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DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 145 A TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN André Parmo Folloni PRODUGAO A teoria pura do direito, uma das varias concepgdes juridicas modernas, & bastante complexa e da margem a varias interpretagdes. Trataremos, aqui, apenas de alguns conceitos fundamentais. Exposigdo dos pressupostos epistémicos da teoria e de alguns de seus desdobramentos, de acordo com a interpretagdo que dela fazemos. Outra ressalva, posto talvez dispensavel, sera feita: exporemos a teoria pura sem nos manifestarmos criticamente em relagio a cla. Aderimos a varios pontos mas nao nos filiamos a numerosos outros. Essas consideragdes pessoais nao serao, contudo, aqui ‘expostas. “Teoria pura do direito” € uma expressiio que pode, a depender do intérprete, assumir uma denotacio ambigua. Entende-se “teoria pura do direito” no sentido de uma teoria geral do direito — teoria das normas juridicas € do sistema juridico-normativo. Existe, também, a possibilidade de compreendé-la como uma epistemologia do direito teoria da forma de conhecer 0 direito. Nesse ultimo caso, trata-se de uma proposta destinada a defender a possibilidade de um método de estudo cientifico do direito; no primeiro caso, tem-se um sistema tedrico de normas e€ suas relagdes construido com base nesse método. A diferenga ressalta. Contudo, os combati teoria pura dirigem-se a ambas as significagdes, comumente sem levar em considera a distingdo: ora critica-se 0 método, ora critica-se as teorias obtidas com a aplicagdo do método, ora todas ao mesmo tempo. Veremos, primeiramente. a teoria pura do direito como epistemologia juridica, no plano da Filosofia do Direito, para, em seguida, procurarmos entendé-la enquanto teoria geral do direito. 1. Teoria Pura do ‘eto como uma epistemologia do Direito As maiores oposigdes que se fazem a teoria pura estdo direcionadas ao seu aspecto metodologico. A teoria pura enquanto teoria geral do direito fundamenta-se, sob esse ponto de vista, no pressuposto segundo 0 qual ¢ possivel, ¢ até recomendavel, um estudo do direito que seja estritamente juridico. Estritamente juridico sign retirar do estudo do direito tudo 0 que nao for exclusivamente norma juridica. Significa considerar, em uma proposta explicativa do direito, apenas os aspectos restritos ao direito positivo. HANS KELSEN, seu criador, advoga essa possibilidade, logo de inicio, no prefacio a primeira edigdo da Teoria Pura do Direito: “O postulado metodolégico 146 ilvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) que cla visa no pode ser seriamente posto em diwvida, se é que deve haver algo como uma ciéncia do Direite Alem disso, deve ser ressaltado que a teoria pura pretende conhecer o dircito como ele & Nao faz parte dos objetivos da teoria pura dizer como o direito deveria ser para ser melhor, para ser mais justo, para ser mais correto, para ser mais efetivo et. Assim, o postulado fundamental da teoria pura também ¢ a separagio entre Ciéncia do Direito e politica: “O postulado de uma separagdo completa entre jurisprudénica e politica nao pode ser sinceramente questionado, caso deva existir algo como uma Ciéncia do Direito™’. Dizer como o direito é, para a teoria pura, é fazer ciéncia; dizer como 0 direito deveria ser ¢ fazer politica. Qualquer pessoa pode resolver empreender agdes em ambos os campos; contudo, nao deve ignorar a distingdio entre eles. HANS KELSEN chega mesmo a denunciar “...la vergonzosa decadencia de una ciencia social que no es capaz de emanciparse de la politica”. Assim, a Cigncia do Direito & “una ciéncia que precisa descrever seu objeto tal como ele é, e ndo prescrever como ele deveria ser do pono de vista de alguns julgamentos de valor especificos™ Sabemos que o direito enquanto realidade de fato é um ente de alta complexidade. Em um primeiro momento, € preciso, entdo, para satisfazer aquela proposta metodoldgica, separar o direito, para fins de estudo, da realidade em que se encontra, [sso porque a teoria pura pretende o estudo apenas ¢ tao-somente do direito, abstraidas todas as demais possibilidades que, embora tenham o direito enquanto ente constitutivo, misturam © direito aos dados fornecidos por outros saberes ou. ainda, misturam ao direito dados fornecidos por outros saberes. Isso significa, portanto, estudar restritivamente eu im entendido o conjunto de normas juridico-positivas. ¢ nada mais. Ora, considerando-se a complexidade do direito, essa ¢ uma proposta ousada e, portanto, largamente aberta a critica, Estudar apenas o direito e nada além dele, Se isso for possivel, entao a cpistemologia juridica preconizada pela teoria pura do dircito sera procedente. Se essa tentativa, contudo, mosirar-se decididamente inviavel, entio a teoria pura enquanto epistemologia devera ser simplesmente desconsiderada, Vejamos alguns problemas, de ordem teérica e pritica, que essa epistemologia deve enfrentar, Teoria pura do direito, Trad, Joao Baptista Machado, 2, ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1987, sp. Primeira edig’o publicada como Reine Rechisiehre, em 1934. O inicio desse rumo de pensamento em HANS KELSEN deu-se com seu escrito Hauptproblemen der Staatsrechtslehre, de 1911, ao qual seguiram-se 0 Allgemeine Staatslehre de 925, a Teoria Pura de 1934 ¢ 0 General Theory of Law and State, de 1945. A segunda edigao da Teoria Pura, reformulada, apareceu em 1960. Varios aspectos sao retomados no Allgemeine Theorie der Normen, publicado postumamente pelo Instituto Hans Kelsen, de Viena, Austria. * Teoria geral do direito e do estado. Trad, Luis Carlos Borges. 3. ed. 2. tir. Sao Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XXXIL Originalmente publicada como General Theory of Law and State em 1945. ta del derecho y del estado. Trad. Afredo J. Weiss. Buenos Aires: Emecé, 1957, p. 14. Publicagao argentina da tradugao ao espanhol dos escritos The Communist Theory of Law e The Political Theory of Bolchevism, ambos de 1955, nos quais HANS KELSEN analisa a toria juridica que se volta ao comunismo © que se desenvolve em paises comunistas, especialmente na Unido Soviéiica da época. Sobre o tema. cf. também HANS KELSEN. A democracia, Trad. Ivone Castilhe Benedetti ¢ outros. 2. