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Crítica científica de “Redefinindo o trânsito em

julgado a partir da soberania dos veredictos:


a coisa julgada parcial no tribunal do júri”

Scientific criticism of “Redefining claim preclusion from verdict


sovereignty: parcial res judicata in jury trials”

Antonio Pedro Melchior1


Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro/RJ, Brasil
apmelchior@melchioradvogados.com.br
http://lattes.cnpq.br/6865616601789018
https://orcid.org/0000-0002-2005-9232

Resumo: Trata-se de crítica científica ao artigo “Redefinindo o trânsito


em julgado a partir da soberania dos veredictos”, em que se defende
a execução imediata da pena aos condenados pelo Tribunal do Júri. A
partir da delimitação do conceito de democracia no direito processual
penal, a crítica aborda os problemas da inversão ideológica do discurso
em torno das garantias processuais que, na hipótese do artigo analisado,
conduziu ao uso argumentativo da soberania dos veredictos para fins
de ampliação do poder penal. Além disso, a crítica trabalha o conceito

1
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ-
FND); Membro da Associação Latino Americana de Direito Penal e Criminologia
(ALPEC) - Seção Brasileira; Membro da Associação Internacional de Direito Pe-
nal (AIDP- Brasil); Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Penal
(ABDPro); Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Gra-
duação da Universidade Federal do Paraná (UFPR); Membro fundador do Fórum
Permanente de Direito e Psicanálise da Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro; Membro da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB/RJ); Coordenador Adjunto em Processo Penal do Instituto de
Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Coordenador Adjunto do Instituto Brasilei-
ro de Ciência Criminais no Estado do Rio de Janeiro (IBCCRIM); Coordenador
Adjunto de Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro (EMERJ); Professor de Direito Processual Penal da Escola da Magistra-
tura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Advogado Criminalista.

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de culpabilidade jurídica da presunção de inocência, categoria


chave para compreensão do estatuto normativo dos recursos e da
impossibilidade de execução imediata ou antecipada da pena, antes
do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Palavras-Chave: crítica científica; soberania dos veredictos; processo
penal; democracia; culpabilidade jurídica; presunção de inocência.

Abstract: This paper proposes a scientific criticism of “Redefining claim


preclusion from verdict sovereignty”, in which the immediate execution of
the sentence to those convicted by the jury trials is defended. From the
delimitation of the concept of democracy in the criminal procedure, this
paper addresses the problems of the ideological inversion of discourse
around the procedural guarantees that, in the hypothesis of the article, led
to the argumentative use of the sovereignty of verdicts for the purpose of
expanding the criminal power. In addition, this paper operates the concept
of normative culpability of the presumption of innocence, a key category
for understanding the resources and the impossibility of execution of the
sentence immediately or anticipated, before the claim preclusion of guilty
criminal sentence.
Keywords: Scientific criticism; verdict sovereignty; procedural criminal;
democracy; normative culpability.

Introdução

No artigo “Redefinindo o trânsito em julgado a partir da soberania


dos veredictos: a coisa julgada parcial no tribunal do júri”, defende-se a
existência de marcos diferenciados de trânsito em julgado nos proce-
dimentos do júri, hipóteses em que a execução imediata da pena não
ofenderia a garantia constitucional da presunção de inocência.
Os argumentos centrais do ensaio podem ser resumidos em
cinco assertivas: (i) o Tribunal do Júri surge como um dos dispositivos
de consolidação das democracias; (ii) a instituição do Júri e a soberania
dos veredictos refletem um direito-garantia de dúplice aspecto, a saber,
“direito subjetivo do acusado ao julgamento pelo júri” e “direito do cidadão,
não acusado, de participar na administração da justiça do país”; (iii) a
soberania dos veredictos se traduz numa competência jurídico-funcional

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conferida ao júri para dar a última palavra acerca dos fatos apurados, do
que resulta a “prevalência da vontade da comunidade sobre o interesse
do Judiciário togado”; (iv) o procedimento do Júri, ao prever duas fases,
permite o controle prévio da decisão dos jurados, mediante o oferecimento
de recursos em que se poderá impugnar o mérito da imputação em todas
as instâncias do sistema de justiça; (v) a jurisprudência nos Tribunais
Superiores firmou-se no sentido de que a devolutividade das apelações
do júri é adstrita aos fundamentos da interposição.
A partir destas premissas, no artigo sustenta-se que “não havendo
possibilidade legal de impugnação acerca de determinado elemento da sentença
condenatória do júri”, este capítulo “se reveste dos efeitos da coisa julgada,
adquire estabilidade e se torna impassível de reexame ou desvirtuação por
juízo posterior”. Além de postular a execução imediata da pena nesses
casos, conclui-se que há coisa julgada também após o julgamento em
segunda instância, já que a duplicidade de fases no procedimento, “acaba
por criar um contexto em que as eventuais discussões jurídicas atinentes à
tipicidade da conduta são solucionadas já na fase da pronúncia” ou, de qual-
quer forma, poderão ser analisadas pelas instâncias recursais do sistema
de justiça penal brasileiro.
O direito processual penal, além de ser um dado histórico-cultu-
ral, expressa, como nenhum outro ramo jurídico, as relações estruturais de
poder, segurança e dominação, vigentes em uma determinada sociedade.2
Esta é razão pela qual o estudo do processo penal exige compreendê-lo
como parte da disputa de sentidos que conflagra a ação política.3 A
primeira coisa que se teve ter em mente em um debate científico sobre
direito processual penal, portanto, é que as posições assumidas em
torno das suas categorias expressam concepções políticas e ideológicas
distintas a respeito dos fundamentos deste saber. Essa não é uma ques-
tão de pouca importância e comparece, ainda que, implicitamente, na
crítica do presente artigo e em todas as outras. É dizer, como insistiu

