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Revista direito mackenzie

ISSN: 23172622

DOGMÁTICA JURÍDICA: NOTAS


PARA REFLEXÃO
1 Demétrius Amaral Beltrão*
2 Henrique Cassalho Guimarães**

Recebido em: 23.11.2018


Aprovado em: 2 0. 12 . 2 018

* Doutor e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor da
Faculdade de Direito do Sul de Minas. Procurador-Geral do Município de Pouso Alegre. E-mail: demetriusbeltrao@
uol.com.br
** Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (linha Constitucionalismo e Democracia). Subprocu-
rador-geral do Município de Pouso Alegre. E-mail: henriquecassalhoguimaraes@gmail.com
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•  Demétrius Amaral Beltrão


•  Henrique Cassalho Guimarães

r e su m o :Dogmática jurídica é uma expressão polissêmica. Seu significado assumiu


distintas conotações em variados contextos históricos, perspectivas teóricas e autores.
Já foi tida como heroína e como vilã. O estudo sobre a dogmática jurídica, no entanto,
não possui nos dias de hoje a significância de outrora. Não obstante, esta pesquisa obje-
tiva revisitar criticamente esse pensamento com vistas a refletir o direito na contem-
poraneidade. A partir do método analítico, problematizam-se noções conceituais e
nuances do pensamento dogmático, propondo-se sua reanálise com base nas exigên-
cias sociais e nos avanços teóricos da atualidade. À guisa de conclusão, destaca-se a rele-
vância de uma compreensão precisa desse instrumental teórico e do seu estudo para a
racionalidade do sistema jurídico brasileiro.
pa l av r as - c h av e : dogmática; racionalidade; sistema.

a b strac t : Legal dogmatics is a polysemic expression. Its meaning assumed


distinct connotations in diverse historic contexts, theoretical perspectives and
authors. It has been already referred as a hero and as a villain. However, the study
about legal dogmatics nowadays does not have the same meaning of olden
times. Notwithstanding, this research intends to critically reviews this thought
aiming at reflecting the law in the contemporary world. From an analytical
method, conceptual notions and nuances of dogmatic thought are discussed,
being proposed its re-analysis based on social requirements and theoretical
advances of today. In conclusion, it is highlighted the relevance of an accurate
comprehension of this theoretical tool and its study for the rationality of Brazilian
law system.
ke ywo r d s : dogmatics; rationality; system.

1. Introdução
Ao ver o título deste artigo, o leitor pode se indagar: Por que estudar dogmática jurídica
hoje? Em tempos de singularidades incomunicáveis; de casos concretos dotados de racio-
nalidade própria; em uma sociedade complexa incompatível com a noção de dogmas abs-
tratos e universais – que no mais das vezes reduzem a paisagem jurídica a uma forma in-
devidamente simples e simplista; diante de sofisticadas teorias argumentativas acerca da
decisão judicial. Nesse cenário, qual é a relevância do pensamento jurídico-dogmático?
A princípio, deve ser relevado o fato de que a dogmática jurídica cravou profundas
raízes no ensino jurídico brasileiro e na praxe forense. Por mais de um século é ela a
principal responsável pela linguagem, racionalidade e identidade do direito no Brasil.
Esse legado é perceptível, verbi gratia, quando se verifica que, ainda na atualidade, juristas,
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professores e operadores do direito debruçam-se sobre o direito positivo, criando e


adaptando conceitos, readequando classificações, engendrando ficções jurídicas etc.
Indubitavelmente, é fato que a dogmática jurídica, há tempos, é alvo de críticas
como corrente do pensamento jurídico, seja sob a ótica da sua operacionalidade prática,
da sua pretensão de legitimidade ou da sua epistemologia. Nesse sentido, aliás, é a críti-
ca de Luis Alberto Warat (2002, p. 450), ao aduzir que “a dogmática jurídica se apresen-
ta como uma ciência sem epistemologia, com contornos incertos entre as opiniões rap-
sódicas e os raciocínios sistemáticos”. E isso não é em vão.
Dentre as limitações que envolvem a dogmática jurídica e suas características ba-
silares, pode-se mencionar o fato de que criar mecanismos técnicos de decidibilidade
conduz a sacrifícios indesejáveis. Ao ter por premissa a inegabilidade de certos pontos
de partida (FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 92 et seq.), o pensamento dogmático limita a
priori o campo de investigação, impossibilitando a crítica e tolhendo salutares criações
e argumentações. Ao estabelecer as condições do juridicamente possível (LUHMANN,
1983, p. 34), a dogmática cerceia o horizonte de um enorme contingente, relegando-o
para um plano periférico e juridicamente irrelevante. Abstrações dogmáticas subesti-
mam o valor das singularidades, e a dinamicidade e complexidade do mundo contem-
porâneo, não é desarrazoada a inferência, são incompatíveis com esse pensamento.
Isso, no entanto, é uma face da moeda. A dogmática jurídica, vista de outro ângu-
lo, é indispensável para possibilitar uma estabilização de expectativas nas interações
sociais congruentemente generalizadas, e “sem essa generalização congruente não po-
deriam os homens orientar-se mutuamente, não podendo esperar suas próprias expec-
tativas” (FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 99). Isto é, ao lidar com a questão da decidibili-
dade, a dogmática jurídica gera um certo grau de confiança não só nas expectativas
alheias, como também nas próprias, pois possibilita, ao menos, a seleção de situações
comportamentais com menor chance de serem desiludidas.
Outras perspectivas epistemológicas encontrariam maior dificuldade neste mis-
ter, a exemplo da filosofia, que tomada como única instância de justificação e aplicação
do direito poderia acabar por minar a efetividade e a validade da norma jurídica em
digressões filosóficas que, por mais relevantes que possam ser, podem se apresentar
como insolúveis (como os limites do bem e do mal, do justo e do injusto, do universal e
do relativo) (CANOTILHO, 2003, p. 18).
A par disso, o presente trabalho – que se pauta na noção de work in progress – intenta
pôr em debate a dogmática jurídica como expressão de pensamento, problematizando
razões para a revisitação desse instrumental teórico pelos pensadores do direito da atua-
lidade. Busca-se refletir, sobretudo, quais lições podem ser tiradas dessa matriz teórica
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para o aprimoramento do direito contemporâneo, analisando conceitos e matizes dessa