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 146. Esse livro ¢ coletanea de cinco escritos de HANS KELSEN sobre formas de governo, regimes de governo ¢ teoria do Estado, publicados originalmente na década de 20 do Sée. XX. * Teoria geral do direito..., op. cit.. p. XXVILL. com DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 147 1.1 Primeiro problema O primeiro problema a ser resolvido no ambito dessa tentativa metodologica ¢ separar, abstratamente, 0 direito dos demais dados culturais que condicionam a vida social. Nao se trata de pretender separar 0 direito dos demais dados culturais no plano real. Isso seria, obviamente, impossivel. O direito é ontologicamente complexo, impuro, e a teoria pura bem o sabe. Trata-se, apenas, de afastar 0 direito dos demais condicionantes sociais no plano das consideragdes do pensamento. Tentar pensar 0 direito sem pensar os outros aspectos da vida social. Embora complexo 0 dircito enquanto objeto de estudo, pode ser purificado 0 estudo em si. Isso é& para HANS KELSEN, possivel e recomendavel. Entao, a epistemologia da teoria pura, ao passo que compreende que o direito € apenas mais um dentre os varios elementos da vida social e que influencia ¢ é influenciado, por todos cles, a todo momento, mesmo assim procura, para fins de estudo, separar 0 direito. Nas palavras do autor‘: “Quando designa a si prépria como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propde garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito ¢ excluir deste conhecimento tudo quanto nao pertenca ao seu objeto, tudo quanto nao se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto quer dizer que ela pretende libertar @ ciéncia juridica de todos os elementos que the sao estranhos, Esse 6 0 seu principio metodologico fundamental” Repare-se, no excerto uanscrito, a mengao a “...conhecimento apenas dirigido ao Direito...°, a *...excluir deste conhecimento...” ea “libertar a ciéncia juridica de todos os elementos que the sao esiranhos”. Trata-se de, assumindo a complexidade do direito enquanto objeto real, tentar elimind-la no plano de seu conhecimento. O direito enquanto objeto é impuro; a teoria do direito pode, contudo, ser pura. Nesse sentido, 0 direito ¢ ontologicamente complexo e formado por varios —_aspectos, istemologicamente, contudo, pode ser estudado apenas 0 aspecto normativo. isse ¢ um recurso metodolégico amplamente utilizado ¢ denominado, em epistemologt se alguém pretende estudar a quimica do organismo humano pode es independentemente de pensar, a0 mesmo tempo, como funciona a psicologia humai Temos, assim, uma separagio no plano do estudo: muito embora_ saibamo: evidentemente, que o homem € ontologicamente complexo e tem como dados constitutivos de sua prépria condigao humana, além de outros, os elementos quimicos & psicologicos, separamos, para fins gnoscoldgicos, a quimica dos demais segmentos. Na realidade, no plano real, tudo esti unido e implicado; para fins de estudo, faz-se a separagaio, a reafirmar a existéncia duas ciéncias separadas: a quimica ¢ a psicologia. Em_ varios, senio em todos os campos do conhecimento, 0 recurso do corte epistemoldgico ¢ utilizado. A teoria pura do direito admite como pressuposto que o corte metodoldgico pode ser utilizado, também, no estudo do direito. Assim, muito embora a vida social tenha numerosos aspectos culturais, como os econémicos, os éticos, 0s politicos, os histéricos, os religiosos, os ideoldgicos, os sociolégicos, os juridicos erc., a teoria pura admite ser possivel separar, para fins de estudo, 0 direito dos demais elementos sociais. Assim como ha a Ciéncia da Economia, a Etica, a Ciéncia Politica, a Historia, a Teologia, a Filosofia e a Sociologia, pode haver uma Ciéncia do Direito que estude apenas 0 direito. Novamente 0 autor": * Teoria pura... 0p. cit.. p. l. “Kdem, op. loc, eit 148 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) “De um lado inteiramente acritico, a jurisprudéncia tem-se confiundido com a psicologia ¢ a sociologia, com a ética ¢ a teoria politica. Esta confusdo pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciéncias se referirem a objetos que indubitavelmente tém uma estreita conexdo com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar 0 conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fi-lo nao por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexdo, mas porque intenta evitar um sincretisma metodolégico que obscurece a essencia da ciéncia juridica e dilui os limites que the sao impostos pela natureza do seu objeto”. Nesse sentido, se se considera possivel, e. g., estudar-se a politica sem, obrigatoriamente, preocupar-se, ao mesmo tempo, com a religiZio, entio deve se considerar possivel, também, estudar o direito sem se preocupar, ao mesmo tempo, com a economia, com a moral, com a histéria ¢ com a politica. Isso é possivel, embora seja, a toda evidéncia, um pressuposto questionaiyel ¢ criticavel. Alias, atualmente questionavel, mesmo, nas ciéncias naturais: hoje se sabe que uma alteragdo quimica no organismo implica mudangas psicolégicas, de forma que seria inadequado cstudar apenas a psicologia desconsiderando completamente a bioquimica, no exemplo que se i a utilizar. O que, entretanto, nao depde contra ele: questionavel e criticavel sera, por definicdo, qualquer concepgio cientifica. A forma que a teoria pura do direito encontra, na tentativa de isolamento do direito dos demais dados da vida social, para possibilitar o estudo exclusivamente juridico, ¢ recomendar que 0 conhecimento juridico puro se volte apenas para as normas juridicas positivas. E classica a seguinte passagem de HANS KELSEN: “Na afirmagao evidente de que 0 objeto da ciéncia juridica é 0 Direite, esta contida a afirmacao — menos evidente — de que sdo as. normas juridicas 0 objeto da ciéncia juridica...”. Isso causa uma série de questionamentos, na medida em que, ¢. g., a teoria pura exclui do estudo do direito o estudo da justiga, que fica reservada ao plano da moral: “Como todas as virtudes, também a virtude da justica é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiga pertence ao dominio da moral”. “o conceito de justia deve ser distinguido do conceito de direito”:“A questao de sabe o contetido juridico definido através do processo de direito positive é justo ou injusto nada importa para sua validade’*. HANS KELSEN, por isso tudo, separa os valores de direito (licito e ilicito) dos valores de justica (justo ou injusto), ressaltando sempre que “...a Teoria Pura do Direito insiste em uma separagdo clara entre 0 conceito de Direito € 0 conceito de justia...” Nao interessa a teoria pura quais as condicionantes econdmicas que fizeram com que determinada norma fosse editada ¢, tampouco, quais os efeitos econdmicos que Ihidem, p. 77. *“ HANS KELSEN. © problema da justiga. Trad. Jodo Baptista Machado, 3. ed. Sie Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 3, 67 e 117. Esse texto foi originalmente publicado como apéndice a segunda edigdo da Teoria Pura do Direito, em 1960. ° Cf. O que € justiga? A justiga, © direito € politica no espelho da cigncia. Trad, Luis Carlos Borges. 