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Quando da terceira edição de seu Isenções Tributárias, nela rebatizada Teoria Geral da
Isenção Tributária, o Professor José Souto Maior Borges inaugura um novo método interpretativo: a
Hermenêutica Histórica. Dizemos ser ali a inauguração porque desconhecemos texto seu, anterior a
esse, que tratasse expressamente do tema. E parece ser mesmo essa a primeira obra na qual se
manifesta a Hermenêutica Histórica, pois, no prefácio àquela terceira edição, assim se manifesta o
autor: "Introduz-se inovação relevante, a hermenêutica histórica, ao mesmo tempo ruptura e
continuidade da tradição exegética nos moldes até agora concebidos. Não se trata do método
histórico-evolutivo - sequer uma vertente ou derivação, sua. Basta a apresentação desse novo
método hermenêutico para legitimar esta 3a. edição" 1 . O autor retoma, posteriormente, a
Hermenêutica Histórica em seu Curso de Direito Comunitário, aplicando-a a vários temas específicos.
Há, contudo, segundo cremos, uma ambigüidade na expressão "Hermenêutica Histórica",
como encontrada na obra do autor, e que nela não aparece devidamente caracterizada. É justamente
o estudo dessas duas obras referidas que deixa possível perceber a ambigüidade. Procuraremos
demonstrá-Ia e definir seus dois significados denotativos possíveis, eliminando a extensão ambígua
do conceito.
Sabemos que há, pelo menos, dois níveis de linguagem bem distintos no discurso jurídico. A
linguagem normativa e a linguagem que explica as normas. A primeira é linguagem prescritiva,
povoada por proposições válidas ou inválidas (linguagem do direito positivo, normas jurídicas). A
segunda é linguagem descritiva que se volta para o estudo da primeira, povoada por proposições
verdadeiras ou falsas (linguagem da Ciência do Direito, descrição das normas). Há, percebemos,
duas Hermenêuticas Históricas: uma trata das condicionantes históricas da criação de uma
determinada teoria explicativa (plano da Ciência do Direito, plano da metalinguagem descritiva e
explicativa) - é a descrita preponderantemente na Teoria Geral da Isenção Tributária; outra trata das
condicionantes históricas do surgimento de determinada normatividade empírica (plano do direito
positivo, da linguagem prescritiva) - é a que se encontra preponderantemente no Curso de Direito
Comunitário.
Ocupar-se da obra de um autor é prestar-lhe homenagem. Poucos se debruçariam com
seriedade e esforço intelectual sobre a obra alheia se não a levassem na devida conta de
consideração. E nossa admiração pelo trabalho do mestre pernambucano da Faculdade de Direito do
Recife já foi devidamente tornada pública quando lhe dedicamos nosso livro Tributação Sobre o
Comércio Exterior. Iniciou-se, contudo, tardiamente: apenas quando, em 2001, fomos gentilmente
presenteados pelo Professor José Roberto Vieira com uma cópia do texto Apologia do Erro. Por pura
sorte nosso contato seguiu, até certo ponto, uma cronologia correta: o primeiro livro de José Souto
Maior Borges que estudamos foi o Isenções Tributárias, seguido pelo Lançamento Tributário, pelo
Obrigação Tributária, pelo Ciência Feliz e finalmente pelo O Contraditório no Processo Judicial.
Apenas depois de todos esses o anterior Lei Complementar Tributária.
Aqui lhe prestamos nova homenagem, ao dedicar este modesto estudo a uma tentativa de
assimilação e, indo além, a uma tentativa de aplicação prática de sua proposta exegética. Há autores
acerca de cujas idéias não se pode calar, ainda que seja para refutá-Ias, e um deles é José Souto
Maior Borges, sobre quem Alfredo Augusto Becker afirmou ter "... existência real...", ser "... único e
insubstituível...", porque "... não é de papel, não usa máscara e não representa ninguém", "... é ele
1 Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 13.
mesmo. Por onde caminha, ele deixa suas pegadas profundas no deserto deste mundo, e nenhum
vento as apagará"2. E mesmo um esforço de refutação já seria uma forma respeitosa de prestar
reverência ao autor cuja teorização se pretende refutar. Entretanto, não se trata disso neste estudo.
Aqui, nenhuma refutação, mas explicação e aplicação da teoria interpretativa proposta.
Pretende-se, também, criar um diálogo sobre a teoria. Um diálogo no plano da Ciência
portanto. Essa pretensão visa afastar a monologicidade do pensamento científico denunciada pelo
mesmo autor3:
No livro Teoria Geral da Isenção Tributária, José Souto Maior Borges explica a Hermenêutica
Histórica como a investigação das condicionantes históricas que influíram na concepção de uma
determinada teoria científica. Para conhecer a teoria será, então, necessário entender também por
que ela foi erigida, isto é, saber quais as contingências que determinaram sua criação.