forma de compreensão do fenômeno jurídico.
O estudo proposto é laborado a partir do método analítico e possui como marco
teórico os estudos semiológicos da nova retórica de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Dessa
perspectiva, trabalha-se com a função social da dogmática jurídica, que não pode ser
desprezada pelo estudioso do direito. Adverte-se, em tempo, que esta pesquisa não pro-
põe um estéril debate acadêmico, mas conclama à reflexão de um tema que, como bem
salienta Miguel Reale (1992, p. 123), constitui “um dos assuntos mais merecedores de
atenção por parte dos cultores da epistemologia jurídica”. Caso aceito o presente convi-
te, ingressemo-nos no estudo da dogmática jurídica.

2. Dogmática jurídica: prelúdio


O sentido do vocábulo dogma é geralmente atribuído à teologia (FERRAZ JÚNIOR,
2007, p. 63-64). Antes disso, no entanto, seu significado era diverso ao difundido pelo
pensamento teológico. Na Antiguidade, indicava tão somente uma decisão, um juízo,
uma ordem, o dogma refletia as crenças fundamentais das escolas filosóficas, seus
princípios irredutíveis. Posteriormente foi que esse vocábulo passou a ser utilizado
para designar as decisões dos concílios e das autoridades eclesiásticas sobre as maté-
rias essenciais da fé (ABBAGNANO, 2007, p. 343).
Em sua gênese, o termo indigitava qualquer acepção doutrinária blindada com
uma autoridade absoluta, ou seja, impassível de discussão. Assim é usado por Santo
Agostinho, ao dizer que “dogmata autem sunt placita sectarum, id est quod placuit singulis
sectis”. Na segunda metade do século IV, esse sentido foi reduzido, considerando-se
dogmas apenas as crenças compreendidas pela Igreja Católica como verdades reveladas
por Deus (LOSANO, 2008, p. 293), e isso se deu por um propósito.
No pensamento teológico, os dogmas desempenham significativa função: “cons-
tituem o ponto de partida de todas as considerações teológicas e são caracterizados pelo
fato de serem indiscutíveis” (LOSANO, 2008, p. 293). É interessante notar que o cristia-
nismo antigo (apostólico e subapostólico) remonta a um período histórico adogmático,
em que se permitiam variadas interpretações das escrituras sagradas. Mas, quando de-
terminadas “verdades” passam a ser objeto de discussões e dissensos doutrinais – geran-
do dúvidas entre os fiéis –, os dogmas surgem1, sendo declarada pela Igreja Católica a

1 “A mano a mano che la tranquillità e sicurezza dei fedeli lo richiedeva, minacciata dai dissensi e dagli errori dottrinali, la
Chiesa ha dovuto per mezzo di vescovi o di concilî pronunciare i suoi giudizî; e solo quando si è avuto un certo numero di
dogmi chiaramente definiti, si sono potuti organizzare in un unico sistema dottrinale, e così è nata l’idea dell’ortodossia e si è
fissata la regola comune (κάνων) della verità” (FRACASSINI; ROSA, 2018).
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impossibilidade de discutir certos pontos da fé (malgrado se tornarem definitivas cer-


tas fraturas).
Com a Reforma Protestante e as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, agrava-
ram-se as incertezas entre os fiéis. Em vista disso, elevou-se ainda mais o papel dos dog-
mas, assim como a preocupação de lhes conferir um caráter sistemático e um ideário de
perfeição, haja vista que os conhecimentos teológicos não poderiam ceder lugar a dis-
cussões, dúvidas e heresias2. Graças ao terreno comum do direito canônico, grande-
mente explorado na Idade Média, a idealização de dogmas e de um conhecimento claro
e sistemático foi recepcionada pela teoria jurídica.
Nem mesmo o processo de dessacralização das artes e das ciências – influenciado,
sobretudo, pelo Renascimento – e a ruptura entre direito e religião, pelo racionalismo
moderno europeu, suplantaram a influência dogmática. Voltando às origens, a acepção
do termo foi ampliada, assinalando um conhecimento (não necessariamente cristão)
dotado de certezas inflexíveis e indiscutíveis. No direito, o culto aos dogmas e a uma
visão sistemática persistiu.
Cruzando o Atlântico, é possível dizer que ainda no Brasil colônia o direito assina-
lava contornos dogmáticos. Certamente, uma dogmática distinta de sua corrente acep-
ção. Inaugurando a ideia de um direito oficial, o ordenamento jurídico lusitano foi
transplantado para o território pátrio com características centralizadoras e formalis-
tas, calcado em uma matriz escolástica que fortalecia a estrutura burocrático-patrimo-
nialista que aqui se montava. Essa estrutura se enraizou no direito brasileiro, atraves-
sando a monarquia e o republicanismo. Com a ascensão política e econômica de São
Paulo, sob a batuta do bacharelismo-liberal paulistano, a dogmática assume feição po-
sitivista-exegética no final do século XIX.
No léxico filosófico, a referência ao dogmatismo é destinada às concepções teóri-
cas que tendem a absolutizar suas próprias teorias, sem se dispor a pô-las em discussão
de forma crítica (ABBAGNANO, 2007, p. 344). Ancorada nessa concepção é erigida a
dogmática jurídica na modernidade europeia e brasileira, sendo atribuída aos dogmas
aquela mesma noção de um saber certo e inatacável. Ainda que não seja essa a última
expressão da dogmática jurídica, pode-se dizer que elemento característico dessa forma
de pensamento é a estrita observância de um princípio (uma causa primária, um funda-
mento), sem o qual a operabilidade do direito não pode ser traduzida em nenhum modo
utilizável. Daí são esboçados os principais contornos da dogmática jurídica.