2
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1989, p. 139.
3
PRADO, Geraldo. Crônicas da Reforma do Código de Processo Penal
brasileiro que se inscreve na disputa política pelo sentido e função da Justiça
Criminal. In: PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p. 110.

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Alberto Binder, que não se pode construir um saber processual penal


neutro, descomprometido com a funcionalidade empírica do sistema
penal como um todo.4
A defesa da execução imediata da pena nos procedimentos do júri
produz, antes de tudo, efeitos muito concretos: prende pessoas, antecipa
a resposta violenta do Estado, enfim, fragiliza as ferramentas de proteção
individual em face do poder punitivo. A tese representa, assim, um retro-
cesso no processo civilizatório orientado a reforçar os dispositivos que
integram o sistema de garantias em um regime democrático, em especial,
a força normativa da presunção de inocência.
Em atenção aos limites de espaço, esta crítica científica irá se ater
ao que acima se referiu como fundamentos do direito processual penal,
por ser este o núcleo que define a finalidade deste saber, notadamente
em uma democracia política. Deste universo, dois pontos são essenciais
para reflexão adequada das ideias levantadas no artigo aqui analisado:
(i) o que se deve entender por democracia e processo penal, relação que
responde não apenas pela valorização do Tribunal do Júri e consagração
da soberania dos seus veredictos, mas por um complexo sistema de pro-
teção das liberdades individuais; (ii) qual é a relevância da presunção de
inocência aos processos penais democráticos e, especialmente, com que
abrangência foi materializada no texto constitucional brasileiro.
Essas duas questões, que nada dizem sobre o caráter vinculado
da fundamentação recursal no procedimento do Júri, duplicidade de
fases, conceito de trânsito em julgado ou outros detalhes, levantam as
principais objeções à tese do ensaio: há inversão ideológica do discurso
em torno das garantias processuais; desidratação da presunção de ino-
cência, notadamente do conceito de culpabilidade jurídica.

4
O processo penal não pode ser visto somente como um conjunto de normas
que regulam os atos processuais ou a faculdade das partes. O campo da nor-
matividade processual penal contempla regras de distinto nível e é influen-
ciado pelo funcionamento real de diversos sistemas normativos informais e
tradições culturais. A chamada justiça penal é, portanto, configurada por um
universo de práticas e sistemas normativos que, lato sensu, também devem
ser compreendidas enquanto atos processuais (ainda que, em uma análise re-
ducionista, não se direcione ao procedimento criminal em si). Cf. BINDER,
Alberto. Derecho Procesal Penal. Hermenéutica del proceso penal. 1a ed. Bue-
nos Aires: Ad-Hoc, 2013, p. 39

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Em tempos de interdição ao diálogo construtivo e pandemização


social do antintelectualismo,5 o debate exposto no artigo é necessário e
urgente. Relevante que tenha sido provocado a partir de construções
consistentes dogmaticamente e com ideias claras a respeito do projeto
que defende para o direito processual penal.

1. N otas sobre D emocracia e Processo Penal : o problema da


inversão ideológica do discurso em torno das garantias
processuais .

Em determinadas passagens do ensaio, conquanto se refira pro-


priamente à soberania dos veredictos, expõe-se a relação intrínseca entre
o desenvolvimento jurídico do sistema de garantias e os processos de de-
mocratização de regimes políticos, inclusive, os experimentados no Brasil.
A concepção de que o direito processual penal integra o arcabou-
ço jurídico das liberdades contra velhos (e novos) poderes, constitui uma
das ideias-força que caracterizam o saber criminal em uma democracia.
Diante disso, no texto abdicou-se da “pretensão de se definir democracia”
(e os seus desdobramentos no sistema de justiça penal) sob a justificati-
va de que esta tarefa, “há séculos martiriza os cientistas políticos” e “está
longe de culminar numa expressão com identidade estática e consensual.”
É preciso estar de acordo que alguns temas são ásperos para
tratar em poucas páginas. Outras categorias, como sistema inquisitivo e
acusatório, também estão longe de expressar uma “identidade estática e
consensual”, mas nem por isso abdica-se do saber próprio aos sistemas
adversariais quando se analisam os fenômenos jurídicos e políticos do
processo penal. A ausência de definição de democracia e seus efeitos no
âmbito dos direitos e garantias penais, permitiu vincular-se a instituição
do júri e a soberania dos veredictos à ideia de “resistência ao Estado”,
ao mesmo tempo em que se defendia a execução imediata da pena, uma
solução que, à toda evidência, amplia o poder punitivo e, portanto, nada
tem de “resistência” ou de “consolidação da democracia”.

