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UNIVERSIDADE ABERTA ISCED

Coordenação do Curso de Direito

Cadeira: Direito Internacional Privado

4º Ano-2023

TEMA:

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO


INTERNO NO ESTADO MOÇAMBIQUE

O Tutor:

Discente:

 Virginia Armando Cumbula Benfica

Maputo, Março de 2023


UNIVERSIDADE ABERTA ISCED

COORDENAÇÃO DO CURSO DE DIREITO

4º ANO

NOME DA ESTUDANTE:

VIRGINIA ARMANDO CUMBULA BENFICA

TRABALHO DE CAMPO

TITULO DO TRABALHO:

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO


INTERNO NO ESTADO MOÇAMBIQUE

MAPUTO, MARÇO DE 2022


ÍNDICE

1.Introdução. ................................................................................................................................... 1

1.2.Objectivos ................................................................................................................................ 1

1.3. REFERÊNCIAL TEÓRICO .................................................................................................. 2

1.3.1. Noções de Soberania, Norma interna e Tratado Internacional ........................................... 2

1.3.1.1. A Soberania dos Estados.................................................................................................... 2

1.3.1.2. A Norma Interna ................................................................................................................ 3

1.3.1.3. Os Tratados Internacionais e o Processo de Formação. ..................................................... 4

1.3.2. A Constituição da República de Moçambique de 2004 e o Direito Internacional................ 5

1.3.3. A inserção do direito internacional na ordem jurídica Moçambicana .................................. 7

1.3.4.O Conflito e a Teoria ............................................................................................................. 7

1.3.4.1. A Teoria Monista ............................................................................................................... 7

1.4. O Conflito entre tratado internacional e norma de direito interno no Estado Moçambicano .. 9

1.4.1. O posicionamento hierárquico do direito internacional na ordem jurídica moçambicana 10

1.5.Considerações Finais .............................................................................................................. 14

1.6.Conclusão................................................................................................................................ 15
1.Introdução

O Tratado Internacional é considerado por vários autores do Direito Internacional Público como a
fonte mais importante para o Direito Internacional. Entende-se, assim, que o tratado é o ato jurídico
que se manifesta de acordo com a vontade entre os sujeitos de direito internacional. Já na doutrina
moderna, renomados autores como Hidelbrando Accioly entende tratado como: “Por tratado
entende-se o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre dois ou mais
sujeitos de direito internacional. ”(ACCIOLY, 2015, P. 156)

Moçambique não é uma ilha, pese embora, ser um Estado independente e soberano. No concerto
das Nações, Moçambique é parte integrante e membro de várias organizações internacionais.
Nestes termos, sendo parte integrante do concerto das Nações, fica obrigado ao direito
internacional, fazendo com que haja coabitação de normas, nomeadamente, internacionais e
internas no seu ordenamento jurídico.

Outro sim, é um facto que Moçambique enquanto parte integrante do concerto das Nações, é
subscritor de tratados e acordos internacionais. Com o presente trabalho, pretende-se analisar sobre
o conflito entre tratado internacional e norma de direito interno no Estado Moçambicano.

1.2.Objectivos

Geral

 Falar sobre tratado internacional e norma interna do Estado.

Específicos

 Analisar a inserção do direito internacional na ordem jurídica Moçambicana;


 Saber como evitar o Conflito entre tratado internacional e norma de direito interno no
Estado Moçambique;
 Conhecer a hierarquia do direito internacional na ordem jurídica moçambicana.

