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ROBIN M. WRIGHT
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SUMÁRIO
Lista de Ilustrações
Prefácio
Agradecimentos
Introdução
2. Guardiões do Cosmos
5. Os Tempos da Morte
7. De Borracha ao Evangelho
Conclusão
Notas
Bibliografia
Índice
Illustrações
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Mapas
1. O Noroeste da Amazônia
Figuras
5. O Caminho do Morto
Fotos
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2. A Cachoeira de Hipana
Museu Goeldi)
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Prefácio
frase muitas vezes falada no fim dos mitos, quando seres primordiais,
feito para sempre ou, como dizem os Baniwa, "até um outro fim do mundo".
que existem entre os mundos primordial e atual, uma visão como esta tem
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Messias, que é o designado por Deus e que virá em alguma época futura,
Na etnografia e história dos povos indígenas da Amazônia, os Baniwa talvez se destaquem mais
pela sua longa história, datando desde pelo menos a metade do século 19, de participação em
publiquei uma série de artigos (ver Bibliografia). Uma das manifestações mais recentes dessa conciência
7
milenária em ação é a conversão dos Baniwa a Protestantismo evangélico no final dos 1940s - início dos
1950s.
explorar esta questão no que diz respeito aos Baniwa do Içana e de seus
afluentes.
notado que sua conversão ao evangelismo foi compatível com uma longa
aceitação do protestantismo:
explorada, e não simplesmente admitida. Assim esse livro busca focalizar na questão
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maior de conversão ao Cristianismo, a sua relação com religiões indígenas, e especialmente com aquelas
com fortes tradições milenárias. Qual é a relação entre a ‘conciência milenária,’ o seu potencial de gerar
Esse estudo comça por introduzir o leitor a algumas das questões teóricas levantadas por estudos
ocupado a minha atenção durante os últimos 20 anos, desde que comecei a minha pesquisa doutoral no
Noroeste da Amazônia, e com que tenho procurado dialogar nas minhas publicações sobre os
movimentos desde então. Na Introdução, procuro esclarecer a minha abordagem particular e, espero, a
Em seguida apresento ao leitor os Baniwa no Brasil sobre quem não há nenhuma monografia
publicada até agora, embora que existe um grande número de artigos sobre diversos tópicos de interesse
antropológico e histórico. Depois, apresento ao leitor, através de meu olhar, os Baniwa do Rio Aiary, e a
situação que eu conhecí de perto no final da década dos anos 70, as circunstâncias da minha pesquisa de
campo, como meu projeto de pesquisa foi recebido por eles, e os problemas e dilemas que eu enfrentei no
campo.
Embora a maior parte da pesquisa sobre a qual esse livro se baseia fosse conduzida no final da
década dos anos 70, tenho mantido contatos com os Baniwa, direta ou indiretamente, durante os últimos
20 anos. Em 1997, por exemplo, iniciei um projeto, em colaboração com a Associação das Comunidades
Indígenas do Rio Aiary (ACIRA) e com o Instituto Socioambiental (ISA) em São Paulo, de publicar
coletâneas de mitos e canções de cura Baniwa. Em julho do mesmo ano, tive a oportunidade de visitar os
Este livro está dividido em quatro partes, cada uma composta de dois capítulos. Parte I
ordem criada nos tempos antigos para sempre. Este saber de Kuwai cria a
ordem no mundo atual não apenas como um ciclo eternamente repetidor, mas
envenenamento.
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revela que as trajetórias de vida dos Baniwa na época eram definidas por
AGRADECIMENTOS
A pesquisa em que se baseia a maior parte desse livro foi realizada no final dos anos 70 para a
minha dissertação doutoral (1981) e foi financiada pela National Science Foundation, fundação
norteamericana de apoio a pesquisa científica. Depois que a dissertação foi aprovada, comecei a minha
ou CEDI, ambas em São Paulo). Em 1985, à convite da Dra. Manuela Carneiro da Cunha, professora de
Antropologia da Universidade de São Paulo, voltei ao Brasil com uma bolsa da Comissão Fulbright para
(UNICAMP).
Alberto Ricardo, coordenador do Programa “Povos Indígenas no Brasil” do CEDI me convidou a integrar
sua equipe e coordenar a produção de um volume da série Levantamento sobre os povos indígenas do
Noroeste da Amazônia. Ambos os trabalhos me levaram por longos caminhos que em várias maneiras
pesquisa de campo com a qual pude voltar por uns meses ao Noroeste da Amazônia - depois de quase
uma década desde a minha pesquisa doutoral - para observar e documentar a ‘situação’ - naquela época
em tumulto por causa das invasões das terras indígenas por garimpeiros e empresas de mineração.
Uma pequena bolsa de pesquisa concedida pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological
Research, fundação norteamericana de apoio à pesquisa antropológica, e uma bolsa de pesquisa do Latin
America and the Caribbean Program da Social Science Research Council, idem, em 1987-88 me deram
Amazônia.” (s.d.) Vários trechos desse estudo foram incorporados no presente livro. Em 1990, enquanto
pesquisador associado ao Núcleo de História Indígena e do Indigenismo em São Paulo - um dos primeiros
centros de pesquisa no Brasil que focalizava na temática de história indígena - continuei a pesquisa
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histórica nos arquivos públicos de Manaus, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (FAPESP). Essa pesquisa revelou documentos importantes referentes aos movimentos
Uma das questões críticas que tem orientada a minha pesquisa desde o trabalho de campo inicial
é a relação entre as missões protestantes e católicas e as crenças e instituições religiosas dos Baniwa.
Como vou descrever nas páginas desse livro, a conversão Baniwa a Protestantismo evangélico representa
certamente uma das grandes transformações da sua cultura durante o último meio-século. Hoje, a maioria
da população Baniwa no Brasil, Colombia e Venezuela é “crente” mas, como várias outras igrejas nativas
nas Terras Baixas sulamericanas (p.ex., Halelujah entre os povos de língua Carib da fronteira Brasil-
Guyana), o evangelismo Baniwa foi moldado a sua forma atual pelos pastores nativos e rituais comunais.
patrocinado pelo Pew Charitable Trusts (Philadelphia, Pa.) e administrado pelo Overseas Ministries
Study Center (OMSC, New Haven, Conn.), me concedeu uma bolsa de pós-doutorado para estudar,
Brasil. Além de ajudar na produção de uma coletânea maior de artigos por etnólogos brasileiros sobre a
questão, a bolsa financiou um período de pesquisa e escrita que produziu a Parte IV desse livro. Durante
noroeste Amazônico.
respectivamente. Márcio Meira, meu aluno e amigo, tem sido meu professor
tanto quanto fui para ele, e fico satisfeito em saber que, por meio de
seu compromisso com a luta política atual dos povos do Noroeste e de seu
trabalho como Diretor do Arquivo Público do Belém de Pará, ele tem dado
mesmo modo, Lawrence Sullivan, Diretor do Center for the Study of World
profundamente grato por seu apoio, das mais variadas formas, e espero
escrever este livro, muitos dos temas e questões aqui discutidos foram
dra. E.Jean Langdon. Sou grato a Jean por seu incentivo constante e suas
deste livro são: Gerald Taylor, Stephen Hugh-Jones, Jean Jackson, Janet
partes do manuscrito.
Cosmos, Self and History in Baniwa Religion. For Those Unborn, publicado
pela University of Texas Press em Austin, Texas, em 1998. Sou grato aos
português.
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Finalmente, este livro deve sua existência aos Baniwa do Rio Aiary,
raison d'être deste livro: José, José Felipe, Mandu, Laureano, Ricardo,
pesquisa entre eles no final da década de 70, mas a mudança tem sido um
aspecto constante na vida dos índios por muitas gerações. Comprova a sua
INTRODUÇÃO
19
Aqui procuro apresentar as minhas abordagens ao tema desse livro: meu diálogo durante os
últimos 15 anos com as diversas abordagens teóricas a movimentos proféticos, milenários, e messiânicos
entre os povos indígenas das Terras Baixas da América do Sul; e as circunstâncias da minha pesquisa de
religiosa.
Para definir melhor a abordagem que eu pretendo usar nessa monografia, cabe discutir aqui
algumas das principais linhas antropológicas com que tenho trabalhado e dialogado, ou que tem exercido
uma influência nas minhas reflexões sobre messianismo, profetismo e milenarismo na Amazônia. Nessa
discussão, não procuro meramente recitar uma ladainha de autores e idéias mas reconstruir um diálogo
teórico levado a cabo durante os últimos 15 anos, desde que terminei a minha dissertação doutoral,
através do qual tenho tentado aproximar a minha etnografia à espiritualidade do milenarismo Baniwa.
Amazônia como uma revolta contra a opressão (: 1086) e sugere que foram
messiânica.
criação.
chamada "busca da Terra Sem Mal" - representavam uma negação radical dos
alcançar.
os Krahó; ver Melatti, 1972), onde "tudo é lugar e esse lugar imutável
exorciza o tempo", e onde portanto a relação com o inimigo "é algo que
não foram por isso apenas uma "reencenação" dos eventos míticos, mas uma
século XIX.
messias Kamiko apresentam este processo como uma escolha entre duas
integração social.
trabalharem tanto para ganharem tão pouco os bens que os brancos têm em
abundância.
dos Clastres. Terceiro, embora seja verdade que vários movimentos "lutem
messias Tukano, por sua vez, ambicionaram usurpar o poder dos Brancos.
movimentos.
baseiam nos atributos, poderes, status social e formação dos dois tipos.
foram tão abalados quanto aos dos Tukano, porque o xamanismo aruak
Baniwa
(1988: 565)
que mostram algumas das mesmas questões discutidas até aqui são os
Ticuna como cargo cults. Baseando-se nos mitos Ticuna sobre a destruição
Salvação", e explica:
3)
movimentos desde o fim do século XIX, assim bem como das transformações
Santa Cruz.
situação colonial.
Rio Branco e das Guianas devem muito a Audrey Butt Colson, cujos estudos
ela, a religião Hallelujah é "ao mesmo tempo uma religião cristã em seus
A noção central de "um bom lugar" está presente nos discursos dos
histórico:
cristianismo.
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está para ser traduzida), as implicações dessa obra são, a meu ver,
veículos de salvação por meio dos quais o novo mundo seria criado. Ao
do milenarismo e do messianismo:
sul-americanas:
destruição mundial possa ter mais uma vez uma presença total. Mas a
unicidade;
visões da realidade;
não são visões paroquiais mas posições ecumênicas. Prevêem não só seu
utopia;
humanos imortais, é a idade final, uma festa sem fim, um mundo sem fim
(: 607-14).
casos na Amazônia. Como ficará claro nas páginas desse livro, tenho procurado investigar as
dimensões simbólicas do que Sullivan chama “a espiritualidade do fim do tempo” e do que eu chamo “a
consciência milenária” entre os Baniwa. Um dos temas centrais, chave para entender essa consciência, se
refere aos múltiplos sentidos que os Baniwa atribuem ao que venho a chamar as dimensões ‘vertical’ e
horizontal’ do cosmos. Esses sentidos se tornam explícitos através das formas de narrativa mítica e ação
ritual. Cada capítulo desse livro explora aspectos diferentes dessas dimensões, em suas relações com o
sentidos proeminentes, mas não exclusivos, que os xamãs e narradores atribuem à dimensão vertical do
cosmos dizem respeito à criação e resurreição - enfim, uma visão ‘utópica’ do cosmos - enquanto
atribuem à dimensão horizontal a destruição e a morte - enfim uma visão catastrófica do cosmos. Não
quero sugerir com isso, porém, que as duas visões sejam opostas; pelo contrário, acredito que se referem
a dois elementos indissociáveis de uma “espiritualidade do fim do tempo” através da qual os movimentos
messiânicos, proféticos e milenários possam ser entendidos. Ambas as visões, sugiro, são
região no Brasil.
canto da cruz", ou "a religião da cruz", que perdurou até o início deste
mobilização política indígena e participação na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
(FOIRN), criada em 1987, tem garantida a defesa de seus direitos a terra. Em 1996, depois de anos de
negociação, o governo federal do Brasil decretou a criação de uma reserva indígena grande e contínua no
Alto Rio Negro. Em 1997, foi iniciada a demarcação atual da reserva, através dos esforços colaborativos
XVIII (ver Wright, 1981, 1991, 1992). Porém, sua sociedade e sua cultura
ponto, pode ser aproveitada por seu conteúdo etnográfico. Por outro
41
Wright & Hill, 1986; Hill & Wright, 1988); plantas medicinais (Doyle,
1981).
As Circunstâncias da Pesquisa
sobre a área e seus povos desde o século XVIII até o presente. O acervo
relativamente grande que isto gerou me fez concluir que, pelo menos no
que trabalhar mais com a memória. Minha impressão inicial foi confirmada
Uaupés. Ele também achou que o Aiary seria mais interessante, pois desde
por exemplo, o alto Içana, uma vez que levaria umas duas semanas de
que parecia exercer uma espécie de controle sobre os aldeões por meio de
igarapé Uaraná rio acima, e Santarém rio abaixo), distantes três a cinco
Manaus.
não era um evangélico - ficou clara em toda parte. Além disso, Hipana
era uma aldeia "católica" e um dos poucos baluartes dos Salesianos num
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ir a uma roça familiar, por exemplo, para ver como as coisas eram
briga, fiquei sabendo que a missionária tinha feito uma queixa contra
mim para a FUNAI, alegando que eu fora a causa da briga por ter "mandado
oral que serão usados neste livro. Ele era, na época, um dos velhos mais
era um xamã, mas devido à idade avançada não era mais capaz de
sempre foi chamado para servir de auxiliar nos rituais de cura. Antigo
morrer?" Seus dois enteados, ambos Desana, não pareciam ter o mesmo
dos homens Baniwa fala português, mas à medida que a minha compreensão
que Hipana torna-se-ia "cidade" e eu, talvez por não querer acreditar ou
achando que não passava de um sonho, não prestei muita atenção no que
anunciou, então, que em breve uma pista de pouso seria construída pela
FAB atrás da aldeia e que uma pequena usina hidrelétrica seria instalada
continuar meu trabalho em Hipana. Resolvi mudar-me para rio acima até
tinham aprendido bastante com seus pais e avós, o que tornou a minha
Aiary e de que a crença estava longe de ser uma questão como preto no
branco.
para deixar Hipana, Mandu pediu-me que levasse um recado urgente à FUNAI
panela de pressão.
sabendo, por exemplo, que Mandu e toda a sua família deixaram Hipana e
mudaram-se para o Rio Negro. Fiquei sabendo também que a pista de pouso
construída nos anos 70, atrás de Uapui - que provocou tanta disrupção -
já não está mais sendo usada por ter sido abandonada pela FAB anos
1
Este livro não é apenas uma versão revisada da minha tese de doutorado, aprovada em
1981. A maior parte consiste em material que não entrou na tese ou que havia recebido
pouca atenção. Minha tese, de fato, tornou-se algo muito diferente do que havia
previsto. Em vez de uma descrição e interpretação da religião e história Baniwa, o
enfoque ampliou-se para uma história de contato no noroeste da Amazônia entre os séculos
XVIII e XX, concentrando-se especialmente nos movimentos messiânicos da metade do século
XIX. A minha interpretação da religião limitava-se a um mito modular, o de Kuwai. Como
ficará claro nas páginas a seguir, acredito que uma compreensão mais profunda do
milenarismo Baniwa exija interpretações não só de sua mitologia mas também do xamanismo,
da cosmologia e escatologia, e da conversão.
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Introdução. Já que o meu objetivo é de entender a “espiritualidade do fim do tempo,” para citar a
frase concisa de Sullivan, ou o que eu estou chamando de “consciência milenária” e seu imaginário, um
contêm imagens de catástrofe e regeneração, de mundos anteriores que foram destruídos e posteriormente
recriados ? Como os narradores entendem esses mitos e tais imagens quando ocorrem ? Como as
narrativas sobre o mundo primordial formam as concepções que as pessoas têm sobre a natureza do
mundo hoje e da existência humana no tempo ? Essas questões orientam a minha discussão no Capítulo 1
que procura estabelecer as bases para entender como as imagens míticas de catástrofe e regeneração
Baseado nas explicações dos narradores, tenho ordenado os mitos cosmogônicos Baniwa numa
sequência de ciclos que traçam o que poderia ser considerada a história cósmica - desde o começo do
tempo até o começo da história humana. A minha intenção não é de apresentar todas as narrativas de
cada ciclo (nesse sentido estou atualmente organizando um volume separado de mitos, junto com os
Hohodene), mas de ilustrar cada ciclo com uma ou, no mais, duas narrativas.
Cada narrativa é, de certo modo, uma forma relativemente fixa de discurso sobre uma
determinada fase na história cósmica. É importante portanto apresentar cada narrativa, na medida do
possível (diante das limitações inerentes em transformar uma forma de arte criativa num texto fixo e
mudo), como o narrador a apresentou, isto é, preservando a sua forma poética. Ainda na minha
dissertação doutoral (1981), reconheci que a narração de mitos é “uma forma de performance artística e
um diálogo entre contador e ouvinte; ... a arte é drama e através dela, os tempos sagrados são criados e
recriados.” (: 459) Desde então, numerosos estudos na etnologia sulamericana têm focalizados nos
aspectos etnopoéticos de narrativas míticas e como esses constrõem a realidade (para citar alguns dos
Estilos de narração representam uma parte integral do performance e sentido do mito; ao mesmo
tempo, eles apresentam o maior desafio aos etnógrafos: como representar elementos complexos de estilo
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- p.ex., a música em várias modalidades, momentos altamente dramáticos tais como dilúvios,
conflagrações, ou guerras ? E como preservar o lirismo da narração o que não fica evidente ao traduzir de
uma língua nativa para português ? Não tenho respostas a essas perguntas; as minhas apresentações dos
mitos são approximações aos originais e isto é o mais que deveria ser esperado delas. Apresentadas dessa
maneira, alguns desses textos podem aparecer cumpridos demais no papel, então tenho tentado facilitar a
leitura por apresentar resumos dos enredos depois de cada texto, e/ou notas explicativas nos textos.
É nessas narrativas e nas exegeses dos narradores sobre elas - isto é, como os narradores
entendem os mitos - tão bem como as minhas próprias interpretações, que eu espero encontrar respostas
para as questões levantadas acima. No que diz respeito ao método de interpretação que pretendo utilizar,
acredito que tenho mais me aproximado ao que Sullivan define como a ‘hermeneûtica’:
instrutivo afetado tanto pelo sujeito como pelo objeto de compreensão. Numa interpretação autêntica, o
seu método não pode ficar objetivamente separado de seus dados; tem que ficar sujeito a seus dados para
continuamente ser re-examinado sob a luz das tentativas de compreender. Nessa luz, a confissão aberta
de seu método muitas vezes parece simplista e inoportuna, pois não se pode despachar tão facilmente
com a auto-consciência que uma verdadeira compreensão exige. As categorias que organizam os dados e
reformulam e revelam o sentido dos pensamentos e atos de outros, e vice versa ? A compreensão é um
Desse processo, espero poder definir mais concretamente as imagens e formas relevantes à consciência
‘coisa’ objetiva, ou essencializada, ‘lá fora.’ Pelo contrário, é como um ser vivo, e é através de seu
funcionamento que os xamãs derivam e constrõem sentido em suas curas e outras atividades.
arte, prática, e treinamento, nos quais, ficará claro, eles entendem que uma das suas principais tarefas
é de curar - ou, ‘fazer melhor’ - este mundo. Em sua aprendizagem, eles aprendem como fazer isso e,
nesse sentido, eles podem ser considerados os ‘guardiões do cosmos.’ Esse é um ponto importante que
diz respeito diretamente à questão de como os xamãs interpretam a cosmogonia em termos milenários,
servem de intermediários entre a humanidade e o ‘outro mundo’ paradísico, e podem mesmo incorporar
Finalmente, no Capítulo 2, considero as canções dos xamãs - uma das principais formas de arte
associada à cura. Embora muitas dessas canções sejam fundamentadas nos eventos lembrados nos mitos
cosmogônicos e organizadas conforme o espaço-tempo do cosmos, elas vão além das conclusões dos
mitos. Pois as canções - e os vôos xamánicos - abrem uma relação direta entre o ‘outro mundo’ das
divindades e ‘este mundo’ de humanidade que permite novos episódios de criação, por assim falar, a
serem incluidos na história da criação. É com tais atos criativos que o xamã realiza plenamente o seu
papel salvífico.
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O Deus de Osso
mito do começo de Iaperikuli, porém, deixa claro que não foi só uma
pessoa que saiu de dentro do osso, mas três - Iaperikuli e seus irmãos
seres aos três ossos juntos de um dedo. Embora os três irmãos juntos
caos.
Hohodene). A versão apresentada aqui foi me contada a meu pedido por Keruaminali de Uapui
Cachoeira. Em geral, narradores Hohodene contaram essa história, uma das mais bem conhecida, ou na
maneira em que foi transcrita aqui ou, mais frequentamente, eles contavam os primeiros e últimos
“pedaços” da versão apresentada aqui - ou o que eu chamo de “partes” no seguinte resumo - e omitir o do
meio. Parte I da história conta de um estado inicial de matança em que quase todos os Duemieni, seres
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primordiais, foram mortos e devorados por tribos de animais predatórios. Do osso de um ser devorado, os
três heróis Iaperikunai emergiram, são nutridos e criados por uma avó velhinha (ou tia em muitas
versões) até, depois de várias transformações, eles ficam todos crescidos. Parte I da história também
define a natureza dos Iaperikunai como a “Gente Universo”, hekwapinai, que são responsáveis por fazer
e transformar tudo que existe neste mundo. Parte II da história conta das ‘vinganças em troca’ que os
Iaperikunai realizam contra os animais que tinham matado todos os seus parentes. Eles encontram quatro
animais, cada um engajado em alguma ação desordenadora, que os heróis secretamente observam. Eles
então fazem com que cada um repete o seu ato desordenador e, além disso, lhes mostra onde está seu
ponto fraco. Com essa informação, eles conseguem enganar e matar os animais - todos menos um que
fingiu que estava lamentando os mortos. Em Parte III da história, o chefe dos animais tenta matar os
heróis dentro de um fogo, uma conflagração que queimou o mundo, ainda miniatura naquela época, mas
Na minha transcrição e tradução da narração por Keruaminali, tenho procurado preservar seu
estilo tão próximo ao original quanto possível - por exemplo, onomatopoeia em itálicos - para dar pelo
O Osso de Duemieni
uma outra gente que andava matando e comendo as pessoas. Eles mataram
toda a tribo dos Duemieni, um povo deste mundo antigo. Mataram todos
eles, todos os Duemieni. Então o chefe dessa gente que matava, chamava-
se Enúmhere; ele era o sogro dos Duemieni. Um dia ele estava comendo o
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osso de uma pessoa que havia matado. Ele jogou o osso - Pi’thi’ ...
Então uma velhinha, que era a avó dos Duemieni, estava chorando,
chorava pela perda de seus parentes, porque tinha acabado todos eles.
Enúmhere escutou ela chorando e foi falar para ela, que era a mulher
dele: ‘Vá lá buscar o ossinho que eu joguei.’ Ela apanhou uma rede de
Um osso apareceu para ela. Tinha três seres dentro do osso que se
pequenos grilos. A velhinha foi buscar tapioca e deu para eles comerem.
No dia seguinte, ela deu de novo para eles comerem. Rapidamente eles
bateu na cuia, porque ela queria que eles ficassem calados, para que
Enúmhere não soubesse que estavam vivos. Depois ela abriu a cuia e todos
os três cantaram.
Então ela levou os três dentro de um cesto para a roça. Lá, ela
abriu o cesto e os grilos saíram. Ela deu comida para eles e eles
aparecer como gente. Eles iam aparecer como Iaperikunai, os três irmãos.
Depois ela disse para eles, ‘Não façam nada, fiquem quietos !’ Mas
universo. Nós podemos fazer tudo e qualquer coisa. Nós podemos fazer
A avó deles então os levou de novo para a roça onde iam aparecer
como gente já adultos. Na roça, ela abriu seu cesto, eles saíram e
apareceram como adultos. ‘Hey!’ Ela falou para eles, ‘Vocês têm de ficar
quietos, não façam barulho, eu estou lhes ouvindo, meus netos.’ ‘Não,’
gente-universo.’ Assim eles falaram. Aí, foram subir acima de uma árvore
vão cair!’ ‘Não,’ eles responderam, ‘Nós nào vamos cair, nós somos a
Aí, eles ficaram lá no topo da árvore. Pois lá eles iam fazer esse
fizeram a cutia dentro da roça; por isso, a cutia gosta de roças e come
beiju.
tatatatata. ‘Vocês vão cair!’ Ela gritou. ‘Nós não vamos cair,’ eles
deixaram o mundo pronto, tudo no mundo ficou pronto... Assim foi que
depois, eles falaram, ‘Como será que nós vamos buscar nosso troco? (Isto
’Tá certo,’ a velha falou. Então eles a deixaram e foram andando; eles
avô?’ ‘Nada,’ O sarapó respondeu, ‘eu estou jogando água assim deste
lago. Para fora do lago do povo onça.’2 ‘Ah é ? Então jogue para nós
vermos,’ os Iaperikunai falaram. ‘Tá bom.’ O sarapó foi jogar água, mas
o lago não secou, não se esvaziou. ‘Nós ouvimos você dizer - ‘Nenhum
dono do lago do povo onça’3 - você disse quando jogou,’ eles falaram.
‘Oh, assim foi,’ O sarapó falou, ‘Nenhum dono do lago do povo onça.’
do sarapó. Então eles pegaram uma cuia e fizeram bolhas de gás dentro
Eles perguntaram, ‘Oh, é seu ânus?’ ‘Não,’ o sarapó falou, ‘Não é meu
Iaperikuli disse, ‘Um de nossos parentes tem uma coisa boa, ele faz um
pegaram uma lança e fincaram nele de um lado para fora de seu pescoço...
Depois eles chegaram e perguntaram: ‘em que você está trabalhando, avô?’
então, corte para nós vermos,’ falaram. Ele tentou cortar mas as suas
garras não entraram ! ‘Nós ouvimos você dizer: ‘Nenhum dono de pau-
2
O povo-onça são os Dzauinai que seria o mesmo de Duemieni, o povo dos Iaperikunai.
3
Se o sarapó não fale essas palavras, o lago não seca. São palavras de nomear, para
jogar água.
61
falaram. ‘Ah, foi assim mesmo,’ disse o cuandú. ‘Ha ! Corte ela
falou: ‘De modo algum vocês podem me matar, de modo algum... De modo
algum vocês podem me matar, vocês não podem... Só existe um lugar em que
`Hmmm.’ Aí eles vinham para matá-lo. ‘Onde é que eles fizeram para matar
mostrou com sua pata. ‘AQUI?!’ TAAWWHH !! Iaperikuli bateu com tanta
dizendo enquanto comia: ‘Nenhum dono das plantas de urucu do povo onça.’
trabalhando, avô?’ ‘Eu estava chorando,´ ela respondeu, `Eu choro por
meus cunhados mortos por todos eles que foram mortos.’ `É MESMO !?’
apodrecendo, de tanto chorar por meus cunhados mortos.’ ‘Ah então, assim
parece’, eles falaram e deixaram ela. Eles não mataram ela. E foram
andando.
‘em que você está trabalhando, avô ?’ ‘Eu estou chutando o abacateiro,’
a anta respondeu. ‘Ah então, chute ele para nós vermos’, eles falaram.
‘Tá bom.’ A anta chutou, mas nenhum abacate caiu. ‘Oooohhh?´ eles
onça’, nós ouvimos você dizer quando você chutou.’ ‘Sim, assim foi,’ a
Aí eles foram ver onde a anta chutou. Quando foram, eles pegaram
chute de novo para nós vermos.’ A anta correu e chutou com força...
universo. Não há nada que eles possam fazer. Assim é.’ Eles ficaram
Esse Enúmhere foi fazer uma roça. Apareceu um belo verão, e ele
Eles foram. Eles tocaram fogo na nova roça. Enúmhere disse para eles -
‘Vão lá para o meio.’ Enquanto isso, ele correu para colocar fogo na
queria matá-los e falaram: ‘Nós nunca vamos nos queimar, nós somos os
Iaperikunai’, eles disseram, ‘nós nunca vamos nos queimar.’ Cada um dos
vivos. ‘Por que ele fez isso conosco, nosso padrasto?’ eles falaram,
jabutí. O jabutí veio pela trilha. Então havia uma árvore com um tronco
tabaco, e sopraram sobre seu sogro. Depois desceram para o porto onde
chorando...e viu eles lá: ‘O que aconteceu?!’ ele disse, ‘Vocês não se
Assim foi.
Interpretação
das muitas que tem na história cósmica Baniwa - no sentido de que foi
uma destruição quase total dos primeiros povos, consumidos pela fome
rio abaixo, uma espécie de túmulo aquático sem forma, em que toda forma
avô ou “velha tia” tem uma importância muito grande: é ela que guarda
profetisas.
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Um dos temas notáveis na primeira parte dessa história é o nítido desenvolvimento de sua
dimensão espacial o que parece ser intimamente ligado ao crescimento dos Iaperikunai e a criação de
uma nova forma do universo no período de pós-destruição. Note-se por examplo que o primeiro espaço
indicado na primeira parte do mito é o ‘rio abaixo’ onde o osso dos Iaperikunai, em seu estado pré-natal
como insetos aquáticos, ou camarões, é pescado da água. De lá, o osso é trazido para dentro da casa e
deixado abaixo da rede da avó onde os Iaperikunai - transformados em insetos terrestres, grilos - cantam
e crescem. A partir daí, há uma alternação entre roça e casa, os espaços de domesticação nos quais
ponto final desse processo ocorre quando os Iaperikunai, já crescidos, no topo da árvore, transformam
uma fruta num animal domesticável - um agouti, um animal que gosta de comer mandioca na roça e às
vezes é criado como um animal de estimação da casa. Enfim, os movimentos espaciais - do rio à casa à
jardim - parecem representar a recriação de forma coincidindo com o crescimento dos Iaperikunai: do
rio, um lugar de espaço absolutamente sem forma, para a casa, um lugar de criação e domesticação, para
a roça, um lugar de domesticação da natureza. Dentro de cada espaço, os movimentos verticais (abaixo-
acima-abaixo) pareciam corresponder ao caminho do universo - isto é, o caminho vertical que liga os
diferentes níveis do universo da parte mais baixo até o topo (ver desenho do Cosmos em Capítulo 2).
Nesse processo, o mito utiliza formas concretas - especialmente, recipientes - para expressar
idéias centrais sobre o crescimento e a mudança: o osso do qual os Iaperikunai emergiram; a cabaça e o
cesto de carregar em que a avó os guardou; e a árvore de ambaúba com um buraco no topo da qual os
Iaperikunai sairam imortais - todos são recipientes que representam transformações. ‘Sair’ de recipientes
é uma imagem comum nos mitos e rituais Baniwa que geralmente se refere à reintegração de seres
recém-transformados em sociedade. Aqui, sugiro que o processo de sair da cabaça representa uma
transição da morte para a vida; sair do cesto a transição da infância à idade de adulto; e o momento de
universo: (1) “Não façam nada” (madenhi, não trabalhem), ela diz e
inativo. (2) “Têm que ficar calados, não façam barulho” (mepaka), ela
diz, e eles respondem, “não vamos embora” - a sua permanência; não vão
poderosos que representam essa transformação. (3) e (4) “Vocês vão cair
alguma ação desordenadora, eles o enganam, fazendo com que o animal fale
67
comparação com o “pai” dos animais que volta no episódio final para
espíritos.”(1988: 69)
soprando tabaco sobre ele, e descem no rio para tomar banho. O mito
Os Animais e os Trovões
animais são devorados por piranhas nas águas. Todos foram devorados,
morte dentro de uma fruta seca, boiando nas águas até o “fim do mundo.”
Assim o chefe dos animais começou os maus augúrios, hinimai, os quais precavem na vida real a
morte das pessoas por veneno, pois o Dzauikwapa era o “dono de veneno” primordial; o macaco ipeku
hoje, quando aparece nas aldéias a noite, é considerado um mau augúrio pois o seu aparecimento
A seguinte narração do mito de Ipeku, ou Dzauikwapa, foi contada para mim a meu pedido, de
novo por Keruaminali de Uapui, com comentários entre colchetes por seu enteado José Felipe:
4
Os Trovões (Eenunai) são, no mundo primordial, as tribos que habitam as árvores, e os
donos de veneno. Hoje, são as diversas espécies de animais arborícolas - preguiças,
macacos, etc. O chefe dos Trovões assume várias formas e nomes nos mitos: Dzauikwapa,
Enumhere, Withinaferi, Kunaferi- embora sua essência como inimigo principal de Iaperikuli
permaneça a mesma.
70
animais, itchirinai. Ele estava dando nomes a tudo. Então, ele andou com
falaram. Eles andaram até chegaram a um outro rio. ‘Como esse rio se
macaco,’ ele respondeu. ‘Ah é nosso, nosso nome.’ Foram para outro rio
Assim foram.
Depois Iaperikuli fez o rio subir e subir e subir. O rio subiu até
isto conosco? Eles vão nos matar.’ Ele pegou outro, voltou, e deixou
71
que não tinha um caroço, voltou, deixou cair na água mas nada aconteceu.
‘Agora vou levar este fruto que já secou,’ ele disse. Ele pegou um, fez
Dzauikwapa então desceu pelo rio abaixo e flutuou para longe, para a
beira do céu.
começou a levá-lo, mas teve medo e voltou. O urubu tentou levá-lo, mas
levá-lo. O jacaré tinha comido muito e estava cheio, ‘Eu vou levar você,
eu sou uma boa canoa,’ ele falou para o uacari. O uacari sentou-se em
fora, ‘Ai, é muito fedorento, muito ruim.’ O jacaré então deu uma
dentada no rabo do uacari. É por isso que o uacari tem, hoje, uma cauda
curta.
Dois, três dias depois, Dzauikwapa voltou chamando ‘Hee hee hee hee
oopi eenunai hee hee hee hee oopi eenunai.’ É o canção dele que dá
Aí, Iaperikuli fez a água baixar. Ele enviou o mulitu, pombo, para
É só.
Interpretação
mesma maneira que o “pai” dos animais, Enúmhere, não conseguiu consumir
Dzauikwapa fica como uma eterna lembrança de que as pessoas morrerão por
O significado do mito foi esclarecido para mim uma tarde quando trabalhava com Mandu, um
xamã, sobre poderes xamânicos. Ao se referir ao controle xamânico sobre fenómenos meterológicos (as
nuvens, a noite, o trovão, o relâmpago), ele falou a frase enigmática “deepi karumi oopi apakwa
hekwapi” - “a noite do fim, antigamente, o outro mundo” - “deepi idzakale” - “a aldéia da noite.” Foi
somente muito mais tarde, quando trabalhava com ele sobre as canções dos xamãs, que Mandu se referiu
de novo à “noite do fim, antigamente” e, depois de cantar uma canção a que a frase se refere, ele
“Esta é uma canção para pajés ... Este mundo acabou uma vez. A noite cubriu todo o mundo. O
pajé pede para Iaperikuli deixar a noite passar. Para deixar o mundo ficar como é agora.