Trata-se, explica o autor, da "... necessidade de uma recomposição das circunstâncias
históricas que deram origem a uma teoria". A Hermenêutica Histórica "... preconiza a atitude
retrospectiva, o passo atrás, a volta à origem, ao momento histórico em que uma teoria nova eclodiu
no concerto da ciência jurídica". Note-se: teoria e ciência jurídica (metalinguagem doutrinária). Com
ela, "... intenta-se revisitar as circunstâncias em que a teoria jurídica foi originariamente concebida.
Localizá-Ia em seu tempo próprio - eis o desafio. E nele estancar a análise - eis a inovação". A
influência de Martin Heidegger ressalta, quando lembramos que este pensador, ao tentar
compreender o que é a filosofia, não o faz sem voltar à origem da filosofia: a primeira philosophía
grega4.
Assim, o autor afasta sua proposta da já conhecida e consagrada interpretação
histórico-evolutiva: "Por isso, a hermenêutica histórica não é histórico-evolutiva: esta procura
surpreender prospectivamente o fenômeno na sua evolução ao longo do tempo. A hermenêutica
histórica deve ousar o passo atrás, o retorno à origem. Trata-se de uma escavação conceitual; ir ao
fundo dos fundamentos das categorias científicas"5.
Ora, se para que seja possível a plena compreensão de uma teoria científica é necessário o
retorno às circunstâncias que originaram sua criação, então às teorias jurídicas o método é, também,
aplicável, inclusive no Direito Tributário: "No Direito Tributário, como em qualquer outro segmento
científico, faz-se necessário retomar a consideração das circunstâncias históricas que originaram uma
teoria qualquer". Porque, prossegue o autor, "... é absurdo pretender criticar, com as categorias e
instrumental teóricos modernos, os ecos das eras antigas da ciência. Sem compreendê-Ias na sua
emergência, historicamente situada, o desacerto será inevitável"6.
O autor indica, como embrião da Hermenêutica Histórica, seu estudo Revisitando a isenção
7 Cf. Ibidem, p. 139. Esta a obra: Revisitando a isenção tributária. In: CARVALHO. Maria Augusta Machado de (Coord.).
Estudos de direito tributário em homenagem à memória de Gilberto de Ulhôa Canto. Rio de Janeiro: Forense. 1998. p. 217.
8 O contraditório..., op. cit., p. 13.
9 Teoria... , op. cit., p. 139.
10 Cf. Ibidem, p. 63. Analisamos essa teoria em nosso Tributação sobre o comércio exterior (São Paulo: Dialética, 2005, p. 47)
11 Cf. Teoria... , op. cit., p. 146.
12 Cf. Curso de direito comunitário: instituições de direito comunitário comparado: União Européia e MERCOSUL. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 74 e 79, respectivamente.
ela já lhe impregnou a atitude científica. Optamos por verificar quais os casos, no Curso, em que o
autor expressamente se refere ao método por ele concebido, para confirmar essa ambigüidade. A
eles:
Na primeira oportunidade em que menciona a Hermenêutica Histórica no Curso, José Souto
Maior Borges o faz para localizar historicamente o nacionalismo enquanto ideologia. A ideologia,
nesse sentido de conjunto de ideais, opiniões e valores mais ou menos uniformes, não é, ela própria,
uma teoria científica, embora deva ser dela objeto. Menciona rapidamente que a investigação das
condicionantes históricas do nacionalismo é tema para uma Hermenêutica Histórica13. Não a aplica,
apenas a menciona, e com relação não a uma teoria científica. Portanto, diferentemente do que
houvera predominantemente feito na Teoria Geral da Isenção Tributária.
Em seguida trata dos condicionamentos do monismo jurídico enquanto teoria. Aqui, na forma
como concebida na obra anterior: por enquanto, empate em um a um14.
Mais adiante o autor se refere à Hermenêutica Histórica como método a denunciar que não são
mais as fontes do direito internacional privado exclusivamente nacionais, porque agora são, também,
comunitárias. Aí está a olhar o direito positivo e a verificar que ele mudou, e a explicar as
condicionantes históricas da mudança no direito positivo: o advento da integração e da coordenação
entre Estados15. Não no plano das teorias, mas do direito positivo.
Utiliza seu método, em seguida, para explicar a expressão "direito não-escrito" e suas relações
com o nomos grego e com a expressão nomos agrafos. Como o nomos era sempre não escrito, um
direito universal, o nomos agrafos (direito não-escrito) moderno, em contraposição ao direito escrito,
utiliza um dualismo inexistente na origem. Dualismo, novamente, no plano dos direitos-objetos de
estudo (o nomos e o dikaion politikon), e não no plano das teorias 16 . Já temos, até aqui, três
referências à Hermenêutica História aplicável a objetos de estudo e apenas uma à Hermenêutica
Histórica aplicável a teorias científicas.
A passagem seguinte é ainda mais clara: investigar as condições históricas do princípio
jurídico-positivo (linguagem prescritiva) da subsidiariedade no direito comunitário: "Esse princípio está
ligado aos níveis atuais de integração e sua regência demanda uma hermenêutica histórica, que
recomponha as circunstâncias fácticas e jurídicas envolventes de sua introdução na ordem
comunitária"17. Claramente uma investigação do direito comunitário positivo e não de teorias jurídicas.