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 1


1.3. REFERÊNCIAL TEÓRICO

1.3.1. Noções de Soberania, Norma interna e Tratado Internacional

O conflito é composto por um lado pela norma interna e pelo outro, o tratado internacional.
Compreender como surgem tais é necessário para o melhor entendimento das relações de atrito
que pode ocorrer, porém, antes de se partir para o estudo desses, faz-se necessário estudar algo que
está no surgimento dos dois institutos citados, que é a soberania. Encontra-se na doutrina também
essa opinião. Conforme Piloni (2004, p. 11) a solução para o conflito entre norma interna e tratado
internacional é algo que não se encontra resolvido no nível internacional nem no nível nacional e
que ainda está a ser estudado, principalmente o entendimento acerca do que são as partes
envolvidas nessa lide: a norma interna e o tratado internacional

Mas não bastam só as noções sobre essas leis que conflitam entre si. De acordo com Piloni (2004,
p. 11), o quanto a soberania está a ser violada está no cerne de toda a questão. A ação de saber
sobre o conceito, as características e a visão atual que se tem da norma interna e do tratado
internacional deve ser complementada com a mesma ação acerca da soberania e das teorias que a
doutrina já apresentou sobre o conflito.

1.3.1.1. A Soberania dos Estados

A soberania não tem um conceito unânime. De acordo com Piloni (2004, p. 12), a definição foi
alterando com o passar do tempo com observações dentro de mesmos períodos acerca do que é
isso, mas as conceituações já feitas possuem âmago senão igual, quase.

Essencialmente, pode-se voltar para o próprio conhecimento semântico adquirido no processo de


formação linguística e se deduzir a ideia de que algo soberano é o antônimo de algo subordinado,
então, quem detém soberania é alguém que não se subordina a outros. A partir disso, passam a
surgir as alterações nessa ideia que se posicionam a se detalhar mais a extensão dos limites do
conceito no que se refere à amplitude da soberania, às formas como ela se efetiva.

Estados detêm soberania. Esses entes se apresentam num patamar acima de toda a estrutura de
poder existente para um povo morador de um espaço, a última instância numa sequência finita de
esferas governamentais as quais os cidadãos não podem ultrapassar. Esse ente independente não
necessariamente ignora ou nega a existência de outros equivalentes, mas tem a si como autônomo

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 2


nos aspectos territoriais, populacionais e governamentais, cabendo ao ser estatal as únicas decisões
sobre essas coisas ao fim, ao contrário do que ocorre com outras circunscrições, como no Brasil
com os estados e os municípios, que também têm território, populações e governos, mas se
subordinam à União, a pessoa que se posiciona no encerramento superior. De acordo com Rezek
(2011, p. 259):

Identificamos o Estado quando seu governo — ao contrário do que sucede


com o de tais circunscrições – não se subordina a qualquer autoridade que
lhe seja superior, não reconhece em última análise, nenhum poder maior de
que dependam a definição e o exercício de suas competências [...].

A necessidade de se garantir a autonomia do Estado se apresenta como tentativa para a


continuidade da existência e do poder dessa instituição, acima de ameaças internas e externas,
frente aos próprios cidadãos e frente aos outros países. Em situação hipotética, se existisse um
único Estado no mundo, justificar-se-ia a soberania perante os nacionais para se evitar golpes
vindos do interior.

A princípio, a ideia era da determinação da soberania como algo absoluto, supremo diante dos
outros e que agia de forma ilimitada. A tese da autonomia do Estado continuou presente, mas
paulatinamente até hoje, a visão de que os governos nacionais não podem se movimentar de
maneira desenfreada e se combinar com outros ou se subordinar em nenhum aspecto de sua
existência foi sendo questionada e substituída por limites mais estreitos na atuação da
independência estatal. De acordo com Piloni (2004, p. 12) e Albuquerque (2004, p. 97), pode-se
dizer que o pensamento acerca da soberania é mais flexível agora que no passado.

1.3.1.2. A Norma Interna

Como visto, leis têm o porquê de surgirem. Em locais onde o esquema democrático está
implantado, essa gênese é precedida por discussões sobre a necessidade e a viabilidade da
implantação, em que os inúmeros segmentos da sociedade, o governo e os cidadãos, por eles
próprios ou mediante representantes, tentam chegar a uma conclusão. Os debates dentro do
processo legislativo, previstos nos parlamentos e nas comissões encarregadas das formulações, e
as articulações políticas são parte da produção da democracia e isso ajuda que a lei não se dissocie

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do meio em que está. Ao tratar da norma no Direito Romano, nisto que é válido ainda para a norma
interna contemporânea, discorreu Nóbrega (2011, p. 65):

O caráter jurídico de uma norma, enfim, deve ser encontrado já na instituição, a


qual não poderia atribuir tal caráter à norma, se não possuísse, ou seja, se a
instituição não fosse identificada com o próprio direito.