“Porque, a noite veio e ficou por um tempo. Foi Iaperikuli mesmo que fez isso. Depois, ele
salvou o mundo com sua canção... [Depois que ele salvou o mundo] ele perguntou, ‘então, vocês não vão
ficar como animais ? Comendo gente com veneno ? Iaperikuli nos salvou.”
Vou me referir de novo a essa canção mais adiante nesse livro, mas eu quero enfatisar aqui que o
tema da canção da “noite do fim” se refere diretamente ao momento no mito quando Iaperikuli traz a
noite, forçando os animais a subir a árvore para depois provocar a catástrofe de relâmpago que quebra a
árvore no meio and em que os animais são devorados nas águas. Chamando o trovão e relâmpago,
limpando o céu de nuvens ou fechando-o com escuridão são todos poderes xamânicos, segundo Mandu,
Agora, lembre-se que, no mito do começo de Iaperikuli, os heróis são chamados hekwapinai,
gente do universo, e demonstram os poderes xamânicos de transformar e agir como tricksters. É evidente,
então, que ambos os mitos que tenho citado se referem a xamanismo e sua importância para ciclos
cósmicos. No mito de Dzauikwapa, Iaperikuli utiliza seu poder xamânico para provocar a noite, etc.,
numa tentativa de matar os animais, especificamente o chefe dos animais, o macaco ipeku. O motivo
explícito do truque de Iaperikuli, afirmado por todos os narradores, é de matar o chefe para que ele não
faça maus augúrios, hinimai, o que Iaperikuli não conseguiu fazer. Assim maus augúrios, hoje, precavem
a morte das pessoas e o ipeku - o fazedor primordial de augúrios - é, segundo Mandu, também o ‘dono de
veneno’ primordial, e veneno, manhene, é o que os Hohodene acreditam faz as pessoas morrer hoje.
Se, hoje, uma pessoa ouça o grito de certos animais, tais como o macaco ipeku, à noite, é um
mau augúrio e com certeza provocará uma doença fatal, diagnosticada de ‘veneno’, pois são os animais
que, acredita-se, envenenam as pessoas, “comem as pessoas com veneno,” uma frase enigmática que,
espero, será esclarecida nos capítulos deste livro (ver especialmente Capítulo 5). Em poucas palavras,
espíritos da natureza em que, em troca para os animais que os humanos matam para comer com
Vários narradores também vincularam este mito diretamente a ciclos sazonais: Mandu contou o
mito, por exemplo, imediatamente depois da sua explicação de como os xamãs fazem vir o verão, ou
estiagens. Um outro narrador, Nocêncio, um pastor evangélico da aldeia de Santarém, contou o mito no
contexto de uma conversa sobre os espíritos cigarra chamados dzurunai, cujos gritos na floresta são
lembretes do início da estiagem anual, a época da coivara. Certamente se se aprofunde mais nos vínculos
ecológicos entre as espécies de animais e peixes neste mito, as associações com à estiagem ficariam mais
claras.
Mas o que parece ser mais importante, pelo menos segundo os comentários dos narradores, é o
fato de que este mito pertence a uma série de histórias sobre as lutas de Iaperikuli contra o chefe dos
animais e dos eenunai. Terei mais ocasião para referir a outros mitos em Partes II e III deste livro
especialmente. A meu ver, este discurso mítico apresenta uma seqüência de catástrofes e regenerações
todas as quais são relacionadas ao fim do mundo primordial e o início do novo mundo criado dos
vestígios do velho.
Se, por exemplo, nos compararmos - e note-se, essa é a minha sugestão, pois nenhum narrador a
fez explicitamente - o mito do Dzauikwapa com o episódio final do mito do começo de Iaperikuli -
quando Enúmhere tenta matar os Iaperikunai no incêndio - podemos ver como ambos os mitos trabalham
com as imagens de catástrofe e regeneração. No mito do começo de Iaperikuli, o chefe animal Enúmhere
queima uma roça no início da estiagem e manda os heróis ficarem no centro da roça. Quando o fogo
ameaça a consumí-los, os heróis entram um recipiente: um tronco de ambaúba que estoura com o calor, e
os heróis saem voando, “não morreram.” No mito do Dzauikwapa, é Iaperikuli que, através de seu
xamanismo, força os animais a subirem a árvore frutífera no meio do rio. Enquanto as piranhas e os
jacarés ameaçam a consumí-los, o chefe entra dentro de um recipiente, uma fruta já seca, e vai boiando
no rio até a ‘beira do céu.’ Quase todos os outros animais são devorados, mas o chefe volta depois,
cantando enquanto vai boiando rio acima. Uma comparação entre os dois episódios é interessante pois,
enquanto o primeiro anuncia o triunfo dos heróis sobre a morte, o segundo anuncia que o arauto da morte
continua a existir - uma espécie de tensão dialética, ou luta cósmica, entre a ordem e o cáos no mundo
hoje.
75
queimou o mundo. Uma vez que o mundo foi livrado desses, ele procurou os
primeiros antepassados.
Kuwai
mundo na vida real com as florestas e rios habitados por seres humanos e
humanidade.
77
Kuwai é tanto deste mundo atual quanto do antigo, e que ele vive no
através de seus cantos e ações para efetuar uma cura, isto é, para
que marcou a sua "morte" e afastamento do mundo. É ele que os pajés mais
natureza desse ser: wamu, a preguiça preta, e dana, sombra, interior invisível e
perigoso por causa das suas associações com a doença, morte, e catástrofe. Wamu é o ‘dono de veneno’
mítico como o Dzauikwapa; wamu é uma das formas do chefe dos animais que Iaperikuli não conseguiu
matar; wamu, os pajés dizem, é a ‘alma-sombra’ de Kuwai, uma projeção de seu interior escuro. Por este
motivo, as flautas e trombetas sagradas, também chamadas Kuwai, são consideradas extremamente
perigosas e podem provocar uma catástrofe - a morte coletiva com veneno - se forem expostas fora de seu
contexto ritual. O jejum ritual e a abstinência de comer animais são vistos portanto como formas de
78
sofrimento voluntário a que os indivíduos se submetem se eles queiram ser curados, ou para ficarem seres
A Nova Ordem
paralela às lutas dos heróis, uma série de mitos conta como Iaperikuli
tabaco sagrado, e o fogo de cozinha. Como ficará claro na seguinte história contada por
Luís, um velho Oalipere dakenai, todos esses elementos e condições são considerados necessários para
uma vida ‘boa.’ Iaperikuli os obteve em seqüência de seus ‘donos’ ou ‘mestres’ primordiais e depois os
transmitiu a humanidade, aos “outros que vão nascer.” Em sua narração, Luis apresentou três histórias de
criação em seqüência que contam como Iaperikuli obteve a terra para fazer roças, o recipiente da noite, e
o tabaco. Outros narradores contavam cada uma dessas histórias separadamente sem ligá-las como foi
feito aqui:
Quando esse Kuwai nasceu, para ele nosso pai Iaperikuli o órfão, a
seu nascimento, Kuwai era muito pequeno, muito pequeno era seu filho.
Então Kuwai cagou, cagou, e cagou... Essa terra é seu cocô, o cocô de
Kuwai é essa terra. A terra cresceu um pouco, pequeno assim a terra era,
79
assim era a terra antigamente, o primeiro mundo para nós. Sua terra
então, de nosso pai órfão era uma pedra, assim, era uma pedra, uma pedra
Então Iaperikuli pensou sobre essa terra - não havia nenhum modo
dele pegar a terra para o povo, dele conseguir plantas para colocar nas
roças ? Então ele procurou a terra com Kuwai. Assim, foi muito pequena a
Iaperikuli a viu. Então, aquele que os brancos chamam de Adão, mas que
nós conhecemos como Kaali em Baniwa, ele viu a terra e pegou ela com
Iaperikuli para roças. Depois, Kaali fez roças nela. Depois de conseguir
as roças, a nossa comida para hoje fica de verdade para nós como no
todas as plantas... Elas eram dele, de Kuwai. Kaali, que eles chamam de
para roças. Então depois, foi a partir daí de verdade que nós crescemos
nela até hoje. É só, mas a terra era muito pequena no começo.
Agora, o dia para Iaperikuli, nosso pai órfão, ficou sempre lá. O
sol sempre lá no céu, não se punha. O dia nunca parou para Iaperikuli, o
chegava e ficava em casa. Ele preparava sua comida, mas o sol não
sua comida, mas o sol não se punha. Agora, sua mulher, a mulher de
Iaperikuli, ‘É bom o que meu pai tem, Iaperiko. É bom o que meu pai tem
lá. Ele vai embora, trabalha, volta... Ele faz sua comida e, então, ao
anoitecer, ele diz, ‘nós ficamos aparte, amanhã será’’, ela disse para
ver’, e ele foi para a casa do pai dela. Ele foi para pegar a noite. O
noite, deepíwali. O pai dela deu para Iaperikuli um pequeno cesto com
uns frutinhos emaranhados nele. Mas era muito pesado!! Iaperikuli voltou
e, no meio do caminho, disse: ‘o que é que pesa tanto?’ ele disse, pois
era muito pequeno. Ele abriu um pouco a tampa - tchik! - a noite saiu,
foi. ‘Oh, é noite’, disse Iaperikuli, ‘oh, é noite. Sim, é noite. Agora
é, de verdade.’ O sol... se punha. ‘Ah, como vai ser, meus avós?’ ele
pássaro jacu foi para o alto duma árvore... à noite ele fica em uma
aurora saiu e o galo fez seu canção. Esse mutum que chamamos o ‘querido
mutum - ‘hnnn hnhnhnnn’ o dia que ele conhecia, ‘hnn hnnhnn’ seu
disse essa preguiça preta, ‘o dia chegou’, ela disse, ‘kuku’, ela disse,
dar uma volta completa e voltar. A aurora Iaperikuli viu, ele observou a
81
aurora nascer. ‘É dia’, eles disseram para ele, ‘o caminho está feito, a
aurora está aqui.’ Iaperikuli a viu nascer, ‘Oooh, assim será para os
nossos descendentes’, ele a fez assim, aqui, no mundo para nós, hoje. O
sua aldeia.5 Assim, ele estava voltando quando abriu o cesto da noite -
plahh. O sol saiu para ele... Iaperikuli andou e voltou... Então, ele
Iaperikuli sabe que é bom, ‘Me dá um pouco, meu irmão’, ele disse para
deu, mas era seu tabaco seco. ‘Não, eu quero o outro tipo o verde para
ele chegou para elas. Ele entregou o tabaco para elas... ‘Onde está
responderam. ‘Eu trouxe tabaco, esse bom tabaco para ele’, Dzuuli disse
para aquelas crianças. ‘Esse bom tabaco para ele, eu deixo tabaco para
ele, lá atrás da casa’, Dzuuli disse. Ele foi para trás da casa e
deixou uma coisa boa para você.’ A noite passou... O tabaco, então,
5
Uma ilha no iagarapé Uaraná.
82
Iaperikuli saiu e viu que estava cheio de tabaco. ‘Oooh, assim é,’ ele
disse, ‘Para nossos descendentes, os outros que vão nascer.’ Aí, ele
repartiu para todo mundo, hoje, todo nosso tabaco. Todo o tabaco que os
nosso... O que eles têm, os brancos, nós não sabemos como é. Esse, o que
lavou os corpos dos povos. Primeiro que caiu no lago foi o branco. Por
isso que são brancos, pois lavou o corpo dele na água limpa. Já o
segundo que caiu na mesma água foi o nosso avô. Por isso somos de côr
mais moreno. Já depois que todos estavam lavados nessa água, aí que veio
esse outro branco que sairia preto. Eles tomaram banho neste lago que já
preteados.
É só.
Interpretação
Cada pedaço da narração parecia seguir uma linha semelhante de desenvolvimento do enredo:
começando com uma condição primordial que é esteril ou estática (a terra é uma pedra, o excremento de
Kuwai; é sempre o dia, não há ainda a alternação entre dia e noite; Iaperikuli tem o tabaco seco e não o
verde para plantar), busca-se uma condição diferente, descrita como ‘boa.’ Esta condição diferente é
introduzida de fora mas, no processo, uma transformação ocorre. Transformações são marcadas por
estouram, produzindo uma mudança radical. Tais transformações não são necessariamente
catastróficas, embora há uma sugestão disso no caso da noite que cobre o mundo inteiro como um
83
enchente e Iaperikuli pergunta, “como será, meus avós ?” Em cada caso, porém, uma nova
Muito diferente é a perspectiva que o narrador Keruaminali de Uapui tinha sobre a vida nesse
mundo. Longe de ser uma terra ‘boa’ onde há prosperidade, como Luis disse, o xamã Keruaminali
insistiu na natureza ‘má’ e doentia deste mundo. Em sua versão do mito da “terra Kuwai,” Keruaminali
falou o seguinte:
“Iaperikuli pegou Kuwai [a flauta sagrada] e a soprou - “Heeee !” A terra cresceu e cresceu -
Ficou enorme ! Assim Iaperikuli fez essa terra de Kuwai crescer. A terra. Começou a terra, a terra de
Kuwai. Foi só, ele a deixou para gente. Cada um com sua terra. Eles a fizeram ruim, esse lugar de dor,
kaiwíkwe, kaiwíkwe. Parece que eles querem acabar com gente ... Nós vivemos mal nela, não bem. Assim
é, uma terra ruim, hipai maatchídali. Uma outra terra é boa, a de Iaperikuli. Quando morrermos, iremos
lá. Gente ruim que tem matado não vai lá. ... A terra de Kuwai é ruim; a terra de Iaperikuli é boa. É só.”
Além dessa visão pessimista sobre este mundo, o discurso de Keruaminali foi marcado com o
que nos podemos chamar de uma visão fortemente catastrófica da cosmogonia, com várias imagens de
“infernos” - a palavra que ele, mas nenhum outro narrador, usava - grandes conflagrações, fogos celestes,
etc. Na história de como Iaperikuli obteve tabaco, por exemplo, a imagem que Keruaminali usou para o
momento em que o Avô Tabaco trouxe as sementes para a casa de Iaperikuli era de um vento forte dentro
de um fogo na noite. A sua visão da terra como ‘ruim, má’, o ‘lugar de dor’ contrasta marcadamente com
a de Luis que não era um xamã e que explicitamente não concordava com a avaliação de Keruaminali da
6
Mais um exemplo basta para ilustrar:
No começo, Iaperikuli obteve o fogo da cozinha de seu dono, Yawalíferi. O caiman roubou
o fogo, engolindo-o, e foi para sua casa de pedra no fundo do rio, deixando Iaperikuli
no escuridão. Iaperikuli mandou os sapos paichi chamar o caiman para ele sair da sua
toca. Daí Iaperikuli fincou um pau bifurcado na gargante do caiman, forçando-o a abrir
sua boca. Assim, Iaperikuli pegou de volta o fogo, o colocou numa tocha, e o deu para
toda a humanidade;
84
terra como maatchikwe, lugar ruim, vendo-a em contraste como um lugar ‘bom,’ coerente com as
A última narrativa que vou citar para ilustrar a ‘nova ordem’ criada nos tempos primordiais é de
grande importância para os xamãs, pois conta como Iaperikuli e seus irmãos encontraram poderes
xamânicos, ou malíkai, isto é, trovão, a visão xamânica, um colar de dentes de onça, etc. Da mesma
maneira dos mitos apresentados até agora, este mito também desenvolve o tema de ‘correntes
alimentares’ tão importantes para a origem do cosmos - aqui, para falar sobre poderes xamânicos. Assim,
os narradores disseram que este mito ‘segue’ a história (não citada neste livro) de como a mandioca e
outras plantas das roças foram obtidas da “Grande Árvore de Kaali,” Kaali ka thadapa, uma árvore
enorme ligando a terra e o céu que surgiu da terra a partir do corpo morto do herói Kaali, o ‘mestre’ da
terra, que se sacrificou num enorme fogo de roça para deixar comida para seus próprios filhos. A Grande
Árvore de Kaali é a fonte ancestral de todas as plantas cultivadas na terra; foi dessa árvore, dizem os
Hohodene, que seus antepassados obtiveram a mandioca para suas roças hoje.
Acontece que, no topo da Grande Árvore, tinha um colar de dentes de onça, um objeto de poder
xamânico altamente valorizado que Iaperikuli e seus irmãos procuravam mas que a Anta rouba deles e -
típico da voracidade sem limites dos Animais que, como nos vimos, precisa ser controlada - a Anta se
transforma numa onça predatória até que Iaperikuli recupera o objeto de poder e coloca a Anta em seu
devido lugar na corrente alimentar, como um vegetariano inofensivo. O último episódio da história conta
como os primeiros xamãs, chamados wakaawenai, subiram corpo e alma para o Outro Mundo. Um dos
pontos centrais da narrativa, me parece, é o papel do xamã como mediador no ordenamento da corrente
alimentar o qual se refere a outros ciclos cosmológicos e metereológicos também. Isso tem importância
para entender porque, nos movimentos messiânicos e milenários do passado, acreditava-se que os líderes
mitos mais respeitado do alto Aiary. Na ocasião, o seu filho João ajudou com a tradução, mas seu papel
principal era de participar na forma dialógica de narração - repetindo frases, o que eu tenho indicado com
asteriscos no texto, e fazendo perguntas de esclarecimento, o que eu tenho indicado entre parenteses. Para
facilitar a compreensão do texto, já que Keramunhe fez bastante uso de sons e expressões somente
85
encontradas em narrativas míticas, tenho inserido breves notas explicativas nos lugares apropriados entre
colchetes. A narrativa começa com o irmão mais novo de Iaperikuli que está procurando fazer o som de
O irmão mais novo de Iaperikuli procurou malikai... 7 Ele foi para o mato e chutou a casca de
uma árvore oca para fazer o som de trovão, mas nada aconteceu ! Ele não fez o barulho de trovão. Ele
Então ele foi andando e viu uma árvore de ibacaba. 8 Ele viu comendo lá, então, esse
Kamathawa,Kamathawa Jaguar. Depois, o irmão de Iaperikuli foi caçar um animal. Ele foi e ficou
esperando até a noite, mas nada aconteceu ! O gavião não fez trovão. Ele esperava o tempo inteiro, mas
nada aconteceu ! ‘Pah! O que é isto?’ Ele falou. Ele ficou sentado perto da árvore a noite inteira... Taaa...
até meia- noite, foi meia-noite...Aí ele ouviu assim como vento aaffffffffff... Foi o que Kamathawa fez
irmão de Iaperikuli falou. Rapidamente ele acendeu uma tocha para ver o que tinha caído, mas ele não
viu nada ! Não tinha nada lá ? Ele não achou nada... Aí ele se sentou e ficou esperando, o resto da noite.
ele subiu. Ele subiu lá para cima da ibacaba. Ele alcançou então, essa pena fininha de Kamathawa. ‘Deve
ser isso’, ele disse, e cheirou a pena; bateu: TAYN ! TAYYNN !!9 Ele deu uma virada e olhou, ele deu uma
virada e olhou. O gavião estava deitado lá embaixo dele no chão. Um gavião branco, mas parecia uma
pessoa, parecia. Aí o irmão de Iaperikuli desceu...até o chão -tayn. ‘Quem é você?’ ele perguntou ao
7
Malikai se refere a todos os poderes do pajé, por exemplo, de fazer trovão como conta
o primeiro episódio dessa história. Malikai se refere também aos instrumentos de pajé
que lhe dá poder como o colar de dentes-de-onça e o osso de pariká.
8
Iaperikuli e seus irmãos falaram para ele buscar uma árvore de ibacaba pois lá
encontraria o gavião Kamathawa que lhe ensinaria fazer o som de trovão.
9
O impacto de cheirar a peninha de Kamathawa bateu com uma força grande.
86
‘Sim, eu estava procurando por você,’ o irmão de Iaperikuli falou. ‘Ah, assim é,’ aí o gavião chegou
mais perto. ‘Assim, ah, assim é.’ O gavião pegou, então, o pêlo dele, do peito dele. Ele arrancou um
pedacinho e falou, ‘cheire isso.’ O irmão de Iaperikuli cheirou - TAYYNN ! Bateu de novo e aí veio o
O sol estava bem encima, a meio-dia, e o irmão de Iaperikuli voooooltou... Depois Iaperikuli
chegou, e o irmão mais novo de Iaperikuli foi se encontrar com ele. ‘Iaperiko?’ ele disse. ‘Huh?’
Iaperikuli não o viu. Ele não viu seu irmão mais novo. O seu irmão tinha se transformado, parece.
‘Agora, onde você foi?’ Iaperikuli disse. ‘Eu soei o trovão,’ seu irmão disse, ‘sim, eu soei o trovão, eu
achei ele’, ele disse. ‘Onde, então?’Iaperikuli perguntou. ‘Ali.’ ‘Ah, assim parece, ótimo,’ Iaperikuli
disse, ‘agora, assim será de agora em diante.’ O irmão de Iaperikuli deu para ele o pêlo do gavião.
Iaperikuli o cheirou , ele cheirou, Iaperikuli cheirou - TAYNN ! Haalaaa! Abriu os olhos dele e ele viu,
ele estava vendo como os pajés fazem hoje - ‘É você?’ Iaperikuli perguntou a seu irmão. ‘Sim, sou eu.’
‘Quem você encontrou ?’ ‘Kamathawa’ ‘Aah, sim, bom.’ No começo ele procurava, ele primeiro achou,
Assim, agora... Agora que eles já tinham conseguido, é só, eles ficaram com esse malikai. Bem!
Bem, eles viram, como o pajé vê, antes de nós hoje. Agora, vai ser, então, que eles procuraram então...
Pois então, parece, procuraram aquele dzato, pariká do igapó, e esse marawáthi, o pariká do mato.
Aquelas coisas dos pajés, nossas coisas, as nossas, parece. Esse marawathi e esse dzato também. Dzaro é
do igapó, onde há bancos de areia branca. Mas o que Iaperikuli achou foi esse marawathi, pariká do
mato.
A meio-dia, eles foram procurar... e encontrar Kaali ka thadapan, a Grande Árvore de Kaali.
Aqui, não havia gente ainda, pois esse estava no Outro Mundo, Pakuma, e era aquele povo de Iaperikuli,
parece. Mas não havia gente ainda, aqui. Aí eles foram encontrar a Grande Árvore de Kaali. Era uma
árvore de pá, parece. Era uma árvore ENORME! Lá, em Uaracapory. Aí, eles foram... Aqueles
87
wakaawenai, o povo de Iaperikuli, os wakaawenai foram e de repente a anta veio atrás. Eles foram...
Heeee - de repente - ‘eu também, eu também’, disse essa anta. A anta veio e eles foram rapidamente;
eles a viram e falaram para a anta, ‘vamos.’ Iaperikuli disse para a anta, ‘Agora, você, você vai pescar,
meu avô’, ele disse para a anta, ‘vá matar peixe. Vá pegar nossa comida antes que a árvore caia’,
A anta foi matar... ele foi pela trilha da anta, até abaixo de Surubi ponta. Ele foi matar. Ele foi
para debaixo d’água, matou e amontoou os peixes juntos na armadilha de peixe. A anta mais um
companheiro mataram peixes... De repente a anta falou:‘Eu escutei ele cair, então’, ele disse, para seu
companheiro. ‘Eu não escutei cair’ o companheiro dele disse, ‘essa Grande Árvore de Kaali.’ A anta
catava peixe, ele catava para eles. Muito, muito mais tarde, eles tinham pescado bem, e já era o meio da
tarde quando o inambuzinho Duma cantou: ‘Duumaaaaa...’ Eles pensaram que ouviam a árvore cair, mas
eles ouviam, então, outra coisa. A anta colocou peixes na armadilha. Ele matou um uaracú, um pacu, um
pacu vermelho também - três peixes ele matou. Aí a anta foi - dzeeeeelllllll! - a anta foi para baixo
d’água, ele foi para baixo dá água, e logo saiu de volta, perguntando: ‘Você ouviu ela cair?!’ ‘Não,
não...,’ respondeu o companheiro. ‘É mesmo?!’ Logo depois, a anta foi para baixo d’água outra vez, e
saiu de volta - ‘Você não o ouviu?’ ‘Não, não.’ Logo depois, ele foi para baixo outra vez. E o Duma
cantou outra vez, ‘Duumaaaaa’, ele cantou: ‘Oopi Kaali ka thadapa ipaua Dumaaa’ [a árvore de Kaali já
caiu] ‘Oopi Kaali ka thadapa ipaua Dumaaa’, ele cantou, esse Duma. A anta ouviu, ele ouviu, parece.
‘Você ouviu?’ ele perguntou. ‘Logo logo ela vai cair - assim será,’ o companheiro disse. ‘É mesmo?! A
anta disse. A anta mergulhou de novo - pouco depois ele ouviu, essa anta ouviu: ‘Oopi Kaali ka thadapa
ipaua Dumaaa...’ tk... a anta saiu, a Grande árvore cairia. ‘É mesmo?’ ‘Não sei’ ‘Sim, caiu.’ Logo
depois, ‘Oopi Kaali ka thadapa ipaua Dumaaaa’ Oooooh - então, Khhhhhuuuuuu... A árvore caiu. A anta
pegou o uaracú então, o pacu, o pacu vermelho também. Tk’ tsa’ ‘ahh vamos, vamos,’ eles correram
para dentro da floresta. A anta correu com o uaracú dele e no meio do caminho, pisou no peixe e o
arrebentou - tih! ap’ ele o matou. Ele correu com o pacu dele e hat’tih, pisou e o arrebentou. O uaracú
então, pt’tih... se tranformou em formigas. O sol estava baixo, e a anta foi correndo. O pacu foi para
formigas de caatinga. Pa’ a anta chegou até onde estava Iaperikuli e os wakaawenai. Ali tinham enxames
de abelhas - havia muitas abelhas!!! Nào tinha como Iaperikuli pudesse pegar o colar de dentes de
88
jaguar!!! Então a anta veio, e falou para Iaperikuli: ‘Hey, como é neto?’ ‘Não, avô,’ Iaperikuli disse. ‘Eu
irei lá’, a anta disse, ooooooo a anta veio...kllllll... Ele não sentiu nada, parece. Oooooo - a anta foi e
pegou uma uaturá. A anta foi, parece, e pegou lá, então, dentro da árvore, bem no meio da árvore, assim
foi então, nos frutos, parece, os frutos dessa Grande Árvore de Kaali, parece. Então a anta apanhou os
dentes de onça, hutsum, ele os tomou do verdadeiro dono, Iaperikuli, ele os pegou. Depois, então, que ele
tinha apanhado os dentes de onça, a anta cheirou pariká. ‘Aaaahh...,’ Iaperikuli disse, ‘o que será?’ A
anta tinha tomado os dentes de onça de Iaperikuli. ‘Tuupá’, Iaperikuli diz, ‘Agora sim. Esse não é bom.’
Os wakaawenai voltaram e se sentaram com a anta, eles voltaram e cheiraram, parece, como
fazem hoje - Para um, outro, outro, outro... até muitos daqueles wakaawenai, muitos deles, parece. Eles
cheiraram... Eles sopraram, a anta soprou para eles esse pariká. ‘Patrão, faça isso para mim’, Iaperikuli
disse. ‘Eu soprarei para você’, a anta disse, a anta soprou para Iaperikuli. A anta soprou para eles tah -
ele soprou para eles pariká. Todos eles que sopravam ficaram tontos com pariká. Eles estavam tontos...e
caíram tihh! A anta correu e caiu Tih ! Huuutsu ! Levantou e assim a anta urrou: ‘Heee Heee Heeee
Heeee !!’ ele disse, ‘Aaah, eu quero comer as pessoas !’ ele disse. Ele se tornou uma onça, uma onça ele
se tornou, ele se transformou. ‘Não, não, isso não é bom’, disse Iaperikuli,‘não, não, isso não é bom’, ele
disse e foi tirar o osso de pariká para longe dele - huuulu - da anta. Iaperikuli tirou dele, ‘Eu faço assim
avô’, Iaperikuli disse. Huuulu - Iaperikuli voltou e bateu na anta - taynn! - no focinho. Assim, Iaperikuli
já tinha tomado o osso de pariká da anta, ele já tinha o conseguido de volta. Em seguida, a anta ficou
doida, e os outros ficaram doidos. Um deles... correu para dentro da floresta. O boto se levantou
phuaamete E caiu tih! A ariranha tih! Caiu no rio. É só - aqueles que ficaram doidos, parece. Três deles
ficaram com Iaperikuli - Mapuiri, Makurúthuna, Weemali. Iaperikuli ficou entre eles, seu irmão mais
novo, seu irmão mais novo, parece. Eles eram, parece, aqueles wakaawenai. Pois assim foi que eles
Até, parece, então... estava acabando. Até, parece, Iaperikuli ficou com malikai... Assim,
parece... ‘Nós vamos ver’, Iaperikuli disse, para aqueles wakaawenai, sobre a ascenção deles, a ascenção
89
deles. ‘Será bom’, ele diz. Iaperikuli deixou eles lá em casa e foi andando. Numa certa hora, ele voltou e
‘Aaaah não...’ Eles cantavam assim: ‘Piuka piadeta wapedzawaaa...Liuka karumitadieta liapidza
uata...Padzu Padzuuu Dzulíferi.’ Eles foram embora. Iaperikuli veio, olhou em volta, saiu da casa, ‘onde
estão eles?’ Ele os procurou, mas não os achou... Eles tinham ido embora. Eles tinham ido embora, os
É só, é só. Iaperikuli voltou para ficar, tayn, aqui, nesse mundo. Os wakaawenai já deixaram ele
para o outro mundo. Assim foi a história de malikai, malikai. Os pajés são doutores, parece. Doutores
eles são, aqueles pajés. Eles chupam, eles nos fazem ressuscitar bem. Eles nos ajudam bem.
É só, de verdade.
Interpretação
Sullivan disse:
seus objetos de poder, o seu exemplo, e seu auxílio direto.” (1988: 391)
modelo mítico.
predador feroz que eventualmente vinga a sua própria morte por devorar
ser obtidos da Kamathawa e que lhes permitem “ver o mundo inteiro.” Além
poderosa harpia. Após a sua subida, ele cheira a pena o que abre sua
veja o gavião branco no chão embaixo como uma pessoa (isto é, a dupla
“A sua visão não deve ser obscurecida, a sua audição deve ser
trovão. E, uma vez que adquire estes poderes, o irmão menor volta para a
ser xamânico.
céu (céu e trovão são a mesma palavra, eenu), e um entre vários sons
(1984: 532)
E,
esclarece:
principal das novas roças de mandioca no fim da longa estação seca. Este
bloqueada com grandes armadilhas de peixe depois que uma onda de peixe
(: 535)
juntos.
111)
morte por tirar a vida humana. No mito Hohodene, a anta, em posse dos
umari para comer (e mesmo assim, continua o mito, Iaperikuli depois tira
incapazes de controlar este poder, produzindo uma catástrofe até que uma
subindo corpo e alma ao céu. Não há indicações que são vistos em algum
momento pelos pajés hoje, nem que eles voltam à terra. Parecem, pelo
10
Pariká, dzato, é também chamado o “sangue de Kuwai,” o “poder de Kuwai.” O sangue é uma
substância com qualidades ambígüas. Por um lado, o sangue menstrual pode causar uma
doença no sangue dos xamãs (ver Capítulo 2); por outro lado, sangue menstrual representa
a vida nova. A palavra malikai, que eu traduzo livremente como “poderes xamânicos” na
realidade consiste de maali- , garça branca (como em maliiri, pajé), e -kai, semente.
96
alma.
revelar.
xamanísticos.
98
Este capítulo começa com uma consideração das diversas maneiras que os Hohodene quem eu
mostrar a relação especial que os xamãs têm com os seres espirituais do cosmos. Uma das maneiras em
que os xamãs entendem a qualidade de ser neste mundo é, como mostrei no capítulo anterior, em termos
dos legados da cosmogonia: que este mundo é manchado por doenças, desafortúnio e mal. Nessa visão,
este mundo, como uma pessoa doente, necessita de cura. Em sua aprendizagem, o pajé adquire o poder
de “fazer melhor” e re-criar este mundo através de uma identificação total de seu ser com o do criador-
transformador Iaperikuli. Neste sentido, os xamãs podem ser considerados como os ‘guardiões do
cosmos.’
Outra maneira em que o conhecimento xamânico difere dos não especialistas é através da
hekwapi, desenhado por Mandu, um xamã Hohodene de Uapui. O desenho foi feito a meu pedido e, em
sua forma geral, é semelhante à maneira muitos não-especialistas entendem o universo. As diferenças e
Quando o desenho foi feito, Mandu dobrou as duas folhas de papel de artista que ele usou para
cima, formando um côncavo, para que o topo do universo, onde o sol é, se vincule claramente com o
fundo onde está a sua reflexão. Como se, como Mandu disse, o sol fosse refletido no rio que percorre o
mundo debaixo de nosso. As formas mais importantes no universo são desenhados como os anéis de um
longo tubo e o topo do tubo se fecha como um arco, ou “como o ponto de uma faca,” conforme as
pessoas disseram. Os anéis são definidos por centros e beiras, ou periferias. Cada anel é, na realidade,
uma superfície plana e rasa sobre a qual vários tipos de ser vivem. Nos centros de cada plano são
povoados de seres que, podemos dizer, têm a maior presença real. Os Hohodene, por exemplo, dizem que
eles mesmos vivem “no centro deste mundo,” em Hipana, e que todos os outros povos vivem na periferia
ao redor deles e são representados em outros desenhos como pequenos círculos entre os dois elipsos na
beira deste mundo. Kuwai vive no centro do céu, e as almas dos mortos têm as suas casas na periferia
daquele nível. Do topo do universo até o fundo tem vários caminhos e trilhas, todos os quais formam um
longo caminho, hekwapi iapoana, caminho do universo, atravessando os centros de todos os planos.
100
Em sua forma geral, o universo consiste de três planos: Wapinakwa, “o lugar de nossos ossos”;
Hekwapi, este mundo; e Apakwa hekwapi, o outro mundo. Os xamãs dizem que também tem o Apakwa
eenu, o “outro céu,” que evidentemente faz parte do “outro mundo.” Vou caracterizar rapidamente cada
um desses níveis em termos dos seres que os habitam e as suas relações com xamãs e seres humanos.
