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Silva 1

Pedro Silva, 153438

Filosofia: Filosofia da História

Docente: José Viriato Soromenho-Marques

7 de março de 2023

Hannah Arendt: Um Alerta para a Iminente Autodestruição do Homem

Nascida em 1906 na Alemanha, Hannah Arendt cresceu no seio de uma abastada família

judaica. Foi aluna de Martin Heidegger, tendo mantido uma relação íntima com o mesmo e, sob

orientação de Karl Jaspers, doutorou-se em filosofia com uma tese acerca do Amor em Santo

Agostinho. A chegada de Hitler ao poder obrigou a jovem filósofa a fugir para França, onde

viveu durante 7 anos (1933-40). Em maio de 1941 chega aos EUA, naturalizando-se cidadã após

dez anos. Morreu em 19751, deixando uma relevante coleção de obras e escritos filosóficos.

O seu percurso de vida permite-nos entender o seu pensamento: ainda em tenra idade

vivenciou a primeira guerra mundial, cujo uso de armas químicas fora tão traumático que foram

proibidas no campo de batalha2; forçou-se a fugir para não sofrer as indescritíveis atrocidades

causadas pelo regime nazi; vivenciou nos EUA a segunda guerra mundial, que terminou com o

fatal lançamento de duas bombas atómicas pelo país que a acolheu; por fim, a guerra fria

solidificou os seus pensamentos, sobretudo com a crise dos mísseis de Cuba e a corrida espacial,

visto que as suas teses recaem sobretudo no problema da alienação do mundo causada pelas

descobertas científicas e desenvolvimentos atómicos. O seu foco, assim, passou por pensar a

contemporaneidade numa perspetiva de antropologia política original.

1
Soromenho-Marques slide 2.
2
Protocolo de Genebra, 1925.
Silva 2

Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos contemporâneos mudaram, e continuam a

mudar, as relações dos seres humanos entre si, causando uma alienação – um termo chave para

compreender o pensamento de Arendt. O lançamento do primeiro satélite para o espaço foi

recebido com alívio, pois finalmente começámos a fugir do nosso aprisionamento à Terra – a

“Humanidade não permanecerá vinculada à Terra para sempre”3. Arendt acredita que a “terra é a

própria quintessência da condição humana”4, a nossa relação com a Terra reside no cerne do que

define quem e aquilo que somos enquanto seres humanos – fomos moldados pelo que nos

rodeava. Posto isto, a condição humana e natureza humana são conceitos essenciais para

compreender as características que definem a humanidade, e apesar de serem frequentemente

utilizados de forma permutável, representam conceitos distintos.

Em The Human Condition, o conceito de natureza humana é exposto como complexo –

“se tivermos uma natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e defini-

la”5. Esta passagem demonstra a ambiguidade e incerteza que envolvem o conceito de natureza

humana, expondo a ideia de que esta natureza não é algo que possa ser reduzido a um conjunto

de qualidades fixas e objetivas – não é algo que possamos conhecer ou definir plenamente, é um

conceito incomensurável6. Em contrapartida, a condição humana é o conjunto fundamental de

experiências que todos os humanos partilham, independentemente das suas circunstâncias

individuais – “o facto de os homens, não o Homem, viverem na Terra e habitarem o mundo”7.

3
“Mankind will not remain bound to the earth forever”. Arendt, The Human Condition 1.
4
“earth is the very quintessence of the human condition”. The Human Condition 2.
5
“if we have a nature or essence, then surely only a god could know and define it”. Arendt 10.
6
Para uma abordagem mais profunda sobre o conceito de natureza humana em Arendt, ver Villa, Dana, editora. The
Cambridge Companion to Hannah Arendt e D'Entreves, Passerin Maurizio. The Political Philosophy of Hannah
Arendt.
7
“the fact that men, not Man, live on the earth and inhabit the world”. Arendt, The Human Condition 7.
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Cada ser humano existe num tempo e num lugar específicos e tem um conjunto único de

experiências que moldam a sua compreensão do mundo.

