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ANGELUS NOVUS E O TRANSUMANISMO: UM DILEMA PARADOXAL

EXISTENTE ENTRE PROGRESSO E REGRESSO

Joici Antônia Ziegler 1


Thami Covatti Piaia2
Noli Bernardo Hahn3

“Minha asa está pronta para o voo altivo:


se pudesse, voltaria
pois ainda que ficasse tempo vivo,
pouca sorte teria.”.

Gerhard Scholem, Saudação do Anjo4

RESUMO: O presente texto possui como objetivo abordar analiticamente uma das teses
escritas por Walter Benjamin, mais especificamente a sua IX tese e interpretá-la, ou seja,
trazendo sua tese ao contexto da globalização. Nessa tese, o autor chama a atenção para o
progresso da humanidade. O progresso é um dos pontos mais polêmicos que temos visto e
sentido. Este está intimamente ligado à globalização, em que houve o desencadeamento de
uma série de eventos, como o desenvolvimento das tecnologias de informação (T.I), da
inteligência artificial, e também do transumanismo. Essa corrente filosófica desafia as leis da
natureza, ambientando o corpo humano com a inserção de tecnologias avançadas, que
permitem criar, renovar e modelar corpos. No entanto, com as devidas nuances a serem
observadas, procura-se questionar se toda essa gama de tecnologia nos levará ao progresso
ou ao regresso enquanto humanidade. A resposta que se aponta a esta questão, neste artigo,
integra a uma perspectiva paradoxal, ambígua e ambivalente.

PALAVRAS-CHAVE: Angelus Novus; Progresso; Regresso; Transumanismo.

INTRODUÇÃO

1
Mestra e Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito
pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Santo Ângelo/RS.
Licenciada em Filosofia; Pós-Graduada em Filosofia. E-mail – joiciantonia@yahoo.com.br
2

3
Pós-doutor pela Faculdades EST. Doutor em Ciências da Religião, Ciências Sociais e
Religião, pela UMESP. Professor Tempo Integral da URI, Campus de Santo Ângelo. Graduado
em Filosofia e Teologia. Possui formação em Direito. Integra o Corpo Docente do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado em Direito. Lidera o Grupo de Pesquisa
Novos Direitos em Sociedades Complexas, vinculado à Linha 1, Direito e Multiculturalismo, do
PPG Mestrado e Doutorado em Direito da URI. Pesquisa temas relacionando Gênero, Direito,
Cultura e Religião. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2637-5321. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4888480291223483. E-mail: nolihahn@san.uri.br

4
Esse trecho se refere ao poema intitulado Saudação do Angelus, que foi citado no livro "O
anjo da História" de Walter Benjamin. Foi enviado por Gershom Scholem como presente a
Benjamin, em 15 de julho de 1921.
O conceito de tempo é um dos mais discutíveis na história. Não há
consenso. Filósofos, literatos, físicos, entram e saem de cena com o objetivo
de encontrar uma denominação que possa suprir esse termo de maneira
adequada. Tempo é elemento para poesia. Tempo é divagar. Tempo se
desdobra em três esferas as quais se vive e se encontra – passado, presente e
futuro. É o que determina os seres vivos. O tempo carrega em si a História,
fatos que construíram a humanidade e desaguaram no momento presente.
Presente, que pode ser nominado de diversas formas, como tecnológico,
reflexivo, progressista, individualista, capitalista, líquido, momentâneo,
frenético, transumano etc.
O tempo se encarrega de desvelar as inúmeras transições pelas quais
percorreu a humanidade. Dentre essas evidências, se apresentam, tanto
progressos como regressos, em termos conceituais ligados ao termo
humanismo. Na passagem de ciclos históricos, de onde o ser humano evoluiu
ao desenvolver o fogo – elemento primitivo e universal necessário para a
sobrevivência e para o desenvolvimento, até a tecnologia avançada de acender
uma lareira com um sensor de voz, por meio de produtos de automatização
ambiental, como a Alexa5. Eis uma evolução no tempo.
Noutro sentido, apesar da evolução científica e tecnológica, situações
de perda do elemento humanidade se desvelam e se revelam em genocídios,
discriminação, guerras que ocorrem neste exato momento, disputas por
território, pela dominação de ambientes, pela dominação de povos, que
segregam, que destroem, que vão em sentido contrário àquilo que se conceitua
como humanismo6, ou seja, com a razão sendo a norteadora das questões
universais, a partir da passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.
5
A Alexa é uma assistente virtual que passou a estar presente em muitas casas e escritórios,
devido aos seus dispositivos Echo. Desenvolvida pela Amazon, este produto conta com
diversas funções que podem entreter, informar e também ter bastante utilidade no dia a dia. A
Alexa possui uma configuração que permite desempenhar funções de acender lâmpadas, ligar
aparelhos de climatização, cafeteiras, fechar e abrir cortinas, etc.

