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NATUREZA E CULTURA
O DADO E O CONSTRUÍDO
Se volvemos os olhos para aquilo que nos cerca, verificamos
que existem homens e existem coisas. O homem não apenas existe,
mas coexiste, ou seja, vive necessariamente em companhia de ou
tros homens. Em virtude do fato fundamental da coexistência, es
tabelecem os indivíduos entre si relações de coordenação, de su
bordinação, de integração, ou de outra natureza, relações essas que
não ocorrem sem o concomitante aparecimento de regras de orga
nização e de conduta.
Pois bem, essas relações podem ocorrer em razão de pessoas,
ou em função de coisas. Verificamos, por exemplo, que um deter
minado indivíduo tem a sua casa e que dela pode dispor a seu ta-
lante, sendo-lhe facultado tanto vendê-la como alugá-la. Há um
nexo físico entre um homem e um certo bem econômico. Há rela
ções, portanto, entre os homens e as coisas, assim como existem
também entre as coisas mesmas. Trata-se, é claro, de tipos diferen
tes de relações, cuja discriminação vai se enriquecendo à medida
que a ciência progride.
Não é necessária muita meditação para se reconhecer, por
exemplo, que existem duas ordens de relações correspondentes a
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duas espécies de realidade: uma ordem que denominamos realida
de natural, e uma outra, realidade humana, cultural ou histórica.
No universo, há coisas que se encontram, por assim dizer, em
estado bruto, ou cujo nascimento não requer nenhuma participação
de nossa inteligência ou de nossa vontade. Mas, ao lado dessas
coisas, postas originariamente pela natureza, outras há sobre as quais
o homem exerce a sua inteligência e a sua vontade, adaptando a
natureza a seus fins.
Constituem-se, então, dois mundos complementares: o do natural
e o do cultural; do dado e do construído; do cru e do cozido. Ha
vendo necessidade de uma expressão técnica para indicar os ele
mentos que são apresentados aos homens, sem a sua participação
intencional, quer para o seu aparecimento, quer para o seu desen
volvimento, dizemos que eles formam aquilo que nos é “dado”, o
“mundo natural”, ou puramente natural. “Construído” é o termo
que empregamos para indicar aquilo que acrescentamos à nature
za, através do conhecimento de suas leis visando a atingir determi
nado fim1.
Diante dessas duas esferas do real, o homem se comporta de
maneira diversa, mas antes procura conhecê-las, descobrindo os
nexos existentes entre seus elementos e atingindo as leis que as
governam.
Montesquieu, que é um dos grandes mestres da ciência jurídi-
co-política da França, no século XVIII, escreveu uma obra de grande
repercussão na cultura do Ocidente, intitulada De VEsprit des Lois
(Do Espírito das Leis), cuja influência se fez notar na Revolução
Francesa, primeiro, e, depois, na organização da democracia libe
ral. Pois bem, nesse livro de Montesquieu, a lei é definida como
sendo uma “relação necessária que resulta da natureza das coisas”.
Essa definição vale tanto para as leis físico-matemáticas como
para as leis culturais. Vejamos se se pode falar em “natureza das
1. Observamos que, embora inspirada na terminologia de François Gény,
a distinção aqui feita entre “dado” e “construído” não corresponde à desen
volvida por esse ilustre jurisconsulto francês.
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coisas” ao nos referirmos às leis que explicam o mundo físico, ou
seja o mundo do “dado”, ou às leis morais e jurídicas, que são as
mais importantes dentre as que compreendem o mundo da cultura
e da conduta humana, do “construído”.
CONCEITO DE CULTURA
Esse estudo tornar-se-á mais acessível com o esclarecimento
prévio do que se deva entender pela palavra “cultura”. Dissemos
que o universo apresenta duas ordens de realidade: uma, que cha
mamos realidade natural ou físico-natural, e outra, que denomina
mos realidade cultural. A expressão tem sido impugnada ou criticada
sob a alegação de ter sido trazida para o nosso meio por influência
da filosofia alemã, que se desenvolveu em grande parte ao redor do
termo Kultur, com preterição do termo “civilização”.
Essa objeção não tem qualquer procedência. A palavra em si é
genuinamente latina, e não cremos que se deva condenar o empre
go de um vocábulo só por ter sido objeto, em outros países, de
estudos especiais...
Além do mais, a palavra “cultura” já era empregada por escri
tores latinos, que, nas pegadas de Cícero, faziam-no em dois sen
tidos: como cultura agri (agricultura) e como cultura animi. A
agricultura dá-nos bem idéia da interferência criadora do homem,
através do conhecimento das leis que explicam a germinação, a
frutificação etc. Ao lado da cultura do campo, viam os romanos a
cultura do espírito, o aperfeiçoamento espiritual baseado no co
nhecimento da natureza humana. É na natureza humana que, efeti
vamente, repousam, em última análise, as leis culturais, sem que a
aceitação do conceito de “natureza humana” implique, necessaria
mente, o reconhecimento de “leis naturais” anteriores às que se
positivam na história.
Pois bem, “cultura” é o conjunto de tudo aquilo que, nos pla
nos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da nature
za, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. E,
desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e
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serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de compor
tamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da
história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.
Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou
sem fins. Ao contrário, a vida humana é sempre uma procura de
valores. Viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanente
mente, entre dois ou mais valores. A existência é uma constante
tomada de posição segundo valores. Se suprimirmos a idéia de valor,
perderemos a substância da própria existência humana. Viver é,
por conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos ho
mens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter
plena consciência de que há algo condicionando os seus atos.
O conceito de fim é básico para caracterizar o mundo da cul
tura. A cultura existe exatamente porque o homem, em busca da
realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que lhe é “dado”,
alterando-se a si próprio.
Para ilustrar essa passagem do natural para o cultural, — mesmo
porque não há conflito entre ambos, pois, como adverte Jaspers, a
natureza está sempre na base de toda criação cultural, — costuma-
se lembrar o exemplo de um cientista que encontra, numa caverna,
um pedaço de sílex.
A primeira vista, por se tratar de peça tão tosca, tão vizinha do
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3. Sobre a relação entre as invariantes axiológicas e o Direito, vide
pág. 276.
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