Resumidamente, as normas internas são o conjunto de regras que regulam o funcionamento da


sociedade dentro da área de abrangência de cada nação. A norma interna, vista no singular é a
unidade da qual se constitui o Direito em dado território que tem soberania para ser um Estado, a
própria instituição que cria e regula o Direito do qual se utiliza, de acordo com Rezek (2011, p.
194), pois possui as competências legislativa, administrativa e jurisdicional.

1.3.1.3. Os Tratados Internacionais e o Processo de Formação

O acordo é um ato de vontade entre sujeitos que se combinam em algo. Os tratados internacionais
são momentos em que os Estados optam por colocar os próprios interesses em acordo com os
interesses de outros países. Criam-se documentos em que há comprometimento dos governos
nacionais com aquilo que foi assinado. Na verdade, são momentos que o Estado pode abrir mão
de parte de sua soberania para se comprometer com algo que ele considere válido, mas essa cessão
de parcela da própria autonomia é possível em razão de que os Estados têm independência para
decidir até se fazem isso. Eis um conceito de tratado internacional de acordo com Rezek (2011, p.
38):

Tratado é todo o acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito


internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos. Na afirmação
clássica de Georges Scelle, o tratado internacional é em si mesmo um
simples instrumento; identificamo-lo por seu processo de produção e pela
forma final, não pelo conteúdo.

Além desse conceito, também é possível salientar uma definição do que seja tratado de acordo
com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969, p. 1):

1. Para os fins da presente Convenção:


a)“tratado” significa um acordo internacional concluído por escrito entre
Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento

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único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua
denominação específica.

Como se pode observar, o importante para a definição do que seja o tratado internacional é ele ser
um mecanismo pelo qual os diversos Estados podem decidir efeitos jurídicos conjuntamente, e não
é propriamente a forma final do expediente e o processo de elaboração, tal como ocorre com a
norma interna brasileira, que dita que o documento é um tratado internacional válido.

Já acerca de conteúdos, os tratados internacionais podem tratar dos mais diversosassuntos,


conforme Rezek (2011, p. 11), como serviço diplomático, questões marítimas, solução pacífica de
litígios entre Estados até temas mais prosaicos como como a classificação de sinais indicativos da
procedência de produtos do gênero alimentar.

1.3.2. A Constituição da República de Moçambique de 2004 e o Direito Internacional

A Constituição da República de Moçambique de 2004, terceira Constituição do Estado


moçambicano desde a independência, integra-se na família constitucional dos Estados de língua
oficial portuguesa. Na base deste direito constitucional lusófono, em sedimentação e consolidação
desde a década de noventa do século passado, está a Constituição da República Portuguesa de
1976. A influência da experiência constitucional portuguesa, importa sublinhá- lo, torna-se
particularmente notória quando se procede a um confronto do texto constitucional moçambicano
com as constituições dos Estados africanos filiadas na tradição francófona ou estruturadas de
acordo com o sistema jurídico da common law .

A disposição central para a apreciação da forma como a Constituição moçambicana de 2004 lida
com as questões do Direito Internacional é o artigo 18, com a epígrafe “Direito internacional.

O número 1 do artigo citado prevê que “[o]s tratados e acordos internacionais, validamente
aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e
enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique”. O número 2, por seu turno,
estipula que “[a]s normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor
que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e
do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção”.