101
O Sol
O Ponto do Céu
P
ovoado de Kuwai
A Porta/Boca do Céu
Apakwa Eenu
A Alma-sombra de Dzuliferi
A cerca/lugar de Inyaime
O Caminho do Universo
Hekwapi
Centro do Mundo
ser quatro tipos de madeira (de baixo para cima: ambaúba, umari, e dois
elas entrarem na casa dela onde ela as mata e devora. Essas imagens da
que dormem pendurados de paus, das quais, se dizem, são “gente que nunca
nasceu” mas “quando acabarem as pessoas neste mundo, estes vão sair.”
podem procurar as almas perdidas dos doentes neste mundo escuro. Enfim,
cores de luto.
103
Este Mundo
conexão entre os mundos acima e abaixo do nosso, onde Kuwai foi queimado
trombetas sagradas, elas tocaram-nas pelo mundo inteiro que então abriu-
se até seu tamanho atual. Cada cachoeira, serra, rio, povoado, e país
contrastando com o Outro Céu que é notável para suas fontes de remédios
contra as dores deste mundo. Este mundo é, no final das contas, manchado
Todas as doenças e formas de dor tiveram sua origem com Kuwai na grande
qualquer um pode potencialmente fazê-la. Os xamãs e rezadores adquirem uma grande parte de seu poder
pelo fato de que eles podem ao mesmo tempo curar e dar doenças. Este Mundo é também um “lugar
podre”, ekúkwe, segundo os xamãs, porque contem tanta matéria decompondo e apodrecendo, tais como
cadáveres.
com um braço cumprido para pegar as pessoas que fogem dele). O Chefe dos
Animais comanda uma legião de espíritos dos rios, matos e ar que ele
doenças deste mundo que não são o resultado da feitiçaria ou das ações
O Outro Mundo
(especialmente os urubus) com quem terá "filhos" que lhe ajudarão na sua
almas dos mortos dos vivos, e onde o próprio pajé deve "morrer" para
11
Iaradati é algo diferente das casas das almas dos mortos, iaruda. Cada fratria tem
sua alma ancestral coletiva, representada como um animal espiritualizado que emergiu
quando Iaperikuli procurou os primeiros antepassados. Todos os membros de uma fratria
compartilham nesta alma ancestral coletiva, visivelmente representado na forma de uma
flauta ou trombeta Kuwai e que, após a morte, é incorporada na casa das almas da
fratria. A alma animal coletiva é distinta da alma-coração, ikaale, que cada indivíduo
possui.
106
desenvolvida adiante.
mortos que têm se comportado de uma maneira errada neste mundo (deram
mostra um caminho para um outro lugar, inyaime dzakale - o povoado das sombras dos
mortos. Essas sombras, dizem, são um “outro Kuwai,” e vice versa, inyaime, dizem, são as “sombras de
Kuwai.” Em outras palavras, há uma relação recíproca entre as sombras dos mortos e o espírito ancestral,
Kuwai. Alguns dizem que o caminho até o povoado de inyaime é “bonito, com flores cheirosas” mas que
decepciona, pois o povoado é “como este mundo” onde as pessoas “trabalham e sofrem” as mesmas
das almas que continuam a viagem. Estas devem ser, primeiro, purificadas
fumegado nas bordas da aldeia quando uma pessoa falece, para fechar a
abrir o caminho para que continue a sua viagem às casas dos mortos. Uma
seguem o caminho até suas casas - uns dizem nas bordas do povoado de
e dardos perigosos, mas uma vez que cheguem lá, tudo é limpo, puro,
pelo buraco de breu, ele segue outro caminho até o "céu do meio" onde
Kuwai e Dzuliferi estão. Para chegar a este centro sagrado, ele deve
passar pela “porta do céu” (ienuma, porta, boca, começo) que, segundo
(eenu iwali). O pajé deve "morrer" antes de entrar pela porta. Kuwai
cruz, que o pajé segura enquanto Kuwai o levanta pela porta até o céu do
doente.
mais alta do cosmos onde a luz eterna do sol primordial brilha: "o modo
108
que enreda das almas humanas e que o próprio Kuwai dá às pessoas. Kuwai
pontudo "como uma faca" onde o universo termina. Pouco se sabe sobre
Aqueles que entram são os profetas mais sabidos e poderosos. Dizem que
deste nível (como um quarto ao lado dele) onde eles, como Iaperikuli,
demonstram seu poder de criar tudo "no seu pensamento" que existe neste
mundo de novo.
do cosmos em maior detalhe, como seria de esperar de um xamã, Lourenço, o irmão mais novo de Mandu
- que nunca “estudou” para ser xamã - produziu o desenho abaixo que em vários respeitos apresenta
diferenças importantes. Além da evidente simplificação de vários dos níveis, há um deslocamento de dois
lugares fora do eixo vertical: o caminho conduzindo a inyaime dzakale vai para baixo e longe do caminho
do universo; e o caminho a iaradate e seu chefe, awakaruna, ficam longe do Wapinakwa. Além disso, o
desenho de Lourenço mostra “este mundo” indicando “outros grupos” como círculos ao redor da periferia
do centro do mundo, onde os Hohodene são localizados em Hipana. Tais diferenças ilustram o ponto que,
para os não-especialistas, o cosmos consiste tanto das dimensões verticais de ser espiritualizado, e a
dimensão horizontal de alteridade, ou outros seres. A alteridade é marcada por degraus: “outros grupos”
na periferia deste mundo ainda são humanos, enquanto os espíritos de inimigos mortos, e espíritos de
animais são mais distintamente “outros.” Vou explorar esses aspectos em maior detalhe na Parte II.
Finalmente, o desenho mostra claramente uma associação entre Iaperikuli e o sol - que os xamãs
esclarecem por dizer que o sol primordial Heiri é o “corpo de Iaperikuli” - e que Kuwai é a lua Keiri, o
que explicaria as associações marcadas que Kuwai tem com processos reprodutivos, por exemplo, a
Em geral, porém, eu achei que os não-xamãs elaboraram as suas noções do cosmos na base de o
que os xamãs - e em particular esses que eram considerados ‘verdadeiros xamãs’ e mais especialmente as
figuras proféticas - os avisaram. Assim, quando Lourenço falou sobre o seu desenho, ele citou
110
várias vezes o xamã Kudui, um profeta poderoso Hohodene de Ucuqui Cachoeira, que faleceu no início
dos anos 70, mas que treinou a maioria dos outros xamãs do rio Aiary, cujas profecias e curas milagrosas
foram lembradas vivamente pelos Hohodene do Aiary (ver Capítulo 8 para uma discussão mais completa
sobre Kudui), e que foi considerado por muitos “como Iaperikuli, a nossa salvação.”
Para Lourenço, ecoando talvez a perspectiva de seu tio Keruaminali, “este mundo” é kaiwíkwe,
lugar de dor, onde há veneno, manhene, e que é “sujo” em contraste absoluto com o povoado de
Iaperikuli, que é “bonito e limpo.” Era Lourenço também que defendia a opinião - que nenhuma outra
pessoa que eu entrevistei fez - que Wapinakwa era o “mesmo lugar do povoado de Iaperikuli,” que “não
tem manhene lá,” e que quem vive lá são “as pessoas que nunca nasceram,” lembrando porém que, na
frase enigmática dele, “quando esse mundo acabar, metade deles ficará lá embaixo e metade ficará
conosco.” Assim, enquanto seu conhecimento do cosmos foi em grande parte baseado no que os xamãs
tinham lhe falado, mesmo assim ele acrescentou as suas próprias interpretações.
“Donos” e “Mestres”
as doenças neste mundo, mas também ensina aos xamãs como curá-las. No
112
em suas curas, pedem aos “donos” remédios para curar ou resgatar almas
distante já que ele vive num mundo “oculto’ e fechado ao qual poucos
uma lança) ou outros objetos que simbolizam sua condição (Dzuliferi tem
associados com eles, apresentarei agora os discursos de dois xamãs sobre a arte e prática do xamanismo
O primeiro é do chefe de Uapui, Mandu, que, depois das minhas inúmeras perguntas a ele sobre
os maliiri, xamãs, um dia resolveu me explicar diretamente a sua profissão. O outro discurso é do
Keruaminali, ex-chefe de Uapui e naquela época ainda um xamã praticante mesmo com mais de 70 anos
12
As relações com os “donos” e “mestres” têm paralelas na organização política e social
neste mundo. As relações de domínio se referem a lugares e objetos que foram feitos ou
trabalhados para serem dados aos descendentes. Assim uma família é dona de uma roça, um
homem ou uma mulher é dono/-a de uma casa, uma fratria é dona coletiva de um trecho de
rio onde seus membros fazem suas roças e aldeias. Os rituais e objetos rituais têm seus
donos frátricos. O sistema Baniwa de nomes frátricos com sua classificação tripartida
entre “donos” (minanai, p. ex., Dzaui-minanai, Donos-de-Jaguar), “- filhos” (-ene, p.
ex., Hohodene, Filhos do Perdiz), e “-descendentes, netos/-as” (-dakenai, p. ex.,
Oalipere-dakenai, Descendentes das Plêiades), ao que parece, segue estas linhas, embora
não existe nenhuma evidência até agroa encontrada de que esta classificação represente
um princípio de organização interna das fratrias, nem das relações entre fratrias. Não
existe também evidência de que povos não-Baniwa pudessem ser considerados “donos.”
A relação entre chefes e seus seguidores (seja entre sibs-chefes e outros sibs, entre
chfes-de-guerra e seus guerreiros, ou entre líderes nos tempos de paz e suas
comunidades) é também definida pelo “trabalho” (ideihi). Tradicionalmente, os sibs de
irmãos mais velhos tinham o poder de mandar o sib mais baixo da fratria a trabalhar para
eles e este devia obedecer. Os chefes-de-guerra podiam mandar jovens guerreiros para a
batalha e que eles matassem o inimigo. Os chefes nos tempos de paz orientam o trabalho
da comunidade e organizam projetos coletivos.
114
de idade. Ambos foram aprendizes do profeta Hohodene Kudui e do profeta Dzauinai Kumadeiyon;
Keruaminali, além disso, tinha aprendido de seu avô Amacio e pai Marcellino. Transcreverei ambos os
discursos aqui em seqüência e usarei a minha tradução deles como base para uma discussão sobre os
poderes, atributos e treinamento dos xamãs. Quando for apropriado, anotarei a relação do xamanismo à
O estilo de Mandu talvez seja difícil no início a entender (coloco as minhas notas explicatórias
entre colchetes]; mas é o estilo de um xamã explicando as coisas do Outro Mundo e exige um pouco de
“Antigamente Iaperikuli fez para nós este pajé. Depois ele nos deu as coisas de doença. Para
nós, nosso povo. Então nós cheiramos esse pariká, que nos deixa conhecer o mundo. Pois, desde
antigamente existe esse pariká, desde muito tempo temos pariká. Desde antigamente temos esse pariká,
esse saber do mundo. Ele nos deu seu sangue, o sangue de Kuwai, que é pariká. Quem é o dono de
pariká é esse Dzulíferi. Dzulíferi é o dono de pariká e todas as coisas de doença. Mas ele nos deu, a nós o
povo, nosso pariká. Assim, eles cheiram pariká, depois eles vêem com pariká. Eles vêem esse Dzulíferi,
eles vêem esse Kuwai. Depois eles vêem esse, nosso dono também, Iaperikuli. Depois eles vêem esse
Kamathawa também. Dzulíferi também nos deu tabaco, esse Dzulíferi é o dono do tabaco, o dono do
“Depois, Iaperikuli disse, os pajés vêem primeiro a doença aqui, com a planta de Dzulíferi, esse
pariká. Eles vêem esse Dzulíferi. Lá, também, eles o vêem. Lá eles vêem essa sombra de Dzulíferi, essa
sombra de Dzulíferi também. Depois, eles vêem o Outro Mundo, o Outro Mundo. Para isso Dzulíferi deu
então essas coisas de chupar. Lá, no Outro Mundo, os pajés vêem esse Dzulíferi que fala para eles, ‘então
você chegou, você está procurando pariká?’ Diz esse Dzulíferi para o pajé. ‘Sim, eu o quero,’ o pajé
responde. ‘Ah bom. Parece então que você procura, então, pariká. Aqui está ele, aqui estou eu, o dono do
pariká, sou eu. Agora será, você verá com isso,’ Dzulíferi diz. Agora lá, Dzulíferi sopra, ele sopra para os
pajés o pariká. Lá no Outro Mundo. No Outro Mundo ele sopra para eles. Então, assim, ele sopra para
eles seu pariká. Depois que ele sopra, ele mostra para eles verem. Ele mostra para eles tudo - como é o
mundo, é o que Dzulíferi canta para eles, essa sua canção. Lá, essa antiga canção, antiga é essa outra fala.
115
“Depois de ver a sombra de Dzulíferi, o dono do mundo, o pajé volta... Ele volta e vê esse
Kuwai. Assim ele encontra Kuwai no Outro Mundo. Esse é o dono da doença. Lá, Kuwai dá para o pajé,
ele dá para o pajé as coisas de chupar veneno manhene. Ele dá para o pajé as coisas de chupar a doença
marudadali. Ele dá para o pajé as coisas de chupar ossos, ele dá para o pajé as coisas de chupar espinhos,
ele dá para o pajé as coisas de chupar pedrinhas, ele dá para o pajé as coisas de chupar flechas de
espíritos ualama, ele dá para o pajé as coisas de chupar dzauinhaita. Todas aquelas coisas de chupar
doenças. Mas são os remédios dele. Remédios - nossos remédios, nosso povo, dos tempos antigos. Assim,
são os nossos remédios desde o começo deste mundo. Kuwai deu para nós, esse nosso saber de curar. Mas
“Então os pajés podem chupar, lá, no Outro Mundo primeiro. Depois eles voltam e chupam aqui
neste mundo. Eles podem contar para seus parentes, eles podem dar conselhos para os povos... Do mesmo
jeito que o mestre do mundo contou para eles, assim, eles voltam e contam para os seus parentes. Esse é
o modo como fazemos isso, nós povo. Assim, parece, o que o mestre do mundo disse, assim os pajés
voltam e contam isso para o povo. Os pajés não podem falar bobagem, o que o mestre do mundo falou. O
pajé conta bem para o povo, como o dono do saber disse antes. O dono do saber disse isso e aquilo, de
um modo que os pajés sejam capazes de saber como é. Sobre esse mundo também. Eles são capazes de
saber tudo sobre o mundo, sobre a doença também. Assim, o pajé conta o que Dzulíferi disse, esse dono
“Depois o pajé conta para os seus parentes outras coisas também -tudo o que nosso dono
Iaperikuli contou para ele, sobre o que vai acontecer neste mundo. O pajé conta o que o nosso dono
contou para eles. Então, o pajé volta e conta para os seus parentes, o que eles viram e o que o dono do
mundo mostrou para eles. Ele conta o que mostrou para eles, desse Outro Mundo, do Outro Mundo...
“O pariká muda tudo, ele mostra tudo para os pajés seja o que for. Esse pariká, com ele, os pajés
são capazes de conhecer o mundo. O pariká mostra a você para você ver não qualquer coisa, parece. Ele
mostra aos pajés tudo para ver, esse pariká. Ele mostra aos pajés, essa sombra de Mawerikuli também.
Assim, parece, é aquele mal, Mawerikuli. Pariká mostra sobre ele, parece, essa sombra de Mawerikuli
também. Lá está ela, aquela sombra de Mawerikuli. Pariká mostra tudo, seja o que for, ele mostra para
eles verem esta Aldeia da Noite. A Noite do Fim de Antigamente. Lá têm, parece, aquele mundo. Mas a
116
Noite do Fim de Antigamente, parece, começou, Iaperikuli fez a noite antigamente, parece que ele fez,
Iaperikuli. Mas pariká mostra para os pajés verem, esse pariká, o lugar de pariká. Mas esse pariká mostra
para eles, de qualquer maneira ele mostra para eles verem, esse pariká.
“Depois, a caixa de remédios de Iaperikuli, assim os pajés podem saber tudo sobre doença.
Depois que eles sabem tudo sobre o mundo, o pajé volta para contar para o povo. Eles contam tudo para
o povo como é no começo, antes deles, como Iaperikuli contou para os pajés. Os pajés podem ficar como
o mestre do mundo, em seu pensamento também. Eles fazem o mundo. Eles podem, eles podem em seu
pensamento, assim, eles pensam por todo o povo. Tudo - eles não podem enganar nisso. Eles ficam bem
assim - como esse Iaperikuli era, assim eles são. Lá, os pajés são como Iaperikuli. Eles fazem tudo. Eles
fazem as pedras, eles fazem a madeira, eles transformam tudo com pariká. Eles se transformam em
madeira, eles se transformam em onça, eles se transformam em jacaré, eles se transformam em boto, eles
se transformam em urubu, tudo isso em seu pensamento - eles se transformam em pessoas também.
Assim também, parece, eles se transformam naquele mestre do mundo. Então, eles são capazes de
conhecer o mundo.
“Pois parece que ele transforma, esse pariká. Mas esse é nosso remédio de antigamente, parece,
nosso, nós povo. Pois é nosso desde sempre, nós povo, nossos remédios, e todo nosso conhecimento, tudo
“Lá está Kuwai, Kuwai é esse dono da doença, esse dono do veneno, esse Kuwai. Os pajés
pedem de Kuwai toda sua doença. Ele faz todo e qualquer tipo dessas doenças. Mas Kuwai é o dono da
doença. Existe só um Kuwai, esse dono da doença. Parece que ele mostra para os pajés verem este
mundo. Mas esse Kuwai também vive neste mundo. O centro do mundo é onde Kuwai vive. Esse dono da
doença, assim parece. Esse pariká mostra isso para o pajé ver. Mostra tudo para os pajés nele, mesmo
esse, nosso dono, onde Iaperikuli está, onde Kamathawa também está. Assim ele mostra, esse pariká.
Parece, então, aquilo tudo que eles dizem, pois existem outros povos que não querem saber sobre esse
pariká. ... há, então as escadas do pariká. Eles podem ir para onde o nosso dono está. Eles são capazes de
conhecer Iaperikuli nele. Mas nós, o povo, temos esse Iaperikuli, esse Kamathawa, o gavião branco,
também. Os brancos dizem que é o Espírito Santo, mas para nós é Kamathawa, o querido de Iaperikuli,
esse Kamathawa.”
117
Compare agora o discurso de Keruaminali que me contou a seguinte “história dos pajés” várias
vezes, com muito pouca variação. De fato, a qualidade mítica dessa versão me parecia dar uma forma -
em contraste com o estilo mais espontáneo do discurso de Mandu - à variedade das experiências
xamânicas na aprendizagem e nas curas, salientando certos aspectos que também podem ser detectados
“Os pajés primeiro cheiram pariká. No começo, só eles cheiram, os pajés. Eles cheiram pariká até
seus olhos transformarem tudo. Primeiro, eles vêem as andorinhas thiripi, no Outro Mundo. Eles
continuam... depois, eles vêem o lugar do gavião idthadaapa no Outro Mundo. Depois, eles continuam...
eles vêem o lugar do gavião branco rabo-de-tesoura, pulimákwa, chama-se. Depois eles continuam... para
o lugar do urubu branco, a aldeia de hulumana. Então eles vão para cima... para Kamathawa, a harpia
aquela. É um belo mundo onde ele vive, o Kamathawa. Eles o vêem, aqueles pajés.
“Nós subimos para o mundo antes de nós nas escadas do pariká. Nós começamos por levantar a
escada para o mundo antes de nós. Nós subimos para o mundo antes de nós nas escadas do pariká. Para
longe, onde o céu começa, likuruapi eenu, nas escadas do universo. Os pajés levantam as escadas do
pariká para o mundo antes deles. Eles sobem para o último lugar a que ele vai no Outro Mundo. Os pajés
“Os pajés dizem, quando eles sopram seu pariká... tih! eles caem inconscientes, inconscientes, e
eles se deitam. Ficam como mortos aqui...ta! Aqui é feio. Eles põem o pajé para deitar dentro de uma
caixão. Assim, nós vemos todo os nossos corpos, quando apodrecem, o pajé olha os ossos dele que ficam
branquinhos. Pariká mostra diante de nós o que a gente vai passar depois de morrer. Nós vemos, nós
“Então, os pajés aparecem, eles ficam na boca do rio. Na boca do rio. O corpo dele fica como
árvore. Então há outro lugar, o pajé vai ficar lá no caminho do céu, esse outro lugar do céu , Wapinakwa,
que sai e morre aí mesmo. Vai mostrando antes do morto. Sozinho, você se senta assim. Você sopra
118
fumaça sobre seus parentes, e diz: ‘Oh - como são tristes meus parentes’, eles dizem lá. Eles dão uma
“Eles dão uma reviravolta e aparecem no Outro Mundo, no Outro Mundo. Uma escada é o
caminho - tain, tain, tain, tain, eles sobem. Uma escada é o caminho a esse Outro Céu. Iaperikuli mora lá
- Kalah! Os pajés chegam onde a gente do universo está, assim é, os pajés vêem, então o povo do
universo. Dzulíferi está lá. Um velho, velho! Ele começou há muito tempo. Ele sopra tabaco, onde ele se
senta, o velho. Assim, a gente do universo pega tabaco para o pajé e sopra.
“Os pajés não sabem, pois se deitam aqui nesse mundo, eles se deitam, eles se deitam. Eles
sopram pariká. Assim, pariká faz ele ver. Não tem mais doença lá no céu... Taa! O pajé vê a sombra de
Iaperikuli... Tuk! O pajé vê o céu, esse céu - Peeeh! Um branco brilhante, como prata, um novo mundo
lá, um outro. Peeeh! Muito bonito. O pajé anda como o dono do mundo. Você faz água, você faz pedras,
você faz o mundo - bem! Os pajés fazem tudo no pensamento deles! Tudo, como Iaperikuli. Nós somos,
então, como Iaperikuli, nós somos lá como o senhor do universo. Não tem mais doença lá no céu.
“Depois, o pajé entra no lago. Ele bota, deixa a sombra do corpo dele, seu newikína. Ele bota a
sombra dele e fica limpo. Os pajés são lavados. Aí, eles vêem Kuwai. Assim, eles pegam a pele de Kuwai
lá, as coisas para chupar veneno, para chupar a flecha-espírito - eles pegam todas as flechas-espíritos de
Kuwai. Eles pegam todas e as comem. Depois Kuwai se transforma, aquele mesmo Kuwai, se transforma
em Dzulíferi. Ele se transforma. Lá tem aquele povo, aquele Dzulíferi inyai, no lugar de cheirar, muito
antes de nós. Todos eles se sentam lá: Iumawali, Tana, Dzulíferi, Uwa, Inyaime hmewidane - todos eles,
todos eles... ‘Sente-se, meu neto, você cheirou pariká? Chupe a doença de mim,’ Dzulíferi diz para o
pajé. ‘Que doença você tem?’ o pajé pergunta. ‘Veneno’, ele responde. ‘Você está doente com veneno?’
‘Sim.’ ‘Certo.’ O pajé traz o pagamento, e deixa no chão, tayn. Aí o pajé chupa, ele bebe água e chupa -
tutu, ele puxa a doença para fora, ele chupa veneno, tutututu hata - ‘Pah! Você está doente com veneno,
você está doente com taalikaim.’ Hata, ‘Você está doente com wapetha, reumatismo, flechas de paxiúba
ele puxa, pedras assim.’ ‘Agora, jogue água em mim.’ Água lá, no Outro Mundo. Pa’telelele..Pa’telelele.
As flechas walama caem, todas elas. Eles sopram tabaco, eles sopram hhfffffffff... O velho Dzulíferi se
senta, ‘sim, eu melhorei, meu neto’. ‘Você melhorou?’ ‘Sim, agora você pode chupar para eles, para os
outros walimanai’, ele diz para os pajés lá, esse mestre do mundo. ‘Certo, assim parece...’ Mas os pajés
119
vêem muitas, muitas pessoas. Todas sentadas. Esses povos de Dzulíferi, todos eles. Quantos têm, e que
são muito antigos. Todos os velhos. Todos os Iaperikunai. Todos os povos do universo. Assim é.
“Depois os pajés voltam para cá. Eles voltam, ta’. Um outro lugar, um outro lugar, um outro
lugar, um outro lugar... Você chega a um outro lugar, você se senta tih! Você vem para um outro lugar,
você se senta tih! Eles voltam como gente desse mundo, com o corpo deles. À noite um outro povo os vê.
Eles voltam no pariká. Até você chegar onde seu corpo está deitado, tayn. Hutsu! Você se senta, ‘você
voltou?’ ‘Sim, eu voltei’. Tcitcitcitci..pfffff..pafaaaaaaaaaa....dzaliiiiiii, tih. Assim, eles voltam para cá,
dadadadadadadadadad tayn. Ele cai em uma pedra. Ele se senta hutsu. ‘Que lugar ruim, maatchíkwe,
lugar podre, ekúkwe, lugar feio, nós vivemos assim hoje.’ Pffffff... pariká. Ele sopra tabaco, o pajé.
“Eles vêem todos aqueles antes de nós. De antigamente. Aquele mundo antes de nós. Assim eles
vêem o mundo. Eles acordam... Os velhos antes de nós. Ele os vê no pariká. Assim você vê o mundo.
Eles voltam e se sentam. Eles pensam: ‘como eles fazem tudo isso no outro mundo?’ Nós pensamos isso.
Eles botam o corpo deles, tudo noutro mundo. Você me vê, eu boto todo meu corpo, tudo. Eu vi antes de
mim. Assim é que o pariká mostra para eles verem. Então aqui, os pajés chupam. Pa’Pa’Pa’. Você
acorda.
“Assim que é a visão de pariká. Eles cheiram aqui e pariká no céu. Lá. É o sangue de Kuwai.
Pois esse pariká é poder. Quando você volta, não pode olhar para as mulheres. Você não pode olhar para
elas, não pode se envolver com elas. Nada disso. Você vê as mulheres sem seus vestidos. Seus olhos
vêem tudo. Quando a mulher vem, não pode olhar, tem que virar a cara. Assim, a visão de pariká.”
farei referências a um ou outro dos dois discursos para explicá-los com mais detalhe.
procurados para realizar curas mais limitadas. Muitas vezes, durante sua
aprendizagem, estudaram poucos dos seis a oito anos normais e, por algum
augúrios).
121
passagem às casas dos mortos, No discurso de Keruaminali, por exemplo, nota-se a parte no
começo do vôo xamânico em que ele chega na “boca do rio” e sopra a fumaça de tabaco sobre as almas
dos mortos, dizendo-lhes que “têm que deixar suas famílias atrás.” Mandu também mencionou este poder
do xamã, durante uma outra conversa que tivemos sobre seu próprio treinamento. Ele disse o seguinte:
“Primeiro ele vai para a boca do rio [presumívelmente isto seria a boca do rio em Wapinakwa
que é o lugar onde jazem os ossos dos mortos]. Lá tem um barco. Aí vem um vento e as almas dos mortos
aparecem no céu, no outro céu. O pajé junta todas as almas com o vento, juntando elas dentro de um
barco grande. Ele junta cada família de cada povoado dos mortos nos barcos. O vento puxa os barcos.
Depois, o pajé, sentado sozinho, pega seu tabaco e sopra sobre as almas de seus parentes e lhes diz,
‘vocês têm que deixar a sua família; eles vão ficar mais contentes.’ Depois ele pergunta, ‘como está,
minha família ? Agora vem o vento.’ E ele sopra sobre elas com tabaco. Elas ficam bonitas e ele lhes diz
dos mortos. E somente eles, diz-se, têm o poder, através da sua visão e das consultas que fazem com
as divindades, de dizer “se este mundo vai acabar ou não,” como eles falam - como, por exemplo, nos
filho de Kudui, um dos mais conhecidos dos pajés do alto Aiary nos anos
que ocorrem em outras aldeias fora dos meios normais pelos quais são
a área antes mesmo que essas intenções sejam públicas. Os seus poderes
estendem a tudo que possa ameaçar a saúde e bem estar. Assim, dizem que
o mesmo Kudui avisou os seus parentes que "não teria mais doença", numa
salvação.13
função de uma chamada (uma doença grave pela qual a pessoa se recuperou,
13
Algumas observações aqui, que serão retomadas na Parte IV, sobre a influência da
doutrina cristã na prática e crenças dos pajés. Já que os missionários têm evangelizado
por mais de quarenta anos entre os Baniwa, é de se esperar que os pajés tenham incorporado
algumas das suas idéias nas descrições de sua prática. É somente através de comparações,
contudo, entre dois modos de conhecer e representar o sagrado. Assim, os pajés dizem que
Iaperikuli é "como nós conhecemos o que os Padres conhecem como Jesus Cristo". Yaperikuli
tem uma casa como Cristo tem uma capela; uma harpia de estimação como Cristo tem o
"Espírito Santo"; uma tribo de gente como Cristo tem os discípulos. Quanto a isso, os
pajés são os principais intérpretes dos ensinamentos dos missionários que eles traduzem e
explicam para a comunidade. Os dias-de-santo católicos, por exemplo, quando os
missionários visitam as aldeias e mostram filmes sobre a vida de Cristo, são ocasiões
quando os pajés e os velhos sentam juntos na platéia e fazem comparações entre os filmes e
a mitologia. Os pajés mais influentes do passado eram adeptos deste tipo de interpretação
de tal modo que, em épocas de rápida introdução de idéias cristãs, podiam não somente
explicar de forma significativa as conexões, mas também utilizar a doutrina cristã a seu
favor.
124
da sua esposa. Cada aprendiz tem que fornecer a sua própria pariká para
uso nas sessões de instrução, tão bem como pagar o mestre xamã para a
sua maracá.
é totalmente restrito nas suas relações externas com este mundo, o seu
expulsa objetos. Em algum ponto também, se diz que a boca do pajé torna-
usados nas formas mais elevadas de cura, como por exemplo, as penas do
e que serão usados para "fazer verão", "abrir o céu", e "fazer o mundo
cósmicos.
que, como uma pele externa, "cobrem" o pajé quando ele toma pariká; (2)
produzir trovão, e para viajar a toda parte do mundo. Dizem que existe
uma pedra com faces múltiplas para cada coisa que o pajé pode fazer; (3)
quais os pajés fazem relâmpago e trovão para comunicar com outros pajés.
Seu cabo está cortado na ponta em forma de um bico, e seu corpo globular
do céu. Quatro buracos pequenos são cortados em cada lado pelos quais,
meio através do qual o pajé, nas suas curas, tira as formas de doença do
céu (a maracá as corta "como uma faca") e as ingere para depois extraí-
126
conexão é feita entre os mundos do céu e este mundo. Na sua forma geral,
doenças mais graves, inclusive as que levam à morte, como provocadas por
vítimas. As curas são feitas por cantos e sopros de tabaco; (2) "Veneno"
feitas tanto por cantos como por extração; (4) "Doenças mandadas por
formas e dos movimentos das nuvens. Tanto Mandu quanto Keruaminali disseram
claramente que é pariká que mostra ao xamã tudo através das visões que dá. Através de pariká o xamã
comunica com os seres primordiais que habitam o céu e que informam, avisam, e ajudam os xamãs no
que diz respeito à fonte, caráter, e tratamento dos doentes neste mundo.
127
Em ambos os discursos citados acima, os xamãs se referem a encontros com o “senhor das
doenças,” Kuwai, que dá ao xamã os remédios para extração, ou ainda - enquanto transformado na
“sombra de Dzulíferi” - pede que o xamã o cure no Outro Mundo primeiro antes de curar o paciente do
xamã neste mundo depois. Agora, nas curas, o encontro do xamã com Kuwai é, de fato, mediado por uma
oferenda que o xamã traz para Kuwai, um “pagamento para a cura” chamado dawai. Este consiste de um
pagamento material apresentado ao xamã para a sua cura neste mundo, e seu equivalente espiritual que o
xamã apresenta a Kuwai. Em troca, Kuwai dará ao xamã a doença de seu corpo - em sua forma espiritual
- e com isso o xamã realizará a cura de seu paciente neste mundo - e que evidentemente será mostrada,
em sua forma material, ao paciente. Ou, se Kuwai tenha prendido a alma do paciente com ele, abraçando-
a, ele deixará a alma da vítima depois de receber o dawai. Nessa troca, então, a forma material é dada em
troca para a forma espiritual, ou mais precisamente, o xamã em sua cura restaura a unidade de forma
manifesta e espírito.
troca tem que ser estabelecida - isto é, Kuwai pode recusar o pagamento
afins. Uma vez que Kuwai aceite o pagamento, nota-se, e uma relação de
troca for estabelecida, Kuwai dá a doença do seu corpo para o pajé. Aí,
chama o pajé "meu neto" indicando que uma mudança ocorre nas relações
bebe um pouco da água, tira uma cuia d'água e folhas, esguicha um pouco
for parcial, ele avisa sobre quais os outros remédios que o paciente
dor.
outros agem como ecos das palavras dos cantos. O número de pacientes
doenças" e a eficácia das suas curas estendem sobre uma ampla rede de
comunidades.
etc.). Os velhos, mais do que qualquer outro grupo, são os que cantam ou
129
cantos.14
ambas se derivam da mesma fonte sagrada. Por um lado, os pajés têm mais
eficácia das suas curas. Por outro lado, os rezadores de kalidzamai têm
14
Oeja Hill, Keepers of the Sacred Chants (1993) para um estudo pioneiro da linguagem,
mitologia, e música dos donos-de-cantos Wakuenai da Venezuela. também meu artigo,
“Pursuing the Spirits” sobre a linguagem dos cânticos de iniciação, publicado em
Amerindia, 1993.
130
conhecimento experiencial e ecstático do sagrado (os pajés)(ver Sullivan, 1988, Capítulo 7, por mais
discussão dessa diferença nas religiões sulamericanas). Como tenho sugerido em várias ocasiões (p.ex.,
1992), pelo menos alguns dos grandes profetas Baniwa do passado eram
ou cinco aspectos das viagens dos pajés ao Outro Mundo e seus encontros
as almas dos mortos para seus lugares finais no outro céu; a recriação
mundo bonito; melhorar e deixar contente este mundo e sua gente; não
deixar este mundo cair ou acabar; recuperar uma alma perdida e melhorar
Isso talvez é mais dramaticamente demonstrado na fase em que o xamã fica como Iaperikuli, o
mestre do universo, e recria tudo no mundo “no seu pensamento.” Como faz isso é um grande mistério
que desafia qualquer explicação, pois o xamã, como Keruaminali disse no final de seu discurso, fica
completamente sem forma, tendo jogado todos os componentes da sua pessoa fora depois de ter passado
131
pelo buraco de breu fumegante. Purificado de todos os traços de seu ser como humano, a alma do xamã
fica sem forma e, parece, pode assumir qualquer forma, inclusive a do mestre do universo. Quando
perguntei a Mandu sobre essa transformação em Iaperikuli, ele respondeu que a alma do xamã fica
“como pau.” Não qualquer pau, porém, mas um chamado Dzaui Kamathawa ikudaita o que é um dos
remédios que o xamã obtem da harpia Kamathawa durante a sua aprendizagem. O xamã literalmente
transforma em remédio, então, mas o poder especial desta madeira reside na sua
a sua ordem.15
canções dos xamãs parecem não ter uma forma fixa, isto é, constituem um gênero de verso livre e é nisso
que os xamãs derivam a sua criatividade e estilo estético. Um dos critérios que as pessoas usam para
avaliar ou apreciar as curas xamânicas, de fato, é se os pajés sabem cantar bem, ou seja, se eles sabem
compor uma canção de forma espontânea. As canções se referem aos mitos a aos diversos seres
primordiais do cosmos - nesse sentido são como os cânticos que, segundo a análise de Hill (1993),
“musicalizam a fala mítica”- mas elas fazem isso de tal maneira que deixam ampla margem de
criatividade para a experiência direta desses seres pelo pajé em suas viagens ecstáticas pelos níveis do
cosmos.