3. ed. Sio Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 203-204 299. Originalmente publicado como What is Justice? Justice, Law and Politics in the Mirror of Science em 1957. A distingio entre normas de direito e de moral ¢ amplamente tratada em varios pontos da obra Teoria geral das normas. Trad, José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, originalmente publicada, apés a morte de HANS KELSEN, pelo Instituto Hans Kelsen de Viena, Austria, sob o titulo Allgemeine Theorie der Normen, em 1979. A questio da justiga em PLATAO & exaustivamente tratada por HANS KELSEN na obra A ilusio da justiga. Trad. Sérgio Tellaroli 3. ed, Sao Paulo; Martins Fontes, 2000, originalmente publicada, também de forma péstuma, sob o titulo Die Illusion der Gerechtigheit, em 1985, tida por estudiosos eminentes como o ponto mais alto da vasia obra literaria de HANS KELSEN. DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 149 aquela norma tera, Interessa apenas a norma em si e o sistema que a contém. E evidente que 0 direito a economia estao ampla e umbilicalmente ligados. Mas também € evidente que, para fins de um determinado tipo de estudo, nao para todos, & vidvel considerar-se apenas e exclusivamente a norma posta. O mesmo que se disse a respeito das relagdes entre direito e economia se diga para a moral, a politica, a historia, a religiio, a ideologia, a sociologia efc. Novamente, aqui, a consideragao: uma mixordia ontolégica nao impede uma depuragio cognoscitiva, A solugao para esse problema, portanto, deve ser proposta dentro dos confinamentos da epistemologia classica. 1.2 Segundo problema Vencido, caso possivel, o primeiro problema, ha ainda um segundo problema a enfrentar. E que, ainda que o estudioso se volte apenas para a norma posta, cada norma tem um determinado contetido, de modo que conhecer a norma é conhecer seu contetido, isto é, a matéria de que trata, a parcela da vida social que visa regular. Esses contetidos sao, em sua maioria, contetidos nao apenas normativos, mas contetidos econdmicos, éticos, politicos, historicos, religiosos, ideoldgicos, sociologicos etc. F dizer: como seria possivel um conhecimento estritamente juridico a respeito, ¢. g.. das normas que impedem, no direito brasileiro, a eliminagao da “livre concorréncia economica” entre empresas? Ora. para conhecer essa norma, & preciso saber 0 que se entende por livre concorréncia ¢ em que momento essa livre concorrencia se encontra ameacada. Isso depende de conhecimentos, ainda que minimos, de economia, Ainda: para conhecer a norma que prescreve a impossibilidade de nomeagio ao Supremo Tribunal Federal daqueles que ndo detém “reputagado ilibada”, € necessario saber-se 0 que ¢ reputagao ilibada, € essa considerag’o € predominantemente ética. Por fim: para compreender a norma que prescreve imunidade a impostos para os “templos de qualquer culto”, é preciso que se determine © que se entende por culto, ¢ essa é concepgdo que tem alto grau de influéncia religiosa. Contetidos estritamente normativos teriam, apenas, as normas que prescrevem 0 procedimento de criagdo juridica de outras normas ou sua revogag’o. A todas as demais estaria interditado um conhecimento estritamente juridico. Esse problema € contornado, pela teoria pura do direito, ao propor que se estude a norma ju ‘a_independentemente de seu contetido material, isto ¢, independentemente da matéria regulada. A teoria pura do direito concebe, entao, a possibilidade de estudo da norma ¢ do ordenamento juridico sem preocupagdo com seu contetido material, como forma de ladear o problema apontado. Por isso, alias, a teoria pura enquanto método produz uma teoria pura enquanto Teoria Geral do Direito, aplicavel a qualquer ordenamento: porque abstrai o contetido material, a materia regulada, ficando apenas com a forma normativa. A teoria pura do direito estuda a estrutura formal das normas e dos ordenamentos em geral, e nado o contetido material de uma norma especifica ou de um ordenamento determinado. E por isso que, se correta, a teoria ¢ aplicivel tanto ao direito norte-americano quanto ao dircito iraniano; tanto ao direito da Franga no séc. XVII quanto ao Brasil do séc. XX. Porque tanto faz a matéria regulada, se se trata de relacdes de consumo ou crimes contra O-Meio-ambiente, se se trata de democracia ou ditadura, se se trata de repiblica ou monarquia. HANS KELSEN afirma que “a Teoria Pura do Direito limita- se a uma anilise estrutural do Direito positivo...”". A teoria pura, enquanto teoria °° O que é justiga.... op. cit. p. 291. 150 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) |. preocupa-se apenas com a forma normativa, sem preocupar-se com o conteido material efetivamente regulado. Nao que nao haja qualquer contetido na teoria pura. Para compreender isso, vejamos, ¢. g., a estrutura da norma na teoria pura, como descrita pela Ciéncia Juridi “Se 0 Direito & concebide como uma ordem de coergdo, isto é, como uma ordem estatuidora de atos de coergao, entao a proposicao juridica que descreve o Direito toma a forma da afirmagao segundo a qual, sob certas condigdex ow pressupostos pela ordem juridica determinados, deve executar-xe um ato de coacao, pela mesma ordem juridica especificado™. © conteido estudado pela teoria pura é aquele conteido minimo que, de acordo com sua concepcao, esta presente em todas as normas: um pressuposto para a aplicagéo de uma sangao ¢ a propria sangio. Mas nao é objeto da teoria pura qual & esse pressuposto, isto é, qual o fato descrito na norma, e nem qual é a sangao especifica imposta por aquela norma em particular. O segundo problema, entio, & resolvido ndo-se a prépria definigao de Teoria Geral do Direito enquanto teoria vamente formal. 