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336 A LINGUAGEM E A MORTE / Antonio Negri

AGAMBEN, Giorgio lutas, processos de exploração e sobressaltos


A linguagem e a morte de liberação.
Mas como se faz para estruturar o
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006
mundo que essa abordagem ontológica cons-
titui? Como faz alguém que, como Agamben,
Antonio Negri sempre manteve a morte presente na descrição
fenomenológica, construindo positivamente a
O ultimo livro do filósofo Giorgio Agamben idéia da redenção? Em torno a este projeto,
é dedicado ao “Estado de exceção”, isto é, à o caminho teórico de Agamben apresentou
condição que já investe cada / toda / qualquer rasgos sempre mais evidentes. Talvez em La
(ogni) estrutura de poder e que esvazia de comunità che viene de 1990 esse rasgo seja
maneira radical cada / toda / qualquer (ogni) mais forte, quando a experiência da redenção
experiência e definição de democracia. se apresenta enquanto desutopia. Esta exigia
que a borda da morte fosse atravessada pela
Apesar de ser um freqüente leitor tensão da vida, e que no método fosse interio-
de Giorgio Agamben, aconteceu-me de rese- rizada a máxima spinozista: “o homem Sábio
nhar apenas um outro livro de sua autoria, A não pensa a morte e sim a vida”. A idéia do
linguagem e a morte de 1982 (publicado no biopolítico, portanto, começava a apresentar-
Brasil pela UFMG, 2006). Tratava-se de uma se no pensamento de Agamben como potên-
verdadeira introdução à filosofia e propunha cia central, inquieta certamente, alternativa
um método de análise que passou a caracte- talvez, de qualquer modo estruturalmente
rizá-lo nos anos seguintes: construir critica- inovadora. Em seguida, em Homo Sacer, essa
mente no terreno do ser, escavando sobre a problemática se apresentou novamente em
margem existencial e lingüística, o caminho toda a sua complexidade e contradição.
da redenção. Uma redenção de todo imanente Existem, com efeito, dois Agam-
que jamais esquece a condição mortal. Tra- ben. Há aquele que se detém em um fundo
balhar em filosofia teria portanto significado existencial, fatal e terrífico, e portanto compe-
atravessar o ser com empenho ético, eliminan- lido a um confronto contínuo com a idéia da
do todo resíduo dialético (tão difuso naquele morte; e há um outro que, através da imersão
momento entre os epígonos do idealismo e do em um trabalho filológico e na análise lin-
declinante socialismo) e, conseqüentemente, güística, conquista (põe pedaços, manobra,
produzir conhecimento verdadeiro, orienta- constrói) o horizonte biopolítico: aqui, nesta
do politicamente, qualificado eticamente, no situação, Agamben se parece às vezes com
sentido de uma possível redenção humana. um Warbug da ontologia crítica. Todavia, o
A primeira vista, parecia que Agamben se fato dos dois Agamben sempre conviverem
movesse como Derrida e Nancy, folheando é paradoxal: quando menos se espera, o pri-
um ponto do ser desejoso do outro, todavia meiro re-emerge e obscurece o segundo, e a
sempre ilusório. Não era assim. Quanto mais sombra da morte se estende de modo lúgubre
aprofundava a sua análise fenomenológica do contra a vontade de viver, contra o excedente
ser, quanto mais trabalhava o possível, um do desejo. Ou o contrário.
novo horizonte, em suma, como outrora Blan- Em Estado de Exceção (Boitempo,
chot, Agamben atravessava o mundo lingüís- 2004), temos a possibilidade de lermos jun-
tico em termos de ontologia critica. É desse tos esses dois Agamben. Com efeito, antes de
modo que Agamben se aproxima (e aproxima mais nada, Agamben reconhece e denuncia o
a descrição da realidade que descreve) do Ge- fato que o estado de exceção (um estado de
neral Intellect, ou seja, de uma idéia positiva morte) envolve de agora em diante cada es-
do ser lingüístico do comum, atravessado por trutura de poder e esvazia de maneira radical
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toda experiência e definição de democracia. interno. Nesse ponto, diante da complexidade