15
132
cosmos.
“Heey, heey
Aonde estará, ele voltará para ficar com nós
Seu mundo,
Dzuliferi
Aonde estará, ele voltará para ficar com nós, seu lugar
16
"varrer a fumaça do seu tabaco" = limpar as nuvens do céu.
17
Dzaui malinhai, pajés-outros onças.
18
teko likurumhethe, remédio dos pajés.
133
Dzuliferi,
O nosso ancestral Iaperikuli Onça
Assim será seu mundo, seu mundo Iaperikuli, eu o abro
conosco
19
Heiri, o sol eterno; os “filhos de Heiri” é o nome sagrado dos Hohodene obtido no
momento em que seu primeiro antepassado foi tirado de Hipana.
20
Maliweko, uma pedra, uma antiga casa de frutas.
134
seu pensamento, o pajé fica onde Iaperikuli está e procura abrir este
Quando o mundo escondido abre para o pajé, ele sobe até ele. Ele senta
Iaperikuli e vê o mundo inteiro. Ele pode fazer tudo como Iaperikuli fez
pode então fazer o mundo. O pajé fica perto do sol eterno para abrir o
que todas as pessoas ficam felizes, como no começo. Assim o pajé faz o
135
mundo melhorar, não o deixando acabar. O pajé sabe quando o mundo vai
uma época quando o mundo realmente chegou ao fim. Chamado "A Antiga
uma longa noite em que ele provocou uma enchente forçando os Trovões a
subir numa árvore de abiú que ele depois quebra com relâmpago. A seguir
citamos uma pequena exegese da canção feita por Mandu (por sua
idéias centrais):
olhar com pariká, eles não sabem explicar este canto. Porque o mundo
acabou uma vez. A noite cobriu o mundo inteiro. O pajé pede para que
Iaperikuli faça passar a noite, para deixar o mundo como está. Pariká
mostra para os pajés. Ele abre o mundo. É pariká que faz a escada que o
pajé sobe. Ele sobe até o céu. Aí, ele pega três tipos de tabaco e sopra
em cima da gente. Ele pede para que não deixe acabar o mundo. O pajé
sobe e fica perto de Iaperikuli. Ele não quer que deixe o mundo acabar.
Ele abre o mundo. Porque, a noite veio uma vez e ficou. Foi Iaperikuli
mesmo que fez isso acontecer. Depois ele salvou o mundo com seu canto. O
136
ficar como animais? Matando e comendo gente com veneno?" Iaperikuli nos
salvou.”
reina, na escuridão total, como no mundo das sombras dos mortos. O pajé
tal maneira que cada vez que um pajé completa sua aprendizagem e refaz o
mundo, ele o salva da morte. Por isso, os pajés têm a tarefa mais vital
mundo constantemente.
iria chegar ao seu fim. Como veremos no Capítulo 8, foi por esse motivo
que nas décadas de 1950 e 60, graves conflitos religiosos eclodiram nas
cantadores, muitos dos quais alegavam que uma "doença" fez com que eles
amarrar suas canoas aos tetos das suas casas, e que o mundo ia escurecer
- como no mito e nos cantos dos pajés ("A Antiga Noite do Fim"). Mas
Aiary com veneno - apagando a última luz, por assim dizer - ele, como
Iaperikuli, sabia das suas intenções mesmo antes deles chegarem à sua
aldeia e os fez voltar. Por isso, os pajés do Aiary ainda hoje lembram
142-3).
outros casos, os profetas têm advertido uma ‘vinda dos brancos’ iminente
civilizado.’
como: “de onde vinha o ferro, como era feito o pano de algodão, se o
muito surpresos ao saber que todos lá eram brancos e não podiam imaginar
floresta.” (Wallace, 1853: 154) Esse trecho nos dá uma idéia do intenso
novos e úteis, como que por magia, sem a floresta que julgavam
pregar a Bíblia, seria um crente ? Como era a FUNAI que autorizava meu
admiração e o assombro.
certo ponto. a vida cotidiana era uma outra fonte de informações, já que
capítulo.21
categorias de ser que os Hohodene incluem em seu universo mas que não
mito, Kuwai é identificado, entre outros seres, com o branco e sua mãe,
sociedade é reproduzida.
ritual.
que envolveu os Brancos. Ouvi a mesma história várias vezes, contada por
XIX.
material escrito sobre a região, desde o século XVIII, dos mais diversos
profunda transformação.
nível, que trabalha dentro das concepções Baniwa, que procuro apresentar
atual.
________________________________________________________________
História Cósmica
Tempo
Cosmogônico
(o mundo miniatura
de Iaperikuli)
"Um Outro
Fim do
Mundo"
__________________________________________________________
Pandza (O Presente)
risco..." Mas gostaria de enfatizar aqui que, além dos ciclos de eterno
foi talvez o primeiro a notar seu uso entre os povos de língua aruak do
(Humboldt, 1907: 331). Outra palavra para branco foi notada, entretanto,
um modo ou de outro, têm hoje contato com os Baniwa. Esta classe também
22
dos anos 1950 até o momento; por sua vez, protestantes evangélicos estão
entre os Baniwa desde o final dos anos 1940. Até a década de 1950,
termos de seu significado para a vida atual dos Baniwa. Por outro lado,
23
No final do século XVII, início do XVIII, os Manao eram o povo mais numeroso, poderoso e
empreendedor do médio rio Negro. Eram conhecidos por sua atuação no comércio de longa
distância e rapidamente assumiram um papel importante no tráfico de escravos com os
holandeses na costa setentrional da América do Sul, até serem derrotados numa guerra
movida contra eles pelos portugueses na década de 1720.
158
Negro, do alto rio Negro ao Forte da Barra, onde mais tarde seria a
cidade de Manaus.
caboclos que viviam durante longos períodos nas aldeias indígenas e eram
coleta de salsaparilha.
rio Negro24.
dominação branca entre os índios do alto rio Negro culminou numa série
24
Ver Wright (1981); e Wright & Hill (1986) para uma discussão mais detalhada da política
indigenista naquele momento.
161
influência por toda segunda metade do século XIX, fazendo suas curas e
25
A influência de Kamiko durou até a sua morte, no início deste século. Nos anos 1920, os
Baniwa do rio Cubate, uma das áreas de influência de Kamiko, ainda demonstravam um forte
desprezo pelo contato com os brancos (Nimuendajú, 1950: 126), mas as formas de
penetração branca tinham crescido consideravelmente nessa época, ao lado da violência do
boom da borracha.
162
MacCreigh, 1926).
Baniwa com patrões a partir dos anos 1930 deixam claro que o regime
foi produzida uma divisão entre crentes e católicos que perdura até hoje
(ver Capítulos 7 e 8)
até hoje, pelos militares, dificultou ainda mais para os Baniwa a defesa
comunidades Baniwa.
e 1960. Até recentemente, o governo agiu como uma força remota, emitindo
estratégias para lidar com elas, consideremos agora suas histórias orais
do contato.
mundo. Com eles vieram aqueles Baré, Baalenai. Eles voltaram em guerra.
dakenai. Mas os Hohodene não mataram. ‘O que aconteceu com vocês, vocês
assim, você disse, ‘vamos matar gente’, você disse para mim.’ Mukuali
deu uma volta, olhou para a criança, e atirou nela. Então todo mundo
atirou sua flechas e depois voltaram para casa. Mas a criança era o
Todo mundo foi junto. Todos desceram, eles foram rio abaixo para
uma mulher estava pensando, uma das irmãs do Mulé-dakenai, ‘Hey, hey,
por que ele fica tão longe, meu irmão mais velho?’ disse ela. Então,
enqanto ela falava, um outro chefe dos Wadzulinai, escutou ela chorar - ‘Por que ele
fica tão longe?’ ela disse. ‘Qual é o nome dele?’ o Wadzulinai perguntou. ‘Mukuali,’ ela respondeu.
‘Aaah, é ele que nós queremos’, eles falaram. O Wadzulinai contou para todo mundo onde Mukuali
estava - ‘aaah, vamos, vamos...’ eles 27 falaram e eles foram atrás de Mukuali... Foram até láaaaa ! Para
26
Os Hohodene e Mulé-dakenai moravam juntos na cabeceira do igarapé Uaraná.
27
Os Wadzulinai mais os Brancos, soldados, ou “polícia,” que veio de São Gabriel.
167
cima de Seringa Ponta no alto Uaraná. Eles pegaram a trilha, eles foram na
neto, Mukuethe - tuk! Eles pegaram-no. Como uma criancinha ele era.
Ele caiu perto de seu avô - ‘Meu neto?’ ‘Huh?’ ‘Então você veio?’ O avô
dele o escondeu.
mataram da casa, muitos entre eles, até a menina menor...’ Então eles
ancestral, em Uacariquara. Eles foram outra vez... Até São Miguel, perto
Eles juntaram em uma caixa e num pote de cerâmica. Em São Miguel, eles
ficaram lá, eles ficaram e dançaram. Assim, lá, eles jogaram todos
aqueles ornamentos fora, eles colocaram tudo junto no pote... puk! puk!
E jogaram tudo fora lá, eles levaram tudo embaixo. Embaixo, eles levaram
tudo.
tempo eles ficaram, então eles foram de novo... para Barcellos. Heeyy,
168
eles dançaram com maracás lá. Lá, eles escreveram no papel, começaram a
estudar.
Ele foi com eles lá, o chefe de Tunui, dos Kadapolithana, seu nome
trouxe o filho dele, mas a perna dele inchou com matéria. Soldados
vieram atrás de Keruaminali que correu, mas o filho dele não podia
correr por causa da sua perna. Por isso, eles pegaram o filho de
Voltou com eles, parece, morava com eles um pouco tempo, com
matava gente. Ele os comia no lugar dele. Outra vez, ele capturava, onde
quer que fosse ele matava. Ele comia pessoas! Estava acabando com os
povos! Só ele que andava assim. Comia... Até satisfeito ele estava
seu pai, sua mãe, lá! até Puatalimam. Lá eles gritaram para nosso
envenenadas. ‘Hey, aqui estou eu,’ Keruaminali disse, ‘Hey, você mente,
você vem me matar. Vá embora!’ ele disse, ‘Você vem me matar, o único
ela a mulher. Ela chamava... ‘Eu quero entrar com minha filha para
bem perto - ‘aqui estou eu’, ela disse, ‘eu quero ficar com você’, ela
disse, ‘você vê que tenho rede e tudo, você me vê’, ela disse, ‘aqui eu
estou para ficar, você fica comigo, você mora bem comigo’, ela disse.
‘Aqui está minha filha,’ a mulher disse. Mas Keruaminali não as recebeu.
‘Nós somos amigas, não viemos para matar, ninguém vai matar!!’ elas
Ele atirou uma flecha envenenada! ‘Deixe essas flechas!! Não atire em
dakenai. ‘Nãão, não vai matar’, a mulher disse, ‘onde está seu quarto?’
ela disse. Ela entrou e se sentou, ‘Aqui está minha filha’, ela disse.
Ela pegou a rede, ela amarrou a rede, ‘Boa eu sou!’ ela disse. Ela pegou
Keruaminali conversou com o pai dela, assim, durante o dia todo eles
conversaram. Ela ficou sua mulher, assim, naquele dia ela se tornou sua
mulher. Eles foram e se sentaram para conversar sobre isso. Ele benzeu
‘Assim é’, Keruaminali disse, ‘eu não quero matar mais ninguém.’
Uma lua ele ficou, ele disse. Ele não era um homem velho, NÃ0 era um
homem velho! Um JOVEM ele era!! Não era um homem velho. Cinco de seus
dias, agora, os soldados moram lá. ‘Hooo - eles se tornaram outros já’,
todos eles, para baixo, todos eles... De nós, nós Hohodene assim é que
mulher. Dois deles, duas mulheres vieram, a sogra dele e a mulher dele.
haverão muitos cunhados. Ele foi como mestre da dança, seu cunhado era
outros vieram. Ele estava pronto para chamar seu cunhado com os tubos de
chamou para dançarem com eles. O mestre da dança deu uma bebida para seu
cunhado e falou. Então ele trouxe o caxiri. ESTAVA MUITO FORTE !! Ele
deu para ele os tubos, eles fizeram dança de roda com os tubos, Hoooh,
agüentar?’ ela disse. ‘Você é a única’, ela disse, ‘Hey hey!’ ela disse,
‘nós vamos ver’, ela disse, ‘nós vamos ver quem de nós vai agüentar’,
Assim... Ele voltou para casa novamente. Assim ele vivia, depois
voltaram.
Assim, nossa terra, aquela terra é. Nós, os donos do rio, nós, Hohodene,
‘Assim é’, ele disse, ‘Aqui está a terra’, Keruaminali disse, para
esse Oalipere-dakenai, ‘aqui está a terra para hoje em diante, vocês têm
que morar até onde essa terra terminar’, ele disse, ‘Vocês moram nas
povoado, até onde vai terminar essa terra. Vocês moram nas margens do
172
dakenai.
filhos dele. Eles cresceram. Bem! Suas crianças cresceram. Eles moraram
para rio abaixo... Lá, em Keradaliapi. Eles se mudaram para rio abaixo
outra vez... De lá, eles saíram para a boca do Quiary. Eles moraram e se
mudaram para rio abaixo de novo... Para o mesmo lugar. Depois foi morto
mataram.
Baré fez uma casa lá. Era do Uaupés, parece. Um dia ele disse: ‘Oh,
vocês ficam aqui tão tristes’, ele disse, ‘vamos’, ele falou para eles
jogarem fora suas coisas de guerra. ‘Muito triste aqui, vamos, não há
nada aqui, nada...’ Eles fizeram farinha. Eles se juntam todos pois ele
falou que tinha que trazer todos, ninguém podia ficar: ‘Todos vocês
estava lá. Eles queriam que suas crianças comessem lá. Ele os chamou -
‘Hey, irmão menor, irmão menor, vamos tomar xibé!’ Ele chamou um que
aproximando... ‘Será que nós vamos ?’ ele perguntou, ‘Assim foi do mesmo
173
modo com nossos ancestrais... Eles queriam matar e jogar fora os nossos
ancestrais, nós perdemos todos, não há mais nenhum chefe dos Hohodene...
Como estão os corações de vocês?’ ele disse. ‘Mmmm - sim’, um dos irmãos
fazendo...’ ‘Assim parece’, Malianali disse, ‘nós não queremos ir, nós
não queremos deixar’, ele disse, ‘vocês irmãos menores, nós vamos por
esse, avô de Raimundo...e foi para o igarapé Mirití. ‘Eu não quero
deixar, de verdade’, disse um outro e foi... para Santaré. ‘Eu não quero
deixar, de verdade’, disse um outro, mas ele não podia... Lá foi ele,
e fizeram malocas. Os outros já foram para baixo. O Baré foi para baixo.
Assim, como que começou o avô, assim, nós começamos muito tempo
atrás. Eles moraram no Quiary outra vez... Eles mataram povos outra
vez... Até muito. Hoje todos! Nem um sequer foi deixado no Quiary, só um
Uaupés, mas os Hohodene não mataram ninguém. Mukuali então atirou numa
São Gabriel para reclamar junto aos brancos. Os Wadzulinai (inimigos dos
Hohodene, do Içana) lideraram uma ‘força policial’ (de Baré, etc.) até a
Uaraná, afluente do alto Aiary, “na Colômbia”. Mataram quase todo mundo,
havia mais Hohodene em suas aldeias. Seus filhos fugiram para junto dos
ponta, no baixo Içana. Muitos de seus afins dançaram com waana (tubos-
para casa.
porque não tinham mais terra. A terra Hohodene então ia do alto Quiary
mudou-se para o alto Quiary, onde viveu por muito tempo, até todos os
descer o rio com ele. Disse a todos os do rio para irem. Os Hohodene
desceram das cabeceiras do Quiary para a sua foz, levando muita farinha.
numa aldeia para comer. O chefe Maianali perguntou então aos outros:
“Que dor é essa ? Foi assim com nossos avós. Eles mataram nossos avós,
perdemos todos, não existe mais chefe Hohodene. Como estão vossos
corações ?” Um homem respondeu que estava fazendo uma casa e uma roça
novas e não queria ir. Outro respondeu a mesma coisa. Alguns desceram o
Variações. Diferentes narradores Hohodene podiam elaborar diversas partes dessa história
conforme seu conhecimento de detalhes e episódios. Em outras palavras, embora que muita gente
considerasse a versão de Keruaminali como “certa”, eu achei que - em contraste com as narrativas
míticas que tinham que ser contadas numa determinada seqüência e ordem de episódios - a história de
Keruaminali não tinha uma ordem fixa de episódios de um começo a um fim. Narradores podiam
elaborar e acrescentar interpretações a qualquer um dos episódios. De fato, no final da versão que
Keruaminali contou, depois de uma pequena pausa, ele lembrou de um outro episódio sobre os povos
Um outro narrador, Marco, começou a sua versão da história com uma série de episódios sobre
guerras entre os Wadzulinai, ou Wadzuli-dakenai (ambos os quais pertencem à mesma fratria e são
considerados os inimigos tradicionais dos Hohodene), e várias outras fratrias do Içana. Essas ‘guerras’
(mais exatamente, escaramuças) antecederam a grande guerra dos Brancos, aliados aos Wadzulunai,
contra os Mulé dakenai e Hohodene, que era o ponto de partida da versão de Keruaminali.
O pai de Marco, Raimundo, era reconhecido como alguém que sabia mais detalhes da história
inteira - por exemplo, os nomes de todos os filhos e netos de Keruaminali, e os nomes de todas as aldeias
históricas dos Hohodene no rio Quiary. Pensei que talvez pudesse reconstruir algum tipo de genealogia
histórica baseada nessa informação, mas quando eu perguntei a Raimundo, descubrí que a importância
desse conhecimento era relativa, e que somente certos detalhes podiam ser confirmados - isto é, aqueles
relacionados mais diretamente aos próprios antepassados do Raimundo. O avô de Raimundo tinha
fundado uma das três aldeias principais Hohodene no rio Aiary depois que os filhos de Keruaminali
tivessem saído do Quiary. Mas Raimundo não podia dizer com certeza quais dos filhos de Keruaminali
foi seu bisavô nem de qual aldeia do Quiary. De fato, quando eu entrevistei Raimundo, já com seus 60 e
poucos anos, ele tinha perdido boa parte da sua memória devido a uma doença; portanto, não dava para
Na aldeia de Ucuqui, onde eu esperava ouvir uma versão completa da história - considerando a
exatidão e perfeição do conhecimento dos velhos lá em termos de mitos e orações - pelo contrário eu
achei muito fragmentária a memória dessa tradição que, além disso, não concordava em vários detalhes
com a versão de Keruaminali. Não que os narradores Hohodene narradores de Ucuqui tivessem menos
interesse ou conhecimento da história local; pelo contrário, eles sabiam de detalhes fascinantes sobre a
história local que nenhum outro Hohodene lembrava. Por exemplo, os nomes de antigos povos moradores
do Aiary; o nome do primeiro homem português (“Alistado”) a fazer contato com os Hohodene; e uma
A história de Keruaminali, porém, foi reduzida ao mínimo, que Laureano, então capitão de
“Aconteceu uma guerra na Colômbia e todo mundo do Aiary foi. Depois, pararam de fazer
guerra e, ao mesmo tempo, pararam de tomar kaapi [Banisteriopsis caapi; uma indicação interessante da
178
conexão entre a guerra e rituais de beber esse halucinógeno]. Os Maku foram para o rio Cauabory, porque
tinham medo de seus inimigos. Eles disseram, ‘nós vamos acabar com gente, vamos parar de fazer
guerra.’ Lá eram os Wadzulinai, os Mulé dakenai, nosso parente, e de São Gabriel, os Baré. Nosso avô e
os Oalipere-dakenai mataram um Tariana, e eles foram queixar em São Gabriel. Os Baré vieram de São
Gabriel até o igarapé Uaraná, vieram pegar nosso avô nos matos. Eles vieram pelo Içana. Em Jandu
Cachoeira, no Içana, os Baré chamaram gente mas eles fugiram, não tinha gente. Depois eles comeram
todas as galinhas e vieram até o Uaraná onde estavam os Hohodene, nos matos. O chefe Hohodene estava
esperando para eles quando vieram. O chefe Hohodene falou com os soldados Baré - ‘como ficamos
agora ? Não queremos fazer mais guerra.’ E ele os chamou de Kamarada [amigo, aliado]. Eles fizeram
ialaki [bebida de cana fermentada] e tomaram. Um ano depois, eles levaram todo mundo embora. Os
Mulé dakenai de Inyaipana, do igarapé Cadanali, falaram, ‘vamos matar.’ Eles tomaram caxiri, e
fizeram guerra. Mas eles mataram todos os Mulé dakenai e levaram todos os Hohodene rio abaixo por
dois anos. Tomaram caxiri e depois foram a Manaus. Por causa disso, lá em Manaus, hoje, tem um
pedaço de terra para nós. Um outro fugiu e voltou aqui, mas ele não tinha esposa quando chegou aqui; era
Keruaminali. Ele fez um dabukuri, pudali, mas ele dançava sozinho. Depois seu tio chegou no sítio dele.
Keruaminali casou-se com a filha de seu tio. Por isso, tinha filhos para nós. Seus netos se casaram de
narração, enquanto o tema do abandono da guerra pelos Hohodene é atribuído muito mais importância.
sociedade. Isto parece ser um motivo importante para contar a história: como uma maneira de contrastar
o passado com o presente, uma maneira de pensar sobre o passado - que ele não era como hoje, e que o
processo de mudança conduziu a uma condição ‘melhor.’ Grosso modo, isto pode ser reduzido à idéia de
que, para os Hohodene, o passado foi caracterizado como um estado de guerra, depois ocorreu um
‘civilisados.’ Edu, um xamã de Uapui Cachoeira, deixou essa visão da história bem clara para mim
“Antigamente, os Hohodene não comiam peixe, nem caçavam - eles só comiam outra gente,
como os Maku. Depois, lá na Lagoa Tucunaré, no Içana, tinha uma grande reunião dos Hohodene e
Oalipere-dakenai. Todas as tribos estavam lá - os Tariana, Dessana, todo mundo, faziam guerra com
lanças. A meio-dia, a guerra continuava, matando gente e depois comendo os mortos. Aí a guerra
acabou.’ [Como foi que os povos pararam de fazer a guerra ? eu perguntei] ‘Foi o governo do Brasil que
foi lá e falou com eles. Tinha um documento e eles leram: ‘vocês têm que parar de fazer guerra e comer
gente. Vocês têm que ficar civilisados e comer peixe.... Aí eles começaram a fazer canoas. Antes, só
usavam casca de pau, mas o governo mandou terçados e outras ferramentas, e ensinaram como fazer
canoas.”
Assim ‘parar de fazer a guerra’ e ‘ficar civilisados’ são dois processos associados que, me
parece, refletem as visões Hohodene da sua sociedade na história. Baseado nessa pista, apresentarei agora
a minha interpretação da história de Keruaminali que procura elaborar esse ponto de vista.
Interpretação
coletiva dos Hohodene de que seu trabalho e modo de vida eram mais
180
Aiary que são as aldeias dos próprios avós dos Hohodene hoje.
avós. Outros narradores confirmaram que foram seus próprios avós que
Negro. Mas o meado do século XIX, como nos mencionamos acima, foi também
Baniwa para trabalhar nos seringais do baixo Rio Negro. Em 1903, durante
e Aiary e constatou que não existia mais aldeias Hohodene no rio Quiary,
dos militares que mais fez descimentos forçadas dos índios do alto rio
Negro.
sentido usado por Turner (1988, e antes dele por Raymond Fogelson e
aconteceu, de fato, uma grande guerra dos brancos aliados aos povos
mesmo sentido em que a história cósmica começa seu drama. E talvez, mais
narrativas recolhidas por Journet (1994) e por mim (1991) indicam que a
sociais.
ofereceram uma das suas filhas ao chefe. Este ato é o primeiro passo
não era mais velho, era jovem"), quase como uma ressurreição da morte
cultural que os Hohodene tinham sofrido nas vilas do Rio Negro. Uma
culturalmente.
uma outra forma de troca recíproca, ou koada, mas que exclui as relações
mulheres entre si. O que marca essa relação é a celebração de pudali (ou
fratrias.
reproduzem e se multiplicam.
Talvez mais do que qualquer outra narrativa, o mito de Kuwai e os cânticos xamânicos entoados
durante os ritos de iniciação dizem respeito à produção de identidade coletiva e controle sobre as várias
formas de alteridade, inclusive o homem branco. Assim este capítulo focaliza numa interpretação deste
mito e busca mostrar como as diversas imagens de identidade e alteridade representadas na figura de
Quero deixar claro desde o início que eu escolhi não apresentar uma narração completa do mito
de Kuwai - que eu ouví em mais de 20 ocasiões durante a minha pesquisa de campo e a que eu tenho
dedicado a maior parte dos meus estudos sobre a mitologia Hohodene durante os últimos 20 anos - de
propósito, e por vários motivos. Em primeiro lugar e acima de tudo, respeitando o desejo explícito dos
Hohodene com quem eu trabalhei, que uma versão completa não seja publicada. A versão completa
contem numerosos detalhes sobre as flautas e trombetas sagradas, o corpo de Kuwai, e a música de
Kuwai que são secretos, tabu para as mulheres e os não-iniciados por razões que esclarecerei mais
adiante. Como mencionei na Introdução, estou atualmente preparando um volume de mitos Hohodene
em colaboração com a “Associação das Comunidades Indígenas do Rio Aiary” que já aprovou a
publicação de todos os outros mitos e narrativas que eu tenho usado aqui, mas deixou claro que a
narração do mito de Kuwai em sua versão completa - isto é, com detalhes sobre como os instrumentos
sagrados parecem ou a música que eles fazem - não deveria ser publicado.
Seria difícil, por outro lado, compreender uma boa parte da cultura e história Hohodene, e de
fato Baniwa, sem pelo menos ter uma noção mínima do mito; como tenho mostrado em capítulos
fundamentalmente vinculados à figura de Kuwai. Como na verdade todo esse livro é, já que Kuwai
também tem tudo a ver com a transmissão da cultura dos ancestrais aos descendentes, isto é, walimanai.
Por essa razão, em respeito à norma cultural e, ao mesmo tempo, para poder falar sobre algumas questões
O segundo motivo por não ter incluido uma versão completa é em consideração ao leitor: a
versão completa que tenho transcrita, traduzida, e anotada tem mais de 35 páginas em tamanho. Junto
com a interpretação que farei do mito, isto produziria um capítulo demasiadamente volumoso.
190
Como já falei, ouvi o mito contado em mais de 20 ocasiões durante a minha pesquisa de campo
no rio Aiary. Na maioria das vezes, foi narrado como resposta às minhas perguntas feitas em entrevistas.
Fora das minhas perguntas, ouvi o mito contado, espontaneamente, na maioria das vezes em
resposta às perguntas relacionadas a doença - especialmente o veneno, manhene. Por exemplo, uma
pergunta buscando esclarecimentos sobre como começou manhene e se é uma doença que “sempre estava
Gravei narrações do mito com velhos de três aldeias do Aiary, a maioria da fratria dos Hohodene
mas também dos Oalipere-dakenai. A maioria dos narradores eram xamãs, líderes de dança, especialistas
de cânticos, ou velhos com bastante experiência em rituais de iniciação. Todos esses cargos trazem
Depois do meu resumo do mito abaixo, apresento uma discussão dos contextos em que as
minhas perguntas ou de outras pessoas elicitaram a narração do mito. Considero também a questão da
variabilidade em narração em função do tipo de pergunta que a narração serve para explicar. Finalmente,
justifico a minha divisão do resumo em parágrafos, baseada em palpites dos narradores e na variabilidade
de narração. A minha interpretação do mito procura ficar tão próximo possível às exegeses indígenas, em
termos das questões principais que elicitaram as narrações. Tomo a liberdade, porém, de acrescentar
elementos interpretativos meus, deixando claro quando eu o estou fazendo e em que medida as minhas
Amaru, sua tia. Iaperikuli come coca, pensa onde Amaru está, e seu saber
(lianheke) a penetra. Ele canta para sua coca e Amaru fica grávida de
Kuwai. Mas Amaru não tinha vagina e Kuwai não podia nascer. Iaperikuli
então pegou um toro de patauá e abriu uma passagem nela. Ela ‘morreu’,
Quando Iaperikuli levou Kuwai embora, viu que ele era extraordinário,
não era deste mundo, porque seu corpo produzia a música dos animais
ele não podia ficar neste mundo, Iaperikuli mandou-o para o céu, onde
crianças dançavam. Kuwai observava-as do céu; desceu até elas, que viram
a música de Kuwai, ao que ele respondeu que não era verdade, porque ele
passar por uma reclusão ritual e não comer pimenta ou comida cozida
cantou para elas, chicoteou-as, deu-lhes uma fruta (japurá) para cheirar
eles, desta vez com todo seu corpo rompendo num grande urro, e deixou-
(likapetan) .
para Hipana para colher frutas uacu. Kuwai ficou no topo da árvore de
‘morte’. Seu corpo todo rompeu num grande urro e rios de saliva jorraram
seus adornos e mandou ao céu uma vespa com larvas brancas (halieri) para
Quando terminou os cânticos, Kuwai disse a Iaperikuli que sabia que ele
ia matá-lo, mas que nada podia fazê-lo porque seu corpo era tudo o que
local do fogo, em Hipana. Iaperikuli sabia que, em troca por sua morte,
flautas e lhe disse para banhar-se no rio ao amanhecer e lavar seu pênis
com um cipó que faz espuma. Antes do rapaz se levantar, a mãe de Kuwai,
flautas rio acima para um local cercado num rochedo chamado Motípan (nas
cabeceiras do rio Uaraná). Lá, a irmã mais nova teve sua primeira
194
guerra. Desceu o rio até Tunui (uma serra no médio Içana) para pegar
Iaperikuli então reuniu todos os animais, seus parentes, para voltar com
ele a Motípan e, quando eles chegaram, cantaram como sapos para avisar
Iaperikuli jogou as mulheres para o céu. Uma mulher colocou uma flauta
em sua vagina e foi morta por Iaperikuli. Outra tentou fugir com uma
flauta e também foi morta por Iaperikuli. Então ele lançou quatro
para que elas não se lembrassem de Kuwai. Testou-as, mas elas esqueceram
do Mito. O mito de Kuwai é um mito modular, pois é contado para esclarecer várias preocupações
fundamentais de vida:
- a relação com os walimanai, ou seja, como as instituições culturais são transmitidas de geração
a geração, de antepassados a descendantes. A respeito disso, ouvi o mito contado para explicar o ‘começo
de’ concepção e nascimento enquanto processo de vida; o crescimento da terra desde seu tamanho
195
miniatura nos tempos primordiais até seu tamanho atual. Enfim, para os narradores, o mito explica a
hoje. De fato, há um conjunto de correspondências muito próximas que podem ser estabelecidas entre
esses rituais e como o mito conta sobre o primeiro ritual de iniciação celebrado. Além desses paralelos,
porém, existe um motivo mais importante: Mandu, que me contou o mito em várias ocasiões, fez questão
de confirmar que eu entendesse “porquê Iaperikuli deixou Kuwai conosco ?” Como ele mesmo disse em
ancestrais aos descendentes, como eu disse acima; mas também, da natureza da doença e do desafortúnio,
- Kuwai é o “dono das doenças” - todas as doenças graves, e especialmente aquelas causadas por
veneno, manhene. Outras doenças para as quais, afirmaram os narradores, Kuwai é responsável são:
chamadas hiwiathi que, diz-se, são provocadas durante os rituais de Kuwaipan e que, acredita-se, afetam
desordens reproductivas; e os iupinai, espíritos da floresta que, diz-se, “nasceram das cinzas de Kuwai,” e
- Finalmente, Kuwai representa uma síntese do mundo dos espíritos, natureza, e ancestrais dos
grupos sociais humanos. É essa síntese poderosa que é apresentada aos iniciandos nos ritos de passagem e
que tem outro nome: Wamundana. Nos tempos primordiais, os animais eram ‘gente’ que ‘andavam’ com
humanos, celebravam festivais juntos com eles, e os ensinaram as suas canções harmoniosas. Eles
também os deram doenças e ‘comeram’ gente com veneno (da mesma forma em que os humanos hoje
comem animais e peixe com pimenta). Wamundana foi um desses animais-espíritos-pessoas e não só um
animal mas todos-em-um. O mito assim explica a vida desse ser e como veio a ser reproduzido nas
flautas e trombetas que as pessoas tocam hoje nos ritos de iniciação. Explica acima de tudo as relações de
Possa ser que existam outras perguntas que elicitam a narração do mito; mas, como disse, a
minha amostra de 20 ocasiões diferentes representa uma boa indicação das principais preocupações a que
o mito se refere.
Os narradores podiam contar a história em várias maneiras para explicar o mesma tema ou para
explicar temas diferentes. Em meu resumo da narração, indiquei com números as divisões da história,
isto é, os lugares onde narradores podiam começar ou terminar a narração se uma pergunta fosse
colocada de forma suficientemente específica para elicitar somente aquela parte da história a que a
pergunta se referia.
Da forma em que tenho resumido a história, eu a ouvi como uma explicação do começo de uma
doença provocada por walamas ou dardos-espíritos, que espirraram das bocas das flautas depois que
narrador marcou o momento por dizer que “assim começaram walama.” Quando as pessoas sofrem hoje
de dores artríticas ou reumáticas, são diagnosticadas por xamãs como walama e extraídas do paciente
como pedacinhos da palmeira de paxiúba, a mesma madeira usada para fabricar as flautas de Kuwai. A
fonte de todas as walama é Kuwai que, os xamãs dizem, tem uma palmeira de cumare gigante, chamada
O que isso explica ? Que os walama são uma doença que têm a ver com as relações de gênero,
ou relações com outro povos ? Isto parecia plausível e contrastaria com as outras maneiras em que as
Por exemplo, eu ouví a história mais freqüentamente para explicar o começo de veneno,
manhene. Logo nos primeiros meses da minha pesquisa de campo, o enteado de Keruami, José Felipe, foi
mandado pelas missões a um hospital em Manaus por causa de uma doença grave e quase fatal. Depois
de meses de um tratamento aparentemente ineficaz, ele voltou a Uapui mas a doença persistiu. Por isso,
ele ficou restrito em dieta, proibido de comer animais, peixe ou pimenta, e ficou isolado da aldeia,
raramente saindo da sua casa e nunca participando em projetos de trabalho comunitário. A doença foi um
golpe para Felipe, pois as pessoas lembravam do sucesso que ele sempre tinha nas caçadas e dos
Um dia, de manhã, visitei Felipe e ele perguntou se eu tinha algum remédio contra o veneno que
provocava a doença. Produzia dores fortes de estômago, febre alta, e geralmente uma definhação do
corpo, deixando-o magro e pálido. Quando ele comia qualquer animal ou peixe, a doença piorava.