1.3 Terceiro problema Uma terceira questio epistemoldgica da teoria pura da qual gostariamos de tratar a da fungao da Ciéncia do Direito. Para a teoria pura, cabe a Ciéncia do direi studo meramente descritivo. Trata-se daquela distingdo, ja apontada, entre ciéncia & politica juridica. A primeira objetiva dizer como o direito é; a segunda pretende prescrever como o direito deveria ser. Para HANS KELSEN, 08 cientistas do direito “..precisam compreender ¢, portanto, determinar 0 sentido das normas juridicas que por eles hao de ser observadas”". A atividade do cientista € descritiva, explica nosso justilésofo: “Os enunciados de dever ser nos quais 0 te6rico do Direito expoe as normas fm uma significagdo meramente descritiva; eles, por assim dizer, reproduzem descritivamente 0 ‘dever ser’ das normas”"*. Aquele que quer fazer Ciéncia do Direito nos moldes kelsenianos, portanto, deve controlar sua angustia em nao poder modificar 0 direito positivo; sua tarefa ¢, restritivamente, descrevé-lo. Esse problema nao tem maiores conseqiiéncias epistemologicas, porque a fungdo da ciéncia como descritiva de seu objeto é tradicional © basta permanccer nesse paradigma para afastar o conflito. Entretanto, trata-se de problema pratico, a ser enfrentado pelo estudioso que deseja ser o cientista do direito imaginado por HANS KELSE "HANS KELSEN, Teoria pur: " [hidem, p. 363. "Peoria geral do direito.... op. cit., p. 237 op. cit. p. V1. DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 1st 1.4 Quarto problema Por fim, ha uma outra questo que gostariamos de ressaltar: o estudo proposto pela teoria pura do direito é voltado as normas juridicas ¢ ao sistema que as contém, e nao 4 conduta normada. Nao interessa 4 teoria pura como se comportam os destinatarios das normas, mas apenas as normas em si. Isso nao faz com que a teoria pura do direito n&o seja uma teoria empirica. Entretanto, seu empirismo € que € algo peculiar. A experiéncia do direito éa experiéncia do normativo, e nao da conduta conforme ou desconforme norma. Assi € empirica a teoria juridica porque descreve algo empiricamente verificavel: o sistema e as normas j Diz HANS KELSEN": “Uma descrigdo analitica do Direito positive como sistema de normas vilidas niio é, contudo, menos empirica que a ciéncia natural restrita a um material fornecido pela experiéncia. uma teoria do Direito perde seu cardter empirico ¢ torna-se metafisica apenas se for além do Direito positivo e fizer enunciados sobre algum pretenso Direito natural. A teoria do Direito positivo & paralela @ ciéncia natural empirica, ¢ a doutrina do Direito natural é paralela d metafisica”. Percebe-se, aqui, 0 contexto filoséfico e epistemolégico da teoria pura, e o horror que a ciéncia, nesse contexto moderno, tem da metafisica. Mas o que queremos ressaltar é a caréncia de preocupagao da teoria pura do direito com a conduta humana no plano fatico. Esse problema ¢ contornado de modo que essa preocupagao seja entregue a outra ciéncia: 4 Sociologia do Direito. E esse, inclusive, 0 titulo do item M do capitulo XII da Teoria Geral do Direito e do Estado: “O Objeto da Sociologia do Direito: A Conduta Determinada pela Ordem Juridica”. 2. Teoria Pura do Direto como uma Teoria Geral do Direto Compreendida a teoria pura como. metodologia de conhecimento do direito, os problemas que ela traz e como esses problemas so contornados, & possivel, agora, compreender a teoria pura como teoria geral do direito. Essa teoria volta-se, como dito, ao estudo das normas e dos sistemas que as contém. Dependendo do modo de observar esse conjunto formado pela norma ¢ 0 sistema que a contém, duas possibilidades surgem: observar-se apenas a norma ¢ 0 sistema ou observar-se 0 modo de produgdo de hormas como definido pelo sistema. No primeiro caso, 0 objeto é a norma e o sistema como esti num momento dado, sob ponto de vista estatico; no segundo, o objeto é, novamente, a norma ¢ O sistema, mas sob ponto de vista dindmico, objetivando verificar como se produz ¢ reproduz o direito no tempo'*: " Phidem, p. 236. * thidem, p. 257. " Idem, ibidem, p. 78. 152 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuseka (Organizadores) “. podemos distinguir uma teoria estatica e uma teoria dindmica do Direito. A primeira tem por objetivo 0 Direito como um sistema de normas em vigor, o direito em seu momento estatico: a outra tem por objeto 0 processo juridico em que o Direito & produzido e aplicado, 0 Direito no seu movimento. Deve, no entanio, observar-se, a propésito, que este mesmo processo €, por sua vez, regulado pelo Direito .... Dessa forma, também a teoria dinimica do Direito é dirigida a normas juridicas, a saber, Giquelas normas que regulam a produgdo e a aplicagao do Direito Ainda, a teoria pura propde uma teoria da interpretagao do dircito. Vejamos a teoria estatica, a teoria dinamica ¢ a hermenéutica da teoria pura do direito. 2.1 Teoria estitica do direito nesse ponto que é empreendido o estudo da norma ¢ do sistema que a contém. A norma juridica, para a teoria pura, € vista como a atrelagem de uma sangao a um pressuposto, que € 0 il 1.1 Sangiio Para a teoria pura, “o direilo é uma ordem de conduta humana, Uma ‘ordem’ & um sistema de regras””. O dircito é concebido por HANS KELSEN como uma ordem de conduta humana por simples observagao empirica: “Para alcancar uma definic¢do do Direito, & aconselhivel primeiramente partir do uso da linguagem, quer diz determinar 0 significado que tem a palavra Recht (Direito) na lingua alemd e as suas equivalentes nas outras linguas””*. HANS KELSEN percebe que, em comum a todas as acepgdes, esta a referéncia a uma ordem de conduta humana: “Com ejeito, quando confrontamos uns com os outros os bojetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, sao designados como ‘Direito’, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana’. Dai a conclusao: “As normas de uma determinada ordem juridica regulam a conduta humana’ Ea forma de regular ¢ estabelecer sangdes: “Uma outra caracteristica comum as ordens sociais a que chamamos Direito é que elas sao ordens coativas, no sentido de que reagem contra situagces consideradas indesejaveis, por serem socialmente perniciosas ... com um ato de coacdo™"'. Os atos de coergao sao, para a teoria pura, as sangdes: “Sangdes, isto é, atos de coergdo que sao estaluidos contra uma agdo ou omissao determinada pela ordem juridica...”*". Assim, para a teoria pura, 0 modo pelo qual o direito regula as condutas humanas abelecendo sangdes a condutas indesejavei " HANS KELSEN, Teoria geral do direito.... op. 7 "Teoria pura... op. Ci cit, p. 78e 21 ‘Teoria pura..., op. cit. p. 34. ™ Idem, op. loc. cit » Idem, ibiden.. p. 36. ® fem, ibidem, p. 121. +p. 5. p. 33-34. Cf, também, HANS KELSEN, Teoria gi I do direito.... op a DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS ! 