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As estipulações constantes do artigo 18 podem ser desdobradas nos seguintes aspectos:

● distinção entre tratados e acordos internacionais;

● método de incorporação das vinculações internacionais (tratados em sentido amplo) na ordem


jurídica moçambicana;

● exigência da publicação interna dos compromissos internacionais (tratados em sentido amplo)


assumidos pelo Estado moçambicano;

● previsão da produção de efeitos jurídicos na ordem jurídica moçambicana de outras fontes de


Direito Internacional além das vinculações internacionais (tratados em sentido amplo);

● método de incorporação das outras fontes de Direito Internacional além das vinculações
internacionais (tratados em sentido amplo) na ordem jurídica moçambicana;

● e posição hierárquica das fontes de Direito Internacional no âmbito da ordem jurídica


moçambicana.

São ainda imediatamente relevantes para a investigação em curso as seguintes normas


constitucionais:

- artigo 43 (Interpretação dos direitos fundamentais), onde se estabelece que os “preceitos


constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com
a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos”;

- a alínea f) do nº 1 do artigo 144, relativa à publicação dos tratados e acordos internacionais;

- a alínea b) do artigo 161, relativa à competência do Presidente da República no domínio da defesa


e da ordem pública;

- as alíneas a), b), c) e d) do artigo 162, que regulam os poderes do Presidente da República no
domínio das relações internacionais;

- as alíneas e), t) e u) do nº 2 do artigo 179, que fixam as competências da Assembleia da República


relacionadas com o procedimento de vinculação internacional do Estado moçambicano;

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- e a alínea g) do nº 1 do artigo 204, que delimita o âmbito da competência do Governo
relativamente ao procedimento de vinculação internacional do Estado moçambicano.

1.3.3. A inserção do direito internacional na ordem jurídica Moçambicana

1. As fontes de direito internacional são incorporadas na ordem jurídica moçambicana sem


perderem a sua natureza jusinternacional. A CRM adotou um sistema monista que prevê a receção
condicionada dos tratados e acordos internacionais (art. 18.º, n.º 1, da CRM) e a receção automática
das restantes fontes do direito internacional (art. 18.º, n.º 2, da CRM).

2. A vigência de tratados e acordos internacionais em Moçambique depende do preenchimento


cumulativo de três condições: i) terem sido validamente aprovados e ratificados; ii) estarem
publicados no Boletim da República; iii) vincularem internacionalmente o Estado moçambicano
(art. 18.º, n.º 1, da CRM).

i) A aplicabilidade interna de tratados e acordos internacionais depende, em primeiro lugar, da


conformidade constitucional do procedimento adotado para a sua conclusão. É este o sentido que
deve ser atribuído à expressão “validamente aprovados e ratificados” incluída no art. 18.º, n.º 1,
da CRM.

A constituição moçambicana prevê um regime diferenciado para a conclusão de tratados e acordos.


Estas são as duas espécies da fonte convencional, ou dos tratados em sentido amplo1, que se
distinguem por os tratados (em sentido estrito ou solenes) exigirem um ato interno posterior à sua
assinatura, em regra um instrumento de ratificação, em que é confirmada a vontade do Estado em
se vincular aos mesmos. Nos acordos (em forma simplificada), a vinculação internacional dos
Estados ocorre imediatamente no momento da assinatura2.

A sequência procedimental prevista para a conclusão de tratados solenes exige a intervenção dos
três órgãos de soberania políticos previstos na constituição. A negociação é dirigida pelo Governo,
através do Conselho de Ministros, a quem é atribuída a missão de “preparar a celebração de
tratados internacionais”3.

O texto do tratado é depois assinado pelo Presidente da República . A vinculação internacional do


Estado moçambicano depende de ratificação pela Assembleia da República.