2 “Da sistematização dos dogmas ocupa-se a teologia dogmática que mais tarde se transformará na teologia sistemá-
tica: foi justamente a partir dela que a história semântica de ‘sistema’ extraiu os exemplos mais numerosos e signi-
ficativos, que frequentemente constituíram modelos para outras disciplinas, entre as quais o direito” (LOSANO,
2008, p. 294).
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3. Traços fundamentais da dogmática jurídica


A característica considerada como a mais importante da dogmática – como se depreende
das considerações pregressas – é a inegabilidade dos pontos de partida. Proíbe-se a negação
de certas premissas, ainda que arbitrariamente selecionadas3, instituindo a vinculação
do intérprete a certos materiais (por exemplo: a textos sagrados, sob a ótica teológica; e
a normas jurídicas, sob a ótica do direito). Mediante essa vinculação, as inseguranças no
processo de decisão do sistema jurídico são simplificadas para questões envolvendo a
relação entre o material e seu conceito, entre vinculação e liberdade (LUHMANN,
1983, p. 29-31).
Toda série argumentativa, no plano da dogmática jurídica, deve levar em consi-
deração um dado antecedente tido como correto. Uma razão abstrata e apriorística
é constituída de forma tendente a lidar com incertezas, melhor dizendo, com o escopo
de controlar determinadas questões que apresentam insegurança e imprecisão a um
grau que seja socialmente suportável. Consoante leciona Tercio Sampaio Ferraz
Júnior (2007, p. 48), a inegabilidade dos pontos de partida impõe aos juristas, em ter-
mos de um estudo estrito do direito, a obrigação de procurar sempre compreendê-lo e
torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente: “Essa ordem que lhes aparece
como um dado, que eles aceitam e não negam, é ponto de partida inelutável de qual-
quer investigação”.
Infere-se diante dessa característica que um tom repressivo é indissociável de um
saber dogmático, em vista do constrangimento imposto ao intérprete quanto ao ponto
de largada, que define se o raciocínio jurídico é dogmaticamente aceitável. A vincula-
ção a pressupostos conceituais seguros é uma exigência aos postulados de eficiência e
durabilidade almejados por essa matriz epistemológica. O jurista que observa o dogma
confirma a indiscutibilidade de certos princípios, encontrando neles um limite in-
transponível à sua atividade (LOSANO, 2008, p. 320). A dogmática, indubitavelmente,
é austera e exigente.
Há de se ter claro, todavia, que a função da dogmática jurídica não consiste na con-
sideração de pontos de partida inegáveis, mas sim depende deles (FERRAZ JÚNIOR,
2015, p. 94). Determinado o ponto de partida – o dogma –, imprescindível se faz arqui-
tetar o iter para uma resposta lógica. A visão dogmática do direito como um sistema