Arendt caracteriza a condição humana com três atividades chave: o trabalho, a obra e a

ação8. O trabalho é a atividade necessária para produzir e reproduzir a vida – “A condição

humana do trabalho é a vida em si”9, incluindo processos biológicos necessários para sobreviver,

como comer, beber água e dormir. A obra é a atividade de criar e moldar o mundo em que

vivemos, ou seja, o artificialismo da existência humana – “A condição humana da obra é a

mundanidade”10, abrangendo desde a construção de edifícios e pontes até à criação de obras de

arte e escrita de livros. O trabalho, ao contrário da obra, não é estritamente necessário para a

sobrevivência, mas é uma parte crucial da vida humana e permite-nos expressar a nossa

criatividade e moldar o mundo que nos rodeia. Por fim, a ação é a atividade de fazer a diferença

no mundo através das nossas palavras e atos – a “Ação [é] a única atividade que se desenvolve

diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria”11. É a atividade mais

proximamente associada à nossa identidade como seres sociais e políticos, e é através dela que

deixamos a nossa marca no mundo e moldamos o curso da história – é a condição humana da

pluralidade.

Embora a natureza humana permaneça um conceito indefinido, a condição humana é

caracterizada pela sua contingência, sujeitando-se a mudanças e sendo moldada por fatores

históricos, culturais e individuais. Por exemplo, as formas de trabalho, obra e ação que são

características de uma determinada sociedade ou período histórico podem diferir

8
Segui a tradução indicada pelo professor Viriato Soromenho-Marques. O original seria “labor”, “work” e “action”.
9
“The human condition of labor is life itself”. Arendt, The Human Condition 7.
10
“The human condition of work is worldliness” Arendt, The Human Condition 7.
11
“Action [is] the only activity that goes on directly between men without the intermediary of things or matter”
Arendt, The Human Condition 7.
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significativamente das de outra sociedade ou período histórico. Neste sentido, a condição

humana não é fixa ou universal – é um produto de circunstâncias históricas e culturais. Arendt

acredita que o conceito de condição humana é mais útil para a compreensão da experiência e

comportamento humanos, e do nosso lugar no mundo. Distinguindo a natureza humana da

condição humana, realça a importância da vida política e da ação humana na delineação do curso

da história humana, pois acredita que os seres humanos não são meros recetores passivos do seu

ambiente, mas sim agentes ativos com o poder de criar e moldar os seus próprios destinos.

As três atividades encontram-se enraizadas na natalidade: têm a tarefa de antecipar e

contar com o afluxo constante novas pessoas, providenciando e preservando também o mundo

para elas12. Estando capacitadas de começar algo de novo, a ação é, das três atividades, a que

apresenta uma ligação mais próxima com a condição humana de natalidade, o que a possibilita

ser uma categoria central do pensamento político, já que a ação é a atividade política por

excelência13. Desta forma, Arendt acreditava que a política devia garantir a natalidade, dando

sentido à vida humana e tornando-a valiosa.

O nosso ambiente moldou-nos não só fisiologicamente14: a nossa cultura desenvolveu-se

também por conta das condições em que vivíamos, uma vez que as nossas práticas e o nosso

conhecimento têm de responder ao local onde nos encontramos se queremos não só sobreviver,

mas também prosperar. Apesar desta relação com a Terra, muito do que significa ser humano é

também mediado pelo facto de conseguirmos criar um “mundo artificial”15 e, olhando ao nosso

redor, percebemos que não estamos a viver diretamente na natureza. Não andamos a passear

12
Arendt, The Human Condition 9.
13
Arendt, The Human Condition 9.
14
Refiro-me ao processo de evolução enquanto espécie.
15
Arendt, The Human Condition 2. O termo artificial é referente a algo criado pelo ser humano.
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pelas florestas e savanas: contruímos casas, ambientes interiores com todo o tipo de luxos para

não só tornar a vida mais suportável e confortável, mas também criar um espaço para outras

atividades acontecerem16. Este mundo artificial é criado para nos separar da brutal realidade do

mundo natural17.