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1.3.4.O Conflito e a Teoria

1.3.4.1. A Teoria Monista

De acordo com Fraga (2001, p. 6) como a oposição à teoria dualista começou a aumentar em
decorrência de ser perceptível a existência do conflito entre norma interna e tratado internacional,
apesar da teoria a dizer que na realidade esse atrito é apenas uma falsa impressão, Kelsen iniciou
então a apresentação de uma teoria que explicasse diferentemente a relação entre as leis nacionais
e os acordos estrangeiros. A teoria monista prega que todo o sistema, internacional e nacional,
forma um único sistema em que as normas se relacionam hierarquicamente entre si. De acordo
com Fraga (2001, p. 7):

A teoria monista foi construída sob o princípio da subordinação, em razão do qual


todas as normas jurídicas se acham subordinadas entre si, numa ordem
rigorosamente hierárquica. Imediatidade das normas internacionais em relação ao
direito interno, divergências de grau e não de essência entre um ramo e outro ramo
do Direito, opção imperiosa por uma das ordens conflitantes são, também, pontos
doutrinários do monismo.

Essa teoria une a legislação internacional a nacional, pois entende que um país ao se tornar
signatário de um tratado, traz para o seu ordenamento essa legislação que passa a valer como se
sua fosse e os conflitos que essa lei venha a ter com outras normas, resolve-se tal como quando
ocorrem conflitos entre duas normas internas. A opção de como se escolherá a legislação superior
depende de como a hierarquia entre elas for organizada, pois aos tratados internacionais poderá ser
dado, tal como dito nas hipóteses, tratamento inferior às normas internas, superior, igualitário com
algum tipo das leis nacionais, enfim, o que leva a se falar respectivamente em sistema monista com
primazia de direito interno, sistema monista com primazia do direito internacional e sistema
monista moderado.

_____________________________
1
art. 136.º n.º 4, CRM, 2004
2
rt. 11.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados (23 de maio de
1969)
3
Art. 203.º, n.º 1, al. g), 1.ª parte, da CRM.

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1.4. O Conflito entre tratado internacional e norma de direito interno no Estado
Moçambicano

Uma questão importante para o Direito Internacional é como se dão as relações desse com as
normas internas de cada país. Não somente por ser essa uma questão de importância teórica
relevante, mas também por ter aplicabilidade prática, conforme dito por Nóbrega (2011, p. 90). Às
vezes, o tratado internacional entra em atrito com a legislação pátria, ou é a norma interna posterior
à vigência do acordo que o contradiz, então, a compreensão dessa problemática é salutar para a
resolução das lides em que se confrontam os ordenamentos nacionais contra os tratados
internacionais

A decisão sobre a espécie de convenção internacional a adotar é tomada pelos Estados durante a
fase negocial. A CRM vem, contudo, limitar a escolha da forma de acordo para as convenções
internacionais que tenham por objeto “matérias (…) da competência governativa do Governo” [art.
203.º, n.º 1, al. g), 2.ª parte]. Este constitui um constrangimento muito relevante, pois a CRM
atribui competência legislativa primária exclusiva à Assembleia da República (art. 178.º, n.º 1). O
Governo apenas pode legislar, sob a forma de decreto-lei, com a autorização expressa da
Assembleia da República (art. 179.º, n.º 3, e art. 180.º, da CRM). Devem assim seguir: i) a forma
de tratado, as convenções internacionais que digam respeito a matérias incluídas no âmbito da
competência legislativa da Assembleia da República8; ii) a forma de acordo, as convenções
internacionais que versem exclusivamente sobre matérias compreendidas no âmbito da
competência administrativa do Governo. A CRM não prevê qualquer mecanismo pelo qual a
Assembleia da República possa autorizar o Governo a vincular-se a acordos internacionais em
domínios que relevem da sua competência legislativa.

