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O POSITIVISMO JURIDICO E OS VALORES ÉTICOS E POLÍTICOS

Suraia Cassia Nasralla Souza1


Joici Antônia
Ziegler2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise do impacto da Teoria
Pura do Direito de Kelsen sobre o campo da ciência do direito, através de um estudo
dos fundamentos para a existência de uma ciência pura do direito livre de qualquer
vínculo com os demais campos do conhecimento, para que seja possível alcançar
seu objetivo principal, que é a paz social.
Em relação a Escola da Exegese, o artigo também trará referência sobre a
importância do Código Napoleônico e sua influência no estudo nas Faculdades de
Direito, e sua aplicação automática da lei pelos juízes. Um código que recusava a
história e na sua axiomática racionalidade bastaria a si próprio. O direito
estabelecido pelo legislador não podia ser questionado pelo juiz, a única coisa que o
jurista necessitaria era conhecer a própria lei.

2 O POSITIVISMO JURÍDICO E OS VALORES ÉTICO-POLÍTICOS


2. 1 Contextualização Histórica

O discurso conservador do jus naturalismo da Idade Antiga, ao identificar o


direito com o justo com base na observação posterior da natureza física e social
(Aristóteles), endossou o sistema de produção da época: o escravismo, e isso em
nome da causa final caracterizadora da essência dos seres naturais (STRECK,
2014, p. 20-21).
Já na Idade Média a mesma teoria, referendou a estratificação social injusta
do sistema feudal (servidão e vassalagem), dando à hierarquia eclesiástica o poder
de interpretar – muitas vezes em seu próprio favor – a vontade e os desígnios de
Deus através de ameaças e castigos aos estigmatizados como infiéis e hereges, ou
mediante de bendições e graças asseguradas aos fiéis seguidores dos dogmas da
Igreja (função ideológica das sanções positivas, mesmo que no campo espiritual).
Na Idade Moderna a doutrina do jusnaturalismo primeiramente teve um
posicionamento transformador e aperfeiçoador, a partir da Escola do Direito Natural
racional dos grandes filósofos contratualistas dos séculos XVII e XVIII. Sua
1
Advogada. Mestra e Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em
Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Santo
Ângelo/RS. E-mail – suraianasrralla@hotmail.com
2
Advogada; Docente; Mestra e Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Strictu
Sensu em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI –
Santo Ângelo/RS. Licenciada em Filosofia pela UNINTER; Pós-Graduada em Filosofia na
Contemporaneidade pela URI; Cursando Licenciatura em Letras na UNINTER. E-mail –
joiciantonia@yahoo.com.br
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idealização teórica, buscou uma nova justificativa categoricamente humana, para o


sentido e significado do direito e do Estado: os direitos naturais do homem
(STRECK, 2014, p. 23).
O mérito de tal construção jusnaturalista foi muito provavelmente o de
principiar uma nova razão epistemológica na busca elucidativa das justificativas do
direito e do Estado, preconizando e estruturando um contraponto ao discurso
legitimador das instituições sociopolíticas vigentes à época (STRECK, 2014, p. 24-
25).
A perspectiva de um poder fundamentado num príncipe absoluto, cuja vontade
representava lei, e segundo a qual os cidadãos são apenas súditos e não partícipes
das decisões políticas, doou lugar ao pensamento e prospectiva democrática do
poder estabelecido na persistência popular, elaborada através de uma imparcial
amplitude jurídica: o Estado-de-direito (STRECK, 2014, p. 28).
Com base em tal fundamentação abstrato e generalista consumou-se a
Revolução Francesa: a classe em ascensão era a burguesia que florescia em
sentido econômico, porém, politicamente insatisfeita com os privilégios e regalias do
clero e nobreza, para tomar o controle da ação revolucionaria. Segundo expoentes
teóricos da revolução – Sieyès, entre outros –, a razão capta com facilidade a
injustiça da ordem social vigente no feudalismo: o Terceiro estado comandado pelo
seguimento da burguesia), que é tudo na ordem econômica por lhe caber a função
da produção dos bens e opulências sociais, portando apenas os encargos dos
impostos por sua vez, as classes dominantes (rei, clero e nobreza), que nada
produzem nem pagam impostos, tem o domínio e o comando do poder político que
se baseava em prerrogativas e vantagens, e não em direitos (STRECK, 2014, p.
30).
Esse é o segundo momento do então revolucionário discurso do direito natural
moderno, não mais abstrato e universalista, mas claramente definido e elaborado na
Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, em nome da qual se
desencadeou o processo revolucionário.
Foi nesse sentido que o jusnaturalimo moderno se tornou objeto de reprovação
à incerta estrutura social daquele período, transformando-se em arma de conflito
para o domínio do poder pela burguesia em seu ajuste de contas com o deteriorado
Estado feudal. Ressalta-se a relevância, na época, do potencial utópico-
revolucionário do discurso dos direitos humanos, com ênfase no direito de
resistência à opressão (STRECK, 2014, p. 30-31).
No entanto, ascendendo ao poder, a burguesia alterou o seu pensamento
utopista-anarquista: os direitos naturais e imprescritíveis do homem, ou seja, os
direitos humanos do antigo discurso pré-revolucionário, de caráter eminentemente
político, foram ardilosamente alterados pelo discurso dos direitos subjetivos, de
cunho mais jurídico, cuja justificativa foi afastada do estado de natureza para o
direito objetivo que é a Lei (STRECK, 2014, p. 31).
A fundante do Estado, deslocada do estado de natureza para a codificação
jurídico-estatal, teve no Código de Napoleão seu símbolo maior. A nova classe
politicamente dominante da burguesia, substitui o agora inoportuno discurso político-
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transformador dos direitos naturais do homem pelo discurso jurídico-positivista da