6
O Humanismo é considerado um movimento filosófico e literário, ocorrido nos séculos XIV e
XV, que teve início na Península Itálica. Primeiramente, o termo era empregado para designar
os estudos de humanidades, ou seja: literatura clássica, história, dialética, retórica, aritmética,
filosofia natural e línguas modernas. O ponto central do humanismo repousa no fato de colocar
a razão em termos iniciais e encontrar a harmonia e a paz, a partir do conhecimento que vem
da arte, da literatura, da filosofia, rejeitando assim, a barbárie. Marca, também, a passagem do
teocentrismo para o antropocentrismo, ou seja, o homem como o centro do universo.
Nesse viés paradoxal, que se coloca em destaque a ideia de progresso
e regresso da humanidade, encontra-se a reflexão de Walter Benjamin, em
suas teses sobre o Conceito de História, mais precisamente a IX tese, fazendo
referência ao Angelus Novus, a ideia de progresso e regresso. A analogia é
pertinente à corrente filosófica chamada Transumanismo, que emprega
tecnologia avançada no corpo humano afim de desenvolvê-lo, fazê-lo evoluir
com o objetivo de transformar o corpo humano mais longevo, mais saudável e
mais belo. Um corpo que não mais é natural, mas sim com partes artificiais,
sejam próteses, sejam hormônios, externa ou internamente. Um corpo, em
parte, fabricado.
A abordagem do texto divide-se em duas partes. Na primeira, sob a
ótica de Walter Benjamin, acerca da ideia de progresso e regresso, faz-se uma
reflexão desse tema, especificamente a partir do quadro de Paul Klee,
intitulado Angelus Novus, em que o autor se inspirou para escrever a IX tese
sobre o Conceito de História. Na sequência, aborda-se o transumanismo como
uma corrente filosófica e um novo paradigma em que os corpos se
desenvolvem com o auxílio da tecnologia e podem levar a situações
preocupantes, como a eugenia e uma possível perda da humanidade.

1 – ANGELUS NOVUS e a ideia de progresso e regresso da humanidade

O olhar binocular sobre a vida é essencial. Olhar com olhos de que


pode haver, minimamente, dois caminhos a serem percorridos. Que pode haver
progresso e regresso. A partir desse olhar binocular existente na face do
filósofo alemão de Walter Benjamin, que ao observar e admirar a obra Angelus
Novus - um quadro do expressionista suíço, Paul Klee, pintado no ano de 1920,
foi basilar na inspiração para Benjamin manifestar um encadeamento que,
embora bastante lógico, tornou-se emblemático para descortinar os caminhos
da humanidade.
O autor – judeu sua carreira dedicada à arte de escrever, sentiu as
intempéries de um movimento de destruição de sua própria identidade. Em
razão da conjuntura política da época, Benjamin, condensou em seu último
texto suas percepções daquilo que havia adquirido intelectualmente em sua
vida. Márcio Seligmann Silva, ao escrever a introdução ao livro de Benjamin –
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, refere que:

Esse descontentamento com a política se condensou no seu último


texto, “Sobre o conceito da História”, de 1940, que pode ser
considerado um dos documentos mais impactantes sobre a vida
dilacerada no século XX. Trata-se de uma reflexão crítica sobre
história e política. SILVA (2020, p. 22)

Em 1940, Benjamin, que nas palavras de Michael Löwy é um “homem


de letras”, escreve então, suas famosas teses “Sobre o conceito da História”,
marco da crítica da esquerda à historiografia burguesa e também à ideologia
do progresso desmedido. Benjamin chama a atenção para o progresso,
fazendo alusão a ele especificamente em sua IX tese. Benjamin percebe o
progresso, a partir do olhar binocular com o qual admira o quadro de Paul Klee.
Para ele,

Há um quadro de Klee7 que se chama Angelus Novus. Representa


um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas
asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está
dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade
é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1994, p. 226)

