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VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de.

Duplo Grau de Jurisdição na Justiça Criminal: o


direito ao recurso como possibilidade de questionamento da motivação da sentença
condenatória. In: GIACOMOLLI, Nereu; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de (org.).
Processo Penal e Garantias Constitucionais. Estudos para um processo penal
democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 219-255.

CAPÍTULO XI percebe-se o perene choque, característico da persecução


punitiva, entre garantia e eficiência, em que os clamo-
res sociais por punições céleres acabam brecados pelo
respeito a direitos fundamentais essenciais ao processo
penal democrático constitucionalmente orientado.
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO NA JUS- A tão falada morosidade judicial é, em muitos casos,
TIÇA CRIMINAL: O DIREITO AO RECUR- justificada em razão das “infindáveis possibilidades de
SO COMO POSSIBILIDADE DE QUESTIO- impugnações das decisões”, em claro reducionismo de
tal complexa questão. Assim, percebe-se uma cristalina
NAMENTO DA MOTIVAÇÃO DA SEN- tendência de limitação de acesso ao âmbito recursal,369
TENÇA CONDENATÓRIA. seja pela restrição das suas hipóteses de cabimento ou
pelo maior rigor na análise de admissibilidade pelos
Vinicius Gomes de Vasconcellos367 tribunais. E é aí que surgem incompatibilidades com o
preceito do duplo grau de jurisdição. Seus contornos são
ainda nebulosos na doutrina e na jurisprudência pátria,
de modo que despontam diversos questionamentos: ele
é constitucionalmente previsto? Quais as consequên-
1. Introdução cias dos textos das convenções internacionais para sua
regulação interna? Podem existir limitações e restrições
As discussões acerca do sistema de impugnações à impugnação da decisão condenatória? Qual o recurso
no ordenamento jurídico brasileiro são permeadas por adequado para realizar os seus pressupostos? Tais inda-
intrínsecas tensões pautadas pelos atores da esfera cri- gações acarretam basilares reflexos práticos em contro-
minal. Aponta-se o conflito entre justiça e certeza, o qual versos pontos do debate jurídico, como, por exemplo, a
pondera que quanto mais revisões sobre a decisão são previsão de julgamentos em instância única, em razão
empreendidas, maior a probabilidade de atenção ao ideal das competências originárias em tribunais superiores, e
de justiça, mas alerta que o sistema busca a certeza rápi- a existência (e constante ampliação) de rigorosos pressu-
da e certeira, “sem procrastinações inúteis”.368 Ademais, postos de admissibilidade de recursos.
A resposta a tais questionamentos acaba tornando-
-se obscura ao ser inebriada com as proposições de uma
367 Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS, bolsista CAPES. Pós-gra- teoria geral do processo, que transplanta acriticamente
duado em Justiça Penal pela Universidade Castilla-La Macha (Espanha).
Bacharel em Direito pela PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica CNPq/ as soluções da irmã mais abastada para aquela que (ain-
PIBIC (2009/2012), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da PUCRS.
368 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio
S.. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 369 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Crimi-
2001. p. 21. nais. São Paulo: Atlas, 2002. p. 21.

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da) é menos “prestigiada”,370 do processo civil para o pro- hierárquica,373 mostra-se adequada a atenção à essência
cesso penal. E em matéria recursal tal construção acar- de tal cláusula: a diferenciação entre o órgão julgador
reta marcantes disfunções, fundamentalmente em razão e o revisor, não necessariamente superior, mas funcio-
de sua incompatibilidade com a presunção de inocência. nalmente capaz de revisar e suplantar a decisão primi-
Pode-se citar, por exemplo, a Lei 8.038/90, que nega o tiva. Assim, considera-se “superior” aquele que tem po-
efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário, der de corrigir e alterar a sentença impugnada,374 sendo
a qual foi elaborada para a esfera civil e, desse modo, fundamental a distinção em relação ao seu emissor.
acaba por desvirtuar o sistema de direitos e garantias Deste modo, tem-se como admissível o julgamento por
fundamentais do âmbito criminal. Neste estudo, portan- turma de juízes de primeiro grau nos Juizados Espe-
to, intentar-se-á pautar tal situação e, assim, estruturar ciais Cíveis e Criminais, conforme o artigo 98, inciso I
pressupostos para um regime dos recursos adequado às da Constituição Federal e a Lei 9.099/95.375
características de um processo penal democrático. A partir da definição acima esboçada, percebe-se
Importante, então, traçar um conceito inicial do que o duplo grau de jurisdição está intimamente rela-
duplo grau de jurisdição,371 que servirá de base para as cionado com o sistema de impugnações do ordenamen-
futuras divagações. Conforme Montero Aroca, trata- to processual em estudo. Tem-se que tal preceito mate-
-se de um sistema de organização processual em que rializa-se através do direito ao recurso, ou seja, este é
se estabelecem dois sucessivos exames e decisões so- instrumento de efetivação daquele. Entretanto, há uma
bre o tema de fundo analisado, por obra de dois órgãos
jurisdicionais distintos, de modo que o segundo deve 373 Assim, por exemplo, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal: “o du-
prevalecer sobre o primeiro.372 Aqui já se pode apontar plo grau de jurisdição há de ser concebido à moda clássica, com seus dois
caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da senten-
controvérsia sobre a necessidade de que a revisão seja ça de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do
realizada por órgão hierarquicamente superior àquele que a proferiu e de hierarquia superior na ordem jurídica”. (HC 79-785-7, j.
que proferiu a decisão impugnada. Embora existam im- 29/03/2000, relator ministro Sepúlveda Pertence)
portantes defensores da necessidade de superioridade 374 “A interpretação correta é a que indica – como foi enunciado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos – que o direito fundamental consiste
no privilégio de desencadear um dispositivo real e cuidadoso de controle
do veredicto, por meio de um funcionário diferente daquele que o tenha
370 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucio-
proferido e com poderes para revisar o veredicto anterior, isto é, que sua
nal. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 33-36.
revisão não seja meramente declaratória, mas que possua efeitos substan-
371 André Ramos Tavares aponta interessante crítica acerca da denominação ciais sobre o veredicto. Este é o sentido, na minha opinião, da exigência de
“duplo grau de jurisdição”. Conforme o autor, tal expressão é tecnicamente um juiz ou tribunal superior: nem tanto por uma questão de hierarquia do
incorreta, pois a jurisdição é una, como reflexo da soberania, sugerindo tribunal, mas de poder.” (BINDER, Alberto M.. Introdução ao Direito Proces-
a utilização dos termos “duplo grau de cognição ou julgamento”. (TAVA- sual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 223)
RES, André Ramos. Análise do duplo grau de jurisdição como princípio
375 “Nesse caso, está preservado o princípio do duplo grau, que não exige,
constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 8, v. 30,
para sua observância, o julgamento por tribunais de cúpula, mas pode ser
São Paulo, jan./mar. 2000. p. 178) Neste estudo, entretanto, continuar-se-á a
satisfeito com a revisão da decisão por órgão diverso do que julgou em pri-
utilizar tal denominação, em razão de seu uso corrente e consagrado.
meiro grau.” (GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNAN-
372 AROCA, Juan Montero. Proceso Penal y Libertad. Ensayo polémico sobre el DES, Antonio S.. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos
nuevo proceso penal. Madrid: Thomson Civitas, 2008. p. 484. Tribunais, 2001. p. 28)

