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Doutor em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ-
FND); Membro da Associação Latino Americana de Direito Penal e Criminologia
(ALPEC) - Seção Brasileira; Membro da Associação Internacional de Direito Pe-
nal (AIDP- Brasil); Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Penal
(ABDPro); Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Gra-
duação da Universidade Federal do Paraná (UFPR); Membro fundador do Fórum
Permanente de Direito e Psicanálise da Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro; Membro da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB/RJ); Coordenador Adjunto em Processo Penal do Instituto de
Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Coordenador Adjunto do Instituto Brasilei-
ro de Ciência Criminais no Estado do Rio de Janeiro (IBCCRIM); Coordenador
Adjunto de Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro (EMERJ); Professor de Direito Processual Penal da Escola da Magistra-
tura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Advogado Criminalista.
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Introdução
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conferida ao júri para dar a última palavra acerca dos fatos apurados, do
que resulta a “prevalência da vontade da comunidade sobre o interesse
do Judiciário togado”; (iv) o procedimento do Júri, ao prever duas fases,
permite o controle prévio da decisão dos jurados, mediante o oferecimento
de recursos em que se poderá impugnar o mérito da imputação em todas
as instâncias do sistema de justiça; (v) a jurisprudência nos Tribunais
Superiores firmou-se no sentido de que a devolutividade das apelações
do júri é adstrita aos fundamentos da interposição.
A partir destas premissas, no artigo sustenta-se que “não havendo
possibilidade legal de impugnação acerca de determinado elemento da sentença
condenatória do júri”, este capítulo “se reveste dos efeitos da coisa julgada,
adquire estabilidade e se torna impassível de reexame ou desvirtuação por
juízo posterior”. Além de postular a execução imediata da pena nesses
casos, conclui-se que há coisa julgada também após o julgamento em
segunda instância, já que a duplicidade de fases no procedimento, “acaba
por criar um contexto em que as eventuais discussões jurídicas atinentes à
tipicidade da conduta são solucionadas já na fase da pronúncia” ou, de qual-
quer forma, poderão ser analisadas pelas instâncias recursais do sistema
de justiça penal brasileiro.
O direito processual penal, além de ser um dado histórico-cultu-
ral, expressa, como nenhum outro ramo jurídico, as relações estruturais de
poder, segurança e dominação, vigentes em uma determinada sociedade.2
Esta é razão pela qual o estudo do processo penal exige compreendê-lo
como parte da disputa de sentidos que conflagra a ação política.3 A
primeira coisa que se teve ter em mente em um debate científico sobre
direito processual penal, portanto, é que as posições assumidas em
torno das suas categorias expressam concepções políticas e ideológicas
distintas a respeito dos fundamentos deste saber. Essa não é uma ques-
tão de pouca importância e comparece, ainda que, implicitamente, na
crítica do presente artigo e em todas as outras. É dizer, como insistiu
2
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1989, p. 139.
3
PRADO, Geraldo. Crônicas da Reforma do Código de Processo Penal
brasileiro que se inscreve na disputa política pelo sentido e função da Justiça
Criminal. In: PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p. 110.
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O processo penal não pode ser visto somente como um conjunto de normas
que regulam os atos processuais ou a faculdade das partes. O campo da nor-
matividade processual penal contempla regras de distinto nível e é influen-
ciado pelo funcionamento real de diversos sistemas normativos informais e
tradições culturais. A chamada justiça penal é, portanto, configurada por um
universo de práticas e sistemas normativos que, lato sensu, também devem
ser compreendidas enquanto atos processuais (ainda que, em uma análise re-
ducionista, não se direcione ao procedimento criminal em si). Cf. BINDER,
Alberto. Derecho Procesal Penal. Hermenéutica del proceso penal. 1a ed. Bue-
nos Aires: Ad-Hoc, 2013, p. 39
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Márcia Tiburi e Rubens Casara trataram deste tema. Cf. TIBURI, Marcia. CA-
SARA, Rubens R.R. Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo. Disponí-
vel em https://revistacult.uol.com.br/home/50931-2/. Acesso em 16.04.20
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Em processo penal, a mediação histórica não pode ser realizada nos moldes
da historiografia tradicional, que aposta na cronologia pura e simples dos
acontecimentos e se funda em grandes narrativas. No campo da justiça cri-
minal, em geral, o recurso à história é fundamental para analisar as ideias
em disputa, permitindo que se identifiquem traços, indícios, linhas de per-
manência entre determinada perspectiva em matéria criminal e as tendên-
cias autoritárias, reforçando o papel da história em servir aos problemas do
tempo presente (Cf. GINZBURG, Carlo. Relações de Força: história, retórica,
prova. São Paulo: Cia. das Letras, 2002; GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de
um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia das Le-
tras, 1990). Em síntese, trata-se de perceber como circulam e se mobilizam
as ideias, especialmente, como elas são subjetivadas, penetram no tecido
social e institucional, na formação ideológica e na cultura jurídico-política
brasileira no tempo presente. Em outras palavras, a atenção deve estar vol-
tada para aquilo que Gizlene Neder chamou de permanências históricas de
longa duração (cf, NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal-luso-brasileiro:
obediência e submissão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
Freitas Bastos, 2000, p. 15-18).
