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Resumo: O texto discute o problema da tomada de decisão para aplicação das penas no direito
criminal, em especial em torno dos sentidos atribuídos ao artigo 59 do Código Penal brasileiro
e a eventual violação às garantias do indivíduo. Para isso, desenvolve uma análise crítica do
problema a partir do referencial tópico-retórico da Escola de Mainz. Analisa-se, portanto, a
seguinte questão: como a abordagem tópico-retórica pode enfrentar a abertura do texto
normativo em relação à dosimetria da pena e à potencial liberdade dos magistrados em torno
do significado do art. 59 do Código Penal? Nesse sentido, a pesquisa inicia com a discussão a
respeito da compreensão tópico-retórica da dogmática jurídica e sua relação com o debate
gnosiológico interno do direito positivo moderno. Em seguida, observa como tem sido o
confronto de narrativas em torno do sentido dogmático do art. 59. Por fim, analisa como a
perspectiva retórica compreende as circunstâncias judiciais subjetivas nas decisões criminais e
apresenta conclusões que corroboram para uma retomada da perspectiva tópico-retórica no
ensino jurídico e para uma crítica ao enrijecimento abstrato do conhecimento teórico apartado
da realidade social brasileira.
INTRODUÇÃO
O presente texto reflete como são tomadas as decisões de aplicação judicial da pena, a
partir de uma perspectiva tópico-retórica. Considerando os riscos de um autoritarismo
camuflado pela técnica jurídica e as potenciais violações a direitos e garantias processuais, a
pesquisa discute como a dogmática jurídica enfrenta o problema do subjetivismo na atribuição
de sentido do art. 59, do Código Penal, acerca das circunstâncias da pena.
Em razão dessa obrigação imposta aos juízes, a dogmática penal tenta orientar critérios
e aspectos como antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias,
consequências geradas pelo fato criminoso e o comportamento da vítima. Mas até que ponto
esses discursos estratégicos conseguem influir na prática jurídica?
Ao considerar que toda pena será aferida por meio deste dispositivo normativo, a
pesquisa adquire maior relevância prática. Observar como são aplicadas essas circunstâncias
judiciais é, portanto, uma tarefa analítica que pode permitir uma compreensão mais adequada
sobre o direito. Caso não exista algum controle semântico, a ocorrência de variações decisórias
pode também gerar um ambiente de descrédito em relação à aplicação do direito.
Por meio desse caminho, ao final, a pesquisa formula conclusões, com o objetivo de
contribuir para a continuidade das discussões sobre os limites e as potencialidades de uma
dogmática jurídica crítica e voltada aos problemas nacionais. Desse modo, são apresentadas as
considerações finais sem qualquer pretensão de encerrar a discussão, mas, pelo contrário,
com o objetivo de colaborar criticamente com o tema.
Nos últimos anos, perspectiva tópico-retórica tem sido cada vez mais adotada para a
investigação de problemas jurídicos na área criminal. Isso porque, ao considerar a pesquisa
jurídica como uma espécie de “metalinguagem que estuda os discursos persuasivos
[relacionados ao mundo jurídico]” (ABREU, 2019, p. 17), a abordagem tópico-retórica permite
um modo de compreensão sobre os elementos reais que atuam na aplicação concreta do
direito penal, desvendando as “cortinas” da aparente racionalidade técnica e permitindo a
superação de uma postura de ingenuidade. Não apenas em relação a discursos persuasivos,
mas também a recursos erísticos.
Apesar de ter origens remotas que se relacionam ao antigo mundo grego, especialmente
a obra de Aristóteles, a abordagem tópico-retórica do direito voltou a ganhar espaço a partir
da obra de Theodor Viehweg após as grandes guerras mundiais. Segundo Manuel Atienza
(2003, p. 57), esse autor não construiu uma teoria detalhada e sólida, mas teve o mérito de
inaugurar um campo para a investigação do direito enquanto conhecimento casuístico de
problemas reais – rompendo com a tradição racionalista de modelos dedutivos.