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diferença fundamental em tais definições: como aponta tucionalmente orientado e aos ditames das convenções
Marina Santos, o direito a recorrer é expressão genérica, internacionais sobre direitos humanos em que o Brasil
que abarca a pretensão de reexame das decisões judiciais aparece como signatário.
em geral.376 Tal direito pode ser limitado, como o é no Assim, este trabalho se estruturará em três pontos.
ordenamento processual penal brasileiro, em que a re- Inicialmente, pretende-se revisar os fundamentos dos
gra é a irrecorribilidade das decisões interlocutórias do recursos no processo penal, de modo a elucidar o que
juiz.377 Conclusão distinta se dá em relação à sentença parece ser a real essência do duplo grau de jurisdição: o
condenatória, em que intenta-se macular a presunção de direito ao questionamento da motivação decisória. Em
inocência do réu e impõe-se gravame aos seus direitos seguida, solidificar-se-á a concepção do recurso da con-
individuais. Tal decisão ensejará o duplo grau de juris- denação como garantia do acusado, traçando propostas
dição, através do direito ao recurso que possibilite sua para sua racionalização e analisando questões problemá-
efetiva análise, o qual não poderá ser limitado, conforme ticas acerca de sua limitação. Por fim, tendo-se em mente
melhor se esclarecerá posteriormente. tais premissas, questionar-se-á quais as características
O presente estudo, deste modo, centra-se na segun- do recurso em espécie que atende a tais imperativos, de
da situação acima descrita, qual seja, o direito ao recurso modo a adequar-se ao duplo grau de jurisdição.
como instrumento de efetivação do duplo grau de juris-
dição em relação à decisão condenatória.378 Neste senti-
do, intentar-se-á esboçar considerações em busca de uma 2. Revisitando os fundamentos dos
revisão das premissas do sistema de impugnações no recursos na esfera processual penal:
campo jurídico-penal brasileiro, com vistas à adequação
aos preceitos de um processo penal democrático consti-
lapidando o duplo grau de jurisdição
como o direito ao questionamento
376 SANTOS, Marina França. A garantia do duplo grau de jurisdição. Belo Hori- da motivação decisória.
zonte: Del Rey, 2012. p. 84.
377 Salvo as decisões passíveis de questionamento através de Recurso em Senti-
Seguindo-se às considerações introdutórias apon-
do Estrito, conforme as hipóteses previstas no artigo 581 do CPP, ou em leis tadas anteriormente, o presente ponto almeja analisar
especiais, as interlocutórias são irrecorríveis no processo penal brasileiro. os fundamentos clássicos dos recursos, quais sejam, a
Importante notar que, no caso de impossibilidade de recurso, autoriza o ree-
xame do conteúdo da decisão no recurso cabível que se seguir, em regra, a
inconformidade do perdedor, a falibilidade do julgador
apelação. (GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, e o controle do conteúdo decisório. Então, esboçar-se-á
Antonio S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribu- uma cristalina e necessária mudança de rumos, a partir
nais, 2001. p. 77) Entretanto, existem decisões interlocutórias que acarretam
intenso gravame ao acusado, como a pronúncia ou aquela que impõe uma
da interpretação dos ditames dos tratados internacionais
prisão cautelar, por exemplo, de modo que pode-se sustentar que o direito sobre direitos humanos em que o Brasil aparece como sig-
ao recurso em tais casos não pode ser impossibilitado, tendo-se em vista sua natário, especialmente a Convenção Americana de Direi-
definição como garantia do réu, defendida neste estudo.
to Humanos (CADH). Neste sentido, será questionada a
378 Assim, no decorrer do texto, ao falar-se em direito ao recurso, refere-se à
impugnação específica da decisão condenatória.
regulação do duplo grau de jurisdição pela Constituição

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Federal e, em seguida, a recepção dos preceitos conven- humanas, mas, apenas, aquelas legítimas”,381 além de
cionais pelo ordenamento interno, examinando o posicio- que, em algum momento, a decisão gravosa se tornará
namento do Supremo Tribunal Federal acerca da questão. definitiva e, por mais que tenham havido recursos, o
Por fim, revisar-se-á a ideia de controle da decisão judicial prejudicado certamente restará inconformado. Além dis-
por meio do direito ao recurso, lapidando-se a premissa so, a chance de falha do julgador pode até ser diminuída
de que a sua essência reside na possibilidade de questio- através da revisão, mas não há garantias de que a deci-
namento da fundamentação da decisão condenatória. são do recurso será necessariamente mais justa e correta.
Em regra, a doutrina costuma apontar como funda- Ademais, a afirmativa de que os julgadores dos tribunais
mentos dos recursos duas circunstâncias, quais sejam, são experientes e possuem mais conhecimento carece de
a inconformidade do prejudicado e a falibilidade do jul- comprovação,382 inclusive porque em muitos casos as
gador. Resta claro que aquele desfavorecido pela decisão turmas ou câmaras são formadas por juízes convocados.
judicial, na grande maioria dos casos, pretende sua revi- Por certo que tais circunstâncias são pertinentes e
são, ou seja, expressar sua discordância com o conteúdo esclarecem pontos importantes da concepção de recur-
do veredicto.379 Tal fato relaciona-se diretamente com a so, mas cristalinamente não elucidam o cerne do ins-
consciência de que o julgador é falível, pois humano (e tituto. Importante aqui ressaltar que o processo penal
muitas vezes inebriado por um clamor punitivo, quiçá deve ser analisado, em sua integralidade, como um ins-
juridicamente cegante). Assim, assinala-se uma expecta- trumento de efetivação de garantias do acusado, com
tiva de “melhorar” o conteúdo decisório a partir de sua o fim de conter e, assim, legitimar o exercício do poder
revisão, ou seja, um aperfeiçoamento em busca do ideal punitivo.383 Deste modo, percebe-se que o sistema de
de justiça, que, em muitos casos, passa pela “esperança” impugnações da sentença também clama por tal dese-
de que isso ocorra em razão da maior experiência dos nho democrático. Ou seja, o fundamento do direito ao
integrantes dos tribunais.380 recurso precisa relacionar-se com a proteção e efetiva-
Entretanto, existem considerações críticas a tais ção de direitos e de garantias do réu.
construções. Inicialmente, importante notar que o des- Assim, parte-se para a análise da regulamentação
contentamento com uma decisão desfavorável é natural constitucional do duplo grau de jurisdição. Diversas
ao ser humano, mas tal fato não é capaz de justificar o discussões se confundem em tal questão, pois não exis-
sistema recursal, pois, como aponta Marina Santos, “não te um dispositivo expresso e específico que aborde tal
se edifica o direito como cura de quaisquer insatisfações
381 SANTOS, Marina França. A garantia do duplo grau de jurisdição. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2012. p. 61.
382 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Crimi-
379 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio nais. São Paulo: Atlas, 2002. p. 42.
S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
383 Sobre isso, ver: LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua confor-
2001. p. 21.
midade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 11; BONA-
380 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Crimi- TO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro:
nais. São Paulo: Atlas, 2002. p. 40. Lumen Juris, 2003. p. 111/116.

