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Guillermo Sequera

Douglas Diegues
© Guillermo Sequera e Douglas Diegues
© Tekohá Mbyá-Guarani em Caazapá, Itapúa, Kanindeju, Caaguazú,
no Paraguay; e em Isla Filomena Grande, Rio Negro, no Uruguay.
© Colaboradores

Editor: Douglas Diegues


Reestruturação + projeto gráfico-interativo + capa (foto – Guillermo Sequera,
caligrafia – Manoel de Barros): André Vallias
Gravações de áudio + fotos: Guilllermo Sequera
Transcrições + traduções: Douglas Diegues, Kerechú Pará e Ramón Barboza
Revisão: Douglas Diegues

douglasdiegues@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sequera, Guillermo
Kosmofonia mbyá guarani [audiobook] / Guillermo
Sequera, Douglas Diegues. -- Campo Grande, MS :
Ed. dos Autores, 2021.
MP3 ; 50 min.

Bibliografia.
ISBN 978-65-00-31830-2

1. Antropologia 2. Cultura indígena 3. Índios


Guarani Mbya - Cultura 4. Índios Guarani Mbya -
História I. Diegues, Douglas. II. Título.

21-83917 CDD-980.3
Índices para catálogo sistemático:

1. Índios Guarani Mbya : Cultura : América do sul


980.3
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

ESTE LIVRO INTERATIVO COM ÁUDIO É GRATUITO


mas pedimos ao leitor que faça um donativo à
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
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SUMÁRIO

Avá-prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Palavras de Karai Miri e Karai Kuaray . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Kosmofonia Mbyá-Guarani . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Poema de Ñande Chy e Cantos infantis . . . . . . . . . . . . 19

Gravações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Cantos e traduções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Notas e comentários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Ouvidos Civilizados versus Música Selvagem . . . . . . . . 59

Sérgio Medeiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Ludovic Pin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

Manoel de Barros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

Massimo Canevacci . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

Magali Sequera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

Reynaldo Jiménez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Viagem ao orvalho em chamas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Avá-posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Índice de imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Sobre os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

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kosmofonia mbyá-guarani 6
avá-prefácio
Douglas Diegues

La originalidade, entendida aqui como origem própria,


é uma de las marcas del arte Mbyá-Guarani, entendida aqui
como técnica de expressão e expressão ao mesmo tempo.
Cada Mbyá-Guarani é um artista à sua maneira. Algunos
destes artistas, que se escondem por las selvas deste y del
outro lado de la frontera, son muy simples y muy sofisti-
cados. Artistas crianzas, artistas antigos, artistas salvajes.
Son donos de cantos. Disponen de técnicas vocales mile-
nárias. Em vez de copiar, preferem crear, dar flor, fazer la
coisa acontecer ao modo Mbyá. Ñande teko porã, nosso
modo de ser es bueno, nossa arte es original etê, nos en-
sina Karaí Mirí, nel pátio de la casa de Kerechu Pará, en
la periferia de Asunción, entre uma pieza y otra del anti-
go repertório musical Mbyá que ele toca num violino kuê
que encontrou en la habitación em que está hospedado.
Pienso que Karaí Mirí quis dizer também que el arte Mbyá
tem um vigor de águas y de árboles. El silêncio, kirirí, es el
primeiro som que se pode ouvir no mundo Mbyá-Guarani.
El corpo humano es el primeiro instrumento musical que
aparece; depois es que aparecem los outros. Caminar é
uma arte Mbyá por excelência. Manter el fogo aceso tam-
bém es uma arte. Um rio atravessa la Kosmofonia Mbyá-
-Guarani. Tomar banho de rio é uma arte. Crianzas tomam
banho de rio, brincam com água, la água es uno de los
primeiros brinquedos de las crianzas Mbyá. Aparece Miño
Benitez tocando seu ravê, um pré-violino de três cordas.

7
Las cordas son feitas de tripa animal, fibra vegetal, naylon,
arame, pouco importa. Lo que importa es la qualidade de
llamas do som, la qualidade de água do som, la qualidade
de flor do som. Diez años após las gravaciones realizadas
por Guillermo Sequera, Miño Benitez morre abandonado al
lado de seu ravê. Que hermoso es el canto-falado de uma
rana pré-histórica! Las ranas pré-históricas son las cantan-
tes mais antigas del mundo. Los cantos infantiles tem uma
inocência primigenia. Durante el Kotyu, uma espécie de
canto-danza-poema-juego-erótico, los meninos lanzam
cantos a las meninas, y las meninas, indecisas, respondem
lanzando seus cantos a los meninos; los meninos ouvem
e respondem lanzando nuebos cantos a elas, que devol-
vem nuebos cantos a eles. Los antiguos apyterê mbyá fa-
zem suas marakas falarem. Irrompe um concierto para vio-
lón, maraka y pré-violino. Son los antigos-novos sonidos
Mbyá-Guarani. El habla selvagem de Ñande Chy, la xamana
que vivía en Isla Filomena, es um poema que comprova
que los Mbyá-Guarani ainda non conocen, não conhecem,
a linguagem poética, porque los Mbyá-Guarani nunca co-
nocieron otro lenguaje que non fosse linguagem poética.

Fronteira do Brasil con el Paraguay y la Argentina,


primavera 2021

kosmofonia mbyá-guarani 8
PALAVRAS DE
KARAI MIRI E KARAI KUARAY

Não abandonemos nosso teko, nosso modo de ser, por-


que teko é a forma de vida e tekove, o que vive. Nós con-
vidamos a todos a ser tekove. Não abandonemos nossas
palavras em nossas casas sagradas, porque quando aban-
donamos a casa sagrada, nosso pai Ñamandu já não nos
escuta. Os pequenos, ternos, os anciãos, os indefesos, pro-
tejamos, cantemos sempre belas palavras por eles, para
isso existimos. Não nos cansemos de mostrar o tape miri,
caminho sem fim, caminho sem males, para que os kunu-
mí, os jovens, caminhem sem perigo, sempre numa boa.
É necessário que nós, os que temos poderes especiais,
doados desde o alto, revitalizemos nossa cultura, mesmo
que nossas crianças e jovens convivam com outras cultu-
ras.
Nós não temos o serviço básico que os brancos têm,
seja luz, água potável, boas estradas, mas possuímos o
dom da experiência, a visão e a capacidade de compreen-
der o que é a vida de nossos povos.
Estes encontros devem ser espaços de generosidade,
de troca, de dar mesmo que fosse um pedacinho de nossa
sabedoria.
Não nos cansemos de insistir com os kunumi, jovens, va-
mos ajudá-los, para que eles possam nos ajudar no futuro.
Referente à terra, podemos dizer que ela não é nada,
sem todos os elementos que fazem parte dela, as árvores,
os animais, as ervas com os poderes mágicos.

9
Não permitamos que destruam nosso supermercado
vegetal.
E, irremediavelmente, existem coisas que os brancos
têm e os nossos jovens necessitam para se desenvolver
melhor.
Especialmente essas coisas que não se podem plantar,
tais como: camas, mantas, utensílios de cozinha.
Compreendemos perfeitamente que os jovens já não
podem continuar dormindo no chão e sem cobertores.
Assim como também entendemos que a medicina oci-
dental terá que ser parte de nossos tratamentos, justa-
mente porque as enfermidades que não podemos curar
com nossas palavras e ervas não são nossas, vieram de
fora. Aceitamos que nossos filhos aprendam a ler e a es-
crever, a somar e a subtrair, para que os estranhos já não
os enganem.
O que não podemos permitir é que nossos jovens acre-
ditem que sua educação se reduz a uma sala de quatro
paredes com papéis coloridos, e que possuem a sabedo-
ria absoluta quando lhes entregam um papel chamado
diploma.
Isso não.
Na escola dos Apytere-Guarani, estamos preparados
quando chega o aguyje, a benção do grande creador.
A cada noite, não se esqueçam de lançar suas palavras
ao céu para que no dia seguinte nos infunda um frescor,
um alívio, em nossas angústias. Respeitemos as mulheres,
elas possuem o dom de limpar nossos caminhos, por isso
Ñamandu lhes entregou uma vassoura encantada para que
se encarreguem que nada de mal aconteça na terra em
que habitamos.

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Convidamos a todos a seguir em frente, como boas se-
mentes não nos cansemos de germinar, isto dizemos nós
os Apytere-Guarani, que igual a vocês são habitantes pri-
meiros da terra.
Também queremos dizer-lhes que nós sempre soube-
mos da existência de todos vocês, porque sempre soube-
mos que nossa grande mãe teve muitos filhos, os quais,
espalhou pela terra, e porque ela assim o quis, agora po-
demos nos encontrar.
Nós viemos de onde nasce o sol, nossas comunidades
se chamam Mirí Poty, que se significa coração imenso, e
Parakau Puku, que é o nome de um papagaio que fala e
que ajudou os primeiros homens a se comunicar. Quere-
mos que entendam que vocês são nossos joapykuera, ou
seja, os que estão ligados a nós pela mesma essência, por
favor entendam que vocês vivem em nossos corações.
Nós não temos telefone, não lemos, não escrevemos,
mas quando vocês despertarem todos os dias, e observa-
rem a imensa luz a que chamamos ko’e mbyja, saibam, e
nunca esqueçam, sempre, que nesse instante estamos lhes
enviando nossos sons, nossas palavras que são verdadei-
ras, nossos cantos rezados, para que Ñamandu os ilumine
e os guie em suas vidas.
Por último queremos contar que desde há muito tempo,
muitos anos, o povo Guarani acredita e busca sem parar a
Yvy Marae’y, a Terra Sem Mal. Em busca dela atravessamos
mares, desertos, e desta vez enfrentando a imensidão do
céu, para poder hoje dizer-lhes que ela existe em nossos
corações, e a defenderemos sempre.
(Tradução: Douglas Diegues em colaboração
com Kerechú Pará)

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KOSMOFONIA MBYÁ-GUARANI
Guillermo Sequera

A CULTURA

Os Mbyá constituem uma das sociedades autóctones


vinculadas a etnias Guarani-Tupi dotadas de mais particu-
laridades específicas. Supõe-se sua localização originária
em regiões da bacia do médio Paraná (Guaíra-Caaguazú).
As fontes etnográficas — desde meados do séc. XVI —
não fazem referência explícita a esta etnia. Tampouco a
mencionam os textos posteriores de cronistas ou missio-
nários, que a englobam na definição de “tribos guarani”,
“caiguas” ou “kayngua”, ou até mesmo classificandoa, de
forma depreciativa, como “batícola”.
Sua imensa criatividade como grupo humano e sua alta
capacidade de adaptação a contextos culturais, sociais e
econômicos, permitiu aos Mbyá formar uma forte unida-
de de identificação (língua, cosmovisão, técnicas, conhe-
cimentos) e alcançar um dinamismo — muito imaginativo
— na incorporação de dispositivos, utensílios, expressões
ou rituais extraculturais.
Prova disso, ainda, é seu impulso migratório rumo a re-
giões com significativas diferenças bio-geográficas. Os
Mbyá conformam a etnia de maior dispersão nos países
do Mercosul (Paraguay, Argentina, Brasil, Uruguay).
Sua vasta experiência em viagens indica uma original
defesa da multiculturalidade, na contra-mão da má fama
de serem considerados indígenas que desenvolveram a

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“ideologia da rejeição aos outros”. As histórias regionais
ou transfronteiriças desfiguraram a fisionomia cultural dos
Mbyá. A autodenominação gentílica define-se por Ka’aguy
gua (habitantes da floresta).
Embora algumas comunidades culturais chamem-se
Mbyá-Guarani, Mbyá-apytere (gente verdadeira), ou Je-
guakava tenonde porãngue’i (os adornados que nasceram
para ser felizes). Esta etnia baseia seu modo de subsistên-
cia na caça, coleta, pesca e agricultura, apesar da destrui-
ção brutal das selvas nos últimos anos em seus hábitats
tradicionais.
Não devemos subestimar que o impacto cultural expan-
sivo destes indígenas no Paraguay é muito maior do que o
de outros grupos étnicos, embora estes contabilizem um
maior índice populacional. Por isso, apesar dos embates
históricos (relação desigual com a sociedade nacional), os
Mbyá puderam demonstrar sua alta capacidade de inter-
-relacionar, com certa relatividade, tradição e “modernida-
de”. Os Ka’aguy gua tem sido vítimas do despojo de seus
territórios de origem, desde o séc. XVI. As comunidades,
hoje, estão disseminadas em quase todos os departamen-
tos (estados) da região oriental do Paraguai, com exceção
dos departamentos de Amambay e Central, compartilhan-
do territórios com outras etnias (Paï Tavyterã, Ava Katue-
te), salvo nos Departamentos de Itapua, Guairá, Caaguazú
e Misiones, onde os ka’aguy gua se vêem “sozinhos” para
enfrentar a pressão de um modelo de desenvolvimento
que se aventura em um sistema de exclusão da diversida-
de cultural.

kosmofonia mbyá-guarani 14
INDENTIDADE MUSICAL

O conceito Mbyá de som origina-se em andu, perceber


a biodiversidade do mundo natural, e construir através da
palavra, ayvu, música vocal e discurso instrumental. Os
animais podem cantar (purahéi), falar (ñe’e), emitir sons
(ombota), bufar (ovuha), rugir (okôrôro), uivar (oguahu).
A percepção parte do silêncio (kiririri), até o estrondo do
raio (ara sunu). A representação social se manifesta em
uma variedade de formas e técnicas; estas vinculadas a
rituais, danças, corais, e a uma apropriação Mbyá da ex-
periência intercultural. É justo falar de uma Kosmofonia
Mbyá-Guarani — um ordenamento cultural dos sons.

INSTRUMENTOS MUSICAIS

A originalidade instrumental dos Mbyá reconsidera uma


alta capacidade criativa e técnica em combinar instru-
mentos nativos com instrumentos europeus, e, com eles
— como resultado de intercâmbios culturais — põem de
manifesto a aquisição de estruturas sonoras próprias mui-
to expressivas. Tanto na fabricação como na interpretação
existe uma acentuada divisão sexual musical.
Os mimby pu (oito tubos descartáveis) são construídos
pelas mulheres, com takuapi, e interpretados por elas. Os
Mbyá possuem um vasto repertório com temas musicais
em mimby pu, sendo este um instrumento exclusivamente
feminino. As mulheres escolhem os temas que serão inter-
pretados e trocam os tubos de takuapi; uma delas inter-
preta a melodia principal e a outra se ocupa do acompa-
nhamento.