Na nossa contagem, quatro a um para a Hermenêutica Histórica do direito positivo. Em seguida, faz o
mesmo com o Código Tributário Nacional e seu problema "lei ordinária/lei complementar", no plano,
novamente, do direito positivo 18 . Cinco a um. Logo adiante está a sexta referência: verifica as
condicionantes históricas da criação da Constituição Européia, categoria de direito positivo, estudo no
qual "... a hermenêutica histórica tem hora e vez"19. O sete a um não demora a chegar: as referências
à exposição de motivos do tratado instituidor da comunidade como explicitação das condicionantes
históricas do surgimento empírico da União Européia; de nenhuma teoria, portanto20. Já se configura a
goleada.
Mas reage a significação anterior. O autor analisa as circunstâncias históricas que determinam
a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, retomando
expressamente que "... não se deve estudar as hipóteses doutrinárias, i. é, as construções teóricas,
sobretudo se já recolhidas pela história do direito, com abstração de sua contextura histórica, com a
desconsideração das circunstâncias temporais e espaciais em que a teoria foi concebida e emergiu no
mundo jurídico"21. Sete a dois.
Em seguida vem considerável hiato na obra sem referência expressa à Hermenêutica
Histórica. O que nos permite recobrar o fôlego para uma síntese preliminar: há, efetivamente, as duas
possibilidades. Ou investigar as circunstâncias históricas do surgimento de determinada realidade
empírica e, dentre elas, o direito positivo, ou investigar as circunstâncias históricas determinantes do
surgimento de uma teoria científica. Ambas revelam resultados surpreendentes: ou se compreende as
condicionantes históricas do surgimento (da realidade empírica ou da teoria) ou o entendimento é
parcial, isto é, não se entende adequadamente o objeto de estudo (seja ele o direito positivo ou uma
teoria jurídica).
Mas voltemos ao texto. Nas demais oportunidades em que o autor menciona o método, o faz
cinco vezes em relação a objetos empíricos e uma vez em relação a teorias22. O que não revela
nenhuma impropriedade. Reconhece o autor que a teoria da Hermenêutica Histórica "... vem sendo...
23 Ibidem. p. 480.
24 LEÃO. Emanuel Carneiro. Hegel. Heidegger e o absoluto. In: Tempo brasileiro. Vol. 25. A crise do pensamento
moderno/3. Abr/jun 1970. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. p. 10.
quando for proibida a sua importação, consumo ou circulação no território nacional.
Art 24. Consideram-se igualmente dano ao Erário, punido com a pena prevista no parágrafo único
do artigo 23, as infrações definidas nos incisos I a VI do artigo 104 do Decreto-lei numero 37, de 18
de novembro de 1966.
Por sua vez, são esses os dispositivos do Decreto-Lei n. 37, de 18 de novembro de 1966 a que
remetem os preceitos transcritos, algo alterados pelo Decreto-Lei 1.804, de 3 de setembro de 1980 e
pela Lei n. 10.833, de 29 de dezembro de 2003 (as alíneas a e b a que se refere o art. 23, IV do
Decreto-Lei n. 1.455/76 são, atualmente, incisos I e lI):
Art.55 - A mercadoria lançada às costas e praias interiores, por força de naufrágio das
embarcações ou de medidas de segurança de sua navegação, e a que seja recolhida em águas
territoriais, deverá ser encaminhada à repartição aduaneira mais próxima.
§ 1° - Aplica-se a norma deste artigo, no que couber:
a) à mercadoria lançada ao solo ou às águas territoriais, por aeronaves, ou nestas recolhida, em
virtude de sinistro ou pouso de emergência;
b) a eventos semelhantes, nos transportes terrestres.
§ 2° - A disposição deste artigo alcança apenas o veículo em viagem internacional, salvo quanto à
mercadoria estrangeira sob regime de trânsito aduaneiro.
Art.56 - A repartição aduaneira fará notificar o proprietário da mercadoria para despachá-Ia no
prazo de 60 (sessenta) dias, sob pena de ser havida como abandonada.
Parágrafo único. A questão suscitada quanto à entrega dos salvados não modifica a figura de
abandono em que incorrer a mercadoria, na forma deste artigo, salvo se proposta perante a
autoridade judicial.
Art.104 - Aplica-se a pena de perda do veículo nos seguintes casos:
I - quando o veículo transportador estiver em situação ilegal, quanto às normas que o habilitem a
exercer a navegação ou o transporte internacional correspondente à sua espécie;
II - quando o veículo transportador efetuar operação de descarga de mercadoria estrangeira ou a
carga de mercadoria nacional ou nacionalizada fora do porto, aeroporto ou outro local para isso
habilitado;
III - quando a embarcação atracar a navio ou quando qualquer veículo, na zona primária, se
colocar nas proximidades de outro, vindo um deles do exterior ou a eles destinado, de modo a
tornar possível o transbordo de pessoa ou carga, sem observância das normas legais e
regulamentares;
IV - quando a embarcação navegar dentro do porto, sem trazer escrito, em tipo destacado e em
local visível do casco, seu nome de registro;
V - quando o veículo conduzir mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável
por infração punível com aquela sanção;
VI - quando o veículo terrestre utilizado no trânsito de mercadoria estrangeira desviar-se de sua
rota legal, sem motivo justificado:
Parágrafo único. Aplicam-se cumulativamente:
I - no caso do inciso II do caput, a pena de perdimento da mercadoria;
II - no caso do inciso III do caput, a multa de R$ 200,00 (duzentos reais) por passageiro ou
tripulante conduzido pelo veículo que efetuar a operação proibida, além do perdimento da
mercadoria que transportar.