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preceito no texto fundamental. Há quem defenda, por percebe-se claramente que o direito ao recurso deve ser
exemplo, que a carta magna o reconhece implicitamente, analisado dentre o âmbito de proteção do indivíduo que
ao estruturar as diferentes competências recursais dos sofre a persecução penal, ou seja, como limitação ao po-
tribunais, a chamada “jurisdição superior”.384 Por outro der punitivo estatal. Surge então a controvertida questão
lado, pode-se dizer, com toda a propriedade, que ele é de como tais diplomas internacionais influenciam nor-
indispensável ao respeito do devido processo legal,385 mativamente o ordenamento brasileiro. Eles possuem
previsto no artigo 5o, inciso LIV, da Constituição Federal, poder de alterar as normas processuais penais? Qual sua
sendo deste diretamente derivado.386 De qualquer modo, relação com os ditames previstos constitucionalmente?
pensa-se que tais construções, ainda que pertinentes, Nesta discussão mister examinar caso paradigmá-
não são o principal motivo para que se sustente o relevo tico, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em
constitucional do duplo grau de jurisdição. março de 2000, que aborda o tema ao tratar a possibi-
Aqui, importante atentar para os diplomais interna- lidade de julgamento por Tribunal superior em compe-
cionais sobre direitos humanos em que o Brasil figura tência originária, ou seja, sem possibilidade de recurso.
como signatário, pois é a partir deles que surge o im- Trata-se do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nú-
perativo de revisão das premissas antes apontadas. Dois mero 79.785-7/RJ, em que, a partir do voto relator do mi-
são os textos que precisam ser analisados. Por um lado, nistro Sepúlveda Pertence, decidiu-se pela prevalência
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto da Constituição Federal sobre clausulas de convenções
de San José da Costa Rica), recepcionada pelo ordena- internacionais.387 Assim, não se deu eficácia ao duplo
mento pátrio pelo Decreto 678/92, prevê em seu artigo 8o, grau de jurisdição nos moldes previstos na Conven-
2, “h”, que “durante o processo, toda pessoa tem direi- ção Americana sobre Direitos Humanos, pois posição
to, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: diversa, conforme o STF, acarretaria reconhecer que a
(...) h. direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal norma convencional tem força ab-rogante da Constitui-
superior”. No mesmo sentido vai o Pacto Internacional ção, o que poderia causar o colapso do sistema consti-
sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decre- tucional como um todo. Portanto, em caso de conflito
to 592/92, em seu artigo 14.5: “toda pessoa declarada cul- entre normas internas e internacionais, os critérios para
pada por um delito terá o direito de recorrer da senten- decisão devem ser buscados no texto constitucional,
ça condenatória e da pena a uma instância superior, em consagrando-se uma supremacia deste sobre tratados e
conformidade com a lei”. Da leitura de tais dispositivos, convenções internacionais.388

384 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio
387 Cabe citar as decisões paradigmáticas do STF em 2008, acerca da prisão do
S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
depositário infiel (REXT 349703, REXT 466343 e HC 87585), que afirmaram
2001. p. 23.
a posição supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos,
385 Sobre isso, ver: BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais ou seja, inferiores aos ditames constitucionais, mas superiores às normas
penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. infraconstitucionais.
386 SÁ, Djanira Maria Radamés de. Duplo grau de jurisdição: conteúdo e alcance 388 CASARA, Rubens R. R.. O Direito ao Duplo Grau de Jurisdição e a Cons-
constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 101. tituição: em busca de uma compreensão adequada. In: PRADO, Geraldo;

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Tal precedente, entretanto, foi julgado antes da re- tos processuais penais como instrumentos de garantias
forma constitucional que introduziu o parágrafo ter- do réu frente ao poder punitivo estatal.390
ceiro ao artigo quinto da carta magna, pois este regula Neste diapasão, deve-se revisar outra característica
o procedimento para ingresso dos tratados internacio- apontada pela doutrina como intrinsicamente relaciona-
nais como equivalentes a normas constitucionais. Aqui da ao sistema de impugnações de decisões: a ideia de
deve-se atentar para cristalina explicação de Flávia Pio- controle.391 Tal fundamento vem da antiguidade, em que
vesan: todos os tratados de direitos humanos, por for- a possibilidade de recurso respaldava o poder do sobera-
ça do parágrafo segundo do artigo 5o da Constituição no, pois a partir dele poderia reinvocar o julgamento que
Federal, são materialmente constitucionais, mesmo sem havia delegado a funcionário inferior, caracterizando-se
terem obtido o quórum qualificado previsto pela emen- um controle burocrático dos julgados.392 Atualmente, é
da constitucional 45/2004, pois “a leitura sistemática dos visto, em regra, como um sistema de controle interno
dispositivos aponta que o quórum qualificado está tão e uniformização de posicionamentos – especialmente
somente a reforçar tal natureza constitucional, ao adi- a partir dos recursos para Tribunais superiores. Aqui
cionar lastro formalmente constitucional aos tratados pode-se alimentar a crença de que “o juiz que profere a
ratificados”.389 Assim, conclui-se que o duplo grau de decisão fica psicologicamente compelido a julgar melhor,
jurisdição tem força constitucional material, com base quando sabe que será ela passível de revisão por outro
nos artigos 8o, 2, “h” da Convenção Americana sobre órgão jurisdicional”.393
Direitos Humanos e 14.5 do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos, combinados com o parágra-
fo segundo do artigo 5o da Constituição Federal, pois
trata-se de direito fundamental previsto em tratados 390 “Me parece claro que, ao menos no parágrafo, a Convenção regional não se
internacionais que possuem o Brasil como parte. propõe – nem se pode propor – ‘defender’ o Estado, mas sim, ao contrário,
conceder uma garantia a quem sofre a coação estatal. A Convenção se refe-
De qualquer modo, a orientação adotada pelas con- re, precisamente, às garantias processuais frente à ação e à força aplicada
venções internacionais citadas apresenta clara vertente pelo Estado.” (MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de
condena: ¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.
garantidora dos direitos individuais do acusado, ao pas- com/Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/
so que impõe-se uma releitura dos fundamentos do di- cd-rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013) (tradução livre)
reito ao recurso. Ou seja, como já frisado anteriormente, 391 “O controle do fato e do direito deve sempre, em um regime político aberto,
o duplo grau de jurisdição deve ser analisado dentro de admitir a possibilidade de que um segundo juiz possa – investido mediante
a interposição da apelação – reexaminar a decisão do juiz de grau inferior.
um cenário mais amplo, o qual baliza os diversos institu- Trata-se da regra do duplo grau de jurisdição (...).” (BETTIOL, Giuseppe. Ins-
tituciones de Derecho Penal y Procesal. Barcelona: Bosch, 1973. p. 268)
MALAN, Diogo (coord.). Processo Penal e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen 392 LIBERATORE, Gloria Lucrecia. Derecho al Recurso: la impugnación de
Juris, 2009. p. 499/500. la sentencia penal como garantía del imputado. Revista de Derecho Penal,
número 1, 2001, p. 340.
389 PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção dos direitos huma-
nos e a Constituição Federal de 1988”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, número 393 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio
153, agosto/2005. p. 9. Neste sentido, também: BADARÓ, Gustavo Henrique. S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
Direito Processual Penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 5. 2001. p. 22.

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Todavia, tais construções não parecem representar como instrumento o direito ao recurso da sentença conde-
adequadamente o núcleo do preceito por nós analisado. natória, assegurando-se como garantia do acusado frente
A partir das premissas já apresentadas, pode-se con- ao poder punitivo estatal.395 Sua essência em um processo
cluir que o controle referido exerce-se em relação ao penal democrático encontra-se, portanto, na possibilidade
poder punitivo estatal, ou seja, o recurso adquire um de questionamento e de impugnação da motivação deci-
patamar fundamental na legitimação da condenação. E sória que intentou macular a presunção de inocência.
aqui está o núcleo do duplo grau de jurisdição: não a Neste diapasão, o presente item almeja desenvolver
uniformização da jurisprudência no país, nem a sim- e aprofundar a caracterização do direito ao recurso como
ples revisão da condenação (que poderia ser realizada garantia do acusado, em conformidade com os textos in-
pelos pares do julgador em um órgão colegiado), mas ternacionais e com a construção constitucional anterior-
sim a possibilidade de questionamento e refutação da mente empreendida. Em seguida, apontar-se-á e discu-
fundamentação do veredicto que intenta macular a pre- tir-se-á dois focos de tensão no âmbito do presente tema,
sunção de inocência. E, por óbvio, tal questionamento quais sejam, a possibilidade de condenação em segun-
só se realiza com a admissão de uma manifestação do do grau a partir de recurso da acusação e o julgamento
acusado em momento posterior ao pronunciamento ju- por competência originária em tribunal superior. Então,
dicial, por meio de um recurso que autorize a revisão será debatida controvertida (mas instigadora) construção
plena do julgado. Assim, resguarda-se diversos pressu- que sustenta a restrição dos recursos quanto ao mérito
postos do devido processo legal, como a essencialidade da condenação somente ao acusado, pois, como se verá,
da motivação da decisão e sua publicidade.394 Ou seja, para responder a clamores de celeridade e efetividade, a
o direito ao recurso da condenação consagra-se como limitação do direito ao recurso só pode se legitimar em
uma garantia do acusado no processo. relação ao polo de acusação.
A ideia de solidificação do direito ao recurso da con-
denação como garantia do acusado traz consigo a neces-
3. O recurso da condenação como sidade de atenção a um segundo aspecto do duplo grau
garantia do acusado: tensões de jurisdição: sua dimensão material. Ela se expressa na
no cenário atual e propostas de
rediscussão. 395 “Mesmo diante dos vetustos fundamentos da falibilidade humana e da ne-
cessidade psicológica do vencido (que por vezes é o caso, empiricamente), o
A partir do desenvolvimento empreendido no ponto Estado Constitucional Democrático de Direito impõe um suprafundamen-
to político, acarretando a formação de um processo constitucional penal.
anterior, concluiu-se que o duplo grau de jurisdição tem Existe uma necessidade emergente de formação de uma instrumentalidade
garantista, com o devido processo legal escorado nos princípios constitu-
cionais de uma política criminal ainda a ser implantada pelo Estado con-
394 Sobre isso, ver: BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Proce- temporâneo.” (WUNDERLICH, Alexandre. Por um Sistema de Impugna-
sal. Barcelona: Bosch, 1973. p. 270; CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti ções no Processo Penal Constitucional Brasileiro. In: WUNDERLICH, Ale-
C.. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo pe- xandre. (org.) Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao Professor
nal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 207/216. Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 34)