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O takua kama, ou kamañyti (bastões rítmicos femini-
nos) é também um instrumento de exclusiva propriedade
feminina. Os takua kama são bastões rítmicos de diver-
sas dimensões e grossura, fabricados a partir de bambus.
Como caixa de ressonância é utilizado o próprio chão, ou
também um pedaço de madeira, sobre cuja superfície as
mulheres batem, marcando a pulsação básica das danças
rituais (tangará).
O mimby puku, ou flauta vertical, fabricada a partir de
bambus (50 cm aproximadamente), em cuja extremidade
recorta-se uma embocadura talhada em forma de “u” so-
bre a parte superior — similar às denominadas kenas —, e
sobre o corpo se dispõe uma série de buracos (7), sobre
os quais os dedos pousam. O mimby puku é um instrumen-
to utilizado pelos Karai (líderes políticos), para anunciar
as boas novas, ou visitas de mensageiros, através da inter-
pretação de melodias.
Os chocalhos, instrumentos utilizados pelos xamãs (Ra-
moi guasu), ou xamãs iniciados (Yvyra ija), são denomina-
das mbaraká mirî. São feitos com porongos ressecados,
nos quais são introduzidos sementes ou pedrinhas, de
modo que sirva para acompanhar cantos e danças. Os xa-
mãs não só pulsam os chocalhos, também os tocam de di-
versas maneiras, obtendo assim uma variedade de timbres
ou efeitos rítmicos e sonoros.
Os Yvyra’ija levam entre as mãos os popygua’i (claves
de madeira), dois pauzinhos feitos de madeira dura de
yvyra pêpê chingy (Diatenopteriyx sorbifolia Radlk.), que
quando os entrechocam produzem uma vibração contínua
de frases para marcar o compasso do tangará-dança.

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O notável na conformação musical Mbyá são dois ins-
trumentos adaptados: o kuminjare ou kumbijare, e o rave.
A explicação originária menciona a oferenda simbólica do
Kechuíta, quem em tempos míticos outorga a sabedoria
musical de tais instrumentos aos Mbyá. A apropriação dos
Mbyá destes instrumentos confirma plenamente que esta
etnia participou ativamente na experiência das reduções
missioneiras nos séculos XVII, XVIII.
O kuminjare é uma viola do renascimento espanhol,
cuja fatura instrumental é realizada a partir de madeiras
nobres de kurupika’y (Sapium haematospermum Muell.
Arg.), e tem suas partes reunidas com cola vegetal, sobre
cujo corpo estendem-se cordas vegetais, ou de nylon, com
o auxílio de cinco tensores e seu cravelhal. O kuminjare é
afinado com o rave, e serve de instrumento rítmico para
o acompanhamento de peças para dança e repertórios li-
vres. Em variados temas, o kuminjare alterna ritmadamen-
te acordes maiores e menores. O rave, ou rabil, (do antigo
rabad árabe), é ancestral do violino. Construído com ma-
deiras de ygary ou kurupika’y, tem suas partes reunidas
com cola vegetal mangavi (Hancornia speciosa Gómez).
As cordas são de origem vegetal (ysypo); a partir da dé-
cada de 70, os Mbyá adotam cordas de nylon. O ravê é um
instrumento típico do medievo europeu. Na literatura de
crônicas, numerosos textos falam deste instrumento tra-
zido por espanhóis e jesuítas (“rabelillo”, “rabelico”, “ra-
bel”). Os jesuítas integraram o rabil às oficinas de música
das missões. Os Mbyá são os únicos a terem adotado o
ravê e o kuminjare ao seu patrimônio organológico, proje-
tando-os, por sua vez, como instrumentos sagrados e radi-
calmente vinculados à sua identidade cultural.

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O repertório musical do ravê é muito variado, tanto
exercendo a linha melódica em interpretações lúdicas jae’o
quanto em formas musicais tangará-danças. As melodias
revelam um sincretismo sonoro, síntese de experiências
histórico-musicais Mbyá, onde intervalos da música popu-
lar européia se associam a construções árabico-andaluzes.
O ravê é tocado com a ajuda de um arco tenso com
crina de cavalo. Pequenos tambores angu’a pu, também
chamados mba’e pu ova va’e, fabricado com madeira de
kurupika’y, em cujas extremidades são tensionadas peles
ressecadas de animais, como o jaicha (Agouti paca), ou de
tañy kati (Tayassu pecari), com a ajuda de tensores de cou-
ro. Os Mbyá o utilizam para acompanhar ritmos de dança
e música em mimby puku (flauta vertical). Ouvir música
Mbyá é encostar os ouvidos naquilo que nos foi negado:
reconhecer sua grande capacidade criativa e, assim, ouvir
os vestígios sonoros de nossa memória cultural.

(Tradução: Douglas Diegues)

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Poema de Ñande Chy
e Cantos infantis
GRAVAÇÕES
Em sua fala, que é um poema e um relato ao mesmo
tempo, a xamã Ñande Chy (Ceferina Martínez) conta
o que lhe foi relevado em sonho por Ñande Rú Pa Pa
e a inspirou a viajar com os seus em busca da Yvy Miri
Marane’y — a pequena terra sem mal.

Coletados por Guillermo Sequera


Traduções de Douglas Diegues em colaboração
com Ramón Barboza e Kerechu Para

Os registros foram realizados in situ, entre 1985 e 1990,


em várias comunidades Mbyá que estão localizadas
nos departamentos (estados) de Caaguazú, Itapúa e
Kanindeju, no Paraguay; e em Isla Filomena Grande,
no Uruguay. Para este trabalho, adotou-se a metodologia
de coletar não apenas a música Mbyá, mas também o
registro minucioso do seu entorno natural. A música Mbyá
faz parte de um mundo aberto e em constante interação
com a natureza e a cultura. — Guillermo Sequera

í c o n e s d e n av e g a ç ã o

áudio letra notas voltar


1. KYRYNGUE’Í ÑEVANGA YAKAPE
MENINOS BRINCANDO NA ÁGUA 0:33

Comunidade Karumbe-y (Fevereiro de 1986).


Departamento de Caazapá. Meninos brincando nas águas
do arroio Karumbe-y. A água constitui-se no elemento
condutor essencial entre a sociedade e a natureza. Os
Mbyá podem ser considerados como uma etnia que
emerge como cultura da água.

2. MIMBY PU
SONS DE FLAUTAS 0:55

Comunidade Pastoreo (Junho de 1985). Departamento


de Itapúa. Duas mulheres indígenas interpretam um
mimby jae’o. Música de flautas. Uma delas conduz a linha
melódica. A outra a acompanha com o bordão.

3. RAVE JAE’O
LAMENTO EM RAVÊ 2:13

Comunidade Pastoreo (Junho de 1985). Departamento


de Itapúa. No Opy — Casa de Cerimônias — se preparam
para começar as tangará — danças rituais. Note-se a
conformação musical: bastões rítmicos, claves, ravê e
kuminjare, estes, por sua vez, vinculados à polifonia de
insetos que adornam a música.

4. ÑANEMBO VY’A
VAMOS NOS ALEGRAR 2:57

Comunidade Takuari (Setembro de 1989). Departamento


de Kanindeju. Forma coral em cânon entre vozes de

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crianças e de adultos que cantam uma seqüência ritual
da cerimônia que celebra a reprodução do avati (milho
nativo). Percebe-se o movimento coreográfico e o canto
dos intérpretes.

5. ARAKU
MÚSICA DE RAVÊ (ARAMIDES YPECACHA) 2:38

Comunidade Pastoreo (Agosto de 1985) Departamento


de Itapúa. A interpretação talentosa em ravê em um
brioso kyrê’y porã (animado); el karaí guazú Miño Benitez
exibe seu virtuosismo musical na interpretação do ravê.
Dez anos depois (1995) de realizada a coleta, Miño
Benitez morre abandonado.

6. VOCALIZAÇÃO DE ANUROS
(RÃS) 0:52

Entorno da comunidade Yvypytã (junho 1989)


Departamento de Kanindeju. As vocalizações de
anuros constituem um dos elementos aquáticos mais
importantes em interação com a cultura Mbyá.

7. AVIA PU
SONS DO AVÍA 0:39

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986).


Departamento de Caaguazú. Tema em rabeca sobre o
canto do avía (Habia rubica, da família dos Thraupides).
Avezinha [bullanguera] com plumagem de viva cor parda
purpúrea. Sua plumagem é utilizada na ornamentação
dos akapichia, diadema que engalana os karai guazú.

kosmofonia mbyá-guarani 22
O tema musical Avía pu é interpretado por um tocador de
ravê da comunidade. As cordas são de origem vegetal.

8. RAVE JAE’O
LAMENTO EM RAVÊ 3:22

Comunidade Pastoreo (Agosto de 1986). Departamento


de Itapúa. Música de ravê interpretada por Miño Benitez.

9. PARAKAU NDAJE
DIZEM QUE O PARAKAU MORREU 0:14

Comunidade Toro Kangüe (Junho de 1986) Departamento


de Caaguazú. Canto infantil interpretado por crianças.
Canto do repertório musical infantil Mbyá. Parakau ndaje
omano... dizem que o parakau morreu.../ porque será
que morreu? / Com sua saliva se afogou... / conforme
um sapinho me falou... introduz dessa maneira como
um carinhoso sussurro cantado por crianças Mbyá.
A prática do canto infantil faz parte do sistema de
instrução tradicional. Cantar para aprender.

10. ÑAMANDU MBORAI (ÑEVANGA REKO)


CANTO A ÑAMANDU (NOSSA VIDA MESMA) 5:39

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986)


Departamento de Caaguazú. Celebração de um
cerimonial post-mortem na comunidade Toro Kangüe.

23
11. KOTYU
DANÇA RITUAL 2:33

Comunidade Takuari (Agosto de 1989). Departamento de


Kanindeju. Seqüência musical do ritual de fermentação
do kawi. A preparação é feita com variedades de milhos
nativos. A cerimônia Kotyu é uma forma festiva típica de
outros grupos étnicos guaranis, cuja realização celebra o
início do ciclo agrário anual e clama por abundancia de
alimentos.

12. VOCALIZAÇÃO DE ANUROS


(RÃS) 2:33

Entorno da comunidade Takuari (Agosto de 1989).


Departamento de Kanindeju.

13. MIMBY PUKU JAE’O


LAMENTO EM FLAUTA LONGA 0:55

Comunidade Pastoreo (Junho de 1986). Departamento


de Itapúa. Interpretado por Miño Benitez. Uma série
de fenômenos sonoros se acopla à linha melódica
(Inarmônicos, [soplido] e ataques no fraseado
instrumental).

14. JOJAVI VAE


DÚO DE FLAUTAS 0:31

Comunidade Pastoreo (Junho de 1985). Departamento


de Itapúa. Diálogo de mimby puku, flautas descartáveis
interpretadas por mulheres.

kosmofonia mbyá-guarani 24
15. ÑEMBISO
PILÃO E PISADOR 0:29

Comunidade Toro Kangüe (Julho de 1986). Departa-


mento de Caaguazú. Mulheres Mbyá durante o preparo
de tortas de milho mbujape. Observar a similitude rítmica
regular com bastões rítmicos femininos nos tangara
(dança ritual).

16. TANGARÁ RAVE KUE


DANÇA DO VELHO RAVÊ 2:40

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986)


Departamento de Caaguazú. Cerimônia festiva, cujo
nome e figura coreográfica evoca o passarinho bailarino
tangará (Chiroxiphia caudata).

17. YVY POTYRA


A TERRA QUE SE ABRE COMO FLOR 0:33

Comunidade Mbyá. Isla Filomena Grande. (Agosto de


1988). Departamento de Rio Negro, Uruguay. A xamã
Ñande Chy, Ceferina Martinez, explica em sua própria
língua como foi que a partir dum sonho visionário, o
ser mítico Ñanderu Pa-Pa lhe induza iniciar uma longa
viagem, pelo bem de futuras gerações. Um grupo de
Mbyá do Departamento de Itapúa, liderado por Ñande
Chy, empreende uma migração para o Uruguay, em busca
da yvy mirí marãe’y, a pequena terra sem mal. Contam
que um dia, em 1993, em Guajayvi (Uruguay), o coração
de Ñande Chy iluminou-se e “se deixou morrer”...

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18. URUKU KORE
VOZES DE CORUJA 0:37

Comunidade Toro Kangüe (Julho de 1986) Departamento


de Caaguazú. Solo de ravê: Uruku re’a (Bubo virginianus),
Coruja.

19. CHEKO CHONDARO


SOU SOLDADO 3:10

Comunidade Pastoreo (Junho de 1986). Departamento


de Itapúa. A palavra chondaro é uma “guaranização”
do vocábulo espanhol “soldado”. Isso induz a presumir
a participação dos Mbyá na milícia organizada pelos
jesuítas nas missões para enfrentar o ataque dos
bandeirantes. Cheko, eu sou, chondarô, soldado. Os
chondarô, na cultura Mbyá, são os jovens iniciados
responsáveis de velar pela soberania comunitária e a
proteção de seus líderes.

20. VOCALIZAÇÃO DE ANUROS


(RÃS) 1:23

Entorno da Comunidade Pastoreo (Junho de 1985)


Departamento de Itapúa.

21. TANGARÁ
DANÇA RITUAL 4:01

Comunidade Toro Kangüe (Julho de 1986) Departamento


de Caaguazú. Dança ritual acompanhada por um duo de
mulheres púberes Mbyá. Opy é o nome Mbyá da Casa
de Cerimônias.

kosmofonia mbyá-guarani 26
22. KUCHUI
SOLO DE RAVÊ 0:46

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986)


Departamento de Caaguazú.

23. MIMBY PU
FLAUTAS 0:22

Comunidade Pastoreo (Julho de 1985). Departamento de


Itapúa. Mulheres Mbyá interpretam um duo de flautas.

24. VAKA PARA’I


CANTO INFANTIL 0:19

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986)


Departamento de Caaguazú. A vaquinha malhada. Canto
infantil Mbyá cantado aqui por meninos.

25. VOCALIZAÇAO DE ANUROS


(RÃS) 1:13

Entorno da Comunidade Takuarí (Agosto de 1986)


Departamento de Kanindeju.

26. RAVE PU
MÚSICA DE RAVÊ 0:35

Comunidade Pastoreo (Julho de 1985) Departamento de


Itapúa. Variação em ravê por Miño Benitez.

27
27. RAVE JAE’O
LAMENTO EM RAVÊ 2:35

Comunidade Pastoreo (Julho de 1985) Departamento de


Itapúa. Miño Benitez interpreta o ravê. Note-se ao fundo
a batida do pilão.

28. ÑEMBO’E MBORAHEI


CANTO-REZA 4:02

Comunidade Toro Kangüe (Agosto de 1986)


Departamento de Caaguazú. O xamã Ramói Guazu
preside um cerimonial de dolo pelo assassinato de
seu filho, que havia acontecido uma semana antes da
realização deste registro. “Ne maera’y voi.../ o que lhe
está negado (a vida)”.

29. VOCALIZAÇÃO DE ANUROS


(RÃS) E UM VÔO DE AVES 0:37

Entorno da Comunidade de Takuarí (Fevereiro de


1990. Departamento de Kanindeju. Um bando de tetêu
(Vanellus chilensis. Fam. Charadriidae).

kosmofonia mbyá-guarani 28
CANTOS e TRADUÇÕES

29
ÑAÑEMBOVY’A4

Chiripa reko pegua...

01 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


02 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
01 Jaha ñande ñañombovy’a
03 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
04 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
02 Jaha ñande ñañombovy’a
05 Ñaguahê ñande ñañombovy’a

Pukaita...

06 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


07 Ñaguahê ñande ñañombovy’a

Oike ambuevéva ñe’ë ha ojehe’a


mitänguéra ñe’ë rehe...