Naquela noite, durante a refeição comunitária, Mandu, o chefe de Uapui e o sogro de Felipe, contou-me
que tal veneno era comum, que muita gente morria dele, e que geralmente é uma substância muito
escondida, uma “folha” que um feiticeiro tinha misturado na comida da vitima. Um jovem então
perguntou a Keruami, “esse veneno sempre tem existido com a gente ou como é ?” A isso Keruami
afirmou, “é uma doença de gente,” e levantou suas mãos num gesto de começar uma narração (como se
estivesse dizendo, “silêncio ! Vou contar”). Assim começou a história de Kuwai, o “dono de veneno,”
manhene iminali. Enquanto a narração procedeu, o som da voz de Keruami encheu a grande casa de
comunidade, que já ficava no escuro enquanto a noite se aproximava. O jovem dava ouvido no modo
ativo de ouvir uma explicação, repetindo frases e palavras e fazendo perguntas curtas para esclarecer as
ações do mito. O capitão, também um xamã, fez alguns comentários, de novo para esclarecer. Tanto
Keruami quanto Mandu se engajavam ativamente no ato de explicar para o jovem o começo da doença.
Outros velhos sentados na sala de vez em quando fizeram comentários mas boa parte do tempo ficavam
quietos, ouvindo e pensando. A narração, como eu lembro, abrangia muito mais do que a história própria,
pois os velhos continuavam falando sobre Iaperikuli, os xamãs primordiais, e as práticas de cura por uma
No dia seguinte, Mandu explicou a história mais uma vez para mim e essa vez relacionou-a a
uma cura que ele e Keruami faria em Felipe no dia seguinte. A cura duraria por três dias, pois a doença
Em que sentido essa explicação era diferente daquela oferecida para os walama ? Em primeiro
lugar, Keruami narrou somente até o ponto da história quando Kuwai é queimado, que é o momento
quando ele deixa veneno, manhene, na forma de plantas venenosas. Esse veneno é a “febre” ardente de
Kuwai que ele deixou em troco para sua própria morte no fogo. Note-se de novo aqui a importância da
relação de troca entre os humanos e o mundo animal/espírito: os humanos matam animais e os comem
com pimenta; em troco, os espíritos-animais matam os humanos e os comem com veneno. Isto, sugiro, é
198
a maneira em que o mito oferece uma explicação para o começo de veneno (voltarei a essa questão no
Capítulo 6).
Existe um outro sentido ainda em que o mito de Kuwai diz respeito a doenças - por fornecer um
modelo para rituais de cura. Durante esses rituais de cura, Kuwai aparece aos xamãs e os mostra aonde
são as causas das doenças, e baseado nisso os xamãs realizarão as suas curas. Durante uma sessão de cura
que Mandu me convidou a assistir e registrar, ele explicou esse processo de ‘mostrar’ como uma espécie
de ensinamento:
“O Outro Mundo vai mostrar para o pajé. Não é gente que faz isso, é esse Outro Mundo que faz.
O primeiro, mundo antigo. Essa outra gente que está aí, fica no céu. Porque essa também fica no céu.
Onde isso vai acabar é no céu. O primeiro que ensina para nós...”
O sentido de ensinamento aqui faz lembrar do que Mandu falou que era o motivo porque
Iaperikuli deixou Kuwai: para ensinar as crianças do mito e, na verdade, os xamãs referem a si mesmos
O mito também é contado para explicar a noção de walimanai pois nele, vários processos de
vida são criados e deixados para todas as futuras gerações. Dois exemplos que vou apresentar ilustram
isso muito bem: o primeiro sobre o começo da menstruação, concepção e nascimento; e o segundo sobre
No primeiro caso, durante uma entrevista, eu estava conversando com Malewa, um velho de
Uapui, sobre a questão de incesto e eu tentava determinar se o mito da “Filha do Sol” que os Dessana
contam tinha um equivalente na mitologia Hohodene. Malewa olhou para mim com uma expressão que
indicava que não gostou que eu tinha levantado essa questão de incesto - “possa ser que fazem isso no
Uaupés,” ele disse, “mas aqui não.” Logo depois, ele se animou e perguntou, “você sabe a história de
como, o que você disse, as relações sexuais começaram ?” Ele prosseguiu a contar a história de como
Iaperikuli fez Amaru menstruar, e no final Amaru diz a Iaperikuli, “assim será daqui em diante para os
walimanai.” Assim começou a menstruação. Sem mais pensar, prosseguiu com a narração do mito de
Kuwai começando com a concepção e o nascimento de Kuwai. Malewa comentou depois do momento
em que Kuwai nasceu, “Kuwai nasceu aqui mesmo” e apontou para a cachoeira de Hipana não mais de
cinqüenta metros de onde nós estavamos sentados. Malewa comentou de novo, depois que Kuwai foi
199
mandado para morar no céu, “assim será para os walimanai” querendo dizer, parece, que o nascimento de
Kuwai é ligado diretamente com a experiência que as pessoas têm hoje de nascimento. Em seguida
Malewa contou um mito curto sobre como a terra era uma pedra pequena quando Kuwai nasceu e
Iaperikuli a fez crescer até seu tamanho atual por soprar a música ressonante de uma trombeta de Kuwai
que fez a pedra abrir-se. Malewa mostrou como por formar com as suas duas mãos um círculo aberto que
se abria cada vez que soava a trombeta mítica. Como prova, talvez, Malewa apontou para a rocha enorme
no meio da cachoeira e disse que aquilo era a terra “no começo,” no “primeiro mundo.”
Como no caso do velho Oalipere dakenai que eu citei no Capítulo 1, que narrou três histórias
sobre a ‘nova ordem’, Malewa, tecendo uma série de mitos de uma forma criativa, claramente ligou os
temas da menstruação, nascimento e crescimento. Os dois mitos mais curtos não fazem necessariamente
parte da narrativa - nenhum outro narrador os incluiu - mas podiam ser adicionados, inseridos nos lugares
apropriados para ensinar mais sobre o tema das relações sexuais, reprodução e crescimento, processos
200
primordiais que começaram com Kuwai. Mostra também que a parte 1 do mito é considerada uma
O segundo caso aconteceu quando eu apenas perguntei a Keruami ‘o que significa walimanai ?’
pois eu havia escutado essa palavra tantas vezes no curso de aprender mitos Hohodene. José Felipe
respondeu com poucas palavras em português e, mesmo antes dele terminar, Keruami começou a narrar o
“Walimanai, esse é para o outro, como dizer, o outro que vai nascer, sabe ? Para o outro que vai
nascer. Antigamente, os nossos avôs cuidavam bem, e falaram, ‘bem, assim você vai ficar meu filho, a
Iaperikuli Irikan,
O filho de Iaperikuli
Hipatuperi.
De coca.
Inha lihipatu,
Likuiro ihriu.
Kenipena...
Grávida...”
Continuou com a história até muito depois quando Iaperikuli empurra Kuwai dentro do fogo;
“Iaperikuli empurrou...
201
PA ! Khhhihh !
Fez um Inferno.
Jogaram árvores...titititi
Não pequeno.
Não morre.
A doença de hiwiathi, ‘a minha fala, não morre,’ ele disse, ‘será o meu feitiço.’
‘Hwero a planta venenosa, é meu figado,’ seu figado é hwero, não morre.
Tuuuuuuuuuudooooooo.......
[cantando] ‘Heeheehee...eeyteyteytete...’
Até hoje !
Assim é.
A morte por veneno é ‘deixada’ para a humanidade, mas o conhecimento de Kuwai, Kuwai
ianheke, sobre as doenças e sua cura é também produzido e transmitido para as futuras gerações. O
incêndio em que Kuwai queimou é um símbolo poderoso, pois imortaliza esse conhecimento.
A separação entre o mundo de “antes” e o de walimanai que ficou estabelecida nesse ponto do
mito significa um ‘fim’ da possibilidade - fora das viagens xamánicas ao Outro Mundo e os rituais - de
que o mundo dos espíritos possa vir diretamente de novo a este mundo e misturar com os humanos.
Representa a separação do mundo dos espíritos que fica sempre, “lá” no Outro Mundo separado dos
humanos. Num sentido maior, todos os seres primordiais continuam “vivos” ou imortais no Outro Mundo
de Antes, e é como se os dois mundos existissem eternamente lado a lado ou um acima do outro, Antes e
Agora. Essa separação aconteceu nesse e em nenhum outro ponto da história cósmica.
um dos momentos mais dramáticos da história - como um momento de múltiplos sentidos, dependendo
da questão que está sendo explicada, que faz este um dos momentos mais importantes do mito. Os
narradores deixam claro que esses momentos são pontos-terminais, o que nos podemos chamar de
‘momentos de linha divisória,’ pois representam separações críticas, impasses irreversíveis a que as
personagens do mito têm chegado. Os narradores freqüentamente usavam essas ‘palavras-terminais’ para
enfatisar isso: “Pikethem !!” - “o últino, não volta mais,” ou “Khamets’hapeken !” - “É realmente tudo !”
O mito de Kuwai ou Wamundana também explica, como eu disse, as relações entre os animais,
espíritos e humanos, e é através da natureza de Wamundana como a ‘sombra da preguiça preta’ que
podemos entender o que o mito está dizendo. Ao explicar as relações de ‘sombra’ entre os animais,
espíritos e humanos, os narradores chamam atenção para o fato de que hoje, os animais, peixes e pássaros
vivem de forma separada, com modos de vida “como gente mesmo” - eles têm fogos de cozinhar, casas,
e fazem muitas das mesmas coisas que os humanos fazem, inclusive celebrar festas de dança, bruxaria,
feitiçaria, etc. Os humanos geralmente não vêem os animais nas suas formas de “gente”; ao invés, eles
vêem as suas “sombras,” idanam. Para a gente-peixe e a gente-animal, os seus corpos materiais são as
suas sombras que os humanos vêem, em contraste com os humanos cujos corpos materiais lançam
Geralmente a gente-animal permanece invisível enquanto “gente”; há, porém, trocas freqüêntes
entre eles e os humanos. Para dar um exemplo: todos os anos, a gente-peixe, kuphenai, sobem os rios nos
meses de março e abril para “fazer as suas festas,” isto é, desovar. Multidões deles nadam rio acima e,
para quem que estiver observando-os, seus movimentos parecem “doidos”, ou como dizem, “bêbados
com o caxiri que tomam.” Nessas épocas, os humanos se sentam e observam as suas redes ou lançam suas
linhas. A gente-peixe, entretanto, observa os humanos e, quando vem uma isca, diz-se, os peixes colocam
pedaços da sua lenha nos anzóis. Quando os humanos puxam as linhas, a lenha transforma-se em peixe
para os humanos, ou, como se diz, khupe ipadama newiki ihriun. Em outras palavras, para passar de
gente-peixe ao humano através de uma barreira que os separa, faz-se uma transformação. A lenha, que
pertence a ‘outra’ existência da gente-peixe, transforma-se no ‘corpo’ de um peixe, a ‘sombra’ do que era
antes.
A experiência dessa ‘gente’ invisível pode às vezes ser apavorante. Às mudanças de estações,
por exemplo, da chuvosa a seca, diz-se que o “povo-onça”, o “povo-pombo” e outros, mandam um
vendaval, com trovão estrondoso, folhas e espinhos voando pelo ar. Eles ficam “bravos” e as pessoas
devem falar uma oração para “quebrar as suas flautas, cortar seus barulhos.”
No Capítulo 5, discutirei a noção de maus augúrios, ou hinimai, que é uma outra instância da
Wamundana parece ser enfim a explicação principal para as noções de produtividade e reciprocidade que
O mito foi contado para mim mais frequentamente para explicar os ritos de iniciação, Kuwaipan.
Na verdade tinha duas maneiras que os narradores podiam falar sobre esses ritos: através do mito ou
através de relatos descritivos de como as pessoas realizam os rituais hoje. As duas maneiras diferem entre
si, embora que os relatos descritivos possam conduzir à narração do mito. Quando as minhas perguntas
enfatisaram as práticas contemporâneas - por exemplo, o que os velhos de hoje aconselham os iniciandos
com relatos descritivos. Quando eu fiz a pergunta de uma maneira geral, ‘como fazem os Kuwaipan
hoje ?’ ou ‘Porque as pessoas fazem tal-e-tal coisa durante o ritual ?’, então recebi uma explicação em
termos do mito. Quando uma prática ritual se referia diretamente ao mito, pode também mudar para a
narração.
começo, como primeiro apareceu.” Os ritos de iniciação, especialmente, são momentos quando o mundo
escondido e “antigo” dos ancestrais e de Kuwai, as flautas sagradas, é mostrado aos iniciandos, para
“ensinar Malinaliene.”
Quando explicaram os rituais através do mito, tinha várias maneiras em que os narradores
podiam contar a história em blocos ou pedaços. Normalmente, os narradores começaram com a parte 2
do mito e contaram a história até quase o final mas, dentro daquele bloco contínuo, narradores podiam
fazer intervalos, cortar pedaços ou retomar a história em pontos diferentes. Por exemplo, uma vez a
minha pergunta a Keruami focalizou nas canções dos ritos de iniciação de hoje. Keruami cantou várias
canções, e então, imediatamente começou a contar uma parte do mito quando as canções de iniciação são
cantadas, durante o rito final ou a festa de “saída”. Ele continuou com o episódio sobre a primeira árvore
de paxiúba e terminou imediatamente depois que as mulheres tinham roubados as flautas. Eu sabia que
Keruami de fato nunca contava o resto da história (partes 6, 7) e assim concluí-la da sua própria maneira.
No entanto foi notável que um pedação da história tão pequeno podia formar uma unidade separável,
constituindo uma explicação coerente das canções cantadas durante a festa de saída.
205
Numa outra ocasião, perguntei ao velho Makenuli de Ucuqui como as pessoas fazem os ritos de
iniciação hoje em dia, esperando que ele me desse uma descrição geral. Ele respondeu por contar partes 3
- 5 do mito o que é uma história curta mas coerente sobre as duas fases críticas de iniciação que ocorrem
durante o Kuwaipan: quando os velhos primeiro mostram as flautas aos iniciandos e os açoitam,
começando a fase de seclusão; e a festa de saída quando os iniciandos emergem da seclusão e comem a
pimenta sacramentada.
Assim, enquanto tema, a iniciação constitui uma parte contínua da narrativa mas as maneiras em
que os narradores podiam marcar momentos diferentes da história indicam que a iniciação é pensada em
termos de um processo maior representado como fases diferentes - algumas das quais correspondem
diretamente aos rituais que as pessoas fazem hoje, e outras que correspondem a fases do ciclo-de-vida
individual (por exemplo, parte 2 corresponderia a uma fase em que meninos são considerados prontos
para serem iniciados, embora que não tenha nenhuma correspondência direta ao ritual de Kuwaipan).
Interpretação. Na interpretação que faço agora do mito, procuro especificamente relacionar esses
temas das narrativas a algumas das preocupações centrais das narrativas que tenho examinado até agora
sentido das imagens de Kuwai enquanto o “homem branco” e Amaru enquanto a “mãe dos brancos.”
tinha pais (nasceu do osso de uma pessoa devorada pelos Duemeni, onças
é com a filha do irmão da mãe/ filha da irmã do pai. Neste caso, Amaru
seria uma afim de um outro grupo não aparentado. Isto estaria de acordo
filhas de Kunaferi (Avó Timbó). Não fica claro a que tribo animal Amaru
Trovões.
Iaperikuli. Há assim, uma ambigüidade que define Kuwai tanto como filho
são: Iaperikuli come uma planta cultivada, a coca sagrada adquire poder
cima para baixo, semelhante ao modo como os raios do sol penetram nos
mulher, não tem vagina ou “caminho” para a criança sair. A ruptura dessa
28
Vários meios são citados por diferentes narradores: objetos pontudos como topos de
árvore, peixes com dentes afiados e, numa imagem notável, Yaperikuli faz com as mãos um
círculo no alto de sua cabeça (onde está concentrado o seu saber) e coloca a imagem no
lugar da vagina de Amaru, criando a passagem.
208
harmoniosa “música das esferas” para usar uma metáfora. Seu crescimento
entre consangüíneo, afim e “um não se sabe quem.” A fonte de sua geração
o homem branco.
possa ser a imagem, ela serve também para realçar a idéia de em quem os
anuncia que os instrumentos dos meninos são “bobagens”, afirma ser ele o
acompanham.
Kuwai é revelado dentro da casa de ritual (no centro da casa), onde ele
exemplo: “sou tão poderoso que eles devem passar por restrições durante
podem olhar para as mulheres, pois “as veriam sem roupas”, o que
mito, quando os meninos assam e comem sementes de uacu, que são também o
controle sobre seus impulsos - Kuwai teria retornado com eles à casa
ritual, teria entoado cânticos sobre sua comida e dado a eles para que a
meninos que não exerceram auto-controle e o único menino que ficou fora
orifícios. Kuwai canta: “Por que vocês comeram meu poder pacu cozido,
narradores imitam Kuwai neste ponto com um zumbido muito agudo, como a
preguiça que desce das árvores ao chão para comer, no início das grandes
em Capítulo 1, ele vive perto da Porta do Céu e leva as almas dos mortos
que cometeram erros enquanto viviam (feiticeiros, etc.) para sua aldeia.
O único menino que não comeu e que fica fora é salvo. Em seu
diálogo com Kuwai, que cumpre sua promessa, embora “saiba” que será seu
fim.
lado, indestrutível, de seu ser. Seu corpo é “todas as coisas” que matam
que queimou o mundo. Já que Kuwai é a “alma do pai, a alma do sol” e seu
fogo acontece ao meio dia, quando o sol está a pino, pode-se concluir
se torna espírito criador. As toras mais pesadas e duras que são jogadas
215
brancos até o rio Negro porque seu próprio trabalho (casas e roças) era
homens “não podiam fazer nada”, “ficaram como mulheres”, “faziam caxiri”
elas e sobem o rio, por baixo d’água, até atingir o imponente rochedo de
diz-se que é “como uma cidade” com várias “estátuas” de Amaru e das
217
lugar associado à sua criação dos peixes, e à casa dos pássaros - enfim,
abaixo.
Não é por acaso que se diz que Iaperikuli lhes deu “sapatos” quando as
rio Negro foi levado como prisioneiro para Portugal, onde viu mulheres
das coisas. Outra história oral do messias Kamiko do século XIX conta
que sua mulher não respeitou suas instruções quanto ao jejum e às rezas
enquanto ele subia ao céu, dançando e bebendo com soldados brancos que
tinham vindo em busca do marido, pelo que foi condenada por este a
mundo dos brancos e dos espíritos) representa algo que precisa ser
controlada.
219
Hohodene Keruaminali que, viúvo e sem filhos após seu retorno do rio
brancos.”
XIX.
ligação nos seguintes termos: “O mito de Warimi deixa claro que o saber
sociedade indígena e por sua reprodução nos dias de hoje. Isso abre a
Homem Branco tem uma importância relativamente menor nos mitos Baniwa. A
PARTE III:
A MORTE E A ESCATOLOGIA
223
final de 1903, uma das coisas que mais o impressionou na cultura Baniwa
dos rituais de danças com máscaras para comemorar os mortos que observou
com corda, que tinham extraído do corpo da vítima e que, disseram eles,
vol.1, cap.XI).
de fato tinha uma longa história de acusações de bruxaria e assassinatos entre os Oalipere-dakenai
daquela aldeia e os Maulieni da aldeia de Inambú, rio acima de Cururuquara. Uma história de indivíduos
de uma aldeia dando veneno a indivíduos da outra, frequentamente no contexto de festas de caxiri. Como
José Felipe de Uapui me explicou: “Primeiro, alguém de Inambu deu manhene a alguém de Cururuquara.
Depois alguém de Cururuquara deu manhene a alguém de Inambu. Até que quase acabou com a aldeia
de Cururuquara.”
Isso foi no passado, e José Felipe contrastou aquela época com o presente, pois os remanescentes
de Cururuquara tinham se mudado um pouco rio acima - sem dúvida abandonando a grande maloca
devido a um excesso de mortes e enterros - para formar uma nova aldeia chamada Kuitchiali numana, ou
Canadá como ficou conhecido, que eventualmente recuperou e se tornou a maior aldeia evangélica no
Aiary.
Uma pesquisa rápida em algumas das poucas fontes escritas sobre as aldeias do Aiary no começo
do século 20 revela que a história contada por José Felipe sobre uma redução na população próspera de
Cururuquara tinha começado cerca de uma geração depois da visita de Koch-Grünberg, quando
Nimuendajú em 1927 notou que a aldeia tinha cerca de metade da sua população do começo do século.
bruxaria e feitiçaria entre aldeias de sibs e/ou fratrias diferentes. Não só manhene em si e seu significado
simbólico, mas também a relação que o discurso associado a feitiçaria e bruxaria tem com o que eu tenho
chamado a visão catastrófica do mundo - isto é, - que as pessoas “quase se acabaram” - e a sua
Capítulos 5 e 6 examinarão essas questões através de um estudo de case estendido. Como Koch-
Cachoeira, e eu dediquei boa parte de minha pesquisa de campo ao desafio de entender o evento e seu
xamãs e cantadores com o mundo dos mortos (Hill, 1993). Pretende-se nos
os Hohodene do rio Aiary, quanto examinar aspectos do sentido da morte e sua relação à consciência
entre os Hohodene:
226
morte na dinâmica de uma aldeia, Hipana, que, na década de 70, vivia sob
espíritos doadores-de-doença.
xamânico da cura.
228
de eventos dos quais entende muito pouco no primeiro momento; mas, com o
'causas' eram eram uma só. Além disso, a história por trás da morte de
iminente do mundo.29
dos anos 20, construiu ali a primeira maloca. Dos sete filhos de
mas era padrasto de dois homens Desana, Samuel e José Felipe. Portanto,
29
Devido à minha preocupação com uma possível intervenção das agências externas de
contato nos assuntos internos da comunidade, em minha tese e em publicações posteriores,
evitei escrever sobre os eventos que agora procurarei reconstruir. Desde então, passaram-
se quase duas décadas; Hipana é um lugar muito diferente, assim como a conjuntura política
na região. Por isso trago-os à luz agora, de certa forma, como história de que fui
testemunha.
230
Serafim foi o único irmão sobrevivente com filhos, todos casados, cujas
por quase todo o mundo uma pessoa perigosa, um feiticeiro que tinha
isto foi agravado por uma disputa pela sucessão da posição de chefe e
Keruami a deixou por motivos de idade; na época, Emílio era o irmão mais
ficaram satisfeitos com seu desempenho, pois, como disseram, "ele não
que parece não ter muito fundamento. Pouco tempo depois, Irmoges, seu
repente, uma menina o empurrou para o chão, o que lhe provocou uma
crise, que o fez tossir muito sangue. Ao ver seu filho tão perto da
de Mandu. Nos dois anos que sucederam a esse incidente, três pessoas
caxiri que ele mesmo deu a ela para beber. Logo depois ela apresentou
vômitos. Ela avisou Serafim para guardar as flautas, pois tinha que
tão clara neste caso quanto no primeiro). As pessoas disseram que uma
ela faleceu.
casar com a filha mais velha de Emílio, mas este proibiu o casamento;
sofreu uma doença quase fatal, diagnosticada por Mandu e por Keruami
José Felipe, talvez não querendo mais encrenca, achava que tinha
que exigia uma cirurgia. Depois de quase dois meses na cidade, Serafim
mandou um bilhete a seus filhos dizendo que ainda não tinha sido operado
(de fato, nunca o foi). Mandu, pelo menos, ficou aliviado ao saber que
seu pai ainda estava vivo; como disse: "Sem saber, a gente fica triste.
Se morreu, a tristeza passa porque sabemos que ele está esperando por
Segundo Serafim, Emílio deu-lhe uma cuia de xibé (farinha e água) para
de onde ele avisou seus filhos para virem lhe buscar. Foi aí que o
cortando lenha quando de repente caiu com uma dor agonizante no abdômen,
remédio que pudesse aliviar a dor, já que estava sem seus instrumentos
de pajé. Eu lhe dei um analgésico que pareceu ajudar o bastante para que
junto com suas curas. Mas no dia seguinte, Serafim piorou e o analgésico
tinha acabado. Todas as tentativas dos pajés pareciam não ter mais
que se poderia fazer era aliviar a dor e não curar a doença, Serafim
Mandu contou-me, depois, que seu pai falou o seguinte: ele tinha
continuar a viver bem com os outros neste mundo sem ele, a plantar suas
Brancos vinham (uma profecia que o xamã Kudui tinha feito anos antes); e
que num sonho, tinha visto duas pessoas na aldeia contra quem eles
teriam que se cuidar porque fariam mal para os outros. Um deles, Emílio,
entrei na casa e fui avisado que ele "já vai embora". Um pajé entrou e
Mandu que, até a manhã seguinte, virou palco para o drama da passagem de
em que Serafim, olhando para cima, gesticulava com seu braço, apontando
teria que enfrentar uma série de perigos. Nesta viagem, o xamã, que era
extremamente calmo, olhando com olhar vago. Mandu contou-me que Serafim
tinha visto seu pai e outros parentes mortos. Tinha visto Iaperikuli,
que lhe falou que teria de permanecer na terra mais cinco anos 30, pois a
30
Refletindo, hoje, sobre esta afirmação, entendo que ele quis dizer que a sombra
(danaime) de Serafim ia ficar até, no final do prazo, desaparecer.
236
casa onde ia ficar no Outro Mundo ainda não estava pronta. Terminados os
cinco anos, ele poderia voltar. Entendi, com isso, que Serafim não ia
morrer, mas minutos depois ele dobrou as pernas numa posição fetal e
balbuciou como criança. Mandu endireitou suas pernas, Serafim olhou para
fora pela última vez e, então, seu olhar voltou-se para cima. Mandu
fechou os olhos de seu pai e, com pouca emoção, simplesmente falou: "ele
um triângulo, cada qual com uma das mãos no ombro do outro, e com a
você nos deixou, estou tão triste sem você". Gabriel, irmão mais novo de
desejava.
serradas, uma virada em cima da outra que seriam amarradas com uma
corda. Serafim foi amarrado dentro de sua rede, junto com um cigarro,
esclareceu Mandu, "hoje não é como antigamente". Um homem tocou fogo nas
dia. Fui avisado que havia insetos na areia cujas picadas davam uma dor
pranto alto "Hoo! Hoo!" repetidas vezes até pararem em silêncio. O grito
criação.
ancestrais, um por um, de dentro dos buracos. Para mim, era como se
estivesse dizendo que a alma de seu pai tinha voltado à alma coletiva
ancestral no início dos tempos. Seu corpo ficou na terra, mas sua alma
nas portas frontais da cada casa, para "fechar o caminho do morto" para
dentro das casas. Com toda certeza, os velhos falavam as orações para
abrir o caminho até o lugar dos mortos e "virar seu olhar" para longe
dos vivos.
para pescar no baixo Aiary, a maioria das pessoas de Hipana fechou suas
casas e foi embora, o que sem dúvida ajudava a esquecer a morte. Poucas
famílias ficaram: Emílio e seu irmão Edu, além de Samuel, irmão de José
Felipe, com sua família. Contudo, um outro evento, não mais de duas
semanas depois, mostrou que o espectro da morte ainda não tinha deixado
Hipana.
O filho mais novo de Samuel (com uns quatro anos de idade) começou
no Rio Içana, uns três dias de distância, para buscar o que conheciam
morreu depois que seu corpo tanto se contorceu, que partiu sua coluna
sucuri").
Quando Mandu ficou sabendo dessa morte, sua reação imediata foi de
que Emílio lhe tinha dado manhene: "Ele já deu manhene a seis pessoas.
Aqui, só ele tem manhene. Ele quer matar todos nós. Seu único pensamento
é de matar" (manhekeda lima, uma pessoa que dá manhene, que não tem
podia ser feito? Que mecanismos existiam para impedir outras mortes? A
239
dizia que fora o próprio Emílio que tinha dado manhene a seu filho
explicitamente, "ele quer matar todos nós, um por um, até ele ficar
sozinho. Ele vê o mundo desse jeito e sempre foi assim". Uma referência
comunidade funcionava.
240
nós não vivemos assim, nós não tratamos os ialanawi assim". A suspeita
dos aldeões de que Emílio era o responsável (ele devia muito dinheiro
comida?
é levado, por seus parentes, aos poderosos xamãs Wanhíwa (ou Guahibo)
para ver quem é". Dizem que os xamãs Cubeo também são hábeis nesse
explicados abaixo.
junto com o pagamento, uma panela d'água e uma pedra que é a "alma do
31
A palavra iupithatem aparentemente está relacionada a iupinai, espíritos da floresta
que "nasceram" das cinzas do fogaréu de Kuwai. Estes trazem doenças aos humanos: vêm como
um vento, rodeando suas vítimas e deixando-as "loucas" (napikaka).
241
momento, ele manda um vento forte para onde está o feiticeiro e este
carvão candente, mas não se queima; come suas unhas, pois "suas mãos não
próprias roupas e corre para lá e para cá, às vezes até para dentro da
outro vento forte vem - desta vez, com nuvens de trovoadas e, às vezes,
coisas que antes, mas dessa vez confessa, falando sobre todos que matou;
morde seus lábios e sua língua para não contar quem o está matando;
capazes de mandar suas almas para cima deste mundo até o nível mais alto
mundo", mas o que mais fascinava nessas conversas era como os Wanhíwa
especulava "talvez agora ele tenha medo de nós, por isso não come junto
Olhei para Mandu que, pela expressão do rosto, dizia-me tudo que eu
mudar para a aldeia de Ucuqui, rio acima. Porém, no mínimo posso afirmar
século passado, têm notado a sua importância para os índios. Nos mitos
32
"No lugar onde Jurupari foi queimado, próximo à cachoeira do Aiari, um lugar lindo, há
bastante carvão. O cheiro de carvão é venenoso. Há bastante plantas venenosas lá. Não se
pode tirar frutas de lá. Se os índios vão lá, eles morrem. Só os filhos dos Tariana e
Baniwa podem ir lá. Eles sabem o que fazer para não morrer. Por isso, os Baniwa possuem
bastante veneno; eles pegam-no de lá; é para matar seus inimigos. Quando andam naquele
chão, faz-se um barulho como tambor. Eles cantam, 'venho buscar veneno, quero veneno para
matar os meus inimigos'. Eles podem pegá-lo." (Biocca, citado em S. Hugh-Jones, 1979: 308)
243
trazidos de canoa por mais de 100 quilômetros do rio acima e rio abaixo
por seus parentes, para serem tratados ali. A maioria dos casos é de
suposto envenenamento:
veneno: lidzuna, a semente de uma fruta ou bago que aparece nos buracos
Likaime, idem, tendo como única diferença o fato de ser extraído como
rato.
244
manhene estão localizadas geralmente nas serras (os xamãs listam umas
produziu a morte para todos os tempos, “para todos os que vão nascer.”
(IJIE) foi criada. O seu irmão menor MAWICHICURE foi o primeiro a morrer
de milho que foi consumida; a maloca queimou como fogo. Aborrecidos com
33
Irving Goldman faz pouca menção de Mawerikuli; apenas que:
"O habóku [líder cerimonial] dos mortos é Mavitcikori[sic.], neto de Dzurédo, um
antepassado dos Õrobabo e outros sibs de alto grau tais como os Hehénawa, que foi o
primeiro chefe em Uaracapuri. Os Cubeo, porém, não têm grande interesse em especular sobre
245
A seguinte versão do mito foi contada para mim por Mandu, filho
“Então depois, Iaperikuli foi até onde ele morava, este Warukwa.
vieram chamar Iaperikuli. Ele iria trazer de volta aquele veneno dos
Eenunai. Três dias depois, ele iria encontrá-los lá. 'Agora Iaperiko, vá
ver lá, na casa deles', eles falaram para ele. Eles iam matar este
a vida dos espíritos dos mortos já que, fora os antepassados, não têm nenhuma relação
normal com eles." (1963: 261)
Em contraste, os Baniwa dão bastante atenção aos espíritos dos mortos.
246
'Agora nós vamos trazer de volta este kurumáhe [veneno dos Eenunai].’
vocês vão?' ela falou, a velha tia deles. Ele pegou esse limathoaiali
remédio para fazer voltar os seus corações. Ela repartiu entre eles. Ela
repartiu para todos quantos iriam. Aí ela perguntou para o irmão mais
novo de Iaperikuli, 'você vai, meu sobrinho?' ela falou para ele. Aí ele
disse, 'não vou'. Mas ele a enganou. Mas foi assim que ele disse.
Depois, ele falou que ia esperar. Mas depois de esperar, ele foi atrás
foram.
Agora ele vai entrar [na casa dos Eenunai]. Ele chegou e bateu na porta
da casa assim, 'Balenaa! Onde está, Balena, o veneno dos Eenunai?' ele
falou assim. 'Está aqui', eles falaram. Eles entraram, entraram com
Iaperikuli. Então deram bebida para Iaperikuli. Mas ele estava fazendo
isso, ele estava tirando deles aquele Eenunai veneno. Depois, atrás
dele, eles beberam. Ele bebeu junto com eles, os Kuwainyai com ele. Até
quando deram bebida para ele, Iaperikuli tirou o veneno dele. Tirava,
eles botavam bebida para ele, e davam para Iaperikuli. Outro dava
bebida, mas ele tirava. Porque eles queriam matar, mas esse Iaperikuli
não morre.
“Depois, ela chegou, a tia deles, a tia dele. Ela repartiu aquela
planta dela [mathoaiali] para eles. Deu para um, deu para outro, e para
outro, para todos aqueles, os Kuwainyai dele. Ela distribuiu tudo para
eles. Quando eles terminaram de beber, aí veio esse irmão mais novo de
Mawerikuli. O infeliz. Começou com ele. Ele que começou, fez mal para
nós, para todos nós, gente. Todos os Brancos também. Só um que começou,
ele que fez, esse Mawerikuli. Então ele chegou, olhou para eles, e
perguntou, 'Tia, onde está a minha?' Aí, ela disse, 'Esse remédio?'
'Sim', ele falou. 'Mas você falou para mim, 'eu não vou', você falou
para mim. Não tem sua parte', ela falou para ele. É só, agora sim.