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regra segundo a qual, em caso de vitória da acusação e, que se realize o mesmo cálculo duas vezes e se obtenha
portanto, condenação do réu, deverá a ele ser assegurado o mesmo resultado existe uma grande probabilidade de
o direito à revisão da decisão.396 Neste sentido, aponta que ela esteja correta.400 Portanto, conclui-se que o direi-
Alexandre Wunderlich que assim se legitimaria um dos to ao recurso da condenação é fundamental ao processo
postulados do modelo garantista, o qual impõe o ônus penal adequado ao Estado Democrático de Direito, tor-
de que o Estado deve assumir que ocorram eventuais ab- nando-se requisito para a fragilização da presunção de
solvições de culpados para que se certifique permanen- inocência e para a legitimação do poder punitivo estatal.
temente que nenhum inocente será condenado.397 Do preceito de que deve sempre haver a possibili-
O duplo grau de jurisdição, como possibilidade dis- dade de revisão da sentença condenatória surgem duas
ponível ao réu para questionar e impugnar os funda- complexas tensões no campo jurídico-penal pátrio: o jul-
mentos da decisão que lhe impõe uma consequência ju- gamento por competência originária em tribunal supe-
rídico-penal,398 adquire caráter processual de relevância rior e a possibilidade de condenação em segundo grau
eminentemente ressaltada, ao passo que se torna, como a partir de recurso da acusação. A primeira questão é
bem aponta Julio Maier, “uma exigência de que, para que intensamente polêmica: como assegurar o direito ao re-
se execute uma pena contra uma pessoa, se necessita de curso em casos de julgamento diretamente em um tribu-
uma dupla conformidade judicial, caso o condenado faça nal superior, quando incabíveis os recursos de apelação
tal requerimento”.399 Para atentar-se à sua importância, ou ordinário, em razão de competência originária? Para
cita-se analogia com a regra matemática da dupla confir- analisar tal assunto, importante revisar brevemente os
mação, segundo a qual em uma operação aritmética em posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
No cenário brasileiro, o julgador máximo se pronun-
396 PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no Processo Penal brasileiro: ciou algumas vezes acerca deste problema. Em paradig-
homenagem às ideias de Julio B. J. Maier. Revista Cidadania e Justiça, Rio de
Janeiro, ano 5, número 10, 1o semestre/2001, p. 219. mático caso, já citado anteriormente (HC 79-785-7), o STF,
397 WUNDERLICH, Alexandre. Por um Sistema de Impugnações no Proces- afastando a aplicação dos preceitos da Convenção Ame-
so Penal Constitucional Brasileiro. In: WUNDERLICH, Alexandre. (org.) ricana de Direitos Humanos, não reconheceu o direito
Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao Professor Paulo Cláudio ao duplo grau de jurisdição, além de que ele poderia ser
Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 41.
limitado pelo próprio texto constitucional. E este seria o
398 Neste sentido deve-se apontar decisão da Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos, no informe 55/97 referente ao caso Carlos Abella contra Ar- caso, pois, conforme a ementa da decisão, a Constitui-
gentina. Conforme tal precedente, o recurso contra a sentença definitiva tem ção Federal apresenta casos de competência originária
como objeto admitir a possibilidade de que o condenado possa impugnar a em que admite-se a interposição de Recurso Ordinário
sentença desfavorável e obter novo exame da questão. (LIBERATORE, Gloria
Lucrecia. Derecho al Recurso: la impugnación de la sentencia penal como e, em outras hipóteses, nada regulou. Portanto, quando
garantía del imputado. Revista de Derecho Penal, número 1, 2001, p. 346)
399 MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de condena:
¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.com/ 400 LIBERATORE, Gloria Lucrecia. Derecho al Recurso: la impugnación de
Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd- la sentencia penal como garantía del imputado. Revista de Derecho Penal,
-rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013. (tradução livre) número 1, 2001, p. 342.

233 234
não há recurso estabelecido, acaba por proibi-lo. Neste para o pleno? Tais indagações são complexas, distancian-
sentido, segue parte da doutrina, ao afirmar que “o pró- do-se das pretensões deste trabalho, mas, certamente, in-
prio sistema constitucional, que estabelece a garantia do fluenciam diretamente na análise do duplo grau de juris-
duplo grau, pode validamente excluí-la em alguns casos: dição no cenário brasileiro.
é o que ocorre com as hipóteses de competência originá- De qualquer modo, a ausência de recurso da conde-
ria dos tribunais (...)”.401 Recentemente, também se julgou nação nestes casos fundamenta sólidas críticas por parte
agravo regimental que pretendia o exame de recurso ex- da doutrina. Percebe-se que o julgamento direto por ór-
traordinário no qual se buscava viabilizar a interposição gão colegiado ou o seguimento de um procedimento com
de recurso inominado, com efeito de apelação, de deci- maiores garantias não dão conta do cerne do duplo grau
são condenatória proferida por Tribunal Regional Fede- de jurisdição, que, conforme se defendeu anteriormente
ral, em sede de competência originária.402 Ali apontou-se neste trabalho, aborda a possibilidade de questionamen-
que o duplo grau de jurisdição não deve ter caráter ab- to e impugnação dos fundamentos da condenação.403
soluto e, portanto, pode sofrer limitações constitucional- Ademais, como aponta Ingo Sarlet, é “no mínimo ques-
mente previstas. Ademais, refere que o julgamento em tionável a tese da taxatividade das hipóteses recursais,
órgão colegiado e as garantias do procedimento previsto visto que não se poderá confundir a garantia ao duplo
para julgamentos em competência originária asseguram grau com as competências recursais dos Tribunais”.404
o respeito aos direitos individuais. Ademais, neste ponto é mister analisar-se impor-
Por certo o problema de impossibilidade de recur- tante precedente da Corte Interamericana de Direitos
sos em julgamento diretamente em tribunais superiores Humanos. Trata-se do caso Barreto Leiva contra Ve-
oculta sua verdadeira causa: a competência originária. nezuela, julgado na sentença de 17 de novembro de
A situação se agrava quando analisa-se tal circunstância 2009.405 Na situação descrita, o réu foi condenado em
em relação ao Supremo Tribunal Federal, de modo que única instância pela Corte Suprema de Justiça do país,
surgem complexas questões: é adequado que o máximo
julgador do ordenamento pátrio, responsável pelo res-
guardo dos ditames constitucionais, tenha a incumbên- 403 Neste sentido, aponta Ingo Sarlet: “por outro lado, afirmar que o fato de
cia de realizar o processamento integral de casos penais? alguém ser julgado por órgão colegiado justifica o afastamento da possi-
bilidade de recorrer, significa desconhecer – para além de outros aspectos
E, se realmente reconhecer-se que há tal necessidade, – que não é este o objeto da previsão do direito ao duplo grau, mas sim a
por que não restringir o julgamento inicial para uma das possibilidade de revisão e eventual reforma integral ou parcial do primeiro
julgamento por outro órgão independente e hierarquicamente superior”.
turmas de ministros, de modo a possibilitar um recurso (SARLET, Ingo Wolfgang. Notas em torno do duplo grau de jurisdição em
matéria criminal. Jornal Estado de Direito, Porto Alegre, volume 3, número
22, setembro/2009, p. 13)
401 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio 404 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas em torno do duplo grau de jurisdição em
S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, matéria criminal. Jornal Estado de Direito, Porto Alegre, volume 3, número
2001. p. 24. 22, setembro/2009, p. 13.
402 Supremo Tribunal Federal, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 405 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_206_
601.832-8/SP, julgado em 17/03/2009, relator ministro Joaquim Barbosa. esp1.pdf. Acesso em: 03 de junho de 2013.