5
Márcia Tiburi e Rubens Casara trataram deste tema. Cf. TIBURI, Marcia. CA-
SARA, Rubens R.R. Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo. Disponí-
vel em https://revistacult.uol.com.br/home/50931-2/. Acesso em 16.04.20

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A associação dos processos históricos de democratização no


Brasil à previsão do Tribunal do Júri é insuficiente para compreender
os desdobramentos que o regime democrático produz no sistema penal
em geral e no processo criminal, em particular. Prova isso o fato de que
a exposição histórica, enquanto método de análise, foi restringida a uma
cronologia de datas e acontecimentos, portanto, alheia à exigência de fazer
do saber histórico uma ferramenta para o desvelamento de permanências
inquisitoriais e práticas antidemocráticas.6
Em suma, a discussão a respeito da “existência de marcos dife-
renciados de trânsito no procedimento do Júri”, como exposta no artigo,
está condicionada a premissas que devem orientar a interpretação do
que seja soberania dos veredictos, trânsito em julgado, procedimento do
Júri etc., em um processo criminal concebido como espelho do Estado
Democrático de Direito.7
Especialmente no campo penal e processual penal, o Estado
Democrático de Direito não se identifica com o princípio da maioria,
enquanto elemento legitimador do exercício do poder. É antes o oposto,
ou seja, essencialmente contra majoritário. A democracia substancial
constitui um sistema político completo em sua estrutura, composição e

6
Em processo penal, a mediação histórica não pode ser realizada nos moldes
da historiografia tradicional, que aposta na cronologia pura e simples dos
acontecimentos e se funda em grandes narrativas. No campo da justiça cri-
minal, em geral, o recurso à história é fundamental para analisar as ideias
em disputa, permitindo que se identifiquem traços, indícios, linhas de per-
manência entre determinada perspectiva em matéria criminal e as tendên-
cias autoritárias, reforçando o papel da história em servir aos problemas do
tempo presente (Cf. GINZBURG, Carlo. Relações de Força: história, retórica,
prova. São Paulo: Cia. das Letras, 2002; GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de
um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia das Le-
tras, 1990). Em síntese, trata-se de perceber como circulam e se mobilizam
as ideias, especialmente, como elas são subjetivadas, penetram no tecido
social e institucional, na formação ideológica e na cultura jurídico-política
brasileira no tempo presente. Em outras palavras, a atenção deve estar vol-
tada para aquilo que Gizlene Neder chamou de permanências históricas de
longa duração (cf, NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal-luso-brasileiro:
obediência e submissão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
Freitas Bastos, 2000, p. 15-18).
7
Cf. MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de
Janeiro: Lumen Juris: 2010. Ainda: MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáve-
res adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas: 2013.

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práticas, elementos que definem o modelo de processo penal com ela com-
patível. Dessa forma, o decisivo para qualificar um sistema político como
democracia e, por consequência, um processo penal como democrático,
tem a ver, não apenas com a forma de tomada de decisões, mas, acima
disso, com o que se pode e o que não se pode decidir.8 Esta perspectiva
de democracia considera que os direitos fundamentais estipulados nas
constituições – e materializados no direito processual penal - são limites
e vínculos a quaisquer poderes, ao autogoverno e, portanto, à vontade e
autonomia dos cidadãos, como concluiu Luigi Ferrajoli.9
Na feliz expressão do mesmo jurista, a concretização do Estado
Democrático de Direito leva à maximização das liberdades e expectati-
vas e, simultaneamente, a minimização dos poderes.10 Esta ideia move a
exigência de se assegurar, nos regimes democráticos, um efetivo estatuto
jurídico das liberdades. O Direito Processual Penal integra este estatuto,
erigindo-se como um instrumento ético para consecução de finalidades
jurídicas e metajurídicas, dentre as quais a garantia dos direitos fundamen-
tais do imputado, na aplicação da lei penal. No campo criminal, portanto, o
pacto constitucional no qual a democracia é fundada, qualifica o processo
penal como dispositivo voltado à construção dos limites ao exercício do
poder, com o que se garante um processo de racionalização das respostas
aos desvios criminalizados. Todo o poder está sujeito a constrangimen-
tos democráticos, materializados em garantias processuais de natureza
constitucional e convencional que tutelam a liberdade individual. Essas
garantias funcionam como ferramentas de proteção das liberdades de
cidadãos e cidadãs, estabelecendo óbices à opressão pública ou privada.11

