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UM INOCENTE PRESENTE

QUESTÕES

1. Sobre o texto “O Ensaio Sobre a Dádiva - Forma e Razão da Troca nas Sociedades
Arcaicas” de Marcel Mauss, podemos dizer que os sistemas de trocas (dádivas),
composta pela tríade “dar, receber e retribuir” constituem, independente dos tempos
históricos o elementar das sociedades. Explique a tríade acima dando ênfase à tríade
“dar, receber e retribuir”.
2. No texto “A Expressão Obrigatória dos Sentimentos (Rituais Orais Funerários
Australianos)” Mauss afirma que todos os tipos de expressões orais dos sentimentos
são não apenas fenômenos psicológicos e fisiológicos, mas fenômenos essencialmente
sociais marcados pela obrigatoriedade e não-espontaneidade (MAUSS, p. 326).
Apresente os principais argumentos que sustentam essa tese apresentada por Mauss.
3. Claude Lévi-Strauss define “Natureza e Cultura” da seguinte forma: “Estabeleçamos,
pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem da natureza e se
caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto está ligado a uma norma pertence
à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular” (p. 47). Desenvolva a
argumentação da universalidade da natureza e particularidade da cultura.

RESPOSTAS

“A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.”

- Hannah Arendt

“Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato,
mais vale ainda aceitar o mito sobre os Deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos
estoicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os Deuses através das
honras que nós lhes rendemos, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade
inexorável.”

- Epicuro, Doutrinas e Máximas

“É útil que existam Deuses e, por isso, cremos que existem.”


- Ovídio, A Arte de Amar

1. O desenvolvimento mais pleno da obra de Mauss não foi feito pelos três de seus ex-alunos,
que vieram a ser os pais do estruturalismo francês em Antropologia, a dizer, Georges
Dumézil, Louis Dumont e o infame Claude Lévi-Strauss, mas sim do maligno, brutalista e
coprolálico Georges Bataille (e por segundo, Roger Callois), o linguarudo mais sujo e mais
escarificado, cuja purificação vem da escareação e acupuntura sádica de partes íntimas. Junto
com Carl Einstein e Michel Leiris, ele fundou uma etnologia surrealista e erótica que irá
muito além do senso comum descrito por Karl Popper que tende a afirmar “que todo evento é
causado por um evento que o precede, de modo que se poderia predizer ou explicar qualquer
evento.” Diferente de Strauss, cujo pessimismo quanto as trocas supõe um aumento das
desigualdades proporcional ao aumento das trocas ser infundado seja na economia (basta ver
as obras de economistas como Michael Hudson, Joseph Stiglitz, Gerald Epstein e tantos
outros, ou até mesmo David Ricardo e Adam Smith, liberais avarentos), seja nas culturas,
Bataille reconhece a herança de seu mestre espiritual, que concebeu o ser humano como um
ser fisiopsicossocial, que a natureza do dom e da dádiva jamais é a aquisição, mas a perca, a
escassez. Vide a magnífica obra de Ladislau Dowbor, A Era do Capital Improdutivo, e verás
que a literatura antropológica, psicológica, artística (com exceção de Ginzburg e Elias, dentre
outros) não se apropriou da diferença entre renda, que resulta de aportes produtivos, e renta,
que é um rendimento de transferência, ganho sobre o que outra pessoa perde, o chamado
rendimento de soma-zero. Bataille expõe muito bem essa problemática, que Strauss jamais
expôs por ter se atrasado no tempo um século (e um século do ego, digamos, assim como
Malinowski, que focaram na teoria da fantasia de Freud com suas pré-conclusões de Totem e
Tabu sobre o amor e ódio que a criança nutre por seus pais de forma edipiana - ora, a criança
destila ódio como um barril de vinho-sangue furado para todo sujeito que ele não conseguir
absorver o que ele idealizou para ser feito, é isso o que cria o autodidata, menos ela não ser
capaz de conviver com colegas e o professor em sala de aula em termos de ódio e amor