Discípulo e sucessor de Theodor Viehweg, Ottmar Ballweg foi responsável por auxiliar na
consolidação da retórica como possível método de análise da prática jurídica. Para isso,
destacou três níveis retóricos, concluindo que o último nível seria a “retórica analítica”. Assim,
a “realidade” é constituída pela própria retórica (“retórica material”), os discursos que tentam
orientar a ação futura também são comunicações (“retórica estratégica”) e a análise descritiva
que pretende compreender as regularidades desses discursos também é um modo retórico
(“retórica analítica”) (BALLWEG, 1991, p. 177-180).
Para exemplificar, trazendo a questão da aplicação da pena: pelo primeiro nível retórico,
se observa que a própria realidade dos conceitos básicos é constituída retoricamente na
linguagem – não há uma realidade externa à linguagem. Pelo segundo nível, a retórica
estratégica, são os discursos prescritivos da dogmática jurídica que buscam orientar a
aplicação da pena pelas autoridades competentes. No terceiro e último nível, a análise retórica
pretende ser uma observação de metalinguagem sobre os discursos dos dois primeiros níveis
retóricos: quais argumentos e estratégicas comunicativas atuam na caracterização da
“realidade” jurídica e nos discursos prescritivos.
Desse modo, na perspectiva retórica, a análise do direito penal não prescreve quaisquer
ideais de racionalidade, que é função da dogmática jurídica e das teorias normativas. Pretende
compreender o discurso efetivo, como no caso dos meios de persuasão, na medida em que
também observa as relações entre sujeitos, objetos e signos (ABREU, 2019, p. 35).
Uma das pesquisas mais recentes sobre a adoção da análise retórica na prática penal foi
publicada em 2021. Neste estudo empírico, Tomás Acioli apresentou o raciocínio judicial como
“resultado de uma operação eminentemente retórica”. Aplicando a análise retórica aos votos
proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto das ADPFs 395 e 444 sobre
conduções coercitivas do investigado, também percebeu que a retórica analítica possui uma
função eminentemente descritiva do discurso judicial. Assim, não pretendia apontar a “opção
interpretativa dogmaticamente adequada”, mas apenas destacar as estratégias retóricas que
atuaram na argumentação real (ACIOLI, 2021, p. 389).
No ano seguinte, Pedro Parini e Paolla Barbosa publicaram uma análise retórica sobre o
discurso acusatório no Tribunal do Júri na Comarca do Recife, ressaltando a relevância da
retórica analítica como método para compreensão de violações a direitos humanos na prática
do Ministério Público. A partir da retórica analítica, os pesquisadores buscaram explicitar os
“elementos persuasivos dos discursos jurídicos” e também “sua ligação ao processo de
afirmação ou negação dos direitos humanos”, concluindo que violações a direitos humanos
são causadas por discursos jurídicos determinados (PARINI; BARBOSA, 2022, p. 167-176).
De início, é preciso destacar o alerta de Katharina Sobota (1991, p. 45-60): a norma não
é um dado pré-fabricado e a linguagem constitui a única realidade jurídica possível. Ao afirmar
que “os fatos são claros”, há apenas uma artimanha argumentativa do jurista para persuadir o
destinatário da mensagem. Os chamados “fatos”, assim como os textos, não podem ser
portadores de um significado objetivamente mais adequado dentro do processo de
conhecimento. Alegar a objetividade de fatos e coisas é estratégia milenar que deu origem a
um brocardo jurídico latino “res ipsa loquitur” (“as coisas falam por si mesmas”) (ADEODATO,
2022, p. 34). A realidade jurídica, portanto, é consubstanciada em discursos que prevalecem
em determinado contexto – e sempre motivados por pretensões de verdade. Rejeitam-se,
portanto, posturas essencialistas que pretendam fixar, de modo apriorístico, conteúdos ideais
a serem perseguidos pelos sujeitos.
É possível que os “programas normativos” sejam mais específicos ou mais genéricos,
reduzindo ou ampliando a margem discricionária do intérprete; porém, a discricionariedade
jamais pode ser eliminada. O intérprete se vale de argumentos metodológicos para estruturar
seu discurso e produzir algum tipo de racionalidade (KRELL, 2014, p. 308).
