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7 de março de 2023
Nascida em 1906 na Alemanha, Hannah Arendt cresceu no seio de uma abastada família
judaica. Foi aluna de Martin Heidegger, tendo mantido uma relação íntima com o mesmo e, sob
orientação de Karl Jaspers, doutorou-se em filosofia com uma tese acerca do Amor em Santo
Agostinho. A chegada de Hitler ao poder obrigou a jovem filósofa a fugir para França, onde
viveu durante 7 anos (1933-40). Em maio de 1941 chega aos EUA, naturalizando-se cidadã após
dez anos. Morreu em 19751, deixando uma relevante coleção de obras e escritos filosóficos.
O seu percurso de vida permite-nos entender o seu pensamento: ainda em tenra idade
vivenciou a primeira guerra mundial, cujo uso de armas químicas fora tão traumático que foram
proibidas no campo de batalha2; forçou-se a fugir para não sofrer as indescritíveis atrocidades
causadas pelo regime nazi; vivenciou nos EUA a segunda guerra mundial, que terminou com o
fatal lançamento de duas bombas atómicas pelo país que a acolheu; por fim, a guerra fria
solidificou os seus pensamentos, sobretudo com a crise dos mísseis de Cuba e a corrida espacial,
visto que as suas teses recaem sobretudo no problema da alienação do mundo causada pelas
descobertas científicas e desenvolvimentos atómicos. O seu foco, assim, passou por pensar a
1
Soromenho-Marques slide 2.
2
Protocolo de Genebra, 1925.
Silva 2
mudar, as relações dos seres humanos entre si, causando uma alienação – um termo chave para
recebido com alívio, pois finalmente começámos a fugir do nosso aprisionamento à Terra – a
“Humanidade não permanecerá vinculada à Terra para sempre”3. Arendt acredita que a “terra é a
própria quintessência da condição humana”4, a nossa relação com a Terra reside no cerne do que
define quem e aquilo que somos enquanto seres humanos – fomos moldados pelo que nos
rodeava. Posto isto, a condição humana e natureza humana são conceitos essenciais para
“se tivermos uma natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e defini-
la”5. Esta passagem demonstra a ambiguidade e incerteza que envolvem o conceito de natureza
humana, expondo a ideia de que esta natureza não é algo que possa ser reduzido a um conjunto
de qualidades fixas e objetivas – não é algo que possamos conhecer ou definir plenamente, é um
3
“Mankind will not remain bound to the earth forever”. Arendt, The Human Condition 1.
4
“earth is the very quintessence of the human condition”. The Human Condition 2.
5
“if we have a nature or essence, then surely only a god could know and define it”. Arendt 10.
6
Para uma abordagem mais profunda sobre o conceito de natureza humana em Arendt, ver Villa, Dana, editora. The
Cambridge Companion to Hannah Arendt e D'Entreves, Passerin Maurizio. The Political Philosophy of Hannah
Arendt.
7
“the fact that men, not Man, live on the earth and inhabit the world”. Arendt, The Human Condition 7.
Silva 3
Cada ser humano existe num tempo e num lugar específicos e tem um conjunto único de
Arendt caracteriza a condição humana com três atividades chave: o trabalho, a obra e a
humana do trabalho é a vida em si”9, incluindo processos biológicos necessários para sobreviver,
como comer, beber água e dormir. A obra é a atividade de criar e moldar o mundo em que
arte e escrita de livros. O trabalho, ao contrário da obra, não é estritamente necessário para a
sobrevivência, mas é uma parte crucial da vida humana e permite-nos expressar a nossa
criatividade e moldar o mundo que nos rodeia. Por fim, a ação é a atividade de fazer a diferença
no mundo através das nossas palavras e atos – a “Ação [é] a única atividade que se desenvolve
diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria”11. É a atividade mais
proximamente associada à nossa identidade como seres sociais e políticos, e é através dela que
pluralidade.
caracterizada pela sua contingência, sujeitando-se a mudanças e sendo moldada por fatores
históricos, culturais e individuais. Por exemplo, as formas de trabalho, obra e ação que são
8
Segui a tradução indicada pelo professor Viriato Soromenho-Marques. O original seria “labor”, “work” e “action”.