Benjamin - foi genial ao compreender que todo o desenvolvimento da


civilização - comporta também seu avesso, o seu contrário, também podemos
dizer, o princípio da barbárie. O progresso é um dos pontos mais polêmicos
7
KLEE, Paul. Angelus Novus. Museu de Israel. Jerusalén. Ano de criação 1920. Oil transfer
and watercolor on paper 31.8 x 24.2 cm. Public Domain. Disponível em:
<http://www.imj.org.il/node/192356#>. Acesso em 24 set 2021.
que se tem visto, estando intimamente ligado à globalização, e a partir desta
desencadearam uma série de fatores que, de certa forma, contribuíram para
chegar ao momento atual em que se vive. Momento único da história,
caracterizado por eventos nunca antes vividos. Avanços tecnológicos, uma
quantidade imensa de bens de consumo disponíveis a todo gosto e custo,
avanços tecnológicos em todas as áreas e segmentos até viagens espaciais.
Nesse necessário olhar binocular para os meandros de
desenvolvimento do século XX, e com o objetivo de perceber a continuidade e
descontinuidade por qual perpassa a humanidade, denota-se um olhar o
contínuo progresso no que tange ao desenvolvimento industrial, científico e
tecnológico, ao passo que por outra lente, podem-se mirar as barbáries e
massacres ocorridos nas guerras mundiais, onde o investimento em tecnologia
é o que decide a guerra, é o que decide quem vive e quem padece.
Hannah Arendt, amiga pessoal do filósofo (homem de letras), ao
escrever Homens em Tempos Sombrios, descreve com sensibilidade a
percepção de Benjamin sobre os acontecimentos que os mesmos estavam
vivenciando em 1939, com o horror da guerra e a tentativa de exilamento, que
acabou o levando ao suicídio, no início do outono de 1940. Arendt (2021, p.
178), ao fazer referência a Adorno, o qual expressou que “para entender
adequadamente Benjamin, é preciso sentir por trás de cada frase a conversão
da extrema agitação em algo estático, na verdade, a noção estática do próprio
movimento”.
Esse movimento, pode ser analogamente considerado do passado
para o futuro, para Arendt “ nada poderia ser mais “não dialético” que essa
atitude, onde o “anjo da história” (na nona tese de “Sobre o conceito de
História”) não avança dialeticamente para o futuro, mas tem seu rosto voltado
para o passado, estando atento aos acontecimentos bárbaros como a guerra, a
barbárie, a busca por uma raça considerada perfeita – pela eugenia nazista e o
horror por esta ideologia causado. O “anjo da história” não se permite esquecer
o passado, pois este está interligado com o futuro. Arendt, refere que:

Nesse anjo, que Benjamin viu no Angelus Novus de Klee, o flâneur


vive a experiência de sua transfiguração final. Pois assim como o
flâneur, com o gestus do vaguear a esmo, volta suas costas à
multidão mesmo quando é por ela impelido e varrido, da mesma
forma o “anjo da história”, que não olha senão para o futuro pela
tempestade do progresso. Parece absurdo que tal pensamento algum
dia tenha se preocupado com um processo coerente, dialeticamente
sensato, racionalmente explicável. (ARENDT, 2008, pg. 178)

Michael Löwy - não passou por Benjamin com olhos despercebidos e


ao escrever a obra Walter Benjamin: Um aviso de incêndio, faz uma ampla
leitura e comenta as teses Sobre o conceito de História, onde transporta sua
percepção sobre a IX tese, aduz que:

O Anjo da História gostaria de parar, cuidar das feridas das vítimas


esmagadas sob os escombros amontoados, mas a tempestade leva
inexoravelmente a repetição do passado: novas catástrofes, novas
hecatombes, cada vez mais amplas e destruidoras. (LÖWY, 2005, p.
90)

A História não apenas retrata o tempo no passado, mas alerta para o


tempo futuro. A sensibilidade e maestria em analisar o presente e projetar
possíveis reações futuras foram virtudes de Benjamin que, conforme Jeanne
Marie Gagnebin, evidencia que:

Se nos lembrarmos de que o termo Geschichte, como “história”,


designa tanto o processo ou um relato qualquer, compreenderemos
que as teses “Sobre o conceito de História”, não são apenas uma
especulação sobre o devir histórico “enquanto tal”, mas uma reflexão
crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias),
discurso esse inseparável de uma certa prática. Assim, a questão da
escrita da história remete às questões mais amplas da prática política
e da atividade da narração. (GAGNEBIN, 2012, p. 08)

Nesse contexto, interligam-se vários fatores que, trazidos para o


presente, no que se refere ao progresso tecnológico, este se evidencia
imbricado com o passado. A busca por um horizonte infinito de conquistas de
algumas mentes que possuem o poder de capital e de influenciar legiões de
pessoas, possui o condão de desmoronar em eventos que não menos são
considerados de regressos para a humanidade. Nessa seara, o olhar binocular,
novamente se faz necessário. A visão de que elementos progressistas, visto
por alguns desaguam em eventos cataclísmicos, esclarece que:

Benjamin, que, conforme sabemos por meio do depoimento de seu


amigo G. Scholem, escreveu as teses sob o impacto do acordo de
agosto de 1939 entre Stalin e Hitler, critica duas maneiras
aparentemente opostas de escrever a história que, na realidade, têm
sua origem em uma estrutura epistemológica comum: a historiografia
“progressista”, mais especificamente a concepção de história em
vigor na social-democracia alemã de Weimar, a ideia de um
progresso, inevitável e cientificamente previsível (Kautsky),
concepção que, conforme demonstra Benjamin, provocará uma
avaliação equivocada do fascismo e a incapacidade de desenvolver
uma luta eficaz contra a sua ascenção: mas também a historiografia
“burguesa” contemporânea. (GAGNEBIN, 2012, p. 08)