legalidade, do Estado-de-direito (NEVES, 2011, p. 80-81).
O surgimento do positivismo jurídico deveu-se, pois, ao fato da necessidade de
se manter o poder dentro dos moldes da nova economia burguesa. O que se quer
mostrar é a apropriação, pelas classes e grupos detentores do poder político, de um
discurso de valor ilimitado em seu próprio favor, retirando--lhe a autoridade e poder
ético-político por meio de uma conduta metodológica que explicitamente se exime de
fazer julgamentos de valor (NEVES, 2011, p. 80-81).

2. 2 Conceito De Positivismo Jurídico

O positivismo jurídico é a teoria que veio contrapor a ideologia do direito


natural, tendo por propósito o conhecimento do conjunto de normas formadas pelo
direito vigente, positivo. No intuito de separar o direito da moral e da política, pregam
seus seguidores que o jurista deve limitar sua análise ao direito estabelecido pelo
Estado ou pelos fatos sociais, abstendo-se de qualquer valoração ético-política,
isolando as normas da realidade real: o objetivo do estudo do direito é o sistema de
normas coercitivas fora de seu contexto material (CLÈVE, 1998, p. 80).
Os positivistas buscam a fundamentação do direito unicamente nas normas
positivas exigidas pelo poder político-estatal ou também pelos fatos sociais
coercitivos.
Positivismo jurídico não é sinônimo de direito positivo. Segundo Clèmerson
Merlin Clève, por trás do positivismo está o imaginário, ou seja, a ideologia: ao
abordar o direito como um conjunto de normas coercitivas do Estado sem, no
entanto, analisar criticamente seu conteúdo, desempenha a função ideológica de
manutenção da ordem vigente (1998, p. 83).
Se o positivismo é uma postura metodológica segundo a qual o objeto da
realidade jurídica vem exclusivamente identificado com o direito positivo, a
positivação o constitui um sistema de comunicação ou de transição no qual os
fenômenos jurídicos vão se modificando, tornando sempre novas formas de
expressão normativa das relações sociais reconhecidamente datadas. A positivação
é uma metodologia de padronização, normalmente escrita, próprio da modernidade,
segundo o qual o direito não é algo dado em definitivo – um ideal eterno e imutável
nos moldes do jusnaturalismo – mas uma constante construção histórica na qual o
direito é posto por decisão e não por natureza (CLÈVE, 1998, p. 85-86).
Já a positividade é o produto desse histórico de construção jurídica, também
chamado direito positivo. O que varia é o método de abordagem, pelo jurista, dessa
positividade jurídica (CLÈVE, 1998, p.87-88).
Assim, a matriz do positivismo jurídico surgiu reconhecidamente como
rejeição aos teóricos que defendiam um direito sublime e perfeito, superior e anterior
ao direito positivamente estabelecido. Para os positivistas o direito perfeito seria uma
questão de opções políticas ou morais, que não afetam o jurista porque este
somente explica e aplica o direito sem criticar a lei, à qual se submete
incondicionalmente (CLÈVE, 1998, p. 89).
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2.3 A Escola de Exegese

A Escola da Exegese surgiu no início do século XIX na França, em um


período de caos político e jurídico no país, gerando danos pecuniários a burguesia,
que era a classe mais beneficiada neste período.
Esta escola de pensamento jurídico encontrou expressão na doutrina e na
metodologia do legalismo da codificação pós-moderna. Com a ascensão de
Napoleão Bonaparte ao poder, a burguesia patrocinou a criação do Novo código
civil: O Código Napoleônico dispõe:

Este projeto nasceu da convicção de que possa existir um legislador


universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos e
para todos os lugares) e da exigência de realizar um direito simples e
unitário. A simplicidade e a unidade do direito são o leitmotiv, a ideia de
fundo, que guia os juristas, que nesse período se batem pela codificação
(BOBBIO, 1995, p. 65).

O Código Napoleônico foi de grande importância para aquela época, tendo


inclusive influenciado de outros códigos semelhantes em diversos países onde o
legalismo operou recriando novos padrões de lei em um período pós-revolucionário.

O legalismo pós-revolucionário via o direito tão-só nas leis politicamente


legitimadas num estado de assembleia representativa e estruturado
segundo um rígido princípio de separação de poderes, e o jusnaturalismo
dizia-as fundadas no direito natural-racional deduzido de axiomas
socialmente antropológicos, mas aquele legalismo, que tinha uma imediata
origem ideológica no contratualismo iluminista, não deixou de receber do
jusnaturalismo não só muito do conteúdo normativo prescrito pelas suas
leis, como ainda a ideia de que à normatividade jurídica correspondia
essencialmente o modus de uma racionalidade sistemática e mesmo de
racionalidade axiomaticamente sistemática (NEVES, 1985, p. 182).