8
Para aprofundamento da questão, conferir: BAYÓN, Juan Carlos. Democracia
y derechos: problemas del constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel et al
(org.). El Canon neoconstitucional. Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 300-301.
9
“E qualquer poder, por mais democrático que seja, é submetido, pelo paradigma
da democracia constitucional, a limites e vínculos, como são os direitos funda-
mentais, destinados a impedir a sua degeneração, segunda a sua intrínseca vo-
cação, em formas absolutas e despóticas” (FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Uma
discussão sobre Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 80).
10
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do garantismo penal. Trad. Fauzi
Hassan Choukr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 694-695.
11
Cf. CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo
Penal. Dogmática e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

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Sendo esta a finalidade política do direito processual penal em


uma democracia – dispositivo de contra poder jurídico – não há como
concordar com a ideia fundamental de que, no específico caso do júri, a
feição democrática do instituto se revela, com igual preponderância, no
“direito do cidadão, não acusado, de participar da administração da justiça
do país” e que disso resulta aplicar imediatamente a pena aos condenados
pelo conselho de sentença.
Os argumentos de base são os seguintes: os regimes democráti-
cos fortaleceriam o júri, com o fim de assegurar ao cidadão o direito de
participar diretamente da administração da justiça, não por intermédio
do Estado; a soberania dos veredictos, nesse contexto, expressaria um
direito-garantia de dúplice aspecto, do que resulta proteger a “decisão
final tomada pelo povo da intervenção e modificação do Estado, contra
quem a instituição originalmente fora criada”; sendo assim, seria correto
considerar que, inadmitida a revisão do “núcleo essencial do júri, que é
prevalência da vontade da comunidade sobre o interesse do Judiciário
togado”, a pena de prisão pode ser imediatamente executada.
Ante tais assertivas, algumas ponderações precisam ser levantadas.
Em primeiro lugar, a instituição do júri (e soberania dos veredic-
tos), na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não em
outra, está formalmente incluída entre os direitos e garantias individuais
em matéria criminal, o que significa serem titularizados por cidadãos
submetidos à persecução penal pelo Estado brasileiro. Dito de outra
forma, os destinatários dos direitos e garantias fundamentais em matéria
penal, previstas no art. 5° da CR88, não são os “cidadãos, não acusados, a
quem foi dado o direito de participar da administração da justiça”, como
tampouco o são as eventuais vítimas de delitos.12
Ainda que no artigo se reconheça a feição individual da soberania
dos veredictos, relacionando-a ao devido processo legal, a tese cons-
truída a partir da ideia de “direito-garantia de natureza dúplice” serve,
em concreto, à forte ampliação do poder do Estado, naquilo que é mais
caro ao direito processual penal: executar antecipadamente as penas
de privação da liberdade. Na prática, a tese implica no que Alexandre

12
Sobre a tentativa de estender às vítimas o conceito de garantias, cf. BINDER,
Alberto. Derecho Procesal Penal. op, cit, p. 113.

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Bizzoto denominou inversão ideológica do discurso garantista: subverte-se


a finalidade das normas constitucionais que definem direitos e garantias
individuais com o fim de ampliação do sistema penal.13
A instituição do júri e, por conseguinte, a previsão constitucional
da soberania dos seus veredictos, sem embargo da “complexidade histórica
da sua formação e desenvolvimento”, consolida – no contexto de um pro-
cesso penal democrático – o direito do acusado, em processos por crimes
dolosos contra a vida, de se defender perante “pessoas comuns”, “leigas”,
e ser por elas julgado. É verdade que a “confrontação da soberania dos
vereditos com os demais direitos fundamentais do acusado acabou por
gerar um sistema processual muito específico”, mas é importante que se
diga, em última análise, que esta especificidade responde por uma opção
constituinte segundo a qual o cidadão, processado por crime doloso con-
tra a vida, está melhor protegido quando julgado por juízes não togados.
Na oportunidade em que criticou os que compreendem o Tribunal
do Júri “apenas e tão somente pela feição fundamental do cidadão de ser jul-
gado por seus pares”, como aqui se defende, afirmou-se que tal concepção
haveria de admitir a possibilidade de renúncia deste direito pelo acusado,
logo, de escolher ser julgado por juízo singular, “o waiver of jury trial,
como chamado no direito americano”. O argumento peca por confundir
a titularidade do direito com sua eventual disponibilidade. A este respei-
to, convém registrar que as garantias que consagram liberdades públicas
ou, de alguma forma, relacionam-se a direitos fundamentais em matéria
penal são, em regra, indisponíveis. A defesa da natureza unidirecional da
garantia não resulta, enfim, que o cidadão possa renunciar à sua proteção.
A impossibilidade de revisão da decisão do júri pela agência
judicial existe, consequentemente, para manter a integridade de um
sistema concebido em favor do acusado. Da mesma forma, a duplicidade
de fases procedimentais, o fato de que os jurados decidirão por íntima
convicção, podendo absolver por qualquer motivo (previsão de quesitação
genérica), a garantia do sigilo, a seleção impessoal de jurados, além de
outros desdobramentos inerentes à plenitude de defesa, consagrada na
Constituição da República de 88. No artigo, contudo, essa circunstância