Art.105 - Aplica-se a pena de perda da mercadoria:
I - em operação de carga já carregada, em qualquer veículo ou dele descarregada ou em descarga,
sem ordem, despacho ou licença, por escrito da autoridade aduaneira ou não cumprimento de
outra formalidade especial estabelecida em texto normativo;
II - incluída em listas de sobressalentes e previsões de bordo quando em desacordo, quantitativo
ou qualificativo, com as necessidades do serviço e do custeio do veículo e da manutenção de sua
tripulação e passageiros;
III - oculta, a bordo do veículo ou na zona primária, qualquer que seja o processo utilizado;
IV - existente a bordo do veículo, sem registro um manifesto, em documento de efeito equivalente
ou em outras declarações;
V - nacional ou nacionalizada em grande quantidade ou de vultoso valor, encontrada na zona de
vigilância aduaneira, em circunstâncias que tornem evidente destinar-se a exportação clandestina;
VI - estrangeira ou nacional, na importação ou na exportação, se qualquer documento necessário
ao seu embarque ou desembaraço tiver sido falsificado ou adulterado;
VII - nas condições do inciso anterior possuída a qualquer título ou para qualquer fim;
VIII- estrangeira que apresente característica essencial falsificada ou adulterada, que impeça ou
dificulte sua identificação, ainda que a falsificação ou a adulteração não influa no seu tratamento
tributário ou cambial;
IX - estrangeira, encontrada ao abandono, desacompanhada de prova de pagamento dos tributos
aduaneiros, salvo as do art.58;
X- estrangeira, exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no país, se não for feita
prova de sua importação regular;
XI - estrangeira, já desembaraçada e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em
parte, mediante artifício doloso;
XII - estrangeira, chegada ao país com falsa declaração de conteúdo;
XIII - transferida a terceiro, sem o pagamento dos tributos aduaneiros e outros gravames, quando
desembaraçada nos termos do inciso III do art. 13;
XIV - encontrada em poder de pessoa natural ou jurídica não habilitada, tratando-se de papel com
linha ou marca d'água, inclusive aparas;
XV - constante de remessa postal internacional com falsa declaração de conteúdo;
XVI - fracionada em duas ou mais remessas postais ou encomendas aéreas internacionais visando
a elidir, no todo ou em parte, o pagamento dos tributos aduaneiros ou quaisquer normas
estabelecidas para o controle das importações ou, ainda, a beneficiar-se de regime de tributação
simplificada;
XVII - estrangeira, em trânsito no território aduaneiro, quando o veículo terrestre que a conduzir,
desviar-se de sua rota legal, sem motivo justificado;
XVIII- estrangeira, acondicionada sob fundo falso, ou de qualquer modo oculta;
XIX - estrangeira, atentatória à moral, aos bons costumes, à saúde ou ordem públicas.
Art 25. As mercadorias nas condições dos artigos 23 e 24 serão guardadas em nome e ordem do
Ministro da Fazenda, como medida acautelatória dos interesses da Fazenda Nacional.
Art 26. As mercadorias de importação proibida na forma da legislação específica em vigor serão
apreendidas, liminarmente, em nome e ordem do Ministro da Fazenda.
Parágrafo único. Independentemente do curso de processo criminal, as mercadorias a que se
refere este artigo poderão ser alienadas ou destinadas na forma deste Decreto-lei.
Art 27. As infrações mencionadas nos artigos 23, 24 e 26 serão apuradas através de processo
fiscal, cuja peça inicial será o auto de infração acompanhado de termo de apreensão, e, se for o
caso, de termo de guarda.
§ 1 ° Feita a intimação, pessoal ou por edital, a não apresentação de impugnação no prazo de 20
(vinte) dias implica em revelia.
§ r Apresentada a impugnação, a autoridade preparadora terá o prazo de 15 (quinze) dias para
remessa do processo a julgamento.
§ 3° O prazo mencionado no parágrafo anterior poderá ser prorrogado quando houver necessidade
de diligências ou perícias, devendo a autoridade preparadora fazer comunicação justificada do fato
ao Secretário da Receita Federal.
§ 4° Após o preparo, o processo será encaminhado ao Secretário da Receita Federal que o
submeterá a decisão do Ministro da Fazenda, em instância única.