Bonnecase foi um grande jurista daquela época, tendo dividido a escola da


Exegese em três fases: a primeira foi no período de sua instauração que foi de 1804
a 1830, a segunda que foi o período do apogeu de 1830 1880, e por fim o período
de seu declínio que foi de 1880 a 1900(BOBBIO, 1995, p. 85).
Os adeptos e defensores do Código Napoleônico afirmavam que o Códex
(código) era fruto da razão e por esse motivo deveria ser universal, rígido e
atemporal. Desse modo, os defensores da Escola da Exegese não admitiam que
houvesse lacunas na lei, o que definiam como a plenitude da lei, sempre levando em
conta a vontade do legislador. Logo, como se pode perceber, na Escola da Exegese
o juiz era a voz da lei, ou seja, era a “boca da lei” (BOBBIO, 1995, p. 86-87).
A Escola de Exegese constitui-se no modelo clássico de positivismo jurídico.
Surgiu com a ordem social em inícios do século XIX. Pelo menos dois fatos
históricos, de caráter ideológico, contribuíram para o surgimento da escola no
contexto da consolidação do Estado liberal-burguês. Primeiramente a burguesia
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primava em defender seus interesses e tentar contentar os insatisfeitos. Nesse


sentido era preciso calar os que ficaram, ao longo do processo revolucionário, à
margem das decisões políticas, ou seja, a imensa maioria dos que ajudaram a
derrubar as estruturas feudais e na relação capital/trabalho passaram a uma
subordinação real no processo e evolução do direito (BOBBIO, 1995, p. 67-68).
A solução foi a figura da lei, com base no modelo napoleônico de direito. Em
segundo lugar, na composição dos três poderes de Estado, os poderes executivo e
legislativo vinham hegemonizados pelos agentes da burguesia, e o poder judiciário
era ainda apossado em grande parte por juízes aristocratas. Tratava-se, pois, de
calar ideologicamente os tribunais através da mordaça da pretensa neutralidade dos
juízes no exercício de sua atividade jurisdicional (WARAT, 1985, p. 69).
Uma crítica consistente em relação ao tema aparece no livro Mitos e teorias
na interpretação da lei, de (WARAT, 1985, p. 64).
Nesse contexto justificador dos interesses dominantes devem ser
compreendidos as principais características da Escola de Exegese (WARAT, 1985,
p. 66):

1) A lei é a única fonte do direito;


2) O único direito valido é o direito estatal;
3) Exegese do texto legal, no entanto, ato interpretativo, é um ato de
conhecimento e não de vontade;
4) O juiz deve ser neutro e imparcial, eximindo-se de qualquer julgamento
de valor, aplicando cegamente a legislação estatal ao caso concreto.
Significa dizer: o juiz não cria direito, apenas aplica a lei;
5) na aplicação da lei ao fato concreto o juiz faz um raciocínio lógico
dedutivo em que a lei aparece como premissa maior, a conduta fática
sancionada como premissa menor e a sentença judicial como conclusão
implícita nas premissas e não como atividade criativa. O raciocínio judicial é
demonstrativo;
6) O estudo do direito deve reduzir-se a mera exegese dos códigos, pois a
lei estatal e o direito constituem uma mesma realidade;
7) A lei é a única fonte do direito, razão pela qual o interprete tem o dever de
ser fiel ao texto legal. Não pode tomar em conta os usos e costumes, que
constituíam a fonte principal do direito no período feudal.

Desse modo, a Escola da exegese com seu pensamento jurídico dominou a


cultura francesa por quase um século, mas teve seu declínio entre 1880 a 1900,
onde o legalismo afrontava-se com as exigências de uma sociedade em evolução,
quer político jurídica de um Estado novo, não sendo mais tolerado responder por
problemas normativos-jurídicos. Os códigos tornaram-se obsoletos e historicamente
ultrapassados (WARAT, 1985, p. 80).
Um segundo modelo de positivismo jurídico, embutido na corrente cultural do
historicismo jurídico, vem representado pela Escola Histórica com berço na
Alemanha. Surgiu como forte crítica à Escola de Exegese e seu fetiche da lei está
presente na apologia das codificações. Já na Escola Histórica, em especial Savigny,
as leis codificadas imobilizam e engessam a realidade jurídica, devendo, pois, ser
relegadas a segundo plano, uma vez que o “direito deve ser buscado no espírito do
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povo” Volksgeist – ou consciência jurídica popular, considerada como única fonte