2.1.2 Hicito ¢ proibigio Essa conduta, que é 0 pressuposto para a aplicagdo da sangdo é, na teoria pure ilicito. Hicita ¢ a conduta cuja ocorréneia desencadeia a aplicagio de uma sangao. conduta €, portanto, proibida pela ordem juridica; se adotada, implicara sangao. Logo, para a teoria pura, 0 ilicito nado é a negagdo do direito, 0 contrario do direito, © antijuridico: 0 ilicito esta dentro do direito, precisamente porque é 0 pressuposto para a aplicagdio da sancaio": *...0 ilicito aparece como um pressuposto (condigdo) & néo como uma negasdo do Direito; ¢, entdo, mostra-se que 0 ilicito nao é uum fato que esté fora do Direito e contra o Direito, mas é um fato que esti deniro do Direito ¢ & por este determinado, que 0 Direito, pela sua propria natureza, se. refere precisa e particularmente a ele, Como tudo 0 mais, também o ilicito (...) juridicamene apenas pode ser concebido como Direito” 2.1.3 Dever juridico Se a norma liga a um pressuposto, que é uma conduta humana, uma sangao. justamente para regular aquela conduta, entao isso significa que, juridicamente, aquela conduta nao pode ser adotada, sob pena de sangdo. Logo, nao adotar aquela conduta é um dever juridico. O dever juridico é, portanto, na teoria pura, 0 dever de adotar a conduta oposta aquela que & qualificada como pressuposto para a aplicagio de uma sangao. Nas palavras de seu criador, “...wma conduia apenas pode ser considerada como objetivamemte prescrita pelo Direito e, portanto, como contetido de um dever juridico, se uma norma juridica liga @ conduta oposta um ato coercitivo como sangao™*. Conduta devida, entio, é aquela oposta 4 conduta pressuposto de sangao. Isto &: deve-se adotar a conduta oposta ao ilicito. 2.1.4 Cumprimento e violagio do dever juridico Diz-se que um dever juridico é cumprido quando a conduta adotada é ‘atamente a conduta oposta aquela pressuposto para a aplicagdo da sangao. Cumpre-se um dever juridico quando se adota uma conduta que evita a sangdo, isto é, quando nao se pratica 0 ilicito, Aquele que, se realizar uma conduta, tera uma sangao, é obrigado a adotar a conduta oposta. Se o fizer, cumpre sua obrigagao. Se nao o fizer, descumpre-a, surgindo a possibilidade de sangao. Violar 0 dever juridico &, como se nota, adotar a conduta que implica sangao; ou, 0 que é 0 mesmo: praticar um ilicito. HANS KELSEN * Idem, ibidem, p. 126. * Idem, ibidem, p. 128. *S Idem, ibidem, p. 129. 154 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) luridicamente obrigado esti 0 individuo que, através de sua conduta, pode cometer 0 ilicito, isto é, 0 delito, &, assim, pode provocar a sancao, a conseqiiéncia do ilicito .... ou que pode evitar a sangdo pela conduta oposta. No primeiro caso, fala-se da violagdo do dever, no segundo, em cumprimento do dever”. 2.1.5 Direito subjetivo Para a teoria pura, 0 direito subjetivo é um conceito que deriva de todos os que foram anteriormente expostos. Dizer que alguém tem um determinado direito significa dizer que outra pessoa tem um determinado dever. Se um individuo tem um direito, isso sempre ¢ 0 direito de exigir de outrem uma determinada conduta, porque o direito € uma ordem coativa de condutas humanas e apenas isso. Nesse sentido, s6 havera direito subjetivo onde houver dever juridico. E dever juridico, ja o sabemos, é 0 de observar uma conduta cuja conduta oposta € pressuposto de aplicagdo de sangao. Se alguém deve observar uma conduta, porque se niio o fizer havera sangao, entdo essa conduta ¢ devida. Como reflexo disso, outra pessoa tem 0 direito de que aquela conduta seja observada. Assim, a mengdo ao direito & supérflua, porque se depreende da mengdo um dever, que deriva da sangao; *...guando wn individuo é juridicamente obrigado a una determinada conduta em face de outro tem este, peranie aquele, um ‘direito’ a esta conduta. Sim, o direito reflexo de um consiste apenas no dever do outro™ Num exemplo bem simples: imaginemos uma norma juridica que prescreva que ¢ alguém nao devolver 0 que tomou em empréstimo seri preso”. Nessa norma, no devolver é pressuposto para a sangao, que é a pena de prisio. Dela € possive! deduzir-se © dever juridico, Dever juridico é 0 dever de observar a conduta oposta aquela que & pressuposto para a sangao. Se a conduta pressuposto para a sango & “nao devolver o bem emprestado”, enlao o dever é “devolver o bem emprestado”. O cumprimento dess dever sera 0 ato de devolver. A violagao desse dever sera 0 ato de nao devolver, 0 que implica a aplicagao da pena de prisio (sangdo), O dircito subjetivo é o direito reflexo do dever de devolver, isto é, 0 direito de ter 0 bem devolvido. Se o direito nao € respeitado, & porque o dever nado foi cumprido e, portanto, havera sangao. Assim, a forma de evitar asang’io é cumprir 0 dever, respeitando o direito alheio. Mas nem todo dever tem um direito a ele relativo na teoria pura. HANS KELSEN considera apenas haver direito em sentido propriamente juridico quando possibilidade de agdo para efetiva-lo: Um direito é, dessa maneira, uma norma juridica em sua relacdo com 0 individu que, para que a sancdo seja executada, deve expressar uma vontade nesse sentido. O sujeito de um direito é 0 individu cuja manifestagdo de vontade é voltada para a sangao, i.e. euja acdo judicial é uma condi¢ao da sangao™”. » Kem, ibidem, p. 142. HANS KELSEN, Teoria geral do direito..., op. cit.. p. 118. a DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO;: PERSPECTIVAS CRITICAS 2.1.6 Relagao juridica E com bas que HANS KELSEN critica 0 conceito tradicional de relagao juridica, enquanto (i) relagao entre dois sujeitos, na qual um tem um dever e outro um direito ou enquanto (ii) relacdo entre o direito e 0 dever. Para a teoria pura, nesse sentido nao ha qualquer relagdo. Nao ha relagdo entre os sujeitos nem relagdo entre direito e dever. Ha 0 dever, conduta necessdria para evitar-se a sangao. Reflexo dela ¢ o direito. Sao, no fundo, a mesma coisa observada sob dois pontos de vista diversos, e nao entes essencialmente diferentes mas relacionados: “...0 direito reflexo de um & idéntico ao dever do outro de se conduzir em face daquele de determinada maneira..."*. Para HANS KELSEN, “...0 direito reflexo é apenas o dever juridico ~ visto da posig@o daquele em face do qual o dever hi que ser cumprido. Por isso, ndo hé qualquer relagao entre um dever juridico eo direito reflero que the corresponde””. 