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O corpo para além de si e da arquitetura: as cinco

peles de Hundertwasser
​ Escrito por Victor Delaqua

​ 24 de Abril de 2021

Imaginar e experimentar outros modos de compreender a relação entre o corpo

humano, os espaços e as ideias que o conectam com o mundo foi uma das principais

elaborações que Hundertwasser trouxe à tona. O artista e arquiteto austríaco, nascido

em 1928, desenvolveu grande parte da sua obra voltada para as questões ambientais,

expondo seu ponto de vista através da teoria das cinco peles: epiderme, vestuário,

casa, identidade social e o mundo. Um conceito que por sua universalidade ainda traz

consigo um viés contemporâneo.

Para explorar as conexões dinâmicas que acontecem entre cada pessoa e seu entorno,
é necessário primeiro entender que o corpo aqui é visto como um organismo de
fronteiras fluídas e permeáveis, que se ampliam para compor instâncias plurais, nas
quais confrontam novos pensamentos sobre ética e a responsabilidade coletiva
colocada por ela. Vale ressaltar que, aqui, a ética própria não necessariamente se
valida com uma coletiva. O próprio arquiteto em sua trajetória demonstrou criativamente
como é possível estar fora das lógicas impostas por uma sociedade para viver dentro de
suas próprias crenças através da natureza e dos meios sociais, ou cultura, sem
desrespeitá-los. E é através das possibilidades experimentais das cinco peles que ele
manifesta isso.

Primeira pele: epiderme

A camada exterior da pele, a epiderme, é responsável principalmente pela proteção do

corpo. Trata-se de uma barreira impermeável e renovável que também configura o nível

primário de nosso contato com o externo e, portanto, da nossa consciência e

convivência com o todo: uma conexão direta entre os seres humanos e os

ecossistemas.

Diante do caos tecnocrático, Hundertwasser aconselha andar descalço, experimentar a

nudez e tomar ciência da própria expressão individual. As ações não devem ser
moldadas para se adequar ou transparecer uma imagem que não seja a sua própria

verdade. É através da natureza primordial que a pele se estabelece como uma ponte

entre o homem e a realidade, revelando a diferença que existe em relação ao corpo em

si e à imagem que se cria dele.

Segunda pele: o vestuário

Um passaporte social, uma afirmação perante a sociedade, a segunda pele, ou as

roupas que vestimos, é um modo de expressar nossa individualidade.

Ao se contrapor à uniformidade anônima que as roupas produzidas em massa

estabelecem na sociedade, Hundertwasser passou a costurar seus próprios trajes e

clamava para que as pessoas trouxessem mais criatividade em suas vestimentas, como

forma de proclamar o próprio individualismo, fator ideal para manter a diversidade do

todo e possibilitar novos imaginários na sociedade.

Terceira pele: a casa

Aqui nos deparamos com a dimensão física que se estabelece na urbanidade e com o

modo como a arquitetura deve prezar pela harmonia com a natureza. Hundertwasser

manifestava sua aversão à linha reta e a rigidez que ela impunha ao ser-humano

através de "estruturas estéreis". Se em suas pinturas ele trazia linhas orgânicas e

através dela trabalhava todo seu potencial criativo, no espaço construído ele também

clama pela possibilidade de liberdade para a criação no edifício.

Segundo o austríaco, as irregularidades não reguladas são imprescindíveis para

alcançar a beleza. Através do uso das cores, de diferentes composições que podem

gerar ritmos que diversificam o olhar, do (não) nivelamento do solo, do emprego dos

materiais, em suma, tudo o que pode ser traduzido para um pensamento não-linear e

que se aproxime da natureza podem trazer a dignidade da realização da criatividade

individual.
Quarta pele: identidade social

A identidade dos seres humanos é baseada em como somos diferentes um dos outros e

este fato se relaciona com o ambiente social através do qual nos afiliamos, da família

até a nação. Em outras palavras, as afinidades eletivas proporcionam a vida numa

coletividade que permite, através da convivência, trazer distintos aportes para a

construção do caráter pessoal e de ideologias perante o comportamento moral e

pensamento racional de cada pessoa.

Aqui é lembrado o modo como a sociedade age perante o meio-ambiente: o uso de

agrotóxicos, a forma como opta por usar seu transporte, o uso de materiais renováveis

ou o fato do lixo ser reciclado ou não. É um momento no qual o ser humano se encontra

com o outro e deve se ver no meio do ciclo natural e aprimorar sua função. Por este

motivo, Hundertwasser destaca a necessidade de proteger algumas tradições,

símbolos, que são fundamentais para disseminar a mensagem de uma harmonia

universal.

Quinta pele: o mundo

Diretamente relacionada com o destino da biosfera, a qualidade do ar que respiramos e

o estado da crosta terrestre que nos abriga e nos alimenta, a quinta pele volta seu olhar

para o fato da evolução do ser humano conduzir à sua própria ruína, uma vez que está

em constante conflito com a natureza.

Portanto, a criação pessoal e sua pegada ecológica passa a exercer influência no

projeto de sociedade. Sendo assim, é necessário que o homem esteja em harmonia

com a natureza - vista por Hundertwasser como uma força ativa de importância superior

da qual o homem é dependente - para gozar do seu direito de viver em espaços felizes

e fluir através de redes de sensibilidade intuitiva que a criatividade pode trazer perante o

contexto convencional de uma ideologia comum.


Da epiderme ao mundo, a latência individual é colocada em diferentes modos e escalas a

fim de demonstrar a possibilidade de tecer a própria relação pessoal com a Terra,

transformando-se numa nova perspectiva de vida, na qual a harmonia com a natureza

prevalece e, através da liberdade, cada pessoa consegue explorar e trazer a criatividade

para o entorno no qual vive.

Verificar imagens no arquivo:

https://www.archdaily.com.br/br/959286/o-corpo-para-alem-de-si-e-
da-arquitetura-as-cinco-peles-de-hundertwasser#

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