real do direito (WARAT, 1985, p. 80-81).
As leis têm sua base em costumes populares precedentes, sendo que o
espírito de cada sociedade é gerador de efeitos tais como a moral, o direito,
expressividade, arte e outros.
A Escola Histórica, surgida nas primeiras décadas do século XIX, destaca a
importância do fundamento histórico nos conhecimentos jurídicos, tendo, como
fundadores Gustavo Hugo, G. F. Puchta e F. C. de Savigny. Sua principal
característica reside em considerar o direito como consequência involuntária do
espírito popular, determinado na modificação da cultura de um povo. Busca
combater a arbitrariedade ao colocar o fundamento do direito na convicção comum
do povo, no mesmo modo em que se rebela contra o voluntarismo jurídico, negando
que a norma jurídica seja fruto da vontade de Deus ou da vontade do legislador,
como proclamavam os exegetistas (LA TORRE, 1978, p. 159).
O positivismo dessa escola está no fato de que o objeto de estudo do jurista
seria o produto da consciência comum, sobrevindo de uma geração espontânea.
Essa nova expressão jurídica, refere-se preliminarmente de uma reação teórica em
discordância com o jusnaturalismo.
Dentro da especifica matriz positivista iniciou-se novas condutas
metodológicas a partir de novos contextos sociais. Com a Escola de Exegese
passou-se a reconhecer o direito como lei, cabendo aos juízes aplicar
automaticamente os textos codificados, sempre tendo como última referência a
“vontade do legislador” para os casos obscuros, omissos ou indefinidos (LA TORRE,
1978, p. 159 -160).
Desse modo, à medida que se consolidavam os interesses políticos dos
grupos influentes, a atitude radical derivada da aplicação dos postulados da Escola
de Exegese ensejou pouca mobilidade dos operadores jurídicos ao ponto de impedir
qualquer mudança do direito que consentia participar da mudança e transformação
dos tempos e das novas necessidades políticas e sociais. Foi exatamente a Escola
Histórica alemã que formulou um novo discurso jurídico, sem renunciar a
metodologia positivista, porém que consiga o objetivo de emancipar o juiz do
legislador (NEVES, 2011, p. 189-190).
Portanto, os adeptos do historicismo jurídico, ao fazerem recair sua ênfase
sobre a lógica e a dogmática jurídicas, não permitindo o exame das razões político-
ideológicas presentes em sua historicidade, e o que exclui a expectativa de uma
abordagem valorativa (NEVES, 2011, p. 191).
A questão ideológica se fixa mais precisamente no seguinte: do mesmo modo
que o mito da codificação posto pela Escola de Exegese dispõe críticos que
consigam descobrir o sentido autêntico e uníssono das leis ou da vontade do
legislador, também a crença do espírito do povo proposto pela Escola Histórica
exige seus intérpretes.
Para a Escola da Exegese, a lei é fonte exclusiva do direito, e na Escola
Histórica, a doutrina é a fonte primária do jurídico (NEVES, 2011, p. 189-190).
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O historicismo de um discurso jurídico novo favoreceu os líderes do nazismo,


que se apresentaram como defensores do espírito do povo alemão. É claro que nem
tudo pode ser visto como ideologia. A Escola Histórica trouxe boas contribuições em
termos de recursos interpretativos e mesmo de valorização histórica dos intuitos
jurídicos, ao mesmo tempo em que problematizou os exegetistas e sua
canonização dos códigos legais (NEVES, 2011, p. 190).
No caso da escola de Exegese, vale perguntar: como falar em cidadania
enquanto processo de construção do espaço público de sobrevivência dos cidadãos
quando a discussão ético-política da justiça dos conteúdos normativos vem
confinada às sessões do Legislativo, uma vez que os juristas intérpretes das leis e
aos juízes aplicadores da legalidade é vedada qualquer manifestação no sentido
prescritivo? (NEVES, 2011, p. 190).
O processo de ideologização da Escola de Exegese pode ser visto de acordo
com a subsequente conexão lógico-político: assegurada a burguesia no poder, com
a ocupação dos aparelhos jurídico-políticos do Executivo e do Legislativo francês, o
potencial emancipatório do discurso da cidadania e dos demais direitos tais como os
direitos humanos, foi substituído pelo processo de codificação que converteu as
necessidades e demandas sociais em regras positivas, interpretadas na forma de
direitos subjetivos estagnados na Constituição e no Código Civil de Napoleão
(NEVES, 2011, p. 190-191).
O Direito compreendeu-se não apenas como um estatuto dogmático-formal
de uma racionalidade axiomática, mas como uma intenção prática de uma
racionalidade também prática (prático-normativa) em que concorriam coordenadas
axiológicas, políticas, sociológicas, etc. E era este direito, não outro, que os juristas
haviam de compreender e assumir e as faculdades de Direito eram chamadas a
investigar e a ensinar (NEVES, 2011, p. 191).