235 236
sem a possibilidade de recurso, além de diversas ou- recurso.406 Montero Aroca cita diversas decisões do Co-
tras violações que fogem ao objeto deste trabalho. Ci- mitê de Direitos Humanos da ONU para esclarecer que,
tando diversas outras decisões do Comitê de Direitos conforme tal órgão, com base no artigo 14.5 do Pacto de
Humanos da Organização das Nações Unidas, a CIDH Direitos Civis e Políticos deve haver a possibilidade de
aponta que tem sido enfática ao assinalar que o direito um recurso no caso de reforma da absolvição ensejada
de impugnar a condenação busca proteger o direito de por recurso dos acusadores.407
defesa, pois “a dupla conformidade judicial, expressada Diante de tal complexa problemática trazida, exem-
mediante a integral revisão da decisão condenatória, plificativamente, pelas questões suscitadas, parte da dou-
confirma o fundamento e outorga maior credibilidade trina aponta interessante proposta, visando à conformida-
ao ato jurisdicional do Estado”. Assim, conclui que os de com os pressupostos de um processo penal democrá-
Estados não podem estabelecer restrições ou requisitos tico. Inicialmente, deve-se reler os preceitos dos textos in-
que infrinjam a essência mesma do direito ao recurso ternacionais sobre direitos humanos já citados,408 os quais
da condenação. Deste modo, os foros de competência apresentam similaridade em sua redação, especialmente
especial para julgamento originário em tribunais supe- em relação ao sujeito possuidor do referido direito: “toda
riores são compatíveis com a Convenção Americana de pessoa” e “toda pessoa declarada culpada”, ou seja, crista-
Direitos Humanos, mas “ainda em estes casos o Estado linamente refere-se ao indivíduo que sofre a persecução
deve permitir que o acusado conte com a possibilidade penal e deve ter seus direitos fundamentais garantidos
de recorrer da decisão condenatória”. frente ao poder punitivo estatal. Assim, esclarece Rubens
Questão que também intrinca a problemática do di- Casara que “ao desconstruir o nexo entre o direito ao du-
reito ao recurso – percebido como uma garantia do acu-
sado que deve se assegurar como exigência para a exe-
cução de uma pena, se requisitada pelo réu – é a hipóte- 406 MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de condena:
se de condenação em segundo grau, a partir da revisão ¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.com/
Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd-
da sentença absolutória. Percebe-se que em tal situação -rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013.
também deveria ser assegurado o direito ao recurso, de 407 AROCA, Juan Montero. Proceso Penal y Libertad. Ensayo polémico sobre el
modo que surge a necessidade de um meio de impugna- nuevo proceso penal. Madrid: Thomson Civitas, 2008. p. 481. As decisões
ção de “terceiro grau”, o qual inexiste com a amplitude do Comitê citadas são os ditames de 25 de agosto de 2005, no caso Gomariz,
de 13 de novembro de 2006, no caso Mario Conde, e de 15 de novembro de
necessária no cenário brasileiro. Ademais, como aponta 2006, no caso García Sánchez e González Clares.
Julio Maier, neste desenho hipotético percebe-se o início 408 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da
de um “regresso infinito”, pois sempre é possível que o Costa Rica), recepcionada pelo ordenamento pátrio pelo Decreto 678/92,
acusador recorra e consiga uma condenação perante o prevê em seu artigo 8o, 2, “h”, que “durante o processo, toda pessoa tem
direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) h. direito
tribunal de última instância, mas contra essa primeira de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”. No mesmo sentido
condenação sempre deverá ser respeitado o direito ao vai o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo
Decreto 592/92, em seu artigo 14.5: “toda pessoa declarada culpada por um
delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma
instância superior, em conformidade com a lei”.

237 238
plo grau de jurisdição e o valor ‘verdade’, percebe-se com qual terá menos contato com a produção probatória, fará
mais clareza que esse direito racionalmente só se justifica justiça modificando a sentença absolutória.411
e, portanto, existe em razão do valor ‘liberdade’”, ou seja, Tal posicionamento se embasa no sistema do Direi-
“pode-se afirmar que se trata de uma garantia individual to anglo-saxão, pois tanto nos Estados Unidos como na
daquele que se vê perseguido em juízo”.409 Inglaterra, o direito ao recurso da sentença é exclusivo
Portanto, a proposta sustenta que o direito ao recur- da defesa.412 Isso se dá pela interessante interpretação
so se estabelece somente em relação à sentença conde- acerca do princípio do ne bis in idem, segundo a qual a
natória (ou à absolvição imprópria, pois a imposição de possibilidade de condenação a partir da revisão da ab-
medida de segurança certamente é um gravame jurídi- solvição acarreta um novo julgamento e, portanto, viola
co-penal), como uma garantia do acusado no sentido de o que se intitula “double jeopardy”.413 E, para aqueles que
possibilitar o questionamento e a impugnação da funda- “temem” a impunidade em razão da redução no núme-
mentação do pronunciamento judicial, que intenta ma- ro de condenados e de encarcerados, Geraldo Prado bem
cular a presunção de inocência. À acusação, por outro lembra que nos Estados Unidos há dois milhões de pre-
lado, não se admitiria o recurso em relação ao mérito, ou sos e cinco milhões de condenados.414
seja, a absolvição não poderia ser revisada materialmen- Montero Aroca, em análise sobre a disposição do ar-
te, ensejando somente recursos sobre questões de direi- tigo 14.5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políti-
to.410 Sabe-se que o ônus da prova é sempre da acusação, cos (o qual aponta o direito ao recurso para “toda pessoa
de modo que, como bem aponta Geraldo Prado, se, du- declarada culpada”), empreende crítica sobre a restrição
rante a instrução criminal – em que a ela é dado o direito ao reexame da absolvição, sustentando que a interpre-
de provar os fundamentos de sua pretensão acusatória tação do texto convencional deve se dar a partir das pre-
e de demonstrar os fatos que sustentam seu pedido de missas do sistema espanhol, o qual tem como princípio
condenação –, não se consegue obter o pleno convenci- essencial a igualdade entre as partes.415 Entretanto, pa-
mento do juiz, não há porque supor que o tribunal, o
411 PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no Processo Penal brasileiro:
homenagem às ideias de Julio B. J. Maier. Revista Cidadania e Justiça, Rio de
Janeiro, ano 5, número 10, 1o semestre/2001, p. 219.
412 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Crimi-
409 CASARA, Rubens R. R.. O Direito ao Duplo Grau de Jurisdição e a Cons- nais. São Paulo: Atlas, 2002. p 44, nota 9.
tituição: em busca de uma compreensão adequada. In: PRADO, Geraldo;
413 MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de condena:
MALAN, Diogo (coord.). Processo Penal e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen
¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.com/
Juris, 2009. p. 506.
Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd-
410 Jaques Penteado se posiciona a favor de tal restrição em relação ao recurso -rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013.
do acusador, mas sustenta sua adoção gradual, em razão das peculiarida-
414 PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no Processo Penal brasileiro:
des do sistema processual brasileiro. Assim, defende a restrição do ree-
homenagem às ideias de Julio B. J. Maier. Revista Cidadania e Justiça, Rio de
xame de absolvição em relação a crimes de menor potencial ofensivo em
Janeiro, ano 5, número 10, 1o semestre/2001, p. 220/221.
um primeiro momento. (PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de
Jurisdição no Processo Penal. Garantismo e Efetividade. São Paulo: Revista 415 AROCA, Juan Montero. Proceso Penal y Libertad. Ensayo polémico sobre el
dos Tribunais, 2006. p. 175/176) nuevo proceso penal. Madrid: Thomson Civitas, 2008. p. 482.

