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Copyright O 2005 seleção e apresentação, Braulio Tavares

Copyright O 2005 desta edição, Casa da Palavra

"A livraria" O Nelson Bond; "A terceira expedição" '& 1950, renovado em 1977

Ray Bradbury, reproduzido através de permissão de


Don Congdon Associates, Inc.;

"Onde seu fogo jamais se apaga" O espólio de May Sinclair. Todos os esforços foram
envidados para a correta identificação dos detentores de direitos autorais. À editora se

compromete a corrigir possíveis omissões ou erros nas edições subsegiientes.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Revisão da tradução
BRAULIO TAVARES

Revisão
MICHELLE STRZODA
SÉRGIO BELLINELLO SOARES

Diagramação
LEANDRO COLLARES

Produção editorial e gráfica


MAR DE IDÉIAS
Danieila Riet e Renata Arouca

CIP-BRASIL. CATALOCAÇÃO-NA-FONTE -

SNEL, RJ.
c78l

Contos fantásticos no labirinto de Borges / organização e apresentação Braulio


Tavares : ilustrações Romero Cavalcanti ; [tradução Julio Silveira... et al.]
-
Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2005

Inclui bibliografia
ISBN 85-872-2091-8

1. Antologias (contos). 1. Tavares, Braulio, 1950-. [I Borges, Jorge Luis (1899-1986)

05-2176 CDD 808.83876


CDU 82:3444082)
08.07.05 14.07.05 010855

CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL


R. Joaquim Silva, 98, 4º andar, Rio de Janeiro, 20241-110
21.2222-3167 21.2224-7461 divulgaQicasadapalavra.com.br
www.casadapalavra.com.br
The Bookstore
Tradução de Julio Silveira
Publicado pela primeira vez em The Blue Book, outubro de 1941,
v. 73, nº6. Primeira publicação em livro: Mr. Mergenthwirker's Lobblies

and Other Fantastic Tales (Coward-McCann, 1946). Em português:


Maravilhas do conto fantástico (Cultrix, 1958).

No Brasil, mesmo entre os leitores de ficção científica, Nelson Bond é um con-


tista pouco conhecido. Foi um prolífico colaborador de pulp magazines como
Weird Tales, Amazing Stories e Fantastic Adventures, além de revistas mais presti-
de contos fo-
giosas como Scribner's e The Blue Book. Suas principais coletâneas
ram publicadas nas décadas de 1940 e 1950, entre as quais Mr. Mergenthwirker's
Lobblies and Other Fantastic Tales (1946), The 31% of February (1949), The Remar-
kable Exploits of Lancelot Biggs, Spaceman (1950) e No Time Like the Future
(1954). Seu livro mais recente foi Nightmares and Daydreams (1968).
Bond nasceu em 1908 e foi criado na Filadélfia. Sua atividade literária ocor-
reu em paralelo a uma carreira como redator para radioteatro, tendo escrito mais
de cem roteiros. Quando parou de escrever profissionalmente, dedicou-se à fila-
telia e ao comércio de livros raros, sendo um membro emérito da Antiquarian
Bookmen's Association of America desde 1965. Hoje, tem livros publicados na
Suécia, Holanda, Espanha, Japão, Itália e Alemanha,
Numa entrevista à revista Locus, em outubro de 1998, ele dizia: "Um dos meus
axiomas literários é que não se produzem boas histórias escrevendo, e sim rees-
crevendo. Minhas histórias tendem sempre a encolher, porque eu vou cortando
aqui, aparando ali. Sou um escritor razoável em torno de 10 mil palavras, um
bom escritor por volta de 5 mil, e às vezes excelente na faixa de 2.500"
"A livraria" é um conto de 1941, contemporâneo dos primeiros contos de Bor-
ges. José Paulo Paes, que o incluiu na antologia Maravilhas
do conto fantástico,

considerou-o "primoroso pela originalidade da concepção".


A LIVRARIA

Nelson Bond

23

No terrível calor do verão nova-iorquino havia pouco estímulo para escrever.