Esse artifício também nos condiciona em certa medida. A ciência e a tecnologia têm sido

usadas frequentemente para reforçar este mundo artificial18, com a ideia de eventualmente, tal

como a tecnologia nos permite realizar feitos que seriam impossíveis apenas com as nossas

próprias mãos e corpos, chegar a um extremo lógico – viajar e colonizar o espaço sideral. Assim,

Arendt distingue os conceitos de Idade Moderna e de Mundo Moderno: o primeiro delimitado

pelas descobertas científicas dos séculos XVII e XX, e o segundo começando com o

desenvolvimento de armas atómicas19 – correspondendo cada um, respetivamente, à alienação do

mundo e alienação da Terra20.

Explicadas as atividades da condição humana, principalmente a ação, e o pensamento de

Arendt acerca da tecnologia e ciência, é possível compreender a sua preocupação com a fissão e

a fusão do átomo – advento da transferência de problemas apenas registados na ação política,

para as relações humanas com a natureza. A ação é a atividade mais impactante – é a que usamos

para deixar a nossa marca no mundo, sem qualquer tipo de intermediação artificial. Contudo,

esta ação limitava-se, sobretudo, ao campo da política e, portanto, todas a consequências das

16
Como a arte e a cultura em geral.
17
Arendt, The Human Condition 2.
18
No sentido de facilitar as nossas atividades ou aumentar e melhorar as nossas capacidades, por exemplo.
19
The Human Condition 6.
20
D'Entrèves 5. A alienação do mundo corresponde ao momento em que estabelecemos uma identidade própria; a
alienação da Terra corresponde à tentativa de fuga do nosso planeta. Consultar o 1º capítulo para um maior
aprofundamento.
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ações, uma vez que nunca se sabe no que irão resultar21, recaíam sempre no âmbito social e

político, como a guerra e a revolução. Com o desenvolvimento da energia nuclear,

particularmente a capacidade de dividir o átomo e desencadear enormes quantidades de energia,

surgiu um novo risco que foi além da ação política.

Até aqui a ação humana com os seus processos artificiais restringiu-se ao mundo humano.

Mas assim que começamos os nossos próprios processos naturais – sendo a divisão do átomo

exatamente um desses – aumentámos o nosso poder sobre a natureza e levámos a natureza para o

mundo humano22. A conjugação da imprevisibilidade da ação humana com a ação sobre a

natureza pode levar a resultados catastróficos – sendo “mais perigoso ainda ignorar que pela

primeira vez na nossa história, a capacidade humana para a ação começou a dominar todas as

outras”23. Domar aquilo que sempre se considerou indomável acarta muitos riscos,

principalmente quando estes são desconhecidos pelos homens por serem criados por eles24.

Arendt estava particularmente preocupada com as potenciais consequências da guerra nuclear e a

capacidade desta tecnologia destruir não só as sociedades humanas, mas também o mundo

natural.

Em The Conquest of Space and the Stature of Man, Arendt propõe uma viragem

geocêntrica das ciências, contrariando a tendência de alienação do mundo posterior a Copérnico,

motivada por algumas razões referidas anteriormente. Contudo, explicarei primeiro em que

consiste esta viragem geocêntrica. Os Romanos apresentam o conceito da Humanitas – o ser

21
Podemos prever que a ação humana realize coisas inimagináveis, mas nunca sabemos concretamente o quê e as
repercussões que irá ter. Arendt, The Human Condition 177-178.
22
Arendt, The Concept of History: Ancient and Modern 67.
23
Arendt, The Concept of History: Ancient and Modern 68-69.
24
De notar que este alerta não é uma crítica ou uma posição contra o progresso e avanço científico, mas antes um
aviso para tomar precauções ao lidar com algo novo e poderoso.
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humano como o centro do pensamento e consideração25 – mas a ciência moderna perdeu o tato

humano na sua abordagem por conta de uma fixação pela objetividade e desprezo pelos

elementos naturais e antropomórficos. O processo metodológico praticamente reduziu a condição

humana à capacidade cerebral. Não obstante, a inteligência medida por QI não tem em conta o

conceito de humanitas, uma vez que tais parâmetros também se podem adequar às máquinas que,

por sua vez, podem produzir melhores números que qualquer ser humano26.