A situação se mantém até hoje: os produtos são liminarmente apreendidos e ficam retidos até o
fim do processo, que tem apenas uma instância de julgamento. Nosso objetivo é investigar as
circunstâncias históricas vigentes quando da edição desse Decreto-Lei n. 1.455/76, aplicando a
Hermenêutica Histórica de José Souto Maior Borges, para ver a que resultado ela nos leva.
Hermenêutica Histórica entendida, aqui, como a investigação das circunstâncias que levaram à
edição do instrumento normativo, e não de uma teoria científica, na segunda acepção acima referida.
25 Sobre os conceitos de "validade" e de "aplicabilidade" ou "eficácia", v. FOLLONI, André Parmo. Precatórios judiciais e
certidão negativa: Estado versus cidadania. In: Revista Dialética de Direito Tributário 120/26.
26 Sobre os conceitos de "despacho" e de "desembaraço aduaneiro", v. FOLLONI, André Parmo. Tributação.... op. cit., p. 93.
nos propomos a investigar. Ficamos na Hermenêutica Histórica predominante no Curso de Direito
Comunitário de José Souto Maior Borges (a que se volta ao direito positivo).
Em 1976 o Brasil se encaminhava, timidamente, para o fim do regime militar autoritário que se
iniciara com o golpe de 31 de março de 1964. Era o governo do general Ernesto Geisel, que durou de
15 de março de 1974 até a posse de seu sucessor em 15 de março de 1979. O momento era
antecedente a um período de transição, que começaria em seguida com o governo do também
general João Baptista de Oliveira Figueiredo. De início, cumpre lembrar estávamos sob a égide da
Carta Constitucional de 1967 e da Emenda Constitucional n. 1 de 1969. Carta em que, lembra Paulo
Bonavides, o exercício dos direitos à livre manifestação do pensamento e convicção política ou
filosófica, ao exercício do trabalho, ofício ou profissão, ao direito de reunião sem armas e à liberdade
de associação era condicionado a um insólito "não-abuso"27!
O governo de Geisel é conhecido por certas mudanças que redirecionaram o país ao regime
democrático. Nele se deu, e. g., a reativação dos partidos políticos, e, como ato derradeiro, a
revogação do Ato Institucional n. 5. Contudo, há aqueles que, como a Arquidiocese de São Paulo,
afirmam serem tais "... medidas de abertura, mescladas com gestos de abrandamento, tudo visando,
em última instância, a manutenção do sistema instaurado em 1964". Por isso, o governo de Geisel "...
será um governo de gestos pendulares, precisamente calculados, abrindo num momento, para em
seguida retomar medidas repressivas, que marcassem, claramente, o limite, restrito, da abertura
controlada". Tudo não se passava, segundo esses autores, de uma manobra: "Os quartéis escolhem
então o general Ernesto Geisel para dar início a uma nova etapa do Regime Militar. Desta vez, o estilo
é outro, na tentativa de recuperar a legitimidade que desaparecera por completo no último período".
Mas esse novo estilo, prosseguem, "... não alterou a essência repressiva dos anos Médici, calcada em
seqüestros, torturas e assassinatos ...". Lembremos que foi entre o final de 1975 e o ano de 1976 que
ocorreram, respectivamente, as mortes do jornalista Wladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel
Filho nas dependências do DOI-CODI do Exército de São Paulo. Mesmo a volta dos partidos e das
eleições tinha sua importância reduzida pelas cassações de mandatos entre janeiro e abril de 1976,
como veremos adiante (precisamente o período no qual houve a publicação do Decreto-Lei n.
1.455/76)28.
Era época de perseguições políticas, torturas e mortes. Tratava-se de momento político
autoritário e, por isso mesmo, criador de instrumentos jurídico-normativos conseqüentemente
autoritários. Não só o Decreto-Lei n. 1.455/ 76; houve outros que lhe comprovam a origem e o
conteúdo autoritário.
Três meses antes da edição do Decreto-Lei n. 1.455/76, em janeiro de 1976, Ernesto Geisel
usou o AI-5 para cassar os mandatos de dois deputados federais paulistas, sob a acusação de
haverem tido recebido apoio eleitoral comunista. Dois meses depois, isto é, no fim de março de 1976,
um mês antes da edição do decreto-lei sob análise, o mesmo ato foi usado contra dois deputados
federais que haviam discursado atacando com violência o governo e os militares. Nessa oportunidade
outro deputado foi também punido, como explica Thomas Skidmore, estudioso do Brasil29:
... quando o decreto estava prestes a ser assinado no Planalto, o deputado Lysâneas Maciel, um
dos maiores adversários emedebistas da Revolução, discursava na Câmara em defesa dos dois
deputados. Somente pela força, ele afirmou, o governo podia se manter no poder. A notícia do seu
violento discurso chegou ao palácio presidencial a tempo de seu nome ser incluído na lista dos
cassados. A punição sobre a sua punição foi conhecida na Câmara enquanto Lysâneas ainda se
achava na tribuna...
Aliás, Ernesto Geisel foi, de acordo com João Lins de Meio, o presidente que mais utilizou o AI-530.