Nesse contexto, de cuidado com o uso das tecnologias de antagonismo


vivido, dessa grande desarmonia, Edgar Morin menciona que existem duas
vias para compreender o século XX, sendo uma de progresso do
desenvolvimento e de aparente racionalidade, e a outra, em contrapartida,
carregada de convulsão e horrores (MORIN, 2010, p. 21). Nessa convulsão de
horrores estão inseridos vários elementos e não deixa de observar que a ampla
globalização e as tecnologias de informação deixam seu lastro de problemas
que, em muitos países ainda insolucionáveis.
Depreende-se do entendimento preconizado por Benjamin, que, ao
mesmo tempo em que os indivíduos são tragados pelas sinuosidades da
inércia, há neles, uma perspectiva de futuro invisível, sublinhada pelos
caminhos do progresso que, em suas consequências, supõe um mundo
inclinado a garantir o poder de alguns de seus agentes. Trata-se, portanto, de
uma tentativa para desmistificar o ideal de progresso e olhar para as dores, as
vicissitudes e os dilemas que emanam deste processo, que são muitos, e que
por muitas vezes a ideia é fazer com que estes não existam, simplesmente são
colocados para baixo do tapete para que se tornem inexistentes ou invisíveis
ao olhar histórico.
Nas palavras de Morin (2010, p. 29), “todo progresso corre o risco de se
degradar e comporta um duplo sentido: progressão/regressão”. Neste sentido
ainda conclui “o progresso é, portanto, uma das fisionomias, uma das faces
incertas do futuro”. Afinal, diante de tanto progresso científico não corremos o
risco de regredir enquanto seres humanos? Eis o paradoxo.
A humidade do século XX perpetuou a mais assombrosa barbárie. O
país que fora expoente da nobre cultura musical, poética e filosófica, também
foi berço da barbárie e do holocausto. Diante de tamanha ambivalência, ainda
ecoa uma pergunta célebre levantada por Theodor W. Adorno, no século XX ao
fazer sua reflexão sobre como o ser humano voltou à barbárie mesmo com
todo o desenvolvimento intelectual e cultural da humanidade. Adorno, diante de
sua indignação, assim mencionou: “Escrever um poema após Auschwitz é um
ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tonou
impossível escrever poemas” (ADORNO, 1962, p. 29).
Após as guerras, construiu-se um novo pensar, uma nova forma de
viver. Na tentativa de emergir de momentos nefastos, abriu-se uma clareira no
horizonte – a globalização iniciou um processo de renovação e construção.
Construção de um mundo contemporâneo inundado de tecnologia, de bens de
consumo, aumento exponencial da população e com isso a necessidade de
mais e mais em tudo que está no em torno do ser humano, inclusive o próprio
ser humano ou o já transumano.

2 A abertura para o transumanismo: conceito e reflexos na sociedade


contemporânea

Uma evidente mudança de paradigma ocorreu na sociedade nas últimas


décadas, por meio da inserção e uso da tecnologia, que avança de maneira a
transformar a forma de vivência da humanidade. Surgiu o segmento filosófico
denominado transumanismo que, em linhas gerais, diz respeito diretamente a
uma perspectiva de investimento na condição humana e seu melhoramento e
evolução, tanto referente ao corpo físico em si, como ao sistema psicológico,
estabilizando os sentimentos irregulares e levando maior nível de felicidade
para as pessoas com o uso da tecnologia e da biomedicina.
A tecnologia é a mola propulsora da sociedade atual, e juntamente com
a ciência, encontram-se no auge das discussões, principalmente após a
pandemia ocasionada pelo vírus denominado COVID-19. A ciência, a técnica, a
antropotécnica e a tecnologia formam uma aliança sem a qual o horizonte da
humanidade não poderá olhar com visibilidade. O elo forjado entre esses segmentos
define o caminho a ser percorrido em uma direção sem volta. Os ideais trazidos pela
modernidade desaguam em uma cascata de inovações que possibilitam alterar a vida
dos seres no planeta. Com o surgimento da Internet e após com a World Wide Web, o
cenário mundial passou a ser alterado sem nenhuma comparação que possa
ser igualada ou sequer assemelhada.
Novos termos surgiram a partir da tecnologia, novas assimilações que
pouco tempo atrás seriam impensadas, a não ser pela ficção científica. Ficção
essa que, no momento, pode não ser mais ficção e sim uma realidade posta e
prestes a expandir exponencialmente, dando origem ao transumanismo –
corrente filosófica que faz uso da tecnologia avançada, ligada à medicina e
biomedicina com a finalidade de evoluir, de transformar corpos, de construir e
criar corpos para viver mais, e melhor, e quiçá, driblar a morte. Nesse viés,
destaca-se a passagem sobre o transumanismo:

No sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da


ciência e da tecnologia, seja pelas vias da biotecnologia, da
nanotecnologia e/ou neurotecnologia, com fulcro no aumento da
capacidade e na superação das barreiras físicas e psicológicas
tipicamente humanas. A proposta do movimento transumanista, tem
por objetivo, portanto, empregar a tecnologia para permitir que seres
humanos possam transcender suas capacidades físicas e
intelectuais, o que permitirá, em princípio, propiciar o surgimento de
uma nova categoria de “pós-humanos”, artificialmente
“aperfeiçoados”, em relação às naturais limitações que naturalmente
demarcam a condição humana. (GODINHO; SILVA; CABRAL, 2020,
p. 17)