derivados da teoria do ressentimento de Nietzsche e mais o fato de que, para ensinar, ela
possui maior vocação para tal do que o próprio professor quando o alvo é ela mesma. Sozinha
e sem a intervenção do professor, há maior concentração e paz para que ela aprenda, assim
como a mãe e pai, sem serem intérpretes de seus papéis estereotipados e usuais, ela própria
ter maior vocação para interpretá-los consigo mesma). Em A Parte Maldita, seu trabalho
mais maussiano, ele deixa claro que toda forma de dar, receber e retribuir não gera
compensações econômicas que surjam novas obras, mas apenas riqueza econômica, sequer
riqueza numismática de valores, riqueza onomástica cultural, e está longe de gerar riqueza
material também, porque não geram produtos, não há produção. As trocas primitivas e civis -
essa diferenciação é apenas convenção, não cedimento ao evolucionismo -, não podem criar
produtos, pois não geram consumo nem utilidade social, mas signos, significantes e
significados mágicos, divinos e espirituais. Graças a eles, não houve transição do primitivo à
civilização há não ser em termos estéticos, e tudo o que escrevermos sobre terá de ser em
termos estéticos, não essenciais, pois a máscara tribal continuou a ser vestida pela civilização,
mas não mais em porcelana, cerâmica, madeira da árvore do ramo dourado, e por mais
inesperado e chocante que seja, não é mais artificial, e sim mais próxima ao natural: são
personas faciais esculpidas pelos micrófagos e macrófagos celulares, a carne roedora de si
mesma, autossemelhante e autofágica como nos fractais de Mandelbrot e os conjuntos de
Julia. Assim sendo, embora por muito tempo possamos pensar que o ser humano constitua a
exceção nos seres vivos que constroem obras a partir de seus próprios fluídos, como as
abelhas mendevilleanas, são as máscaras, as personas que eles produzem a partir de sua
própria matéria prima bruta.
Como escreve o próprio Mauss: “A produção dos objetos kula, os vaygu’a, não parece ser
tão relevante quanto sua troca.” Se para Strauss é o tabu do incesto que é universal (um
absurdo, lógico, e não no sentido existencialista, e sim no literal) para Mauss é a mana, o que
é mais coerente que o primeiro. Ela é a força motriz que move todas as relações materiais,
por uma subjetivação espiritual que enriquece a matéria, a animaliza, a energiza, a move, a
faz interagir com as demais forças sem ser uma transparência invisível ectoplasmática que
tudo atravessa sem sabor e sem sensibilidade. O cobre, a exemplo, não é propriedade do
chefe, mas sua composição: ele mesmo é um cobre quebrado, os cobres são o seu espírito.
Por sua vez, um cobre que já foi destruído e depois reconstruído, isto é, já passou por vários
potlatch, tem mais valor. Bom, esta última asserção é contestável no mesmo nível que as
interpretações que James Frazer fez foram questionáveis para Ludwig Wittgenstein. Porém, a
tríade da dádiva favorece a suposta universalidade da mana (universalidade é um termo tão
pejorativo que é melhor evitá-lo o quanto for possível) porque esses três atos não aspiram
senão a construção como verbo móvel, jamais substantivo estático, e se ele precisar destruir
todos os constructos da tribo apenas porque todas as formas de construir possíveis já foram
atingidas, o que constitui obstáculo para novas construções, tanto pela criatividade artística
quanto pela ultrapopulação de concreto, ela irá prosseguir inesitantemente. A arquitetura
brutalista é predominante nesses momentos de crise da dádiva, quando ela atinge seu ponto
de equilíbrio máximo. Não é crível, contudo, a intuição que Mauss avantaja de Durkheim que
a economia tribal e civil são regidas pela religião ou por mecanismos espirituais. Ouso
afirmar que é a própria dádiva agindo como mecanismo de subjetivação no sentido
foucaultiano e não como mecanismo espiritual: o sujeito sente-se, sim, possuído, mas no
sentido que ele outorga a palavra do que o atravessa através das relações da dádiva. É assim
que fundam-se as economias em que a palavra é absoluta, ou seja, por meio de um dom
alienável, dentro do marxismo, o capital da moeda que se generaliza, e dentro das sociedades