7
Cf. MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de
Janeiro: Lumen Juris: 2010. Ainda: MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáve-
res adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas: 2013.
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práticas, elementos que definem o modelo de processo penal com ela com-
patível. Dessa forma, o decisivo para qualificar um sistema político como
democracia e, por consequência, um processo penal como democrático,
tem a ver, não apenas com a forma de tomada de decisões, mas, acima
disso, com o que se pode e o que não se pode decidir.8 Esta perspectiva
de democracia considera que os direitos fundamentais estipulados nas
constituições – e materializados no direito processual penal - são limites
e vínculos a quaisquer poderes, ao autogoverno e, portanto, à vontade e
autonomia dos cidadãos, como concluiu Luigi Ferrajoli.9
Na feliz expressão do mesmo jurista, a concretização do Estado
Democrático de Direito leva à maximização das liberdades e expectati-
vas e, simultaneamente, a minimização dos poderes.10 Esta ideia move a
exigência de se assegurar, nos regimes democráticos, um efetivo estatuto
jurídico das liberdades. O Direito Processual Penal integra este estatuto,
erigindo-se como um instrumento ético para consecução de finalidades
jurídicas e metajurídicas, dentre as quais a garantia dos direitos fundamen-
tais do imputado, na aplicação da lei penal. No campo criminal, portanto, o
pacto constitucional no qual a democracia é fundada, qualifica o processo
penal como dispositivo voltado à construção dos limites ao exercício do
poder, com o que se garante um processo de racionalização das respostas
aos desvios criminalizados. Todo o poder está sujeito a constrangimen-
tos democráticos, materializados em garantias processuais de natureza
constitucional e convencional que tutelam a liberdade individual. Essas
garantias funcionam como ferramentas de proteção das liberdades de
cidadãos e cidadãs, estabelecendo óbices à opressão pública ou privada.11
8
Para aprofundamento da questão, conferir: BAYÓN, Juan Carlos. Democracia
y derechos: problemas del constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel et al
(org.). El Canon neoconstitucional. Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 300-301.
9
“E qualquer poder, por mais democrático que seja, é submetido, pelo paradigma
da democracia constitucional, a limites e vínculos, como são os direitos funda-
mentais, destinados a impedir a sua degeneração, segunda a sua intrínseca vo-
cação, em formas absolutas e despóticas” (FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Uma
discussão sobre Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 80).
10
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do garantismo penal. Trad. Fauzi
Hassan Choukr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 694-695.
11
Cf. CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo
Penal. Dogmática e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
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Sobre a tentativa de estender às vítimas o conceito de garantias, cf. BINDER,
Alberto. Derecho Procesal Penal. op, cit, p. 113.
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Cf. BIZZOTO, Alexandre. A inversão ideológica do discurso garantista. Rio de
Janeiro. Lumen Juris, 2009.
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14
Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica
da modernidade. Vol. II. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.