239 240
rece não ser essa a posição mais adequada. Sabe-se que, tente hipótese de cabimento de meio de impugnação
embora a igualdade das partes seja sustentada por al- adequado. Logo, a proposta de vedação ao recurso de
guns como uma aspiração e um ideal a ser buscado pelo mérito por parte do acusador parece ser conveniente
legislador, resta cristalino que não apresenta conteúdo para a retificação de tais pontos, além de apresentar
absoluto, especialmente na seara processual penal.416 cunho eminentemente relacionado às premissas de um
Deve-se sempre ter em mente que a persecução criminal processo penal democrático orientado pelos preceitos
movimenta o imenso poder estatal contra um indivíduo constitucionais e pelas orientações convencionais inter-
singular, que somente tem seus direitos fundamentais nacionais em matéria de direitos humanos.
como escudo de proteção, de modo que o processo penal Embora também possa ser sustentada a inexistên-
precisa ter mecanismos para “equilibrar substancialmen- cia de vedação à possibilidade de reexame da absolvição,
te a balança”. Trata-se do princípio do favor rei, que, como tal hipótese é permeada por tensões na seara processual,
bem aponta Giuseppe Bettiol, é premissa necessária em como, por exemplo, seu atrito com o princípio do ne bis
um Estado autenticamente livre e democrático, pois “na in idem.418 Seguindo-se por tal diapasão, tem-se que, em
contraposição entre o ius puniendi do Estado, de um lado, todas as situações, seja em um julgamento por tribunal
e o ius libertatis do imputado, de outro, a preeminência superior em competência originária ou em alteração de
deve ser atribuída a este último se se quer que o valor da uma absolvição para condenação em sede de apelação
liberdade seja o triunfante”.417 ministerial, deve ser resguardada o duplo grau de juris-
Diante do exposto neste ponto, conclui-se que o dição e possibilitada a impugnação por meio de recurso.
duplo grau de jurisdição se expressa a partir do direito Por fim, importante esclarecer que as tendências de
ao recurso como possibilidade de questionamento e de restrição ao direito ao recurso, pautadas por posturas
impugnação da motivação da decisão condenatória, ou utilitaristas e eficientistas, só podem ser admitidas em
seja, como garantia do acusado. Assim, pode ser ques- relação ao ius puniendi estatal. Ou seja, caso se queira a
tionado o julgamento originário em tribunal superior, redução do número de recursos, só pode prosperar a
em que não há hipótese de revisão plena da sentença, proposta anteriormente analisada, que pretende a pos-
pois, embora proferida por órgão colegiado e (supos- sibilidade de impugnação de mérito exclusiva da defe-
tamente) desenvolvida a partir de procedimento pau-
tado de maiores garantias, não se respeita o cerne do
preceito aqui estudado. Ademais, o segundo problema 418 Sobre tal tensão, Fauzi Choukr, ao defender a vedação ao recurso da acu-
sação sobre a absolvição, sustenta que “não se trata apenas do apego à li-
analisado, qual seja, a condenação em sede de recurso teralidade da CADH, a qual dá a entender que o recurso teria cabimento
de absolvição acarreta aporia similar, quando inexis- apenas pelo interesse processual do acusado. Ela se funda numa revisão da
natureza da relação jurídica recursal e apresenta como consequência que
o exercício do recurso pelo acusador público ou privado contra a sentença
absolutória configuraria, na verdade, um novo julgamento, violando a im-
416 BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal. Tomo I. Rio de Janei-
possibilidade de que alguém se submeta a uma nova persecução com base
ro: Elsevier, 2008. p. 14.
na mesma situação fática já decidida”. (CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de
417 BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. Barcelona: processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de
Bosch, 1973. p. 262. Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 799)

241 242
sa, pois, como bem aponta Julio Maier, “esta é a única diferenciação entre questões de direito e de fato. Confor-
maneira de acolher argumentos políticos que fundam me Jaques Penteado, em uma primeira análise pode-se
a redução do recurso contra a sentença, a economia de dizer que estas se tratam como uma ocorrência histórica
meios e a razão prática frente a recursos judiciais limi- e, as de direito, como a qualificação jurídica desse aconte-
tados, ou seja, a única maneira de efetuar uma discri- cimento.421 Entretanto, diversos outros posicionamentos
minação racional (...)”.419 são encontrados no campo jurídico, sendo forçoso con-
cluir pela nebulosidade da questão suscitada. Parece cla-
ro que a delimitação precisa entre tais distinções é muito
4. Qual o recurso adequado para complicada, pondo-se, assim, em xeque as tendências de
realizar o duplo grau de jurisdição? limitação do direito ao recurso deste modo pautadas.422
Ao passo que exista quem defenda a restrição dos recur-
Questões sobre a amplitude sos somente para questões de direitos, surge importan-
da impugnação e mais algumas te questionamento: respeita-se desse modo o necessário
instigações. duplo grau de jurisdição?
A discussão, então, deve partir para a análise acer-
Como já exposto anteriormente, as tendências de li- ca das principais características dos dois tipos ideais de
mitação ao direito de recorrer ressaltam tensão em rela- recursos em espécie, os quais apresentam propriedades
ção à construção acerca do duplo grau de jurisdição como diferentes conforme o ordenamento jurídico estudado.
pressuposto de um processo penal democrático. Aponta- Entretanto, segundo Binder, dois são os instrumentos
-se como característica de parte dos sistemas processuais que se verificam: o primeiro permite um novo veredicto
contemporâneos, por exemplo, a restrição da revisão do integral, em regra chamado de “apelação”, e, o segundo,
julgado somente a questões de direito,420 de modo que
surge importante mote: qual a espécie recursal adequa-
da para realizar o duplo grau de jurisdição? Assim, inda- 421 PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal.
Garantismo e Efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 166.
ga-se o âmbito de amplitude do reexame e suas possibi-
lidades de modificação da decisão originária. 422 Neste sentido, interessante é a manifestação do ex-ministro Pedro Chaves
no Recurso de Habeas Corpus 40.779, que se encaixa também à presente
Para a correta compreensão de tal cenário, de início discussão, conforme citado por Penteado: “(...) enquanto a justa causa foi
já surge problema de complexidade ímpar, qual seja, a justificativa da permissibilidade do pedido de habeas corpus, sou obriga-
do a examinar prova. Não farei reexame do contraditório, não abrirei ins-
trução probatório no processo sumário do habeas corpus. Mas não posso
julgar esse pedido sem examinar a prova produzida. Podendo ou devendo
419 MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de condena:
examinar a prova produzida, não sou obrigado a ter a mesma impressão
¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.com/
que o juiz do processo. Posso aceitar a versão dada pelo juiz da sentença e
Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd-
posso dar outra versão completamente diferente das mesmíssimas provas
-rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013.
produzidas. Mas deixar de examinar provas não posso, sob pena de não
420 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio poder dar meu voto”. (PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de Ju-
S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, risdição no Processo Penal. Garantismo e Efetividade. São Paulo: Revista dos
2001. p. 25. Tribunais, 2006. p. 166/167, nota 14)