tribais, através da moeda hierárquica. Trata-se e necessariamente deve se tratar de um bem
que seja comum a todos, como o ar, a água, recursos naturais que compõem o corpo humano
e ganham aspecto antropomórfico através de discursos, normalmente demagogos, de quem
mais diz a palavra da natureza. Isso, contudo, foge ao pessimismo de Strauss e de Mauss, e
entra no pessimismo - que eu diria ser um caos, e não pessimismo propriamente - de Bataille,
em que as próprias noções de humanidade entram em desacordo com suas condutas através
de ações desumanas, e suas características naturais se fragmentam afim de poderem viver
seus próprios modos de vida que sejam harmônicos à sua ontogenia, como os modelos
centrífugos propostos por Pierre Clastres. E mais uma vez, são negociados e conquistados os
recursos humanos e desumanos que surgem dos humanos que assim se dispersam de seus
centros para ora organizações concêntricas, ora organizações tão independentes quanto um
soliton no oceano que viola as regras da hidrofísica teórica.

2. A antropologia será uma ciência falha até que defina exatamente o que é o ser humano. A
ignorância em fisiologia de Strauss e neurocitologia dos adeptos da antropologia cognitivista
vos impedirá eternamente disso. Eles buscam nos lugares errados com as ideias erradas em
mente. Com o financiamento de George Bush ao Projeto Genoma Humano, de Francis
Collins, eles esboçaram um sorriso que rapidamente teve de ser disfarçado pelas mãos suas
decepções. A catalogação de todos os genes humanos não respondeu o que é o humano, e
quantitativamente, não demonstrou a superioridade nossa frente a outros animais,
especialmente os de aparelho neurocerebral menor em tamanho ao nosso. Aliás, um
organismo como um grão de arroz possui mais complexidade e variedade genética que nós. O
DNA não possui a especialidade de variar nem especificar o número de brônquios,
bronquíolos, alvéolos, fibras, válvulas, nódulos, tecido nervoso, adiposo, circunvoluído, mas
pode apenas especificar um conjunto de repetições de bifurcações e descontinuidades, afinal
é essa sua natureza, a de um cristal aperiódico de ligações em hélice descontínuas e apenas
com semelhança, jamais identicamente. Se nós considerarmos a raiz etimológica de humano
obtemos a resposta que a antropologia precisa para ser uma ciência do ser humano válida:
húmus, da terra. Nada nasce da terra, mas sim nasce sobre a terra. Não somos as mitocôndrias
que respiram por nós, mas sim temos as mitocôndrias; não somos os núcleos genéticos do
nosso corpo que regulam ou desregulam as plaquetas de hemoglobina ou os linfócitos através
da acidez do organismo e que confere parte de nossa pigmentação, que é homogênea
interiormente, mas nós as temos. Elas fazem muito por nós e nos regulam assim como a
floresta regula o solo antes estéril, porém nós a temos, não a somos. O humano é um termo de
convenção para o solo mais fértil e florido que já existiu, onde invés de nascer frutas e flores,
nasceram olhos, corações, vértebras, colunas e costelas e mais costelas envoltas por carne: ele
é um jardim flanador da vida em seu progresso caótico máximo. Se você estiver a par dos
progressos científicos em ecologia, simbiose, espagíria, geografia, sistemas dinâmicos e
não-lineares, ou ao menos ergódicos que regem os órgãos vitais dos corpos dos seres vivos, e
possuir uma visão crítica deles que enriqueça a matéria, e não a reduza a desequilíbrios
químicos, endócrinos e hormonais que as tornam paupérrima, estará ciente disso. Na verdade,
nós sempre estamos em desequilíbrio, e recorrer ao atraso freudiano do mal estar da
sociedade ou à química mental behaviorista ou cognitivista de associar o desequilíbrio às
patologias, delírios, alucinações, mitos, barbáries, atrocidades é como uma hachura
desnorteada invés de uma pincelada precisa na questão real: a única vez na vida em que
atingimos o equilíbrio é na morte. Se quiseres associar o desequilíbrio à doença, ao
transtorno, ótimo, mas entras na encurralada de ter de admitir que todas as vidas são, por
pressuposto, doenças, não saúdes.