01 Pindo oveju pa — ka’a oveju pa — Nembojae’o

08 Ñaguahê ñande ñañombovy’a

09 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


10 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
02 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

11 Ñaguahê ñande ñañombovy’a

kosmofonia mbyá-guarani 30
VAMOS NOS ALEGRAR 4

Vozes de meninos...

01 Viemos aqui nos alegrar


02 Viemos aqui nos deliciar
01 Vamos todos nos maravilhar
03 Viemos aqui nos encantar
04 Viemos aqui nos alegrar
02 Vamos todos nos maravilhar
05 Viemos aqui nos encantar

Risos...

06 Viemos aqui nos deliciar


07 Viemos aqui nos alegrar

Entram outras vozes que se mesclam


com as vozes dos meninos...

01 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente


— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
08 Viemos aqui nos encantar

09 Viemos aqui nos maravilhar


10 Viemos aqui nos deliciar
02 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
11 Viemos aqui nos alegrar

31
03 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

12 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


13 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
14 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
04 Pindo oveju pa — ka’a oveju pa — Nembojae’o

15 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


16 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
05 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

17 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


06 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

18 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


07 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

19 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


08 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

20 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


21 Ñaguahê ñande ñañombovy’a

kosmofonia mbyá-guarani 32
03 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
12 Viemos aqui nos encantar
13 Viemos aqui nos maravilhar
14 Viemos aqui nos deliciar
04 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
15 Viemos aqui nos alegrar
16 Viemos aqui nos encantar
05 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
17 Viemos aqui nos maravilhar
06 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar

18 Viemos aqui nos deliciar


07 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
19 Viemos aqui nos alegar
08 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
20 Viemos aqui nos encantar
21 Viemos aqui nos maravilhar

33
09 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

22 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


23 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
10 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

24 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


25 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
26 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
11 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

27 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


12 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

28 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


29 Ñaguahê ñande ñañombovy’a
13 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

30 Ñaguahê ñande ñañombovy’a


14 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

31 Jaha ñande ñañombovy’a


15 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

kosmofonia mbyá-guarani 34
09 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
22 Viemos aqui nos deliciar
23 Viemos aqui nos alegrar
10 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
24 Viemos aqui nos encantar
25 Viemos aqui nos maravilhar
26 Viemos aqui nos deliciar
11 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
27 Viemos aqui nos alegrar
12 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
28 Viemos aqui nos encantar
29 Viemos aqui nos maravilhar
13 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
30 Viemos aqui nos deliciar
14 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
31 Vamos todos nos encantar
15 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar

35
16 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

01 Nê rymba recha ramô — Remô morâmba rei


17 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

01 Jajupa ramô rire — Remô morâmba rei.

18 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

01 Guyra rehecharamo — Remô moramba rei

19 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

Oike mitäkuñanguéra ñe’ë ha ojehe’a


ambuevéva ñe’ë rehe...

01 Jajuparamo jepe — Remô moramba rei.


20 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

02 Nê rymba recha ramô — Remô morâmba rei

21 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

02 Jajupa ramô rire, remô morâmba rei.

kosmofonia mbyá-guarani 36
16 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
01 Mesmo quando estamos juntos — tua admiração é falsa
17 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
01 Gostas de nos ter nas mãos como se fossemos bichos
de estimação — mas tua admiração é falsa
18 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
01 Gostas de nos admirar como se fossemos aves — mas
tua admiração é falsa
19 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar

Entram vozes de meninas que se mesclam


com as outras vozes...

01 Gostas muito de nós — mas tua admiração é falsa


20 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
02 Mesmo quando estamos juntos — tua admiração é falsa
21 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
02 Gostas de nos ter nas mãos como se fossemos bicho
de estimação — mas tua admiração é falsa

37
22 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

02 Guyra rehecharamo, remômorambarei

23 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

02 Jajuparamo jepe, remômorambarei


24 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

25 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

26 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

03 Nê rymba recha ramô — Remô morâmba rei


27 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

03 Jajupa ramô rire — Remô morâmba rei.


28 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

03 Guyra rehecharamo — Remômorambarei

03 Jajupa ramô jepe — Remômorambarei.


29 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

kosmofonia mbyá-guarani 38
22 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
02 Gostas de nos admirar como se fossemos aves — mas
tua admiração é falsa
23 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
02 Gostas muito de nós — mas tua admiração é falsa
24 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
25 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
26 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você sofrer
03 Mesmo quando estamos juntos — tua admiração é falsa
27 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
03 Gostas muito de nós — mas tua admiração é falsa
28 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você chorar
03 Gostas de nos admirar como se fossemos aves — mas
tua admiração é falsa
03 Gostas muito de nós — mas tua admiração é falsa
29 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente —
o menino cor de folhagem morena brilhante —

39
30 Pindo oveju pa — Ka’a oveju pa — Nembojae’o

04 Jajuparamo jepe — Remô moramba rei.


05 Nê rymba recha ramô — Remô morâmba rei
05 Jajupa ramô rire — Remô morâmba rei.

05 Guyra rehecharamo — Remô morâmba rei


05 Jajupa ramojepe — Remô morâmba rei

PARAKAU NDAJE (MITÃ PURAHEI)9

01 Parakau ndaje omanó


02 Mba’ere pa omanô
03 Hendy rei ojuka
04 Che rera eta — kururu che gueró

ÑAMANDU MBORAI (ÑEVANGA REKO)10

01 Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
02 Ko mã Ñamandu
03 Ore reko’i romombe’u
04 Nde remimbo yvytu
05 Nde che ru tupã ruvyete.

kosmofonia mbyá-guarani 40
vai fazer você sofrer
30 O menino cor de palmeira cor de sol resplandecente
— o menino cor de folhagem morena brilhante — vai
fazer você se decepcionar
04 Gostas muito de nós — mas tua admiração é falsa
05 Mesmo quando estamos juntos — tua admiração é falsa
05 Gostas de nos ter nas mãos como se fossemos bichos
de estimação — mas tua admiração é falsa
05 Gostas de nos admirar como se fossemos aves — mas
05 tua admiração é falsa

DIZEM QUE PARAKAU (CANTO INFANTIL) 9

01 Dizem que Parakau morreu


02 Por que será que morreu?
03 Com um barulho brilhante mataram ele
04 Tenho muitos nomes — até de sapo já me apelidaram

CANTO A ÑAMANDU (NOSSA VIDA MESMA)10

01 Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
02 Estás aqui Ñamandu
03 Nossa vida nós te contamos tudo
04 Tua brisa nos alivia
05 Porque és nosso pai verdadeiro

41
06 Aipoma ndaje, nde remimombe’u
07 Nde yvy’o eipojava e’i
08 Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
09 Nde jepapa rovapy
10 Öã–ã–ã–ã–ã–ã–ã–ã
11 Aipo nde yvaropy mbytere
12 Ñande reko’ire
13 Ñande jeupity rai’ie’y
14 Nde jee memê, nde remimopu’ã

01 Aipo rami, ñane mba’ea’ã rovapy


02 Hekoupity va’e ramõ
03 Há rire mirami
04 Yvypo hembiupity rã’ie’y

05 Che ru kuery, che sy kue’iry


06 Ha rire aiporami, jajoguerojapysaka
07 Joja’i va’era’y
08 Ñane mbojapysaka mboae va’erã riaemã

09 Ijavaete rei katue’y


10 Ha’e ramingua, aiporami ajapysaka’i aguã
11 Rami ranga’y ete che yvarapy

kosmofonia mbyá-guarani 42
06 Escutamos tuas palavras que falam & dizem
07 Cuidem com muito cuidado da casa do ritual
08 Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
Ei – ei – ei – ei – ei – ei – ei - ei
09 O eco de tuas palavras chegam até aqui
10 Öã–ã–ã–ã–ã–ã–ã–ã
11 Desde o centro do teu universo
12 Cuidas nossas vidas
13 Por nossas fraquezas
14 Por nós que graças a tua energia ficamos
em pé todos os dias
01 É isso — é este o sentido do nosso mba’ea’ã
02 Para que possamos despertar e entender
03 E que depois
04 Essas pessoas de carne & osso
que não conseguem mais entender
05 Ouçam mais nossos pais todos e nossas mães todas
06 e assim sendo então os que já não
07 sabemos mais cuidar uns aos outros
08 (tomara que) essas coisas que distraem tanto nossas
palavras
09 não nos destruam tanto
10 É por isso então que cantamos e rezamos
11 Para que já não nos equivoquemos tanto.

43
YVY POTYRA17

01 Jaapamitamã ko yvygui
02 Jaa jajekapapami
03 Ikatuãguaicha ko yvypy potyicha
04 Yvy reko asy py
05 Mbyá’í opytava
06 Opyta porã’i haguaicha.
07 He’ivypy:
08 Ô’ropyta porã’i.
09 Ô’roñevanga porã’i.
10 Yvy potyra.
11 Ô’roguerojekuaa haguã
12 Ore famija kuera mimime
13 Hembiupi rã’i

14 Oipota
15 Ô’roguero ñevanga ko yvype
16 Ô’ropytamiva
17 Ore remiariro’i kuery
18 Ñembopyta’i kuery pe
19 Oipota
20 Yvy potyra roguerojekuaa

kosmofonia mbyá-guarani 44
A TERRA QUE SE ABRE COMO FLOR17

01 Vamos nessa vamos partir desta terra


02 Vamos nos mandar
03 Para que os filhos desta terra
04 Terra de sofrimentos
05 Os poucos Mbyá que sobrem sobre ela
06 Fiquem numa boa.
07 Eles dirão:
08 Ficamos numa boa..
09 Estamos numa boa
10 A terra se abre como flor
11 Todos podem ver
12 Nossa pequena família numa boa
13 Alimentos brotam por encantamento
para nossas bocas
14 Queremos
15 Encher a terra de vida
16 Nós os poucos (Mbyá) que sobramos
17 Nossos netos todos
18 Os abandonados todos
19 Queremos que todos vejam
20 Como a terra se abre como flor

45
JEOVASA RAÑE’IE’Y (ORE ÑE’E RUETE)21

01 A–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a
02 Aiporami arojae’ô – ô – ô – ô – ô
03 Nde yvarapy – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y
04 Nde remimbo jeguakava

05 Ndevy che yvarapi


06 Aipo Ñamandu yvaroka - a - a - a - a - a - a - a - a - a - a - a

07 Arojae’o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o
08 Ñamandu arojae’o
09 Opa marãngua ete
10 Nê mba’e ra’ã rovapy
11 Aipo rity’i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i

12 Aipo ñane mba’ea’ã – ã – ã – ã – ã – ã – ã – ã – ã – ã – ã

VAKA PARA’I (MITÃ PURAHEI)24

01 Toke mitã — togueru nde ru


02 Vaka para’í — nde rymbara’i
03 Ipirekue’i nde rupara’i
04 Ju’a para’i ne mbavykyra’i
05 Tapiti nambikue’i ne po’yra’i

kosmofonia mbyá-guarani 46
TANGARÁ (DANÇA RITUAL)21

01 A–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a–a
02 Então eu canto um canto desencantado ô – ô – ô – ô – ô
03 Por teu mundo – e – e – e – e – e – e – e – e
04 Por teus filhos jeguakava - ô - ô - ô - ô - ô - ô - ô - ô
-ô-ô-ô
05 Por esse mundo do qual também faço parte
06 É isso, Ñamandu, por teu mundo - ô - ô - ô - ô - ô
-ô-ô-ô
07 Eu canto um canto desencantado - ô - ô - ô - ô - ô - ô - ô
08 Ô Ñamandu!
09 Para que passem os males que nos sufocam
10 Para que seja legal a travessia da qual fazemos parte
11 Para que as palavras do nosso esforçado
canto (mba’ ea’ ã)
12 Também tenham o mesmo sentido, a mesma graça,
a mesma grandeza, a mesma luz, a mesma força
(interior) das palavras do teu canto esforçado (mba’
ea’ ã).

VAQUINHA PINTADA (CANTO INFANTIL)24

01 Dorme guri — que o teu pai vai


02 Trazer uma vakinha pintada pra você curtir
03 De seu courinho velho vamos fazer uma cama pequena
04 Frutinhas de ju’a pra você ficar numa boa
05 Orelhinha de coelho pra fazer teu colar

47
ÑEMBO’E MBORAHEI28

01 Emba’erã vo’i ñane rembijerojae’o

02 Ojeepe voi tyrã ra’e


03 Emba’erã vo’i ñane pyhamo rupa rupa

04 Ojeecha mboguejy aguaje


05 Pe asy rañe rañe ivara
06 Ererahapa he’i che ru’i
07 Peruramo jepe
08 Mba’ere katu
09 Ore ndoroechairamô jepe
10 He’i chenga’u mba’e ra’arô
11 Ne mba’e, mba’e nga’u
12 Upe tataypy rupa, rupa
12 Ha’nda pe hupitypaiva mba’erepa
14 To’a’i pende japychaka haguã’i va’e
15 Pende rataypy kupe, kupe
16 Emba’e, mba’e paha
17 Hera’i poramiro
18 Pomombe’u’i va’erã
19 Emba’e rã’i voi
20 Aipo repyta mba’erã voi
21 Hetaite anga’i rojoguerojekuaa’ive
22 Peva há’e che ru’i kuery há’e
23 Che sy’i kuery ha’e
24 Emba’erã’i voi há’e
25 Pe katu anga yvyporã’i
26 Nde mba’erã i aipo
27 Opyrû Papa yvy...

kosmofonia mbyá-guarani 48
CANTO-REZA28

01 Nosso canto fúnebre é por aquele que já não está


mais entre nós
02 Disseram que era uma vingança
03 Nosso canto fúnebre é por aquele que já não está
mais entre nós
04 Para que possamos ver desaparecer
05 Esses males que nos sufocam
06 Podem levá-lo disse meu pai
07 Mesmo que voltasse para nós
08 Por que é que
09 Nós não podemos ver
10 Se eu pudesse ter pressentido
11 Se você talvez tivesse previsto
12 Ao redor dos fogões (das aldeias)
12 Mas vocês não podem ver o invisível porque
14 Ninguém mais dá importância para estas coisas
15 Pelas periferias da aldeia
16 Era para ele este final
17 Mesmo que tivesse um nome bom
18 Vou pedir por todos
19 Era para ele e ponto final
20 Se tivesse ficado talvez
21 Nos tivéssemos conhecido mais e melhor
22 É isso, meus pais todos
23 É isso, minhas mães todas
24 Era pra ele e ponto final
25 Essa condição humana.
26 Talvez fosse seu destino
27 Por isso agora mora na terra do Pai... Jahá: Vamos.

49
kosmofonia mbyá-guarani 50
notas e comentárioS

Ñañembovy’a / Vamos nos alegrar

Jahá: Vamos.
Ñañô mbovy’á: Vamos nos divertir juntos.
Pindô: Palmeira (Cocos Romanzoffianum).
Ove: Folhas.
Ju: Dourado, áureo.
Pindo oveju: Palmeira de folhas amarelas, palmeira áurea.
Os avá-guarani denominam desse modo os meninos de
pele clara.
Ka’a oveju: Erva de folhas brilhantes. Para os avá-guarani
é uma forma carinhosa e simpática de llamar os meninos
de pele morena brilhosa.
Ka’a: Erva.
Ove: Folhas.
Ju: Dourado, brilhante, cor de sol.
Ka’a: Mato, erva, planta, vegetal.
Nêmbo jae’o: O que te faz lamentar, o que te faz sofrer ou
chorar.
Remô morâmba rei: Te admira muito e falsamente.
Hipocrisia.