Porém, por mais detalhado e minucioso que possa ser o dispositivo normativo, a prática
jurídica não pode ser controlada em absoluto pela literalidade dos textos. Pode até criar um
nível de dificuldade maior em termos de ônus argumentativo, mas não é uma barreira
intransponível que possa conter os ímpetos do intérprete. Por isso, a proposta retórica reflete
também a importância da institucionalização de procedimentos e do controle intersubjetivo da
linguagem (ADEODATO, 2021, p. 936). Portanto, a retórica – ainda que possa ser considerada
uma filosofia realista da prática jurídica – não deve ser confundida com uma proposta de
imunização contra arbitrariedades. Significa dizer que a definição dos discursos jurídicos
prevalecentes resulta da plausibilidade na comunicação social, de modo que são as lutas e
disputas comunicativas que definem o rumo da sociedade.
Em sua tese de doutorado, Isaac Reis (2014, p. 55-56) prefere adotar o termo “Análise
Empírico-Retórica do Direito (AERD)” para se referir a esse modelo de análise. No entanto, não
traz algo que diferencie da perspectiva já discutida por Ottmar Ballweg. Trata-se tão somente
de uma tentativa de discurso retórico mais próximo daquilo que se compreende como
“episteme” ou um conhecimento baseado em investigações descritivas sobre os discursos
reais. A forma como essa descrição acontece não está fixada, de modo rígido, em lugar algum.
Pode-se valer de mapeamentos das principais estratégias retóricas, sistematização com tabelas
ou gráficos e até mesmo um modelo de “sismógrafo” para “medir” a frequência de elementos
retóricos específicos nas decisões judiciais (SCHLIEFFEN, 2022, p. 261-278). Até mesmo
análises quantitativas com dezenas ou centenas de decisões podem ser promovidas com a
retórica analítica (CARVALHO; ROESLER, 2019, p. 42-68).
Portanto, não há consenso para uma receita pronta (REIS, 2014, p. 52-53). O importante
é que não se tracem análises prescritivas (típicas da retórica estratégica) como se fossem a
metódica retórica. Esta se apresenta como compreensão de discursos efetivamente
construídos em um contexto real e específico (ROESLER, 2018, p. 32).
Ocorre que, se toda e qualquer pesquisa descritiva das decisões judiciais for considerada
retórica analítica, então haverá uma perda qualitativa da “metodologia da pesquisa”. Porque
será apenas uma forma de raciocínio ou diretriz muito vaga sobre o tipo de discurso que se
pratica no ambiente acadêmico. Não é suficiente para esclarecer quais as etapas e o modo de
ser da abordagem (ALVES, 2022, p. 145-146). Descreve apenas a orientação de “não fixação de
dados ontológicos” e não prescritivos (MAIA, 2000, p. 22-27).
Por isso, cada pesquisa deve construir ou esclarecer, em cada cenário, seus critérios de
observação e explicar seu uso. Sendo assim, a perspectiva de Ottmar Ballweg permite uma
hipótese que deve ser considerada: os problemas da aplicação da pena são problemas que
surgem na linguagem e que só podem ser resolvidos com ferramentas da própria linguagem.
Da linguagem nada escapa – muito menos o direito! Desse modo, para esses autores retóricos,
não há método mais adequado para o raciocínio jurídico do que a aplicação da retórica.
1.2. A retórica analítica além da discussão do paradigma legalista: por uma gnosiologia
alternativa do direito
Nesses termos, a proposta retórica retoma e desenvolve uma crítica ao ensino jurídico e
à aplicação prática do direito. Pelo menos desde Theodor Viehweg – estimulado por
Giambattista Vico – se amplifica a crítica retórica contra a “pretensão cartesiana de um
conhecimento desvinculado da situação de sua produção e de seus produtores”. O
conhecimento jurídico não poderia estar ligado a um modelo dedutivo rígido, como se os
problemas pudessem ser eliminados de forma definitiva em modelos quase matemáticos; seria
preciso reabilitar um conhecimento prático baseado em problemas situacionais (ROESLER,
2004, p. 26-31).
