Dostoiévski e o Parricídio” de 1928.
Em 1843, Dostoiévski concluiu os estudos de Engenharia e obteve o grau militar
de subtenente na Academia Militar de Engenharia de São Petersburgo. Durante
esse período, dividia apartamentos com conhecidos e com o irmão, Andrei. Em
1844, abandonou o exercito e começou a redigir o seu primeiro romance, Gente
Pobre (1846). O livro recebeu críticas positivas, inclusive do mais influente
crítico da literatura russa de então, Belinski, que viu no romance a primeira
expressão do movimento realista europeu em solo russo. A ampla aceitação do
primeiro livro fez com que Dostoiévski se tornasse mais confiante no seu dom
literário, o que deu seguimento a toda uma série de obras subsequentes: O
Duplo (1846); os contos Senhor Prokhartchin, Novas Cartas e Polzunkov em
1846; A Senhoria, escrito entre 1846-1847; Coração Fraco de 1848; outros três
contos entre 1847-1848: O Ladrão Honesto, Uma Árvore de Natal e uma Boda,
A mulher alheia e o marido debaixo da cama; da mesma época são Noites
Brancas e o conto Netochka Nezvanovaa. Entretanto, diferentemente da boa
acolhida da primeira, todas essas obras sofreram críticas negativas, incluso do
próprio Belinski.
Nessa altura, sua vida tornara-se uma confusão; havia se endividado até o
pescoço e manifestava os seus primeiros acessos de epilepsia. Ademais, após
entrar em contato com alguns grupos da Intelligentsia russa, engajou-se na luta
de radicais revolucionários contra o regime autoritário do Tsar Nicolau I.
Acabou sendo preso em abril de 1849; em novembro do mesmo ano, deu-se a
condenação: por participar de atividades socialistas contra o governo, sua
sentença era a morte! No dia 22 de dezembro, Dostoiévski foi conduzido, com
mais outros prisioneiros, ao pátio de fuzilamento onde seria executado, mas, na
última hora, lhe era lida a comutação da pena de morte pela de degredo: havia
de permanecer quatro anos em trabalhos forçados na Sibéria. A experiência de
ter escapado por um fio da morte abalou o escritor como nenhuma outra; dês de
então, começou a encarar a vida como se houvesse nascido pela segunda vez,
com novos olhos, novas ideias, determinado a assumir uma postura muito mais
corajosa e autêntica, desligado das frivolidades mundanas. O tema da quase
morte é constante em seus escritos, e uma fonte da qual bebeu largamente os
existencialistas do século XX – na área da psicologia, Viktor Frankl talvez seja o
que melhor trabalhou o assunto (vide Em Busca de Sentido, 1946).
Os penosos anos na Sibéria foram descritos no livro Memórias da Casa dos
Mortos (1862). Nele, pode-se ler a dor do confinamento; Dostoiévski, em um
relato quase documental, narra as suas impressões e o dia-a-dia dos
prisioneiros. Obra de fôlego, não só revela o desgaste físico e mental em
decorrência do cárcere, como também tece uma crítica aguda a um sistema
prisional falho, menos preocupado em recuperar cidadãos para a sociedade do
que em castigá-los a ferro e fogo.
Pode-se dizer que há um Dostoiévski antes e outro depois dos anos na Sibéria. O
contato direto com os presos influiu profundamente na sua alma. Pôde perceber
a olhos vistos até que ponto a natureza humana era capaz de ir, desde a mais
brutal selvageria até o mais terno amor ao próximo. Ouviu atentamente as
estórias dos presos, observou com esmero seus comportamentos, tomou nota e
inscreveu na alma cada detalhe. Além de, entrementes, ler e reler
exaustivamente o Novo Testamento – único livro permitido na prisão.
São de aí adiante que surgirão as suas grandes obras literárias.
Em 1854, Dostoiévski deixa a prisão para cumprir, por espaço indeterminado, o
serviço militar. Nesse ínterim, conhece a se apaixona perdidamente por uma
mulher já casada e mãe de um filho, Maria Dmitriévna. Durante um ano trocam
cartas, até que, em 1855, morre Alexander Invanovich Isaev, marido de Maria
Dmitriévna, quando Dostoiévski, sem demora, pede-lhe a mão em casamento.
Depois de certa relutância por parte dela – e, diga-se de passagem, um caso com
outro homem – ambos se casam em 7 de fevereiro de 1857.
Na noite de núpcias, o escritor é tomado por um acesso violento de epilepsia. A
doença começava a se agravar e, por volta do começo de 1858, Dostoiévski
consegue se aposentar do exército, sob o pretexto de tratar da sua saúde.
Durante todo o percurso de vida, a doença o acompanharia; vários dos seus
personagens, como o Príncipe Míchkin de O Idiota, Kiríllov de Os Demônios e
Smerdiákov de Os Irmãos Karamazov também sofrem de epilepsia. Alguns
deles, aliás, interpretam os sintomas da doença como a própria manifestação de
Deus: Kiríllov, por exemplo, toma os distúrbios sensoriais da epilepsia que
“desligam” a percepção por alguns segundos como se tratasse da irrupção de
Deus na realidade.
Uma vez afastado do regime militar, e porque lhe tivesse vedado morar em São
Petersburgo ou em Moscou, muda-se para Tver e passa a trabalhar como
jornalista, editando revistas e escrevendo artigos.

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