Segundo León Cadogan, nas notas que aparecem na pri-


meira edição paraguaia de seu Ayvu Rapyta, organizada
por Bartomeu Melià: “os Mburuvichás mais versados nas
antigas tradições ensinam que as vestimentas dos deuses
são de cor amarela clara, ju, cor de sol; e azul claro, cor de
céu, ovy. Estas cores são consideradas, por conseguinte,

51
sagradas e emblemáticas da divindade; sendo indestrutí-
veis, eternas, como o são o sol e o céu. São empregadas
para traduzir estes conceitos”. — Douglas Diegues

Kotyu: É um canto-jogo dos Avá-guarani. Normalmente é


realizado pelos meninos e pelas meninas. É um intercâm-
bio de frases que aludem ao cotidiano das pessoas dessa
idade. Esse canto-jogo é realizado fora dos espaços ceri-
moniais, no pátio, na casa de quem tem filhos jovens. Para
cantar-jogar o Kotyu, os jovens formam uma roda e can-
tam e dançam de mãos dadas, e dizem de maneira jocosa
o que eles observam deles mesmos. Neste Kotyu, especi-
ficamente, os meninos riem da indecisão das meninas. —
Kerechú Pará

Muitos especialistas afirmam que u instrumento musical


mais antigo du mundo es el arco con cuerda. Pero, al oubir
este Kotyu, descobri que existe um instrumento musical
mais antigo ainda, el cuerpo humano. Do corpo brotam
la voz y los demais sons y ruídos que el corpo es capaz
de produzir ou expressar. Los sonidos que nacieron de los
cuerpos de los antigos Mbyás son los primeros sonidos
produzidos por los Mbyá-Guarani. De um lado y del outro
lado de la fronteira, los Mbyá sempre usaram el corpo, com
talento, para fazer música, pintura, escultura, danza, cultu-
ra, antropoiésis. Atualmente, eles seguem en la lucha para
non serem expulsos de seus territórios ancestrales. Com el
cuerpo los Mbyás cantam, bailan, caminan, fabrican uten-
silios, hacen sus proprias casas, tocan pré-violinos, flautas,
violones, plantam, colhem, preparam la chicha. Segundo
León Cadogan, “afirman los mbruvichá encargados de

kosmofonia mbyá-guarani 52
transmitir las tradiciones espirituales a los de su tribu, que
si viviéramos de acuerdo a los preceptos morales del Teko
Porã, siguiendo un régimen alimenticio estrictamente ve-
getariano, nos purificaríamos, librando nuestro ser del
lastre que representa Teko Achy (asy) — la parte grosera,
animal de nuestra naturaleza. Nuestro cuerpo, purificán-
dose, perdería paulatinamente su peso, volviéndose suti-
lísimo; utilizando la expresión Mbyá-Guaraní: oñembohete
mandiju — el cuerpo se torna (imponderable) como el al-
godón —. Angue, la porción puramente humana del alma,
la sombra de las pasiones, los apetitos, de teko achy, se
ve obligada a abandonar este vehículo en que ya no tie-
nen cabida las impurezas e imperfecciones. Y, en cuanto el
cuerpo purificado solo alberga a Ñe´eng, la palabra-alma
enviada por los dioses, alcanzaríamos nosotros también, a
semejanza de los habitantes de Yvy Tenonde, el estado de
perfección (aguyje), y nos incorporaríamos a las huestes
de los habitantes de Yvy Marã´e´y, sin sufrir la prueba de
la muerte”. — Douglas Diegues

Parakau ndaje (mitã purahei) /


Dizem que parakau (canto infantil)

Parakau: Papagaio falante.


Hendyrei: Brilhou mucho. Resplandeceu repentinamente.
Estampido. Barulho.
Che rera eta: tengo muchas denominaciones. No tengo
un solo nombre. Me conocen de muchas maneras.
Che gueró: Me apelhidou. Me apelhidaram.
Kururu: Sapo.
Kururu che gueró: Me apelhidaram de sapo.

53
No relato referente à terra primeira este papagaio ajuda o
Pai Primeiro a atravessar o Rio Paraná, quando segue para
a terra dos Urutue (Brasil), rumo a sua paragem de céu.
Também é com as plumas do Parakau que nosso Pai Pri-
meiro indica os atalhos enganosos que seus filhos deverão
ter cuidado de seguir quando forem junto a ele e nesse
mesmo relato também se refere à qualidade premonitó-
ria do Parakau, quando avisa a Ñamandu que os frutos de
sua caça era para alimentar os devoradores de sua mãe.
— Kerechú Pará

Esta é uma canção que as mães e avós cantam para as


crianças pequenas quando a noite cai. É também uma for-
ma de ensiná-las desde o berço as palavras e histórias de
seu povo. É desse que modo que bem cedo as próprias
crianças brincam de cantar esse canto. — Kerechú Pará

Ñamandu mborai (ñevanga reko) /


Canto a Ñamandu (nossa vida mesma)

Mba’ea’ã: Canto Falado-Rezado.

Ñamandu Mborai é um canto matinal, um canto em reve-


rência à deidade solar Ñamandu. Quando começa a clare-
ar o dia, todos devem entrar no Opy (casa ritual, templo)
para conjurar em favor do novo dia e especialmente para
pedir a proteção em relação a todas as coisas que trans-
tornam suas vidas, para que aqueles que não despertaram
ainda possam ter a oportunidade de voltar a ver a luz. Umi
oikova pyavy, os que se afastaram de seu verdadeiro modo

kosmofonia mbyá-guarani 54
de ser, os que vivem às escuras... Também dizem no canto
desse dia que, Ñamandu lhes pede para que cuidem bem
do Opy, porque virá um vento muito forte. Pode-se notar
o mborai joyvy, canto masculino acompanhado do canto
feminino, o canto da mulher elevando as belas palavras do
Ñanderu, uma bela maneira de evidenciar a importância da
interdependência do homem e da mulher na cultura Mbyá.
— Kerechú Pará

Yvy potyra / A terra que se abre como flor

Asy: Dolente, sofrida.


Famija: Híbrido castelhano-guaranizado. Família.
Jaa: Vamos.
Jaapa: Vamos todos.
Jaapamîtama: É tempo de ir, de ir todos juntos.
Jaajekapapami: Híbrido guarani-castelhano (Jaa +
escapar).

Yvy reko asy py


Yvy: Terra.
Reko: Vida.
Py: Dentro, ali. Terra dolente. Sofrimentos terrenais.
Opytava: O que fica.
Opyta: Fica.
Ropyta: Ficamos. Também na linguagem religiosa se
utiliza ropyta pyta re’i, referindo-se aos descendentes,
os que ficam.
Porã’i: Bom, que tem infinita bondade.
He’ivypy he’i: Diz.
He’ivy: ao dizer, ao expressar.

55
Py: Dentro, Contido. Ao dizer assim. O conteúdo de suas
expressões.
Ñevanga: Divertir-se, jogar, entreter-se, viver
sossegadamente.
Ñevanga porã: Divertir-se saudavelmente, viver
alegremente.

Yvy potyra
Yvy: Terra.
Poty: Coração, fonte de vida, flor.
Potyra: Que germinará, florescerá. Terra que se floresce,
terra fértil.
Roguerojekuaa: Fazemos conhecer. O apresentamos.

Hembiupirã’i
Hembiupi: O que se eleva, o que se leva à boca.
Râ: Para. Algo para llevar a la boca. Comida.
Ore remiarirô’i kuery: Neto/neta (feminino). Todos nossos
nietos.
Ñembo pyta’i kuery: Os que ficam. Os abandonados.

Yvy potyra se refere a uma das grandes migrações que


tiveram de realizar os Mbyá-Guarani em 1947. Neste mba’e
mombe’u rovapy (relato de algo sucedido), Ñandesy conta
que apesar de estarem em uma terra florescente, é chega-
da a hora de partir, é chegado o momento de partir, e em
seu clamor, pede a Ñanderu Ete (Pai Verdadeiro), que não
desampare os que decidissem ficar ou tivessem de ficar.
Além do mais, os que permaneceriam nestas terras, tão só
pediam aos que partiam que lhes deixassem conhecer o
lugar aonde iam. — Kerechú Pará

kosmofonia mbyá-guarani 56
Jeovasa rañe’ie’y (ore ñe’e ruete)
Tangará (dança ritual)

Ñamandu: Um dos nomes Mbyá do Criador, também


chamado, segundo León Cadogan, de Ñande Ru Papa
Tenonde (Nosso Pai Último-último primeiro), Ñamanduí,
Ñamandu Ru Ete, Ñande Ru Tenonde, Ñamandu Ru Ete
Tenonde, Ñamandu Yma.
Jeguakava: Os que levam o adorno (emblema) da
masculinidade.

Este canto-rezado do Ñanderu é um canto de desabafo e


sofrimento incontrolável por tudo o quem tem acontecido
à terra, ao universo, à criação mesma de Ñamandu. Neste
canto, o xamã pede, por intermédio de Tupã e Ñamandu,
força interior e iluminação para compreender o que so-
mente os deuses podem desvelar, por isso pedem por
intermédio de tupã a Ñamandu pela razão de seus cantos
desencantados. — Kerechú Pará

Vaka paraí / Vaquinha pintada

El canto infantil Mbyá reflete a inocência da infância Mbyá-


-Guarani. Um dos primeiros brinquedos de uma criança
Mbyá-Guarani é a água. Mas o canto infantil também pode
ser considerado um brinquedo. El poeta argentino Aldo
Pellegrini anotou uma vez que “nada existe mais opuesto a
la imbecilidade que la inocencia”. No mundo contemporâ-
neo, podemos dizer, com Pellegrini, que nada existe mais
oposto à imbecilidade do que a inocência do canto infantil
Mbyá-Guarani. — Douglas Diegues

57
Ñembo’e mborahei / Canto-reza

Teko avy, o homicídio, segundo León Cadogan, é consi-


derado el peor de los delitos no mundo Mbyá-Guarani.
Os que incorrem em teko avy, devem ser entregues pelos
deuses a Mba’e Pochy, o ser colérico, quem irá devorar as
almas dos que arrebataram a vida dos seus semelhantes. A
entrega da alma do que cometeu teko avy, para ser devo-
rada por Mba’e Pochy e assim desaparecer para sempre,
é motivo de regozijo, e é celebrado com alegres toques
de angu’a y mba’epu — caixas e tambores. Conforme afir-
mou o mburuvichá Pablo Vera a León Cadogan, os Mbyá
celebram a entrega  porque cumpriu-se a lei legada por
Ñande Ru; purgou-se um crime — oñemboekoviá teko avy;
e o cumprimento de uma lei é motivo de regozijo para os
Mbyá. De acordo com o que foi relatado por Pablo Vera a
León Cadogan, el angue (fantasma) de uma vítima de teko
asy não consegue encontrar paz enquanto o crime perma-
necer impune. — Douglas Diegues

Comentando los hinos fúnebres por la muerte de Benito


Ramos, Carlos Martínez Gamba afirma que “não sabemos
até onde podemos dizer se estes hinos mortuários
conformam ou não uma literatura; ao menos não foram
concebidos com essa intenção.
Por último, nos permitimos recomendar a compilação
da oratura mbyá em Misiones (Argentina); oratura que,
quando levada ao papel, transforma-se em uma poesia
ante a qual empalidece a dos “brancos” destas terras”.

kosmofonia mbyá-guarani 58
OUVIDOS CIVILIZADOS
VERSUS
MÚSICA SELVAGEM
A VELHA-NOVA MÚSICA
MBYÁ-GUARANI OU
OS SONS-RUÍDOS DAS
CANÇÕES INDÍGENAS
SÉRGIO MEDEIROS

Ouvindo este cd de músicas e canções Mbyá-Guarani,


tive a impressão de que as vozes e os instrumentos não
estavam parados, mas se deslocavam no espaço, avança-
vam, surgiam e desapareciam, às vezes próximos, às vezes
distantes, trazidos ou levados pelo vento, em meio a uma
mata ou floresta de ruídos, risos (abafados ou não), tosses,
vozes espontâneas, que podia ser espessa ou não, mas
que, todavia, estava sempre presente. Lembrei-me ime-
diatamente de um texto de Julio Cortazar sobre o maior
cantor argentino, onde ele afirmava que o preferia ouvir
nos primeiros discos, antigos e ruidosos: “ Imediatamente
se compreende que Gardel é preciso escutar no gramofo-
ne, com toda a distorção e a perda imagináveis; sua voz
sai como a conheceu o povo que não podia escutá-lo em
pessoa, como saía de saguões e de salas por volta de vinte
e quatro ou vinte e cinco.” Imediatamente se compreen-
de, acrescento eu, que estas canções indígenas também
estão, e precisam estar, como o Gardel de Cortazar, num
ninho de ruídos, neste caso, ruídos da aldeia e, mais além,
ruídos da natureza que circunda a aldeia. É assim, pelo
menos, que Guillermo Sequera nos oferece a arte musical
dos Mbyá-Guarani: dentro do seu contexto mais imediato,
mais original. E isso é convincente.

61
Essa impressão foi motivada, sobretudo, pela inclusão,
entre uma faixa e outra, de pequena amostra do som natu-
ral que circunda as aldeias indígenas do Paraguai, sobres-
saindo a cantoria de rãs míticas e verdadeiras. (Trata-se,
evidentemente, de um arranjo que devemos menos aos
próprios guaranis do que à sensibilidade de Guillermo Se-
quera, que escolheu, gravou e organizou as canções, en-
tremeando-as de ruídos ou preservando os sons naturais e
cotidianos que são inseparáveis dessas canções.) Sei que
esse som privilegia o ruído volumoso do banhado, esse
interminável ruído emitido pelo mundo úmido à noite, em
especial. Pois as canções passeiam por veredas circunda-
das de ruídos da mata e do banhado, indo e vindo nôma-
des (e a família guarani é nômade, a cultura é trazida ou
levada pelos seus expoentes musicais, que se dirigem à
terra sem mal) neste cd que retrata uma cultura e seu en-
torno. Exceto que, aqui, a circunvizinhança das canções é
parte delas próprias. Não apenas os ruídos circundam as
canções, como acabam por penetrar nelas, inseminando-
-as de impurezas de toda sorte, de modo que o banhado e
a mata estão também dentro das faixas, assim como falas
e sorrisos e outros ruídos humanos. É impossível, acredito,
separar a arte guarani da natureza que a circunda, e essa
é uma das mensagens políticas deste cd. E talvez não seja
impertinente citar agora uma observação que Luigi Russo-
lo, o teórico futurista, registrou em seu famoso manifesto
“A Arte dos Ruídos”, de 1913: a música ocidental, distinta e
independente da vida, havia trabalhado apenas com sons,
renegando o ruído, imbuída que estava na busca da pure-
za, da limpidez e da doçura, acariciando “os ouvidos com
suaves harmonias”. Guillermo Sequera, como Russolo, pa-

kosmofonia mbyá-guarani 62
rece acreditar que é preciso romper o círculo estreito dos
sons puros e conquistar a variedade infinita dos “sons-ru-
ídos”, para retratar verdadeiramente a arte musical indí-
gena.

