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Recensão Crítica

Para além do sentido: posições e conceitos em movimento. In Produção de Sentido – O que


o sentido não consegue transmitir. Hans Ulrich Gumbrecht. Tradução de Ana Isabel Soares.
Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, agosto de 2010. pp. 75-117.

Raquel Maceiras1

Ao abordar o terceiro capítulo da obra em epígrafe, não podemos descartar o livro no


seu todo, ou seja, eliminar as características particulares do que antecede e do que procede.
O capítulo “Para além do sentido: posições e conceitos em movimentos” é aquele que poderá
ser considerado como o ponto argumentativo central, após Hans Ulrich Gumbrecht, teórico
literário alemão, ter sumariamente exposto, segundo a ordem do tempo, as mudanças de
paradigma da Teoria Literária sobre a qual gravitaram considerações dos ramos da Filosofia
e da Historiografia. Estamos perante uma construção dialética, como considerou Aristóteles
no tratado Tópicos: “A dialektiké, para além do princípio estóico, é tudo o que é mais do que
o simples estudo das formas do discurso externo e interno. Não é apenas demonstração,
porque parte das opiniões (endoxa) de todos aqueles que já falaram, de todos aqueles que já
anunciaram uma verdade sobre os textos — o passo verdadeiramente dialético consiste em
provar que aquilo que parece verdadeiro a todos os que sabem não é tão verdadeiro como se
julga ser.” (citado por Ceia, 2009).

Podemos assim afirmar que os dois primeiros capítulos, segundo a lógica do


pensamento hegeliano, correspondem à primeira etapa dialética – construção da tese –
edificada no passado científico e analista a que se prevê uma contrarresposta, apresentada
no terceiro capítulo, a antítese e presente. Em jeito de conclusão, os dois últimos capítulos
assumem a síntese final com considerações sobre o futuro.

Há, sem dúvida, uma autorreferência que a capa anuncia: o rosto de Gumbrecht, a
que se junta o “Manual do Usuário”, facilitando a vida ao leitor e permitindo uma leitura
linear ao longo do texto, tendo sempre em consideração um significado concreto pela clareza
do sentido em que determinadas palavras são mencionadas. Determinando que o tema trata
a tensão entre presença e sentido, o autor evitou correr riscos e mal-entendidos por uma
leitura de interpretação subjetiva (e mesmo assim “sujando as mãos”, como o próprio

1
Mestranda em Literatura – Especialidade em Criações Literárias Contemporâneas | Cartografias Literárias
lecionada pela Professora Ana Clara Birrento | dezembro de 2023 – Universidade de Évora.

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declara, ao apontar para um novo campo epistemológico não hermenêutico e não metafísico
na área das Artes e Humanidades que muitas vezes contempla exemplos que alguns poderão
considerar de “mau gosto”).

Deste manual introdutório, e antes de prosseguirmos, importa recuperar os seguintes


conceitos-chave: «presença» enquanto referente “a uma relação espacial com o mundo e
seus objetos (…) tangível por mãos humanas”; «produção» “que se refere ao ato de ‘trazer
para diante’ um objeto no espaço”; «produção de presença» “aponta para todos os tipos de
eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’
sobre corpos humanos; «as coisas do mundo» abrange “todos os objetos disponíveis em
‘presença’”; «atribuição de sentido» configura a atribuição de “um sentido a alguma coisa
presente (…) do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmos”; e a palavra «metafísica»
considerada como “a atitude, quer cotidiana, quer académica, que atribui ao sentido dos
fenómenos um valor mais elevado do que à sua presença material”. (Gumbrecht, 2010, pp.
13-14). As noções de «metafísica», «hermenêutica», «interpretação» e «imagem cartesiana
do mundo» serão agrupadas na ala que o autor procura combater para que a presença
reapareça enquanto coordenada das relações com as coisas do mundo.

A abertura do terceiro capítulo dá-se com uma citação do livro Gramatologia (1967)
de Jacques Derrida (1930-2004), ao considerar que “(…) a ‘era do signo’ talvez nunca venha
a ter um fim. O seu encerramento, porém, está traçado.” (Gumbrecht, 2010, p. 75). Esta
afirmação, um tanto paradoxal, conjetura o fim da metafísica, considerando pouco provável
tal desfecho. Aberta a premissa, Paul de Man (1919-1983) será a voz convocada sobre a
incapacidade da linguagem de significar dada a amplitude significante precedente atribuída
nas relações que estabelecemos com as coisas do mundo.

Gumbrecht alega que não pretende o fim do sentido, antes o desenvolvimento de


conceitos que nos permitam relacionar em presença sem estarmos sujeitos a uma teoria
interpretativa, pois isso significaria que existe irremediavelmente uma obediência, à
semelhança de uma lei da atração que nos leva sempre ao mesmo caminho. Ao empreender
a concretização do que poderá ser considerado uma teoria substancialista, assente na matéria,
o autor admite estar consciente da conotação um tanto ingénua que o partidário
desconstrucionista lhe poderá atribuir, pela recusa da apreciação empírica das experiências.