13
Cf. BIZZOTO, Alexandre. A inversão ideológica do discurso garantista. Rio de
Janeiro. Lumen Juris, 2009.

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decorre do direito, titularizado (genericamente) por membros da so-


ciedade de participarem da administração da justiça, do que derivaria a
vedação ao Estado de se imiscuir no mérito da decisão. É a partir desta
consideração que lá se irá conceber a instituição do júri como expressão
da resistência contra o Estado, paradoxalmente, não pela via do cidadão
processado, mas pelo conjunto de pessoas a quem teria sido dado o direito
de decidir o mérito da causa, no lugar do Estado-juiz.
É necessário dizer, diante disso, que a instituição do júri não está,
nem poderia estar, em contraposição ao Estado, tampouco é certo dizer
que o povo participa da administração da justiça sem “intermédio estatal”.
O Tribunal do Júri integra os aparelhos oficiais destinados à adjudicação
de responsabilidades criminais. O processo instaurado por acusações de
crimes dolosos contra a vida é, antes de tudo, expressão do poder estatal
consistente em perseguir penalmente as pessoas. O que ocorre, no caso
do procedimento do júri, é uma substituição parcial da atividade judicante,
autorizada constitucionalmente, sem que disso se outorgue ao cidadão, não
acusado, direito fundamental de qualquer espécie. Mesmo considerada a
ideia de “natureza dúplice do papel normativo do júri”, um deles atinente
ao “direito participativo do cidadão de ser jurado”, esta tese não exclui o
fato de que, deflagrado o processo judicial, a única pessoa em resistên-
cia ao Estado é o cidadão imputado (e sua defesa técnica). A genealogia
da instituição do júri, em suma, reflete a luta de forças sociais contra o
monopólio absoluto do Estado nas atividades judicantes, uma resistência
operada em favor das liberdades fundamentais do indivíduo e não para dar
conta do desejo da população em participar do espetáculo punitivo oficial.
Como se observa, a delimitação do conteúdo normativo da so-
berania dos veredictos não pode ser realizada sem uma compreensão
adequada do sentido político-democrático do sistema de garantias no
campo processual penal, inclusive e especialmente, a quem ele se destina.
Isto implica a necessidade de retomada dos seus fundamentos que, como
assentado, vinculam-se às estratégias de contenção do poder do Estado,
em qualquer espécie de procedimento criminal, envolva acusações de
crimes dolosos contra a vida ou não.
O segundo ponto desta “crítica científica” decorre diretamente
desses fundamentos e, a meu ver, responde pelo principal obstáculo
epistemológico à tese sustentada no artigo.

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2. Presunção de Inocência e C ulpabilidade N ormativa

Desde o julgamento do Habeas Corpus n° 126.292/SP pelo Su-


premo Tribunal Federal, portanto, há quatro anos, o tema da execução
da pena após condenação criminal em segunda instância ocupa a vida
dos brasileiros e suscita divergências acaloradas entre pessoas de diver-
sas profissões e classes sociais. As discussões alimentadas pela grande
imprensa, contudo, não trouxeram à praça pública um debate jurídico
qualificado, pelo contrário, reproduziram o que há de mais pueril no
senso comum teórico dos juristas.14
O artigo aqui analisado vai bem ao estudar os marcos diferenciados
do trânsito em julgado no procedimento do júri, demonstrando domínio
em temas relevantes à dogmática processual penal stricto sensu, como os
limites do sistema recursal, especificidades do procedimento, restrições
impostas à magistrados togados em processos desta natureza etc. Ao
longo do texto, entretanto, mesmo categorias rígidas como o trânsito em
julgado – ele próprio, relacionado à ideia de imutabilidade - se tornaram
maleáveis. Esta manobra discursiva, como as outras que visam a aplicar
sanções criminais antes de esgotados os recursos, só é possível diante da
ausência de uma adequada compreensão do princípio da presunção de
inocência, conforme previsto na Constituição da República Federativa
do Brasil desde 5 de outubro de 1988.
Em uma frase: a presunção de inocência é o princípio que governa
o direito processual penal brasileiro.15 Ela traduz uma das mais importantes
garantias políticas do cidadão, impondo um dever de tratamento dirigido
ao Estado que visa a assegurar um status: o estado jurídico de inocente.16 A

14
Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica
da modernidade. Vol. II. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.
15
A ideia de presunção de inocência como princípio reitor do processo penal
brasileiro está presente em diversos trabalhos de Geraldo Prado, a exemplo
da última obra publicada no Brasil e no exterior. Cf. PRADO, Geraldo. A ca-
deia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
16
Os demais desdobramentos da presunção de inocência, por ex., no campo da
prova e, consequentemente, na constituição de estandartes adequados, crité-
rio de julgamento e outros, não integram o objeto desta crítica. A presunção
de inocência será pensada enquanto garantia política do cidadão, responsá-
vel por assegurar um determinado dever de tratamento. A posição jurídica