É a condição imperial. Eis que se abre uma que é investida por ele, a arma filológica que
primeira linha de leitura: com efeito, essa Agamben utiliza com tamanha habilidade se
definição de estado de exceção se instaura torna quase incerta, em todo caso tateante; as
no horizonte de uma ontologia indiferencia- descobertas surgem como surpresas, mas são
da, cínica ou pessimista, onde cada elemento verdadeiras descobertas, inovações concei-
é reassumido no jogo vazio de uma também tuais e lingüísticas. Aqui, o pós-moderno se
vazia negatividade. O estado de exceção apa- mostra duro e criativo. E eis que sob esse des-
rece aqui como pano de fundo indiferente que dobramento, a genealogia do biopolítico dá
neutraliza e desbota todos os horizontes e os continuidade à arqueologia e à filologia. Com
reconduz a uma ontologia incapaz de produzir efeito, o dispositivo utópico não se contrapõe
sentido senão em termos destrutivos. Este ser sincronicamente ao horizonte ontológico, mas
é totalmente improdutivo. Este ser se confun- irrompe, penetra, arromba diacronicamente
de com o direito (ou na sua ausência) lá onde instituições e desenvolvimento jurídico. Aqui
somente o direito seria chamado a dar sentido a dialética é verdadeiramente superada por-
ao real. Assistimos, desse modo, a uma sobre- que o biopolítico é desconstruído e atravessa-
estimação do direito e a uma subestimação da do internamente.
ontologia: a realidade não produz sentido. Nesse ponto, o biopolítico em
Nesse ponto, é evidente que não há Agamben não é mais olhado de fora como se
diferença entre estado de exceção e potência fosse uma realidade independente a ser estu-
constituinte, pois que ambos vivem sobre o dada ou reconhecida – um fruto a ser colhi-
mesmo nível de indistinção. Neste Agamben, do. O hegelianismo foi aqui definitivamente
a definição do biopolítico se apresenta como ultrapassado por uma crítica que reconhece a
indiferença ao antagonismo: é inútil respon- impossibilidade da homologia dialética dos
der que o direito de exceção anula o ser, en- opostos. Toda nostalgia da esquerda hege-
quanto a resistência e o poder constituinte o liana o será ainda mais. O próprio Benjamin,
criam! Não, aqui, tudo aquilo que acontece que também viveu e pôs esta série de enigmas
no bios é dobrado à indistinção da natureza, a problemáticos e de dolorosas reminiscências
zoé ... Na realidade, não é difícil aqui ver em dialéticas, é superado aqui. Com gesto formi-
ação aquela deriva que obriga toda concepção dável, Agamben vai além do estado de exce-
unilateral do bios a uma redução naturalista. ção atravessando-o conceitualmente e etica-
O efeito deste primeiro trecho de análise é pa- mente: assim como o cristianismo primitivo
radoxal: hoje, tudo aquilo que ocorre no mun- e o comunismo das origens atravessaram o
do seria como que fixado em um horizonte poder e a exploração, destruindo-os porque os
totalitário e estático, como “sob o nazismo”. esvaziou. Neste segundo cenário, a análise de
Mas as coisas não são bem assim: se vivemos Agamben mostra como a imanência pode ser
em um estado de exceção é porque vivemos realista e revolucionária.
uma “guerra civil”, feroz e permanente, onde
o positivo e o negativo se enfrentam: não é
possível, de modo algum, achatar a sua potên- Antonio Negri é cientista social e
cia antagonista na indiferença.
filósofo. É autor, entre outras obras, de Impé-
Todavia, Agamben não pára aqui.
rio e Multidão (ambos em parceria com Mi-
Estado de exceção nos apresenta uma segun-
chael Hardt); Anomalia Selvagem – poder e
da perspectiva, mais original, mais potente:
potência em Spinoza; O poder constituinte –
é uma linha espinosista e deleuziana. Aqui,
neste segundo terreno, a análise não sobrevoa ensaio sobre as alternativas da modernidade;
um biopolítico inerte, mas o atravessa com Kairòs, Alma Vênus, Multitudo.
ânsia utópica febril, colhe seu antagonismo Este texto foi traduzido por Barbara Szaniecki.

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