2.4 A Escola Sociológica do Direito

Para se compreender as doutrinas sociológicas do direito, é necessário


referenciar inicialmente Augusto Comte, fundador da nova ciência: a sociologia.
Comte rebateu o racionalismo iluminista, uma ciência com alicerce nas leis naturais
que governam a sociedade, paralisando o discurso do contexto político da sociedade
pelo estado legitimamente considerado (CLÈVE, 1998, p. 34-35).
O antecessor das doutrinas sociológicas do direito foi o jurista alemão Rudolf
Ihering. Insurgindo-se contra a doutrina do positivismo dogmático, na qual a função
fundamental da ciência jurídica era de implementar um sistema de conceitos a
partir do qual seriam deduzidas, através de processos dedutivos lógicos-formais,
sendo os recursos para os casos concretos. Ihering rebateu a jurisprudencia de
privilégios e benefícios como ferramenta se aproximar da veracidade social
(CLÈVE, 1998, p. 34-35).
A doutrina utilitarista de Ihering, que o leva a definir o direito como “um
interesse juridicamente protegido”, sofreu forte influência de Jeremias Bentham,
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cuja teoria estava voltada para a experiência, tendo como critério o útil acima do
justo (CLÈVE, 1998, p. 37).
Essa corrente metodológica retira do direito tudo aquilo de sentido
humanista, não o considerando mais como criação do homem, mas somente como
resultado de forças sociais, identificando-o com a sociedade, abordada sob um
determinado ângulo. O direito é asim visto como um fato social, de carater coativo,
e deve explicar-se por outros fatos sociais(NEVES, 2011, p. 70-75).
Nota-se nesse sociologismo jurídico que o direito vem tratado como puro
fenômeno social objetivo, sem nenhuma consideração humanista que inclua
qualquer referência subjetiva ao homem enquanto agente social. Essa doutrina
objetivista limita o Estado pelo direito, considerando a solidariedade como a grande
lei da vida social, à qual se sujeitam as normas econômicas, morais e jurídicas,
sendo que “o direito é produzido pela solidadriedade social”. E o Estado enquanto
organização da força coercitiva tem sentido na medida em que está a serviço do
direito e este por sua vez, tem por função garantir a solidariedade social nos moldes
organicistas. A própria legitimidade do Estado vem condicionada ao direito (NEVES,
2011, p. 80).
Surgido no fim do século XIX, o sociologismo jurídico constitui-sem discurso
apropriado para atenuar os conflitos de classe decorrentes da relação
capital/trabalho, que gradativamente foram aumentando e abalando a paz burguesa
presente no Estado liberal do século XIX. Para fazer frente a progressiva
organização e reinvidicações da classe operária bem como neutralizar a crescente
tomada de consciência a respeito da profunda divisão que afetava as relações
sociais da época, “a ideologia dominante cria uma nova ‘teoria’ capaz de dissimular
esta situação e dar novos argumentos à manutenção do modo de produção
capitalista”(NEVES, 2011, p. 90-91).
O decorrer do século XIX teve como marca da sociedade capitalista uma
crescente agudização dos conflitos de classe no sentido de que a hegemonia
sociopolítica do capital foi sendo paulatinamente abalada pela tomada de
consciência do proletariado e sua organização de classe em prol da derrubada do
sistema que o explorava. Na formulação teórico-política tanto dos cocialistas como
dos comunistas preconizava uma nova forma de assistencia e caridade, não de um
todo abstrato e harmônico de cidadãos, mas uma solidariedade específica da classe
trabalhadora organizada contra a classe burguessa dos representadores do capital.
Por conseguinte, uma solidariedade causadora de discondancias e conflitos, com
fundamento na luta de classes(CLÈVE, 1998, p. 39-41).

3 O POSITIVISMO NORMATIVISTA DE KELSEN

A teoria pura do Direito de Hans Kelsen (2003, p. 8), completada pela teoria
geral do direito, ou seja, uma teoria do direito positivo em geral, dedicada
exclusivamente a descrever o que é e como é o direito. Adota como princípio
metodológico fundamental a pureza: uma teoria jurídica “purificada de toda a
ideologia política e de todos os elementos de ciência natural”, uma ciência, portanto,
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liberta de todos os itens estranhos tais como a sociologia, a psicologia, a ética e


também as teorias políticas, como o que busca apreender “juridicamente” seu objeto
(2003, p.8-9).
Nessa perspectiva, a excluir terminantemente uma análise interdisciplinar ou
transdisciplinar do direito por parte do jurista, determina alguns afastamentos
básicos. Diferencia primeiramente as ciências da natureza, nas quais inclui parte das
ciências sociais (psicologia, sociologia, história, etnologia), marcadas pelo princípio
da causalidade, das ciências sociais normativas (ética e ciência jurídica),
comandadas pelo princípio da imputação, do que infere dois mundos radicalmente
diversos e irredutíveis entre si: o mundo do ser no qual integra os atos de vontade
criadores de direito tal como a eficácia ou conduta efetiva correspondente à norma,
e o mundo do dever-ser a que pertence a “validade ou existência especifica e ideal
da norma”. E toma esse dualismo irresolúvel entre ser e dever-ser como um “dado
imediato da nossa consciência” (KELSEN, 2003, p. 8-9), portanto postulado
inquestionável, o que não deixa de ocultar um relevante ponto de questionamentos
de sua teoria.
Uma segunda diferenciação básica, já interna à anterior (ser/dever-ser),
intenta separar moral e direito, duas ordens normativas que regulam a conduta
humana em sociedade, distinguindo-se pelo modo – não pelo conteúdo – como as
ações humanas são prescritivamente reguladas pelas sanções:
aprovação/desaprovação na moral e pena/castigo, com base na coação física, no
direito (princípio retribuitivo). Assim, ao considerar a justiça como exigência da
moral, Kelsen coloca em campos separados a questão da justiça (moral) e a do
direito (KELSEN, 2003, p. 8-10).

Se a ordem moral não prescreve a obediência à ordem jurídica em todas as


circunstancias e, portanto, existe a possibilidade jurídica de uma contradição
entre Moral e a ordem jurídica, então a exigência de separar o Direito da
Moral e a ciência jurídica da Ética significa que a validade das normas
jurídicas positivas não depende do fato de corresponderem à ordem moral,
que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito positivo, uma
norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a
ordem moral (KELSEN, 2003, p. 76).