9
“The human condition of labor is life itself”. Arendt, The Human Condition 7.
10
“The human condition of work is worldliness” Arendt, The Human Condition 7.
11
“Action [is] the only activity that goes on directly between men without the intermediary of things or matter”
Arendt, The Human Condition 7.
Silva 4
acredita que o conceito de condição humana é mais útil para a compreensão da experiência e
condição humana, realça a importância da vida política e da ação humana na delineação do curso
da história humana, pois acredita que os seres humanos não são meros recetores passivos do seu
ambiente, mas sim agentes ativos com o poder de criar e moldar os seus próprios destinos.
contar com o afluxo constante novas pessoas, providenciando e preservando também o mundo
para elas12. Estando capacitadas de começar algo de novo, a ação é, das três atividades, a que
apresenta uma ligação mais próxima com a condição humana de natalidade, o que a possibilita
ser uma categoria central do pensamento político, já que a ação é a atividade política por
excelência13. Desta forma, Arendt acreditava que a política devia garantir a natalidade, dando
também por conta das condições em que vivíamos, uma vez que as nossas práticas e o nosso
conhecimento têm de responder ao local onde nos encontramos se queremos não só sobreviver,
mas também prosperar. Apesar desta relação com a Terra, muito do que significa ser humano é
também mediado pelo facto de conseguirmos criar um “mundo artificial”15 e, olhando ao nosso
redor, percebemos que não estamos a viver diretamente na natureza. Não andamos a passear
12
Arendt, The Human Condition 9.
13
Arendt, The Human Condition 9.
14
Refiro-me ao processo de evolução enquanto espécie.
15
Arendt, The Human Condition 2. O termo artificial é referente a algo criado pelo ser humano.
Silva 5
pelas florestas e savanas: contruímos casas, ambientes interiores com todo o tipo de luxos para
não só tornar a vida mais suportável e confortável, mas também criar um espaço para outras
atividades acontecerem16. Este mundo artificial é criado para nos separar da brutal realidade do
mundo natural17.
Esse artifício também nos condiciona em certa medida. A ciência e a tecnologia têm sido
usadas frequentemente para reforçar este mundo artificial18, com a ideia de eventualmente, tal
como a tecnologia nos permite realizar feitos que seriam impossíveis apenas com as nossas
próprias mãos e corpos, chegar a um extremo lógico – viajar e colonizar o espaço sideral. Assim,
pelas descobertas científicas dos séculos XVII e XX, e o segundo começando com o
Arendt acerca da tecnologia e ciência, é possível compreender a sua preocupação com a fissão e
para as relações humanas com a natureza. A ação é a atividade mais impactante – é a que usamos
para deixar a nossa marca no mundo, sem qualquer tipo de intermediação artificial. Contudo,
esta ação limitava-se, sobretudo, ao campo da política e, portanto, todas a consequências das
16
Como a arte e a cultura em geral.
17
Arendt, The Human Condition 2.
18
No sentido de facilitar as nossas atividades ou aumentar e melhorar as nossas capacidades, por exemplo.
19
The Human Condition 6.
20
D'Entrèves 5. A alienação do mundo corresponde ao momento em que estabelecemos uma identidade própria; a
alienação da Terra corresponde à tentativa de fuga do nosso planeta. Consultar o 1º capítulo para um maior
aprofundamento.
Silva 6
ações, uma vez que nunca se sabe no que irão resultar21, recaíam sempre no âmbito social e
Até aqui a ação humana com os seus processos artificiais restringiu-se ao mundo humano.
Mas assim que começamos os nossos próprios processos naturais – sendo a divisão do átomo
exatamente um desses – aumentámos o nosso poder sobre a natureza e levámos a natureza para o
natureza pode levar a resultados catastróficos – sendo “mais perigoso ainda ignorar que pela
primeira vez na nossa história, a capacidade humana para a ação começou a dominar todas as
outras”23. Domar aquilo que sempre se considerou indomável acarta muitos riscos,
principalmente quando estes são desconhecidos pelos homens por serem criados por eles24.
capacidade desta tecnologia destruir não só as sociedades humanas, mas também o mundo
natural.