3 Niklas Luhmann (1983, p. 28) ressalva que os sociólogos não ignoram que algo em si e por si arbitrário não existe, e
sabem também que toda comunicação humana pressupõe a não negação.
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jurídico reivindica essa atitude, sendo inolvidável que a dogmática é uma técnica desti-
nada à ordenação de determinado objeto, pretendendo estabilizar a matéria tratada. Se
assim o é, para a exposição ordenada do direito necessária se faz a observância de certos
requisitos a fim de extrair uma conclusão lógica dos dogmas.
Importa, pois, vislumbrar coerentemente o material jurídico, com vistas a se efe-
tivar outra característica fundamental: “a dogmática jurídica sempre envolve uma
questão de decidibilidade” (FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 82). E, para decidir racional-
mente, é imperativo que haja certa ordenação no sistema jurídico. “El surgimiento de la
dogmática, presupone un cierto nivel de organización del sistema jurídico, en concreto la posi-
bilidad de tomar decisiones vinculantes acerca de cuestiones jurídicas” (LUHMANN, 1983,
p. 31). Segundo Niklas Luhmann (1983, p. 34): “La dogmática jurídica define dentro del
marco de esta función las condiciones de lo jurídicamente posible, en concreto las posibilidades
de la construcción jurídica de casos jurídicos”.
Desta conclusão se extrai que a determinação do ponto de que se parte não é o su-
ficiente. O esforço dogmático em relação à atividade do jurista prático concentra-se em
dois limites: o dogma, considerado como ponto de partida indiscutível; e o obrigatório
ponto de chegada, a resolução do caso concreto (LOSANO, 2008, p. 297). Daí a exigência
metódica da dogmática, que busca uma resposta aos problemas da praxe jurídica com
base em suas fontes, não dando margens a digressões didáticas ou voos filosóficos, o
que poderia criar um ambiente assistemático, de instabilidade e irracionalidade.
Técnicas como conceitualização, classificação, princípios, aforismas, institui-
ções, entre outras desenvolvidas pela dogmática não são inócuas, mas ligadas direta-
mente à necessidade de compor, delinear e circunscrever procedimentos que condu-
zem a autoridade à tomada de decisão. Nesse sentido, as questões dogmáticas têm uma
função diretiva explícita, visando possibilitar uma decisão e orientar a ação. Tem por
escopo a viabilização das condições do juridicamente possível (FERRAZ JÚNIOR, 2015,
p. 90 et seq.).
Para além de ser uma atividade pretensamente objetiva e rigorosa que, mediante
uma elaboração racional das normas vigentes, explicita coerência, buscando mostrar
a estrutura lógica inerente ao direito positivo (WARAT, 2002, p. 41), o pensamento
dogmático tenciona fornecer balizas decisórias. A dogmática jurídica, convém recor-
dar, ganha relevo na modernidade por sua aspiração sistemática de abarcar todos os
fenômenos sociais, supondo que seriam passíveis de solução pela manipulação das
normas jurídicas, tomando como referência a atividade jurisdicional (RODRIGUEZ;
PÜSCHEL; MACHADO, 2012, p. 35).
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4. Notas conceituais
Embora tenhamos traçado algumas linhas que caracterizam o pensamento dogmáti-
co, é oportuno destacar que a dogmática jurídica é conceitualmente complexa, encon-
trando-se divergências entre os teorizadores dessa temática. Nas lições de Vera Regina
Pereira de Andrade (2003, p. 29). Trata-se não apenas de um conceito histórico, mas de
um conceito essencialmente complexo”.
O vocábulo em exame, por seu uso indiscriminado, chega a denotar aspectos an-
tagônicos, podendo o leitor desavisado vir a incorrer em uma equivocada compreensão
da matéria se não souber distinguir as variadas incorporações de sentido que ela sofreu
ao longo da história e em diversos autores4. Em face disso, é impreterível aclarar o que
compreendemos por dogmática jurídica, mas antes se julga pertinente evidenciar al-
guns significados que podem ser encontrados na literatura jurídica nacional.
Ao discorrer sobre o tema, Miguel Reale (1992, p. 124) compreende haver funda-
mentalmente quatro posições atribuíveis à dogmática jurídica, reconhecendo que cada
uma das posições apontadas comporta variantes e particularidades de singular alcance.
A primeira posição é ocupada pelos que pura e simplesmente a repudiam, consideran-
do-a como uma fase de compreensão não problemática da experiência jurídica, por
isso, uma etapa superada pela ciência do direito. Outra colocação dada à dogmática ju-
rídica é a que a identifica como arte ou técnica jurídica, reconhecendo sua manifestação
como processo técnico-operacional em relação ao qual o jurista deve se subordinar. A
terceira acepção amplia significativamente a posição anterior, considerando a juris-
prudência como a ciência dogmática do direito. Por fim, há os que a concebem como
momento culminante da ciência do direito, enquanto determina e sistematiza concei-
tos necessários à compreensão dos modelos normativos que estruturam a experiência
jurídica, ao passo que indaga as condições de realização desses modelos no campo da
atividade jurisdicional.
Tomando partido diante das diversas veredas relacionadas à dogmática jurídica,
o autor a entende como o auge da ciência do direito na plenitude de sua existência – sob
a perspectiva da regra já posta (ex post norma), momento em que a experiência jurídica
projeta-se como efetivo sistema jurídico, “como horizonte de sua objetividade, e o
horizonte não se põe jamais como limite definitivo, mas é linha móvel a projetar-se
sempre à frente do observador em marcha” (REALE, 1992, p. 145).

4 Esse é um dos motivos que levam Hugo de Brito Machado Segundo (2008) a recomendar a abolição dessa no­
menclatura.
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Em sentido diametralmente oposto, Hugo de Brito Machado Segundo (2008)