Mesmo porque, já dissera aquele presidente, em discurso: "O governo não abrirá mão dos poderes
excepcionais de que dispõe"31. No mesmo mês de edição do Decreto-Lei n. 1.455/76, em abril de
1976, a censura retirou da televisão um programa do Ballet Bolshoi. E quando surgiu o Decreto-Lei n.
1.455/767 Precisamente em 7 de abril de 1976!
Dois meses após a edição do decreto-lei surge a "Lei Falcão", assim conhecida por causa do
então Ministro da Justiça (!?) Armando Falcão, proibindo o uso do rádio e da televisão para fins
políticos32. E no ano seguinte uma série de reformas constitucionais, editadas com o Congresso
Esse o preâmbulo da Constituição Federal de 1988. Instrumento normativo tão válido, vigente
e tecnicamente eficaz quanto esquecido, relegado e, também por isso, socialmente ineficaz
(inefetivo).
Já se nota que, agora, as circunstâncias históricas são bastante diversas.
Não mais perseguições, torturas e assassinatos, não mais censura e amesquinhamento de direitos
políticos e eleitorais, não mais ordem jurídica autoritária. Passa-se para um período de direitos sociais
e individuais, de liberdade, justiça e solidariedade, de fraternidade e pluralismo, de dignidade da
pessoa humana, de República e de Democracia. Não mais o direito do Estado em face do cidadão,
mas justamente o contrário: o direito do cidadão em face do Estado. Como naquela relação jurídica de
direito administrativo preconizada por Alfredo Augusto Becker já em 1963, o que comprova sua genial
idade: como diz José Souto Maior Borges, um gênio é um contemporâneo do futuro, que nega o seu
tempo porque o supera35.
Uma das mais expressivas conquistas do Estado Democrático de Direito, ao lado e tão
importante quanto os direitos materiais, é a garantia do processo. De nada adianta o direito material
sem o direito processual que lhe dê garantia de aplicação. Tão importante quanto os direitos materiais
são, portanto, os direitos processuais. Ensina Humberto Ávila: "O princípio do devido processo legal
exige que o Estado crie procedimentos para garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais
do contribuinte"36.
O conceito de "processo" é, no Brasil, delineado na Constituição: o art. 5.° o faz nos incisos LIV
e LV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legar' e "aos
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Processo é matéria, no Brasil, de raiz e definição constitucional. O princípio do devido processo
legal, no Brasil, pode, sem qualquer contra-indicação e com maior precisão científica, ser renomeado
em metalinguagem doutrinária como "devido processo constitucional"37.
Por isso, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que sempre que uma providência
administrativa implique a privação da liberdade ou de bens, ou ainda diga respeito a matéria que
envolva litígio, controvérsia sobre direitos do cidadão ou na qual haja imposição de sanções, um
processo deve ser iniciado, e nele haverá a garantia de contraditório, ampla defesa e recursos
(revisibilidade das decisões)39. Porque o país democrático não se coaduna com arbitrariedades e
decisões unilaterais.
Qualquer privação de bens e de liberdade no Brasil sob a Constituição de 1988 pressupõe
necessariamente processo, definido em sede constitucional como ostentando as garantias do
contraditório, da ampla defesa e do duplo grau de cognição (CF, art. 5.°, LIV e LV). Ensina James
Marins ser "... imprescindível que haja adequada disciplina a governar este confronto que, por
significar a manifestação formal de conflito de interesses patrimoniais entre Estado e cidadão (litígio),
deverá ter seu percurso resguardado pelos consectários imanentes à cláusula do devido processo
legal” 40.
Assim, chama-se "processo" a todo procedimento qualificado pela existência de litigantes ou
de acusados, e, por isso, obrigatoriamente contemplando o contraditório e a ampla defesa, com os
meios e recursos a ela interentes. Processo sem contraditório, ampla defesa e possibilidade de
recurso é processo inconstitucional, ofensivo ao art. 5.°, LV da Constituição. Em sentido análogo,
Romeu Felipe Bacellar Filho41:
regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto. Curitiba: Juruá, 1993. p. 111). James Marins já utilizou a expressão
"devido processo legal constitucional" (Prefácio. In: FOLLONI, André Parmo, Tributação ... , op. cit., p. 8).
38 Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 64.
39 Cf. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 470 e 465
40 Princípios fundamentais do direito processual tributário. São Paulo: Dialética, 1998. p. 25
41 Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar: São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 47.
(Decreto-Lei n. 1.455/76), realçar a autoridade do Estado .em face do cidadão; no segundo
(Constituição Federal de 1988), constituir pelo povo um Estado destinado a lhe prover bem-estar. A
inadequação entre o primeiro, instrumento infraconstitucional, e o segundo, a Constituição, é, nesse
plano, evidente.