Note-se que essa “realidade jurídica” a ser analisada pela ciência do direito é
uma “realidade” ideal, pois Kelsen estabelece como objeto de sua teoria geral a
norma que, como dever-ser, é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta de
outrem. O estudo da norma, por sua vez restringe-se ao estudo de sua validade,
conhecida esta tal como a existência exclusiva da norma, porém, fora do mundo do
ser (KELSEN, 2003, p. 9-10).
“Dever-ser” é o sentido subjetivo de todo ato de vontade através do qual um
indivíduo, intencionalmente, visa à conduta de outrem. Entretanto, quando este
“dever-ser” objetiva a satisfação de uma norma jurídica será o “dever-ser” uma
“norma válida”, pois, neste caso, está amparado pelo ordenamento positivo-jurídico
que lhe confere competência para tal (KELSEN, 2003, p. 9).
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Chegamos, assim, à decisiva distinção metodológica na teoria Kelseniana: a


separação entre direito, tão evidenciada pelo autor. Refere-se da diferenciação entre
Sollen ou normas de dever-ser (mandamentos, prescrições) e Sollsätze ou
proposições normativas (enunciados ou juízos hipotéticos sobre normas). A
presunção jurídica como atribuição (função) de conhecimento descreve, ensina e
declara uma norma existe ou é válida, quer dizer, se a norma é efetivamente
estabelecida pela autoridade do direito como sentido (objetivo) de seu ato de
vontade (subjetivo). Nesse interim, é ela verdadeira ou falsa. Já a norma prescreve
um dever-ser produzido pela autoridade jurídica, sendo que a prescrição será válida
ou inválida e não verdadeira ou falsa. Pois, trata-se de funções psíquicas diferentes
(KELSEN, 2003, p. 10-11).
Kelsen, ao separar o sentido do ato de vontade criador do direito do próprio
ato de produção de normas, afasta da ciência jurídica a proposição ou enunciado
que descreve a produção cientifica, ou seja, que descreve o ato de vontade que
estabelece a norma atribuindo tal proposição do mundo ser à ciência sociológica ou
política (2003, p. 11-12).
Kelsen percebe o direito como um sistema, ordenamento, ordem normativa.
Por isso define o direito enquanto objeto do conhecimento jurídico como “ordem
normativa da conduta humana”, “sistema de normas que regulam o comportamento
humano”, “ordem de conduta humana”, cuja unidade e fundamento de validade
reside na norma fundamental, ou seja, a norma inferior é produzida conforme
prescreve a norma superior (KELSEN, 2003, p. 12-13).
Kelsen combate a doutrina do direito natural no intuito “de manter
analiticamente separados a moral e o direito”. Compreende a norma enquanto
dever-ser como um valor arbitrariamente estabelecido pela autoridade competente,
cuja “bondade” reside na sua validade (valor em sentido objetivo). Formular um
julgamento de relevante sobre uma norma não consiste em comparar a norma a um
valor absoluto externo (Deus, natureza, razão) tomado como critério do “bom” ou do
“justo”, mas consiste em avaliar a correspondência entre a conduta efetiva de
alguém e a norma objetivamente valida posta como um valor (2003, p.17-18).
Kelsen afirma que o dever jurídico não é imediatamente a conduta devida:
“devido é apenas o ato de coerção que funciona como sanção” (2003, p.17-18).
Nessa lógica radicaliza-se o positivismo Kelseniano: a ordem jurídica ratifica e
aprova a conduta condicionante, não o sujeito enquanto tal. O objeto da norma e o
seu conteúdo, não é o ser humano como tal, na totalidade de sua existência, mas a
atuação e conduta humana, as ações e omissões do sujeito sobre quem recai a
prescrição. Desse modo, os destinatários imediatos das normas jurídicas não são os
indivíduos cuja conduta é a exigência dos atos de coerção estabelecidos, mas sim o
tribunal ou o juiz a quem se dirigem as normas gerais hipotéticas, bem como órgão
de execução a quem se dirige a norma individual fixada pelo juiz.
Ao analisar de forma completamente diferente a questão do direito subjetivo,
Kelsen formulou sua crítica à ciência jurídica tradicional. O fato de sua estruturação
teórica abandonar do conhecimento do direito quaisquer direitos inerentes às
pessoas, pela simples razão de não ser o sentido de um autorizado ato de vontade
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humano, o faz definir o conceito de direito subjetivo de acordo com o prisma do


