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O princípio da legalidade

A legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a


observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em
consonância estrita com o direito estabelecido. Ou em outras palavras
traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de
conformidade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a
acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula.

Cumpre, pois discernir no termo legalidade aquilo que exprime


inteira conformidade com a ordem jurídica vigente.

A legalidade supõe, por conseguinte, o livre e desembaraçado


mecanismo das instituições e dos atos da autoridade, movendo-se em
consonância com os preceitos jurídicos vigentes ou respeitando
rigorosamente a hierarquia das normas, que vão dos regulamentos,
decretos e leis ordinárias até a lei máxima e superior, que é
a Constituição.
2. Como se formou o princípio da legalidade e a espécie de
legitimidade que esse princípio procurou estabelecer
O princípio de legalidade nasceu do anseio de estabelecer na
sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da
razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e
imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um
estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder,
evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a
suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha
dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus
solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram
previamente elaboradas nem reconhecidas.
Sua explicitação política se fez por via revolucionária, quando a
legalidade se converteu em matéria constitucional.

Enfim, o princípio da legalidade atende aquele ideal jeffersoniano de


estabelecer um governo da lei em substituição do governo dos
homens e de certo modo reproduz também aquela máxima de
Michelet sobre “o governo do homem por si mesmo”, ou seja, le
gouvernement de l’homme par lui même.
3. A crise histórica da legalidade e legitimidade do poder
São quatro os dados que se nos afiguram altamente elucidativos e
indispensáveis para a consideração da legalidade e legitimidade como
temas da teoria política: o histórico, o filosófico, o sociológico e o
jurídico.

A cisão legalidade e legitimidade tornou-se patente ao pensamento


europeu desde 1815, quando se fez vivo e agudo, conforme lembra
aquele jurista, o antagonismo que a França monárquica passou a
testemunhar entre a legitimidade histórica de uma dinastia
restaurada e a legalidade vigente do Código napoleônico.

A corrente racionalista proveniente da Revolução Francesa, que


transitara do racionalismo filosófico, abstrato e jusnaturalista para o
racionalismo positivista, empírico e relativista operou uma sutil
transposição de termos, fazendo toda a legitimidade repousar
doravante na legalidade e não como dantes a legalidade na
legitimidade. A lei, segundo a expectativa confiante do século,
representava o máximo poder da Razão emancipadora. Os juristas de
índole liberal fazem-lhe o culto do antipaternalismo, da fé mais
ardente na sua capacidade de exprimir o princípio civilizador, o
governo do homem por si, como refere Michelet, citado por Schmitt.
Com o Manifesto de Marx e os desenvolvimentos ulteriores da
teorização de Lênin, Trotski e Lukács, a lei, que fora o Coroamento
doutrinário do racionalismo europeu, aparece agora degradada a
instrumento da sociedade de classes, como a superestrutura social da
opressão burguesa, como órgão de permanência dos privilégios
econômicos, não sendo bons revolucionários, segundo o conselho de
Lênin, reproduzido por Schmitt, aqueles que não souberem unir os
meios ilegais de luta a todas as formas legais de tomada do poder.

Despreza-se a lei como fim e dela se serve como meio. A legitimidade


do ordenamento jurídico burguês é atacada a fundo nessa tomada de
posição dos pensadores revolucionários marxistas, que alargam cada
vez mais o hiato separando a legalidade da legitimidade, cuja ruptura
tem exemplos de antecedência histórica na polêmica dos liberais com
os tradicionalistas conservadores do século XIX.

Durante o nacional-socialismo a crise chega ao máximo grau de


intensidade. Aqui temos concretizado o exemplo histórico supremo
de uma corrente de opinião, de uma ideologia, de um partido político,
cujos chefes, sem quebra da legalidade, tomaram o poder à sombra
do regime estabelecido e dele se serviram do modo que se nos afigura
mais ominoso em toda a história do gênero humano, e cuja
legitimidade, vista ou apreciada pelos critérios do racionalismo
imperante na doutrina jurídica dos movimentos liberais e positivistas
do século XIX, pareceria irrepreensível. O mesmo se passou na
Tchecoslováquia com a tomada do poder por uma revolução
aparentemente pacífica, de teor parlamentar, que instaurou ali a nova
legalidade proletária.

4. A consideração filosófica do problema da legitimidade


Exemplos como àqueles que acabamos de citar nos convidam de
imediato a retomar o problema mediante um segundo ponto de
partida: o filosófico.

A legitimidade assim considerada não responde aos fatos, à ordem


estabelecida, aos dados correntes da vida política e social, segundo o
mecanismo em que estes se desenrolam — o que seria já do âmbito da
legalidade — mas inquire acerca dos preceitos fundamentais que
justificam ou invalidam a existência do título e do exercício do poder,
da regra moral, mediante a qual se há de mover o poder dos
governantes para receber e merecer o assentimento dos governados.