Mauss, ao defini-lo como um ser fisiopsicossocial, acertara perfeitamente e incrivelmente
como um jogador de golfe que golfeia a distância consideravelmente larga a bola e acerta o
buraco desejado, entretanto, ele se equivoca em imaginar que a suposta não-espontaneidade e
obrigatoriedade dos sentimentos e das expressões é um sintoma característico de saúde e
sanidade, quando na realidade todos os humanos sofrem de um complexo de hipocondria.
Todos eles querem saber do que sofrem e, se não tem certeza absoluta de que sofrem de algo
patológico, a suspeita faz elevar o nível emocional de seu corpo até que somatize em alguma
doença. A doença, o transtorno é uma parte de um mapa que sem eles está arruinado, de um
quebra-cabeça que sem eles não transmite a imagem total coerente de si. É um fator
complementante e completador da identidade. O diagnóstico que todos os seres humanos
precisam para se nortear assim como o nome, a cidadania, a nacionalidade, a família. Uma
descoberta adicional de si. São todos arquétipos da doença, ou a usar um termo mais preciso,
de Aby Warburg, a pathosformerln, que significa sincronizadamente a fórmula dos afetos, das
emoções e das doenças. Warburg descobriu, lendo Darwin e sua obra A Expressão das
Emoções nos Homens e nos Animais que os sentimentos, quando atingidos seus extremos,
possuem mínima distinção entre seus opostos e contrários, antônimos, como os espasmos de
riso, pranto, agonia, reverência, gozo, regozijo, o frenesi de êxtase e o frenesi de dor, sendo
difícil seu reconhecimento e em alguns casos a oscilação de sentimentos é manipulada pelo
próprio usuário emocional. Tomo eu mesmo como exemplo: o autor deste texto sofre da
Síndrome de Tourette. Ela atinge 2,9% da população mundial, e seu primeiro caso consta de
1825, de uma nobre de alta classe chamada Marquesa de Dampierre. Esse transtorno
neuropsiquiátrico possui muitos sintomas em comum com o autismo, como a ecolalia,
palilalia, parafasia, ecopraxia, e um psicólogo poderia confundir eu com um paciente autista
em seu relatório caso não esteja atualizado e tenha uma abordagem crítica mas contemplativa
a minha condição. Em todo caso, a maioria das vezes em que ofendo alguém é voluntária e
merecível e não graças a minha condição neuroatípica e minha coprolalia. Nesse sentido, é
notável a falta de um ponto de apoio durkheimiano em Mauss: o suicídio egoísta, altruísta e
anômico, ou no contexto tipicamente agonístico das análises de pesquisas de campo por
terceiros de Mauss, lutas, confrontos, trocas, sacrifícios, homenagens mortais egoístas,
altruístas e anômicas. A crescente simbiose de sintomas universais, compondo uma trama,
uma trança, uma rede da vida, fez necessitar que a civilização diagnosticasse cada sujeito
para uma devida forma de tratá-lo que reforçasse ou abolisse sua doença, e na maioria das
formas, a reforça positivamente de modo que a reconheça, e que obtenha identidade. Nos
estudos que Mauss fez das tribos aborígenes da Austrália, conhecidos pela sua prática do
walkabout, descreve as ‘cantadoras de voceros’, choronas e imprecantes, que cantam o luto e
a morte, que injuriam, amaldiçoando ou encantando o inimigo, causador da morte sempre
mágica. Nesses gritos, a estereotipia, ritmo e unissonância são harmonias patológicas
musicais, e nada é por acaso, mas por vontade de algo, o que é a definição de magia entre os
povos ancestrais: vontade vontade vontade! A magia do caos se apropriou dessa definição de
vontade mágica para os seus sigilos, mas isto não vem ao caso. Que seja. Mauss não é um