O Decreto-Lei n. 1.455/76 não pode ser compreendido hoje sem que se compreenda tratar-se
de um instrumento criado por um Estado autoritário com o objetivo de provar sua autoridade. Estado
esse não mais existente e já suplantado por um Estado Democrático de Direito. É de se indagar:
subsistiria essa prática autoritária de apreender previamente produtos sem o devido processo
constitucional, de julgar como bem entende a regularidade da apreensão e em instância única em um
Estado Democrático de Direito. A resposta é seguramente negativa, a toda evidência. Um instrumento
jurídico autoritário não tem hora nem vez em um Estado Democrático de Direito. Não foi recepcionado
pela Constituição democrática esse instrumento de Estado autoritário42.
Se já não o denunciasse a Hermenêutica Histórica, a análise dogmática tradicional o faria:
ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, prescreve o art. 5:, L1V da
Constituição Federal. E "processo", na Constituição, pressupõe contraditório, ampla defesa e duplo
grau de cognição (administrativa) ou jurisdição (judicial). Por isso o devido processo legal que não
contiver em seu bojo a prescrição de contraditório, ampla defesa e duplo grau não é "devido processo"
porque inconstitucional. Do que advém a possibilidade de, em metalinguagem doutrinária, redefinir
com correção, no Brasil, o devido processo legal como o "devido processo constitucional".
Mas o Decreto-Lei n. 1.455/76 impõe a apreensão sem processo prévio, isto é, impõe a
privação dos bens sem contraditório e ampla defesa, que só se realizam a posteriori, depois que já
houve a privação dos bens, sem a observância daquelas garantias processuais constitucionais. E,
além disso, em grau único de cognição administrativa. A análise dogmática denuncia sua inconsti-
tucionalidade. Por isso, são a Hermenêutica Histórica e as demais formas de análise do direito
positivo perspectivas complementares e não excludentes.
Do que se depreende, com clareza, que, no Brasil pós-Constituição de 1988, alguém só pode
perder seus bens se puder exercer, previamente, contraditório e ampla defesa em processo
submetido ao duplo grau de cognição. Assim, a apreensão de mercadorias só pode se dar depois de
ter havido o devido processo constitucional, nunca antes, porque ninguém será privado de seus bens
sem o processo. É dizer: somente podem ser apreendidas mercadorias depois de exercido o
contraditório e a ampla defesa. Senão, o cidadão seria privado de seus bens sem o devido processo
legal, que apenas se instauraria depois. E mais: o processo deve prever, sob pena de
inconstitucionalidade, o duplo grau de cognição ("recurso", na dicção constitucional).
O que permite a conclusão pela inconstitucionalidade do "processo" previsto no Decreto-Lei n.
1.455/76. Os dispositivos legais apontados não passam pela necessária filtragem constitucional. São
escancaradamente contrários ao art. 5.°, L1V e LV da Constituição. Embora ainda válidos não podem,
em razão da inadequação, ser aplicados, nem pela autoridade administrativa aduaneira, nem pela
autoridade judicial. Por prescrever a apreensão de mercadorias sem o devido processo legal, isto é,
sem que haja anterior contraditório e ampla defesa, o processo previsto no Decreto-Lei n. 1.455/76 é
inconstitucional. Nele, o cidadão é efetivamente privado de seus bens sem o devido processo legal,
que só vem a posteriori. Um procedimento autoritário que não se coaduna, de forma alguma, com a
Constituição de 1988. Por qualquer ângulo de análise que se pretenda, o procedimento do
Decreto-Lei n. 1.455/76 é gritantemente inconstitucional. Incompatível, o decreto-lei autoritário não foi
recepcionado pela Constituição democrática de 1988. E novamente José Souto Maior Borges, em
passagem na qual se refere ao processo judicial mas, também, aplicável ao processo administrativo43:
Esse regime constitucional insigne não pode ser desvendado por um 'jurista-prático' moderno,
herdeiro em linha direta de velhos praxistas, na sua recusa em abordar os fundamentos
constitucionais do processo judicial. Atentos e interessados exclusivamente na hermenêutica
das normas infraconstitucionais (processuais) que disciplinam o exercício da pretensão
tributária no caso concreto. Desdenhosos de uma investigação processual em profundidade
no campo tributário.
Seja pelo caminho trilhado pelos institutos tradicionais da Dogmática Jurídica, seja pelo
paradoxal caminho inovador de retorno à tradição preconizado pela Hermenêutica Histórica, a
inconstitucionalidade ressalta. Não pode ser, portanto, aplicado pela Administração Pública o
"processo" previsto no Decreto-Lei n. 1.455/65, que de verdadeiro processo não se trata, porque
42 Sobre o processo como garantia do Estado Democrático de Direito. v BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios .... 017.
cil., p. 129 e seguintes.
43 Contraditório ... , op. cit., p. 560.
inadequado ao conceito constitucional de processo constante do art. 5.°, L1V e LV da Constituição.