Isso me recorda uma conversa que eu e Dirce Waltrick


do Amarante tivemos com Donaldo Schüler, o tradutor de
Finnegans Wake para o português. O assunto era a arte
contemporânea. Ele nos disse: “Temos que reformular o
conceito de arte. Da perspectiva aristotélica, a arte imita
a natureza. Só que agora a diferença entre arte e natureza
desapareceu. A arte não tem que imitar a natureza. Perce-
bemos então a poetização da vida. O que já se anunciava
em Nietzsche e também nas vanguardas.” Este cd agra-
dará ao ilustre tradutor de Joyce, porque, não sendo arte
experimental, dela todavia se aproxima, pela feliz circuns-
tância de abolir a fronteira entre arte e natureza, música e
ruído e, conseqüentemente, num sentido mais amplo, en-
tre o ritual (a cultura) e o cotidiano.

A receita deste cd é, em suma, criar, à maneira de John


Cage, simultaneidade, abundância e também uma saudá-
vel anarquia, desacreditando fronteiras estabelecidas. Ali-
ás, Cage foi leitor de Joyce e transformou o herói de Finne-
gans Wake, o misterioso e errante Here Comes Everybody,
num princípio musical: “here comes everything”, aqui en-
tra tudo. Diria que este cd de cantos e canções Mbyá-Gua-
rani também segue a mesma divisa e, nele, generosamen-
te, “comes everything”.

63
OUVINDO LA MÚSICA MBYÁ
POR PRIMEIRA VEZ
Ludovic Pin

La primera vez que escuché musica Mbyá, fue en el


2001, gracias a las grabaciones realizadas por Guillermo
Sequera.
En aquella época, empezaba a interesarme yo por la et-
nomusicología y, cansado del formato radiofónico, busca-
ba escuchar formas sonoras desconectadas de esas reali-
dades mercantiles. Esperaba descubrir, a través de esa vía,
nuveos universos musicales que pudiesen despertar en mi
el curioso misterio de la construcción sonora.
¡Cuántas veces me he preguntado de dónde podía na-
cer el interés por la etnomusicologia. ¿Simple exotismo de
un joven músico occidental o problema de fondo?
Creo que, habiendo estado en el Paraguay durante el
verano 2004, se desvanecieron parte de mis interrogacio-
nes. La etnomusicologia no es sino una manera, un mé-
todo para poder abordar a los grupos o individuos con
los cuales se quiere intercambiar y compartir experiencias
humanas. No es nada la etnomusicologia sin la nocion de
intercambio y — hoy en día estoy convencido de ello — no
es nada sin la idea de compromiso.
Efectivamente, si hay una cosa que me convenció duran-
te mi estadía en el PY, y mas que nada al estar en contacto
con los estudios de Mito Sequera, fue que el intercambio
con las comunidades indígenas y campesinas del PY solo
pueden ser perceptibles y utiles sin un trabajo de valori-
zación cultural cuya música representa tan solo uno de los

kosmofonia mbyá-guarani 64
elementos. En este caso, por qué haber elegido la música
en vez de la agricultura o arqueologia? Simplemente por-
que, músico yo mismo, la música me lleva a acercarme a la
gente, es esta que me libera de una gran timidez y que me
permite abrirme sobre el intercambio.
Si ocurría de tal manera para mi, estoy seguro de que
también podía ser el caso de la población y que la explo-
ración y presentación de « las músicas del otro » era una
herramienta primordial para sensibilizar a ciertas tradicio-
nes culturales.
La idea es, aqui, usar el potencial sensible de la música
para abrir brechas y permitir a ciertas sociedades en difi-
cultad incluirse dentro de nuevos lazos desligados de la
idea de inferioridad y exotismo.
Valorizar a una sociedad marginalizada significa ayu-
darla a ganar o volver a ganar su lugar dentro de los pro-
cesos de intercambios.
Aqui tienen en pocas líneas las razones de mi interés et-
nomusicológico y, en este sentido, las conversaciones que
tuve con muchos paraguayos de origenes variados me han
convencido de que Paraguay es un territorio donde hay
por hacer y establecer.
Ojala, así como lo fue para mi, este disco les permita
apreciar e interrogarse, pero sobre todo participar a las
primeras fundaciones que Mito Sequera ya ha inaugurado
bastante. Es un edificio dificil de construir en el cual, me
parece, la noción de patrimonio es primordial.
Dicha noción de patrimonio es esencial porque también
se encuentra en los Mbyá y porque permite mostrar que,
mucho mas que un patrimonio propio de su sociedad, los
Mbyá detienen un patrimonio universal.

65
Esto es suficiente para demostrar los numerosos inter-
cambios que han conocido a lo largo de su historia. Desde
el punto de vista organológico, se trata obviamente de los
dos instrumentos que les llega de la experiencia misionera
jesuitica: el ravel y el kumijare.
Ancestro del violoncello, el ravel hoy en dia ha desapa-
recido totalmente del instrumentarium occidental, de ma-
nera que se puede considerar a los Mbyá como los ùltimos
detentores de esta cadena de la evolución organológica
occidental. Tocante al kuminjare sigue siendo, para mi, un
misterio.
Efectivamente, cuando escucho estos dos instrumen-
tos, muchas cosas me vienen a la mente, y en ello preci-
samente esta música me habla y me conmueve. Melodías
arabo-andaluzas, ostinato, heterofonia que recuerdan las
de Africa Central, acompañamiento rítmico que puede asi-
milarse a los del country o del blues, y tantos más. Todo,
para decir cuantos verdaderos misterios sonoros pone la
música Mbyá en perspectiva.
Así es como al escucharlo, retomando la idea de Freud,
son numerosos los temas musicales que parecen “extraña-
mente familiares”. Con sus numerosos intercambios cultu-
rales, los Mbyá parecen haber explorado continuamente
nuevas formas para llegar a un repertorio vivaz y en mo-
vimiento.
Las diferencias sonoras entre las diversas comunidades
Mbyá son prueba de ello. A pesar de que se conserven
algunos rasgos genéricos tales como los instrumentos, el
nombre de los bailes, etc.... existen ciertos aspectos dis-
tintivos como el de la técnica vocal que parece ser muy
característico segùn las comunidades.

kosmofonia mbyá-guarani 66
Con un conjunto de fuertes y coherentes experiencias
culturales, las diversas comunidades Mbyá expresan una
representación sonora del mundo muy particular que Mito
Sequera llama cosmofonía. Aquí se encuentra la muy im-
portante idea de una organización y de una representa-
ción sonora del mundo. Son, pues, esenciales la conversa-
ción y la integración en cuanto instrumentos sagrados de
ciertos instrumentos Mbyá en su repertorio.
Todas estas pequeñas ideas para decir que músicas
tradicionales no equivalen a música del pasado o música
fenecida. Efectivamente, si los Mbyá conservaron instru-
mentos y eventualmente algunas estructuras sonoras de
experiencia jesuita, no por ello haya que pensar que in-
terpretan hoy en día el repertorio musical enseñado por
los jesuitas. De esta experiencia, los Mbyá conservaron los
elementos que han adoptado pero creando formas pro-
pias y originales.
Así, las construcciones sonoras de los Mbyá iluminan y
valorizan los intercambios culturales y es evidente que es
esta compleja idea del intercambio sobre la cual hay que
investigar hoy.

67
kosmofonia mbyá-guarani 68
KOSMOFONIA MBYÁ GUARANY
Manoel de Barros

Ouvi os cantos, a voz, os murmúrios


dos MBYÁ Guaranis. Eles me transportaram
para a fonte das palavras. Me levaram
para os ancestrais, para os fósseis
lingüísticos, lá onde se misturam
as primeiras formas, as primeiras
vozes! A voz das águas, do sol, das
crianças, dos pássaros, das árvores
das rãs... Passei quase duas horas
deitado nos meus inícios, nos
inícios dos cantos do homem.

69
OS ESTILOS SÔNICOS
DOS GUARANI
Massimo Canevacci

Escutando a música Mbyá-Guaranì me parece claro a


complexidade e tamben a variedade deste tipo de com-
posição sônica. Contrariamente a quanto foi teorizado so-
bre a “entropia” das culturas indígenas — a sua irreversí-
vel disolução final — neste tipo assim plural de panoramas
sonoros se escuta tambèn a vida inovadora deste popolo
e da sua cultura. A utilização dos strumentos contempo-
raneos se cruza com extrema felicidade com os timbres
da tradição. De mais: não existe tradição sem innovação.
Se uma cultura fica parada no suo passado, è morta. Cada
cultura e tambèn cada individuo tem de se experimentar
como multividuo: istoé como uma pluralidade de eus no
mesmo sujeto. E assim acontece neste tipo di musica. A
pluralidade musical se produce justamente graças a este
movimento que desloca as raizes (roots) nas veredas (rou-
tes). Este transito è caracteristico de vidalidade, força,
inovação, creatividate: numa palavra, de cultura. E Guiller-
mo Sequera realiza uma ópera de pesquisa estremamen-
te de vanguardia. Um exemplo na direção de ultrapassar
à museificação duma cultura indígena. Gostei dos flautos
(22,26), da voz cheia de ternura cheia de alegria das crian-
ças (4, 9, 24), dos violãos e das maracas, das polifonia des-
te strumento e expreção vocais, de strumento que parece
evocar o som da floresta. E da agua inicial que acompanha
a vida a se revitalizar (1). Tudo isso pra me significa qua a
cultura Mbyá-Guaranì è viva, fica com a sua individualida-

kosmofonia mbyá-guarani 70
de na história, na história do Brasil e na sua própria histó-
ria, que não coincide com aquela. A historia guaranì tem a
sua relativa autonomia que è um bem muito precioso. Do
um outro punto de vista, este tipo di musica se caracte-
riza pelo suo sincretismo. Pra me significa não mais uma
relação com o velho sincretismo religioso, mas com uma
coisa bem mais creativa e diferente: os sincretismos cultu-
rais tem uma enorme capacidade di misturar culturas, es-
tilos, biografias, e tamben panoramas sônicos. Um pano-
rama sônico mestiço è felicidade. Pra me os sincretismos
musicais são fundamentais pra entendere se uma pessoa
ou uma cultura desenvolve a sua própria história, os suos
contos, os suos itinerários: as suas diferencias. Magnífico o
canto bem ritual (28) que, no ritmo dos bastões rítmicos,
tambèn os códigos dançam. Esta dança dos códigos e dos
corpos è uma clara testimoniancia da vivacidade duma
cultura que no mutamento desenvolve a sua creatividade
no presente-futuro e não na fixidade no passado. È um
prazer tamben pra me, aqui em Roma, escutar e dançar na
mea casa aos ritmos Mbyá.

71
El Conocimiento a Traves
de los Cinco Sentidos
Magali Sequera

“El concepto Mbyá del sonido se origina en andu per-


cibir la biodiversidad”, nos dice Guillermo Sequera en su
presentación del disco “Paraguay: Música Mbyá-Guaraní.”
Si se trata de un ordenamiento cultural de los sonidos,
una cosmofonía; entonces, también es justo ver la diversi-
dad de los elementos que constituyen el cd: música, pala-
bra y fotografía.
Un conjunto que releva no sólo la música Mbyá-Guara-
ní, sino también su cotidiano: el machacar, el concierto de
ranas, el corrido del arroyo, etc. El disco apela constan-
temente a tres de nuestros cinco sentidos: Oido, vista y
tacto.
Tres sentidos que nos permiten adentrarnos en la cos-
movisión de los Mbyá-Guaraní.
Es una invitación a sentarnos en las butacas de un tea-
tro al aire libre. Bien instalados, empezamos a escuchar.
No somos tan solo espectadores, sino protagonistas:
participamos en la puesta en escena, ya que la mujer cha-
mán nos habla directamente, los rostros fotografiados cla-
van su mirada en la nuestra. Estamos en los departamen-
tos de Kanindejú y Caaguazú, en un Paraguay que pocos
conocen y han escuchado.
El sonido es el elemento primordial de nuestros senti-
dos; es percibido antes de la forma, precede la vista; tal vez
por eso esté simbólicamente al origen del cosmo. Pero por

kosmofonia mbyá-guarani 72
eso también, ambos sentidos son esenciales. Las fotogra-
fías que ilustran el disco no son meramente explicativas,
como pueden ser las de otro etnólogo como Lévi-Strauss.
Por su estética y valía, es necesario ver de qué manera
vista y oído se complementan en este disco; de tal mane-
ra que uno y otro son indisociables para poder percibir
y asimilar íntegramente la cosmofonía Mbyá-Guaraní. Una
característica abarca la mayoría de los temas. Advertimos
una misma búsqueda del sonido puro: El son depurado del
ravel, el de la flauta o el de la voz infantil.
Encontramos esa misma búsqueda de la línea en la serie
de fotografías que ilustran el disco de Guillermo Sequera.
Entrecruces de líneas que otorgan un matiz casi mini-
mal a las fotografías: el mortero de la mujer machacando
es perfectamente paralelo con los palos de madera en pri-
mer plano de la fotografía. Más asombroso es el caer de
las semillas que se junta en un mismo punto de fuga con
los palos en primer plano.
La toma ladeada del hombre sosteniendo el ravel, acen-
túa el paralelismo entre la posición del instrumento y los
paneles de madera de la pared, en segundo plano.
Es interesante contraponer el trabajo fotográfico de
Guillermo Sequera, que se distingue del trabajo de Martin
Chambi. Chambi (1891-1973), fotógrafo peruano, ha enfo-
cado parte de su trabajo sobre comunidades indígenas del
Cuzco. Pero, así como los demás protagonistas de su tra-
bajo, M. Chambi siempre ha optado por el grupo, descar-
tando el retrato individual.
Guillermo Sequera, él, privilegia el retrato unipersonal;
enfocando los rostros, las manos, los instrumentos.
Con ello, logra entregar a cada uno la trascendencia de

73
su desempeño dentro de la comunidad, el aporte musical
de cada uno. Pero también y sobre todo, el ojo cámara de
G. Sequera logra captar la palabra de los ojos. Estos mis-
mos ojos que nos interpelan, a través de esa mirada nos
convidan a escucharlos, a entrar en su mundo. Porque se
trata de una conversación entre ellos y nosotros.
En la mayoría de las fotografías, los protagonistas nos
interpelan con su mirada: el niño que mira fijamente la cá-
mara detrás de las columnas de su casa o las dos mucha-
chas abrazadas, el niño con la cabeza inclinada que perece
casi hacernos una pregunta solo con los ojos. Son retratos
que nos recuerdan el trabajo de unos de los mayores fotó-
grafos del siglo XX, Augusto Sander (1876-1964).
Con su famosa serie de retratos Menschen des 20. Jahr-
hunderts — Hombres del siglo XX — el fotógrafo alemán
se proponía a hacer un panel de los hombres de su época.
Si Sander halló en el campesinado allá de los 20-30, la
base de su proyecto de retratista, G. Sequera, por su par-
te, quiere dar a conocer mejor a comunidades olvidadas,
y restituirles, a través de su trabajo de investigación y del
retrato fotográfico, el protagonismo que se merecen. En el
retrato, lo que más llama la atención es principalmente la
mirada. Aquí, aparece un rasgo común a todas, es la sere-
nidad que emana de cada una.
Oscar Wilde decía que los ojos son el reflejo del
alma. Un aforismo que se podría aplicar, aquí, a la músi-
ca: porque esa misma serenidad la percibimos también
al escuchar los lamentos de flautas, o la grabación #4,
Ñaguahe ñande ñanembovya — Venimos para alegrarnos
— de los niños.