contratual como Rousseau: os vínculos são menos como mordaças de shibari e mais como
malhas elásticas plásticas que permitem o movimento livre dos participantes dentro do
perímetro demarcado, porém suas fugas são evitadas com um ricochete, uma contração que
incentiva as colisões. Tudo que impeça o movimento, como o escapar da arena de trocas,
inclusive a de sentimentos, que vai além das trocas de pessoas, de recursos humanos, é ilícito,
ou melhor, reduzido sua manifestação em nível de poder. Os cantos, gritos e choros
acompanhados de maceramentos cruéis das mulheres que se infligiam destes para entreter a
dor e os gritos não são senão uma encenação que toca em camadas não cênicas: uma peça de
teatro dramatúrgica que racha as máscaras e rasga as fantasias, onde, se há obrigação, é a
obrigação de tornar o corpo uma máscara, uma fantasia a partir da própria matéria, e que em
seguida alguém irá consumir ou trajar. A causa física precede a causa final, teleológica: assim
como a massa de uma bola tem a morfologia definida pelo seu peso que contrai a gravidade,
que como reação a contrai em um invólucro esferóide, que então poderá vir a ser um planeta,
um olho ou uma bola de basquete, o dom e a dádiva tem um lado bem mais sombrio do que o
egoísmo por trás do dar aparentemente gratuito, do qual Mauss é ciente, e este é que os
sentimentos se enrijecem durante esses ritos para aumentar o valor de algo, assim como uma
lágrima poderia se cristalizar e ser trocada sob a patente de uma joia.
3. Se a universalidade que Strauss trata é universalmente humana, e humano não passa de um
termo de convenção, e as relações não se tornam nulas com as regras impostas pelo tabu do
incesto, mas reduzidas suas manifestações, que são recalcadas mas em um momento ou outro
explodem nas crises culturais ou sociais, ela é tudo menos universal. A antropologia de
Strauss foi recebida com entusiasmo por intelectuais renomados, como o psicólogo Ronald
Laing e o fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty, porém isso não a livra de críticas. Ele
considera a álgebra como o regente estabelecedor das linhagens familiares tribais. Caso
existam duas linhas de família, A e B, o casamento de um macho de A com uma fêmea de B
é (+) para a linhagem A e (-) para a linhagem B, e vice-versa. Em geral, a perda de uma
fêmea é (-), sua aquisição é (+). Os sinais de mais e menos precisam ser mantidos em
equilíbrio, sendo o desequilíbrio de uma geração corrigido na geração seguinte. O filho (um
A) de marido A com mulher B não pode casar com uma filha de ascendência B, por exemplo.
Esse raciocínio algébrico, no entanto, é limitado e é passível de substituição por raciocínio
polinomial. Strauss diz apenas que os nativos ignoram a álgebra que praticam, assim como a
língua, a cultura, a estrutura. Isso, de acordo com ele, é facilmente inteligível se
considerarmos que nós também ignoramos o fonema, gramática, matemática, diacronia,
transversalidade, léxico, superlativo, ritmo, sonância, onomatopeia e tantas outras facetas
especiais e atraentes, deliciosamente prolixas da língua quando falamos. Não. Strauss, que
tanto se desenrolou no seu próprio pergaminho até que este se enrolou nele mesmo o
sufocando, jamais cogitou a possibilidade de que essa ignorância dos nativos e dos civis
compartilhasse o mesmo arquétipo, mesmo consciente durkheimiano e inconsciente
junguiano coletivo do tabu do incesto: a censura da auto-reflexão e da auto-crítica linguística.