3.1.7 Normas nao-auténomas HANS KI trata aquelas normas que prescrevem direitos e nao prescrevem sangSes como normas ndo-autdnomas, precisamente porque sao decorréncias ldgieas (deontolégicas) de outras normas que prescrevem ilicitos, sangdes ¢ © deveres juridicos. Assim, a norma que prescreve 0 direito de ter de volta o que se deu em empréstimo ¢ nao-autonoma, supérflua, porque j ja embutida na norma que prescreve a sangao pela nao devolugtio. Outra norma nio-auténoma é a norma permissiva. Normas desse tipo, para a teoria pura, “...qpenas limitam o dominio de validade de uma norma juridica que proibe essa conduta na medida em que lhe liga uma sangdo”™™. Ainda, também ¢ nio- aut6noma a norma que retira a validade de outra, norma derrogatoria de outra, porque s0 € compreensivel em face dessa outra norma. Nao-auténoma, da mesma forma, é a norma que prescreve competéncias, pois ela também, em Ultima anilise, “...qpenas determinam ax condigoes ou pressupostos da execugao das sangées penais™'. Por tim, Jo, também, normas nao-auténomas aque que prescrevem conceitos ou nterpretagdes auténticas a outras normas. Com essa justificativa, HANS KELSEN fundamenta 0 pressuposto segundo 0 qual o ordenamento juridico é uma ordem coativa de condutas humanas*: “Do que fica dito resulta que uma ordem juridica, se bem que nem todas as suas normas estatuam atos de coacdo, pode, no entanto, ser caracterizada como ordem de coagae, na medida em que todas as suas normas que ndo estatuam elas préprias um ato coercitivo ¢. por isso. ndo contenham uma prescri¢ao mas antes confiram competéncia para a produgao de normas ou conenhan uma permissao positiva, sao normas ndo-autonomas, pois apenas tém validade em ligacdo com uma norma estatuidora de um ato de cougéo”. » HANS KELSEN, Teoria pura..., op. cit., p. 178. » Idem, op. loc. cit. “ Idem, ibidem, p. 39. “ fdem, ibidem, p. 61. © Idem, ibidem, p. 62 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) coria dindmica do dircito © estudo do direito sob perspectiva dinamica implica, como dito, pesquisar como sto criadas as normas juridicas — produgio e aplicagio do direito. A’ primeira questao que HANS KELSEN enfrenta ¢ a relativa ao fandamento de validade. 2.2.1 Validade, fundamento de validade e constitucionalidade Para a teoria pura do direito, “validade” significa a vinculacdo da norma, o fato de que a norma deve ser cumprida: “Dizer que uma norma que se refere a conduta de tun individua ‘vale’ (é ‘vigente’), significa que ela é vinculativa, que o individuo se deve conduzir do modo prescrito pela norma”. Mas s6 sera valida uma norma que for criada de acordo com a forma prescrita por outra norma. Assim, s6 é valida a norma da lei, ¢. g.. porque ela foi criada da forma como a Constituigdo prevé. Uma norma que prevé como outra norma deve ser feita acaba, portanto, por fundamentar a validade dessa outra norma. Essa outra norma busca naquela primeira o seu fundamento de validade. E é justamente por isso que a norma que fundamenta a validade de outra é, na teoria pura, hierarquicamente superior a ela: porque prescreve a forma como ela devet feita: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma, Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, em confronto com uma norma que é, em relagdo a ela, norma inferior™. por isso que o sistema normativo kelseniano é uma ordem escalonada de hormas: porque uma busca em outra scu fundamento de validade ¢, ao fazé-lo, assume, em relagao a ela, posi¢o hierirquica inferior Toda norma, para a teoria pura, criada de acordo com o prescrito na norma superior, é valida. E, se nao o for, sequer existe enquanto norma. Por isso é que HANS KELSEN identifica existéncia com validade. Se a norma nao foi criada pelo drgio competente para tal, sequer norma é. Se for, é norma valida: “a validade ndo é propriedade de uma norma, mas sua existéncia, sua existéncia ideal e especifica. Uma norma que ‘vale’ siginifica uma norma que existe. Uma norma que ndo vale significa uma norma que nado existe. Uma norma ndo-valida @ uma norma inexistente, portanto nenhuma norma’, Por isso a teoria pura rejcita a existéncia de leis inconstitucionais. Se a lei foi criada de acordo com o processo previsto na Constituigdo, ¢ lei valida. Caso contrario, nem lei é. Assim, di e que uma lei ¢ inconstitucional nada mais significa do que dizer que essa lei pode ser retirada do sistema por outro procedimento que niio a revogacao: 0 controle de constitucionalidade™. Jdem, ibidem.. p. 205. Jem, op. loc. cit ®’ HANS KELSEN © ULRICH KLUG, Normas juridicas ¢ andlise légica. Trad, Paulo Bonavides. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p, 63. O livro reine correspondéncia trocada entre HANS KELSEN ¢ ULRICH KLUG, acerca de varias questOes de Teoria Geral do Direito e de Logica Juridica, Cf, também, HANS KELSEN, Teoria geral do direito.... op. cit. p. 43 ¢ Teoria geral das normas, op. cit. p. 3-4. “Cf. Teoria pura... op. cit, p. 286 DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 157 2.2.2 Norma fundamental Percorrendo esse sistema de cima para baixo, chegamos a um ponto final: a norma que é feita por ultimo, e que, com base nela, nenhuma outra é criada. Essa é a norma inferior a todas as outras, a ultima. Mas, se percorrermos caminho inverso, isto ¢. indo da norma inferior 4 norma superior, percebemos que falta um ponto final, Se uma norma so é valida porque é feita da forma como outra norma superior prescreve, nado ha como dizermos que a norma hicrarquicamente mais alta, a primeira (a Constituigho, ¢. g) & valida, porque nao ha outra norma acima dela na qual ela possa buscar fundamento. HANS KELSEN contorna esse problema pressupondo uma primeira norma que fundamente a validade da norma superior’: “Mas a indagagao do fundamento de validade de uma norma néo pode, tal como a investigacao da causa de um determinado efeito, perder-se no interminavel. Tem de terminar numa norma que se pressupde como a tiltima © mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que ndo pode ser posta por uma autoridade, cuja competoneia teria de se fundar numa norma ainda mais elevada ... Tal norma, pressuposta como « prais clevada, serd aqui designada como norma fundamental /Grundnorm)”. Assim, € a norma fundamental, obtida no plano epistémico, que justifica a validade das demais normas do sistema. Validade enquanto conceito juridico-positivo- formal, entenda-se. HANS KELSEN mesmo adverte™*: Se a questao do fuundamento de validade do Direito positive, isto 6, a quesido de saber por que as normas de uma ordem coercitiva eficaz devem ser aplicadas ¢ observadas, visa uma justificacao Gtico-politica desta ordem coercitiva, ou seja, visa um criteria firme segundo 0 qual uma ordem juridica positiva passa ser julgada justa e, por isso. viilida, on injusta e, por isso, nao valida, entéo deve dizer-se que a norma fundamental determinada pela Teoria Pura do Direito nao realiza uma tal justificagdo, nao fornece um tal critério™. 