kosmofonia mbyá-guarani 74
El enfoque de lleno del fotógrafo sobre el rostro de la
madre Chamán sosteniendo su pipa, enfatiza la serenidad
y la sabiduría que suponen en su función en la comunidad.
La madre-chamán no puede aparecer sin su pipa, ya
que — Según Héléne Clastres — el humo del tabaco es para
los humanos lo que la bruma para los inmortales: Fuente
de vida y de saber, el tabaco es el medio de comunica-
ción privilegiado entre los hombres y los dioses. Tantos
elementos que, no solo explican la toma fotográfica, sino
también el hecho de que sea la única persona que tenga
una grabación señera en el disco.
Un segundo elemento peculiar podemos distinguir den-
tro del conjunto de las fotografías, que se reitera en cada
una. No es actor principal sino de segundo plano, pero ele-
mento primordial: la mano.
Las manos son un reflejo y revelan indeniablemente la
vida de uno, son de alguna manera la marca de nuestra
existencia. Las manos del músico pueden, ellas solas, con-
tarnos la vida del hombre.
En las dos fotografías del hombre con el ravel, las ra-
nuras de sus manos parecen (con) fundirse con/en el ins-
trumento. Los mismos sillones que marcan el paso del
tiempo/uso, forman ya uno solo: el instrumento se vuelve
prolongación de la propia mano. Para el músico, la mano
es él, porque se comunica a través de ella y existe gracias
a ella. A través de las fotografías, tenemos la sensación de
poder alcanzar ese ravel y sentir cada cuerda del instru-
mento. La vista puede suscitar in mente tacto y oído.
En las fotografías de G. Sequera, otro de los cinco sen-
tidos está presente, es el gusto.
Son las manos de las mujeres que machacan las semi-

75
llas. Oido y gustátil están estrechamente vinculados: la
música es omnipresente en el cotidiano de los Mbyá-Gua-
raní; es el andu — percibir la biodiversidad — del cual nos
habla el etnomusicólogo. Al fin y al cabo, el protagonismo
de la mano en la serie fotográfica no tiene que sorprender.
En psicología, la mano está estrechamente vinculada
con la vista: así como el ojo, la mano ve también. Es más,
las manos del hombre van con el conocimiento, por que
tienen como fin el idioma. Por eso mismo tal importancia
en las fotografías; son el símbolo de comunicación, de un
intercambio entre la cultura Mbyá y la nuestra, occidental.
La mano es una suerte de síntesis: es pasiva en lo que
contiene, y activa en lo que lleva.
Síntesis también en Guaraní — po — un misma palabra
para indicar la mano, la cifra n°5, pero también significa la
porción de hilo que se enhebra. Retengamos entonces la
palabra Guaraní por la pluricidad del significado. Es como
si la mano pudiese contener — simbólicamente — a la vez
el hilo del ravel, y los cinco sentidos.
Entendemos mejor ahora, por qué la mano es emble-
ma real. Símbolo de destreza, la mano es también vinculo
nexo social. Es el emblema por excelencia de comunica-
ción; y a través de ella los Mbyá-Guaraní nos obsequian
toda su erudición en música, un bagaje cultural musical
que tenemos en común; el rescate de algunas técnicas y
temas de reducciones jesuíticas.
Son de alguna manera nuestros historiadores.
El presente disco da lugar a un verdadero intercambio
cultural, una comunicación entre ellos y nosotros, y nues-
tras manos ahora estrechadas son el símbolo de este nexo.

kosmofonia mbyá-guarani 76
El canto, las ranas
y los humanos
REYNALDO JIMÉNEZ

El canto iguala: al cantar, un hombre es igual a una rana.


No hay jerarquías ahí que no sean las que direfencian a los
cantares entre sí. Se trata, pues, en todo caso, de asom-
bros naturales. Naturaleza no es un concepto romántico
perimído, “superado” por el recorte racional, sino un de-
safío vital para el ciudadano occidentalizado. No es un
concepto: la naturaleza existe como percepción. Su des-
plazamiento horizontal no responde a una prerrogativa. El
canto es algo que nos acontece. El canto es anterior. Es
devenir. En aras de la voz no tiene más sentido aquella
distinción entre cuerpo y alma. La voz es naturaleza. No la
sacralidad coagulada de templos y dogmas, sino la sencil-
lez de permanecer en vínculo de reciprocidad con lo que
no es humano. Ningun antropocentrismo apagará la voz
ancestral. Y ya se sabe que todo racismo es hijo idiota de
un no menos idiota antropocentrismo.
No hay un siglo veinte ni un siglo veintiuno que alcan-
ze para apagar la infinita luz de los cantos. La voz es un
fuego. La voz y el fuego se reúnen en la fuente. No hay
distinción entre los tres. La voz es madre de la oración,
de fraseo, de movimiento sonoro y evocativo que nos de-
vuelve al animal que somos. Que llevamos dentro. Cuánto
animal seremos, por detrás de la máscara social. Cuánto
nadie hay en todos. Cuánto ninguno todavia.
Indisociable de la voz, el canto natural se enciende en

77
oración. En todo caso, poesia y musica y danza serán estas
técnicas atemporales para seguir despertando a la cele-
bración de lo que es. Simplicidad complejísima. Un entre
cruzamientos de todos los caminos en la ausencia de ca-
mino. La selva anterior a qualquer camino. Madreselva. Su
llamado es golpeteo sobre la piel del rio. La experiencia
fundamental de toda poesia y de toda música, más acá de
su estilización, de su cristalización en “Arte”, ligan con el
múltiple arte de vivir. No es cuestión de dominios, ni de
saberes “rescatados”, sino de un gesto vital. Cantos para
convocar todas las cosas y seres, hechos y ocasiones de
la vida. Al cantar, la voz se nos vuelve rana y se despega.
Vive en su propia dimensión. Recordatório votivo es esta
Kosmofonia Mbyá-Guaraní. Y un llamamiento.

kosmofonia mbyá-guarani 78
VIAGEM AO ORVALHO
EM CHAMAS
Introdução, seleção,
tradução e montagem
Douglas Diegues
VIAGEM AO ORVALHO
EM CHAMAS
DOUGLAS DIEGES

Los Mbyá-Guaraní son los grandes artistas de vanguar-


da primitiva nas fronteiras do Paraguay com o Brasil e a
Argentina.
Eles já eram futuristas, minimalistas, surrealistas y da-
daístas muitos anos antes desses movimentos eclodirem
na Europa.
Las mujeres non pintam quadros. Pintam el próprio
cuerpo com colores que extraem de la natureza. Quando
perguntam por que se pintam, ellas respondem que o dom
de adornar el corpo com colores las hace diferentes de los
animales que non sabem se adornar.
La essência y la medula de la cultura Mbyá-Guaraní es la
palavra. El concepto Guaraní de la palabra. Palavra-alma,
rocio en llamas, las belas palavras primeiras.
Aprendi um pouco sobre el tema después de passar más
de 20 años apreciando trabajos de grandes estudiosos de
la palavra Guaraní como León Cadogan, Curt Nimuendajú,
Egon Schaden, Bartomeu Melià, entre muchos outros.
Los Mbyá-Guaraní non reconocen distinción entre arte
y vida, rezo y canto, danza y rezo y canto, palavra y alma.
Segundo Adolfo Colombres, entre los Mbyá-Guaraní “la
palabra pone la vida em movimento, y para los “estrangei-
ros” lo que pone la vida em movimento es una determina-
da marca de automóvel, conforme um recorrente lema de
uma multinacional”.

81
El teko porã, el bom modo de ser, el bom estado de vida,
el viver bem Mbyá-Guaraní, pode ser considerado una es-
pécie de antropoiésis, como dice Guillermo Sequera, uma
de arte de viver em harmonia con la selva, los bosques,
las florestas y los outros seres vivos, quando non faltam
alimentos, nem salud, nem paz en los korazones; quando
las abundantes cosechas favorecem uma economia da re-
ciprocidade, el jopói, las manos abiertas de unos para los
outros.
Non existe concepto de propriedade privada entre los
Mbyá-Guaraní. Pero sin Tekoha non hay Teko — y sin Teko
non pode haver Teko Porã.
Atualmente los Mbyá-Guaraní son los más extranjeros
em seus próprios tekoha rodeados de sojales y agrotóxico.
Ñande Ru Papa Tenonde, Nostro Pai Último-Último Pri-
meiro, depués de crear el próprio cuerpo de um pequeno
pedaço de seu ser de céu, depois de criar las chamas y la
tenue neblina elétrica, el Jasuká mencionado por los Paí
Tavyterã del Jasuká Vendá, elemento com lo qual depois
faria el mundo, y todas las coisas que nele existem, fez que
se abrisse para si mesmo la palavra futura, e que com ele
se tornasse coisa de céu, palavra original, palavra que se
abre como flor.
Para los Mbyá-Guaraní, la palavra se confunde com las
origens del cosmos. Cada Mbyá é um obscuro e anônimo
artista da palavra, um poeta, um profeta, um instrumento
musical, um artista de vanguarda primitiva. Sua palavra se
confunde com o seu próprio ser, seu espírito, sua essên-
cia. Em Mbyá-Guaraní, palavra é sinônimo de alma. Essa foi
uma das grandes descobertas del antropólogo paraguayo
León Cadogan.

kosmofonia mbyá-guarani 82
Perder la palavra es como perder la própria alma. Quan-
do o corpo desfalece, la palavra lo abandona y vuela a los
orígenes regressando al futuro.
La lengua Guaraní es uma de las mais antigas da región
onde escrevo, en la fronteira do Brasil com o Paraguai, a
uns 70 quilômetros do Jasuka Vendá, el “omphalos” de los
Paï Tavyterã, etnia da imensa família lingüística Tupigua-
raní, auto-denominados Kayowá en el lado brasileiro de la
fronteira.
La lengua Guaraní, portadora de antigas sabedorias
selvagens, vegetal, cósmica, mineral, ancestral, mítica, há
mais de 500 anos fascina y confunde a los que atravessam
las selvas guaraníticas.
El poeta paraguayo Luis León Bareiro fue quien me ha-
bló por primera vez del Ayvu Rapyta, de León Cadogan, y
me presentó al Pa´í Melià. El Ayvu Rapyta todavia no esta-
ba publicado en Paraguay.
Entonces fui a la Biblioteca de la Universidad Católica,
en Asunción, para fotocopiar la edición de da Universidad
de São Paulo, de 1959, y vi por fim las chamas del rocio de
la palavra Mbyá-Guaraní en los textos, notas y traduccio-
nes de León Cadogan. Foi uma descoberta. Meu cérebro
ficou maravilhado para siempre com tanta potência, bele-
za, vigor.
Em 2005, passei dois dias hermosos ouvindo Karaí Mirí
ejecutar piezas del repertório Mbyá-Guaraní num violín
kuê que ele encontrou abandonado nel patio de la casa
de Kerechú Pará. Le puso três cuerdas nomás al violin kuê.
Tocou temas como Maracanã, Parakao y Xondaro, entre
otros. Fue um acontecimiento maravilloso único que nun-
ca mais se va a repetir.

83
Fiz algumas viagens a las chamas del rocío de la palavra
Guaraní que se abre como flor, deste y del outro lado da
fronteira.
Pude también coligir fragmentos de textos de vários es-
tudiosos da palavra Mbyá-Guaraní y montar esta colagem
de falas, que traduzi para entender mejor los significados
y la importância de la palabra nel âmbito de la cultura Mb-
yá-Guaraní.

BARTOMEU MELIÀ
Para o Guarani a palavra é tudo. E tudo para ele é pa-
lavra. Estas afirmações que nosso etnocentrismo precipi-
tadamente atribui a algum tipo de influência ‘ocidental’,
de sub-reptícias origens platônicas, são, entretanto, a ex-
pressão mais constante do quê o Guarani nos diz através
de seus mitos, de seus cantos e de seus ritos. (El Guaraní
— Experiencia Religiosa)

ADOLFO COLOMBRES
Para os guarani, tudo é palavra. A identificação é tão
plena que se fala de palavra-alma (Ñe’eng). Ñe’e, em gua-
rani comum, significa linguagem humana, apesar do termo
ser aplicado também ao canto das aves, ao zumbido de
alguns insetos. A função fundamental da alma é a de trans-
ferir ao homem o dom da linguagem. A palavra é a mani-
festação da alma que não morre, da alma original ou alma
humana de natureza divina, que se diferencia da alma ani-
mal, ligada à carne e ao sangue, à vida sensual. Os animais
e as árvores também tem alma de origem divina, ñe’eng,
mas somente o homem possui o angué, a verticalidade. O
angué, como anota Cadogan, vem a ser a parte telurica da

kosmofonia mbyá-guarani 84
alma. Muitas poucas línguas no mundo legaram à biolo-
gia mais nomes de plantas e animais que a guarani, até o
ponto de que afirma-se que seria a terceira neste sentido,
depois do grego e do latim. Isso viria a corroborar, se ne-
cessário, a grande ênfase que esta cultura pôs na palavra
e em sua função de nomear, e também seu grande amor à
natureza. (Celebración del lenguaje)

CARLOS MORDO
A relação constante que mantém com sua experiência
religiosa permitelhe ao guarani reafirmar sua identidade,
revalidando permanentemente os fundamentos de sua
própria cultura na vivência do tempo sagrado, nas ce-
rimônias, na recriação dos mitos, no canto e nas danças.
O mito atualiza a atividade criadora dos deuses, desve-
lando a sacralidade presente em cada uma de suas obras,
que se transforma por sua vez em imagens exemplares das
atividades humanas significativas, incluindo a arte. Se o
mundo existe, se o homem existe, é — como propõe Eliade
— porque os seres sobrenaturais iniciaram uma atividade
criadora nas origens. (El Cesto y el Arco, Metáforas de la
estética Mbyá-Guaraní)

ADOLFO COLOMBRES
Na noite originária, antes de existir a terra, Ñamandu
Ru Ete, o pai verdadeiro, em sua solidão fez que se abrisse
como flor o fundamento da palavra futura. Na cosmogo-
nia Paï Tavyterä diz-se que no começo existia apenas uma
substância impalpável chamada Jasuka, algo como uma
neblina carregada de eletricidade. Dessa matéria primitiva
surgiu uma voz que cantava, e que foi florescendo lenta-