Ao se relacionar sob o signo das conversas, das interações em grupo ou com mais de uma
pessoa, desenvolvem-se censuras sobre o que falar e o que não falar, o que censura e reprime
palavras dos mais variados tipos sob as mais diversas circunstâncias e condições. Eles se
censuraram tanto que essa censura se somatizou até uma reflexologia sem lócus que não mais
se ativa através de gatilhos, e quando o faz, é tão automática que não é passível de percepção,
mas está dentro de um tabu, que não é ignorância, mas censura, do mesmo modo que nas
civilizações modernizadas e industrializadas a ignorância sobre a diligência, pobreza,
sexualidade, classe, ética, filosofia, sociologia, ciências brutas não é ignorância, mas antes
censura de falar sobre elas. O falar pode ser falar, mas se não fala consigo mesmo não é falar
do ego, mas falar do coletivo, e logo é um falar acéfalo derivado da censura precedente da
ignorância. Sendo minimamente realista, esse fator comum às sociedades não é graças a um
tabu ou uma estruturalidade autóctone. Não mais. É graças a um progresso de engenharia que
fez das tribos e das civilizações máquinas oneradas paralelamente muito bem lubrificadas em
suas peças. Strauss, para superar a sina da antropologia evolucionista em procurar a origem
dos povos humanos, legado herdado por Mauss, este que diversificou ao procurar pela
etimologia, substitui a origem ontogênica pela perenidade ontogênica: o tabu do incesto. Ele,
contudo, não se preocupa em definir o que são as sociedades, algo que Radcliffe-Brown toca
muito bem em tal ferida, descascando-a: seriam as sociedades menores sociedades
autônomas, autóctones, ou seriam fragmentos de sociedades maiores, sem identidade,
unidade, personalidade própria, apenas projeções da sociedade maior? Se sim, seriam as
sociedades maiores uma mera coleção de sociedades quebradas? Precisamos estar cientes de
o que significa a exogamia e a endogamia, essas relações de consanguinidade que, a partir de
certo momento não determinado, emergiram de uma fonte inconstante e que estabeleceu nas
sociedades com quem podiam os sujeitos se relacionarem. Os antropólogos dirão que essas
regras são definidas por conjuntos não-humanos, mas extrafísicos, mágicos, simbólicos,
religiosos, e os que não adotam esse misticismo exarcebado, adotam o plano de Strauss de
fazer uma tabela de Mandeleiev com as estruturas elementares periódicas das tribos (mas há
elementos aperiódicos). Isto me parece uma visão despolitizada e categoricamente falaciosa,
afinal não podemos imaginar esse grupo de louvores senão comandados por humanos, corpo
a corpo ou a distância. O que ocorre são duas coisas: um elemento humano é execrado dele
próprio por métodos subterrâneos, clandestinos, não-oficiais, e este elemento, como não
possui âmnio, vértebra, postura, não é considerado parido (logo não evoluído, mas
estruturalizado), mas ainda assim é vivo, e sua forma é bem conhecida por Trubetskoy: a
morfofonologia. Por não ser cesárea nem natural tampouco oficial, quem a profere não
manda, mas a obedece como cobaia de marco zero. As palavras assim se alastram
epidêmicamente e ganham força quanto mais sujeitos de autoridade as obedecem. Não é a
autoridade do chefe, do pajé, do xamã, do governador que comandam, mas as palavras, que
em si não são autoritárias, mas ganham mais poder conforme mais homens de autoridade
constituem seu ramo de seguidores. Fica claro o porquê dos nativos e civis serem ignorantes
ou despercebidos de suas gramáticas e até mesmo autoridade por um segundo motivo: eles
são cobaias de teste para o vocabulário se enriquecer através dos seres vivos de forma
autônoma e desenroladora; a civilização é uma religião a qual os nativos se converteram por
expiação ou contrição, por espontaneidade ou por obrigação de seus sentimentos serem
emitidos. Esta religião, assim como sua tríade já exposta por Mauss, do caráter
fisiopsicossocial do ser humano, não separa a humanidade da natureza por cisão, mas
redistribui os recursos naturais de forma que eles integrem ou desintegrem o ser humano.