2.2.3 Sistema dindmico Aqui esta um dos pontos mais combatidos da teoria pura. Para HANS KELSEN, © sistema juridico é essencialmente dindmico e nao estatico. HANS KELSEN chama itico um sistema que tem normas que derivam de outras em razao de seu contetdo, uma de outra, até chegar em uma norma tltima cujo contetido, isto é, a conduta prescrita, € por si s6 evidente ¢ inquestionavel. Imaginemos, e. g.. uma norma religiosa que prescreva que devemos perdoar aqueles que nos magoam. Se alguém perguntar qual o fundamento de validade dessa norma, a ele " Idem, ibidem, p. 206-207, * Idem. ibidem, p. 235. 158 Silvana Maria Carbonera e Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) poderemos dizer: porque devemos amar os nossos inimigos assim como amamos aqueles que nos fazem 0 bem. Isso, se formos mais além, porque devemos amarmos uns aos outros. Mas, se perguntarmos por que devemos amarmos uns aos outros, a resposta sera: porque si Essa conduta, na religido e na moral crista, ¢ imposta de modo evidente e inquestionavel, nao pela autoridade de seu editor (Jesus Cristo), mas pelo seu proprio contetido, com o qual todos os cristaos devem estar concordes, sob pena de cristios ndo serem. O mais importante, contudo, estd nesse ponto: da norma “amai-vos UNS aos outros podemos deduzir, via légico-dedutiva, a norma “amai os vossos inimigos”, da qual poder nos, também por via légico-dedutiva, obter a norma “perdoai os vossos inimigos”. A norma “amai-Vvos uns aos outros” sera uma norma fundamental de um sistema estatico, que fundamenta a validade das demais em razio de seu contetido evidente e inquestionavel. Mas HANS KELSEN rejeita que possa haver uma norma de contetido evidente, porque isso sé seria possivel se essa norma fosse obtida da razio. Isso nao é possivel porque, para a teoria pura, a razio pode apenas conhecer, mas jamais a razio pode querer. Como a norma, na teoria pura, € sempre um ato de querer, um ato de vontade, deriva que nao pode ser um ato de razio”: “O conceito de uma norma de imediatamente evidente pressupde o conceito de uma razdo pratica, quer dizer, de uma razdo legisladora; ¢ este conceito & ... insustentével, pois a funcao da razao é conhecer e nao querer. ¢ 0 estabelecimento de normas é wn ato de vontade. Por isso, ndo pode haver qualquer norma imediatamente evidente™. Assim, nao € imediatamente evidente nem a norma que manda amar, nem a norma que manda odiar; nem a norma que prescreve salvar, nem a norma que prescreve matar; nem a norma que obriga a falar a verdade, nem a norma que obriga a mentir; nem a norma que proibe o roubo, nem a norma que proibe voto etc Ja o sistema dindmico fundamenta a validade de uma norma em outra nao em razao do contetido (a conduta prescrita), mas em razao da competéncia do editor da norma. A norma superior determina apenas quem pode eriar e como pode ser criada outra norma, Para a teoria pura, o sistema juridico é essencialmente de carater dinamico. Por isso, uma norma é valida na medida em que for editada pela pessoa que outra norma qualificou como competente para edita-la, desde que realizado 0 procedimento eventualmente prescrito nessa outra norma. Desde que a norma seja feita pela autoridade competente, de acordo com 0 processo legalmente estatuido, sera uma norma vali isto ¢, de obediéncia obrigatéria. Na concepgio de HANS KELSEN, “uma norma juridica nao vale porque tem un deter neta contetido ... mas porque é criada de uma forma determinada™. Ea norma que fixa, primeiramente, a forma como outras normas serio feitas, busca seu fundamento na norma fundamental. Nesse sentido, explica HANS KELSEN, todo e qualquer contetdo pode ser Direito. Nao hi qualquer conduta humana que, enquanto tal, por forga de seu contetido, esteja excluida de ser contetido de'uma norma juridica™ * Idem, ibidem, p. 208. * Idem, ibidem, p. 210. C uintes, “Teoria pura... op. cil, p. 210. mbém, HANS KELS ‘coria geral do direito..., op. cit., p. 163 DIREITO MODERNO E CONTEMPORANEO: PERSPECTIVAS CRITICAS 159 2.2.4 Conflito de normas: 0 conteido Admite, a teoria pura, que todo © qualquer contetido pode ser direito, portanto. Mas isso nao significa que, se um determinado contetido foi estabelecido em norma superior, qualquer outro possa ser estabelecido em norma inferior. O contetdo imanente ao sistema, ndo outro externo, é determinante. HANS KELSEN traz um exemplo: “Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida ¢ outra norma detremina também como devida uma outra conduta, inconcilidvel com aquela”®, Num primeiro estagio, a teoria pura afirma que, quando duas normas entram em conflito, “...somente uma delas pode ser tida como objetivamente valida”. Nesse caso, ou & dado ao aplicador (juiz, e.g.) a possibilidade de escolher entre elas, ou o conflito € apenas parcial. Tanto em um quanto em outro caso ha solugiio. Se nenhuma dessas solugdes forem possivel, hd um sem-sentido de6ntico e a norma, muito embora tenha sido emitida de acordo com a norma fundamental, muito embora tenha sido criada pela pessoa competente € segundo o processo previsto, nado é norma juridica valida, Nesse caso, aduz HANS KELSEN, “....d0 existe qualquer norma juridica objetivamente valida. Isto, embora tenha sido posto em harmonia com a norma fundamental, Com efeito, a norma fundamental nao empresta a todo e qualquer ato 0 sentido objetivo de, wma norma valida, mas apenas ao ato que tem um sentido...”". Logo, € isso & pouco « ressaltado entre os comentadores da teoria pura, o que define a validade nao € apenas o carater formal, que é amplamente predominante, mas o conteiido também, embora em casos restritos, pode determinar a validade. 5 Validade ¢ eficacia Outro ponto fregiientemente combatido da teoria pura do direito diz respeito a relagdo entre eficacia e validade. Validade ¢, para a teoria pura, a existéncia da norma enquanto tal: uma yez criada de acordo com os procedimentos para criagéo de uma norma, a norma existe ¢ ¢ portanto, valida, Eficacia, na teoria pura, ¢ a efetiva observancia da norma por seus destinatarios. Aduz HANS KELSEN que a determinagao correta entre validade e eficdcia *...6 um dos problemas mais importantes e ao mesmo tempo mais dificeis de uma teoria juridica positivista. E. apenas um caso especial da relagdo entre o dever-ser da norma juridica e 0 ser da realidade natural” um meio termo entre as teorias idealistas, segundo as quais a validade independe totalmente da eficacia, de modo que sera valida uma norma ainda que absolutamente ineficaz, ¢ as teorias realistas, segundo as quais a validade depende totalmente da eficacia, de modo que sé sera vélida uma norma completamente eficaz. Em sua concepg’o, um minimo de eficacia é condigao de validade, mas nao é a propria validade: A teoria pura pretende- “Uma condigao ndo pode identificar-se com aquilo que condiciona, Assim, um homem, para viver, tem de nascer: mas para permanecer com vida, outras condicoes tém ainda de ser ® dem, ibidem, p. 220. ® Idem, op. loc. ¢ * Idem, ibidem, p. 222. ® Idem, ibidem, p. 226. 