O apartamento de Marston lembrava um forno. Há duas horas, ele despira
a camisa ensopada e se sentara diante da máquina. E agora, como resultado

de todo o seu trabalho, nada tinha a mostrar, a não ser um


monte de papéis
cesto de lixo.
amarfanhados, jogados nervosamente no
"Malditos romances!", exclamou. "Malditos editores e seus prazos! Mald
i-
to calor!"
De uma caixa, retirou um maço de folhas brancas e amarelas e se pôs
a folheá-las amargamente. O projeto para seu romance
continha uma boa
idéia. Tornou ler os três capítulos que havia escrito. Era um bom trabalho,
a

talvez o melhor que já havia escrito: Os encidos. Uma história psicológica


sobre derrota e sobre os que se deixam derrotar.
Era um bom tema, era um bom trabalho, mas...
O calor! O dominante, o exasperante calor. Num ímpeto de raiva, Mars-
ton entendeu que estava passando mal, fisicamente mal. E com
isso desistiu.
à folha que alvejava no
Lançando um último olhar desesperado em direção
cilindro da ergueu-se e quase teve
uma vertigem, de tão cansado.
máquina,
Isso, felizmente, passou depressa.
iria continuar enquanto ele permane-
Aquele desconforto, aquela asfixia
hou-
cesse ali. Lá fora também devia estar quente, mas talvez, pelo menos,
o rio...
vesse algum vestígio de brisa pelas ruas escuras que davam para
Vestiu a camisa, a jaqueta e saiu.
Não
Não se recordara de que a pequena livraria ficava naquela direção.
antes de chegar a alguns passos de distância. Então voltar
am-lhe à memória
as tantas vezes em que havia passado por ali, e as vezes em que tivera vontade
de entrar. Em cada uma dessas vezes, as circunstâncias o tinham impedido
de realizar o seu desejo. Mas agora...
A livraria estava longe de ser atraente. Velha e poeirenta, seu único atrati-
vo era um certo ar de mistério que sempre acompanha os lugares sombrios
e descuidados. Marston não sabia há quanto tempo ela estava lá, um tanto
deslocada. Certamente, fazia poucos negócios, pois das dezenas de pessoas
que passavam, à exceção do próprio Marston, ninguém se deu ao trabalho
de espiar pela vitrine escura.
Vira-a pela primeira vez, havia um ano, numa tarde em que passava de ôni-
bus com o coitado do Thatcher, um poeta de modestas inspirações. Como
poeta, Thatcher não era dos melhores, mas era dos mais esforçados. Havia
tempos que perseguia Marston com notícias de sua última obra-prima, que
breve veria a luz do dia.
"Está quase concluída! Só faltam algumas estrofes para o editor receber o
manuscrito. É um belo trabalho, Marston. Sei que isso, dito por mim, parece
exagero, mas um escritor sabe quando o que escreveu é bom ou ruim. O
que estou escrevendo hoje não é como o que eu escrevia. Agora é poesia de
verdade; poesia..."
O tom de sua voz era tão apaixonado que Marston teve que responder:
"Eu acredito, Thatcher, acredito mesmo."
"Pois pode acreditar. O título será Cânticos de um novo século. É o trabalho que
vai me levar às alturas, Marston. Até agora, fui mais que um rabiscador de
versos. Este livro me trará a glória. Você vai ver se eu não tenho razão... ai!"
Calou-se de repente. Marston, olhando-o de relance, lembrou que a saúde
do bardo estava em péssimo estado. O seu aspecto era desanimador. Tinha as
faces pálidas demais, os olhos demasiado escuros e fundos.
"Que isso, amigo?", perguntou, sobressaltado. "O que é que você tem?"
é

"O quê?"
E Thatcher se recompôs sorriu fracamente, enquanto soava o botão da
e

campainha para fazer o ônibus parar.


"Eu estou bem. É que me lembrei de uma coisa que tenho de fazer. Preci-
so falar com um sujeito, ali dentro."

Apontava para a livraria diante da qual Marston se achava agora.


"Tem certeza de que está se sentindo bem?", insistiu Marston. "Talvez seja
melhor eu te acompanhar"

12 NeLsoN Bono
"Ora, não se preocupe. Eu estou bem. O sujeito com quem vou falar é um
velho amigo."
Thatcher desceu do ônibus e, virando-se, gritou por cima dos ombros:
"Até mais ver, Marston. Olhe que os Cânticos não tardam sair!"
a

E o poeta, pensou Marston, estava errado em tudo o que dissera. Os dois


nunca mais se veriam o livro nunca seria lançado. O pobre Thatcher não
e

estava tão bem quanto dizia. Era o coração. No dia seguinte, Marston leria o
seu nome na coluna de obituários.
Tudo isso acontecera um ano atrás. Desde então, Marston tinha pensa-
do muitas vezes na pequena livraria, que para ele exercia uma espécie de
fascinaçãomacabra, sugerindo uma associação de idéias que Marston não
livraria que
conseguia explicar nem para si mesmo. Era naquela pequena
Thatcher havia desaparecido. Marston nunca mais o vira. Por isso, a humilde
lojinha havia se transformado numa espécie de símbolo.
doente com
Que tolice! Mas no inverno passado, quando Marston caíra
a gripe, durante as suas inquietas horas de delírio, a lembrança da livraria

tornara-se quase uma obsessão. Febril, o escritor sentia um desejo imenso de


sair do leito e fazer uma visita à pequenina livraria. Uma estranha ânsia! Era
tão forte que, assim que se restabeleceu, ele realmente fez uma viagem até a

porta da casa em questão.