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partir deste “escudo constitucional”, todos estão (ou deveriam estar) pro-
tegidos de prisões automáticas, penas antecipadas, barganhas envolvendo
informações em troca de liberdade e outras práticas correntes no sistema
de justiça penal brasileiro. A presunção de inocência, em outras palavras,
é a fina flor dos regimes democráticos que, como escreveu Francesco
Carrara, faz dela sua bandeira para opô-la ao acusador e ao inquisidor.17
A tese em favor da execução imediata da pena no procedimento
do júri não pode ser compreendida fora desse quadro, afinal, a presunção
de inocência – não a soberania dos veredictos - é a chave explicativa dos
conceitos que estruturam o regime jurídico dos recursos no processo penal
brasileiro. Tais conceitos, como afirma Geraldo Prado, são eminentemen-
te operacionais e, dessa forma, “configuram definições que funcionam
como critério de racionalidade da jurisprudência criminal, cumprindo a
relevante função de contribuir para a segurança jurídica do cidadão no
Estado Democrático de Direito”.18
Embora seja uma questão invisibilizada, a identificação da presunção
de inocência com o conceito operacional de culpabilidade fática, é a viga
que sustenta a tese do autor. A defesa de “marcos diferenciados de trânsito
em julgado”, seja no procedimento do júri ou em segunda instância, deixa
isso claro: se a existência do fato naturalístico não está mais sob julgamento,
há culpa e o condenado deve ser preso. No caso do Júri, ao argumento de
que os Tribunais togados não poderão rever o mérito (fato naturalístico), o
acusado deve ser encarcerado imediatamente após a prolação da sentença
pelo juiz-presidente. A este propósito teórico vem servindo o emprego
da soberania dos veredictos, embora o conceito de coisa julgada, da qual
decorre a impossibilidade de execução da pena (sem necessidade cautelar),
esteja diretamente associada à presunção de inocência.

ostentada pelo indivíduo equivale, nas palavras de Velez Mariconde, a um


verdadeiro estado de inocência. Cf. MARICONDE, Velez. Derecho Procesal
Penal. Cordoba: Marcos Lerner Editora Cordoba. 1981, p. 46, Tomo II.
17
CARRARA, Francesco. Il diritto penale e la procedura penale (prolusione al
coso di diritto criminale ed ell’ anno accademico 1873-74, nella R. Univer-
sitá di Pisa): Opusculi di Diritto Criminale, Lucca: Tipografia Giusti, 1874,
v. V, p. 17
18
PRADO, Geraldo. O trânsito em julgado da decisão condenatória. Disponível
em https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5673-O-transito-em-julga-
doda-decisao-condenatoria. Acesso em 16.04.20, p. 02

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Geraldo Prado também chamou atenção para o fato de que a


defesa da antecipação da execução da pena no Brasil resulta, tal como
em outros casos, da má tradução de experiências jurídicas de origem di-
versa.19 Ao retomar as lições de Enrique Bacigalupo, observou que estas
teses inspiravam-se, por ex., no modelo norte-americano que “atribui ao
processo penal função determinante na luta contra o delito”. O modelo
do controle social do delito, no qual se inspiram os defensores da exe-
cução antecipada da pena, trabalha com um “conceito operacional de
culpabilidade fática que é oposto ao conceito jurídico de culpabilidade,
que repousa na presunção de inocência”.20
As propostas que visam a antecipar o trânsito em julgado da
decisão condenatória, para evitar os obstáculos impostos pela cláusu-
la pétrea, contornam o conceito jurídico de culpabilidade, fixando-se
numa concepção estritamente fática que não corresponde ao modelo
constitucional de devido processo penal, orientado pela presunção de
inocência. Em respeito às experiências históricas do país, a decisão do
poder constituinte brasileiro foi a de estender esta proteção jurídica até
o esgotamento dos recursos interpostos contra a decisão condenatória.
Esta tradição, profundamente antidemocrática, exigiu (e exige) que a
persecução penal seja controlada até a última instância do sistema de
justiça para que, só depois, possa-se declarar alguém como culpado. A
presunção de inocência protege o cidadão até que a responsabilidade
criminal esteja juridicamente resolvida e não faticamente determinada.
Por isso o dispositivo constitucional não traz ressalvas à instituição do
Júri, condenação em segunda instância ou qualquer outra.
Em suma, a concepção normativa de culpabilidade, na qual se
assenta o princípio da presunção de inocência no Brasil, como disseram
Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró, exerce uma função nomofilática, ou seja,
assegura que a pena somente seja executada após o controle, integral
e mais eficiente possível, da correta aplicação da Constituição e da lei
federal, em todo e qualquer processo criminal no Brasil:21

19
Cf. PRADO, Geraldo. O trânsito em julgado da decisão condenatória. op. cit. p. 01
20
Ibid., p. 04.
21
“O escopo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e uniformi-
dade da aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual

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Em apertada síntese, o conceito normativo de culpabilidade exi-


ge que somente se possa falar em (e tratar como) culpado, após
o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a
imutabilidade da condenação. E, mais, somente se pode afirmar
que está ‘comprovada legalmente a culpa’ como exige o art. 8.2 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, com o trânsito em
julgado da decisão condenatória.22

No artigo analisado sustenta-se que a coisa julgada substancial,


a qual autoriza a execução imediata da pena, vai ou não incidir, a de-
pender do fundamento do recurso ou, o que dá no mesmo, viabilidade
de se alterar o mérito da condenação, circunstância que a instituição
do júri limita por natureza. Nesta linha de raciocínio, entende, por ex.,
que seria possível prender, imediatamente, mesmo o condenado que
recorra da dosimetria, pois, “poderia ir cumprindo a pena mínima”. A
sentença penal, no entanto, expressa um único ato de poder do Estado,
materializada em único título, sobre o qual incidirão os mecanismos de
controle e impugnação. A defesa da existência de “marcos diferenciados
de trânsito em julgado” ou de “coisa julgada parcial”, incorre, como se
observa, em mais de um problema: cria, a manu militari, novo conceito
de coisa julgada, sem fonte e história, a fim de que seja possível atribuir
efeitos materiais a parte de uma decisão, ainda em aberto; incorpora uma
visão “gradualista” da presunção de inocência que, tal como alertado por
Maurício Zanoide, não deixa de esconder um ranço técnico-positivista
da presunção de culpa.23
A bem da verdade, os esforços teóricos para execução imediata
ou antecipada da sanção criminal sustentam-se, implicitamente ou não,
na retórica da “luta contra a impunidade” e maior “eficiência penal”.

que se sinta prejudicada e interponha tais meios de impugnação”. Cf. LOPES


JUNIOR, Aury. BADARÓ, Gustavo Henrique. Presunção de inocência: Do con-
ceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória., p. 21 (Parecer).
Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/parecer-antecipacao-pena.
pdf. Acesso em 16.04.20
22
LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Presunção de inocência.
op, cit. p. 20
23
CF. MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal
brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e
para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 1059-1078, mai.-ago. 2020.
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Na prática, a tese visa a reduzir o processo penal ao papel de controle


da criminalidade e instrumento de pacificação social,24 uma finalidade
que não é adequada ao modelo constitucional de devido processo penal,
governado pela presunção de inocência.

Considerações Finais

(...) nos últimos tempos (para não dizer anos), várias propostas
surgiram no sentido de tornar o cumprimento da pena mais rápido
e, consequentemente, no entendimento de muitos, o combate à
criminalidade também mais efetivo.

O interessante é que, em sua grande maioria, as propostas possuem


um viés punitivo. As sugestões vão da criação de novos tipos penais,
passando pelo aumento do quanto da pena bem como do tempo
do seu efetivo cumprimento e pela sua execução imediata após o
esgotamento das vias ordinárias, e chegando, no fim, a obstáculos
à progressão no seu cumprimento.

Sebastião Reis Júnior

Segundo o Atlas da Violência de 2019, publicado pelo Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
em 2017, houve 65.602 homicídios no Brasil, “maior nível histórico de
letalidade violenta intencional no país.”25 A alta taxa de violência letal
que acomete a população jovem e negra, vem alcançando outros grupos
específicos, especialmente as mulheres e a população LGBTQ.
Na ausência de dados oficiais confiáveis a respeito do percentual
de homicídios solucionados no país, a sociedade civil tem realizado im-
portante trabalho de pesquisa e divulgação de informações sobre a cifra

24
O mito do processo penal como instrumento de segurança pública ou pa-
cificação social foi profundamente estudado por Rubens Casara: CASARA,
Rubens. Mitologia Processual Penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013.
25
Atlas da Violência 2019. Disponível em http://www.forumseguranca.org.
br/wp-content/uploads/2019/06/Atlas-da-Violencia-2019_05jun_vers%-
C3%A3o-coletiva.pdf. Acesso em 16.04.20.

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oculta envolvendo este crime e sua investigação. Levantamento realizado


pelo Monitor da Violência, iniciativa de uma empresa de comunicação so-
cial, indicou que após 2 anos da identificação de inquéritos, instaurados
em uma mesma semana em diversos pontos do Estado do Rio de Janeiro,
73% deles continuavam totalmente em aberto.26 No ano de 2018, a Agência
Lupa, por meio do cruzamento entre a Lei de Acesso à Informação e dados
obtidos junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, analisou
a situação dos inquéritos abertos para apurar, em específico, a prática de
homicídios dolosos: apenas 331 dos 5.042 registros de homicídios dolosos
feitos no Estado do Rio de Janeiro em 2016 levaram a denúncias. A taxa de
homicídios não “esclarecidos” alcançou, portanto, o percentual de 93,44%.27
A polícia judiciária brasileira, notadamente a civil, possui notório
quadro de precariedade material e humana, da qual resulta um número
escandoloso de investigações sobre homicídios dolosos, sem conclusão
quanto à autoria. A indignação de Sebastião Reis Júnior está plenamente
justificada.28 É preciso reproduzi-la:

Vale a pena citar, aqui, a situação do Júri. Quase 90% dos casos de
homicídio não são desvendados. E aí pergunto se será o aumento
do quanto da pena possível de ser cumprida ou mesmo a possibi-
lidade de seu cumprimento se iniciar após a sentença de primeira
instância, ou após o esgotamento das instâncias ordinárias, que
tornará o Estado mais eficiente na punição do crime de homicídio?