85
mente até se transformar em um corpo, que tomou final-
mente a forma de um homem. Este foi aperfeiçoando-se
mediante sua própria voz, iluminando tal substância nebli-
nosa. Deste relato pode-se entender que o homem cria-se
a si mesmo mediante a palavra, e ao iluminar o entorno faz
que apareça a terra sob seus pés. A palavra, então, nas-
ce já como um canto puro, não emitido por ninguém, que
gera a vida. A palavra fica assim definida ab initio como
a essência do humano, algo que circula pelo esqueleto
e o mantém ereto. Resulta inseparável da verticalidade
própria de todo ser animado por ela, até o ponto de que
o xamã que tenta salvar a vida de um morimbundo invoca
os eepya, espíritos que restituem o dizer, conforme afirma
Heléne Clastres. Para cumprir com seu desígnio, Ñamandu
cria outras divindades, como Karaí Ru Ete (Leste), Jakáira
Ru Ete (o Zênite) e Tupã Ru Ete (Oeste), cuja tarefa será
enviar aos futuros homens as palavras-almas para que en-
carnem no corpo das pessoas recém-nascidas.
(Celebración del lenguaje)

BARTOMEU MELIÀ
Interrogados sobre o sentido do conceito chave de ay-
vu-rapyta (fundamento da palavra ou palavra fundamen-
tal), dois Mbyá, líderes de grupo, fizeram sua exegese: “o
fundamento da palavra fez que se abrisse e que tomara
seu ser (divinamente) celeste Nosso Primeiro Pai, para que
fosse o centro e a medula da palavra-alma”; “o fundamen-
to da palavra é a palabra originária, a que Nossos Pais, ao
enviar seus numerosos filhos à morada terrenal para que
ali florescessem, lhes repartiriam.

kosmofonia mbyá-guarani 86
O dom da palavra por parte dos Pais “divinos” e a parti-
cipação da palavra por parte dos mortais, define o que é e
o que pode chegar a ser um Guarani. O certo é que a vida
do Guarani em todas suas instâncias críticas — concepção,
nascimento, recepção de nome, iniciação, paternidade
e maternidade, doença, vocação xamanistica, morte e
“post-mortem”— define-se a si mesma em função de uma
palavra única e singular que faz o que diz, que de certa
forma consubstancia a pessoa. Tudo isso, que poderia pa-
recer uma gratuita transposição de platonismo ocidental
ao universo guarani, tem suas provas documentais regis-
tradas por diversas fontes etnográficas; em outros termos,
trata-se de verdadeiras experiências indígenas.
“Está por tomar assento um ser que será a alegria dos
bem amados” (León Cadogan, Ayvu Rapyta). Nesta metá-
fora está contida a idéia guarani de como é concebido um
novo ser humano. O homem, ao nascer, será uma palavra
que se põe em pé e que se verticaliza até sua estatura ple-
namente humana.

“Quando está por tomar assento um ser


que alegrará os adornados com plumas, e as adornadas,
envia, pois, a nossa terra,
uma palavra boa que ali caminhe com os próprios pés”
diz Nosso Pai Primeiro aos verdadeiros
Pais das palavras de seus próprios filhos.

Os Pais das palavras-almas, desde seus respectivos


céus, se comunicam, geralmente, através do sonho, como
aquele que há de ser pai. E é a palavra sonhada a que,
comunicada à mulher, toma assento nela, e começa a con-

87
cepção do novo ser humano. Reconhece-se, de fato, a ne-
cessidade das relações sexuais para a concepção. Mas são
necessárias porque esta é a vontade dos Pais Primeiros.
A palavra-alma é enviada pelos de Cima. “O pai a recebe
em sonho, conta o sonho para a mãe, e está fica grávi-
da”. (Egon Schaden, Aspectos Fundamentais da Cultura
Guarani). A palavra “toma assento” no coração da mãe, —
oñembo apyka — tal como a palavra que descende sobre
o xamã, ele mesmo sentado sobre um pequeno banco em
forma de “tigre”. Concecpção de um ser humano e con-
cepção do canto xamãnico se identificam. Para o Guarani,
não é exagero dizer, a procriação, antes que nada, é um
ato poético-religioso, mais que um ato erótico-sexual. Por
outro lado, o erotismo guarani tem suas expressões mais
significativas durante as festas rituais, nas que se canta, se
reza, se dança, se participa na bebida de chicha e na comi-
da de tortas de milho. (El Guarani — Experiencia Religiosa)

ADOLFO COLOMBRES
A cerimônia de imposição do nome realiza-se quando
a criança pode manter-se em pé. O xamã deve descobrir
qual deus enviou a palavra-alma antes de escolher um
nome apropriado para ele, pois todo nome pertence a es-
fera exclusiva de uma determinada deidade. Se nenhuma
palavra-alma encarna no recém nascido, este não tardará
em morrer, pois os deuses negam-lhe desse modo o direi-
to à vida, por razões que nem sempre são inescrutáveis, já
que podem estar subordinados a uma base ética, como o
caso de filhos adulterinos, observado por Cadogan. Con-
forme Bartolomé, o nome é a pessoa, posto que designa
sua essência (espírito, alma), e os atributos desta são seus

kosmofonia mbyá-guarani 88
atributos pessoais, que conservará até a morte. O nome só
é modificável em caso de crises extremas. Como último re-
curso para salvar um doente grave e “despistar” a morte,
o xamã pode modificálo. A morte é a perda e ausência da
palavra, ou é produzida por esta perda. Porque na palavra
há forças capazes de abolir a morte. Se ela flui abundante
e cheia de sabedoria, pode levar o indivíduo ao estado de
perfeição (aguyje) necessário para alcançar a Terra Sem
Mal, ou seja, o estado de indestrutibilidade, a imortalidade
do corpo. Sabe-se que muitos o conseguiram, passando à
condição de heróis divinizados, como Kuarachy Ju, Kua-
rachy Eté, Takua Verá Ghy Eté, Karaí Katu y Kapitá Chikú.
Por sua mesma natureza sagrada, os guaranis conside-
ram inconveniente que seu nome verdadeiro esteja na boca
de todos, e em especial dos que podem lhes causar danos.
Daí que geralmente aceitam os nomes que lhes impõem os
missionários e agentes do registro civil, já que este nome
falso servirá para mascarar seu verdadeiro nome, subtra-
indo-o do desgaste cotidiano. (Celebración del lenguaje)

EGON SCHADEN
A noção de alma humana, tal como a concebe o Guara-
ni — isto é, sua primitiva psicologia — constitui, sem dúvi-
da alguma, a chave indispensável para a compreensão de
todo o sistema religioso... (Aspectos fundamentales de la
cultura Guaraní)

BARTOUMEU MELIÀ
O mais importante, no entanto, de toda essa psicologia
teológica está na convicção de que a alma não está intei-
ramente acabada, senão que se faz com a vida do homem

89
e o modo de seu fazer-se é o seu dizer-se. A história da
alma guarani é a história de sua palavra, a série de pala-
vras que formam o hino de sua vida. (El Guaraní — Expe-
riencia Religiosa)

CURT NIMUENDAJÚ
O xamã necessita submeter-se a um esforço sobre-hu-
mano para chegar a estabelecer contato com os seres ce-
lestiais, coisa que acontece somente durante o êxtase. Para
isso, apenas cai a noite ocupa seu lugar, canta, começa a
agitar a maraca... Assim prossegue o canto durante horas.
Enquanto isso o xamã recebe dos poderes aos que dirige
seu canto faculdades sobrenaturais que transmite ao me-
nino. Entre os guarani modernos há partes que monstram
semelhanças com o ritual do batismo cristão. Mas o sin-
gular e importante é que o nome encontrado mediante a
cerimônia xamânica tem para o guarani um significado de
todo especial. O nome é de certo modo, aos seus olhos,
um pedaço da alma do seu portador ou é quase idêntica a
esta, inseparável da pessoa. O guarani não “se chama” de
tal ou qual maneira, senão que “é” tal ou qual. Quando, por
exemplo, se emprega mal um nome, pode-se prejudicar o
seu dono. (As lendas da criação e destruição do mundo
como fundamentos da religião dos Apapokúva-Guarani)

BARTOMEU MELIÀ
Os guarani acham ridículo que um sacerdote católico
tenha que perguntar aos pais da criança como vai se cha-
mar seu filho.
Entre os Mbyá o processo de recepção do nome se atém
fundamentalmente às mesmas normas quando o menino

kosmofonia mbyá-guarani 90
todavia não tem nome, é suscetível de cólera (raiva), raíz e
origem de todo mal. “Somente quando se chamem pelos
nomes que nós os Pais da palavra lhes damos, deixaram
de se encolerizarem.” O mitã renói a, “o que chama ou
dá nome à criança”, prepara-se para receber a revelação.
Acende o cachimbo, solta fumaça sobre a cabeça do me-
nino e por fim comunica à mãe o nome pesquisado. Este
nome é parte da pessoa e é designado com a expressão ery
mo’ã a, “aquilo que mantém em pé o fluxo do dizer”(León
Cadogan, Ayvu Rapyta). Recebido o nome, a pessoa co-
meça a manter-se em pé assim como em pé também está
sua palavra, a que lhe confere grandeza de coração e força
interior, as duas grandes virtudes a que aspira um bom
Guarani. A educação do Guarani é uma educação da pa-
lavra, pela palavra, mas não é educado para a aprender e
muito menos memorizar textos, senão que para escutar as
palavras que receberá do alto, geralmente através do son-
ho, e poder dizê-las. O guarani busca a perfeiçao do seu
ser na perfeição de seu dizer; sua valorização e seu prestí-
gio entre os membros de sua comunidade e mesmo entre
comunidades vizinhas vem medida pelo grau de perfeição
e inclusive da quantidade de cantos e modos de dizer do
qual é dono. (El Guarani — Experiencia Religiosa)

CURT NIMUENDAJÚ
Quando em um grupo guarani alguém consegue seu
primeiro canto (xamânico), isto constitui sempre um acon-
tecimento de interesse geral. Somente nas velhas histórias
maravilhosas ouvi que crianças receberam tal inspiração.
Nas categorias de idades superiores a inspiração é cada
vez mais freqüente e entre aqueles que já passaram dos

91
quarenta anos é excepcional o que não possua um canto.
(As lendas da criação e destruição do mundo como funda-
mentos da religião dos Apapokúva-Guarani)

CARLOS MORDO
A cada amanhecer, quando a imagem de Kuarahy (Sol)
se eleva sobre o horizonte, os sacerdotes cantam as pala-
vras inspiradas, as belas palavras carregadas de metáfo-
ras, ñe’e porã, que celebram o tempo sagrado para aque-
les que habitam a terra dos homens, imagem imperfeita da
Yvy Marã e’y (Terra Sem Mal).
Pela tarde, as meninas começam a dançar danças e can-
tar cantos de preparação. Existem distintas melodias de
vida e celebração, conforme a ocasião, como o canto do
Mburivichá, outros para os Ñande Ru, para os frutos ou
para os pássaros, acompanhados pela percussão rítmica
dos takuapu (bastão de taquara) que usam as mulheres,
reproduzindo no canto sagrado a perenidade do tempo
originário e os dons dos deuses: “o canto sagrado — cos-
tumava dizer o Pa’i Antonio Martinez, prestigioso líder reli-
gioso — é a verdadeira inspiração da essência do guarani”.
Quando está por se pôr Kuarahy, chega o tempo de
adentrar o Opy (Casa de cerimônias). Antes de entrar, se
dão três voltas ao redor do recinto, no sentido das agul-
has do relógio, primeiro os homens, depois as mulheres,
sempre em ordem hierárquica, já que os mais antigos pre-
cedem os mais jovens. Enquanto isso, os jovens iniciam o
canto para adentrar o Opy, o Ñaneseno Jajeroike Anguã.
Cada um saúda o Opygua com o Agwyjevéte de praxe an-
tes de entrar.
O interior do Opy está iluminado apenas por umas ve-

kosmofonia mbyá-guarani 92
las; o recinto tem forma retangular, e suas paredes de ta-
quaras entrelaçadas estão cobertas com barro. A porta,
orientada ao poente e situada próxima da parede Norte, é
a única abertura, e em todo o perímetro salvo no fundo há
largos bancos de madeiras ou troncos de base aplainada.
No canto oposto à porta há um assento um pouco mais
alto, onde ficam os músicos e o Opygua. Ao seu lado, e à
frente, sentam-se os homens mais velhos, e algumas mul-
heres; na outra parede se encontra o resto do participan-
tes, as anciãs, os jovens e as crianças.
No fundo do Opy encontra-se o Amba Ñanderojy, um
tronco de madeira situado contra a parede do recinto, onde
costumam pendurar maços de erva, os frutos do Gwembé
e as tortas de milho no Tembi’u Agwyje, a celebração dos
frutos maduros. Este espaço sagrado é [enfrentado] pelos
ajudantes mais jovens, que oram em voz baixa continua-
mente, fumando seus cachimbos e dando grandes bafo-
radas de fumaça. Alguns fazem soar sua maraka de rit-
micamente. Os Opygua (oficiantes) também mantêm seus
cachimbos acesos, produzindo densa fumaça, espalhando
sobre os participantes o símbolo da neblina mítica, em um
ritual de limpeza que convoca o tempo dos deuses.
Os personagens que conduzem o ritual se cercam, no
interior do recinto, de certos objetos simbólicos como o
apyka, as yvyra’í ou o petyngua, que serão usados como
receptores da energia mística e como meio para estabele-
cer o vínculo entre ambos mundos.
O Apyka, um pequeno banco, em algumas ocasiões zoo-
morfo, lavrado em madeira de ygary, rememora a imagem
terrenal do apyka apu’a i, o assento originário onde esteve
sentado Ñamandu Ru Ete no princípio dos tempos. Rela-

93
cionado com a significação ritual do cedro, Yvyra Ñaman-
du, a árvore de Ñamandu, o apyka representa ao mesmo
tempo o lugar onde se assenta a palavra-alma do guarani.
Em seu universo feito de metáforas, ao referir-se ao feito
de ser engendrado um ser humano, dizem os Mbyá: oñem-
bo apyka, “se lhe dá assento, se lhe provê de assento”.Por
meio de uma parábola conceitual, o ser humano assume
ao ser concebido a mesma característica que Ñande Ru
nos relatos da criação, para poder receber a palavra ilumi-
nada que contém, em si mesma, a alma humana. (El Cesto
y el Arco, Metáforas de la estética Mbyá-Guarani)

BARTOMEU MELIÀ
São comoventes as experiências através das quais um
índio guarani recebe o dom do canto místico e de uma
grande beleza poética e profundidade mística seus textos.
Eis aqui um que valha por muitos, já que a infinita maioria
deles nunca foi registrada:

Pelos arredores dos opy onde ainda dizem belas


palavras primeiras
vou caminhando espalhando neblina
(fumaça de tabaco fumado ritualmente)
Caminhando assim aprenderei muitas outras belas
palavras para
ter mais força interior ainda
Vejam vocês os verdadeiros Pais de minha palavra
Em um futuro próximo deixem que minhas belas
palavras se
abram como flor
Mesmo que nos amemos de verdade

kosmofonia mbyá-guarani 94
Se permitimos que nosso coração se bifurque
Nunca vamos alcançar grandeza de coração
nem força interior
(León Cadogan, Ayvu Rapyta)