Escolhera, no entanto, uma ocasião imprópria: encontrara a porta fecha-
da e as cortinas cerradas.
como um convite.
Agora, a porta estava entreaberta e a cortina suspensa,
frescor no seu interior
Apesar da pequenez, talvez a casa guardasse algum
bolorento. O sol despejava-se na cabeça de Marston e lhe forçava os ombros
com um peso cruel. Sua cabeça doía e todo ele vergava no abatimento de
uma espécie de náusea.
Abriu a porta e entrou.
A transiçãoda claridade solar para a sombra foi brusca. Em algum lugar,
nos fundos da loja, uma campainha soou argentina. Um velho silêncio pare-
cia abafar aquela sonoridade curta fina, envolvendo-a, esfriando-a.
e

Cambaleante, Marston esbarrou numa mesa. O susto trouxe um rápido


"oh!" aos seus lábios e ele agarrou-se à mesa, esperando a ofuscação passar.
De dentro das sombras saiu uma voz calma e simpática:
"Machucou-se, amigo?"
"Aqui é escuro demais", queixou-se Marston.

À LIVRARIA 13
"Sim, é escuro", concordou a voz. E depois de um momento de silêncio:
"Escuro, mas tranquilo."
Marston já enxergava melhor. Estava no centro de uma sala de teto baixo,
de livros. Na mesa
emparedada por todos os lados com estantes carregadas
de volumes
que estava diante dele havia também uma enorme quantidade
mas outros, para sua
empilhados. Alguns eram muito velhos e deteriorados,
surpresa, eram quase novos.
Além da mesa havia uma escrivaninha e, diante dela, um homem senta-
do, imperturbável, escrevendo, com uma pena de pato, num bloco de papel
aberto à sua frente. Naquela fraca luz, Marston não podia ver o rosto do
brilhando como
proprietário, mas distinguia os seus cabelos muito brancos,
um halo dentro da penumbra, por cima de ombros curvos. Sentiu que havia
coisa
qualquer coisa vagamente familiar nas feições daquele velho, qualquer
estranha nos meandros da sua memória...
Mas essa mera sugestão esvaiu-se antes que pudesse refletir melhor. E o
proprietário olhou para ele.
"Vem por algum motivo especial, meu amigo?"
"Estou só olhando", respondeu Marston.
Como todos os amantes de livros, ele abominava a eficiência no serviço de
livraria. Preferia procurar descansadamente, ao sabor do ócio, por obras que
lhe pudessem interessar.
O velho meneou a cabeça.
"Não há pressa", disse.
E voltou à sua escrita sem fim. A pena de pato rangia áspera, mas não
chegava a ser desagradável. Marston virou-se para as estantes.
Não lhe ocorreu logo que houvesse qualquer coisa estranha em relação
aos livros que olhava.
Essa percepção lhe veio gradualmente. Veio devagarinho, com um espan-
to crescente, sem nenhum senso agudo ou profundo de choque. Há tantos
livros e tantos autores, tantas legiões de nomes facilmente esquecidos... Os
olhos de Marston tinham percorrido toda uma fileira de volumes quando
de algo bizarro, in-
despertou na sua mente a sensação de que estava diante
trigante, algo que não parecia ser de todo verdadeiro.
Seu olhar percorreu a prateleira de um extremo ao outro. Evidente-
mente, o livreiro não procurava separar o seu estoque de acordo com os
assuntos. Misturavam-se poesias, ensaios e romances, numa estranha he-

14 Netson BonD
de Marston, nomes novos e
terogeneidade. Títulos até ali desconhecidos
velhos, velhas e novas idéias.
Então, ele encontrou um fino volume, enegrecido pelo tempo. Título:
Agamenon. Autor: William Shakespeare.
A brasa sempre adormecida no coração do bibliófilo acendeu-se, transfor-
mando-se num incêndio. Com o pulso acelerado pela excitação, Marston
avançou para o volume.