Katharina von Schlieffen (2022, p. 25-27) também reforça que o ponto de partida da
guinada retórica é a contraposição entre o “estilo prudencial de pensar” – com orientação
prática provisória – versus o “estilo cartesiano more geometrico” – que busca princípios
verdadeiros e indubitáveis para derivar conclusões seguras e certas sobre o direito. Na medida
em que o direito tem pretensões de alcançar um discurso razoável ou plausível, o olhar
retórico se mostraria mais adequado para a prática jurídica. E isso repercute também no
ensino jurídico e na prática da academia e dos espaços forenses.
Ao longo das décadas, a prática jurídica e o ensino do direito giraram em torno de dois
paradigmas principais – um dogmatismo formalista e outro de caráter idealista-metafísico.
Esses modelos encontram-se, porém, em crise e criam espaço para alguma alternativa crítica
(WOLKMER, 2019, p. 2721-2724).
A busca por uma gnosiologia mais realista, em oposição ao racionalismo rígido ingênuo,
foi amplamente discutida e desenvolvida por diferentes correntes. Em comum, essas correntes
realistas tentam compreender o que de fato acontece, mas também é preciso considerar que
cada tradição guarda suas próprias peculiaridades – por exemplo, não se deve confundir a
experiência realista norte-americana com a experiência escandinava.
Desse modo, uma alternativa considerada mais adequada por Katharina von Schlieffen
seria uma teoria enquanto prudência ou prática prudencial e não ciência em sentido rígido.
Não se busca mais um “conhecimento da verdade” porque esse não seria o caso do direito;
afinal, o agir prudente considera que as condições estão sempre mudando. Logo, a doutrina
jurídica não teria uma função de conhecimento nos moldes racionalistas; mas sim a função de
compreensão das “condições, efeitos, e padrões de comportamento” no ambiente em que o
“direito é retoricamente produzido” (SCHLIEFFEN, 2022, p. 19-30).
Por tudo isso, a retórica analítica apresenta-se, então, como uma metódica do direito
que considera a prática jurídica como discursos que pretendem resolver problemas da
sociedade. Com tom cético, Katharina von Schlieffen assinala que os textos jurídicos passam a
ser vistos como “uma espécie de atuação teatral”, ou um “comportamento dirigido” para uma
“plateia” específica (2022, p. 11). No entanto, ao mesmo tempo, também considera que a
ingenuidade sobre a prática jurídica tem caráter funcional (SCHLIEFFEN, 2022, p. 140).
Neste momento, uma vez que tenha sido possível a compreensão da perspectiva tópico-
retórica, a pesquisa passa a se debruçar, de modo mais detalhado, sobre o problema da
atribuição de sentido judicial ao texto do art. 59 do Código Penal brasileiro.
Salo de Carvalho enfatiza que o momento da aplicação da pena é um dos temas mais
propensos às “perversões autoritárias” por dois fatores: a) ausência de critérios legais
específicos; b) o desrespeito e violação a essas garantias. Argumenta também que o sistema
brasileiro indica categorias “altamente indeterminadas” com textos imprecisos no art. 59 do
Código Penal – que, quando combinado com o lugar-comum teórico do “livre convencimento”
do magistrado, acaba gerando decisionismos (CARVALHO, 2020, p. 311-312).
Por isso, antes de adentrar na seara das circunstâncias judiciais de fixação da pena, se
faz necessário refletir sobre seu aspecto prático na seara criminal. Por isso, também deve ser
lembrado o teor do art. 68, caput, do Código Penal, o qual indica a análise de três fases
distintas (“sistema trifásico de dosimetria da pena”): a pena-base será fixada atendendo-se ao
critério do art. 59 do Código Penal e, em seguida, serão consideradas as circunstâncias
atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento 1. Portanto, a
primeira fase da dosimetria da pena aparece justamente na necessidade que tem o juiz de
analisar as circunstâncias judiciais.
Na análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59, a atividade jurisdicional deve
considerar todos os detalhes acerca do cometimento do crime, de modo que possa considerar
conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias e consequências do crime e
até o comportamento da vítima para averiguar o grau de reprovação do agente merecedor de
reprimenda. Com isso, poderá conjecturar uma sanção suficiente e necessária que contemple
o ônus argumentativo da reprovabilidade e da prevenção do crime.