Para defender os seus argumentos, o autor irá arguir com base em objetos culturais
não inseridos na camada de sentido, recorrendo a autores com quem partilha afinidades,

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nomeadamente Gianni Viattimo (1936-2023), em Beyond Interpretation. Estamos perante
um maximalista da hermenêutica, que considera que se atingiu o limite interpretativo nas
ciências, “(…) o mundo num lugar onde (já) não há fatos, apenas interpretações.”
(Gumbrecht, 2010, p. 79). Viattimo será uma ponte para Martin Heidegger (1889-1976) e a
“história do ser”, ainda que divergindo de Gumbrecht nas suas reflexões e, como tal,
convocado para que o leitor observe a oposição: o autor italiano acredita no enfraquecimento
do Ser até ao seu desaparecimento; já Gumbrecht pretende tornar o Ser de novo presente.

Autores como Umberto Eco (1932-2016), na obra Os Limites da Interpretação, e


Jean-Luc Nancy (1940-2021), em The Birth to Presence, são exemplos daqueles que
exploraram uma perspetiva ausente da ambiguidade das variadas interpretações e até da
recorrente atribuição de sentido, porém o refutar do paradigma sujeito/objeto que elimina a
referência ao mundo é, de alguma forma, evitado, como uma impossibilidade de olhar de
frente pela ausência de argumentos. Jean-Luc Nancy será aquele que particularizará o
fenómeno de presença baseado no conceito “temporalidade extrema”, considerando a
presença como um acontecimento que não é eterno, um nascimento que se dá e retorna a si.
Karl Heinz Bohrer (1932-2021) alia o acontecimento súbito à experiência estética,
exemplificando com o efeito que a expressão de um actor teve para Kafka: nessa visibilidade
figurativa.

Ao lado destes, é mencionado Rudolf Steiner (1861-1925) e as suas considerações


de tom teológico pela presença divina, que não estarão muito longe de Nancy, uma vez que
o último considerou a presença enquanto manifestação mística, do sentido para o
significativo, de uma presença que se exterioriza.

É neste sentido que são mencionados todos aqueles autores que desconsideraram a
perspetiva do construtivismo assente na premissa da realidade enquanto projeção social de
um grupo, focada no ser-humano, sujeito, que será o único a permitir a transformação do
exterior. Exemplos como o de Judith Butler (1956-), no livro Bodies That Matter (1993), que
propõe o regresso à noção de matéria como processo de materialização, inflexível à opinião
de um indivíduo; e do antropólogo Michael Taussing (1940-) pela mimética e nessa
capacidade de se tornar outro que provocará um distanciamento/confronto dessa mesma
construção. Há que considerar que este último autor defende aquilo que nomeia como
“mistérios miméticos”, distanciando-se, a meu ver, da apreciação que Gumbrencht pretende
argumentar. Em similar situação, considero a menção a Martin Seel (1954-) ao associar a

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aparência (wahrnehmung) à perceção provocada pelos sentidos. Não serão os sentidos, mais
tarde ou mais cedo, combinados com a nossa interpretação e subjetividade, o resultado
provocado em nós nessa limitação do controlo humano em resposta às coisas que
observamos?

Como associação final de afinidade, o autor recorre a Hans-Georg Gadamer (1900-


2002), ironicamente associado à hermenêutica, todavia resgatando o interesse por um maior
reconhecimento não semântico necessário às componentes materiais dos textos literários,
servindo de exemplo a performance na declamação de um poema, quer dizer, a
corporalização desse poema.

É neste ponto que regressamos à ponte iniciada em Viattimo, problematizando


conceitos tidos no ensaio A origem da obra de arte e na obra Ser e tempo de Heidegger. Não
se pretende apenas ir “além da atribuição de sentido” que as anteriores menções assinalaram.
Para Gumbrecht, Heidegger, contrariando a fenomenologia de Hussel, seu antecessor, crítica
a premissa cartesiana, considerando como “pecados originais” da filosofia moderna uma
existência que viva só do pensamento humano e contribua para uma alienação e dissociação
do espaço e da substância de “ser-no-mundo”.

Em torno do conceito Ser, Gumbrecht propõe quatro perspetivas divergentes. A


primeira considera Ser como o lugar da verdade, não enquanto ideia conceptual, mas como
algo que acontece e, como tal, sofre processo de desocultação e ocultação nesse movimento
e posicionar que é a verdade. Quando se revela mostra a dimensão de coisa, de substância,
ocupa espaço. Não é espiritual. A segunda perspetiva aponta este movimento como
tridimensional permitindo o “acontecimento da verdade”, vertical (balanço) ou horizontal
(ideia; aspecto). Esta ideia de movimento das coisas, pela retirada, ocultação, é independente
da interpretação que lhe oferecemos, presente antes sequer de as considerarmos, entre vir
para diante e retirar-se. A terceira premissa relaciona-se com a função da existência humana
(dasein) no acontecimento da verdade, provinda da serenidade de ser-no-mundo em
permanente contato funcional e espacial e da capacidade de deixar que as coisas aconteçam,
opondo-se ao paradigma sujeito-objeto e à consequência subjetiva desses dois pólos em
interação. Por último, o acontecimento da verdade, exemplificado pela obra de arte,
enquanto local dessa revelação, do nada em que esta surge, ausente das apreciações culturais;
assim como o exemplo da presença do templo permite a abertura das coisas entre “terra”,
pela sua carga material, e “mundo”, enquanto unidade.