nega o status de cientificidade à dogmática jurídica. Confundindo-a com uma concep-
ção estritamente positivista do direito e valendo-se de um paralelismo extremado entre
a dogmática jurídica e a dogmática teológica, o autor concebe que contemporaneamen-
te, no plano epistemológico, conhecimento científico e conhecimento dogmático são
conceitos antônimos. Indiferente ao devir histórico, Machado Segundo (2008, p. 73)
afirma com veemência que “foi a ânsia por rotular o conhecimento do direito como
científico, portanto, que mais o distanciou de tudo quanto o caracterizaria como tal,
vale dizer, o não-dogmatismo, a crítica e a evolução” – conclui o autor, pela necessidade
de expurgar essa terminologia do vocabulário jurídico.
Tratando a dogmática jurídica como paradigma da ciência do direito, Vera Regina
Pereira de Andrade (2003, p. 23) adverte de forma mais abalizada que “o paradigma
dogmático deve ser visto como conceito ‘histórico’, enquanto guarda uma vinculação
essencial com uma determinada estrutura histórica, a respeito da qual adquire um con-
teúdo e sentido precisos”. A autoimagem da dogmática jurídica, aquilata a autora, iden-
tifica-se com a ideia de ciência do direito que tem por objeto o direito positivo vigente
em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) “a ‘construção’ de um
‘sistema’ de conceitos elaborados a partir da ‘interpretação’ do material normativo, se-
gundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna” (ANDRADE,
2003, p. 18). Sua finalidade é ser útil à vida, instrumentalizando a aplicação do direito.
Na presença das múltiplas temporalidades e das várias perspectivas de autores
que se debruçam no estudo da dogmática jurídica, sem alongar em demasia acerca das
diversas concepções teóricas existentes – cuja variação de matizes inviabilizaria o
prosseguimento deste trabalho –, releva reiterar a posição teórica da qual se parte,
o olhar que se opta por seguir5. Pois bem. Alinha-se aqui ao entendimento de Tercio
Sampaio Ferraz Júnior (2015), perspectiva esta que alberga as características da dog-
mática jurídica já desenvolvidas. Para o autor, a função da dogmática jurídica é lidar
com questões que envolvem a decidibilidade, preocupando-se com mecanismos de con-
dução à tomada de decisão jurisdicional ou, como dito anteriormente, os limites do
juridicamente possível6.

5 Como expõe Luis Alberto Warat (2004, p. 173): “o que se olha não é outra coisa senão o caminho percorrido. Subli-
nhar algum contorno substancial, um tom, uma cor, uma atmosfera predominante. É como dizer: forcem a memó-
ria para alcançar uma perspectiva; façam o jogo para apostar no futuro. Olhar é sempre um esforço para obter, desde
o presente, sentidos para o passado; seria aquela releitura que trata de evitar que o nosso desejo repita o passado no
presente, que é sempre uma forma de tentar eliminar o presente pela melancolia de não aceitá-lo como diferente”.
6 Nesse mesmo sentido é o entendimento de Eros Roberto Grau (2003, p. 38), para quem a “dogmática tem por objeto
o estudo de problemas jurídicos, a serem resolvidos mediante a aplicação, sobre as situações a que respeitam, das
normas desse direito. Está voltada, assim, à indicação de critérios a serem adotados para a solução de litígios”.
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A dogmática jurídica não se atém à determinação daquilo que historicamente se


entende por direito, tampouco à finalidade de descrever aquilo que pode ser o direito,
mas se ocupa com a adequação de decisões em vista do que deve ser direito. “Nesse sen-
tido, seu problema não é primordialmente uma questão de verdade, porém de decidibi-
lidade” (FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 85-86), o modus operandi da aplicação do direito,
a extração de uma resposta a partir do relacionamento entre os casos submetidos ao
Judiciário e as normas jurídicas postas7.

Ao envolver uma questão de decidibilidade, a dogmática jurídica manifesta-se como um pensa-


mento tecnológico. Este possui algumas características do pensamento científico stricto sensu,
na medida em que parte das mesmas premissas que este. No entanto, seus problemas têm uma
relevância prática – possibilitar decisões –, o que exige uma interrupção na possibilidade de in-
dagação das ciências em geral, no sentido de que a tecnologia fixa seus pontos de partida e pro-
blematiza apenas a sua aplicabilidade na solução de conflitos (FERRAZ JÚNIOR, 2015, p. 87).

A dogmática jurídica, portanto, preocupa-se com a resolução de conflitos com o


mínimo de perturbação social. Dessa maneira, os enunciados dogmáticos, caracteristi-
camente, voltam-se a favor da problemática relacionada à realização de modelos com-
portamentais, assim como as normas jurídicas, e das consequências de sua realização
social (o que lhes dá certo sentido crítico): “Sendo um pensamento conceitual, vincu­
lado ao direito posto, a dogmática pode instrumentalizar-se a serviço da ação sobre a
sociedade” (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p. 85).
Por esse motivo – criar condições para a ação – a dogmática jurídica é um pensa-
mento fechado à problematização de determinados pressupostos. Para que os conflitos
possam obter uma resposta jurídica, alguns elementos são subtraídos à dúvida. Entre
perguntas e respostas, pende-se favoravelmente a estas. Como tecnologia do direito,
premissas e conceitos básicos da dogmática jurídica não são receptíveis a críticas.
Em sendo assim, certos problemas capazes de gerar infindáveis dissensos sob a ordem
filosófica ou sociológica (pense-se, por exemplo, o problema relacionado ao justo e ao
injusto, ao certo e ao errado) são tratáveis do ponto de vista dogmático.
Ressalva-se, contudo, que, ao revés do que se almejava nas concepções dogmáticas
de índole moderna (precipuamente do início do século XIX), o fechamento dogmático
não se dá por completo. Conquanto não serem problematizados os pontos de partida,
sua aplicabilidade na solução de conflitos não é imune à problematização. Os enunciados

7 Desse entendimento parece não destoar Luis Alberto Warat (2004, p. 173), ao dizer que “la dogmática es una actividad
consagrada al estudio de la argumentación, con la cual quiere justificar o legitimar, apoyar o sugerir una solución o una deci-
sión. Se trataría de una actividad, preocupada en saber ‘como’ hacer, pero no en saber ‘porque’”.
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DOGMÁTICA JURÍDICA:
NOTAS PARA REFLEXÃO

dogmáticos nunca deixarão de ser objeto de interpretação. A questão de decidibilidade


dos conflitos, para a dogmática jurídica, não é propriamente a possibilidade de “uma
interpretação correta ou objetivamente verdadeira, mas sim qual aquela que está me-
lhor ou suficientemente justificada, diante das evidências dadas pelos textos normati-
vos cujos sentidos estão inter-relacionados” (FERRAZ JÚNIOR; MARANHÃO, 2007,
p. 298). O direito prescinde, até certo ponto, de uma referência genética aos fatos que o
produziram (um ato de vontade historicamente determinado), a positividade do direi-
to não o torna imutável, nem torna a dogmática um pensamento positivista.