Formula-se determinada doutrina acerca do fundamento do poder e


da obediência, e, mediante o critério perfilhado nessa doutrina,
mede-se a seguir a legitimidade de uma ordem política qualquer, seu
teor de veracidade ou erro, que há de variar consoante a tábua dos
valores estabelecidos subjetivamente. Busca-se então menos o poder
que é do que propriamente o poder que deveria ser.
5. Os fundamentos sociológicos da legitimidade
O conceito de legitimidade expresso por Vedei, segundo o qual
“chama-se princípio de legitimidade o fundamento do poder numa
determinada sociedade, a regra em virtude da qual se julga que um
poder deve ou não ser obedecido” nos leva assim sem nenhuma
intermitência à compreensão sociológica do termo.

A esse respeito, vale ressaltar a importância que tem o entendimento


sociológico da legitimidade, a qual implica sempre numa teoria
dominante do poder. Suscitando o problema da autoridade, em
termos sociológicos, distingue Max Weber, conforme veremos três
formas básicas de manifestação da legitimidade, que são capitais para
a explicação de todos os fenômenos do poder observados em
qualquer tipo de organização social: a carismática, a tradicional e a
legal ou racional.

6. O aspecto jurídico da legitimidade


Ultimando a transição do sociológico ao jurídico, Carl Schmitt, o mais
conspícuo jurista da Alemanha comprometida com o nacional-
socialismo, intenta demonstrar que a posse do poder legal em termos
de legitimidade requer sempre uma presunção de juridicidade, de
exequibilidade e obediência condicional e de preenchimento de
cláusulas gerais, cuja importância prática e teórica não deve ser
ignorada pela teoria constitucional nem pela filosofia do direito, visto
que tanto servem de critério de controle da constitucionalidade da
legislação como de ponto de partida a uma doutrina do direito de
resistência.

Quanto ao poder de fato, o poder revolucionário, o poder que emerge


das crises ou rupturas violentas da ordem legal vigente, a doutrina de
Hauriou conserva o mesmo caráter jurídico formal, recusando a esses
poderes legitimidade, que só se adquire eventualmente na medida em
que os mesmos, uma vez estabelecidos, façam “a autoridade e a
competência prevalecerem sobre o poder de dominação”. A
observância e adoção da ordem jurídica é a via aberta para a
legitimação dos governos ou poderes de fato.
7. A legitimidade no exercício do poder
A legitimidade abrange por último, duas categorias de problemas
distintas. O primeiro problema se relaciona com a necessidade e a
finalidade mesma do poder político que se exerce na sociedade
através principalmente de uma obediência consentida e espontânea, e
não apenas em virtude da compulsão efetiva ou potencial de que
dispõe o Estado — instrumento máximo de institucionalização de
todo o poder político.

Vista debaixo desse aspecto, a legitimidade do poder só aparece


contestada nas doutrinas anárquicas, nomeadamente no marxismo,
ao passo que as demais escolas conhecidas se empenham em dar-lhe
por fundamento ora os impulsos naturais, orgânicos e biológicos do
homem, ora o consentimento livremente expresso por uma
associação de vontades, como nas teorias do contrato social,
reconhecendo-se em qualquer das últimas posições mencionadas, por
legítima, a existência na sociedade de um poder político imposto às
vontades individuais.

Se a existência do poder político na sociedade se acha legitimada com


rara ou nenhuma discrepância (sendo a única exceção a dos
anarquistas) o problema da legitimidade, ao contrário, se complica
quando a questão versada entra a ser a do exercício legítimo do
poder.

Trata-se aqui de indicar o fundamento de legitimidade do governo ou


dos governantes, manifestado como um dado histórico e relativo,
consoante às doutrinas ou às crenças geralmente aceitas e que lhes
servem de esteio, modificáveis conforme a época ou o país.

Via de regra, os governos que nascem das situações revolucionárias,


dos golpes de Estado, das conspirações triunfantes, são governos
ilegais, mas eventualmente legítimos, se abraçados logo pelo
sentimento nacional de aprovação ao exercício do seu poder.
Confirmada a viabilidade desses governos, a legitimidade fundará
então com o tempo a nova legalidade. E esta há de perdurar,
conciliada no binômio legalidade-legitimidade, até que ulteriores
comoções da consciência nacional tragam com a intervenção súbita
de crises imprevistas e profundas para a conservação do poder a
perda do equilíbrio político dos sistemas legais e sua consequente
destruição.

8. A legalidade e legitimidade do poder como temas da


ciência política
O espinhoso tema legalidade e legitimidade do poder político abrange
uma literatura jurídica diminuta, apesar de tratar-se de matéria
controvertida, que sempre reponta na consciência dos legisladores,
dos políticos e dos pensadores sociais nas horas de crise do poder,
quando se abre o inquérito das revoluções, das ditaduras e dos golpes
de Estado, quando se questiona acerca de estremecimentos no
princípio de autoridade, de quebra e afrouxamento dos laços de
obediência que prendem os governados aos governantes.

Dos escritos mais antigos ainda conserva algum interesse nos dias
presentes o de autoria de Benjamin Constant sobre o espírito de
conquista e usurpação e mais alguns discursos políticos de Wilson,
quando o Presidente dos Estados Unidos sustentou a doutrina
americana da legitimidade democrática.

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