Em The Conquest of Space and the Stature of Man, Arendt propõe uma viragem
motivada por algumas razões referidas anteriormente. Contudo, explicarei primeiro em que
21
Podemos prever que a ação humana realize coisas inimagináveis, mas nunca sabemos concretamente o quê e as
repercussões que irá ter. Arendt, The Human Condition 177-178.
22
Arendt, The Concept of History: Ancient and Modern 67.
23
Arendt, The Concept of History: Ancient and Modern 68-69.
24
De notar que este alerta não é uma crítica ou uma posição contra o progresso e avanço científico, mas antes um
aviso para tomar precauções ao lidar com algo novo e poderoso.
Silva 7
humano como o centro do pensamento e consideração25 – mas a ciência moderna perdeu o tato
humano na sua abordagem por conta de uma fixação pela objetividade e desprezo pelos
humana à capacidade cerebral. Não obstante, a inteligência medida por QI não tem em conta o
conceito de humanitas, uma vez que tais parâmetros também se podem adequar às máquinas que,
por sua vez, podem produzir melhores números que qualquer ser humano26.
Quando surge a ideia de “escapar” da Terra, surge o paradoxo do astronauta, que foge da
Terra para viver na prisão de um mundo totalmente artificial27. Assim, revelam-se dois possíveis
completamente, correndo o risco da autodestruição28. Mas isto não tem de acontecer, o que leva
Arendt a propor a viragem geocêntrica. Esta não é um regresso ao passado, onde se consideraria
novamente que a Terra era o centro do universo e o Homem como o ser suprassumo; a viragem
mais geocêntrica e antropomórfica seria no sentido de “a Terra, e não o universo, ser o centro e a
casa dos homens mortais”29 e “que o homem consideraria a sua própria mortalidade factual entre
as condições elementares sob as quais os seus esforços científicos são possíveis de todo”30.
Esta conceção de geocentrismo surge por diversos motivos. Começando com a perda da
escala humana causada pela revolução copernicana, uma vez que num mundo heliocêntrico a
Terra tornou-se apenas mais um planeta em órbitra do Sol e o Homem perdeu a sua posição
25
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 226.
26
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 227-229.
27
Tradução própria do termo “man-made”. Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 235.
28
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 238.
29
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 236.
30
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 236.
Silva 8
Homem que levou à alienação do mundo e a uma perda de ligação com o ambiente natural. Ao
restabelecer uma relação significativa entre os Homens. Outro motivo seria o domínio da
dos Homens e do mundo natural. Outro dos motivos seria a necessidade de uma abordagem
holística, visto que a abordagem reducionista da ciência moderna tinha levado a uma
compreensão fragmentada do mundo, que não tinha dado conta das complexas interligações
entre os diferentes fenómenos. Desta forma, uma perspetiva geocêntrica encorajaria a uma
importância da atividade humana seria outro motivo, visto que Arendt se preocupava com a
forma como a ciência moderna tinha contribuído para um sentimento de impotência humana e de
perda de ação – a visão mecanicista tinha criado uma sensação de que os Homens eram meras
engrenagens numa vasta máquina, sujeitos às leis da natureza e impotentes para moldar o seu
sentido de ação e responsabilidade para com os Homens, destacando o seu papel único como
guardiões da Terra e a sua capacidade de moldar o mundo através das suas ações.
natureza humana. Desta forma, o destaque que dá à ação é compreensível, uma vez que é a
passagem dessa atividade para o meio natural que desencadeia a sua preocupação com a Terra,
propondo a viragem geocêntrica de forma a conservá-la. De que serve este rápido avanço
Silva 9
Bibliografia
Arendt, Hannah. “The Concept of History: Ancient and Modern.” Between Past and Future:
Eight Exercises in Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 51–91.
Arendt, Hannah. “The Conquest of Space and the Stature of Man.” Between Past and Future:
Eight Exercises in Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 226–237.
Arendt, Hannah. The Human Condition. 2ª ed., The University of Chicago Press, 1998.
Arendt, Hannah. “Tradition and the Modern Age.” Between Past and Future: Eight Exercises in
Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 33–51.
D'Entrèves, Passerin Maurizio. The Political Philosophy of Hannah Arendt. Routledge, 2001.
Villa, Dana. The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge University Press, 2011.