5. Alinhando horizontes
Nesta altura da pesquisa, convém definir certos matizes da dogmática jurídica, o que
optamos por fazer a partir de diferenciações, a começar por aquela que encerra o tópico
anterior. Se positivismo jurídico e dogmática jurídica caminhavam pari passu na con-
cepção racionalista da modernidade europeia oitocentista – sendo compreendidos
como sinônimos –, o mesmo não se pode dizer de sua corrente acepção. Não se nega que
a dogmática jurídica nasce marcada pelo fenômeno da positivação, e é sobre este campo
que ela se move, é o direito positivo também o seu objeto. Mas isso não equivale a dizer
que a dogmática seja por essência positivista (muito embora seja verdadeiro o inverso).
Até porque, se o século XIX entendeu ingenuamente o direito como norma posta e a
positivação como uma relação causal entre a vontade do legislador, “o século XX apren-
deu rapidamente que o direito positivo não é criação da decisão legislativa (relação de
causalidade), mas surge da imputação da validade do direito a certas decisões” (FERRAZ
JÚNIOR, 2015, p. 43, grifos do autor).
O formalismo positivista do final do século XVIII e início do XIX inspirou-se
grandemente na evolução das ciências naturais, influenciado por correntes como o em-
pirismo baconiano e o racionalismo cartesiano. Elevando as ciências da natureza como
modelo epistemológico, criou-se a convicção de que todo o saber válido deve se pautar
na observação das coisas, na realidade empírica, na facticidade posta (positiva). Para
alcançar a dignidade de uma ciência, o saber jurídico devia, então, ter por objeto coisas
positivas8 e não argumentos de autoridade (teológica ou acadêmica) ou especulações

8 É digno de nota que o que se entendeu por “coisa positiva” variou drasticamente entre as diversas escolas do pensa-
mento. Para uns, positivista é apenas a lei (positivismo legalista). Outros entendiam como positivo o direito plasma-
do na vida, nas instituições ou no espírito do povo (positivismo culturalista). Ainda havia os que identificavam o
positivismo nas regras das novas ciências da sociedade (positivismo sociológico) ou nos conceitos jurídicos (positi-
vismo conceitual). Enfim, várias são as correntes positivistas, o que não impede de identificá-las genericamente
como positivismo em razão de traços comuns (HESPANHA, 2012, p. 399).
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abstratas. Em comum, todas as formas de positivismo dirigem-se contra fatores exóge-


nos ao material considerado como positivo.
O saber jurídico, para ser considerado como ciência jurídica, deveria cultivar mé-
todos objetivos e verificáveis, assim como os cultivados pelas ciências naturais. O mo-
vimento pela cientificidade se alimentava na crença de que os resultados do saber são
universais e progressivamente mais perfeitos (HESPANHA, 2012, p. 400). No domínio
das ciências sociais, a típica concepção positivista tem por premissa que estrutura o
ideal de um “sistema” coerente e operacional a possibilidade de a sociedade ser estudada
pelos mesmos métodos, démarches e processos empregados pelas ciências da natureza.
As ciências da sociedade, assim como as da natureza, “devem limitar-se à observação
e à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de
valor ou ideologias, descartando previamente todas as prenoções e preconceitos”
(LÖWY, 2000, p. 17).
A doutrina da neutralidade axiológica do saber é a característica fundamental do
positivismo jurídico. Renunciando qualquer atitude moralista ou reconhecida como
metafísica, o positivismo aceita a realidade racionalmente concebida e concentra-se no
problema de uma validade neutral e objetiva. A distinção entre juízo de validade e juízo
de valor é o que distinguia e delimitava as fronteiras entre a ciência (positivista) e a fi-
losofia do direito: “A atitude do juspositivista, que estuda o direito prescindindo de seu
valor, fez refluir à esfera da filosofia a problemática e as pesquisas relativas a isso”
(BOBBIO, 1995, p. 140). O positivismo jurídico define o direito de uma perspectiva es-
tritamente formal.
Percebe-se, então, que os problemas que envolvem a dogmática jurídica diferem-se
dos do positivismo jurídico. Embora haja inúmeros pontos de contato entre ambas as
concepções teóricas, como um apego ao formalismo e à institucionalização da norma
jurídica, assim como o foco no direito positivo, a dogmática jurídica não intenta redu-
zir o direito ao direito positivo. Desvencilhando-se da crença de um direito objetivo, a
dogmática jurídica contemporaneamente considera o papel do ser humano ao ter como
preocupação maior a operacionalidade prática do direito.
Do mesmo modo que dogmática jurídica e positivismo jurídico são inconfundí-
veis, cumpre esclarecer a distinção existente entre a dogmática jurídica e a ciência do
direito, não sendo de olvidar que esta de há muito se emancipou da ótica positivista.
O caráter científico do direito é atualmente algo incontroverso. A mesma sorte não é
lograda, no entanto, em relação ao que se entende por ciência jurídica. Inobstante a
existência de uma série de discussões em torno do sentido da ciência da ciência do direi-
to, em grande medida marcada por condições históricas determinadas, não é de todo
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equivocado considerar que “toda ciência pretende obter enunciados independentes da