1
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do
agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da
vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
julgamento processual com efetivo contraditório em matéria criminal, a pena será atribuída
em decisão condenatória fundamentada contra o agente que praticou o fato delituoso.
Mesmo que não se pretenda realizar uma ampla discussão sobre a função da pena, é
preciso considerar que a atribuição de sanção pelos agentes estatais pode desempenhar
diversas funções na sociedade – estejam elas descritas em corpos legislativos ou não. Em
relação à vida social, a pena é construída, no discurso jurídico, como meio para a estabilização
das expectativas ou mesmo controle social, especialmente em face da ideia de “proteção da
sociedade” e até mesmo “equilíbrio social” (DIETER, 2005, p. 1-12).
À luz da perspectiva retórica para reflexão sobre o mundo dos crimes, Israel Jório (2020,
p. 76-81) enfatiza: as normas não são extraídas dos fatos; são produtos da vontade humana,
“criações dirigidas ao controle de alguma conduta”. A prática jurídica é, assim, comunicação
social prática para fins de controle social.
Então, para além da atribuição da pena correspondente, há também uma valoração que
envolve as circunstâncias e a finalidade da conduta praticada pelo indivíduo. Porém, qual filtro
é indicado pela legislação para servir como parâmetro de análise? Para isso, aparecem as
circunstâncias específicas do art. 59 – analisados no próximo subtópico 2.4. Antes, porém,
deve-se considerar a questão da prevenção de potenciais práticas delitivas.
Quando a argumentação jurídica se volta para o controle genérico dos atos ilícitos,
buscando diminuir ou erradicar sua ocorrência, então haveria uma prevenção geral. Em sua
modalidade negativa, pretende desestimular as práticas do crime em geral. É o caso de
propagar a ideia de que o “crime não compensou” e que houve a devida condenação e sanção
do agente criminoso, servindo de exemplo (BITENCOURT, 2020, p. 142).
A prevenção geral positiva, por outro lado, tem pretensão de demonstrar a força da lei,
da norma jurídica penal, enquanto vigente e válida. É uma ideia, portanto, que remete a
confiabilidade da sociedade na coercibilidade da lei penal (ROXIN, 1997, p. 91).
Nestes termos, Ricardo Augusto Schmitt (2020, p. 137) também argumenta, concluindo
que não se trata do exame sobre a ocorrência ou não de fato criminoso, mas sim da
demonstração de elementos concretos da infração penal que permitem identificar o grau de
reprovação penal da conduta do agente. Trata-se tão somente de argumentar em que
proporção necessária a pena deverá ser fixada para a reprovação e censura de sua conduta.
Todas essas são construções retóricas que pretendem lidar com a variedade de casos,
com base na diretriz geral da reprovabilidade da conduta segundo o conhecimento disponível
e esperado do agente.
No caso concreto, porém, um olhar crítico para o uso estratégico desse quesito pode
demonstrar problemas sobre um julgamento moral ou ideológico da vítima. É o caso, por
exemplo, da polêmica discussão sobre a adequação das vestimentas de uma mulher vítima de
crimes contra a dignidade sexual. De todo modo, o critério é construído na pragmática, na
interação entre os agentes que se comunicam no processo judicial. Assim, pode servir como
estratégia para suavizar a pena ou também para torná-la mais rigorosa. E, de todo modo, não
será uma argumentação para “justificar” o crime ou para responsabilizar a vítima, mas tão
somente para fins de dosimetria da pena.
De todo modo, como já foi dito, o ônus argumentativo inicial para demonstrar uma
suposta má personalidade cabe ao órgão de acusação, que deverá ser considerado em meio ao
contraditório e posteriormente apreciado pelo magistrado. Portanto, na ausência de
argumentação sobre a questão, dever-se-ia entender como uma circunstância favorável ao
indivíduo – ao menos em uma interpretação garantista do art. 59.
Há, de fato, um potencial risco para as garantias processuais do indivíduo, pois além da
ausência de aptidão e tecnicidade psíquica do magistrado, este poderá se valer de estratégias
retóricas para argumentar e caracterizar uma suposta má personalidade do agente com
referência a alguns episódios de sua vida.