Como podia ser aquilo? Que podia significar? Agamenon por Shakespeare?
Ele desconhecia tal livro! Das duas uma: ou estava diante da maior fraude
até hoje perpetrada em nome da arte, ou acabava de fazer uma assombrosa
descoberta! Estendeu obraço.
Mas sua mão parou no ar, pois agora estava vendo -
com os sentidos agu-

çados pela descoberta -, estava vendo outros


livros igualmente desconheci-
dos e igualmente assombrosos. Rei Arthur da Bretanha, por John Milton. O

Leprechaun, por Donn Byrne. Cannon Mills


Mouros e murranos, por Jane
e

Austen.
Com um estre-
Rapidamente, seus olhos caíram sobre outra prateleira.
mecimento de incrédula compreensão, leu: Afetação, por Richard Brinsley
Sheridan; O olho da gárgula, por Edgar Allan Poe; Coronel Cowperthwite,
de Thackeray; Os novos casos de Sherlock Holmes, por Sir Arthur Connan

Doyle.
Não tinha ouvido passos, mas entendeu que o proprietário da livraria se
encontrava agora a seu lado. Havia uma discreta satisfação na voz do homem,
quando perguntou:
"Admirando meus livros, jovem amigo?"
Marston conseguiu apenas acenar com a mão para as estantes e replicar,
desastradamente:
"Mas esses... eu não compreendo."
"O senhor é Robert Marston, não é? O seu ramo literário é o do fantástico,
não é? Deve gostar daqueles outros."
O olhar de Marston acompanhou desesperadamente o gesto do livreiro. Viu
nomes que lhe eram tão conhecidos como o seu próprio nome, porém ligados
a títulos em que nunca tinha ouvido falar. Os trogloditas, por Julio Verne;
A
Inácio Do-
presença invisível, por Charles Fort; Hanuman, primeiro Deus, por
o
da demologia, por Weinbaum.
nelly; O homem do espaço e História completa

À LIVRARIA 15
E debaixo de todos esses volumes via-se um fino e brilhante volume, em

cuja lombada lia-se: Cânticos de um novo século, por David Thatcher.


Foi então que, subitamente, Marston compreendeu. Uma grande e pro-
funda apreensão preencheu sua mente e ele, numa voz estranhamente can-
sada, perguntou ao proprietário:
"O meu... também está aqui?"
O velho meneou a cabeça com gravidade.
"Os vencidos? Sim, meu filho... Também está aqui."
Havia apenas um exemplar, fresco e novo, como se naquele mesmo mo-
mento tivesse saído da prensa. A capa era elegante, agradável. Mesmo naque-
la hora de assombro, Marston sentiu uma lufada de orgulho diante daquele
livro, o seu livro!
Estendeu a mão para ele, mas, hesitante, perguntou:
"Eu posso?"
"O livro é seu", respondeu velho.
o

É Marston tomou-o em suas mãos...


nos capítulos de
Logo notou que tinham sido feitas algumas alterações
abertura, mas alterações de mínima importância. Com mãos trêmulas, foi
as palavras que até
passando as páginas. Seus olhos procuravam avidamente
da impressão, os
naquele momento não tinham conhecido a permanência
pensamentos que até ali só tinham existido na sua cabeça.
E compreendeu rapidamente, com uma ardente e fulgurante alegria, que
não errara em considerar aquele o seu melhor trabalho.
Não havia mediocridades naquele livro, não havia fraquezas nem trope-
ou
ços, nem confusão de idéias. Cada frase era perfeita. Não havia palavra,
era
sentença, ou idéia, que não brilhasse numa pureza encantadora. Aquele
o livro que Marston sempre desejara escrever, que sempre soubera estar al-

gures dentro dele. Era a triunfante realização da sua capacidade de escritor.


Marston, que conhecia livros, sabia que aquele livro era magnífico, que, fi-
nalmente, havia chegado ao pleno desabrochar do seu talento.
"Finalmente..."
Fechou livro, produzindo um ligeiro baque no silêncio profundo. Olhou
o

rosto e aquele corpo lhe


para o proprietário, não entendendo de onde aquele
eram tão familiares. Sentia um estranho frio, um estranho medo. E excla-
mou:
"Mas não! Agora, não! Não antes que esteja concluído..."

