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"A livraria" O Nelson Bond; "A terceira expedição" '& 1950, renovado em 1977
"Onde seu fogo jamais se apaga" O espólio de May Sinclair. Todos os esforços foram
envidados para a correta identificação dos detentores de direitos autorais. À editora se
Revisão da tradução
BRAULIO TAVARES
Revisão
MICHELLE STRZODA
SÉRGIO BELLINELLO SOARES
Diagramação
LEANDRO COLLARES
CIP-BRASIL. CATALOCAÇÃO-NA-FONTE -
SNEL, RJ.
c78l
Inclui bibliografia
ISBN 85-872-2091-8
Nelson Bond
23
"O quê?"
E Thatcher se recompôs sorriu fracamente, enquanto soava o botão da
e
12 NeLsoN Bono
"Ora, não se preocupe. Eu estou bem. O sujeito com quem vou falar é um
velho amigo."
Thatcher desceu do ônibus e, virando-se, gritou por cima dos ombros:
"Até mais ver, Marston. Olhe que os Cânticos não tardam sair!"
a
estava tão bem quanto dizia. Era o coração. No dia seguinte, Marston leria o
seu nome na coluna de obituários.
Tudo isso acontecera um ano atrás. Desde então, Marston tinha pensa-
do muitas vezes na pequena livraria, que para ele exercia uma espécie de
fascinaçãomacabra, sugerindo uma associação de idéias que Marston não
livraria que
conseguia explicar nem para si mesmo. Era naquela pequena
Thatcher havia desaparecido. Marston nunca mais o vira. Por isso, a humilde
lojinha havia se transformado numa espécie de símbolo.
doente com
Que tolice! Mas no inverno passado, quando Marston caíra
a gripe, durante as suas inquietas horas de delírio, a lembrança da livraria
À LIVRARIA 13
"Sim, é escuro", concordou a voz. E depois de um momento de silêncio:
"Escuro, mas tranquilo."
Marston já enxergava melhor. Estava no centro de uma sala de teto baixo,
de livros. Na mesa
emparedada por todos os lados com estantes carregadas
de volumes
que estava diante dele havia também uma enorme quantidade
mas outros, para sua
empilhados. Alguns eram muito velhos e deteriorados,
surpresa, eram quase novos.
Além da mesa havia uma escrivaninha e, diante dela, um homem senta-
do, imperturbável, escrevendo, com uma pena de pato, num bloco de papel
aberto à sua frente. Naquela fraca luz, Marston não podia ver o rosto do
brilhando como
proprietário, mas distinguia os seus cabelos muito brancos,
um halo dentro da penumbra, por cima de ombros curvos. Sentiu que havia
coisa
qualquer coisa vagamente familiar nas feições daquele velho, qualquer
estranha nos meandros da sua memória...
Mas essa mera sugestão esvaiu-se antes que pudesse refletir melhor. E o
proprietário olhou para ele.
"Vem por algum motivo especial, meu amigo?"
"Estou só olhando", respondeu Marston.
Como todos os amantes de livros, ele abominava a eficiência no serviço de
livraria. Preferia procurar descansadamente, ao sabor do ócio, por obras que
lhe pudessem interessar.
O velho meneou a cabeça.
"Não há pressa", disse.
E voltou à sua escrita sem fim. A pena de pato rangia áspera, mas não
chegava a ser desagradável. Marston virou-se para as estantes.
Não lhe ocorreu logo que houvesse qualquer coisa estranha em relação
aos livros que olhava.
Essa percepção lhe veio gradualmente. Veio devagarinho, com um espan-
to crescente, sem nenhum senso agudo ou profundo de choque. Há tantos
livros e tantos autores, tantas legiões de nomes facilmente esquecidos... Os
olhos de Marston tinham percorrido toda uma fileira de volumes quando
de algo bizarro, in-
despertou na sua mente a sensação de que estava diante
trigante, algo que não parecia ser de todo verdadeiro.
Seu olhar percorreu a prateleira de um extremo ao outro. Evidente-
mente, o livreiro não procurava separar o seu estoque de acordo com os
assuntos. Misturavam-se poesias, ensaios e romances, numa estranha he-
14 Netson BonD
de Marston, nomes novos e
terogeneidade. Títulos até ali desconhecidos
velhos, velhas e novas idéias.
Então, ele encontrou um fino volume, enegrecido pelo tempo. Título:
Agamenon. Autor: William Shakespeare.