15
A ideia de presunção de inocência como princípio reitor do processo penal
brasileiro está presente em diversos trabalhos de Geraldo Prado, a exemplo
da última obra publicada no Brasil e no exterior. Cf. PRADO, Geraldo. A ca-
deia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
16
Os demais desdobramentos da presunção de inocência, por ex., no campo da
prova e, consequentemente, na constituição de estandartes adequados, crité-
rio de julgamento e outros, não integram o objeto desta crítica. A presunção
de inocência será pensada enquanto garantia política do cidadão, responsá-
vel por assegurar um determinado dever de tratamento. A posição jurídica
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partir deste “escudo constitucional”, todos estão (ou deveriam estar) pro-
tegidos de prisões automáticas, penas antecipadas, barganhas envolvendo
informações em troca de liberdade e outras práticas correntes no sistema
de justiça penal brasileiro. A presunção de inocência, em outras palavras,
é a fina flor dos regimes democráticos que, como escreveu Francesco
Carrara, faz dela sua bandeira para opô-la ao acusador e ao inquisidor.17
A tese em favor da execução imediata da pena no procedimento
do júri não pode ser compreendida fora desse quadro, afinal, a presunção
de inocência – não a soberania dos veredictos - é a chave explicativa dos
conceitos que estruturam o regime jurídico dos recursos no processo penal
brasileiro. Tais conceitos, como afirma Geraldo Prado, são eminentemen-
te operacionais e, dessa forma, “configuram definições que funcionam
como critério de racionalidade da jurisprudência criminal, cumprindo a
relevante função de contribuir para a segurança jurídica do cidadão no
Estado Democrático de Direito”.18
Embora seja uma questão invisibilizada, a identificação da presunção
de inocência com o conceito operacional de culpabilidade fática, é a viga
que sustenta a tese do autor. A defesa de “marcos diferenciados de trânsito
em julgado”, seja no procedimento do júri ou em segunda instância, deixa
isso claro: se a existência do fato naturalístico não está mais sob julgamento,
há culpa e o condenado deve ser preso. No caso do Júri, ao argumento de
que os Tribunais togados não poderão rever o mérito (fato naturalístico), o
acusado deve ser encarcerado imediatamente após a prolação da sentença
pelo juiz-presidente. A este propósito teórico vem servindo o emprego
da soberania dos veredictos, embora o conceito de coisa julgada, da qual
decorre a impossibilidade de execução da pena (sem necessidade cautelar),
esteja diretamente associada à presunção de inocência.
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Cf. PRADO, Geraldo. O trânsito em julgado da decisão condenatória. op. cit. p. 01
20
Ibid., p. 04.
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“O escopo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e uniformi-
dade da aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual
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Considerações Finais
(...) nos últimos tempos (para não dizer anos), várias propostas
surgiram no sentido de tornar o cumprimento da pena mais rápido
e, consequentemente, no entendimento de muitos, o combate à
criminalidade também mais efetivo.
24
O mito do processo penal como instrumento de segurança pública ou pa-
cificação social foi profundamente estudado por Rubens Casara: CASARA,
Rubens. Mitologia Processual Penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013.
25
Atlas da Violência 2019. Disponível em http://www.forumseguranca.org.
br/wp-content/uploads/2019/06/Atlas-da-Violencia-2019_05jun_vers%-
C3%A3o-coletiva.pdf. Acesso em 16.04.20.
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Vale a pena citar, aqui, a situação do Júri. Quase 90% dos casos de
homicídio não são desvendados. E aí pergunto se será o aumento
do quanto da pena possível de ser cumprida ou mesmo a possibi-
lidade de seu cumprimento se iniciar após a sentença de primeira
instância, ou após o esgotamento das instâncias ordinárias, que
tornará o Estado mais eficiente na punição do crime de homicídio?
26
A notícia se refere a inquéritos instaurados em 2017 e reanalisados em 2019.
Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/24/
monitor-da-violencia-2-anos-depois-73percent-dos-inqueritos-de-homici-
dios-ainda-estao-em-andamento-no-rj.ghtml. Acesso em 16.04.20.
27
Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/09/11/esclareci-
mento-homicidios-rj/. Acesso em 16.04.20.
28
REIS JUNIOR, Sebastião. O tempo do processo penal. Disponível em ht-
tps://www.migalhas.com.br/quentes/324921/presuncao-de-inocencia-
nao-mais-orienta-operadores-do-direito-adverte-ministro-sebastiao-reis.
Acesso em 16.04.20
Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 1059-1078, mai.-ago. 2020.
https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i2.388 | 1075
R eferências
BAYÓN, Juan Carlos. Democracia y derechos: problemas del constitucionalismo.
In: CARBONELL, Miguel (org.). El Canon neoconstitucional Madrid: Editorial
Trotta, 2010.
29
PRADO, Geraldo. O trânsito em julgado da decisão condenatória. op. cit. p. 05.
30
Ibid., p. 06.
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