Não é preferível se aparelhar a Polícia para que investigue a con-


tento os casos de homicídio e a Justiça para que os julgue com a
celeridade necessária antes mesmo de se discutir se a condenação
deve ser cumprida de imediato ou após o esgotamento das vias
ordinárias ou após o seu trânsito em definitivo?

26
A notícia se refere a inquéritos instaurados em 2017 e reanalisados em 2019.
Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/24/
monitor-da-violencia-2-anos-depois-73percent-dos-inqueritos-de-homici-
dios-ainda-estao-em-andamento-no-rj.ghtml. Acesso em 16.04.20.
27
Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/09/11/esclareci-
mento-homicidios-rj/. Acesso em 16.04.20.
28
REIS JUNIOR, Sebastião. O tempo do processo penal. Disponível em ht-
tps://www.migalhas.com.br/quentes/324921/presuncao-de-inocencia-
nao-mais-orienta-operadores-do-direito-adverte-ministro-sebastiao-reis.
Acesso em 16.04.20

Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 1059-1078, mai.-ago. 2020.
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Seria necessário realmente discutirmos a antecipação do cumpri-


mento da pena se esses processos durassem, por exemplo, o que
duram, em média, no Paraná – dois anos e nove meses?

Será que essa efetividade que se procura não passa, primeiro,


pelo aparelhamento da Polícia? Por uma maior agilidade da Jus-
tiça, agilidade essa que depende, não só da legislação, mas da sua
estruturação humana e material?

A tese de execução imediata da pena, após condenação no júri,


assim como da execução após condenação em segunda instância, apoia-
se na igualdade hierárquica entre direitos (e garantias) fundamentais do
acusado e dever do Estado de garantir justiça eficiente,29 com a diferença
que, no primeiro caso, fala-se em soberania dos veredictos e, no segundo,
somente em dever-poder do Estado de repressão ao delito. A entrada em
cena da soberania dos veredictos, contudo, parece ir além, pois convoca uma
narrativa em que o interesse da comunidade na aplicação da pena aparece
de forma mais preponderante que o direito fundamental (garantia) do
acusado de “resistir a pretensões de restrições de direitos fundamentais”.30
A presunção de inocência, conforme prevista na Constituição da
República de 1988, não admite esta equiparação. Sob o seu “governo”,
a soberania dos veredictos deve ser concebida como parte da estratégia
democrática de valorização dos direitos processuais do acusado e não o
contrário. Tal ponto de partida, reflexo dos fundamentos de um direito
processual penal democrático e acusatório, permite suscitar questões
diversas das que foram levantadas no artigo, como por ex., a de saber se
deve ou não admitir-se o recurso do Ministério Público contra a soberana
decisão dos jurados que absolvem o réu.

R eferências
BAYÓN, Juan Carlos. Democracia y derechos: problemas del constitucionalismo.
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Trotta, 2010.

29
PRADO, Geraldo. O trânsito em julgado da decisão condenatória. op. cit. p. 05.
30
Ibid., p. 06.

Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 1059-1078, mai.-ago. 2020.
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Informações adicionais e declarações dos autores


(integridade científica)

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration):


o autor confirma que não há conflitos de interesse na realização
das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declara-


tion of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os
requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores;
todos os coautores se responsabilizam integralmente por este
trabalho em sua totalidade.

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality):


o autor assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado an-
teriormente em outro meio e que futura republicação somente se
realizará com a indicação expressa da referência desta publicação
original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

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Dados do processo editorial – crítica científica


(http://www.ibraspp.com.br/revista/index.php/RBDPP/about/editorialPolicies)

▪▪ Recebido em: 19/04/2020 Equipe editorial envolvida


▪▪ Controle preliminar e verificação de plágio: ▪▪ Editor-chefe: 1 (VGV)
17/05/2020
▪▪ Retorno rodada de correções: 21/05/2020
▪▪ Decisão editorial final: 21/05/2020

COMO CITAR ESTA CRÍTICA CIENTÍFICA:


MELCHIOR, Antonio Pedro. Crítica científica de “Redefinindo o trânsito em
julgado a partir da soberania dos veredictos: a coisa julgada parcial no tribunal
do júri”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 2,
p. 1059-1078, mai./ago. 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i2.388

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative


Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 1059-1078, mai.-ago. 2020.

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