positivismo jurídico. Dedica-se a interver a atual relação direito/dever para
dever/direito (KELSEN, 2003, p. 20-21).
Essa concepção tradicional formalizada pela doutrina do direito natural parte
da dedução de direitos naturais inerentes ao homem e pré-existentes a qualquer
ordem jurídica positiva, com sintomática ênfase dada ao direito subjetivo da
propriedade individual. Desse modo cabe, à ordem jurídica positiva o mister de
garantir os direitos naturais pela imposição correspondentes deveres. Por outro lado,
o direito (subjetivo) torna-se um objeto de conhecimento jurídico diferente a mais
relevante que o dever jurídico (KELSEN, 2003, p. 22).
A teoria tradicional identifica sujeito jurídico com pessoa, entendida esta como
o homem enquanto sujeito “portador” de direitos e deveres jurídicos. Esse portador
pode ser um indivíduo vislumbrado como pessoa física ou natural, ou uma entidade
(corporação), vista como pessoa jurídica ou artificial. Já Kelsen vai mostrar que
“pessoa física” é também uma construção artificial da ciência jurídica, devendo,
portanto, ser também tomada como pessoa jurídica. (2003, p. 183-184)
Kelsen nega um direito subjetivo como entidade transcendente à objetividade
jurídica. Fiel ao estudo e ao pensamento do direito enquanto norma (dever-ser),
compreende o direito subjetivo como o próprio dever do outro, sendo que o dever é
a própria norma ou o ser-prescrito da conduta sancionada. “Se se designa a relação
do indivíduo, em face do qual uma determinada conduta é devida, com o indivíduo
obrigado a essa conduta como direito, este é apenas um reflexo daquele dever”
(2003, p. 186). Nesse sentido apenas o obrigado, aquele sobre quem recai o ser-
devido da conduta, é “sujeito” nessa relação, pois apenas ele pode violar ou cumprir
o dever.
Seguindo a mesma lógica, a pessoa física, identificada pela teoria tradicional
com o sujeito jurídico, não é para Kelsen o homem enquanto “portador” de direitos e
deveres, mas uma estruturação sintética da ciência jurídica, portanto pessoa
jurídica: a ordem jurídica empresta ao indivíduo a personalidade jurídica (qualidade
de ser pessoa) no sentido de fazer a ação humana objeto de deveres e direitos.
Portanto, a pessoa física não é um indivíduo, uma realidade natural, mas a “unidade
personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo
indivíduo” (2003, p.183-185).
Com isso, ao preconizar uma ciência jurídica pura em que o conhecimento é
dirigido exclusivamente às normas jurídicas, elabora duas distinções essenciais a
assegurar sua pureza teórica separando por um lado a norma – sentido de um ato
de vontade e prescrição de uma determinada conduta – do real contexto econômico-
político-social que a gerou; por outro, separa a conduta sobre a qual incide a norma
do contexto da personalidade individual a que está vinculada a conduta. (KELSEN,
2003, p. 183-185)
Com essa formulação purista Kelsen atribui a teoria tradicional sobre o direito
subjetivo e o sujeito de direito (pessoa) como ideológica no sentido de uma teoria
justificadora da propriedade privada e o aproveitamento que daí decorre. Kelsen
reconhece ainda um terceiro sentido para a expressão “direito subjetivo” sob a forma
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de direitos políticos tomados como “a capacidade ou o poder de influenciar na


composição da vontade do Estado, o que quer dizer: de participar – direta ou
indiretamente – na produção da ordem jurídica – em que a vontade do Estado se
exprime”. Entre tais direitos políticos estão incluídos os chamados direitos e
liberdades fundamentais constitucionalmente previstos. Mas para o autor esses
direitos e liberdades dizem que as leis que os contradizem são capazes de anulação
como inconstitucionais num processo especial previsto para tal fim, o que representa
mera dificultação da limitação legal desses “direitos” (KELSEN, 2003, p. 185-186).
Kelsen não teve pretensão alguma em esconder que esse sistema
autorregulado é essencialmente anti-humanista, fruto de seu positivismo extremado:
a pessoa se resume a uma personificação, sendo que o caráter jurídico outorgado
ao indivíduo concreto é apenas idealização artificial da ciência do direito. Ao
descartar da ciência jurídica a mística humanista oriunda dos séculos XVI e XVII,
repelindo a bipartição direitos subjetivos/direito objetivo, o modelo Kelseniano
descarta a possibilidade de uma análise interdisciplinar do direito, na qual possa ser
incluída pelo jurista a dimensão ético-política dos direitos humanos e da cidadania. É
precisamente essa harmonia e conexão positivista que irrita e desconcerta a
doutrina legitimadora do sistema capitalista de cunho liberal (2003, p. 185-188).
A análise de Kelsen sobre direitos subjetivos, sujeito de direito e pessoa,
previamente compilada, põe em xeque a fachada humanista do discurso liberal-
burguês, embora através de caminhos opostos aos trilhados pelos autores
marxistas. A pessoa na sua significação jurídica permite-nos melhor entender a
verdadeira ação e funcionamento do capital, a resolver-se em mercadoria e dinheiro,
sobre o qual incidem as análises econômicas de Marx (KELSEN, 2003, p.188).
O positivismo formal de Kelsen, apesar de exposto como técnicas de
purificação da ciência jurídica, prestou-se para justificar a subordinação real do
trabalho ao capital salvando as aparências de uma igualdade formal perante o
ordenamento jurídico. Qual forma necessária para transformar a forca-de-trabalho
em um produto notável sem “desumanizar” a pessoa física ou natural através da
pessoa jurídica ou sujeito de direito? (2003, p.188).

A teoria tradicional identifica o conceito de sujeito jurídico com o de pessoa.


Eis a sua definição: pessoa é o homem enquanto sujeito de direitos e
deveres. Dado que, porém, não só o homem, mas também outras
entidades, tais como certas comunidades como as associações, as
sociedades por ações, os municípios, os Estados, são apresentados como
pessoas, define-se o conceito de pessoa como “portador” de direitos e
deveres jurídicos, podendo funcionar como portador de tais direitos e
deveres não só o indivíduo, mas também estas outras entidades. O conceito
de “portador” de direitos e deveres jurídicos desempenha na teoria
tradicional da pessoa jurídica um papel decisivo (KELSEN, p. 191).