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Gumbrencht rejeita o alinhamento da dimensão de mundo na suposição de integração
histórica e cultural. Paralelamente descarta a possibilidade de excluir-se do “mundo”.
Argumenta antes que se trata de uma tensão entre “mundo” (seres) e “terra” (ser) provocada
pela autoafirmação das suas naturezas. Ainda assim, esta lógica envereda por razões
transcendentes, afastando-se da materialidade que o autor procura fundamentar e da
atribuição de sentido nas relações que temos com as coisas que nos rodeiam.

Na última parte do capítulo, o autor sistematiza conceitos/experiências que


ultrapassam a exclusividade da interpretação nas Humanidades, pela coligação ao contraste
da cultura medieval, apresentando duas tipologias: a “cultura de sentido” e a “cultura de
presença”. Apresenta então oito circunstâncias: o pensamento enquanto autorreferência
humana na cultura de sentido e o corpo na cultura de presença, admitindo a exclusividade
da condição humana em relação ao objeto; o conhecimento como única forma de se estar no
mundo na cultura de sentido, de configuração castradora; o signo enquanto condição
universal que subjuga o significante ao significado; a capacidade que a cultura de presença
permite pela inscrição dos corpos no cosmos do mundo, em oposição à intensão
motivacional de transformar o mundo pelo comportamento humano observado na cultura de
sentido; o espaço entre os corpos como configuração material na cultura de sentido em
oposição ao tempo que leva à transformação na cultura de sentido; a relação com o tempo
que permite a mutação violenta recorrente, cobrindo espaços da cultura de presença; o
conceito de evento na cultura de sentido, mais uma vez associado ao tempo e a uma
descontinuidade antinatural; e, por último, a vertente lúdica e de ficção que implementa um
comportamento humano pré-determinado nas regras pré-estabelecidas, de encenação, que
não tem lugar nas culturas de presença.

Os exemplos expostos, em constante oposição, serão os mais convincentes da teoria


não-metafísica, concretizados pela associação aristotélica de signo, a eucaristia cristã e o
teatro medieval.

Reunindo os argumentos finais, o autor apresenta quatro tipos diferentes de


“apropriação do mundo” partindo de uma escala que se inicia na polaridade de presença até
à sua oponente, de sentido. Se os primeiros exemplos teorizaram, os últimos são
reivindicativos de uma tónica totalmente material e física, servindo-se de expressões como
“comer as coisas do mundo” e “penetrar coisas e corpos”, causadoras de angústia à
sensibilidade da cultura de sentido e espiritualidade.

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É aqui que tudo se complica. Considerando o termo misticismo que poderá configurar
uma ‘incorporação” e rejeitando a ideia de transcendência pelo ritual, antes a sólida presença
neste estado, invertida, invariavelmente torna-se árdua a fuga à cultura de sentido. Neste
seguimento, é exemplificado o medo de ser possuído por essa mesma carga mística (o medo
de sermos acessíveis até nas interpretações dos nossos pais e amigos), terminando com a
necessidade de um estado de mutismo como forma de presença e rejeição. Ainda assim, esta
conclusão parece-me problemática, porque todos estes estados reivindicam significados.
Mutismo enquanto ação-resposta a uma interação não é algo natural, assenta na
consequência da interpretação. Apenas poderia ser considerado um estado de mutismo
totalmente ajustado na presença, casos de mutismo físico em que o corpo, após sofrer um
qualquer tipo de ataque cardiovascular se manifeste em mutismo, afasia, em que o interior é
exposto por comando fisiológico, sem qualquer interpretação ou poder metafísico.

Desta opinião é Souza, afirmando que: “(…) ao se insurgir contra o que chama de
‘existencialismo linguístico’ da desconstrução – a suposta incapacidade da linguagem de se
referir ao mundo –, Gumbrecht acaba por recair naquilo que seu conceito de presença visa
combater: o ‘campo hermenêutico’.” (2023, p. 2)

Sem dúvida que as premissas tidas pela oposição das culturas de sentido e presença
são alcançáveis, contudo as últimas abrem a possibilidade de refutação. Nada que
Gumbrecht não resolva nos capítulos finais pela aplicação da tríade estética, história e
pedagogia.

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Referências Bibliográficas

Ceia, C. (2009, 30 de dezembro). Dialéctica (da Literatura). E-Dicionário de Termos


literários. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/dialectica-da-literatura .
Acesso em: 17 dez. 2023.

Gumbrecht, H. U. (2010). Produção de Sentido – O que o sentido não consegue


transmitir (A. I. Soares, trad.). Rio de Janeiro: PUC Rio.

Souza, G. (2023). Quem tem Medo de Derrida?: Gumbrecht e a metafísica da


presença. Revista Brasileira de Estudos da Presença, 13(2). Disponível
em: https://journals.openedition.org/rbep/4033 . Acesso em: 17 dez. 2023.

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