Impõe-se sejam respeitadas as garantias constitucionais constantes, inclusive, da Lei Geral do
Processo Administrativo Federal, a Lei n. 9.784/99, essa sim editada já na vigência do Estado
Democrático de Direito e respeitosa de seus princípios constitucionais processuais fundamentais:
Contraditório e ampla defesa estão, aqui, contemplados. E aquilo que se convencionou chamar
princípio da juridicidade também, ao proclamar a atuação administrativa conforme a lei e o direito, em
notável superação do legalismo, que nada tem a ver com a legalidade. Juridicidade, ensina Cármem
Lúcia Antunes Rocha, prescreve que o Administrador Público deve atuar não em conformidade com a
literalidade da lei, mas com o direito como um todo44. O que se aplica com precisão ao caso presente:
o agente aduaneiro não deve atuar apenas em conformidade com o Decreto-Lei n. 1.455/76, mas com
o sistema do direito positivo todo, principalmente com a Constituição.
Por fim, mas de modo algum menos importante, aliás justamente o contrário, a Jurisprudência:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DEVIDO PROCESSO LEGAL.
INEXISTÊNCIA. PENA DE PERDIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. DEC-LEI N° 1.455/76.
1. A pena de perdimento, que tem sede no Dec-Iei n° 1.455/76, deverá estar adstrita aos ditames
da CF/88, quanto ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
2. "É constitucional a pena de perdimento prevista na legislação aduaneira, desde que obedecido o
devido processo legal." (TRF1, T3, AMS 2000.33.00.002741-9, ReI. DESEMBARGADOR
FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, Dj 06/12/2002, p. 109).
3. "A ocorrência do cerceamento de defesa no processo administrativo propicia a anulação da
pena de perdimento imposta ao importador."(AMS 1999.01.00.106987-8/AM, 4" Turma, Rei.
DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, Dj 06/03/2003, p. 160)
4. Sentença confirmada.
5. Remessa oficial improvida.
(TRF 1: Região. 2.' Turma suplementar. Reo 199701000006920. Relatar juiz Federal Eduardo
José Correa (Conv.). julgado em 27.05.2003. Publicado em 18.06.2003).
Em todos os julgados uma mesma decisão: o contraditório e a ampla defesa (devido processo
constitucional) devem ser prévios à apreensão de mercadorias, devem preceder a privação dos bens.
Mas o procedimento previsto no Decreto-Lei n. 1.455/76 não os contempla antes da apreensão, no
que se revela inconstitucional. Não prevê, também, o duplo grau de cognição. Estamos com aqueles,
como Romeu Felipe Bacellar Filho e James Marins, para os quais "processo" é, constitucionalmente,
o procedimento qualificado pela existência de lide e, necessariamente, sob pena de
inconstitucionalidade, integrado pela garantia do contraditório e da ampla defesa, com os meios e
44 Cf. Principias constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Dei Rey, 1994, p. 81.
recursos a ela inerentes45. O "processo" previsto no Decreto-Lei n. 1.455/76, por análise levada a
efeito pela Hermenêutica Histórica e pela Dogmática tradicional, revela-se inconstitucional por afronta
ao art. 5.°, LIV e LV da Constituição democrática de 1988.
É deveras surpreendente o fato de diversos autores afirmarem que a Constituição brasileira não
assegura, em processo judicial, o duplo grau de jurisdição, pelo simples fato de não o afirmar de
modo direto (como na Constituição Imperial) quando a verdade é que o 'duplo grau' é decorrência
automática de se assegurar o direito de recurso aos 'litigantes' em 'processo judicial'.
Se o que acaba de afirmar-se é verdadeiro no que concerne ao processo judicial, também o é no
que respeita ao processo administrativo, seja este processo do tipo punitivo (em que o particular
figura como 'acusado') ou do tipo não punitivo (em que o particular figura como 'litigante').
Hugo de Brito Machado Segundo, por sua vez, aduz que, embora "... o referido princípio não se
encontre expressamente positivado em nossa Constituição, podemos considerá-Io implícito nas
disposições que tratam do devido processo legal e da ampla defesa...”49. Oporíamos apenas uma
discordância: está, sim, expresso o princípio no art. 5.°, LV da Constituição, ao se referir a "recursos".
Portanto, mostra-se, também, inadequado constitucionalmente o Decreto-Lei n. 1.455/76 ao
não prever duplo grau de decisão administrativa no processo de dano ao erário. É, portanto,
merecedor de invalidação pelos órgãos competentes para tal (do Poder Legislativo e do Poder
Judiciário - controle concentrado de constitucional idade) e de inaplicação pelos demais órgãos (do
Poder Executivo e do Poder Judiciário - controle difuso de constitucional idade).
45 Cf. BACELLAR FILHO. Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar: 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 51 e
MARINS. James. Direito processual tributário brasileiro: administrativo e judicial. 4. ed. São Paulo: Dialética. 2005. p. 94.
46 Cf. Princípios ..., op. cit ,. passim.
47 Direito ..., op. cit .. p. 196.
48 Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 12-13. Cf. também:
VALVERDE. Gustavo Sampaio. Segurança jurídica e processo: recursos, coisa julgada, ação rescisória e ações de
(in)constitucionalidade. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos
em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 199. Agradecemos, aqui, a José Roberto Vieira,
que nos presenteou com esse livro, no qual também publica artigo em homenagem a Paulo de Barros Carvalho.
49 Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 56.
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