243 244
se restringe somente ao controle da aplicação do Direito terpretação da cassação penal permite que este recurso
e das condições de legitimidade do veredicto, denomi- cumpra com as exigências de revisão da declaração de
nado “cassação”.423 Em regra, classifica-se tais modelos, culpabilidade e da pena por um tribunal superior, em
respectivamente, como ordinários e extraordinários.424 conformidade com o artigo 14.5 do Pacto. Assim, susten-
Historicamente, o recurso de cassação apresenta li- tou que o Tribunal Supremo pode analisar tanto a lici-
mitadas possibilidades de revisão do julgado, ao passo tude da prova praticada, como sua suficiência para des-
que tende a questionar somente a aplicação do Direito virtuar a presunção de inocência e a razoabilidade das
realizada no caso, vedando-se a valoração sobre o lastro motivações traçadas na condenação.426
probatório produzido e sua capacidade de sufragar a pre- Em relação ao cenário latino-americano, a Corte In-
sunção de inocência do acusado.425 Assim, existem inten- teramericana de Direitos Humanos se pronunciou sobre
sas discussões em ordenamentos nos quais tal recurso é o assunto no informe 24/92. Analisando o ordenamento
o único capaz de ensejar o reexame da decisão condena- da Costa Rica, a Corte definiu que o recurso de cassação
tória, contestando-se sua conformidade com o duplo grau se adapta ao dispositivo 8.2.h da Convenção Americana
de jurisdição, assegurado nos tratados internacionais. de Direitos Humanos, mas apontou certas cautelas ne-
Na Espanha, por exemplo, foi questionada, perante cessárias: “satisfaz os requerimentos da Convenção se
o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas – res- não houver regulação, interpretação ou aplicação com
ponsável por guarnecer as previsões do Pacto Interna- rigor formalista, mas sim que permita com relativa fa-
cional de Direitos Civis e Políticos –, a conformidade do cilidade ao tribunal de cassação examinar a validade da
recurso de cassação previsto pelo ordenamento espanhol sentença recorrida, em geral, assim como em relação ao
frente à previsão do artigo 14.5 do referido diploma. No respeito devido aos direitos fundamentais do imputado,
caso Gómez Vázquez (Ditame de 11 de agosto de 2000), em especial os de defesa e o devido processo”.427
o Comitê apontou violação ao dispositivo em questão, Assim, pode-se concluir que o recurso de cassação
pois a condenação somente havia sido revisada em cas- pode ser meio adequado para se empreender o duplo
sação pelo Tribunal Supremo, sendo que assim não hou- grau de jurisdição, desde que possibilite uma revisão
ve reexame integral, mas somente de aspectos formais e substancial do julgado, não se restringindo somente a
legais. Diante de tal parecer, o Tribunal Constitucional questões formais e legais.428 Ou seja, o tribunal revisor
espanhol, na sentença 70/2002, define que a correta in-
426 AROCA, Juan Montero. Proceso Penal y Libertad. Ensayo polémico sobre el
423 BINDER, Alberto M.. Introdução ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: nuevo proceso penal. Madrid: Thomson Civitas, 2008. p. 476/478.
Lumen Juris, 2003. p. 224.
427 LIBERATORE, Gloria Lucrecia. Derecho al Recurso: la impugnación de
424 GRINOVER, Ada P.; GOMES FILHO, Antonio M.; FERNANDES, Antonio la sentencia penal como garantía del imputado. Revista de Derecho Penal,
S. Recursos no Processo Penal. 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, número 1, 2001, p. 354.
2001. p. 33/34.
428 Aqui surge importante problema acerca do respeito ao princípio da orali-
425 LIBERATORE, Gloria Lucrecia. Derecho al Recurso: la impugnación de dade e da imediatidade no julgamento criminal: como o tribunal será ca-
la sentencia penal como garantía del imputado. Revista de Derecho Penal, paz de revisar a condenação se não presenciou a produção probatória e terá
número 1, 2001, p. 347. contato com a provas somente como transcritas documentalmente? (sobre

245 246
precisa ser capaz de verificar se a decisão condenató- lidade do recurso de apelação, o qual permite um reexa-
ria e, especialmente, sua motivação se coadunam com a me substancial do julgado e de suas motivações, somado
prova produzida, ou seja, se tal lastro é suficiente para ao sistema de recursos extraordinárias para tribunais
fragilizar a presunção de inocência e se não pairam dú- superiores, se mostra adequado e possibilita, em tese, a
vidas que ensejem o in dubio pro reo. Neste sentido, Julio plena garantia do duplo grau de jurisdição, em confor-
Maier traça sugestões ao instituto da cassação: dever-se- midade com os textos internacionais e as premissas de
-ia agregar às suas hipóteses de cabimento aquelas refe- um processo penal democrático.
rentes à revisão criminal, pois “não há necessidade de Entretanto, alguns pontos precisam ser melhor ana-
esperar que a sentença se torne definitiva para intentar lisados, especialmente em relação aos requisitos formais
sua modificação ou revogação por motivos graves que a que, cada vez mais, dificultam o acesso ao direito de re-
inabilitam desde o ponto de vista principal da recons- curso, especialmente em relação aos recursos especial e
trução histórica”.429 Ademais, o autor propõe que exista a extraordinário, mas também, até certo ponto, ao julga-
possibilidade de produção probatória durante o tramite mento da apelação. Como bem apontado pelo Tribunal
do recurso de cassação, dentro de certos limites. Constitucional espanhol, na sentença 42/1982, os pressu-
No cenário brasileiro percebe-se que os recursos es- postos e requisitos que condicionam a admissibilidade
pecial e extraordinário não seriam adequados para efeti- dos recursos contra sentença condenatória devem ser
var o duplo grau de jurisdição, no sentido proposto por interpretados do modo que mais favoreça o acesso do
este estudo. Resta claro que tais instrumentos se tornam recorrente ao grau revisional.431
cada vez mais limitados, tanto em relação à análise pro- Como dito, tal questionamento se enquadra essen-
batória, quanto aos requisitos de admissibilidade para cialmente em relação aos recursos para Tribunais Supe-
seu julgamento.430 Assim, o modelo ideal pátrio, que é a riores, em razão dos diversos entraves que estão sendo
regra no procedimento comum, contemplando a possibi- construídos para seu recebimento. Entretanto, certas
proposições precisam ser redigidas acerca do instituto
isso, ver: PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de Jurisdição no Pro- da “apelação”, de modo a solidificar sua posição como
cesso Penal. Garantismo e Efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, garantia do direito à impugnação da condenação. Pre-
2006. p. 44) Percebe-se que tal questão é relevante e traz importantes con- tende-se aqui assegurar o acesso ao grau recursal, a par-
sequências ao tema analisado. Entretanto, a partir das novas tecnologias,
como a gravação audiovisual dos depoimentos, as quais possibilitam (em tir da revisão da excessiva formalização na interpretação
tese) que os julgadores revisores tenham contato aprimorado com a prova de certas circunstancias. Por exemplo, o que deve ocorrer
produzida, reduzem tal aporiam. Além disso, a proposta de possibilidade
de produção de prova enseja um maior controle e contato com os pontos
no caso de inércia da defesa durante o lapso do prazo
fundamentais a legitimar a motivação decisória. para seu recurso? Em regra, a doutrina sustenta que há
429 MAIER, Julio B. J.. El recurso del condenado contra la sentencia de condena: a preclusão da possibilidade de recorrer, de modo que a
¿una garantía procesal? Disponível em: < http://www.luismezquita.com/ sentença automaticamente transita em julgado. Parece-
Minugua%20(E)/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd-
-rom/data/300/333J.HTM> Acesso em: 02 de junho de 2013.
430 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucio- 431 DEU, Teresa Armenta. Lecciones de Derecho procesal penal. 6a edição. Madrid:
nal. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 544/580. Marcial Pons, 2012. p. 264.