Morreu lá, esse irmão mais novo de Iaperikuli. Morto, é só, morreu já.
Aí, levaram esse Mawerikuli e fizeram ele deitar. Iaperikuli fez ele
deitar no caixão. O caixão ele fez, o caixão dele. Depois o fechou bem.
“Então, depois disso, ele deitou assim três dias. Mawerikuli ficou
deitado. No quarto dia, parece, ele foi ver, Iaperikuli foi ver. 'Então
meu irmão', ele disse, 'você já está melhor?' disse para ele. 'Sim, já
mulher de Iaperikuli falou, 'Agora vamos fazer caxiri', ela disse para
elas, 'o irmão de Iaperikuli vai voltar, ele vai fazer a saída do irmão
dele', ela falou, a mulher de Iaperikuli. Então ela falou, 'sim, ele
está bem'. Depois, uma outra mulher falou, 'Eu vou lá vê-lo', ela disse,
falou assim. Depois de falar, ela saiu da casa, foi, foi, foi, abriu a
porta dele e viu. Ela viu Mawerikuli deitado. Ela viu Mawerikuli
ele virou a cabeça e olhou, Mawerikuli: 'Pai! Você não pode me ver', ele
falou para ela, 'quando você me vê, tem que me pintar com caraiuru',
disse para ela. Então 'eu tenho caraiuru sim', ela falou, essa mulher.
Ele olhou para a cara dela e disse, 'por que você olhou para mim?
Iaperikuli disse que ninguém pode olhar para mim. Quando você olhar, vai
me matar de novo. Assim faz mal para mim'. Ela disse, 'não, você não
pode morrer, você vai ficar bonito, bonito mesmo, pintado de caraiuru.'
Então ela o pintou com caraiuru, pintou todo o corpo dele bem, um
vermelho bonito, bonito mesmo. Pintou ele todinho; aí, pronto, tudo,
ela vai pegar, ela fez assim, virou sua mão para baixo. 'Pois você está
Mawerikuli caiu no chão. Só assim ela o matou. Assim foi que ele morreu,
assim foi que Mawerikuli caiu puro osso - khyelulululululu... Seus ossos
jaziam lá, esse Mawerikuli começou. Já tinha feito mal para ele.
animal de caça. Então ele estava no mato, aí foi mostrado para ele. De
dentro da sua mão, caiu sangue novo. 'Paaahh! Elas mataram meu irmão',
os ossos dele que jaziam no chão. Aí ele foi pegar para deixar como
gente de novo. Tentou arrumar de novo para ele. Aí, quase ficou como
gente quando caiu de novo. Tentou mais uma vez, caiu de novo. Até que
deixou. Até que Mawerikuli falou, 'Agora é melhor, melhor que você deixe
assim, deixe que eu me vou', falou para ele, 'assim eu me vou. De agora
em diante assim será para eles, aqueles nossos outros que vão nascer',
ele disse. Quer dizer, assim vivemos no mundo com ele. Foi assim que ele
começou, ele viu para nós, o mal. Ele fez para nós esse mal. Assim ele
deu; assim que ele deixou. 'Agora fica para eles, aqueles nossos outros
que vão nascer. Assim será, fica para os outros que nascerão', ele falou
para ele, para Iaperikuli. 'Parece que sim, meu irmão, melhor será
deixar assim para os outros que nascerão', ele falou para seu irmão
Mawerikuli, ele o deu de verdade. Então de verdade ele fez mal para nós,
Mawerikuli. Esse mal assim ficou até hoje para nós. Assim que foi feito.
“Depois, esse Iaperikuli voltou e ralhou com ela. Nada tinha para
fazer. Ele podia ter feito, mas elas fizeram mal para ele, Iaperikuli.
Quer dizer por isso, agora aquelas outras mulheres, por isso não
entendem o mundo. Todas assim como aquela, para nós, começaram isso para
fez para nós, assim para nós, assim começou este Mawerikuli antigamente.
Interpretação
250
O que especificamente interessa as pessoas sobre este mito que, em várias formas, aparece em muitas
por Deus de Adão e Eva do Paraíso, uma queda do estado de graça. É o sentido de ações impulsivas e
êrros irreversíveis que os narradores assinalam como a causa da queda: Mawerikuli disse que não ia à
festa e depois foi. A outra mulher abre o túmulo de Mawerikuli e pinta seu corpo; na última passada da
tinta, ela vira a sua mão, o lado da palma para cima, para o “outro lado”, o lado da “sombra do morto”,
como os narradores disseram. Se essas coisas não tivessem acontecido, dessa forma, os narradores
enfatisaram, todo mundo hoje ia ressuscitar três dias depois da morte, rejuvenescido. O que ocorre
portanto é uma queda catastrófica, quando a morte entrou no mundo, uma condição que fica, como
Nos mitos Baniwa sobre a morte, há temas comuns que percorrem seus
dramas:
envenenamento, ou canibalismo;
afins ou "outros";
dos outros afins. Não houve festa; não há 'saída' - a morte irreversível
tahe, rio abaixo, "onde as águas não correm mais, uni diakahle". Essa
extrema entre Iaperikuli e seu grupo de parentes (seu irmão mais novo;
sua velha tia ou, dizem alguns, sua avó; e seu 'povo' no sentido de sib
poderosos feiticeiros.
252
viagem que ele e Iaperikuli fazem a partir da boca do Rio Uaupés rio
na postura de seu corpo: de deitado, à beira da morte 34, numa canoa, aos
fim.
tradicional dos Baniwa para rio acima e dentro das terras ancestrais dos
34
A palavra para "morto", maliume, pode ser traduzida literalmente como "sem vontade" e
seria o complemento de manhene, literalmente "sem saber, inconsciente". Maliume significa
a ausência do coração-alma; manhene significa a ausência de pensamento. Os dois elementos
- pensamento e vontade - definem o ser humano plenamente cultural, como vimos no Capítulo
2.
253
procuraremos mostrar.
lado, têm manhene em sua pele. Segundo os mitos, foi Kuwai que deixou
manhene".
Com essas associações, sugiro que uma interpretação plausível do significado simbólico
de manhene e portanto do mecanismo de feitiçaria é que representa a ‘vingança’ (likoada) dos animais
nos humanos. ‘Vingança’ para quê ? Para o fato que os humanos consomem os animais com pimenta,
como alimentação. Em troca, os animais consomem os humanos com veneno. Frutas, bagos, e plantas
venenosas - a comida dos animais - são escondidos na bebida ritual por feiticeiros. Uma vez consumidos,
eles se transformam em cabelo venenoso, manhene, nos estômagos das vítimas humanas produzindo
febre intensa, kapwamina, e a morte. Isto seria, enfim, exatamente o processo oposto do que ocorre nos
rituais de iniciação, ou Kuwaipan, quando rapazes e moças consomem a pimenta sacramentada. Pois a
pimenta sacramentada é o equivalente da grande conflagração no mito de Kuwai quando o ser que
35
A noção de um santuário vertical é importante em outras orações, por exemplo, para
proteger uma casa contra os ataques de feiticeiros; um orador cria com suas palavras uma
cerca protetora ao redor da casa e manda a alma coletiva dos habitantes para o céu, a um
lugar chamado litalewapi riku Dzuli, "onde não há doenças", sob a proteção do xamã
primordial, Dzuliferi.
254
tanto enigmaticamente, que “queimar o cabelo de wamu é um remédio para pimenta,” que na verdade faz
ameaçadores. Representam puro instinto animal, sem pensamento, ou “cujo único pensamento é de
matar,” com manhene. Vários mitos e orações que têm os Eenunai como figuras centrais se referem aos
efeitos desastrosos de feitiçaria ou bruxaria contra a qual Iaperikuli, pela sua qualidade de trickster,
consegue reverter. Aqui, os Eenunai roubaram a forma primordial de veneno - likurumáhe, segundo
Mandu, o que os xamãs invocam hoje para entrar no mundo dos mortos; ou kaidali, segundo outros
narradores, que é areia branca normalmente associada com as praias de Hipana. Numa versão deste mito
Iaperikuli e fazem ele dar o veneno de Iaperikuli para eles. Sabendo que
uma fruta doce de cuia (uma das mesmas frutas, mathoaiali, invocada nas
remédio.
sobre passagens de vida, em que a figura é aquela que passa por uma
espiritual.36
irmãos, enquanto Mawerikuli, o mais novo, que disse que não ia à festa,
suas ações, ele se coloca numa relação direta e não-mediada com o mundo
reversível.
irreversível) e suas almas (acima da morte, por assim dizer, num tempo
volta, como se fosse da terra dos mortos, com o corpo cheio de veneno,
36
No mito de Kuwai, três iniciandos em jejum comem as frutas de uacu assadas, a 'carne'
de Kuwai, e são devorados por ele; um iniciando que não come e exerce controle sobre seus
instintos escapa da morte e completa a iniciação. Na segunda fase da iniciação, Kuwai
ensina a três pessoas os cânticos, kalidzamai, de pimenta a ser consumida pela nova
geração de adultos. No mito da anaconda, Uliamali, que explica a concepção e o nascimento,
a mulher de Iaperikuli come quatro peixinhos, o esperma da anaconda transformado, que ela
tenta vomitar depois. Porém, um peixinho fica em sua barriga e se transforma na anaconda
de novo.
256
Eenunai.
A acangatara de coruja
inúmeros maka; são como peles externas que cobrem-nos com um estado ou
A festa-de-saída de Mawerikuli
eles por sua avó. Em uma outra versão, cada um vomita o veneno (isto é,
que não é mais parte do social. Mais precisamente, ele é, de uma vez,
social.
37
Tanto Koch-Grünberg quanto I. Goldman mencionam a figura da coruja entre as máscaras de
dança usadas nos ritos de lamentação entre os Kaua e os Cubeo. Goldman anota que a coruja
"tem uma máscara cobrindo somente a cabeça. Leva uma tocha numa mão e um pau na outra, e
pula para cima e para baixo em imitação à coruja, pulando de galho em galho. Considerado
um devorador maldoso de pessoas." (1963: 251)
O nome Cubeo para Mawerikuli, Mawichicure, evidentemente tem raízes Aruak, pois
chicure significa cabelo, em Baniwa; o nome pode ser traduzido como "penas de garça" - de
novo uma referência a hinimai, presságios, pois a garça é um dos pássaros classificados de
kamainiri.
258
como as frutas de cuia xamanizadas pela avó, pois ambos revertem o tempo
iniciados.
começaria novamente.
ideal.
narrativas; por um lado, carregam consigo o poder da vida nova (pois dão
afins, os Eenunai).
vermelho, pouco depois de sua morte. Nos ritos de iniciação, uma relação
até choros mútuos pela morte de parentes. É justamente esta relação que
o mito focaliza.38
caraiuru, que é como um manto (maka) que faz com que pareçam onças. Os
38
Entre os Cubeo, Goldman menciona a relação de "amizade cerimonial" entre homens e
mulheres como um laço de 'sibling substituto' em que os parceiros se pintam mutuamente com
pigmento vermelho que eles chamam de "sangue".
260
elucidar:
sopra com força dentro da narina de seu parceiro xamã. Este "sangue de
última pincelada de caraiuru, ela vira sua mão e ele cai puro osso? A
e até com Inyaime, os espíritos dos mortos. Um mito conta, por exemplo,
jogou um beijo em sua direção. Ela entrou na água e viu seus parentes
seu contato com uma mulher menstruada "faz mal para o sangue" do xamã -
representa.
o espírito do morto. Em outras versões, ele tenta fazer sexo com ela,
provocando o desastre porque "ele tinha manhene e não podia mexer com
ciclo da vida.
mas é a queda dos ossos e o colapso total da estrutura cíclica com a sua
"gente que nunca nasceu", mas que num "outro fim do mundo" levantar-se-
ão), e as almas que se incorporam ao mundo do começo, mas que voltam (na
seguinte forma:
263
Mundo do Começo
Mawerikuli; mas depois de ter morrido três vezes, não há outra maneira
M: "Agora, meu irmão, eu não posso ficar mais (pois ele já está
I: "Não, eu não quero assim. Quando faz assim, faz mal para nós.
Agora tudo vai ficar mal para nós. Agora tudo vai ficar mal para a gente
depois de nós." (Aí, ele vai juntar de novo. Ele quase fica como gente,
cai de novo).
não morro, meu corpo fica neste mundo, este meu coração, eu estive aqui,
já está cansado).
repercussões cósmicas:
liga as camadas mais baixas às mais altas do cosmos. Para reverter esse
Nascimento
267
Introdução
existência post-mortem.
deste livro.
humanos.
"espera" das almas para seus parentes; e das identidades frátricas que
Hohodene, uma festa eterna de plenitude consumindo o mais puro mel, como
Kuwai fica (no centro do outro mundo). Compatível com a oposição entre
que leva o xamã para dentro do outro mundo, e que é o primeiro elemento
escatologia.
As Cançoes da Morte
Mawerikuli.
Keramunhe de Ucuqui explicou essa história e as orações e cantos que a acompanham e que são
Dzathe também.
Morto.
Voltou
‘Tente você’
Eles voltaram ressuscitados - trouxe seus corações de volta, trouxe de volta seus corações, longe
dos Kamainiri.
...
Assim trazem de volta seus corações, aqueles Kuwainyãi longe dos Kamainiri, eles falam.
É só,
Keruami de Uapui comentou que também há uma “canção de lamentação”, paidzaka, cantada
nos enterros para “afastar” as canções de lamentação dos recém-falecidos, que lembra, por exemplo,
quando os Eenunai vieram chorar para o falecido Kuwaikaniri, ou Mawerikuli. A canção, porém, também
se refere ao choro de Dzauikwapa, o chefe dos Eenunai que Iaperikuli não conseguiu matar. Enfim, todas
as mortes primordiais, os espíritos dos mortos kamainiri, e suas canções, kamaikana, são invocados nessa
canção e “afastadas” para não afetar os vivos. Uma parte dessa canção diz o seguinte:
[O choro de Kuwaikaniri]
Lidzashuna bda
[O choro]
[a guariba vermelha]
[O choro de Kuwaikaniri]
... [etc.]
272
A canção continua por nomear vários outros eenunai, todos eles kamainiri, cujas canções
kamaikana, o cantador procura expulsr, para que não prejudiquem os vivos, especialmente as crianças.
Desses dois trechos, vemos que a morte significa a presença perigosa dos espíritos dos mortos no mundo
dos humanos; portanto, os humanos procuram afastar as suas canções e, ao mesmo tempo, ‘trazer de volta
os corações’ daqueles que choram os mortos, longe da sua aproximação com os espíritos dos mortos.
Especificamente, isto significa ressuscitar as almas dos vivos, transformando a sua aflição
enviar. Se, por exemplo, ao enterrar o morto, cai terra nos olhos do
“...
...
Os presságios ou augúrios dos espíritos dos mortos são numerosos. Laureano, de Ucuqui
Cachoeira, uma vez me contou sobre uma experiência pessoal com um augúrio que o forçou a procurar a
ajuda de um pajé e também a aprender orações para se proteger contra esses hinimai. Um dia ele estava
273
andando na floresta e ele ouviu um assobiado distante; ele pensou em seu irmão falecido, e ele chamou
para o lugar onde ele ouviu o assobio. Veio um vento, e Laureano ficou com medo. Depois ele pediu ao
xamã Kudui que falasse uma oração e depois de fazê-la, Kudui avisou Laureano que ele não ia ser
envenenado com manhene, pois o grande perigo de um augúrio desses é que traz doença. Os kamainiri
são numerosos, Laureano disse, e podem ser encontrados em qualquer parte dos matos ou em roças
velhas onde não anda gente. Danaime, as sombras dos mortos, são uma forma desses, enquanto os
A oração que Laureano aprendeu para afastar desses augúrios revela a natureza da relação dos
acangatara de mestre-de-dança).39
39
Os kamainiri têm um aspecto consideravelmente mais temível do que esta lista
aparentemente inócua sugere. Há um mito sobre o hiwidamitha, um kamainiri de duas cabeças,
monstruoso, cheio dos horrores da morte: suas mãos saem inteiramente, dá veneno, é faminto
por peixe e sedento de água, mas finalmente é devorado por piranhas e pelo sucuriú. Se não
tivesse sido devorado, dizem, "a gente teria duas cabeças em nossos ombros e não uma". O
mito de hiwidamitha é comprido, mas só foi possível obter uma pequena parte dele.
274
mundo, "onde os rios não correm mais". Acima de tudo, ele procura negar
"deixar para seu corpo e sua alma" vários animais e pássaros predadores
parentes em luto.
também era uma preocupação nos rituais que tratavam inimigos mortos em
pelo olhar do morto. Além disso, nos casos raros de antropofagia, cantos
alegria.
perto do túmulo e depois migra para a "casa dos mortos", isto é, para os
ritual de dança com caxiri em sua honra" (1969: 166). De fato, o destino
276
de uma pessoa, em que a sua alma individual pode se perder no mundo dos
tauli), na mesma camada do cosmos de Kuwai. As casas dos mortos no Outro Mundo
têm os seus equivalentes nas ‘casas dos mortos’, ou liaruda, localizadas e terrestres, que pertencem a
cada fratria neste mundo. Assim os elementos da pessoa são assimilados aos três níveis principais do
Uma palavra de explicação sobre os dois elementos espirituais principais que sobem: Ikaale
espiritual com a alma patrilinear que une todos a uma fonte comum. O
Os Baniwa dizem que todas as pessoas são ligadas a esse cordão umbilical
céu de Kuwai.
onde as canoas das almas dos mortos se juntam e "deixam as suas famílias
para trás". O xamã, que guia as almas dos mortos, manda um vento
Inyaime kurara - e lá um caminho conduz ao lado, para baixo, até a aldeia de inyaime, que, uns dizem, é
um lugar de calor e sede intenso. Inyaime, como já disse, tem a forma de corpo humano morto mas sem
alma, um cadáver que vagueia neste mundo dando doenças aos humanos. É uma “sombra de Kuwai”
(pois Kuwai também tem a sua própria sombra de morte). Como tal, inyaime se manifesta como algo
lipekuka linewikika. É interessante notar aqui a simetria entre o “caminho” abaixo até Wapinakwa, onde
o corpo é jogado num buraco na terra e onde corre um rio de água fria e doce, e o “caminho” para cima
até o Outro Mundo, Apakwa, onde as almas são lavadas nos “buracos” de fogo e elas “jogam fora” a sua
Casa de urubu
Deles, eles, teus descendentes
Não voltes nem olhes para nós
Lá, tu fostes embora de nós."
(keramu iapuawa), canal do parto, que é uma descida que precisa ser
passagem final das almas dos mortos para suas casas, subindo pelo centro
fruta leve) para "não lembrar mais". Por que essas imagens e o que elas
dos vivos.
sentado com seus cotovelos colados com chiclete numa mesa, eternamente
jogando com as mãos, de um lado para outro, uma fruta leve (marudadali,
cantos são entoados num tom monótono, rápido e intenso, cada uma das
do cosmos, a maioria deles relacionada a Kuwai (por isso seu uso nos
ritos de iniciação);
cuja casca espinhosa, dizem, "puxa a criança para cima", impedindo a sua
o caminho", "como uma porta que não abre", podendo inclusive provocar um
natimorto.
que formam o invólucro externo das flautas, têm que ser "cortados" e
onde o cantador adoça a terra e a sua rede. Após uma semana de reclusão
para a família natal. Uma parte da pimenta é jogada no rio onde a mãe e
Todos os espíritos que podem afetar a mãe são "mandados para baixo",
para Wapinakwa;
seu olhar;
espíritos-pássaros e os espíritos-animais;
A morte cósmica
Kuwai, para ser usado nos ritos de iniciação; Iaperikuli tenta refazer
consolidar ossos quebrados, mas cabe lembrar que os ossos são essenciais
conserta ossos no céu para o mundo ficar bonito. Ele não pode deixar o
mundo cair. Quando as pessoas falam que o mundo vai acabar, o pajé olha
e diz: 'não, este mundo não vai acabar'. Quando consertar o osso, a
"Heeey, Yaaaaiii
Onde será que volta e caminha conosco
Nosso lugar-de-transformação
Seu lugar-de-transformação
Pai Dzuliferi
Nós nos transformamos entre nós
Seu lugar-de-transformação
Dzuliferi
Veja, ele procura
Ele procura seus ossos
Seus ossos
Mawerikuli
Onde será
Seus ossos, o inconsciente
Pois vai ser o que ele procura
Ele procurará e verá
Ele vê
O Mestre Eterno
Assim como foi
Começou para ele
O Mestre Eterno
Assim como foi, começou para ele
O Mestre Eterno
Veja, ele procurou
Ele abre
Seu mundo
Pai Dzuliferi
Assim ele procurou
Ele melhorou seu corpo
O Mestre Eterno
Iaperikuli Jaguar
Veja, ele virá
Ele transforma e vê
Ele vê seu povo, os Kuwaikere
Iaperikuli Jaguar
Veja, ele volta
Meu avô, meu avô
Meu avô, meu avô
Heiri
Veja, ele voltará
Ele transforma e vê
Meu avô, meu avô
288
Heiri
Heiri transforma
Veja, ele procurará
Veja, ele procura e vê
O Mestre Eterno
Ele volta e conserta
O lugar de conserto de seus ossos
O inconsciente
Veja, ele procurará
O osso de Kamathawa
Este osso
Veja
Veja seu osso-de-pariká
Veja, ele voltará
Aquele mesmo
Seu eterno osso
Osso-de-pariká
Iaperikuli Jaguar
Seu osso-de-pariká
O Mestre Eterno
Veja, ele volta aquele mesmo
Seu eterno
Seu eterno osso-de-pariká
Vistes que volta
Ele melhora seu povo, os Kuwaikere
Iaperikuli Jaguar
Veja o lugar-de-conserto dele
Veja o lugar-de-conserto dele
Iaperikuli Jaguar
Veja, voltará e ficará
Lá, seu lugar do centro
do céu, seu lugar do centro do céu
Veja, ele voltará e transformará
No céu do
Outro mundo, ele vem e conserta
Ele conserta e vê seu Kuwaikere
Seu Kuwaikere
Assim como no começo para ele
Nosso avô
Iaperikuli
Jaguar
Assim como voltou no começo para ele
O Mestre Eterno
Veja, ele volta e procura
Ele vê Iaperikuli
Jaguar
Noutro céu
Ele vem e fica
Ele vem e abre
No céu do outro mundo
Você vê, nós voltamos e ficamos
No céu do outro mundo
Veja, ele procurará e melhorará
Seu Kuwaikere
289
Iaperikuli Jaguar
Iaperikuli Jaguar
Você viu o mestre eterno
O Mestre Eterno
Seu lugar de conserto
Ali em seu mundo
Seu mundo
Iaperikuli Jaguar
Meu avô, meu avô
Nós vemos e ficamos
Nós vemos e ficamos Iaperikuli Jaguar
Nós vemos e ficamos, nós melhoramos seu Kuwainyai
Kuwaikaniri, Kuwaikaniri
Veja, ele volta
Ele melhora seu corpo eterno
Kuwaikaniri
Assim ele vem como no começo
Para ele, veja, ele vem
Aquele mesmo, seu osso eterno
Seu osso-de-pariká, sua imagem
Iaperikuli Jaguar
Veja, pego seu osso eterno, seu osso eterno
Eu procuro o que ele tem
Filho de Heiri
Filho de Heiri
Nós vemos e transformamos entre eles
Iaperikuli Jaguar
O Mestre Eterno
Ali, hiiiiiii
O seu ponto-do-mundo
Seu ponto-do-mundo antigo
Veja seu lugar escondido de antigo
O povoado de Kamathawa Jaguar
O povoado de Iaperikuli Jaguar
Vamos e ficamos entre eles
Pajé-onça-outro
Haaawww haaaaawwwww"
"O xamã anda com Dzuliferi e procura o osso de Mawerikuli. Ele o acha e
procura o osso de Kuwai. Deixa ambos com o osso quebrado para consertá-
osso, moldando-o com suas mãos, e depois ele chupa. Ele então procura o
osso de Kamathawa, o osso eterno, o osso de pariká. Ele junta este com o
osso consertado e faz o osso novo. Ele então procura onde está seu povo,
Kamathawa e o conserta de novo para a gente. Ele sobe até o ponto mais
xamã não pode deixar a gente triste. Quando o osso é consertado, eles
Wapinakwa, a camada mais baixa do cosmos. Esta abrir-se-á num "outro fim
reversibilidade do tempo.
transformando seu estado de colapso numa nova forma de ser. O xamã chama
vida.
uma viagem vertical rio acima até a fonte, os xamãs, diante da ameaça de
alto do cosmos.
resposta.
Em resumo, Parte III tinha três objetivos centrais. O primeiro foi de examinar as relações
entre o discurso mítico - particularmente aquele que diz respeito à destruição catastrófica do mundo - e a
ação social através de um estudo de caso extendido sobre uma seqüência de mortes na aldeia de Uapui
devido, segundo os moradores da aldeia, às ações de um feiticeiro. Não foi um caso atípico, como eu
século. No entanto, os xamãs de Uapui insistiram em vincular mitos sobre os feiticeiros primordiais e as
imagens catastróficas contidas neles à dinâmica de eventos na história recente da sua aldeia.
O segundo objetivo foi de examinar a relação de discurso mítico à experiência da morte - como
os mitos sobre a “primeira pessoa a morrer” moldam as percepções da tragédia, procurando explicar e
reparar a perda. Este, o que nos podemos chamar de, aspecto curativo do mito o vincula com uma série
de ações rituais - orações, cânticos, etc. - que administram a experiência da morte. De importância
especial nesse discurso mítico são as noções de tempo e os modelos míticos de temporalidade. Por um
292
lado, anotei a existência de um modelo cíclico de rejuvenescimento que os mitos sugerem como algo
potencialmente universal mas, diante da impulsividade de homens e mulheres como agentes históricos,
este modelo fica restrito aos xamãs. Esta é uma base para entender os poderes messiânicos dos xamãs;
isto é, existe no seu próprio ser um modelo cíclico de morte e rejuvenescimento. Para outros humanos, os
elementos da pessoa ficam reintegrados nos diversos níveis do cosmos e nas temporalidades implícitas
em cada um.
O terceiro objetivo foi de examinar a noção da pessoa no evento da morte e no Além Vida: o que
acontece com os diversos elementos da pessoa ? Em que sentido os elementos da pessoa são distribuidos
pelo cosmos e integrados em processos cósmicos, e em que sentido qualquer um desses elementos
‘voltam’ ? A ‘volta dos mortos’ é um tema importante para a consciência milenária ? Quais relações que
os vivos mantêm com os mortos, e quais são as preocupações dos vivos no que diz respeito aos perigos
que os mortos possam representar ? Por examinar uma série de orações, focalizei em alguns dos
processos críticos que identificam a noção da pessoa com processos cósmicos; a noção do “caminho” que
define a morte, o nascimento e a iniciação; e a preocupação dos vivos de se diferenciar dos mortos por
Esta Parte concentrou bastante atenção nas experiências de catástrofe - a morte, o colapso
regeneração, será o tema central dos próximos dois capítulos que exploram a relação entre a história, as
PARTE IV:
Ataíde diz que algum tempo atrás, um grupo Baniwa liderado por um índio
Aiary, onde foram detidos por Lino do SPI. Os missionários das Novas
Essa Parte procura entender a relação entre as preocupações milenárias que eu tenho
investigado até agora principalmente através da mitologia e ritual, e os movimentos religiosos históricos,
especificamente a conversão Baniwa ao protestantismo evangélico a partir do final da década dos anos
40. Este foi certamente um dos momentos mais significativos na história religiosa dos Baniwa,
comparável aos movimentos messiânicos do meado do século 19. No entanto, o movimento de conversão
foi radicalmente diferente no sentido de que rejeitava explicitamente tudo que tinha a ver com antigas
crenças e práticas. Vale a pena repetir aqui a pergunta que eu levantei no começo deste livro: Por que
Me proponho a examinar esta questão aqui em duas partes: primeiro, no Capítulo 7, através de
um estudo das situações históricas que antecederam o movimento evangélico e, através de testemunhos
oculares, uma reconstrução do movimento e dos conflitos gerados por ele; e segundo, no Capítulo 8,
através de uma consideração e interpretação dos discursos sobre o início da conversão, por diversos
atores que eram aqueles mais direta e profundamente envolvidos com o movimento.
296
e por mim na década de 70. Finalmente, os registros da missão salesiana de 1951 até os anos
80 são fontes extremamente valiosas e até agora não analisadas. Os registros só recentemente ficaram
época da minha pesquisa de campo não foram disponíveis nem para consulta.
Os pontos críticos a serem discutidos por toda essa história tratam dos
extrativista através dos tempos. Depois dessa discussão, apresento a minha reconstrução,
baseada em documentos e testemunhos oculares, da Sophie Muller como missionária, de como ela
REGIME EXTRATIVISTA
Cará tinham bloqueado o acesso para sua maloca com árvores derrubadas na
declaração que revela a posição exagerada dos chefes que atuavam como
40
Um neto de Germano Garrido, que mora atualmente em São Gabriel da Cachoeira, em 1992
relembrou como seu avô construiu seu império no começo do século:
"Meu avô [Germano Garrido] chegou aqui quando ele tinha 20 anos de idade e
gostou da aldeia de São Felipe, trouxe coisas para as pessoas de lá e se
casou com uma mulher dos Marabitanas. Ele ficou, ganhou muito dinheiro, era
um forte comerciante aqui, foi ele que abasteceu todo o Içana porque,
naquela época, as pessoas do Içana assim como as pessoas do Xié, andavam
nuas, só com tangas, eu mesmo vi isso... as mulheres só com aqueles saiotes
pretos, todos indecentes, e os homens com tangas, os meninos também, no Xié
e no Rio Içana. Havia alguns lugares... não havia nenhum comércio, havia
muito pouca troca entre eles. Assim, meu avô abasteceu todo o Içana, as
pessoas vinham comprar coisas dele, como sal, sabão, ele era um homem muito
rico. Ele trabalhava rio acima e mandava seus filhos, porque tinha muitos
filhos. Ele não tinha só uma esposa, o velho tuxaua do Rio Negro, o velho
espanhol tinha várias esposas. Ele chegou aqui e aqui ficou rico porque as
mercadorias vinham de seu país, para vender. Por isso ele abasteceu tudo
isso, sabe, todo o Içana era dele. Assim, ele controlava lá e os Albuquerque
controlavam aqui no Rio Uaupés naquela época. Mas eles eram cruéis, eles
maltrataram muito os índios..." (gravado por Márcio Meira em 1992, In “O
Tempo dos patrões”, M.A. tese em Antropologia, UNICAMP, 1993, pp.82-3).
301
pouco contato. Esse parece ter sido o caso dos índios Kaua (Maulieni)
vão continuar essa migração por várias décadas, como fizeram os Jibóia e
purupuru que deixava manchas brancas na pele. Esta doença, "causada por
boom da borracha, pois nenhuma das fontes escritas antes dessa época
isso sugere também que o sistema de ritual para interpretar e lidar com
Venâncio Anizetto Kamiko, o mais famoso messias dos Baniwa desde meados
do século XIX até sua morte na Venezuela em 1902 (Wright and Hill, 1986;
Hill and Wright, 1988). De acordo com Garrido, que não tinha grande
em grandes festejos."
um "homem de meia-idade, baixo e feio" que teria pouco a fazer com Koch-
Anizetto nitidamente tinha muito em comum com aquele liderado por Kamiko
41
Não encontrei ainda nenhuma informação adicional em qualquer dos documentos, anteriores
ou posteriores a essa época, sobre Anizetto. Quando Nimuendaju visitou o Içana em 1927,
mencionou, de passagem, a fama dos Hohodene do Rio Cubate, que eram conhecidos em São
Felipe por tratarem os brancos "com arrogância e grosseria", mas não fez referência ao
messias.
304
cinqüenta anos depois, padres católicos foram atacados com facas pelos
tudo, parecia haver uma forte distinção entre os Baniwa do baixo Içana,
Camarões, o chefe explicou que tinham sido feitas por "Cristo" e que
Violência e Terror
Funes dominaram a área até San Carlos del Rio Negro, no sul, e dizimaram
77):
Além disso,
Içana até sua morte em 1921, desafiando qualquer um que questionasse sua
Grünberg, 1969, vol. 2: 13). Como Garrido, ele tinha subido ao poder
orais dos índios Desana do Rio Tiquié não deixam qualquer dúvida de que
áreas do Brasil - teve menos êxito. Na maior parte das vezes, a agência
"A ação do SPI, aqui, assim como em muitas áreas isoladas, torna-se
exploração dos índios, pelo menos evita que sejam explorados por todos.
127)
309
Nimuendaju, 1950).
Seja como for, tudo isso significa pouco para os Baniwa do Içana,
pois nem o SPI nem os Salesianos firmariam sua presença naquela região
conhecido por seu mau trato dos índios e que foi morto, pelos próprios
pai como "delegado dos índios do Içana", designando chefes locais para
"Eu tinha mais ou menos 15 anos quando vim para o Brasil. Naquela
época [1918] houve um homem branco que veio de São Fernando ou abaixo e
e amarrava suas mãos em suas costas. Meu tio, que era capitão, foi pego.
ele estava escondendo pessoas. Minha tia, sua esposa, que me criava,
'revoluções'. Eu fui criado por minha tia e meus dois outros irmãos por
meu avô. Esse homem branco da Venezuela atacava com soldados armados.
alto para o médio e baixo Aiary. Quando Nimuendaju visitou esses Kaua,
década de 20, estava infectado com malária, que havia dizimado no mínimo
o SPI estimou que a população nos rios Içana, Aiary e Cuiary totalizava
1913, umas 200 pessoas; em 1927, Nimuendaju acreditava que elas estavam
tapuya no baixo Içana, era constituída, em 1917, por esses povos e pelos
líderes das aldeias, eles lhe respondiam com desconfiança, com "terror
em seus rostos": "aqui não há nada" (ibid.: 128). Posteriormente ele foi
divulgando que depois dele viria um branco que tomaria nota de todas as
andar em direção à casa do tuxaua, onde sua família estava fazendo uma
314
Mas havia outras maneiras com que os Baniwa tratavam tanto ele
"O índio vê em qualquer pessoa civilizada com a qual ele trata uma
índio por meio de tratamento fraternal e justo. Mesmo aos atos mais
(ibid.: 173)
volta da década de 30; mas inúmeros outros produtos serviriam nos anos
Baniwa.