16 NeLson BonD
O velho respondeu com voz calma:
"Você certamente compreende que ele não pode ser concluído "lá', Mars-
ton. Naquele lado, nada pode alcançar a perfeição. Só nesta livraria existem
"
histórias e poemas doces e verdadeiros como os seus autores os sonharam
"Lá Os vencidos seria apenas um outro livro, a forma cortada e encader-
nada de um sonho que morreu ao nascer. Pensamentos elevados como as
estrelas caindo em palavras fracas demais para comportá-los. Os romances
terminados lá nunca chegam ser realmente grandes. Faltam-lhes sempre as
a

asas com que os seus autores os vislumbravam."


"Só na livraria dos não-escritos pode uma história alcançar as altitudes so-
nhadas pelo autor. Aqui, junto a uma epopéia que Homero sempre desejou
escrever, uma peça que Marlowe planejou mas não reduziu a palavras, e o
último e maior romance de Galsworthy, entre 10 mil obras que não foram
escritas mil sonhadores aqui o seu Os vencidos pode ter um lugar, na
-

por
infinita livraria do que deveria-ter-sido."
"É o preço da perfeição, e é um preço baixo."
Sua voz caiu no silêncio sob forma de um suspiro. E pareceu a Marston
a

que um novo som chegava aos seus ouvidos.


Era como se várias vozes lhe
falassem de muito longe, vozes saudando-o em tom de boa camaradagem,
convidando-o a se reunir a companheiros. Ele ouviu ou pensou ouvir a voz
risonha de Thatcher:
"Por que tanto caso, companheiro? Você está fazendo bicho de sete cabe-
ças de uma coisa tão simples!"
O velho estendeu a mão para Marston, perguntando:

"E agora, está preparado, meu amigo?"


Mas o livro estava em suas mãos. E subitamente varreu o cérebro de Mars-
ton um pensamento tão poderoso que uma febre apossou-se dos seus mem-
bros.
Ainda não era tarde demais! E não o seria até aquela mão encontrar a sua!
Se conseguisse chegar à rua com seu livro, ele poderia ser entregue ao
o

público em toda a sua perfeição idealizada!


Uma repentina decisão o sacudiu. Com um grito súbito, ele se esquivou
do alcance do velho, girou e correu para a porta. À maçaneta gasta escorre-
num desespero de pânico, for-
gou na palma de sua mão; a porta resistiu. E,
crescendo
çou o obstáculo. Atrás dele, a voz macia ergueu-se num choroso
de desgosto. Um sussurro segredou ao seu ouvido:

À LIVRARIA 17
"Não se pode escapar, meu filho. Não se pode demorar."
A porta então se abriu. A luz do sol, crua, quente e pesada como um
punho monstruoso, foi um jato de luz dourada ofuscando seus olhos. Aper-
tando entre as mãos o precioso volume, Marston part correndo pela rua,
soltando gritos de triunfo, correndo, correndo.
Não ouviu vozes que gritavam em alerta nem o bramido dos freios inúteis.
Ouvia apenas o tumulto horrendo do mundo que se precipitava ruidosamen-
te para o Nada... Depois voltou o silêncio, e voltaram as vozes suaves, cha-
mando-o. Entre elas, a voz gelada do ancião.
"Você está demorando, meu filho. Está pronto agora?"
E uma fria mão apertou sua. a

"Eu não pude evitar o atropelamento!", disse o chofer do caminhão. "Juro

por Deus que eu não tinha como evitar! Este senhor aqui viu tudo e pode
contar o que aconteceu. O homem correu para a frente do caminhão, gritan-
do como se estivesse louco ou coisa parecida. Tentei parar, mas..."
"Tá bom", disse o homem fardado de azul. "A culpa não foi sua. Alguém
mais viu o acidente? De onde foi que ele saiu, afinal?"
Uma testemunha de lábios pálidos arrancou seus olhos, fascinados de hor-
ror, da figura que jazia na calçada. E esticou um dedo trêmulo.
"Dali, seu guarda: daquele terreno baldio do outro lado da rua. Eu o vi an-
dando por lá, falando sozinho. Acho que estava sofrendo de insolação, pelo
jeito. Aquela propriedade está abandonada há muitos anos. Não sei por que
ele..."
"Preciso anotar seu nome", disse o policial. "Alguém sabe quem é? Veja-
mos livro que ele traz. Talvez tenha o nome dele"
o

Alguém lhe entregou livro.o

Ele folheou rapidamente o volume, empurrou o quepe para trás e coçou


a testa.
"Ué! Este é o livro mais estranho que já vi! Veja! Três capítulos impressos!
E o resto todo em branco!"

18 NeLson BonD

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