Sendo assim, essa última circunstância judicial pode ser vista como problemática em
muitos casos – e, talvez, pudesse até mesmo ser abolida pelo legislador. Isso porque quando o
magistrado estiver decidido a atribuir uma pena rigorosa, utilizará essa circunstância de modo
estratégico, reunindo e selecionando fragmentos de jurisprudência para endossar sua
perspectiva, emplacando aquela sua vontade íntima. Ainda sobre o tema, o STJ firmou
entendimento no sentido de que o “os antecedentes sociais do réu não mais se confundem
com seus antecedentes criminais” (STJ, REsp nº 1.760.9720 MG).
Inquéritos policiais e ações penais em curso não são aptos para agravar a pena-base.
Este é o entendimento de acordo com a atual tendência dos Tribunais superiores, que
entendem inexistir provas acerca da materialidade dos crimes praticados. Enquanto os
antecedentes se restringem aos envolvimentos criminais do agente, a conduta social tem um
alcance mais amplo: suas atividades relativas ao trabalho, seu relacionamento familiar e social
e qualquer outra forma de comportamento dentro da sociedade (STJ, REsp nº 1.760.9720 MG).
Sobre esse tema, Cláudio Brandão reforça que o conteúdo dos direitos humanos está
relacionado às exigências para a possibilidade de reconhecimento como humanos pelo direito,
vinculando-se à própria condição humana. São exigências que consideram os seres humanos
como seres dotados de vontade, consciência, percepção e todos os demais atributos de sua
plena dignidade. Dentre esses direitos, estão as garantias processuais que permitem que os
indivíduos tenham mecanismos para atuar diante da jurisdição estatal (BRANDÃO, 2014, p. 04-
05).
Como assinala Marcus Faro de Castro (2012, p. 1-15), ainda é muito comum imaginar o
direito como conjunto de conceitos e formas abstratas que teriam sido racionalizadas e
positivadas ao longo do tempo. Por isso, no caso das circunstâncias judiciais para aplicação da
pena, ainda é frequente o estudo de categorias e conceitos abstratos para supostamente
orientar a atividade interpretativa. No entanto, tal perspectiva apenas gerou um deslocamento
da realidade social, imunizando a ordem vigente e tornando o jurista como um “opressor”, na
medida em que se torna incapaz de agir como sujeito crítico. Se o direito não é um repositório
de ideias fixas e inalteráveis, é preciso enfatizar seu caráter fenomênico conectado a conflitos
sociais reais e localizados em um contexto histórico particular.
Sendo o direito fenômeno social dinâmico e linguístico, a análise retórica não pretende
antecipar o futuro – enquanto teoria empírica, esta opta por observar as experiências e
eventos passados. Trata-se de pesquisa empírica, então, em dois sentidos: a) enfatiza o que se
manifesta concretamente em argumentações reais (análise retrospectiva); b) como descrição,
tenta oferecer uma análise tentativamente neutra, mas que admite seu potencial prescritivo –
uma vez que não perde sua condição de linguagem. Extirpar a influência do observador de sua
observação é uma atitude ingênua. Assim, a retórica analítica não participa das disputas
estratégicas sobre qual teoria prescritiva é melhor, mas pretende examiná-las e compreender
como funcionam.
Pelo primeiro nível retórico, os critérios para aplicação da pena no ordenamento jurídico
brasileiro apresentam-se como acordos provisórios – por si só, já é uma tarefa suficientemente
complexa para qualquer teoria do conhecimento. Essa retórica material de categorias como
“culpabilidade do agente”, “motivação do crime” e “comportamento da vítima” apresenta-se,
portanto, como uma narrativa provisoriamente aceita na comunidade jurídica. Por isso, a
literalidade dos dispositivos apenas fornece um caminho para estruturação de argumentos
plausíveis, mas é incapaz de aprisionar o intérprete. Por outro lado, a consideração das
narrativas sobre a formação histórica dessa retórica material e sobre o que tem prevalecido na
jurisprudência dos tribunais pode auxiliar sua compreensão.