Uma vida de incessantes idas e vindas, como José, o Hohodene mais velho
dos rios Cuiary e Içana, por Adélia de Oliveira em 1971 (de Oliveira,
que governava essa relação, já que sempre tinha, era a "conta" - bens
obtidos a crédito e pagos pelo trabalho - mas quem ficava com a conta e,
patrão, para uma área, e seus pais para outra. Anos se passavam antes
tradições messiânicas dos Baniwa durante essa época, uma vez que as
não haja mais menção alguma ao movimento de Anizetto, nem aos xamãs
como rota potencial para o norte da África que evitava o, naquela época,
para servir aos interesses de guerra e aos interesses das três nações
1943: 124)
seguinte:
11)
atender as pessoas que moram nas mil milhas entre Puerto Ayacucho e o
borracha. Por outro lado, os salários podiam ser bons, se alguém não os
320
pelo menos no alto Rio Negro" (Carvalho, 1952: 63). Após a morte
pegar pessoas. Mas isso não funcionou. Depois disso, muitos comerciantes
vieram. Acho que eles deram dinheiro para o delegado." (In de Oliveira,
1977: 72)
seus conflitos com patrões (Meira, s.d.: 91-2), e era conhecido por
321
utilizando
indígena [do Xié] que lhe servia e que, em troca, manipulava a posição
mesmos índios que são assistidos por essa agência." (citado In Meira,
op.cit.: 93)
Ela teria dramáticos efeitos sobre os povos indígenas dos rios Guainia,
para, em suas palavras, "uma tribo indígena antes inalcançada nas selvas
De pai alemão católico e mãe protestante, Sophie Muller era, de acordo com a opinão geral, uma
mulher extraordinária. Como vou mostrar na minha interpretação da sua narrativa missionária, Beyond
Civilization, ela tinha um espírito pioneira e corajosa com claras tendências messiânicas. No Prefácio a
seu livro, o Diretor da Missão Novas Tribus (MNT) declarou que a principal contribuição que ela fez era
de “abrir o campo da Colombia para nós enquanto Missão,” trazendo o Evangelho a vários povos das
“Depois de deixar a costa dos Estados Unidos para Colombia, os primeiros seis meses agitados
foram gastos, mais ou menos, testando a paciência de uma missionária médica diligente na cidade de
Pasto, que me acolheu na sua casa. Sabendo que Deus tinha me mandado para América do Sul para
alcançar uma tribu cuja língua era desconhecida e não-escrita, fui sozinho - por falta de companhia
“Depois de meses de viajar pela Colombia por caminhão, cavalo, barco e canôa, procurando
estação de selva da Cruzada Mundial de Evangelização (World Evangelization Crusade) entre os índios
Cubeo do Rio Cuduiari. Lá eu aprendi muito sobre tribus ainda isoladas, inclusive sobre os Kuripakos,
“No final de três semanas de viagem, terrível para um novato, em canôas indígenas e em trilhas
no mato, cheguei num dos maiores assentamentos Kuripako chamado Sejál, no Rio Guainía. Fui recebido
com grande interesse pelos nativos and comecei a trabalhar imediatemente na sua língua. As experiências
que seguiram este primeiro contato me levaram, através de muito tentativo e erro, a formular um plano
viável para alcançar esse povo. ...” (Muller, 1952: 7; minha tradução)
Depois de três anos no Guainía, em 1948 Sophie resolveu estender o seu trabalho aos Baniwa no
Brasil. Fez duas viagens, separadas por um ano, a primeira ao Cuiary e Içana, e a segunda ao Içana e
Aiary. Entre as anotações de campo não-publicadas do Eduardo Galvão, encontrei de forma avulsa um
mapa desenhado à mão (ver pág. seguinte)aparentemente produzido por Sophie Muller, localizando todas
as aldeias que ela visitou nessas duas viagens, com os nomes de alguns de seus principais interlocutores
Baniwa e Curripaco escritos no mapa. Em 1949, ela extendeu a sua missão de evangelização aos Cubeo
Seus discípulos, cada vez mais numerosos, levaram a nova religião a povos vizinhos - os
Puinave, Guayabero e Piapoco. Os Puinave e Piapoco por sua vez evangelizaram os Guahibo, Cuiva e
1950, liderou um movimento de massa dos Baniwa pelo baixo Içana cantando
O entusiasmo gerado por seus discípulos logo atraiu a atenção de outros agentes de contato que
tinha interesses na região. Primeiramente, das missões salesianas. No início dos anos 40, depois de criar a
missão de Tapuruquara, ou Santa Isabel no Rio Negro, dirigida por Padre José Schneider, os Salesianos
conseguiram a missão Batista em Iucaby perto de São Gabriel da Cachoeira a fechar. Quase como uma
espécie de vingança demoníaca, acreditavam os Salesianos, os Protestantes logo voltaram para invadir o
“Empenhados com a nova missão salesiana de (S. Isabel) iniciada em 1942 para neutralisar a
propaganda dos Batistas do Colégio de Jucaby, perto de Uaupés [São Gabriel], os Salesianos
conseguiram, com a graça de Deus e com o visível auxílio da Mãe Celeste, quase plena vitória. Neste
AFLUENTES
minando todo o território do rio Içana e seus afluentes com o veneno da heresia...”
Os Salesianos tinham feito muito pouco até então no que diz respeito à assistência ao povo do
Içana e seus afluentes e, de certa forma, sentiram que eles tinham deixado o caminho aberto para a
penetração protestante. Eles reconheceram o tremendo sucesso com que Sophie Muller havia introduzido
a doutrina evangélica:
Protestantes, sobretudo a Americana Miss Sofia Müller, desdobraram grandes atividades, que degenerou
“Traduzindo com certa rapidez os 4 Evangelhos e quase todas os epistolos em língua indígena,
ensinando aos mais habilitados a leitura, fazendo se crer como uma enviada por Deus, conseguiu os
melhores sucessos. Em todas as povoações, com pouquíssimas exceções, foram construidos templos de
culto, e por longas horas de noite e de manhã, se reuniam todos os índios, cantando e lendo na língua
própria.” (ibid.)
Além da perda evidente de uma população considerável, o que mais preocupava os Salesianos
foi a propaganda explicitamente anti-católica da Sophie que, segundo os padres, a levou a “arrancar as
medalhas de Nossa Senhora do pescoço das crianças enquanto, em outras povoações, se encontravam as
Altas autoridades salesianas da Prelazia do Rio Negro determinaram em 1950 que a situação
exigia combate direto. Como eles fizeram com a missão Batista de Iucaby, os Salesianos mandaram o
veterano Padre José Schneider para escolher um lugar no Içana e construir uma nova missão católica. No
início do ano seguinte, depois de consultar com o chefe local dos Oalipere-dakenai Leopoldino,
Schneider começou a preparar o terreno para a missão de Assunção, ou Carara-poço, no baixo Içana.
Os Salesianos, porém, não foram os únicos preocupados com o movimento protestante; logo o
S.P.I. ficou envolvido. De fato, o S.P.I. no nível nacional cada vez mais se preocupava com a presença
crescente dos missionários das Novas Tribos no país. Não por causa de seu trabalho de evangelização e
alfabetização na línga nativa, mas por causa da sua presença em áreas de fronteira e a ameaça implícita a
segurança nacional que isso representava. Em resposta a um pedido de informação sobre a MNT feito
326
pelo governo da Venezuela, o Diretor do S.P.I. José da Gama Malcher escreveu que, diante da
“exige a concentração, em nosso país de alguns milhares de missionários. Ora, até hoje foi
possível ao S.P.I. exercer vigilância de que a lei incumbe sobre as atividades da New Tribes Mission, mas
o poderá fazer quando ela cobrir todo o nosso território com seus navios, aviões e o mais que virá,
E mais ainda:
política do povoamento e nacionalização que está sendo frontalmente contrariada pela New Tribes
Mission. O direito de cataquese pela pregação e pelos atos de culto não os autoriza a entrar pelos
territórios mais despoliciados do Brasil para aí exercerem uma ação educadora que a Constituição veda a
estrangeiros. O Brasil não pode abrir mão da atribuição de tornar brasileiros os seus filhos índios e
sertanejos que, em virtude de seu atraso, somente o são por terem nascido no território nacional.”
No Içana, o delegado do S.P.I. Ataide Cardoso formalmente registrou várias queixas contra os
métodos que Sophie usava para evangelisar. Uma das queixas foi que gerava conflitos e divisões internas
nas aldeias, como no rio Cuiary e alto Içana onde Cardoso, em sua visita para lá no início de 1953, notou
“desunião que vem causando nas aldeas, uma senhora de nacionalidade norteamericana, que
atende pelo nome de Sofia, que se diz Missionária protestante a qual manda retirarem-se das aldeas os
indígenas que não aceitam o seu credo, o que não está de acordo com o regulamento do Serviço de
Uma segunda queixa, talvez mais grave do ponto de vista do S.P.I., dizia respeito a sua
resistência contra a autoridade do governo na região. No início de junho de 1953, o Delegado da polícia
municipal pediu que Cardoso trouxesse Sophie rio abaixo a São Gabriel para uma conversa, “para
investigar as denúncias existentes” feitas contra ela (possivelmente pelos Salesianos e possivelmente
porque ela não tinha documentos para evangelizar no país). A estória que Cardoso contou de seu encontro
com ela revela mais uma das suas aventuras lendárias que, mesmo nos anos de 1970, os índios lembraram
próximo a Cachoeira de Tunui, e distante desta cidade tres dias a motor, dei-lhe ciência da intimação da
autoridade policial, pedindo-lhe que aí aguardasse o meu regresso, para ser conduzida a presença do
Delegado que exigia a sua presença afim de defender-se das denúncias de que era acusada. Dona Sofia
Muller fingiu aceitar a intimação e logo após a minha saída tripulando uma canoa com cinco remadores
indios, fugiu, passando por mim altas horas da noite, enquanto pernoitavamos no remanso da Cachoeira
de Tunui, onde do lado de cima da cachoeira, conseguiu com os indios outra canoa, seguindo até a aldeia
de Tajuba (na Foz do Cuiari, afluente do Içana) onde renovou a tripulação, seguindo dia e noite pelo
Cuiari acima até alcançar território Colombiano, percorrendo assim o mesmo itinerário quando,
Terei ocasião no capítulo a seguir para mostrar como esses incidentes foram transformados no
discurso mítico Baniwa fazendo as aventuras de fuga da Sophie Muller parecer como a fuga messiânica
do Kamiko do meado do século 19 que também fugiu das autoridades várias vezes a um assentamento de
refúgio na floresta ao norte do Içana. Também notável é a lealdade dos Baniwa para com Sophie, ao
ponto de rejeitar a autoridade do S.P.I. Cardoso de fato recomendava que seria melhor que o S.P.I. não a
deixasse voltar para o Içana por um período de pelo menos dois anos, pois a agência encontrava-se
“menosprezado pelos índios, devido a interpretação erronea que dão aos ensinamentos da
Missionaria Protestante. Tenha-se como exemplo o ocorrido agora na Cachoeira de Tunui, onde
precisando de gente para transportar a sorva para o remanso e passar o motor e o batelão, pedo ao
Tuchaua que me conseguisse cinco homens para nos ajudar. Qual não foi a minha surpresa ao saber que
os indios se recusavam a obedecer ao pedido meu e ordem do Tuchaua (coisa que antes nunca
que os indios se recusavam a ajudar-nos com receio de desgostar Dona Sofia (quando viesse a saber da
Diante dessa recusa, Cardoso agiu “com energia” usando a autoridade do S.P.I. para mandar um
número suficiente de índios a ajudá-lo no transporte, embora que admitisse que saiu mais caro pois teve
De novo, acredito, há um paralelo que podemos traçar com os outros movimentos messiânicos
na história Baniwa. Os discípulos de Kamiko, segundo as histórias orais e fontes escritas, da mesma
forma se recusavam a submeter ao governo e autoridade militar, pois o messias convenceu os seus
seguidores a lhe darem toda sua lealdade pois se quebrassem esse pacto, teria severas conseqüências.
Sophie Muller parecia repetir este padrão, ou pelo menos assim pensavam inicialmente seus seguidores.
Em qualquer caso, ela despertou expectativas formidáveis entre seus discípulos, criando uma
situação difícil de controlar com que outros missionários evangélicos que chegaram depois tiveram que
deparar e tentar controlar. Estes procuravam colaborar com o S.P.I. e os católicos - pelo menos assim
Depois da sua fuga em 1953, Muller nunca mais voltou para evangelizar os Baniwa no Brasil.
Ela fixou residência na Colombia onde, apesar das perseguições sofridas por seus colegas da MNT e do
ILV (Instituto Lingüístico de Verão) pela Igreja Católica e autoridades governamentais, ela trabalhava
A pesquisa excelente realizada por David Stoll sobre os missionários evangélicos na América
Latina (1982), na qual entrevistou Muller em Bogotá em 1975, sugere que a sua política de criar
comunidades separatistas de ‘crentes’ de fato possa ter ajudado os índios a resistir a violência de
as atividades do Instituto Lingüístico de Verão e a Missão Novas Tribos em 1974, um ponto fundamental
da sua doutrina era de ‘convencer os índios de que qualquer contato com o ‘homem branco’ leva à
condenação de suas almas. ... [argumentando] que a vida indígena altamente comunal é o que Deus
quer. ... Ela sempre luta para impedir os índios de adquirir ... os vícios mais comuns dos colonos.’
Diferente das missões católicas de estilo hacienda, Muller treinava os pastores indígenas e nunca
Durante o caso de Planas nos anos 60 e 70, quando fazendeiros cercavam e confinavam os índios
locais, ordenando aos Guahibo construírem uns 500 metros de cerca que
tribunal que ela tinha chegado na sua propriedade com 200 pessoas armados de arcos e flechas e
espingardas. Sob suas ordens, os índios trabalhavam dia e noite para construir uma cerca de 500-metros,
Não que ela ficou do lado nem do movimento cooperativista Guahibo nem dos missionários
católicos reformados que procuravam ajudar os índios. Como ela mesma explicou a Stoll, o organizador
“No Livro de Revelações há duas bestas, ela explicou, uma vermelha e a outra branca. Uma vai
dominar o mundo e a outra é a falsa igreja. ‘A primeira deve ser os Comunistas,’ ela disse, ‘são os únicos
que querem dominar o mundo inteiro, e a outra deve ser o ecumenismo.” (ibid.)
No entanto, as estrategias que ela ofereceu para confrontar as corrupções e a violência do mundo
dos Brancos com certeza eram um motivo importante para seu sucesso nessa área. Em relação aos
Baniwa, pelo menos, ‘evitar os Brancos pois levaria à condenação de suas almas’ também foi um
do século 20.
Pouco depois que o entusiasmo milenário inicial no Içana tinha se acalmado, várias comunidades
Baniwa do baixo Içana, perto da nova missão católica especialmente, começaram a re-avaliar a nova
religião e, descontentes, voltar aos velhos costumes. De fato, o jeito excêntrico da Sophie já tinha
alienado muitos ‘crentes’ desde o começo, como mostrarei através de depoimentos Baniwa citados no
próximo capítulo. Essa ‘apostasia’ acontecia não somente no Içana mas também em muitos outros
lugares onde ela implantou igrejas; como Stoll relata, pela metade dos anos 70,
“o império de Muller estava desmoronando ... Os convertidos estavam se rebelando contra seu
autoritarismo. Também tinha mais competição efetiva do que antes. ‘Influência ?’ Muller respondeu,
‘Não tenho mais. Isto é uma coisa do passado quando eu podia mandá-los a fazer algo e eles me
seguiriam. [Outros forasteiros] estão chegando por todos os lados agora, bandos inteiros estão voltando a
seus velhos costumes.’ Ela se mostrava especialmente desgostosa com os Guahibo e Cuiva ... Quando
330
Muller voltou a uma aldeia Guahibo perto de Planas em 1974, somente três famílias ainda eram fiéis. As
outras tinham se pintadas e estavam dançando as danças. Elas não a deixavam ficar na aldeia, e um
Da mesma maneira, movimentos de reafirmação étnica entre os Cubeo do alto Vaupés, segundo
o antropólogo Irving Goldman, minaram a posição da MNT pelos anos de 1970, embora que ainda se
Apesar da perda de sua popularidade, Muller ainda era bem-recebida no Guaviare onde ela
permanecia até a sua morte no início dos anos 90. Durante mais de 40 anos de trabalho evangélico no
Noroeste Amazônico, ela tinha traduzido o Novo Testamento em três línguas e trechos em oito outras,
ensinando muitos de seus adeptos a ler e escrever em suas próprias línguas. Ela tinha treinado centenas de
pela região inteira. Mesmo nas áreas que ela nunca mais visitou, tais como o Içana, Cuiary e Aiary - os
índios guardavam um lugar bem-iluminado dentro das suas memórias dos primeiros momentos do
Os católicos, por sua vez, já tinham estabelecido uma base no baixo Içana, a missão de Assunção
em Carara-poço, dirigida inicialmente por José Schneider e em seguida por Carlos Galli, com vários
outros padres os substituindo por períodos curtos. Durante os anos, os católicos tentavam, embora sem
sucesso, de abrir caminhos catequéticos nas áreas de aldeias Baniwa dominadas pelos protestantes. Uma
leitura cuidadosa dos diários da missão salesiana durante os últimos 40 anos revela uma seqüência de
estrategias para trazer os Baniwa para dentro do rebanho católico - em sua essência por tentar criar um
novo conjunto de alianças com os militares brasileiros que poderiam de fato remover os protestantes de
seu lugar privilegiado. Nessa luta para as almas dos Baniwa, os missionários Salesianos e Protestantes
desde o início da década dos 50 até o meado dos anos 60 travaram guerras de propaganda que forçaram o
A propaganda protestante durante toda a década dos anos 50 provocou grande consternação na
parte das autoridades da Igreja Católica. Diante das provocações constantes, o Bispo do Rio Negro fez
331
apelos às autoridades estaduais e municipais no sentido de ‘reagir,’ pois o que o movimento protestante
representava, segundo ele, era acima de tudo uma “ameaça verdadeira e real a paz, a tranquilidade
pública e ao trabalho normal das fronteiras.” Assim, os missionários salesianos recomendavam que os
Protestantes fossem removidos do território nacional, “como já foi feito em relação à iniciadora do
movimento, Sophie, que foi expulsa do Brasil.” Mesmo a violência era um meio legítimo diante da
servir de alavanca poderosa neste urgentíssimo trabalho de reação mesmo, - às vezes pendentemente
violento, quando as circunstâncias o aconselharem: vai nisto a defesa de todo o nosso trabalho ... que
atrevimento e audácia, e de sua propaganda e de sua violência neste rio, assim como da ameaça iminente
de sua penetração em outros rios, com o desmoronamento dos frutos de quase quarenta anos de trabalho
Uma acusação tão grave e um apelo à consciência nacional como esta produziram resultados
entre os militares poucos anos depois. Em 1961, no mesmo ano que a Força Aérea Brasileira inaugurou
uma pista de pouso na missão em Carara-poço, militares de Cucuy no alto Rio Negro visitaram o Içana
“para averiguar a propaganda dos protestantes na região e tomar as devidas providências.” Eles
removeram Henry Loewen - um dos pastores mais responsáveis para as guerras de propaganda e as
provocações - retirando-o da área para depois apresentá-lo, junto com outros pastores protestantes, ao
Exército em Manaus. Aparentemente os pastores foram proibidos de voltar ao Içana o que era um motivo
para os católicos festejarem: “Parece que a Providência Divina deseja facilitar a conversão dessa gente do
salesianas - S.P.I., para ser exato, iniciou a sua aliança por vacinar uns 500 Baniwa em abril de 1961. No
mesmo ano, os Salesianos inauguraram o primeiro internato no Içana com uns 40 alunos Baniwa. Os
padres acreditavam que “afastados dos Protestantes, esses serão os futuros propagandistas da verdadeira
religião.” (Diários Salesianos. 15-10-62) Enfim, o caminho estava aberto, segundo o Bispo, “para
intensificar um apostolado para ver se, pouco a pouco, recuperemos o que foi perdido.” (ibid., 24-09-61)
332
Confiante nas possibilidades, o inspetor salesiano João Marchesi em 1963 recomendou uma série
de medidas a serem adotadas para avançar o trabalho missionário rio Içana acima, entre as quais
Protestantes tinham construídos a sua base; a aprendizagem da língua Baniwa para poder evangelizar
melhor, da mesma forma em que os Protestantes tinham conseguido com tanto êxito; bons tratos com os
crentes, procurando atraí-los a se converterem à fé católica; e “enquanto os crentes que pedem de voltar a
ser católicos, serão batizados de novo e antes do batismo, terão que se confessar publicamente aos erros
da seita e terão que devolver todos os livros da mesma.” (Diários Salesianos, 20-04-63)
Apesar dessas medidas enérgicas e altas expectativas para sua expansão, até o fim da década, as
coisas pareciam acontecer o contrário do que os padres esperavam. Um missionário escreveu em 1964,
por exemplo, que somente através de um “milagre” seria possível “reconquistar um campo que foi
perdido.” A missão de Assunção parecia sofrer de forma crônica da escassez de suprimentos, comida, e
força elétrica. Menos gente compareceu às missas; vários casos de bruxaria foram constatados, em que as
vítimas, próximas à morte, se recusaram a receber os sacramentos. Vários casos do que podemos chamar
de ‘problemas disciplinários’ (por exemplo, uma turma de meninos que fugiu do internato) criaram
situações de tensão entre os Baniwa e o Diretor da Missão, Carlos Galli, que usou medidas repressivas e
punitivas para controlá-los. E são poucas as indicações nos Diários que os Baniwa procuravam se
converter a Catolicismo.
Já pelo fim da década, os registros deixam uma impressão nítida de que a missão estava
escassamente funcionando, com poucos padres e freiras em residência. A visita inspetorial salesiana de
“Com a saída das Irmãs em fins de 1967 e a permanência de um só sacerdote por parte dos
salesianos a missão foi praticamente fechada. Isto é lastimável ! Onde florecia dois internatos numerosos
encontramos um grupinho de alunos externos. Onde crescia abundantes plantações, cresce o matagal e as
fruteiras vão se extinguindo pela fúria das saúvas. Um rio infestado pela heresia protestante necessitava
“Dá pena ver tanto esforço dos irmãos ficar reduzido a um punhado de construções despovoados
e a lavoura abandonada. E as almas ? Não valem mais que os caprichos dos homens ?” (Diários
Salesianos, 1969)
Apelos desesperados para socorro foram feitos às autoridades mais altas da igreja no Rio Negro,
“para compreender a situação lamentável em que deixaram este povo reduzido de Deus.” (ibid., 1971)
Talvez, pensava um inspetor, a imensidão de tarefas ainda a serem realizadas entre os Tukano no
Uaupés e seus afluentes, tivesse impedido uma presença mais efetiva no Içana. Como sempre tem
acontecido na longa história das missões católicas no alto Rio Negro, os povos do Içana e seus afluentes
comunidades evangélicas permitindo que elas continuassem a elaborar a nova religião numa forma que
era peculiarmente delas. O mais que os missionários católicos podiam fazer era de atender os sinais de
evangélica. A Missão Novas Tribus, por sua parte, segurou suas próprias bases na boca do Içana e em São
Gabriel e ocasionalmente visitou as comunidades ao redor de Jandú perto da boca do Aiary. Dessas bases,
os pastores norteamericanos mantinham contatos através de cursos de treinamento e contatos com os fiéis
que vieram visitá-los. Mas os conflitos e as guerras de propaganda, com eu as descrevi, de certa forma
implantaram e marcaram diferenças de identidade religiosa entre os Católicos e os crentes que têm
Conclusão
messiânica entre os Baniwa que data no mínimo dos meados do século XIX
Baniwa ao mesmo tempo que ofereciam uma solução para a dominação pelos
brancos.
políticos.
Neste sentido, pode ser visto como uma revolta contra a opressão
para os patrões, isso acontecia por sua própria escolha e não porque
pelas guerras de propaganda entre os protestantes e católicos, e da campanha pelos católicos, sustentada
pelos militares, de extirpar e substituir a influência dos protestantes, as vicissitudes da missão católica e
uma resistência silenciosa na parte dos Baniwa contra a reconversão solidificaram o evangelismo como a
A Missão de Sophie
"Um povo sedento queria beber. Eles não sabiam que o que poderia
quem Deus tivesse revelado isso - para levar isso adiante." (1952: 14)
"A única coisa que você sabe é que você é uma das almas nessa
adiante que não sabem. (...) Eles têm de ser alcançados e a eles tem de
País celeste e cuja voz está soando em nome da mensagem de Seu Rei."
(ibid.: 41)
me pergunto o que Ele nos dirá sobre todos aqueles corações que foram
340
preparados para receber Sua Palavra, mas a quem nunca foi contada? Ele
"Eu rezei em voz alta para que o Senhor os libertasse das garras
do Diabo de modo que eles pudessem rezar, e então, parece, alguns deles
tomar posse de cada um, para que o Diabo não volte ao poder e 'o último
Trazer-lhes 'luz':
(...) Pois é estranho quão separado alguém pode ficar das dores físicas,
quando o Espírito Santo está usando você como um canal para o Senhor."
(ibid.: 31)
sobre a Segunda Vinda e sobre o fim do mundo. Era exatamente o que eles
precisavam para darem uma olhada para cima e quebrarem seu amor por este
primeira aldeia em que ela pôs os pés no Cuiary, ela se deparou com
luto. Muller diz que lhe contaram que estas eram "pessoas más, elas
danças:
para outro no compasso das notas abafadas que emitiam para fora e
(vide p.35) como "oopinoi Satana", isto é, "Satã dos tempos antigos":
"Elas são dos velhos tempos, dizem eles; desde o começo da raça. Eu
disse a eles que foi o Diabo, que se disfarçou de anjo reluzente, que
"Eu nunca vi povo como esse antes, que sentisse tão agudamente que
que tantos deles estão nas garras da morte em vários estágios." (:24)
Muller chegou aos Baniwa com a idéia de que o Diabo era Inyaakaim,
feiticeiros é oposto ao dos parentes, cuja viagem termina nas casas das
"Se vocês forem para a aldeia de Inyaakaim, vocês verão Judas Iscariotes
lá; mas se forem para a aldeia de Jesus, verão todos aqueles outros que
O amam." (: 9)
Guainia, ela quase viu "Kuwai (o Diabo)", quando ao ouvir "um gemido
índios disseram-lhe,
nos matar! Eles são pretos; parecem animais, mas são pessoas, pessoas
más." (:45)
rituais Kuwaipan. Talvez por isso, para Sophie Muller, Kuwai era uma
para "arrastar para longe" seus convertidos - sem dúvida afetavam suas
envenenamento.
diferente da dos Kuripako, uma vez que são todos manchados com manchas
"febre fatal", que os fez recorrerem a seus xamãs para pedir ajuda.
48) Tais declarações, no entanto, devem ser lidas com cuidado; afinal,
seu evangelismo tinha como dogma central "o triunfo de Cristo sobre Satã
para "fixarem os olhos nas coisas de cima, não nas coisas da terra; pois
vocês estão mortos, e sua vida está escondida com Cristo em Deus." (:23)
Quando Sophie veio pelo alto Içana com uma mensagem que apelava
Iarakaim no baixo Içana, o chefe pensou que ela tinha "vindo do céu":
"espíritos do diabo", livrar sua roça de formigas, etc., etc. 'Está tudo
certo para falar com o Diabo?' perguntaram. 'Para que vocês querem falar
52)
mesma aldeia, não mais crente, havia construído uma capela católica com
"Minha aldeia era chamada New York, mas aquela não é mais minha
Outro Mundo.
Seguindo a lógica de que ela era "do Céu", eles contavam com seu
com barro vermelho nas paredes" (:53).43 Calculava que até então ela
43
As 'cabanas' ou 'abrigos' tornaram-se as famosas 'capelas' ou 'templos' de Sofia que
Galvão observou, em 1954, dispersos ao longo do Içana. A capela em Embaywa, escreveu
Galvão, tinha um aviso colocado na porta, "Igreja Evangélica", e "pregada na parede uma
grande cruz com as seguintes palavras escritas em geral: "Ele deu Seu sangue por nós" na
viga vertical e o nome de Jesus na horizontal. E também uma folha de papel com uma oração
em espanhol." (Galvão, anotações de campo)
Os abrigos e as cabanas que eles construíram para ela eram de certa forma como as
pequenas casas ou abrigos construídos para a "dona da aldeia", uma figura chave na
celebração dos tradicionais rituais de troca pudali. A "dona" (pudali iminaro) assegurava
uma colheita abundante; da mesma forma, muitos líderes da aldeia pediam para Sofia fazer
suas hortas crescerem bem.
347
que fazia sentido para eles - como um curador. A maneira como praticavam
suas mensagens sobre "hwaniri Dios" (Nosso Deus Pai) nos termos de
origem divina e que o que ela ensinava era a chave do conhecimento dos
para reforçar essa crença: Felicia do alto Içana, "uma jovem índia muito
dialeto; Alberto "verdadeiro líder material e podia ser uma força para
outros.
"Elas dizem que um padre de São Gabriel mandou que eles fizessem
meu abrigo há mais ou menos um ano. Ele só ficou uns dias, disseram
sobre o Catolicismo. Espero que o padre fique longe até que os índios
com medo", que ela atribuía à cultura deles. Sua tarefa era libertá-los,
ou seja, destruir sua cultura (o que ela admitiu abertamente; ver Stoll,
seu trabalho, ela admitiu o que pensou ser o entusiasmo dos Baniwa com
sua presença. Pelo menos no baixo Içana, ela foi recebida de uma maneira
salvadora). Ela reforçava essa imagem, mas, quando ficou claro que
ela não era do céu. Como os padres, Sophie percebeu que os Baniwa
Segundo os Padres
Amazonas, no Içana.
influência. Foi uma região em que, pelo menos desde a época de Koch-
ele pagava bem aos índios. Em resumo, através de suas ações ele
Padre José:
- nunca recuse o que lhe é oferecido em troca ... Mesmo se fosse uma
cuia de tapioca, Padre José pagava alguma coisa em troca. Quando não era
anotações de campo)
contrário. Por outro lado ele deixa ficar claro, em suas atitudes, sua
competição com Padre José. Em seus sermões ele declara que o Padre não é
(ibid.)
Vários incidentes nos quais, por exemplo, Galli pagou mal aos
índios por serviços levava-os a concluir que, apesar de seu sermão, ele
evangélicos.
Padre José era considerado um "xamã muito poderoso" (1956: 435) que
assim como em qualquer outro lugar do Rio Negro, eram celebradas por um
evitavam fazer incursões por uma situação que estivesse muito fora de
tinha tido uma longa conversa com Sophie pouco antes dela ser forçada a
"uma dama com um pouco mais de 30 anos de idade, muito educada, que
as imagens dos santos porque elas foram cobertas por lama que os crentes
"Sofia veio para o Içana, pois ela tinha feito uma promessa de
evangelizar em uma área em que ninguém tivesse estado antes. Ela veio da
Colômbia para o Brasil sem quaisquer papéis, de modo que, quando o SPI
353
"Ela falou para os índios que era enviada por Deus e recebia
ordens de Deus para evangelizá-los. Entre outras coisas que ela falou a
porque, disse ela, Adão foi tentado pelo fruto. Ela disse para não
precisavam deveriam vir do céu. Assim, ela nem comerciava com eles nem
Anotações de campo)
católicos era dito que eles não podiam comer com os crentes e não podiam
eles. As vidas dos padres foram ameaçadas diversas vezes. Alguns crentes
anotações de campo).
354
Na verdade, nos diários das missões salesianas, ficamos sabendo que em janeiro de 1957, uns
pastores protestantes visitaram a missão católica e deixaram uns ‘livros’ [talvez as suas traduções do
Novo Testamento ?] com Galli. O Padre “percebendo a malícia dos visitantes queimou os livros na prais
na presença dos índios. Os pastores deixaram a missão em gargalhadas.” Esses mal tinham saido, porém,
quando aconteceu um desastre: os pastores encostaram seu barco para esquentar comida mas o fogo
provocou uma explosão no barco que destruiu todo seu equipamento. Padre Carlos resgatou os pastores
De acordo com ele e Padre José, ambos foram atacados com facas em
"está no sangue deles." Mas por que acreditariam no que Sophie disse?
Saake relata:
"Após a morte de sua mãe, que ele não conseguiu evitar, tornou-se
tão desgostoso com o xamanismo que nunca mais o praticou, jogando seus
trajes no rio. Outro xamã contou-me o mesmo, que depois de sua conversão
355
rituais evangélicos. Galli citou casos que, ele disse, aconteceram durante os rituais mensais de
“Santa Céia”, quando os batizados tomam um suco de frutas feito de assaí, uma bebida parecida como
vinho que os evangélicos chamam de “o sangue de Christu.” Esse ritual é supostamente “um tempo de
esperar Jesus.” Os fiéis fecham seus olhos e cobrem seus rostos para rezar. No meio desse momento mais
sagrado, segundo Galli (e vários Hohodene), feiticeiros têm colocado de forma escondida veneno na
bebida matando 3-4 pessoas num desses rituais. Se isto for a verdade, então é mais uma indicação de que
os rituais evangélicos vieram a substituir os rituais de pudali e Kuwaipan, ambos ocasiões quando
Os padres assim explicaram a conversão dos Baniwa em termos de suas próprias noções da
pastores protestantes da área, o “espíritu fanático diminuiu e eles [os crentes] estão
a bruxaria como uma das principais razões por trás de sua conversão.
Mas como é que os crentes, católicos, ex-crentes, xamãs, e outros lembram de, e interpretam o
contrabruxaria ?
Segundo os Baniwa
estão relacionadas com suas proibições e ordens para que mudassem seus
fosse tão grande quanto ela alegava. Foi nada menos que uma ruptura
Porém, como mostrarei, a forma da transformação como foi lembrada é em grande medida
definida pela dinâmica de processos políticos e rituais. Quando realizei pesquisa de campo no Aiary,
mais de uma geração tinha passado desde o começo dessa transformação, e as minhas primeiras
impressões eram que as divisões entre crentes e católicos já tinham se solidificadas em dois modos
distintos de vida. Os crentes enfim tinham forjados uma espécie de utopia concreta em que os
Vou também examinar em detalhe, através de um estudo de caso, os confrontos entre pastores e
um profeta poderoso do alto Aiary, Kudui - sobre quem já falei várias vezes neste livro - como um caso
realço os motivos que os Baniwa citaram para a sua conversão - os aspectos positivos de se tornarem
crente - e os motivos para deixarem a fé - as falhas, por assim dizer, na utopia que os evangélicos
queriam estabelecer.
Talvez a primeira observação que eu fiz dos modos-de-vida distintos forjados pelos crentes foi
durante uma viagem-de-canoa que eu fiz para fazer um levantamento das aldeias do Aiary. Em Loiro-
poço, perto da boca do Aiary, eu e os meus guias ficaram por um fim-de-semana durante o qual os
pastores evangélicos nativos visitaram o rio Quiary, um tributário do baixo Aiary inteiramente populado
pelos crentes. Vieram para evangelizar, ou ensinar “Deo iako,” a “palavra de Deus” ao povo de Loiro-
poço.