São assim organicamente inconstitucionais e, consequentemente, inaplicáveis na ordem jurídica


moçambicana, os acordos internacionais concluídos pelo Governo que incluam matérias
compreendidas no âmbito da competência legislativa da Assembleia da República. Um exemplo,
entre tantos outros, é o “Acordo sobre Princípios e Disposições Jurídicas para o Relacionamento
entre a República de Moçambique e a Santa Sé”, assinado em 7 de dezembro de 2011, e ratificado
pelo Governo através da Resolução n.º 12/2012, de 13 de abril. Esta convenção, mais conhecida
como “Concordata”, seguiu a forma de acordo em forma simplificada, não obstante incluir

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matérias sujeitas a reserva de lei, como são inequivocamente a concessão de benefícios e isenções
fiscais (art. 127.º, n.º 2, CRM e art. 20.º da Concordata), o regime do casamento (art. 119.º, n.º 1,
CRM e art. 14.º da Concordata) ou o adiamento do serviço militar (art. 263.º, n.º 2, CRM e art.
13.º, n.º 1, da Concordata).

A segunda condição que os tratados e acordos devem cumprir para poderem ser aplicados na ordem
jurídica moçambicana é a da publicação das resoluções que os ratificam e aprovam [art. 18.º, n.º
1, in fine, e art. 143.º, al. f), da CRM]. Estas são publicadas na I Série do Boletim da República e
devem incluir, em anexo, a versão portuguesa integral dos textos dos instrumentos internacionais
aos quais a República de Moçambique se vinculou. A falta de publicação tem como consequência
a impossibilidade de aplicação interna do tratado ou do acordo

Por último, os tratados e acordos internacionais só podem ser aplicados na ordem jurídica
moçambicana “enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique” (art. 18.º, n.º
1, in fine, da CRM). A CRM impede a aplicação interna de convenções internacionais que ainda
não vigorem externamente. O início de produção de efeitos das convenções internacionais depende
do que ficar estabelecido nos respetivos articulados, sendo comum a definição de uma data ou, em
alternativa, a exigência da manifestação do consentimento em ficar vinculado por todos os Estados
que participaram nas negociações (convenções bilaterais) ou apenas por alguns deles (convenções
multilaterais)

1.4.1. O posicionamento hierárquico do direito internacional na ordem jurídica


moçambicana

As normas de direito internacional têm, em Moçambique, “o mesmo valor que assumem os atos
normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo” (art. 18.º,
n.º 2, da CRM).

A localização do direito internacional no patamar infraconstitucional constitui um corolário do


princípio da constitucionalidade, do qual decorre que as “normas constitucionais prevalecem sobre
todas as restantes normas do ordenamento jurídico” (art. 2.º, n.º 4, CRM).

A supremacia das normas constitucionais permanecerá meramente teórica se não existirem


mecanismos efetivos de fiscalização da constitucionalidade do direito internacional. Ora, em

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Moçambique, tal claramente não é possível no âmbito da fiscalização preventiva, a qual versa
somente sobre leis da Assembleia da Republica que tenham sido enviadas ao Presidente da
República para promulgação (art. 162.º, n.º 1, e art. 245.º, n.º 1, da CRM).

Resta a possibilidade de, no quadro da fiscalização sucessiva concreta, o controlo da


constitucionalidade dos tratados e acordos internacionais ser efetuado difusamente por qualquer
tribunal. O art. 2.º, n.º 4, da CRM, atribui inequivocamente aos tribunais a competência para afastar
normas internacionais que considerem inconstitucionais. Ao Conselho Constitucional é dada a
última palavra, pois devem-lhe ser obrigatoriamente remetidas as decisões judiciais que recusem
“a aplicação de qualquer norma com base na sua inconstitucionalidade” [art. 246.º, n.º 1, al. a), da
CRM].

Fernando Loureiro Bastos recusa a possibilidade de fiscalização concreta do direito internacional


com fundamento na ausência de qualquer referência a “normas internacionais” ou a fontes
internacionais no art. 213.º da CRM, que dispõe que “(n)os feitos submetidos a julgamento os
tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição”. Não parece, todavia,
admissível retirar de um argumento a contrario sensu uma habilitação geral para os tribunais
violarem a Constituição sempre que aplicam o direito internacional, uma vez que tal violaria o
princípio da constitucionalidade. Acresce que tudo leva a crer que, neste preceito da constituição
– e também noutros (v. g. o art. 244.º, n.º 1) –, o legislador constituinte utilizou o vocábulo “leis”
com o sentido material amplo de “normas”. Uma interpretação restritiva que circunscrevesse o
alcance da disposição às “leis em sentido formal” da Assembleia da República seria contrária à
ratio desta disposição que consiste em impedir a aplicação de normas inconstitucionais nos feitos
submetidos a julgamento. Esta interpretação abre também a porta para a admissibilidade da
fiscalização abstrata da constitucionalidade: nos termos do art. 244.º, n.º 1, da CRM, “o Conselho
Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a “inconstitucionalidade das leis” .