Existem, por conseguinte, dois tipos de religião prevalecentes nas tribos da natureza
estudadas pelos antropólogos e as tribos urbanas estudadas pelos sociólogos: a que busca
reconciliar o sujeito com uma integração por acreditar que a identidade seja no todo, e a outra
que busca reconciliação por desintegração por acreditar que a identidade seja nas partes
anímicas. Se a dádiva argumenta que as trocas mesclam as almas, é possível que haja um
limite de mesclagem? Se há, seria esse limite um impositor de um número-limite de
mesclagem por excesso de variedade ou, invés, um limite por chegar à impossibilidade de
inovações nas variantes? As evidências levam-me a crer que a endogamia e a exogamia
promovem um caos que por sua vez promove inovações, nem que este precise devorar sua
própria cauda para apagar os rastros de repetições eliminando o caráter definitivo do que é
repetir-se. Será ela definida mesmo pelo sangue? Ora, é preciso uma injeção de naturalismo
aqui. O sangue é o último fluído a desenvolver-se no organismo, e seus metabólitos gerados
em reação com o venenoso, ácido oxigênio fermentam temperaturas altíssimas que
exterminam a antiga dualidade vermelho-azul presente em outras partes do corpo
preservando apenas a vermelhidão das plaquetas, que atraem mais calor enquanto que os
leucócitos, de coloração neutra, são refratores e refletores de temperatura, não sendo
obstáculos para a maior absorção de calor pelas plaquetas. Podem me acusar de ser um crítico
biologizante, que seja, mas a questão não é essa, até porque uma base somática nada explana,
há não ser em analogias. A analogia deve se estender a demais áreas que Strauss pouco
perscrutou e se o fez, fez com austeridade perspectivista. O que é o estrangeiro para o
indígena senão o Ser na condição de Não-Ser? Essa visão tipicamente niilista da escola
sofista de Górgias é a compartilhada pelos professores do estruturalismo antropológico.
Precisamos ir mais longe. Tanto os nativos quanto os civis possuem normas de conduta que
definem seus tabus, possuem totens para definir suas ontogenias e religiões, e uma revolução
sobre essa óptica poderia ser feita pensando nós como estrangeiros e os outros como nativos,
porém essa própria solução de desterrado precisa ser inquirido os motivos da deserção,
abandono, orfanato, entesouramento do cordão umbilical. É através dessa distinção que refuta
a homologia e encaminha-se à homoplasia que conseguimos desvendar as particularidades
das culturas, algo que Strauss é coerente para com: as culturas são sempiternas, elas
sobrevivem até mesmo no urbano ou em terreno estéril de origens porque a origem existe
apenas como narrativa mitológica, contos de fadas, fábulas. Bourdieu Pierre, um dos
herdeiros do legado espiritual de Mauss além de Strauss, pode dividir isso entre suas
classificações de capital: capital científico, capital cultural e capital simbólico. Com a
aparição do Estado, antes mesmo de nascer para a vida já aparecendo como fantasmagórico e
assombroso, ele decidiu desempenhar papéis que os humanos fariam no cuidado um para com
os outros, como o de cuidadores e responsáveis através das instituições escolares, que por sua
vez é substituto da substituta que é a babá. Instituições com os registros de nomes e números
e sua burocracia interpõem-se à sua existência, empacotando-os, transportando-os,
negociando-os, trocando-os. A paraplegia, estado com extensor aos outros membros no
quesito imobilidade e parestesia, quando substitui os membros de carne e osso, que possuem
excelências como resistência elétrica anti-condutora, sensores aerodinâmicos através dos
poros e pelos que vibram ao menor contato com mudanças no ambiente por próteses de
carbono rentáveis insensíveis que buscam simular sensações, acaba por reificar seu usuário e
as instituições, a sociedade coletivamente conspira para substituir e compensar não ele em
organismo vivo, mas como peça metálica. Cadeirantes, paraplégicos, sujeitos subjetivados
por hackeamento não compartilham dos mesmos usufruires dos demais de carne e osso em
quesito transporte, logística, locomoção: estes podem ser levados ao seu destino ao lado de
habitantes de contêineres em navios, caminhões e aviões na seção de passageiros
não-humanos e não-vivos. O objetivo é direcionar o sujeito a condição substituível, para
aumentar a produção de substitutos, mantendo a patente de produtos sem inovação e sem
originalidade, mas idênticos, sem serem autênticos. O pessimismo de Bataille e até mesmo o
de Strauss se confirmara mais do que o bolchevismo da dádiva maussiano: as trocas
aumentam a desigualdade e a barbárie conforme os órgãos humanos se inserem na condição
de trocáveis e substituíveis, e não apenas transplantáveis.