A brasa sempre adormecida no coração do bibliófilo acendeu-se, transfor-
mando-se num incêndio. Com o pulso acelerado pela excitação, Marston
avançou para o volume.
Como podia ser aquilo? Que podia significar? Agamenon por Shakespeare?
Ele desconhecia tal livro! Das duas uma: ou estava diante da maior fraude
até hoje perpetrada em nome da arte, ou acabava de fazer uma assombrosa
descoberta! Estendeu obraço.
Mas sua mão parou no ar, pois agora estava vendo -
com os sentidos agu-
Austen.
Com um estre-
Rapidamente, seus olhos caíram sobre outra prateleira.
mecimento de incrédula compreensão, leu: Afetação, por Richard Brinsley
Sheridan; O olho da gárgula, por Edgar Allan Poe; Coronel Cowperthwite,
de Thackeray; Os novos casos de Sherlock Holmes, por Sir Arthur Connan
Doyle.
Não tinha ouvido passos, mas entendeu que o proprietário da livraria se
encontrava agora a seu lado. Havia uma discreta satisfação na voz do homem,
quando perguntou:
"Admirando meus livros, jovem amigo?"
Marston conseguiu apenas acenar com a mão para as estantes e replicar,
desastradamente:
"Mas esses... eu não compreendo."
"O senhor é Robert Marston, não é? O seu ramo literário é o do fantástico,
não é? Deve gostar daqueles outros."
O olhar de Marston acompanhou desesperadamente o gesto do livreiro. Viu
nomes que lhe eram tão conhecidos como o seu próprio nome, porém ligados
a títulos em que nunca tinha ouvido falar. Os trogloditas, por Julio Verne;
A
Inácio Do-
presença invisível, por Charles Fort; Hanuman, primeiro Deus, por
o
da demologia, por Weinbaum.
nelly; O homem do espaço e História completa
À LIVRARIA 15
E debaixo de todos esses volumes via-se um fino e brilhante volume, em
16 NeLson BonD
O velho respondeu com voz calma:
"Você certamente compreende que ele não pode ser concluído "lá', Mars-
ton. Naquele lado, nada pode alcançar a perfeição. Só nesta livraria existem
"
histórias e poemas doces e verdadeiros como os seus autores os sonharam
"Lá Os vencidos seria apenas um outro livro, a forma cortada e encader-
nada de um sonho que morreu ao nascer. Pensamentos elevados como as
estrelas caindo em palavras fracas demais para comportá-los. Os romances
terminados lá nunca chegam ser realmente grandes. Faltam-lhes sempre as
a
por
infinita livraria do que deveria-ter-sido."
"É o preço da perfeição, e é um preço baixo."
Sua voz caiu no silêncio sob forma de um suspiro. E pareceu a Marston
a
À LIVRARIA 17
"Não se pode escapar, meu filho. Não se pode demorar."
A porta então se abriu. A luz do sol, crua, quente e pesada como um
punho monstruoso, foi um jato de luz dourada ofuscando seus olhos. Aper-
tando entre as mãos o precioso volume, Marston part correndo pela rua,
soltando gritos de triunfo, correndo, correndo.
Não ouviu vozes que gritavam em alerta nem o bramido dos freios inúteis.
Ouvia apenas o tumulto horrendo do mundo que se precipitava ruidosamen-
te para o Nada... Depois voltou o silêncio, e voltaram as vozes suaves, cha-
mando-o. Entre elas, a voz gelada do ancião.
"Você está demorando, meu filho. Está pronto agora?"
E uma fria mão apertou sua. a
por Deus que eu não tinha como evitar! Este senhor aqui viu tudo e pode
contar o que aconteceu. O homem correu para a frente do caminhão, gritan-
do como se estivesse louco ou coisa parecida. Tentei parar, mas..."
"Tá bom", disse o homem fardado de azul. "A culpa não foi sua. Alguém
mais viu o acidente? De onde foi que ele saiu, afinal?"
Uma testemunha de lábios pálidos arrancou seus olhos, fascinados de hor-
ror, da figura que jazia na calçada. E esticou um dedo trêmulo.
"Dali, seu guarda: daquele terreno baldio do outro lado da rua. Eu o vi an-
dando por lá, falando sozinho. Acho que estava sofrendo de insolação, pelo
jeito. Aquela propriedade está abandonada há muitos anos. Não sei por que
ele..."
"Preciso anotar seu nome", disse o policial. "Alguém sabe quem é? Veja-
mos livro que ele traz. Talvez tenha o nome dele"
o
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