A afirmação de superioridade normativa da Constituição face ao direito internacional não é – nem


podia ser – absoluta. Um dos efeitos do processo de globalização observado nas últimas décadas
é o da importação para asconstituições nacionais de princípios estruturantes de uma ordem jurídica
internacional que deixou de estar exclusivamente centrada no paradigma vestefaliano da igualdade
soberana entre Estados. A legitimidade internacional das comunidades políticas estaduais está hoje

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 11


dependente do reconhecimento constitucional interno dos princípios democrático e da proteção
dos direitos humanos. Estes princípios constituem manifestações de um constitucionalismo
internacional em gestação que se materializa nas chamadas normas imperativas de direito
internacional geral ou de ius cogens, as quais funcionam como limites heterónomos ao próprio
poder constituinte.

O direito internacional foi colocado pela CRM no mesmo patamar hierárquico dos atos normativos
da Assembleia da República ou do Governo. Estes, de acordo com o art. 142.º da CRM, incluem
atos legislativos (leis da Assembleia da República e decretos-leis do Governo), regulamentares
(decretos do Governo) e políticos (moções e resoluções da Assembleia da República). Uma vez
que os tratados e os acordos se distinguem por terem como objeto, respetivamente, matérias que
são reguladas internamente por ato legislativo e regulamentar, por força do princípio lex posterior
derogat lex priori, os tratados não prevalecem sobre leis ou decretos-lei e os acordos não
prevalecem sobre leis, decretos-leis ou decretos do Governo que tenham iniciado a sua vigência
em momento posterior. Normas oriundas de outras fontes internacionais podem também ser
afastadas pela entrada em vigor de lei, decreto-lei ou decreto do Governo que inclua disposições
incompatíveis.

As normas de direito internacional integram a ordem jurídica moçambicana e tornam inaplicáveis


de pleno direito, desde o momento da sua entrada em vigor, quaisquer normas constantes de atos
legislativos anteriores que lhes sejam contrárias. O problema é que o inverso também ocorre:
normas previstas em atos legislativos afastam, desde o momento da sua entrada em vigor, a
aplicação de normas internacionais anteriores conflituantes.

O risco de violação do princípio de direito internacional pacta sunt servanda (art. 26.º da
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados) apresenta na ordem jurídica moçambicana grau
máximo. A responsabilidade internacional do Estado moçambicano está à distância da aprovação
de uma lei pela Assembleia da República ou de um decreto-lei ou decreto pelo Governo que inclua,
ainda que inadvertidamente, disposições contrárias a obrigações internacionais do Estado
moçambicano.

O art. 18.º, n.º 4, da CRM veio resolver qualquer dúvida que pudesse subsistir sobre o
posicionamento hierárquico do direito internacional na ordem jurídica moçambicana. A doutrina

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 12


moçambicana foi unânime ao colocar o direito internacional num patamar infraconstitucional46.
Fernando Loureiro Bastos considera esta opção constitucional “criticável” e “surpreendente”, “na
medida em que é incompatível com as características do direito internacional e inadequada à
inserção da República de Moçambique na comunidade internacional”47. Apelida-a também de
“incongruente” por o próprio texto constitucional reconhecer no art. 43.º a importância de
instrumentos internacionais na interpretação de direitos fundamentais.