O movimento filosófico e tecnológico do transumanismo desafia e requer


uma análise afinada acerca dos problemas éticos e jurídicos que esse
movimento propicia a partir da relação humano e robô, cérebro e máquina,
perpassando pela seara do humanismo, bem como a dignidade humana, a
liberdade, a igualdade e a acessibilidade a esses projetos de melhoramento do
ser humano, tendo em vista a possibilidade de não haver acesso para uma
grande maioria das pessoas a essa evolução humana o que, por sua vez, pode
contribuir para uma maior desigualdade social.
Essa tecnologia aplicada ao desenvolvimento do corpo humano e não
somente desenvolvimento, mas sim, criação e fabricação de corpos, acendeu o
alerta de Jean Pierre Dupuy, e enuncia uma consequência do uso alargado da
tecnologia em seres humanos, afirmando que “pela primeira vez Deus tem um
rival”, eis que:
As tecnologias convergentes pretendem substituir a natureza e a vida
e se tornar os engenheiros da evolução. Evolução que, até agora,
consiste em fundamentalmente uma simples “bricolagem”. Ela pode
imobilizar-se em caminhos indesejáveis ou impasses. É por isso que
o homem pode ser tentado a tomar seu lugar e se tornar o designer
dos processos biológicos e naturais. O homem pode participar da
fabricação da vida. (DUPUY, 2017, p. 46)

Nesse viés de construção e fabricação da vida, tem-se como destaque a


importância e a atualidade sobre o tema do transumanismo que está crescendo
no cenário mundial em termos de pensamento contemporâneo. É notório que o
desenvolvimento estrondoso da técnica e da antropotécnica8 – na versão de
Peter Sloterdijk, estão presentes e avançam a passos largos e não há meios
para frear. A técnica está posta e precisa necessariamente ser discutida
academicamente e por toda sociedade.
O transumanismo é apenas um segmento das mutações que passam a
ocorrer na atualidade. O tema é assunto da obra intitulada A Morte de Morte de
Laurent Alexandre, médico cirurgião francês e pesquisador - que se encontra a
frente das pesquisas da empresa DNAVision – líder europeu em genética e
genoma no assunto, assim expressa:

O irresistível avanço das biotecnologias, porém, já estão ocorrendo.


Suas consequências sobre o homem e sobre a própria natureza da
vida humana não terão comparação com todas as mudanças
econômicas que se anunciam e sobre as quais temos praticamente
um excesso de informação. Esta revolução mereceria um encontro
mundial pelo menos tanto quanto o aquecimento climático, ou ainda
mais. (ALEXANDRE, 2018, p. IV)

É fato que os progressos genéticos, as nanotecnologias, as máquinas


auxiliando os homens, a explosão dos robôs e sua utilização na medicina vão
remodelar a humanidade nos próximos anos. Laurent Alexandre, enfatiza que
as imensas transformações que nos esperam não podem ser comparadas a
absolutamente nada que já tenha sido vivenciado na história da humanidade.
Para o pesquisador:

As mudanças futuras vão superar em extensão, em rapidez e em


impacto tudo o que a humanidade conheceu no passado. A futura, ou

8
No seu mais recente livro, Você tem que mudar sua vida! Peter Sloterdijk anuncia a virada
antropotécnica (SLOTERDIJK, 2009). Partindo da percepção que o próprio homem geraria o
homem, a antropotécnica é o conjunto de técnicas desenvolvidas para alterar, modificar e
otimizar o comportamento e o corpo humano.
melhor, as futuras revoluções reunirão em um único processo todas
as formas de mudança que as rupturas anteriores da História haviam
provocado separadamente. Isso será verdadeiro sobretudo no campo
da medicina: estamos às vésperas de uma profunda transformação
que fará com que o conjunto dos progressos médicos do século XX
seja considerado como microacontecimentos. (ALEXANDRE, 2018, p.
XI)

Veja-se, que resta evidenciado que há várias razões para levar o


transumanismo a sério, bem como sua relação com as tecnologias e seu
reflexo na sociedade como um todo, no que toca às desigualdades, em quais
pessoas têm e terão acesso a essa tecnologia avançada e aprimoramento do
corpo físico e intelectual. Primeiramente devido ao seu lastro histórico e
crescimento, bem como está diretamente ligado ao interesse da sociedade em
relação às suas promessas no tocante ao melhoramento da saúde e
desenvolvimento do corpo físico enquanto evolução e aprimoramento.
O transumanismo e seus diversos aspectos vieram à luz com um certo
aspecto apocalíptico, incompreensível e até não seriamente trabalhado dentro
da academia, pois havia uma compreensão ou pré-compreensão muito limitada
do assunto. No entanto, quando uma explosão de tecnologia se tornou
presente na vida de muitos, o assunto passou a ser mencionado e pesquisado
com seriedade. Erick Felinto e Lucia Santaella, ao se debruçar sobre as teorias
de Vilén Flusser9, em O Explorador de Abismos, mencionam que:

A maior parte das críticas acerbas ao pós-humanismo vinha se dando


na moldura de uma compreensão limitada do conceito. Em essência,
ela se resumia a entender que o pós-humanismo unicamente como
expressão de uma vontade de potência tecnológica, dedicada à
expansão da vida humana e à superação de seus limites por meio da
tecnologia. Em última instância tratar-se-ia de obter a imortalidade –
prometida pelas religiões no plano espiritual e agora adaptada a uma
“tecno-espiritualidade” profana atípica da existência cibercultural –
através do emprego fáustico da tecnociência. (SANTAELLA; FELINO,
2012, p. 9)

O termo transumanismo remonta a figuras como Julian Huxley – irmão


de Aldous Huxleu, primeiro diretor geral da Unesco e presidente da Sociedade
Eugenística inglesa e também autor de Admirável Mundo Novo - romance
9
Filósofo nascido em 1920, de descendência tcheca, mas naturalizado brasileiro, onde viveu
cerca de 30 anos. Foi um dos primeiros a perceber a importância das tecnologias de
informação na sociedade que emergia na segunda metade do século 20. Considerada como
uma das mais fecundas e ricas em abordagens filosóficas para pensar o papel da imagem e a
condição existencial humana na contemporaneidade.
publicado em 1932, que narra uma história que se passa na cidade de Londres
no ano 2540. O romance antecipa desenvolvimentos em tecnologia
reprodutiva, manipulação psicológica e condicionamento clássico, que se
combinam para mudar profundamente a sociedade. O romance é considerado
um grande clássico da literatura mundial.
O termo se expandiu entre os estudiosos e se tornou célebre com Nick
Bostrom, quando este fundou a entidade de pesquisa The World
Transhumanist Association (WTA) e a Humanity+. Nick Bostrom, juntamente
com David Pearce, é cofundador do Future of Humanity Institute da
Universidade de Oxford.
O debate acerca daquilo que carrega o termo transumanismo está em
expansão no cenário mundial. A discussão é fluida e encontra autores
consagrados, que diante da evidente importância do tema, se debruçaram para
escrever e disseminar suas opiniões. Luc Ferry, traz o tema do transumanismo
em seu recente livro A Revolução Transumanista, onde articula que:

A ideia global é que estamos vivendo uma terceira revolução


industrial, e o núcleo dessa terceira revolução industrial é o que
chamamos de NBIC. N de nanotecnologias, B de biotecnologias,
particularmente o sequenciamento do genoma humano e a
ferramenta de edição do DNA que se chama Crispr-Cas9. Depois o I,
de informática, os big data e a internet dos objetos. E o C é o
cognitivismo, isto é, a inteligência artificial (IA), o coração do coração
dessas quatro inovações. (FERRY, 2018, p. VIII)

Tautológico mencionar que a tecnologia está presente em tudo na


atualidade. O caminho a ser trilhado é de expansão tecnológica nas diversas
áreas, como referido por Ferry, e dentro dessa expansão, o segmento mais
impactante toca diretamente na pesquisa sobre o melhoramento humano – que
possui algumas denominações, mas que aqui, inicialmente será transcrito
como transumanismo. Ferry, evidencia que:

De fato, chegou o momento de tomarmos consciência de que uma


nova ideologia se desenvolveu nos Estados Unidos, com seus
profetas e sábios, suas eminências e seus clérigos, sob o nome de
“transumanismo”, uma corrente cada vez mais poderosa apoiada
pelos gigantes da Web, a exemplo do Google, e dotada de centros de
pesquisa com financiamentos quase ilimitados. Esse movimento já
suscitou milhares de publicações, colóquios e debates apaixonados
nas universidades, nos hospitais, nos centros de pesquisa, e em
círculos econômicos e políticos. (FERRY, 2018, p. VIII)
No Brasil, o assunto ganha destaque nas palavras de Jelson Oliveira e
Wendell E. S. Lopes, os quais destacam a importância do transumanismo:

No geral, o transumanismo reúne teóricos de várias áreas de


conhecimento, que poderiam ser considerados bioliberais, porque
compartilham uma crença comum: a de que a tecnologia deveria ser
usada para o pretenso melhoramento da condição humana. Seu
discurso otimista, realçam à tecnologia, recorre às fantasias e às
mitologias que remontam a tempos remotos, mas que, agora, saem
dos filmes de ficção científica para se tornarem uma promessa
emoldurada em discursos científicos, cujo êxito, em alguns pontos, já
pode ser evidenciado, e cujos investimentos financeiros de
portentosos montantes fazem acreditar que sua realização pode ser
uma possibilidade próxima. (OLIVEIRA; LOPES, 2020, p. 11-12)