247 248
-nos que tal posicionamento não é o mais adequado fren- Também deve-se optar pela admissão do recurso
te à construção empreendida neste estudo. Por certo que quando houver divergência de vontades entre o réu e
o recurso da defesa não deve ser inquestionavelmente seu defensor constituído, não só quando aquele renuncia
obrigatório ou automático, mas sua renúncia precisa ser ao direito de recorrer (conforme a súmula 705 do Supre-
por escrito, preferivelmente com a fundamentação acer- mo Tribunal Federal), mas também em situação oposta,
ca de sua inocuidade em relação à obtenção de um resul- em que o defensor técnico manifesta sua intenção de
tado mais favorável ao réu. Assim, com Fabrício Pozze- não apelar. Ou seja, havendo dúvida deve prevalecer o
bon, propõe-se que, no caso de inércia da defesa, “caberá conhecimento do recurso. Por fim, emblemática ques-
ao juiz reiterar a intimação do acusado e de seu defensor, tão que permeava o cenário processual penal brasileiro
estabelecendo prazo para que se manifestem, expressa- era a possibilidade de deserção da apelação no caso em
mente, se há ou não interesse em recorrer”.432 Persistindo- que o réu se evadisse da prisão. A inconstitucionalidade
-se a ausência de resposta, deve-se nomear defensor para do dispositivo saltava aos olhos, mas sua revogação se
que apele ou se manifeste por escrito acerca da inocuida- empreendeu somente recentemente, em 2011. Portanto,
de da interposição. Neste sentido, cumpre-se citar deci- em todos estes casos deve sempre imperar o direito ao
são do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a qual recurso contra a condenação, em conformidade com os
fortificou o direito ao recurso, na esteira da Convenção pressupostos de um processo penal democrático.
Americana dos Direitos do Homem, ao determinar que,
havendo dúvida acerca da vontade de recorrer, deve-se
conhecer o recurso de sentença penal condenatória. No 5. Considerações finais
caso, o réu, ao ser intimado da condenação, manifestou Em sede de conclusões, pensa-se que o principal
que pensaria se iria recorrer ou não, quedando-se inerte objetivo deste trabalho se centra na elucidação da com-
a partir de então. A apelação foi, então, interposta pela plexidade que envolve as diversas tensões presentes no
defesa intempestivamente, e, apesar disto, conhecida e
julgada favoravelmente.433
jurídica a nortear o processo penal. A governança contemporânea do pro-
cesso penal insere-se na compreensão e consideração dos dilemas, para-
432 POZZEBON, Fabrício Dreyer de Avila. Breves considerações sobre o direi-
doxos e teoremas, engendrados na pluralidade e complexidade sociais e
to ao recurso no processo penal brasileiro. In: WUNDERLICH, Alexandre
produzidos pelo confronto das normatividades, realizadas pelos sujeitos.
(coord.). Política Criminal Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
O conteúdo do PIDCP, da CADH, da doutrina e jurisprudência de suas
do, 2008. p. 289.
Cortes constituem a referencialidade internacional, a qual se submete a
433 APELAÇÃO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DIREITO AO RECURSO. centralidade constitucional brasileira. As regras ordinárias do processo
CONVENÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS DO HOMEM. PROVA. 1. penal, por sua vez, encontram validade e eficácia quando inseridas nessa
Havendo dúvida acerca da vontade em recorrer (réu que, ao ser intima- realidade convencional e constitucional. Essa é uma realidade normativa
do da sentença afirma que pensaria acerca de recorrer ou não), é de ser articulada, comunicante, conectada, interligada e viva (não só utopia) a ser
conhecido do recurso de uma sentença penal condenatória. Os diplomas articulada funcionalmente, acoplada, compreendida, validada e aplicada
internacionais, ratificados pelo Brasil, garantem o duplo grau quando o pelos sujeitos (argumentação, discurso, prática), em determinada situação,
imputado é condenado. Além da normatividade convencional, a jurispru- tempo e lugar (realidade). (...) Absolvição. RECURSO PROVIDO. (Apelação
dência da Corte Interamericana de Direitos do Homem é fonte de direito, Crime Nº 70052322898, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do
juntamente com as opiniões consultivas, constituindo uma nova realidade RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 14/03/2013)

249 250
campo jurídico-penal atual, especialmente em relação restrição dos recursos quanto ao mérito da condenação
aos meios recursais que permitem a rediscussão de uma somente ao acusado se mostra atraente, pois a limitação
decisão proferida em primeiro grau. Tal reexame, incluí- do direito ao recurso só pode se legitimar em relação ao
do, em termos gerais, na gama de instrumentos impug- polo de acusação. Esta é a interpretação que se impõe a
nativos admitidos para assegurar direitos fundamentais partir da análise dos textos internacionais e do posicio-
do acusado, se coloca no cerne de acalorados debates, namento das cortes de direitos humanos, além de ser o
pois se apresenta, para muitos, como um meio de pos- que se coaduna com as premissas de um processo penal
tergar e tornar ineficaz a punição que advém da conde- adequado ao Estado Democrático de Direito.
nação, a qual deveria ser “rápida e certeira”, nos termos Com relação ao recurso apropriado a efetivar o duplo
defendidos por aqueles que cedem ao clamor punitivista grau de jurisdição nos termos aqui propostos, percebe-se
de parte da sociedade. que a discussão não deve se pautar pela busca de um ins-
Desse modo, a partir da revisão dos fundamentos trumento padrão para todos os ordenamentos jurídicos,
dos recursos elencados pela doutrina tradicional, essen- mas sim traçar apontamentos que precisam ser atendidos.
cialmente buscando-se atentar aos diplomas internacio- Neste sentido, a partir da análise de decisões de cortes
nais sobre direitos humanos, é possível concluir que o internacionais, percebeu-se que é essencial a revisão ir-
direito ao recurso contra a condenação deve ser definido restrita do julgado, não se limitando somente a questões
como uma garantia do réu, não só da revisão do julgado, formais e legais. Em termos gerais, o tribunal revisor pre-
mas sim da possibilidade de que se questione e impugne cisa ser capaz de verificar se a decisão condenatória e,
os motivos da decisão, os quais, se protestados, precisam especialmente, sua motivação se coadunam com a prova
ser duplamente confirmados para se tornarem aptos a produzida, ou seja, se tal lastro é suficiente para fragilizar
impor uma pena. Assim, percebe-se que o direito ao re- a presunção de inocência e se não pairam dúvidas que
curso contra a condenação é fundamental ao processo ensejem o in dubio pro reo. Por fim, concluiu-se que as ten-
penal adequado ao Estado Democrático de Direito, tor- dências de extrema formalização na análise dos requisitos
nando-se requisito para a fragilização da presunção de de admissibilidade dos recursos precisam ser analisadas
inocência e para a legitimação do poder punitivo estatal. com cautela. Como exposto, a interpretação dos pressu-
Estudando-se duas questões problemáticas, quais postos no momento do conhecimento da impugnação
sejam a possibilidade de condenação em segundo grau deve se dar visando a garantir o duplo grau de jurisdição,
a partir de recurso da acusação e o julgamento por com- através da possibilidade de acesso à esfera recursal.
petência originária em tribunal superior, notou-se que
existem restrições ao duplo grau de jurisdição no orde-
namento pátrio, as quais devem ser revistas com cautela. 6. Referências
Concluiu-se que as limitações de meios impugnativos
em relação à sentença, atendendo a clamores de celeri- AROCA, Juan Montero. Proceso Penal y Libertad. Ensayo
dade e efetividade, somente podem ser empreendidas polémico sobre el nuevo proceso penal. Madrid: Thom-
com respeito às garantias do réu. Ou seja, a proposta de son Civitas, 2008.

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