É a pessoa física no sentido Kelseniano que permite a


produção/circulação/troca de mercadorias através da figura jurídica do contrato,
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efetuado entre pessoas “livres e iguais”, sem que seja necessário entrar no campo
do humano que se processam as frustrações, a fome, o desemprego ou qualquer
outro efeito das desigualdades do sistema (LUHMANN, 2010, p. 20).
Esse positivismo está na sociologia de Luhmann, metodologicamente
embasada na teoria de sistemas. Para Luhmann a sociedade é vista como um
sistema social, que tem no direito uma de suas estruturas fundamentais de redução
da complexidade (2010, p. 20-21).
Aliás, Luhmann percebeu na última fase do direito natural – como direito
racional – uma preparação da interpretação sociológica do direito através da
categoria do contrato, que substitui o homem concreto pela normatividade abstrata:
“O homem é abstraído como sujeito, e o contrato torna-se a categoria através da
qual a dimensão social da vida humana pode ser pensada como disponível e como
contingente em qualquer de suas configurações” (2010, p. 21), com o que qualquer
direito torna-se possível.
A conclusão feita a partir do traçado teórico de Kelsen encaminha-se no
sentido de que cabe ao jurista descrever e conhecer cientificamente os diversos
ramos do direito positivo como, por exemplo, o Direito Constitucional. Assim sendo,
e acompanhando a ordem purista Kelseniana, compete ao cientista do direito
descrever com isenção de valores o teor das normas constitucionais. Seguindo a
doutrina Kelseniana de que todas as normas, seja de sistematização seja de
conduta, produzidas pelo órgão competente e respaldadas pela norma fundamental
são válidas, não há preceito constitucional que não seja norma. Como a função do
jurista está em descrever as normas dadas e não em produzi-las (o jurista não cria
direito...), vai o constitucionalista conhecer objetivamente as normas constitucionais
(LUHMANN, 2010, p. 21-23)
Desta forma, começam a se delinear mais fortemente as dificuldades do
método positivista. Logo, o objeto de estudos do jurista se restringe, assim, às
normas visualizadas como a essência de um ato de vontade humano. As
prescrições constitucionais são todas elas normas positivas, de cunho estatal,
inclusive os direitos e garantias fundamentais, além dos princípios gerais e demais a
conservarem o texto constitucional. Em sendo normas positivas, deve o jurista
poder interpretá-las cognitiva e descritivamente sob a forma de proposições jurídicas
(LUHMANN, 2010, p. 23)
Utilizemos alguns dessas prerrogativas incluídas no texto da Carta Magna
Brasileira, o artigo 5º, parágrafo 1º, inciso LXXVIII, diz que “as normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”. Ou seja, defende a
Constituição princípios e objetivos fundamentais para o país tais como “a dignidade
da pessoa humana”, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, reger-se pelo
princípio da “prevalência dos direitos humanos” nas relações internacionais
(BRASIL, 1988).
Note-se que ainda que, por serem normas constitucionais, estão no ápice da
hierarquia piramidal do ordenamento jurídico positivo e, portanto, fundamento de
validade das normas inferiores conformes com a criação jurídica do autor. Por que
não considerar tais direitos de cidadania como reflexos de um dever imposto a
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todos. O modo Kelseniano de considera-los apenas como proibições de lesar,


violáveis por legislação inconstitucional contra a qual cabe o direito em sentido
técnico de imputação de inconstitucionalidade, não cabendo dessa maneira a ação
direta judicial contra a conduta lesiva como tal, esconde uma postura ideológica, à
qual é vedado o acesso do jurista por parte do positivismo jurídico (LUHMANN,
2010, p. 24-25)
Ora, tal modelo científico-natural não serve para a ciência jurídica enquanto
ciência histórica, as ciências sociais necessitam, para além de uma pura explicação
exterior, um entendimento do sentido conhecido nos fatos sociais, posto que o
sujeito e o objeto do conhecimento se identificam parcialmente, pois ambos estão
inseridos no universo cultural e histórico, do que resulta a indissociabilidade alusiva
dos julgamentos de fato e dos julgamentos de valor.

3 CONCLUSÃO

Dentro dessa ótica socialmente condicionada pelo ponto de vista dos


excluídos e desprovidos das condições de igualdade, dignidade e justiça,
embasados numa análise cientifica da economia política (já empreendida por Marx),
é possível cobrar para os dispositivos constitucionais advertem para uma proposta
de mais autonomia da cidadania e o caráter / perfil de um efetivo dever-se, um ser-
prescrito com força normativa estatal, em favor do qual deve ser reconstruída a
função do Estado. Certamente é esse o melhor sentido que se pode atribuir a um
movimento de alternatividade jurídica, pois sua marca distintiva é a luta pela
universalidade da cidadania, mas sem abandonar a particularidade peculiar dos
operadores do direito.
O Direito é um fenômeno independente, cujo estudo é o objeto da ciência
jurídica como atividade racional diferenciada da ética e das ciências sociais. A
autossuficiência da ciência jurídica requer que ela se desprenda das influências
ideológicas que, de forma mais ou menos consciente, têm perturbado o estudo do
Direito
Sendo assim, conforme Castanheira Neves pontua: “Não é a história que faz
o homem, mas o homem que faz a história. A história não é objeto, é opção, não é
estática, é movimento”.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal, 1988, atualizada até a EC nº 91/2016. Brasília:
Senado Federal, 2018.
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BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do Direito. São


Paulo: Ícone, 1995.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Estudos de Filosofia de Direito. São Paulo: RT, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LA TORRE, Angel. Introdução ao Direito. Coimbra: Almedina, 1978.

LUHMANN, Niklas. Introdução a Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arants
Nasser. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

NEVES, A. Castanheira. DIGESTA. Escritos acerca do Direito, do pensamento


jurídico, da sua metodologia e outros. Vol. 2. Coimbra: Coimbra, 1985.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição Hermenêutica e teorias Discursivas. 5ª ed.


Revista, modificada e ampliada, 2014.

WARAT, Luiz Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do
Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

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