Ficar em estado de escutar as belas palavras primei-


ras, inclusive com jejuns, moderação sexual, observação
de modos austeros de viver, comer, dormir, é uma prática
todavia constante entre os guaranis contemporâneos, es-
pecialmente entre os Mbyá; são comportamentos, atitudes
e posturas que propiciam o “dizer-se”: ñembo’e, isto é, a
oração.
Dizíamos que a palavra não é ensinada nem aprendida
humanamente. E para muitos Guaranis resulta insensato
e até provocativo a pretensão de ensinar meninos numa
escola; daí o receio e às vezes a recusa radical do ensino
escolar em termos ocidentais. A palavra é um Dom que se
recebe do alto e não um conhecimento aprendido de ou-
tro mortal. (El Guarani — Experiencia Religiosa)

ADOLFO COLOMBRES
No Opy ou casa das orações dos Mbyá-Guarani (um ca-
sarão amplo e retangular, com orientação leste-oeste), se
entoam, de frente pro sol nascente, as ñe’e porã ou belas
palavras, linguagem comum aos homens e deuses. O ayvu
porã, a bela linguagem, é uma expressão que serve para
designar o conjunto de suas tradições sagradas, mas tam-
bém a língua falada pelos deuses, e a única que gostam
de ouvir de seus filhos, os homens. Hélène Clastres aponta
que há uma série de termos que traduzem noções abstra-
tas que pertencem em forma exclusiva ao ayvu porã, mo-

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tivo pelo qual não se utilizam jamais na linguagem comum
e nem sequer têm equivalente neste: seu uso e seu sentido
são apenas religiosos. Além disso, para designar uma série
de objetos a bela linguagem serve-se sempre de metáfo-
ras e não dos termos com os quais se os nomeia na vida
cotidiana, onde rege um laconismo expressivo, próprio da
estética sóbria e despojada deste grupo. Assim a flecha
passa a ser “a pequena flor do arco”; o cachimbo: “o Es-
queleto da bruma”. Se na vida cotidiana se designam as
coisas, na bela linguagem estas são nomeadas com metá-
foras. (Celebración del lenguaje)

EGON SCHADEN
O recurso sempre à mão de que dispõe o guarani para
provocar e ao mesmo tempo dar vazão a suas vivências
misticas é o porahei (canto) ou oração... O que tem de
mais valioso um indivíduo são seus porahéi, aos quais se
refere com orgulho e até com certa reverência... (Aspectos
fundamentales de la cultura Guarani)

BARTOMEU MELIÀ
Individuais, porque são um dom dos espíritos a deter-
minadas pessoas, as orações e os cantos são também uma
força para a comunidade, que ao escutá-los e dança-los
se identifica com eles e se sente reconfortada. É graças
às orações e cantos que os guaranis sentem que o mundo
pode atrasar sua futura e inevitável destruição. (El Guara-
ní— Experiencia Religiosa)

kosmofonia mbyá-guarani 96
ADOLFO COLOMBRES
Cabe destacar que para os guaranis o belo (porã) refe-
re-se ao adornado, não à beleza natural. Se o belo, então,
é um acontecimento cultural, pode-se falar de palavras
embelezadas pelos que as cultivam, cuja função é elevar
(e não apenas manter) seu esplendor. Embelezamento
que não busca designar e nem sequer comunicar, como
observa Hélène Clastres, pois as belas palavras, voltadas
para si mesmas, não servem mais que para celebrar (ou
comprazer-se em) sua própria divindade, como uma lin-
guagem consagrada ao canto, não ao conhecimento do
mundo. (Celebración del lenguaje)

BARTOMEU MELIÀ
É sempre em função da palavra inspirada que o Guarani
cresce em sua personalidade, em seu prestígio e até em
seu poder, seja este, poder político, poder mágico ou am-
bos juntos, o que geralmente é mais comum. (El Guaraní
— Experiencia Religiosa)

EGON SCHADEN
O mais valioso que um indivíduo possui é seu purahéi,
ao qual se refere com orgulho e até com certa reverên-
cia. O receio de ironizarem ou fazerem uso inadequado de
seus cantos é um dos motivos da resistência que o pesqui-
sador encontra quando pede que o Guarani lhe ensine o
que possui ou sabe. Em Araribá apareceu um dia um admi-
rador da chamada música folclórica; aproveitou os cantos
guaranis em algumas composições “típicas” que, confor-
me parece, foram tocadas numa rádio.

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Ao saberem do acontecido, os índios perceberam nisso
uma profanação e um deles depois se negou terminante-
mente a me ensinar seus cantos: “eu não quero que você
os ponha na rádio”. (Aspectos fundamentales de la cultura
Guaraní)

ADOLFO COLOMBRES
O fogo e a neblina vivificante envolvem a palavra-alma,
como se definindo o espaço em que se manifestam. A pa-
lavra é poder criativo, gerador, normativo: por isso é rela-
cionada com a vara-insígnia, atributo principal do poder
masculino. Pode-se dizer que o conceito de palavraalma
é uma ponta estendida à alma das palavras, um modo de
recordar o caráter sagrado da linguagem e exigir um uso
respeitoso da mesma. No fundo de seu coração o guara-
ni desdenha o “estrangeiro” (ou seja, os brancos e mes-
tiços), porque sabe que este corrompeu sua linguagem
mediante um uso irresponsável da mesma. Por um lado a
bastardeiam com o uso excessivo de palavras que pouco
ou nada significam, como se houvessem renunciado já à
função de nomear o ser das coisas, e por outro lado fal-
sificam com ela a verdade; ou seja, consumam o crime da
mentira, que povoa o mundo de seres não verdadeiros. Os
guaranis podem chegar a falar de seus mitos a um bran-
co, mas se recusam firmemente a deixá-los escutar o mais
breve fragmento do ayvu porã, salvo raras exceções, como
as de Curt Nimuendaju, León Cadogan, Miguel Alberto
Bartolomé, Carlos Martinez Gamba e algum outro iniciado
em sua religião. É que a palavra põe a vida em movimento,
e para os “estrangeiros” o que põe a vida em movimento
é uma determinada marca de automóvel, conforme um re-

kosmofonia mbyá-guarani 98
corrente lema de uma multinacional, o que vem reafirmar,
se é necessário, que o Ocidente cedeu às coisas o domínio
da força, sujeitandose a elas. (Celebración del lenguaje)

BARTOMEU MELIÀ
O Mbyá se manifesta como alguém em tensão em um
mundo cheio de coisas nefastas e imperfeitas que somen-
te a palavra redimida e boa poderá superar. O valor e a
força interior vêm com as palavras inspiradas. “Aos bons,
aos teus filhos, darás palavras verdadeiramente verda-
deiras; darás palavras verdadeiramente verdadeiras aos
teus filhos de coração grande, para que falem em meio
a tudo o que se levanta sobre a terra”. (León Cadogan,
Ayvu Rapyta)
“Nossos Pais Primeiros me farão dizer repetidamente
palavras verdadeiramente verdadeiras para ser forte. Por-
que mesmo que nos amemos com sinceridade quando
deixamos que nosso amor se bifurque, nunca podemos
alcançar nem grandeza de coração nem força interior”.
(León Cadogan, Ayvu Rapyta)
A palavra é efetivamente para o Mbyá o objeto e o su-
jeito de sua arte, seu conteúdo e sua forma. O definitivo
de sua essência, de seu modo de ser, é a palavra, e toda
sua vida se estrutura para ser fundamento e suporte de
palavras verdadeiras.
Desde a criação do mundo e do homem, que é vista
como criação da palavra, até a morte de cada pessoa, que
é valorizada como grau maior ou menor de palavra rea-
lizada, o Mbyá só se entende a si mesmo em função da
palavra.

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Nosso Pai último-último Primeiro,
entre as trevas primitivas,
fez que seu próprio corpo futuro se abrisse como flor.
As divinas plantas dos pés,
O pequeno apyka redondo,
Em meio às trevas primitivas,
Fez que se abrissem como flor.
(...)
Tendo florido (em forma humana)
Da sabedoria que havia em seu ser de céu
De seu saber que se abre em flor,
Soube para si em si mesmo
a essência da essência da essência das belas palavras
primeiras.
(León Cadogan, Ayvu Rapyta)

Quando o Mbyá considera que já alcançou a plenitude


e a perfeição, ele não morre, porque sua palavra também
não morre. É o que conseguem os heróis de verdade, como
aquele Kapitan Chikú.
“Kapitán Chikú alcançou a plenitude da perfeição; das
palmas de suas mãos e das plantas de seu pés brotaram
chamas; seu coração se iluminou com o reflexo de sua sa-
bedoria; seu corpo de céu se transformou em orvalho in-
destrutível; seu adorno de plumas se cobriu de orvalho as
flores de sua cabeça eram chamas de orvalho” (León Ca-
dogan, Ayvu Rapyta)
Para o Mbyá, e em geral para o Guarani, é o estado de
graça. Conseguiu belas palavras boas, o conseguiu tudo.
(El Guaraní — Experiencia Religiosa)

kosmofonia mbyá-guarani 100


avá-pOSfácio
Douglas Diegues

Años 60, Villa Rica, interior do Paraguai, León Cadogan,


o compilador do Ayvu Rapyta, considerado uma jóia rara
de la literatura ameríndia, afirma que los índios estavam
desaparecendo de forma muito rápida e por isso os antro-
pólogos não poderiam mais se dar ao luxo de permanecer
acomodados em seus gabinetes: era necessário ir ao en-
contro desses índios antes que fosse tarde demais.
Naquela época, alguns jovens paraguaios ouvem as pa-
lavras de Cadogan. Um desses jovens era o antropólogo e
etnomusicólogo Guillermo Sequera, que não se acomodou
em seu gabinete, enfrentou sol, frio, chuva, poeira, e foi ao
encontro da palavra, da música, da arte, do mito, do rito,
das belezas, das diferenças, da essencias e medulas das
culturas ancestrais que se escondem nas selvas do lado
paraguayo de la frontera. Incontáveis viagens fez Guil-
lermo Sequera a las llamas del rocio de la palavra Mbyá,
al selvagem Chaco Paraguaio, e o que ele encontrou non
foi pouca coisa: um vasto território multicultural, quatro
famílias linguísticas subdivididas em 17 ou 19 etnias, um
território belo e inóspito, onde até hoje a língua dos co-
lonizadores não conseguiu se impor como la lengua de la
maioria. Durante essas viagens, feitas sempre em condi-
ções desconfortáveis, Guillermo Sequera fotografou e gra-
vou a poesia dos cantos e dos rituais, dos cantos-contos
eróticos de los aché, das músicas de pré-violino, dos mitos,
registrou técnicas vocais de vanguarda primitiva, como el

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avásprechgesang, e depois de anos de estudos e viagens
a esses territórios hasta hoy muy pouco conocidos, reuniu
um belo acervo, milhares de fotos e mais de mil e duzentas
horas de gravações da arte verbal dos antigos habitantes
da região do Paraguai e suas fronteiras.
Hasta el momento, apenas uma ínfima parte del material
coletado por Sequera foi publicada em Assunção, como o
CD Paraguay: Música Mbyá-Guarani, que se encontra esgo-
tado, e que agora publicamos encartado neste livro, acom-
panhado de fotos e textos de Guillermo Sequera e textos
de outros colaboradores que ouviram os sons coletados
pelo antropólogo paraguaio e depois enviaram suas im-
pressões acerca da originalidade selvagem própria da arte
desses mbyás. As palavras, o fogo, a água, a beleza Mbyá,
têm qualidade de rocio em chamas e podem iluminar o fu-
turo do mundo. Se Guillermo Sequera se acomodasse em
seu gabinete, este livro não teria nascido. Vai ser legal ver
la originalidade de la belleza de la cultura Mbyá-Guarani
ajudando a iluminar este mundo cada vez mais comercial
y sem sentido.

São Paulo, 14 de Novembro de 2005

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BIBLIOGRAFIA

Ayvu Rapyta — Textos Míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. León


Cadogan. Edición organizada por Bartomeu Melià. CEADUC/CE-
PAG. 1992. Asunción, PY.

El Arco y el Cesto — Metáforas de la Estética Mbyá-Guarani. Carlos


Mordo. CEADUC. 2000. Asunción, PY.

Celebración del Lenguaje. Adolfo Colombres. Ediciones del Sol.


1997. Buenos Aires, AR.

El Guarani — Experiencia Religiosa. Bartomeu Melià. CEADUC/CE-


PAG. 1991. Asunción, PY.

Aspectos Fundamentales de la Cultura Guarani. Egon Schaden.


Traducción de Stella Maris Macchi de Paula Gomes. CEADUC. 1998.
Asunción, PY.

Chamanismo y Religión entre los Avá-Katu-Ete. Miguel Alberto Bar-


tolomé. CEADUC. 1991. Asunción, PY.

Textos Míticos de los Indígenas del Paraguay. Miguel Chase-Sardi e


José Zanardini. (Compiladores). CEADUC. 1999. Asunción, PY.

Una Nación, Dos Culturas. Bartomeu Melià. RP Ediciones/CEPAG.


Ilustrações de Livio Abramo. 1998. Asunción, PY.

Tatachina Tataendy. La Neblina, el Fulgor. Compilación de Carlos


Martinez Gamba. CEPAG. 2003. Asunción, PY.

Suplemento Antropológico de la Universidade Católica de Asunci-


ón — Vol. XXXVI, N.1 Junio, 2001. Asunción, PY.

Tupã Kuchuvi Veve. Rogelio Cadogan. CEPAG. 1998. Asunción, PY.

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León Cadogan — Extranjero, Campesino y Científico. Fundación
León Cadogan/CEADUC/CEPAG. 1998. Asunción, PY.

Ayvu Rendy Vera — El canto resplandeciente. Compilación de Car-


los Martinez Gamba. Ediciones del Sol. 1991. Buenos Aires. AR.

El Guarani Conquistado y Reducido. Bartomeu Melià. CEADUC.


1993. Asunción, PY.

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ÍNDICE DE IMAGENS

Capa Ravê, pré-violino mbyá. (foto: Guillermo Sequera)

p. 6 Miño Benítez, artista Mbyá-Guarani. (foto: G.S.)

p. 12 Artista mbyá tocando flauta mimby pu. (foto: G.S.)

p. 29 Kuminjare, violão mbyá. (foto: G.S.)

p. 50 Ravê, pré-violino mbyá. (foto: G.S.)

p. 78 Miño Benítez e seu ravê. (foto: G.S.)

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SOBRE OS AUTORES

Guillermo Sequera (1949, Asunción, Paraguay). Realizou estudos


de música e etnologia em Paris, França. É membro da Associação
Francesa de Etnomusicologia. Reside no Paraguay.

Douglas Diegues (1965, Rio de Janeiro, Brasil). Publicou Dá


gusto andar desnudo por estas selvas — sonetos salvajes (2002),
considerado o primeiro livro de poesia em portunhol no âmbito
luso-hispano-americano. Reside no Brasil.

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En los ensaios do antropólogo e linguísta hispano-guarani
Bartomeu Melià podemos leer que quando los índios
Guarani oubiam los europeus leer sus escritos em voz
alta, elles ficabam espantados y encantados de ver como
los europeus faziam el papel falar. Para aqueles antigos
guaranis, aquilo era mais ou menos como hacer que un
muerto falasse. — Douglas Diegues

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