A discussão que se iniciou ao entorno do transumanismo e da evolução


tecnológica que o precede, fez com que um grupo de cientistas, no ano de
2002, publicasse um relatório chamado Converging Technologies for Improving
Human Performance. Nanotechnology, Biotechnology, Information Technology
and Cognitive Science10. Este relatório contou com a presença e assinatura de
mais de 50 cientistas, trazendo recomendações para os governos e demais
instituições, com o objetivo de aumentar a atuação nas pesquisas e divulgação
de um futuro pós-humano, partindo de cinco áreas prioritárias, quais sejam: a
cognição e a comunicação humana, a saúde humana e as capacidades físicas,
a melhoria de grupos humanos e dos resultados sociais, a segurança nacional,
e a unificação da ciência e da educação.
Após a publicação deste relatório, houve uma resposta, publicada em
2004, pela União Europeia, intitulado Converging Technologies – shaping the
future of European Societies11, o qual firmou posição no sentido de que as
tecnologias avançadas deveriam se restringir somente para o uso terapêutico.
Mas a discussão acerca do uso das tecnologias prosseguiu e, em 2009, surgiu
um novo relatório nominado Human Enhancement12, onde, segundo Oliveira
(2020, p. 11), “passou a reconhecer o transumanismo como ator central no
desenho do futuro da humanidade, em continuidade com as ideias iluministas e
humanistas da modernidade”.

10
Disponível no site da Casa Branca: http://goo.gl/osbyog. Acesso em: 29nov. 2021.
11
Disponível em: http://goo.gl/UvLv5y. Acesso em: 29nov. 2021
12
Disponível em: http://goo.gl/1crTir. Acesso em: 29nov. 2021
A partir deste relatório, assumindo expressamente que as novas
tecnologias possuem um papel visionário e devem atuar sim, no sentido de
dirimir as divisas:

Entre terapia reparadora e intervenções que visam trazer melhorias


que se estendem para além de tal terapia. Como a maioria delas
derivam do domínio médico, eles podem aumentar as tendências
sociais de medicalização quando usadas cada vez mais para tratar de
questões patológicas. (2009, p. 6)

Não destoando do conceito de transumanismo trazido por Nick Bostrom


(2005, p. 25), e sua visão futurista na qual afirma que “chegará um dia em que
nos será ofertada possibilidade de aumentar nossas capacidades intelectuais,
físicas, emocionais e espirituais muito além daquilo que aparece como possível
nos nossos dias”.
Não há segmento que não esteja envolto de tecnologia, e dela não seja
dependente. A par disto, há um segmento que vai mais além da simples
aplicação e imediatez da tecnologia. Há a chamada Inteligência Artificial.
Máquinas criadas por algoritmos que desenvolvem inúmeros trabalhos, citamos
aqui, a Inteligência Artificial utilizada pelo Poder Judiciário – chamado VICTOR,
que apesar do nome humano, VICTOR é um sistema que usa inteligência
artificial para aumentar a eficiência na tramitação dos processos e a velocidade
da avaliação judicial dos processos que chegam ao Supremo Tribunal Federal.
No cenário entre passado, sob o olhar de Walter Benjamin e o
presente, com a expansão do transumanismo, gera um receio de futuro incerto,
se é que se pode dizer que algum futuro pode ser certo. O que se denota que,
com base nas ocorrências do século XX, é que as guerras em vários países
ocasionaram destruição e também desenvolvimento. Progressos e regressos
que se evidenciam e que nas palavras de Morin condicionam:

O desenvolvimento, por essa mesma razão como uma realidade


“crísica e crítica”, que tanto faz destruições quanto criações, tanto
regressões quanto progressões, e nos damos conta de que a ideia de
desenvolvimento, sob sua forma simplista e eufórica, economicista e
tecnológica, era um mito demente do pensamento tecnoburocrático
moderno: uma vez mais, o delírio abstrato se fazia passar por
racionalidade! (MORIN, 2010, p. 28)
Esta forma de progresso, está sujeita a uma enormidade de situações
degradantes, conflitos que inevitavelmente podem ao invés de gerar uma
evolução positiva, pode levar a uma degradação regressiva, uma forma de
desorganização social, em que o ser humano na busca da evolução da
espécie, acaba colocando em risco e até exterminando parte da mesma. Nas
palavras de Morin (2010, p. 29), “todo progresso corre o risco de se degradar e
comporta um duplo sentido: progressão/regressão”. Neste sentido ainda
conclui “o progresso é, portanto, uma das fisionomias, uma das faces incertas
do futuro”. Dentro desta ótica, podemos analisar o período atual, de inserção
tecnológica altamente avançada, mas não podemos deixar de nos preocupar
com uma emergência da humanidade diante de tanta dominação das
máquinas.
Embora diante das crises, temos a compreensão de que tudo pode
recomeçar. Mas o que necessariamente precisa recomeçar? – a humanidade.
Morin (2010, p. 37), preleciona que “a humanidade viveu sua morte potencial
antes mesmo de ter sido concebida”. Diante de uma ameaça evidente de
aniquilamento possuidor da virtude da gênese da humanidade e que transmuta
a ideia abstrata em realidade factível. Manuel Castells afirmou que:

O nosso mundo está em processo de transformação estrutural desde


há duas décadas. É um processo multidimensional, mas está
associado à emergência de um novo paradigma tecnológico, baseado
nas tecnologias de comunicação e informação, que começaram a
tomar forma nos anos 60 e que se difundiram de forma desigual por
todo o mundo. Nós sabemos que a tecnologia não determina a
sociedade: é a sociedade. A sociedade é que dá forma à tecnologia
de acordo com as necessidades, valores e interesses das pessoas
que utilizam as tecnologias. Além disso, as tecnologias de
comunicação e informação são particularmente sensíveis aos efeitos
dos usos sociais da própria tecnologia. (CASTELLS, 2008, p. 168)

Neste norte, com base nos autores de referência mundial, aqui citados,
denota-se a preocupação no que tange ao momento tecnológico e tudo o que
vier em decorrência de tamanho avanço em escala mundial.
O mundo contemporâneo maximizou o conhecimento técnico e
científico, as estratégias são pautadas para a consolidação do lucro, e
notadamente no desenvolvimento, aperfeiçoamento e evolução do ser humano,
em todos os segmentos, seja físico ou psíquico. Evolução baseada no desejo
de encontrar a perfeição ou chegar perto dela, de viver longos anos com
qualidade de vida, de superar os obstáculos da degeneração humana e poder
substituir aquilo que não mais serve para, aquilo que já não mais perfectibiliza
o ser humano enquanto jovem, produtivo e eficaz. E para isso, é preciso
progredir.
Yuval Noal Harari, tem se destacado mundialmente pelas obras Homo
Sapiens: Uma breve história da humanidade e Homo Deus: Uma breve história
do amanhã. Nessas obras, o autor, traça uma história do passado e do futuro,
respectivamente. Em Homo Deus, a narrativa para o futuro, traz elementos que
parecem ficção científica, no entanto, já estão presentes em alguns nichos da
sociedade que possuem valor aquisitivo elevado para tal. O autor, prenuncia,
com ressalva as conquistas, o futuro da humanidade, afirmando que:

No século XXI, o terceiro grande projeto da humanidade será adquirir


poderes divinos de criação e destruição e elevar o Homo sapiens à
condição de Homo deus. Esse terceiro projeto obviamente engloba os
dois primeiros e é alimentado por eles. Queremos ter a capacidade de
fazer a reengenharia de nosso corpo e mente acima de tudo para
escapar à velhice, à morte e à infelicidade, mas, uma vez dispondo
disso, o que mais poderíamos fazer com tal capacidade? Assim, bem
podemos pensar que a nova agenda humana na realidade consiste
em um só projeto (com muitos ramos): alcançar a divindade.
(HARARI, 2015, p. 55)

Trazer ao debate todas as circunstâncias que giram ao em torno do


que foi exposto é imprescindível para as novas diretrizes que estão se abrindo
na sociedade contemporânea. Pontuar as ideias que tangem o progresso e
também o regresso dentro do transumanismo requer um olhar atento de toda a
sociedade.

Conclusão
É evidente que nas últimas décadas, houve uma mudança de paradigma na
sociedade, um novo modelo de vida emerge a partir do desenvolvimento da
tecnologia, trazendo um ritmo diferente à sociedade. As relações humanas se
metamorfoseiam rapidamente, os corpos se transformam, são mais ágeis e mais
longevos e quiçá, talvez, mais felizes. Ao passo que inúmeras questões trazidas
pela tecnologia tornam a vida mais fácil e prazerosa e também impulsionam a
conjuntura econômica, não se pode olvidar de que a tecnologia extremamente
avançada também pode deixar rastros de destruição, é o paradoxo do progresso e
regresso que se evidencia.
Encontrar um ponto de equilíbrio entre as afirmações tecnológicas que se
revelam cada dia mais incipientes na sociedade como um todo, é um desafio
constante no agora e para o futuro. Desenvolver o corpo humano para tornar mais
longevo, mais ágil e mais feliz, com produtos e próteses, não parece um perigo em
si. No entanto, quando essa tecnologia permite criar seres humanos com
características a serem definidas por alguém, se está a evidenciar uma espécie de
eugenia, o que causa mais desigualdade social e inúmeras outras possibilidades a
serem analisadas.
Nessa perspectiva, não se pode olvidar das consequências nefastas
ocorridas no século passado, conforme alusão de Walter Benjamin. Paradoxos
existem tanto no passado, no presente e com consequências para a humanidade
futura. A tecnologia é um viés que deve ser visto assim, eis que cria e desenvolve
impérios, mas também causa guerras e destruição em massa. Une e desune
pessoas, comunidades e países. Progresso e regresso podem andar de mãos
dadas, assim como humanismo e transumanismo.

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