Quando surge a ideia de “escapar” da Terra, surge o paradoxo do astronauta, que foge da

Terra para viver na prisão de um mundo totalmente artificial27. Assim, revelam-se dois possíveis

resultados: ou o homem retorna à Terra; ou a estatura do homem além de rebaixada, dissolve-se

completamente, correndo o risco da autodestruição28. Mas isto não tem de acontecer, o que leva

Arendt a propor a viragem geocêntrica. Esta não é um regresso ao passado, onde se consideraria

novamente que a Terra era o centro do universo e o Homem como o ser suprassumo; a viragem

mais geocêntrica e antropomórfica seria no sentido de “a Terra, e não o universo, ser o centro e a

casa dos homens mortais”29 e “que o homem consideraria a sua própria mortalidade factual entre

as condições elementares sob as quais os seus esforços científicos são possíveis de todo”30.

Esta conceção de geocentrismo surge por diversos motivos. Começando com a perda da

escala humana causada pela revolução copernicana, uma vez que num mundo heliocêntrico a

Terra tornou-se apenas mais um planeta em órbitra do Sol e o Homem perdeu a sua posição

privilegiada como o centro do cosmos. Consequentemente, deu-se um efeito desorientador no

25
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 226.
26
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 227-229.
27
Tradução própria do termo “man-made”. Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 235.
28
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 238.
29
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 236.
30
Arendt, The Conquest of Space and the Stature of Man 236.
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Homem que levou à alienação do mundo e a uma perda de ligação com o ambiente natural. Ao

regressar a uma perspetiva geocêntrica, Arendt esperava restaurar a dimensão humana e

restabelecer uma relação significativa entre os Homens. Outro motivo seria o domínio da

natureza – a exploração e destruição do meio-ambiente surgiu devido à visão mecanicista. Uma

perspetiva geocêntrica poderia ajudar a desafiar esta dominação, realçando a interdependência

dos Homens e do mundo natural. Outro dos motivos seria a necessidade de uma abordagem

holística, visto que a abordagem reducionista da ciência moderna tinha levado a uma

compreensão fragmentada do mundo, que não tinha dado conta das complexas interligações

entre os diferentes fenómenos. Desta forma, uma perspetiva geocêntrica encorajaria a uma

abordagem mais holística do conhecimento tendo em conta a interdependência de todas as

coisas, reconhecendo o papel do contexto e do ambiente na formação da experiência humana. A

importância da atividade humana seria outro motivo, visto que Arendt se preocupava com a

forma como a ciência moderna tinha contribuído para um sentimento de impotência humana e de

perda de ação – a visão mecanicista tinha criado uma sensação de que os Homens eram meras

engrenagens numa vasta máquina, sujeitos às leis da natureza e impotentes para moldar o seu

próprio destino. Segundo a autora, o regresso a uma perspetiva geocêntrica restauraria um

sentido de ação e responsabilidade para com os Homens, destacando o seu papel único como

guardiões da Terra e a sua capacidade de moldar o mundo através das suas ações.

A distinção e explicação da natureza e condição humana permite uma abordagem

antropológica mais objetiva no sentido pragmático – não caindo simplesmente na suposição da

natureza humana. Desta forma, o destaque que dá à ação é compreensível, uma vez que é a

passagem dessa atividade para o meio natural que desencadeia a sua preocupação com a Terra,

propondo a viragem geocêntrica de forma a conservá-la. De que serve este rápido avanço
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tecnológico se devastar completamente a sustentabilidade do Homem na Terra e, por

consequência, impedir o usufruto dessas tecnologias?


Silva 10

Bibliografia

Arendt, Hannah. “The Concept of History: Ancient and Modern.” Between Past and Future:
Eight Exercises in Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 51–91.

Arendt, Hannah. “The Conquest of Space and the Stature of Man.” Between Past and Future:
Eight Exercises in Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 226–237.

Arendt, Hannah. The Human Condition. 2ª ed., The University of Chicago Press, 1998.

Arendt, Hannah. “Tradition and the Modern Age.” Between Past and Future: Eight Exercises in
Political Thought, Penguin Books, Londres, Etc., 2006, pp. 33–51.

D'Entrèves, Passerin Maurizio. The Political Philosophy of Hannah Arendt. Routledge, 2001.

Soromenho-Marques, Viriato. História e Condição Humana Em Hannah Arendt. Fev. 2023.


Apresentação de PowerPoint.

Villa, Dana. The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge University Press, 2011.

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