A atribuição de uma posição infraconstitucional ao direito internacional não pode ser tida como
surpreendente, pois esta continua a constituir a regra no direito comparado. A afirmação do
primado constitucional é matizada pelo alcandorar para o plano supraconstitucional da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (art. 43.º
da CRM), e para o nível constitucional de várias normas e princí- pios de ius cogens (arts. 17.º,
19.º, 20.º e 22.º da CRM).

A atribuição de natureza paralegal às normas de direito internacional pode ser explicada como um
mecanismo de defesa contra uma ordem jurídica que continua a ser identificada como mantendo
ainda estruturalmente uma natureza de direito público europeu com pretensões hegemónicas e
neocoloniais:

“Existe uma certa resistência por parte do legislador moçambicano, no tocante ao


acolhimento do direito internacional. Esta resistência parece justificar-se pela
necessidade de preservar o monismo jurídico. Isto é, a necessidade de querer manter
a arquitetura do sistema jurídico, com o intuito de lograr a estabilidade, a coerência
e a harmonia interna do sistema. Por outro lado, esta resistência encontra as suas
raízes mais profundas no espírito soberano e na autodeterminação dos povos
colonizados e escravizados – a aversão a uma nova tendência neocolonialistae
capitalista. Não obstante a sua integração internacional e a sua abertura à
globalização, o legislador moçambicano continua fortemente e negativamente
marcado pelo direito estrangeiro – direito internacional clássico – que lhe fora
imposto ao longo de muitos séculos e que constitui hoje símbolo de servidão”4.

______________________
4
Henriques José Henriques. “A Europeização Indirecta do Direito Constitucional Moçambicano
– cláusula internacional”, cit., p. 161.

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 13


1.5.Conclusão

Pode-se começar a falar que a principal questão envolvida na resolução de conflito entre norma
interna e tratado internacional é a da soberania, que está na gênese de cada uma das partes do
conflito, é a principal questão a ser avaliada pelos estudiosos do Direito, pois está realmente a se
avaliar se o Estado ao adotar um procedimento está a ferir a sua própria autodeterminação.

Moçambique sendo parte do Concerto das Nações é integrante de várias organizações


internacionais, ficando obrigado ao direito internacional.

Moçambique é signatário de vários instrumentos internacionais, instrumentos estes que vigoram


na sua ordem jurídica. Anotamos que em Moçambique, as normas de direito internacional têm na
ordem jurídica interna, o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais
emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de
recepção.

Em Moçambique, os instrumentos internacionais não são letra morta, a sua materialização


acontece e com responsabilidade necessária, face aos compromissos internacionais assumidos.

O Direito Internacional é materializado em Moçambique através da Constituição da República,


das leis ordinárias e das políticas de governação.

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 14


1.6. Referências Bibliográficas

ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 21ª ed. São Paulo: Saraiva,
2014.

FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno: estudo analítico
da situação do tratado na ordem jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

Fernando Loureiro Bastos. “O Direito Internacional na Constituição Moçambicana de 2004”, cit.,


p. 459 e 461

Henriques José Henriques. “A Europeização Indirecta do Direito Constitucional Moçambicano –


cláusula internacional”, cit., p. 161.

NÓBREGA, Beatrice Guimarães. O dualismo de preeminência internacional: a proposta de Santi


Romano acerca da relação entre direito internacional e direito estatal. Ijuí: Unijuí, 2011.

PILONI, Renata Brigatti. O conflito entre tratados internacionais e normas de direito internas
atrelado às questões da soberania nacional. Presidente Prudente: Faculdades Integradas Antônio
Eufrásio de Toledo, 2004. 87 p. Monografia (Conclusão de Curso) – Faculdade de Direito de
Presidente Prudente, Presidente Prudente, 2004.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed.. São Paulo: Saraiva,
2011.

Legislação

Constituição da República de Moçambique ( CRM : 2004)

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969, p. 1):

O CONFLITO ENTRE TRATADO INTERNACIONAL E NORMA DE DIREITO INTERNO NO ESTADO MOÇAMBICANO 15

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