Neste segundo caso, ganham força as propostas dialéticas, na medida em que podem
mapear os tipos e a frequência de estratégias retóricas tanto no discurso apresentado como
também em propostas alternativas formuladas por outros sujeitos. Por exemplo, o órgão
acusatório ministerial pode oferecer argumentação sobre como tais circunstâncias judiciais
devem ser interpretadas; a defesa, por outro lado, deve rebater e contrarrazoar, oferecendo
outros argumentos e figuras retóricas. Ao final, o magistrado ou o órgão colegiado deverá
também oferecer sua fundamentação, corroborando ou rebatendo as informações disponíveis
nos autos do processo. Desse modo, a análise das retóricas estratégicas pode também abrir
um campo de investigação do dissoi logoi – que é a estratégia, herdada dos antigos gregos, de
confrontar posições e argumentos divergentes para construção de um juízo adequado.
Por outro lado, uma determinada pesquisadora poderia analisar também, se assim o
quiser, os critérios oferecidos por Adilson Moreira (2019) sobre a “hermenêutica do oprimido”,
observando se seria o caso de aplicar as categorias do “jurista negro” para considerar as
condições estruturais da situação dos sujeitos empiricamente envolvidos – especialmente para
incorporar a experiência de minorias raciais como parâmetro normativo. Essa argumentação
doutrinária de Adilson Moreira poderia ser chamada de “Texto Estratégico 2” (TE2) – que
consiste em teor prescritivo, logo uma retórica estratégica também. Ou, ainda se desejar,
poderia trazer critérios tradicionais oferecidos pela dogmática jurídica tradicional – a exemplo
dos comentários de Cezar Bitencourt (2020) – “Texto Estratégico 3” (TE3).
Por outro lado, uma pesquisa retórica analítica também poderia compreender as
estratégias discursivas de TE1 e verificar se estratégias semelhantes também foram usadas em
outras estratégias (como TE2 e/ou TE3). Nesse caso, a pesquisa não defenderia que TE1
deveria adotar os critérios de TE2 ou TE3, pois não tem pretensão prescritiva rígida, mas
poderia compreender se essas diferentes comunicações encontram-se isoladas ou se há
potencial relação. Na medida em que o sistema jurídico fosse caracterizado por decisões
isoladas e sem qualquer conexão com as demais, a retórica analítica poderia auxiliar na
compreensão do estado da arte possivelmente autoritário ou de incoerência decisória. Se, por
outro lado, o sistema mantém elementos comuns, estes podem auxiliar a percepção sobre o
que tem sido considerado “plausível” para a elaboração da argumentação jurídica – tudo isso
em uma dimensão prática real.
Não custa enfatizar: a retórica analítica não pretende aniquilar a dogmática ou as teorias
normativas por conta de sua característica pretensamente descritiva. Mas desconfia e não crê
em teorias seguras que guiarão o jurista à verdade. Deve, no entanto, situar-se no mundo
prático e observar como os conceitos estão sendo construídos na história social e como os
discursos normativos estão tentando moldar, ou ao menos influenciar e constranger, a
atuação dos juristas constantemente.
Não é difícil perceber que casos semelhantes são julgados de modo muito diferente em
matéria penal. Os fatores são múltiplos e o debate é, portanto, complexo. Mas justamente por
conta disso é que o imaginário dedutivo não consegue ser capaz de guiar completamente o
jurista em seu cotidiano – razão pela qual poderia levá-lo a algum tipo de decepção ou
frustração em seu exercício laboral. Quanto antes tiver a compreensão desse cenário, mais
rápido poderá agir para imunizar-se contra estratégias retóricas de adversários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste artigo e com base em tudo que foi discutido e analisado até o momento, é
possível visualizar algumas conclusões fundamentais.
Em face de todas essas questões, o artigo fornece uma contribuição que poderia ser
descrita como “pesquisa retórica de base”, uma vez que pretendeu refletir sobre as bases
teóricas, as potencialidades e os potenciais efeitos da aplicação tópico-retórica no debate
sobre as circunstâncias judiciais da aplicação da pena – indicadas no art. 59 do Código Penal
brasileiro. Com isso, a pesquisa indica caminhos que podem colaborar para o surgimento ou
consolidação de novas pesquisas para a melhor compreensão dos problemas nacionais.
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