160 Silvana Maria Carbonera ¢ Paulo Ricardo Opuscka (Organizadores) preenchidas, p. ex., tem de receber alimento. Se esta condigdo nao é satisfeita, perde a vida, A vida, porém, nao se identifica nem com o fato de nascer nem com o fato dle receber alimento™. c validade™* nclui: “A eficdcia é uma condicdo de validade, mas ndo é esta mesma 2.2.6 Criagio, aplicagdo ¢ observancia do direito Criar direito € criar norma juridica. Como toda norma é produzida mediante 0 processo descrito em outras normas, criar uma norma é aplicar essas outras normas. O sujeito que cria uma norma o faz aplicando a norma que Ihe da competéncia para produzir normas. Nesse sentido, ensina HANS KELSEN, “a criagao de Direito é sempre a aplicagdo de Direito”*. Eo inverso também € verdadeiro: a aplicagdo do direito & sempre a criagdo de nova norma; aplicar o direito é criar direito. Jé observar o dircito € realizar a conduta oposta aquela pressuposto da sang’o e, como visto, so implica a aplicagaio do direito se for a conduta de um érgao criador do direito. Caso contrario, é mera observancia’’. Uma unica norma ¢ criada, contudo, sem que seja por aplicagdo de outra: a primeira norma de uma série, a norma hierarquicamente superior no sistema, E ha ato: Juridicos, praticados por agentes juridicamente competentes, que nao implicam criagdo de norma: ¢ a execugdo de atos de sangao", E por isso que a decisio judicial, para a teoria pura, tem carater constitutivo. Uma vez que aplica o direito é, também, criacao do direito. E 0 que observa HANS KELSEN, que, alias, foi magistrado: “A fungdo do tribunal ndo é simples ‘descoberta* do Direito ou juris- dig do" (‘declaragao' do Direito) neste sentido declaratério™', Para compreender isso, avancemos ao ultimo ponto do qual pretendemos tratar, dentre numerosos outros que tivemos que deixar de lado: a hermenéutica kelseniana. 2.3 Hermenéutica Outro ponto altamente polémico da teoria pura é sua proposta para explicar a interpretagao do direito, em seu famoso Capitulo VIII. Interpretar, para HANS KELSEN, & “..fitar 0 sentido das normas...”, compreender ¢, portanto, determinar 0 sentido das normas juridicas””. Esse sentido deve ser fixado porque uma norma pode ser entendida em mais de um sentido. Isso ocorre por dois motives nao excludentes: (i) porque a norma pode deixar, propositalmente, uma margem interpretativa ou (ii) porque, em razio de contingéncias lingiiisticas, admite mais de uma possibilidade de interpretagao. Sendo assim, 0 direito forma uma moldura dentro da qual cabem varias possibilidades de interpretagao. “ Idem, ibidem, p. 230. * Idem, ibidem, p. 231. Cf., também, HANS KELSEN, Teoria geral do ® Teoria geral do direito.... op. cif, p. 193. " Cf HANS KELSEN, Teoria geral das normas, op. cit., p.4¢ 57. “Cf HANS KELSEN, Teoria pura.... op. cit, p. 254. © Kem, ibidem, p. 256-257. © Idem. ibidem, p. 363. (0... Op. Cit., p. 58. DIREITO MODERNO E CONTEMPORAN 161 HO: PERSPECTIVAS CRITI Entao, interpretar, para a teoria pura, &€ compreender e possibilidades. Determinar quais sio os varios sentidos po: hermenéutica. Preste-se atencdo a passagem seguinte™*: sas miltiplas a tarefa “Se por ‘interpretagiio' se entende a fixagdo por via cognoscitiva do sentide do. objeto a imerpretar, 0 resultado de uma interpretacao 6 pode ser a fixacdo da moldura que representa 0 Dircito a imerpretar ¢, conseqiientemente, 0 conkecimento das varias possibilidades que dentro dessa moldura existem. Sendo assim, a imerpretagdo de uma lei ndo deve necessariamente conduzir a uma tinica solucdo como sendo a tinica correta, mas possivelmente a virias solucbes que — na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar ~ tem igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positive no ato do éreao aplicador do Direito ~ no ato do tribunal, especialmente” Aqui entra a distingao entre interpretagdo auténtica e interpretagao nao auténtica. Interpretar € fixar as possibilidades de sentido. Isso todos aqueles que tratam com o direito o fazem, inclusive a Ciéncia do Direito, mas também os aplicadores do direito os Orgdos competentes para tal. Mas esses dio um passo adiante: nao apenas, compreendem as varias possibilidades, mas, por dever de oficio, elegem uma delas ao aplicar a norma, Para HANS KELSEN, essa opcao por uma dentre as varia possibilidades nao ¢, contudo, um ato de conhecimento. E um ato de vontade. Ato de conhecimento é, ao interpretar, entender as varias possibilidades de sentido. Escolher uma delas para a norma que ird criar é ato de vontade do agente competente, Esta diltima & a interpretagdo auténtica, porque cria direito na norma aplicada. As demais sao interpretagdes nao auténticas. Assim, a doutrina ¢ os 6rgdos aplicadores interpretam, ao fixarem o sentido das varias possibilidades dentro da moldura da norma, em atos de cognicao. Mas 0s rgdos aplicadores, ¢ apenas eles, além disso, também criam diteito, ao optarem por uma dessas possibilidades no ato de aplicagao ¢ criagdo do direito. E é esse um ato de vontade, nao de cognigao. REFERENCIAS KELSEN, Hans. A democraceia. Trad. Ivone Castilho Benedetti ¢ outros. 2. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2000 . A ilusio da justiga. Trad. Sergio Tellaroli. 3. ed. $ Fontes, 2000 0 Paulo: Martins .O problema da justiga. Trad, Jodo Baptista Machado, 3, ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1998 » Idem, ibidem, p. 366. 162 Silvana Maria Carbonera ¢ Paulo Ricardo Opuszka (Organizadores) ____, O que 6 justiga? A justica, o direito e politica no espelho da ciéneia. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2001 Teoria comunista del derecho y del estado. Trad. Afredo J. Weiss. emet Buenos Aire: coria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte, Porto Alegre: abris, 1986 __. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. 2. tir, Sao Paulo: Martins Fontes, 2000 . Teoria pura do direito, Trad. Jodo Baptista Machado. 2. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1987 KELSEN, Hans; KLUG, Ulrich, Normas juridicas ¢ andlise logica. Trad, Paulo Bonavides. Rio de Janeiro: Forense, 1984 Sergio Antonio

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