358
missão católica do Içana que conduzia a comunidade em orações diárias e missas semanais. Uma
situação curiosa e, sabendo um pouco da história dos conflitos religiosos nessa região, eu esperava
Os pastores, ambos educados e afáveis, fizeram questão de determinar o meu objetivo em vir e
visitar. Eu expliquei meu projeto e meu interesse na história - ‘como as pessoas viveram no passado e
hoje.’ Por sua vez, eles me falaram da sua missão. Eles frequentamente viajavam para evangelizar.
Ambos os pastores conheciam a “Dona Sofia” e ambos tinham aprendido a cantar com ela e seu sucessor
“Henrique.” Na verdade, notei durante a cerimônia religiosa que eles realizaram mais tarde que ambos os
pastores não só liam mas também tinham um conhecimento impressionante do Novo Testamento e
podiam responder a perguntas da assembléia com facilidade. O povo de Loiro-poço ouviram as suas
sermões atentamente e responderam (os crentes Baniwa de fato referem a sí mesmos como hliepakaperi,
Um dos pastores, porém, era visivelmente perturbado pela minha presença e, depois da
cerimônia, sinceramente tentou determinar porque eu não conhecia pessoalmente os pastores americanos
no Içana, porque eu não era um crente, e porque eu não pegava um pouco da literatura deles
(reprendendo severamente álcool e tabaco) para estudar ? Quando eles perceberam que eu não tinha
compromisso, a questão foi esquecida e eles concluiram que eu era alguém “do governo,” um
representante da FUNAI.
O dia seguinte começou com os pastores cantando na madrugada, seguido por uma cerimônia
protestante. Depois o professor católico conduziu a ‘missa’ semanal(isto é, uma leitura do missal). Eu
perguntai ao professor o que ele pensava dessa situação dual - fez alguma diferença ? Ele respondeu que
ele achava que a única diferença que existia entre os católicos e os crentes era no uso que os católicos
faziam da cruz e das medalhas representando os santos, mas que “só existe um Deus para ambos, então
A situação então parecia marcada por tolerância, pelo menos em Loiro, e mesmo entre os
crentes, dizia-se que havia vários modos diferentes de “ser crente”: um aprendiz ainda não batizado; um
batizado mas ‘meio-crente’(isto é, de vez em quando participa em festas de dança e fuma tabaco);
359
estudando com o missionário para se formar como pastor ou diacono. Mas seria um êrro tomar Loiro-
poço como típico da situação religiosa, pois significa ignorar as memórias inumerosos da transformação
radical e os conflitos que sucederam e que, de vez em quando, explodiam em maneiras incômodas. Os
crentes tinham, no final das contas, forjados uma identidade distinta dos católicos com marcas visíveis
daquela identidade que eles procuravam manter. Essas ficarão evidentes nas afirmações que agora vou
apresentar.
aldeia de Sant’Ana no baixo Içana, onde Galvão realizou pesquisas de campo em 1954. Sant’Ana tinha
uma história e uma composição populacional peculiar, segundo Galvão. Desde a época de Nimuendaju, a
aldeia ficou dividida entre dois sibs (“Maracajaí” e “Jurupary-tapuya” em lingua geral), uma divisão que
já pelos anos de 1940 ficou cristalizada por uma separação espacial - cada grupo morando numa parte
distinta da aldeia (essa divisão espacial até levou Galvão a suspeitar a existência de metades sociais).
Além disso, a população da aldeia era bastante grande, tendo crescido de 40 a 50 pessoas em 1927-8, a
umas 20 casas (talvez 150-200 pessoas) em 1948-9 - a maior aldeia no Içana no início dos anos 50 - o que
marcou ainda mais a separação sócio-espacial dos dois sibs. Os informantes de Galvão deram versões
conflitantes sobre a natureza dessa rivalidade: um falou que o que estava em jogo era uma disputa sobre a
sucessão de chefe; Ernesto e o então chefe, porém, concordavam que os dois sibs eram “irmãos” (isto é,
parentes agnáticos, pertencendo à mesma fratria) mas disputavam sobre rank (isto é, quem era o irmão
mais velho).
É interessante nesse contexto, então, que as divisões religiosas entre Católicos e Protestantes
também se deram ao longo das mesmas linhas das divisões sociais. O sib chamado “Jurupary” que
alegava ser o “irmão mais velho” e que tinha ocupado o cargo de chefe da aldeia, ficou conhecido como
o “grupo da Sofia,” enquanto o outro sib, que tinha assumido a chefia, os “irmãos mais novos,” ficou
identificado como o “grupo dos Padres.” Ernesto que era do “grupo da Sofia”, tinha deixado evangelismo
Sofia. Recebeu a Bíblia e, toda noite, aprendia com João. Ele não
aprendeu a ler; ele aprendeu a ouvir. Sofia foi a Sant'Ana duas ou três
vezes, poucos dias cada vez. Ao anoitecer, ela ia para as matas dizendo
dela. Um dia seu filho estava brincando e Sofia chegou e perguntou quem
era seu pai. Ela advertiu-o [Ernesto] que ele devia ensinar ao menino
que ele não prestava, que ele não estava pensando santo. Ela pensou que
o menino estava fazendo algo indecente, mas ele era uma criança, ele só
estava brincando.
"Ela disse que os meninos não prestavam porque não pensavam santo
não ia querer os meninos porque eles não prestavam. Era melhor amarrar
sobre o que o padre havia ensinado que não se pode matar as pessoas,
pois elas não iriam para o céu. Ela continuou a dizer que as crianças
não prestavam, e ele não achava certo ordenar-lhes matar crianças. Ele
foi falar com o padre, que lhe disse para esquecer Sofia, que ela estava
mentindo.
"Outra coisa que ela dizia era que as pessoas só deveriam 'pensar
pensavam santo. Ele também não gostou daquela parte sobre não ter
filhos, e ele não tinha certeza sobre o negócio de maridos serem como
ou coisa parecida. Mas Ernesto está mais do que convencido de que ela
“Padre José levou vantagem, pois só restou dois crentes, Inocencio e seu genro. Mesmo assim,
esse último pediu que o Padre batizasse seu filho. Para dar uma idéia da compreensão da doutrina pelo
povo aqui, basta dizer que Ernesto é um dos informantes mais inteligentes que eu tenho, que tem
assimilado com facilidade os meus objetivos em tais áreas como parentesco, a origem e divisão dos
Podemos especular sobre o sentido dessas afirmações, sem nunca ter a certeza de porque eles
eram motivos suficientes para o povo de Sant’Ana deixar o evangelismo. Galvão nos deixou algumas
pistas quande se referiu às contradições óbvias entre a moralidade puritana da Sophie e as normas sociais
Baniwa: por exemplo, a abstinência sexual entre casais e as relações fraternais entre esposos violariam as
tradições contra incesto entre “irmãos”, pessoas do mesmo sib, e regras de casamento exogâmico.
relativa a matar meninos? Reconhecendo que tinha muitas coisas excêntricas que ela disse e
fez, esta afirmação no entanto parece ser uma interpretação na parte de Ernesto. De um lado,
isso indicaria que Ernesto interpretou sua advertência como uma inversão
que aparecerão no fim do mundo). Por outro lado, matar crianças é um ato
percebeu, Sophie preparava-os para o fim do mundo, mas não para um outro
futuro.
Outro detalhe pode ser notado nas declarações do Ernesto: as andanças noturnas da Sophie, que
eram verdadeiras (ela as menciona várias vezes no seu livro). Os católicos Hohodene que eu entrevistei
atribuiu essas andanças, de novo, como momentos de inversão típicos de bruxas; falaram que na floresta,
ela se transformava no ‘demónio-sem-cabeça’, Inyaime hmewidane, e que depois, seus braços, suas
Assim, pelo menos para os crentes descontentes de Sant’Ana nos anos 50, existia contradições
cosmológicas, evidentes e não resolvidas, na nova religião: o que Sophie parecia pregar era Apocalípso, e
não Paraíso.
O segundo conjunto de declarações vem dos Hohodene da aldeia de Ucuqui Cachoeira (ou,
Kuliriápan) do igarapé Uaraná no alto Aiary, que contavam para mim inúmeras vezes estórias da Sophie,
do Henrique, dos anciãos crente do Quiary, e dos conflitos entre os crentes e o xamã e profeta Kudui, que
A primeira fala veio das minhas conversas com Laureano, então chefe de Ucuqui, um católico
mas que - na época da visita que Sophie Muller fez ao Aiary - se converteu em discípulo da nova
religião. Uma das suas filhas, de fato, chama-se “Sofia.” Ele falou sobre vários aspectos do movimento
muita gente para o rio para fazê-lo. Ela ensinava Deo iako. Ela tinha muitos discípulos.
363
Mas se você não era batizado, os crentes não deixavam você entrar na capela para rezar. Depois, muita
gente queria ser crentes. Hoje, só tem um ou dois que sobraram aqui.
numa aldeia Cubeo. Ela cumprimentou-me e logo quis que eu ouvisse mais
Deo-iako. Ela nem mesmo me deixou comer antes. Ela falou e falou, mas eu
casar com ela, mas ela não o deixava aproximar-se dela, e ameaçou-o com
crentes."
Ao se referir a suas diferenças de opinião com os crentes, Laureano me contou que uma vez ele
falou aos crentes de Canadá que “o tabaco foi nos dado por Deus, como as nossas histórias dizem,” e que
os crentes não podiam proibí-lo. Deus também “nos deu todos os animais para comer, para a nossa
comida.” Ele lembrou que os anciões crentes do rio Quiary andavam pelas aldeias contando para as
mulheres sobre Kuwai e sobre “a casca dele e como parecia.” Uma vez eles foram para a aldeia de
Seringa Rupitá no alto Uaraná (onde o povo de Ucuqui antigamente morava), e um ancião ia falar, mas
ele “ficou com medo e ficou calado” sem dúvida por causa do xamã Kudui sobre quem falarei mais
44
Henrique, ou Henry Roland Lowen, começou a evangelizar no Içana, em 1953/54. Após a
expulsão de Sofia do Brasil, a NTM enviou John Stahl, que ficou no Içana apenas dez dias,
sendo substituído por Lowen e sua esposa Anita, uma lingüista. Galvão descreveu Lowen como
um
"camarada alto, louro, de origem alemã. Um tanto cru na fala e mais ainda na
organização Baniwa, ignorando a divisão em clãs e o dialeto. Ele pretende falar,
ou melhor, fazer seu primeiro sermão em Baniwa dentro de seis meses. Ele levou dez
para fazer um em português." (Galvão, anotações de campo)
364
adiante. Algumas canções dos crentes, Laureano lembrou, tinham o refrão, “Quando vocês vão deixar
Kuwai ?”
Finalmente, Laureano lembrou incidentes quando crentes abandonaram a fé; por exemplo, ele
conhecia um ancião crente que sabia bem as canções, mas como resultado de algumas pessoas colocando
veneno, manhene, dentro do “sangue de Christu” a bebida de assaí que os crentes tomam durante a
“Santa Céia,” o homem resolveu deixar de ser crente e voltar a dançar pudali.
ritualmente marcar a transformação pelo batismo no rio; os conflitos e as contradições entre os novos
assembléias na maloca de Uapui e depois na maloca de Querary, anunciadas com antecedência por
mensageiros que chamaram as pessoas de aldeias distantes, e que essas fossem assembléias milenárias.
Mais notável ainda é a sua admiração pela capacidade que Sophie tinha de falar Deo iako, a fala de Deus,
em várias línguas, transcendendo as especificidades dos dialetos locais, aliás uma característica comum
O próprio lugar da primeira grande assembléia, Uapui, também tem um sentido importantíssimo
para os Hohodene, que o consideram como o “centro do mundo” sagrado. Sophie entendeu um pouco do
sentido mítico do lugar (que ela desenhou em seu livro) e entendeu que, atacar o centro - demonizá-lo,
como na expressão que ela colocou no seu mapa, se referindo a Uapui como “oopinoi Satana” ou
“Satanás dos tempos antigos” - seria uma estrategia chave para conversão.
O ritual e a ideologia que Laureano (e outros) lembravam que realizaria essa transformação era
basicamente batismo no rio, uma espécie de iniciação que produziria o hiato entre os crentes e os não-
crentes, iniciados e não-iniciados, os de dentro e os de fora; Deo iako, ou a “fala de Deus”; e o processo
ritual. Laureano menciona as incapacidades dos crentes de ‘proibir’ nem mesmo reprimir a crença e
prática - as orígens divinas de comida e tabaco e sua legitimidade mítica; o segredo das flautas e
365
trombetes sagrados, Kuwai, que era suficientemente forte de forçar os anciões crentes a ficaram calados;
e o segredo de veneno que era suficientemente forte de estragar o ritual evangélico de beber o ‘sangue de
Christu.’ Em relação ao último mencionado, Laureano parecia dizer que, enquanto os crentes proibiam
caxiri, a fraqueza de seu próprio ritual como mecanismo para gerar a ‘felicidade’, ou a solidariedade
A menção que Laureano fez ao caso do ancião crente que abandonou a fé por causa de manhene
é importante e é um dos motivos mais frequentamente citados pelos índios por abandonar o evangelismo.
morrer".
Foi a força dos xamãs e, em particular, do profeta Hohodene Kudui, da aldeia de Ucuqui, e ‘tio’
do grupo de descendência a que pertencia Laureano, que deteve o avanço e a consolidação do movimento
de conversão da Sophie sobre o alto Aiary, como ela mesma reconheceu em seu livro Beyond
Civilization.
"Ele sabia de eventos que tinham acontecido longe de sua casa, ele
sabia quem estava chegando para visitar, ele entendia de doenças e tinha
a força para vencer marecaimbara. Sua casa era cheia de coisas altamente
366
valiosas para os índios que lhe eram dadas como pagamento por suas
de uma doença que quase o matara. Em seu sono, sua alma tinha ido para
as casas dos mortos, onde ele foi avisado por Iaperikuli que ele não
morreria. Outro xamã, Kumadeyon do povo Dzauinai, famoso por "saber até
mais que Kudui", curou-o. Desde então, a alma do sonho de Kudui, sempre
eventos por acontecer. Por isso seu poder para a profecia e para o
divino, para avisar as pessoas sobre doenças. Segundo Mandu (um ex-
aprendiz a Kudui), ele tinha capacidade para "dizer que não haveria
ele.
"verdadeiro centro do mundo" era uma ilha de pedra logo acima das
Iaperikuli. No entanto, segundo Mandu, "ele não morreu, ele ainda vive e
as pessoas rezam para ele através de Deus". Como para o profeta Kamiko
do século XIX, as pessoas traziam oferendas para seu túmulo e pediam sua
proteção.
367
Kudui, pelas pessoas, são expressas em termos cristãos. Dizem que sempre
que as pessoas entravam em sua casa, elas antes faziam o sinal da cruz.
Glória!" enquanto ele dormia, e ele dizia para as pessoas que "a cidade
cristandade em termos que faziam sentido para os Baniwa. Por essa razão
crentes.
Uma vez, lembrou João, os anciões crentes do alto Içana vieram pelo
Quanto a isso, Kudui avisou que a própria Bíblia era um "bom livro", mas
casa de Kudui com a intenção de matá-lo, mas, segundo João, Kudui sabia
que eles queriam "dar-lhe veneno, manhene". Ele disse a eles que sabia,
pois "Deus avisara-lhe, e eles ficaram com medo e foram embora". Para
Felizmente os Hohodene do alto Aiary tinham Kudui para defender as suas tradições contra os
ataques dos crentes. Em outras comunidades, Sophie e seu discípulos introduziram graves desavenças
sobre os xamãs que induziram vários deles a abandonar a sua prática e se converter. Sobre Uapui, Sophie
disse:
“Os índios me falaram que alguns de seus bruxos não vinham me ver, mas três deles já aceitaram
o Senhor, acredito. Um deles com muita sinceridade. Ele queria saber o que ele deveria fazer com a
pedra que supostamente veio de Zooli [Dzuliferi] e lhe dá autoridade para praticar a bruxaria.
lembraram este momento de ‘abandonar’ o xamanismo por jogar seus instrumentos no rio. Numa
comunidade, Graciliano, um ex-crente afirmou para mim, com muita amargura, que: "Costumava
haver muitos xamãs no Aiary, mas foi Sofia que ordenou-lhes a pegarem
Graciliano se referiu a vários de seus parentes de comunidades vizinhas que eram ex-xamãs
convertidos. Eu entrevistei vários deles que revelaram que o seu conhecimento das tradições míticas e de
cura não foi totalmente suprimido, embora um ancião se desculpou por não poder narrar exatamente,
Abuso verbal e por escrito era uma outra tática frequentamente usada na guerra declarada dos
crentes contra xamanismo. Logo no início da minha pesquisa de campo, fiquei chocado de ler o seguinte
369
texto de canção num panfleto dos crente impresso em português: “Brasil é contra álcool / Tabaco é um
pecado, / O pajé é mentiroso / O pajé é do diabo.” Várias pessoas em Uapui confirmaram que as canções
dos crentes eram usadas como propaganda contra os xamãs. José Felipe me contou de um parente
Hohodene do baixo Aiary, que era conhecido por seus ataques contra os
xamãs do Uapui, alegando que eles eram fraudes ("eles só colocam pedras
abandonar a fé.
mesma maneira em que eles falavam de ‘abandonar’ o xamanismo e o Kuwai. Em aldeia após aldeia no
Aiary, um pouco de pesquisa na história recente das mudanças religiosas revela que as pessoas se
“ “ “ - “ “ - a ‘half-crente’ (ou)
“ “ “ - “ “ - a não-comprometido.
Para voltar aos depoimentos Hohodene, apresento agora um terceiro testemunho, um xamã
Hohodene de Uapui, Edu, que lembrava os conflitos ativamente, já que ele estava diretamente envolvido
que elas eram ídolos. Disseram que as coisas materiais viriam do céu.
qualquer outra coisa. Eles não falavam com José [naquela época, chefe de
comigo e disse: 'quando você morrer, sua alma irá para o Inferno.' Eu
disse a ele: 'não, quando eu morrer, meu corpo ficará na terra, e minha
"Uma vez Sofia foi levada para a prisão em São Gabriel, mas fugiu à
que não sabiam onde ela estava. Assim, eles desistiram de procurá-la,
O tema proeminente de seu discurso é sobre o exclusivismo radical dos crentes - seres
absolutamente anti-sociais, do ponto de vista do Edu, em sua recusa de observar as regras sociais mais
básicas de se comprimentar, de falar com o chefe, e de tratar as pessoas bem, além de chegar cheio de
promessas mas que não podiam cumprir. Coerente com a condenação por Sophie da
religião dos Baniwa, Lowen radicalizou a separação dos crentes e dos não-
ameaçadas.
Tudo isso produziu um estado de conflito interno entre as comunidades Baniwa que ia muito
além de uma questão de diferenças religiosas, articulando-se com antigas hostilidades, feitiçaria, e
assassinatos por vingança. Eu sugiro que a ruptura violenta pelos crentes com o passado os projetou a um
371
estado de sociedade anterior à formação de alianças sociais, quando predominanm a violência e a lógica
de vingança.
solidariedade (Journet, 1988; Wright, 1990). Por isso, dizia-se que eles
O último depoimento pelos não-crentes é de Mandu, xamã e então chefe de Uapui e um dos
meus principais interlocutores na aldeia. Os discursos de Mandu sobre os crentes demonstraram, por um
lado, o seu entendimento das mudanças morais positivas que os crentes tinham introduzidos e com as
quais ele estava de acordo e, por outro, as limitações ou inviabilidade das mudanças sociais que eles
propuseram.
Em várias ocasiões, ele falava bastante sobre os missionários das Novas Tribus que ele conhecia,
que tinham ensinado Deo iako, e como ele era um amigo da Sophie Muller, e de outros. Ele falava de
como ela viajava pela região inteira, parando em Uapui e Tunui Cachoeiras, e como ela resolveu ficar em
Venezuela com os Curripaco e Puinave. Falava que ela tinha um ‘companheiro’ chamado Correa, que
andava junto com ela; e como ela foi para San Fernando de Atabapo e ele a Colombia no Querary. Ela só
ensinava Deo iako e mandou o povo de Uapui ‘parar de beber porque quando vocês bebem, sai brigas
Ao falar das ‘conferências dos crentes’, Mandu descreveu em detalhe como se realizavam, que
eles eram ocasiões de grande consumo de comida e de troca de comida através do ‘capitão.’ De como
372
tem ‘soldados’ que guardam as portas da casa e que quando alguém queira sair, tem que pedir permissão.
De como as pessoas cantam começando ao anoitecer e continuando noite a dentro. E de como os anciões
Sobre esses casamentos, porém, Mandu citou casos em três aldeias do Aiary onde havia
‘curumis’ (meninos) que se casaram com moças mais velhas nas Conferências, quando o pai do menino
pede a mão da moça. Numa aldeia, um curumi casou-se com uma moça mais velha mas o menino era
jovem demais para fazer qualquer trabalho pesado, como cortar árvores para fazer roças, daí a moça não
o quis e o deixou.
Finalmente, Mandu notou que a Sophie mandou as pessoas construirem outras casas, de parar de
morar em malocas, mas que “o povo não a obedeceu, porque ela não ajudava a fazer as casas.”
Mandu reconheceu assim os aspectos positivos das proibições que Sophie fez, como maneira de
recuperar a união entre irmãos, que o álcool tantas vezes destruia. Em várias ocasiões durante a minha
estadia no campo, Mandu martelava no fato de que ‘antigamente,’ tinha muitas brigas por causa da
embriaguez. Mandu e seus irmãos também admiravam de certa forma a organização ritual das
Conferências dos crentes, ocasiões de abundância, como as festas de pudali, com uma estrutura ritual de
autoridade controlada por eles. Uma assembléia cristã totalmente transformada e assimilada à
política de exclusivismo de sustentar unidades sociais e econômicas viáveis. Crentes só podiam casar-se
com outros crentes, o que acabava desorganizando a estrutura de intercâmbio marital entre comunidades
and produziu distorções nas diferenças de idade entre esposos. É interessante observar como vários
interlocutores se referiam aos problemas de relações maritais entre os crentes. Lembre-se como o
Mandu também criticava a falta de liderança política na parte da Sophie: ela mandou as pessoas
construirem casas novas mas, diferente do modo Hohodene de realizar projetos, ela não tomou a
iniciativa de produzir a mudança. Mais uma vez, foi a incapacidade dos crentes de produzir unidades
373
sociais e econômicas viáveis - casas - que enfraqueceu o projeto evangélico, pelo menos entre o povo de
Uapui.
Os depoimentos que ora apresentarei dos crentes refletem várias coisas: que existiam fortes
motivos morais para a conversão, e que os conflitos entre os crentes e católicos eram provocados tanto
pelos Padres quanto pelos pastores. Admite-se que uma boa parte das suas tradições foi perdida como
resultado da conversão; por outro lado, os crentes durante o tempo forjaram um modo de vida
relativamente compatível com as suas expectativas religiosas. Hoje, muitos deles reconhecem que não
existe mais o mesmo entusiasmo como no “tempo da Sophie” mas que é um modo de vida relativamente
estável da qual muitos crentes não querem abrir mão, pois lhes dá satisfação como tradição. A situação é
relativamente mais tolerante o que, além de permitir diversos graus da fé, e a possibilidade de abandoná-
No início dos anos 70, a antropóloga Adélia de Oliveira recolheu uma série de histórias de vida
dos Baniwa do Cuiary e do baixo Içana. Vários desses se referem aos contatos entre os padres e a Sophie
Muller nas décadas dos anos 50 e 60, e aos conflitos gerados pela situação religiosa. Um homem
relacionava esses conflitos a conversão, e vale a pena citá-lo aqui: chamado Eduardo, ele era da fratria
dos Adzanene, nascido em Maçarico no baixo Içana mais ou menos em 1935, mas morava em Nazaré na
época da entrevista. Conforme seu depoimento, em 1940, uma epidemia de sarampo matou metade da
Aproximadamente no final dos anos 40, a família de Eduardo mudou-se para Carara-poço onde os padres
estavam construindo a nova missão, e Eduardo foi um dos primeiros alunos do Padre José Schneider.
“Cortei madeira para fazer casas e cortei caraná para cubrir as casas. O Padre me ensinou a
religião. Me confessei e recebi comunhão. Fiquei com o Padre uns dois anos.
“Depois disso, fui a Nazaré. Voltei a Carara-poço. Aqui em Nazaré, ouvi pela primeira vez a
“palavra de Deus” falada por Mário. Quando voltei a Carara-poço, Padre Carlos começou a ralhar
comigo. Então resolvi vir morar aqui. Baixei e fiquei na casa de Guilherme. A minha família ficou em
Carara-poço. Depois eu vendi tabuas para Padre José, e Padre José pagou menos porque ele ficou com
374
raiva de mim. Depois disso, fui de novo a Nazaré, para assistir a Santa Céia. Depois da assembléia, voltei
a Carara-poço e Padre Carlos ralhou muito comigo. Voltei a Nazaré para morar aqui porque Padre Carlos
e Padre José não queriam que os crentes morassem lá e eu estava ficando crente. Preferia ser crente
porque gente de lá bebia, apesar do que o Padre falava, e porque o Padre ralhava comigo e aqui nós
crentes não brigamos. Fui batizado com os crentes por Mário, e depois comecei a fazer uma casa e roça.”
Em Santarém, uma comunidade crente de cerca de 20 pessoas, 2-3 horas de canôa rio abaixo de
Uapui, eu entrevistei o pastor Nocêncio e seu irmão Marco, que se dizia ‘meio-crente.’ Santarém era uma
comunidade que me surprendeu, como eu disse, porque apesar de todas as críticas que os católicos de
Uapui faziam da “transformação em brancos” defendida pelos crentes, Santarém parecia para mim como
uma das aldeias mais tradicionais que já tinha visto no Aiary(no sentido de mostrar uma influência
mínima da sociedade não-indígena). Os avós idosos deles, por exemplo, moravam num abrigo aberto
feito de caraná e se vestiam com artigos tradicionais (uma saia cumprida para a mulher, um cueiro para o
homem). Marco e seus dois irmãos eram excepcionalmente bem-instruídos em cânticos de cura e mitos -
a única coisa faltando era tabaco e caxiri. Mas ele eram crentes: quando Padre Carlos passou pela aldeia,
Nocêncio e seu irmão Erminio não desceram ao porto para cumprimentá-lo. E não fazia mal nenhum para
os homens falarem abertamente sobre Kuwai e as flautas sagradas (isto é, para as mulheres e crianças):
“no passado,” Marco disse, “foi ruim, mas hoje não faz mal para as mulheres e crianças saberem.”
seus avós para trás. Então obedeçam as seguintes regras: não fumar ou
roubar suas coisas. E não ter sexo, pois é melhor ficar solteiro.' Mas
eu sou meio-crente. Eu fumo um pouco e bebo caxiri. Esses são meus dois
únicos pecados."
375
sugeriríamos, pode ser uma chave para compreender a conversão dos Baniwa
Baseio essa sugestão nas seguintes semelhanças entre o que Marco lembrava da mensagem da
Sophie, as suas ‘ordens’ de mudar, e as instruções feitas por Kuwai aos meninos durante a primeira
iniciação: "Deixem tudo de seus ancestrais para trás", disse ela - do mesmo
natal para trás para ouvirem sua "fala", a "verdadeira" música de Kuwai.
sagradas dos homens. Essa geografia sagrada (ver Wright, 1993) cria o
mapa - mostra todos os lugares em que ela tinha ensinado "Deo-iako" para
Seguindo essa linha de pensamento um pouco, seria útil avaliar aqui a questão de se e em que
Venâncio Kamico; vide Wright & Hill, 1986). Há uma vaga semelhança entre
Informações recentes que eu obtive, porém, indicam que pelo menos algumas comunidades
crentes do Içana lembram da Sophie em termos parecidos como das histórias orais sobre a figura
trabalhando no Içana, “dizem que ela foi jogada no rio dentro de um caixão fechado. Dizem que foi os
próprios Baniwa que tentavam matá-la. Ela sobreviveu todas essas tentativas, porém. Por outro lado, eles
declaram que a chegada da missionária foi prevista pelos xamãs.” (comunicação pessoal, 1996) Outros
relatos não-confirmados indicam que os rituais dos crentes do alto Içana têm incorporados a figura de
Temos aqui uma transposição direta da imagem de Kamiko (ver Wright & Hill, 1986) na figura
de Sophie com uma diferença importante, porém: “foi os Baniwa que tentaram matá-la,” mas ela
sobreviveu todas as tentativas indicando que ela, uma mulher branca, foi atribuída poderes xamânicos
extraordinários. No entanto, isto não confirma qualquer qualidade messiânica igual a Kamiko.
cabeça e, finalmente, ela voava para longe. Por outro lado, há várias
“a sua lenda é que ela não era realmente como uma mulher qualquer: era considerada
absolutamente casta, ela não menstruava, e ela só comia pequenas quantias de leite em pó. Eu encontrei
um homem que me falou que ele recusava a seguir o ensinamento da Sophie Muller porque ele ficou
Junto às imagens de Amaru como uma forasteira ambulante, que deixa a música de Kuwai no
mundo, sugiro que exista uma base para as associações entre Sophie e esta figura mítica, mas como uma
transformação deste modelo e não a sua reprodução. Mais exatamente, da ‘lenda’ citada acima, ela tinha
378
os atributos de uma pajé mulher: os detalhes de que ela “não menstruava”, que ela jejuava, e que ela era
virtualmente um ser asexual - todos seriam consistentes com o que uma mulher teria que ser para ser um
O último depoimento é do irmão do Marco, Nocêncio, pastor de Santarém, que tinha muito a
dizer sobre os rituais crentes e as festas-de-dança tradicionais Hohodene que ele presenciava em sua
juventude.
descrições que Nocêncio fez dos rituais crentes - ritos de nomeação e Conferencias em particular -
Sobre as cerimônias de nomeação, Nocêncio disse que “os velhos dão nomes em português,
invocando Christu, Deus, e o Espíritu Santo, e procuram para o crescimento e boa saúde da criança.” Em
Sobre as Conferências, Nocêncio disse que as pessoas “fazem as mesmas coisas como nas Santa
Céias mas tem muito mais gente.” Normalmente dura quatro dias e, no quarto, todo mundo sai para casa,
379
fazendo uma grande procissão no final. Sempre tem mais comida e, já pelo segundo dia, “quase não se
consegue comer mais.” Tem pelo menos duas mesas cheias de comida e tem guardas. “Os homens se
sentam na fileira da frente, as crianças atrás deles, e as mulheres atrás delas. Cada uma recita um vesículo
e canta, em português ou Baniwa. Às vezes, tem um pastor americano nas Conferências.” Abundância de
comida, ordem e uma grande procissão no final - esses são também atributos dos pudali.
Nocêncio e seus irmãos comentavam sobre as Conferências e as Santa Céias com gosto - sobre o
estilo de uma pessoa de rezar, ou sobre as pessoas presentes. Os crentes se preparavam semanas antes
para essas ocasiões, colhendo produtos das roças, processando a mandioca, caçando e pescando nas
Da mesma maneira, Nocêncio e seus irmãos gostavam de ouvir as minhas gravações das canções
Hohodene do ritual de pudali que eu gravei com os velhos de Ucuqui, e eles sinceramente lamentavam a
com máscaras dos Maulieni. Mas meus filhos não sabem como elas são, nem
Eles não sabem como elas se parecem. Nós não as vemos mais. Há pessoas
yapurútu."
Note-se que lamentar a perda dos modos de vida antigos e especialmente, o entusiasmo sobre o
quanto do “tempo da Sophie.” Vários anciões crentes reclamavam para mim como os crentes “não eram
como antigamente”, que eram “desanimados”, que as pessoas não sabiam cantar bem, e nem sabiam
observou que "na capela Batista de Tunui, estava escrito 'Igreja das
380
adiante, para sugerir que os Baniwa procuravam uma nova ordem para
das casas eram diferentes daqueles dos católicos, assim como os nomes de
tornou-se onipresente nas aldeias crentes: uma vez que antes os anciões
nos pastores idosos que, dizem, sempre carregavam por ali uma ou mais
Içana e os católicos do Aiary naquele momento não poderia ter sido mais
dramático.
para os Hohodene que todas as pessoas no Uapui eram Inyaime, que a Força
Aérea viera para "tirar" as mulheres e isso deveria ser evitado. Muitos
pedido - que não pedissem para que eles deixassem de ser crentes, "eles
que parassem de fazer o que lhes fora familiar durante séculos? Dada a
seguidores a violar alguns dos tabus mais sagrados, por que os Baniwa
máscaras? Já que ela foi sozinha durante anos, empreendendo sua campanha
atores do drama. Por meio da comparação dos discursos uns com os outros,
foi muito além de meras associações com a crença tradicional; nem foi
sair da situação cada vez mais intolerável que, por diversas gerações,
Kamiko surgiu para pregar uma nova "religião da Cruz" não era diferente.
prometia que bens materiais - que os Baniwa padeciam muito tempo para
jogado fora.
de tudo porque o que estava sendo "deixado para trás" (tais como os
levaram muitos a suspeitarem que aquilo em que eles tinham entrado não
era a sociedade ideal que esperavam criar. Antes de mais nada, Sofia
assuntos humanos.
387
CONCLUSÃO
389
capazes de mudar através de ação concreta. É isto que elas fazem durante
(ibid.: 281)
o mundo'." (: 275)
(: 276):
pouco diferentes. Como disse em vários momentos, este livro toma como
"religião Baniwa".
Este livro adota para seu título uma das frases-chave que vincula
os seres humanos hoje, pandza, às suas origens sagradas, oopi, uma das
vão nascer" - uma frase que se refere a uma noção de temporalidade, que
"consciência milenária".
do presente.
crescimento e de reprodução.
quando as pessoas se deslocam de novo, elas o têm feito por uma decisão
1992; Wright & Hill, 1986). Kamiko instigou seus discípulos a evitarem
os Brancos e darem a ele sua total fidelidade. A utopia que prometia era
sinal da cruz etc. Assim como Kamiko, Anizetto foi conhecido como
era que "não existiriam mais doenças", o que de novo pode ser entendido
litalewape riku Dzuli, onde não há doenças, no Outro Céu. Ele falava de
outros messias, foi identificado com Iaperikuli, com quem a sua alma-
Sua aldeia, numa ilha do igarapé Uaraná, era o lugar mítico de moradia
de Iaperikuli. Ele pregava menos uma autonomia dos Baniwa em relação aos
meio-civilizados".
poder criativo (isto é, oopidali) não existe mais - pelo menos no seu
mais do que um "namoro com a chefia", pois produziu o que veio a ser
conhecido como a "religião da cruz", uma tradição profética que hoje tem
seus descendentes.
que Brown duvida - uma leitura mais cuidadosa das fontes indica que fez,
contas estavam muito acima do que uns poucos profetas e seus discípulos
posteriores.
meio século.
tem consigo o remédio que reverte a morte; que tampa o buraco para
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