situação em que são feitos, à medida que aspiram a uma validade erga omnes” (FERRAZ
JÚNIOR, 2015, p. 42), ainda que de forma aproximada e não absoluta.
O problema central para a ciência do direito, a sua questão peculiar, é a alternativa
entre verdadeiro e falso: “O conhecimento científico está às voltas com esta questão, a
de descobrir o que pode e o que não pode ser entendido como verdadeiro” (COELHO,
2005, p. 17). Diferentemente, o problema da dogmática dirige-se em fornecer pautas
para a decisão: “O problema máximo da dogmática é a decidibilidade e, por isto, ela não
tem um caráter científico, mas sim tecnológico” (COELHO, 2005, p. 17). Entre um pro-
blema e outro não há hierarquia ou oposição, são simplesmente diferentes os objetivos
a alcançar.
Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 18) exemplifica a distinção entre essas formas de
raciocínio jurídico. Para a ciência jurídica, enunciados normativos opostos não podem
conviver. As formas de compreendê-los, do ponto de vista científico, são limitadas. Ou
apenas um deles é verdadeiro ou ambos são falsos. Eles se excluem mutuamente. O mé-
todo científico tem por obrigação revelar o enunciado verdadeiro (e a consequente fal-
sidade do outro enunciado) ou constatar a falsidade dos dois enunciados em oposição.
Em outra senda, a coexistência de enunciados opostos no interior da dogmática jurídi-
ca não é um óbice. Ainda que o tecnólogo procure apresentar uma solução excludente
da oposição, isso não passa de uma questão retórica, não se cuida de uma afirmação de
cunho epistemológico. Alternativas podem ser selecionadas sem que com isso possibi-
lidades sejam eliminadas.
Outra marca distintiva refere-se à relevância prática desses dois níveis de conhe-
cimento. A ciência do direito pode não afetar diretamente a produção normativa e a
realidade fática, pois a veracidade de seu enunciado pode se situar apenas em um plano
teórico, sem precisar reverter necessariamente em uma técnica utilizável. Não cindin-
do a questão da decidibilidade, a preocupação científico-jurídica supera uma visão prá-
tica, indo muito além das fronteiras dogmáticas, ela não precisa se abdicar de sonhos,
esperanças e utopias.
O pensamento tecnológico, ao seu turno, não pode ser dissociado de sua rele­vância
prática. Ele é quem toma as possiblidades factuais da ciência e busca transformá-las em
possibilidade de ação humana. Ainda que não seja possível deduzir uma decisão concre-
ta dos enunciados cientificamente teorizados – assim como não é possível em se tra-
tando de enunciados normativos –, sob as vestes da dogmática é possível encará-los
como instrumentos mais ou menos utilizáveis para a obtenção de uma decisão (FERRAZ
JÚNIOR, 2015, p. 44). Em seu devido lugar, a ciência almeja o conhecimento, perguntar
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pelo porquê é seu dever; a tecnologia dogmática, por sua vez, perquire respostas, busca a
resolução de conflitos (por óbvio que não coaduna com uma resposta vazia, destituída
de legitimidade e expectativas, mas a sua verdadeira finalidade não pode se perder nos
fundamentos que subjazem naquilo que se espera por uma legítima resposta, tal como
o ideal da justiça).
Mas a premissa de que dogmática e ciência jurídica não são a mesma coisa não con-
verge a uma noção de que o pensamento tecnológico é um rival da ciência. Ao revés, a
dogmática como tecnologia não só integra como também complementa a ciência do di-
reito, “realizando operações transformadoras consistentes na relevância atribuída a
certas conclusões das teorias científicas para a solução de problemas práticos” (FERRAZ
JÚNIOR, 2015, p. 88). A dogmática jurídica respeita certas premissas da ciência, e seu
esforço é no sentido de implementá-las junto aos sistemas normativos vigentes. Exem-
plo disso é a inter-relação entre a criminologia e a dogmática do direito penal9.

6. À guisa de conclusão
O pensamento dogmático é um campo de investigação largamente incompreendido.
Indicativo disso se tem no fato de que, para muitos, ele é tido como ultrapassado e,
para tantos outros, simplesmente ignorado. Ao olhar a dogmática jurídica mais aten-
tamente, entretanto, percebe-se que pior do que as insuficiências que a permeiam é a

