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Raquel Maceiras1
Há, sem dúvida, uma autorreferência que a capa anuncia: o rosto de Gumbrecht, a
que se junta o “Manual do Usuário”, facilitando a vida ao leitor e permitindo uma leitura
linear ao longo do texto, tendo sempre em consideração um significado concreto pela clareza
do sentido em que determinadas palavras são mencionadas. Determinando que o tema trata
a tensão entre presença e sentido, o autor evitou correr riscos e mal-entendidos por uma
leitura de interpretação subjetiva (e mesmo assim “sujando as mãos”, como o próprio
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Mestranda em Literatura – Especialidade em Criações Literárias Contemporâneas | Cartografias Literárias
lecionada pela Professora Ana Clara Birrento | dezembro de 2023 – Universidade de Évora.
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declara, ao apontar para um novo campo epistemológico não hermenêutico e não metafísico
na área das Artes e Humanidades que muitas vezes contempla exemplos que alguns poderão
considerar de “mau gosto”).
A abertura do terceiro capítulo dá-se com uma citação do livro Gramatologia (1967)
de Jacques Derrida (1930-2004), ao considerar que “(…) a ‘era do signo’ talvez nunca venha
a ter um fim. O seu encerramento, porém, está traçado.” (Gumbrecht, 2010, p. 75). Esta
afirmação, um tanto paradoxal, conjetura o fim da metafísica, considerando pouco provável
tal desfecho. Aberta a premissa, Paul de Man (1919-1983) será a voz convocada sobre a
incapacidade da linguagem de significar dada a amplitude significante precedente atribuída
nas relações que estabelecemos com as coisas do mundo.
Para defender os seus argumentos, o autor irá arguir com base em objetos culturais
não inseridos na camada de sentido, recorrendo a autores com quem partilha afinidades,
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nomeadamente Gianni Viattimo (1936-2023), em Beyond Interpretation. Estamos perante
um maximalista da hermenêutica, que considera que se atingiu o limite interpretativo nas
ciências, “(…) o mundo num lugar onde (já) não há fatos, apenas interpretações.”
(Gumbrecht, 2010, p. 79). Viattimo será uma ponte para Martin Heidegger (1889-1976) e a
“história do ser”, ainda que divergindo de Gumbrecht nas suas reflexões e, como tal,
convocado para que o leitor observe a oposição: o autor italiano acredita no enfraquecimento
do Ser até ao seu desaparecimento; já Gumbrecht pretende tornar o Ser de novo presente.
É neste sentido que são mencionados todos aqueles autores que desconsideraram a
perspetiva do construtivismo assente na premissa da realidade enquanto projeção social de
um grupo, focada no ser-humano, sujeito, que será o único a permitir a transformação do
exterior. Exemplos como o de Judith Butler (1956-), no livro Bodies That Matter (1993), que
propõe o regresso à noção de matéria como processo de materialização, inflexível à opinião
de um indivíduo; e do antropólogo Michael Taussing (1940-) pela mimética e nessa
capacidade de se tornar outro que provocará um distanciamento/confronto dessa mesma
construção. Há que considerar que este último autor defende aquilo que nomeia como
“mistérios miméticos”, distanciando-se, a meu ver, da apreciação que Gumbrencht pretende
argumentar. Em similar situação, considero a menção a Martin Seel (1954-) ao associar a
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aparência (wahrnehmung) à perceção provocada pelos sentidos. Não serão os sentidos, mais
tarde ou mais cedo, combinados com a nossa interpretação e subjetividade, o resultado
provocado em nós nessa limitação do controlo humano em resposta às coisas que
observamos?
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Gumbrencht rejeita o alinhamento da dimensão de mundo na suposição de integração
histórica e cultural. Paralelamente descarta a possibilidade de excluir-se do “mundo”.
Argumenta antes que se trata de uma tensão entre “mundo” (seres) e “terra” (ser) provocada
pela autoafirmação das suas naturezas. Ainda assim, esta lógica envereda por razões
transcendentes, afastando-se da materialidade que o autor procura fundamentar e da
atribuição de sentido nas relações que temos com as coisas que nos rodeiam.
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É aqui que tudo se complica. Considerando o termo misticismo que poderá configurar
uma ‘incorporação” e rejeitando a ideia de transcendência pelo ritual, antes a sólida presença
neste estado, invertida, invariavelmente torna-se árdua a fuga à cultura de sentido. Neste
seguimento, é exemplificado o medo de ser possuído por essa mesma carga mística (o medo
de sermos acessíveis até nas interpretações dos nossos pais e amigos), terminando com a
necessidade de um estado de mutismo como forma de presença e rejeição. Ainda assim, esta
conclusão parece-me problemática, porque todos estes estados reivindicam significados.
Mutismo enquanto ação-resposta a uma interação não é algo natural, assenta na
consequência da interpretação. Apenas poderia ser considerado um estado de mutismo
totalmente ajustado na presença, casos de mutismo físico em que o corpo, após sofrer um
qualquer tipo de ataque cardiovascular se manifeste em mutismo, afasia, em que o interior é
exposto por comando fisiológico, sem qualquer interpretação ou poder metafísico.
Desta opinião é Souza, afirmando que: “(…) ao se insurgir contra o que chama de
‘existencialismo linguístico’ da desconstrução – a suposta incapacidade da linguagem de se
referir ao mundo –, Gumbrecht acaba por recair naquilo que seu conceito de presença visa
combater: o ‘campo hermenêutico’.” (2023, p. 2)
Sem dúvida que as premissas tidas pela oposição das culturas de sentido e presença
são alcançáveis, contudo as últimas abrem a possibilidade de refutação. Nada que
Gumbrecht não resolva nos capítulos finais pela aplicação da tríade estética, história e
pedagogia.
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Referências Bibliográficas