Como bem observou Bourdieu, o transplante das trocas das sociedades primevas às civis
desenvolveu duas espécies de capitais biossimbionte e zumbificante: o capital científico puro
e o capital científico institucional, que são derivas das tradições rigorosas dos ritos ancestrais.
O próprio Strauss reconhece que os grandes inovadores são marcados por estigmas de heresia
e violentamente são combatidos pela instituição, e nas que são repletas de erudição, a união
emparelhada e aglutinada de seus membros ocorre por relações de estima mútua sem a
necessidade de conquistas há não ser as pré-conquistas conhecidas pela comunidade, e cujo
desconhecimento gera mais estigma comunitário e social do que as provas evidenciais dessas
conquistas na forma delas repetidas, como em um preconceito intelectual intelectualizado. Os
conselhos, bancas de concurso, recrutamentos anuais, comissões, comitês, publicações em
órgãos seletivos e prestigiosos, créditos, colóquios, cerimônias, reuniões que protelaram as
descobertas de, a dizer, Alexander Friedmann e seus desvios constantes complementares de
um universo inconstante, Paul Dirac e a antimatéria, Ilya Prigogine e as estruturas
dissipativas contribuintes da biologia atrasadas de serem contempladas por, respectivamente,
Albert Einstein, Wolfgang Pauli e os laplacianos-newtonianos são as mesmas que protelaram
psicologias e pedagogias além da farmacológica e de química mental equilibrada, como a de
Nilse da Silveira, Otto Gross, Anton Makarenko, Celéstin Freinet pelo paradigma da
psicanálise freudiana e a psicoanalítica junguiana, e por fim, são as mesmas por trás das
desbragadas tradições paradigmáticas dos povos ancestrais. As culturas, homólogas às outras
em nível estrutural, podem ter o mesmo corpo, mesmo edifício arcabouçal, mas possuem
significados distintos e estes reestruturam suas configurações. O tabu que impede esses
corpos de serem tatuados por tatuagens modernas não os deixa de pele intacta: como punição
à pura e simples vontade de se tatuar, ele é escarificado a chibatadas que são ritualizadas. Os
signos podem apreender mais significados e mais significantes, mas se há algo que
permaneceu constante nas estruturas straussianas na era urbana que parece demolir as
culturas é, inversamente, uma convecção cultural: é feito um inventário material da cultura,
de modo que haja um seguro de vida delas mesmo caso as exterminamos. Esse inventário é
feito através da catalogação de recursos e a possibilidade de fazer “culturas artificiais” como
se fazem germes através de sequenciamento genético por meio deles. Nisso, é claro o triunfo
da teoria edipiana sobre a civilização na sua visão dos povos nativos que abstina simpatia e
transpira empatia: ele entra e sai dela como uma penetração de coitos interrompidos. Jamais
fica muito tempo a ponto de se mesclar à ela e perder sua identidade, seu ego para a outra, e
jamais a vê como internacional, pois distingue a si mesmo dela. Seria pretensão demais
sugerir que isso será superado com o tempo? Não, porém se superado, não será pela
espontaneidade do tempo. Como em um artigo da revista Klaxon, devemos primeiro “saber
que a humanidade existe, e que ela está por todos os lugares. Por isso, não somos
nacionalistas nem estrangeiros, mas internacionalistas.”

Gustavo Marques da Silva

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