9 Aquilatando este breve cotejo, relevante são as seguintes lições (que, sem dúvida, compensam tamanha transcri-
ção): “A mera técnica jurídica que, é verdade, alguns costumam confundir com a Ciência do Direito, e que corres-
ponde à atividade jurisdicional no sentido amplo – trabalho dos advogados, juízes, promotores, legisladores, pare-
ceristas e outros –, é um dado importante, mas não é a própria ciência. Esta se constitui como uma arquitetônica de
modelos, no sentido aristotélico do termo, ou seja, como uma atividade que os subordina entre si tendo em vista o
problema da decidibilidade (e não de uma decisão concreta). Como, porém, a decidibilidade é um problema e não
uma solução, uma questão aberta e não um critério fechado, dominada que está por aporias como as da justiça,
da utilidade, da certeza, da legitimidade, da eficiência, da legalidade etc., a arquitetônica jurídica (combinatória de
modelos) depende do modo como colocamos os problemas. Como os problemas se caracterizam como ausência
de uma solução, abertura para diversas alternativas possíveis, a ciência jurídica se nos depara com um espectro de
teorias, às vezes até mesmo incompatíveis, que guardam sua unidade no ponto de sua partida. Como essas teorias
têm uma função social e uma natureza tecnológica, elas não constituem meras explicações dos fenômenos, mas se
tornam, na prática, doutrina, isto é, elas ensinam e dizem como deve ser feito. O agrupamento de doutrinas em cor-
pos mais ou menos homogêneos é que transforma, por fim, a Ciência do Direito em Dogmática Jurídica. Dogmática
é, nesse sentido, um corpo de doutrinas, de teorias que têm sua função básica em um ‘docere’ (ensinar). Ora, é justa-
mente este ‘docere’ que delimita as possibilidades abertas pela questão da decidibilidade, proporcionando certo
‘fechamento’ no critério de combinação dos modelos. A arquitetônica jurídica depende, assim, do modo como co-
locamos os problemas, mas esse modo está adstrito ao ‘docere’. A Ciência Jurídica coloca problemas para ensinar.
Isso a diferencia de outras formas de abordagem do fenômeno jurídico, como a Sociologia, a Psicologia, a História,
a Antropologia etc., que colocam problemas e constituem modelos cuja intenção é muito mais explicativa. Enquan-
to o cientista do Direito se sente vinculado, na colocação dos problemas, a uma proposta de solução, possível e
viável, os demais podem inclusive suspender o seu juízo, colocando questões para deixá-las em aberto” (FERRAZ
JÚNIOR, 2007, p. 107-108, grifos do autor).
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sua concepção canhestra por parte de juristas, professores e operadores do direito. A má


assimilação dessa racionalidade é responsável por inúmeras perplexidades que obsta-
culizam o debate e o aperfeiçoamento desse instrumental teórico que sempre se fez
presente na cultura jurídica brasileira, repercutindo até os dias de hoje na forma domi-
nante de compreensão e aplicação do direito.
Exemplo dos efeitos deletérios da incompreensão desse instrumental é o que
Marcos Nobre (2003, p. 148) identifica como peculiar confusão entre pesquisa, prática
profissional e ensino jurídico no Brasil10, cujas consequências é um ambiente jurídico
assistemático e de irracionalidade, em que se priorizam decisões do Supremo Tribunal
Federal em detrimento da ordem jurídica posta; em que a teoria e a prática são, por ve-
zes, incomunicáveis; no qual a docência não assume seu relevante papel social. Impen-
de, portanto, revisitarmos esse tema, não podendo ser olvidado que “guerras con frentes
equivocados suelen causar daños irreparables, ya que el vencedor obtiene una falsa victoria y no
se toman las necesarias decisiones de desarrollo del sistema” (LUHMANN, 1983, p. 16).
Pensar a dogmática jurídica é um passo necessário para transformar o direito.
Ainda que um caminho longo e difícil se revele à frente, o esforço pode ser mais do que
compensador. Dentre os encaminhamentos possíveis – que pretendemos enfrentar em
trabalhos futuros –, aparenta-nos promissor mesclar a autonomia do direito com a in-
terdisciplinaridade do ensino jurídico, compatibilizar a estabilização conceitual pela
filosofia da linguagem com a transformação por meio da democracia, redimensionar o
papel da ideologia, problematizar o constitucionalismo e inserir, definitivamente, a
narrativa histórica no delineamento do fenômeno jurídico. Encaminhamentos vagos
e imprecisos, mas que buscam contornar o senso comum.
Por ora, contentamo-nos em recomendar o debate sobre a dogmática jurídica, vin-
dicando a necessidade de analisar seus conceitos e características com os olhos de hoje,
abalizando os anseios sociais, as necessidades da praxe forense e os avanços das teorias
do conhecimento. Como visto, a dogmática jurídica é complexa, e, em que pesem suas
cicatrizes deixadas pela lógica moderna, há espaço para questionar algumas das suas
mais relevantes características: Quais são os pontos de partida desse pensamento num
paradigma constitucional-democrático? Quais são os limites do juridicamente possível
diante de uma sociedade complexa e multifacetária? Em que medida o direito positivo
oficial pode se sobrepor aos reclames sociais e à historicidade? O que legitima uma de-
cisão judicial?

10 Essa confusão entre a prática profissional, a pesquisa em direito e o ensino no Brasil também é percebida por Lenio
Streck (2016, p. 33), que critica a simbiose entre ensino-doutrina-concursos.
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Refletir a dogmática jurídica é se propor a responder a algumas dessas questões, é


realizar outras indagações, é tentar reconstruir as razões subjacentes a essa tecnologia
e questioná-las diante do contexto histórico-social de hoje. Nem heroína nem vilã.
Acreditamos que a dogmática jurídica deva ser problematizada como uma tecnologia
aberta a ideologias, passível de ser embebida pelos ditames do constitucionalismo e da
democracia, em sintonia com o ambiente social vivido, uma ferramenta capaz de po-
tencializar o caráter emancipador do direito sem cair em irracionalidades e decisionis-
mos. Essa é nossa esperança.

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