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Braulio Tavares

Copyright 2007 seleção e apresentação,


&

Copyright & 2007 desta edição, Casa da


Palavra

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Tradução
BRAULIO TAVARES "A máscara de prata", "O cartão misterioso",
"A Pele-Vermelha"
CAROLINA CAIRES COELHO "O Homem de Areia", "Amina", "A caveira
de cinco dedos"
que gritava", "O mestre", "A fera
FELIPE ANTUNES "O papel de parede amarelo", "Inexplicável",
"O quarto na torre"
LUIZ GUERRA "Uma aparição"
WILLIAM LAGOS "À profecia"

Revisão da tradução
BRAULIO TAVARES
ANNA LEE

Revisão tipográfica
CRISTIANE PACANOWSKI

Diagramação
PRINTMARK MARKETING EDITORIAL

Produção editorial
NATALIF ARAÚJO LIMA

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE -
SNEL, RJ.

Fg42

Freud e o estranho : contos fantásticos do inconsciente / orgamzação e seleção


Braulio Tavares : contos de E. 1. A. Hoffmann... fetal.) ; [tradução Caro-
lina Caires Coelho... et al. Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2007. il.
-

Inclui bibliografia
[SBN 9758-85-7734-072-9

€ literatura. |. Tavares, Braulio,


1. Antologias (Conto fantástico). 2. Psicanálise
1950. . Hoffmann. E. T. A. (Emst Theodor Amadeus), 1776-1822. IH. Freud,

Sigmund, 1856-1939. IV Título: Contos fantásticos do inconsciente.


07-2902, CDD: 808.83876
CDU: 823441182)
002912

CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL


R. Joaquim Silva, 98, + andar, Lapa, Rio de Janeiro, 20241-110
21.2222-3167 21.2224-746] divulgaficasadapalavra.com.br
www.casadapalavra.com.br
"The Beast with Five Fingers"
Primeira publicação na antologia The New Decameron (1919). Primeira
versão revisada, na coletânea
publicação em livro do autor, numa
The Beast with Five Fingers and Other Tales (J. M. Dent, 1928).

Este conto adquiriu certa notoriedade depois de ter sido filmado em 1946 por
Robert Florey, com roteiro de Robert Siodmak, e tendo no elenco Peter Lorre,
e Luís
Robert Alda e Victor Francen. O filme provocou polêmica entre diretor
o

Buúuel, na época também residente nos EUA contratado pela


e Warner Brothers,

o qual acusou Florey de plágio. A seqiiência da "mão sem corpo", que


Bunuel viria
de 1944, e
a utilizar em 1962 em anjo exterminador. já constava de um texto seu
O

a imagem de uma mão decepada já aparece em Um cão andaluz (1928).

Em todo caso, o conto de Harvey tem uma originalidade indiscutível em sua


do Estranho que é, segundo Freud, uma
exploração dessa fonte do sentimento
mão separada do braço", ainda mais quando ela "adquire movimento próprio".
Freud vê em tais imagens uma evocação do complexo de castração, mas, como na
a um sentido unívoco ou a uma
imagem de um sonho, não podemos restringi-la
A mão que se movimenta sem corpo
interpretação que a esgote por completo.
uma parte de nossa mente que ganha inde-
sugere castração, mas sugere também
conta própria.
pendência do restante e passa a agir por
William Fryer Harvey nasceu em Yorkshire em 1885, estudou em colégios qua-
cres e no Balliol College (Oxford). Tendo se formado em medicina, serviu na
Ma-

rinha britânica durante a Primeira Guerra condecorado por bravura. Num


e foi

destróier torpedeado, que estava afundando lentamente, Harvey salvou a vida


de

um marujo preso às ferragens amputando-lhe o braço no meio das chamas.


A ab-
os pulmões. Morreu em 1937, aos 52
sorção de fumaça arruinou-lhe para sempre
anos. Na introdução a sua coletânea de contos, Maurice Richardson pergunta:
"Como se explica que este homem, que de acordo com todos os testemunhos tinha
um excelente caráter, e a quem seus amigos não hesitavam em aplicar o epíteto
histórias
de "santo", só produzia suas melhores obras literárias quando escrevia essas
sinistras, muitas delas de natureza horrível e violenta?"
A FERA DE CINCO DEDOS

William F. Harvey

Esta história, creio, começa com Adrian Borlsover, que eu conheci quan-
do era criança e ele, idoso. Meu pai lhe fizera uma visita para pedir que
participasse de uma subscrição, e, antes de sair, o sr. Borlsover pôs uma
das mãos sobre minha cabeça, abençoando-me. Nunca me esquecerei da

surpresa que senti quando olhei para seu rosto e percebi, pela primeira
vez, que os olhos podem ser negros, belos e brilhantes, mesmo que nada
enxerguem.
Adrian Borlsover era cego.
Ele era um homem extraordinário, de descendência excêntrica. Os Borl-
sover, por algum motivo, sempre se casavam com mulheres muito comuns;
o que, talvez, tivesse relação com fato de nenhum Borlsover ter sido um
o

de
gênio e de apenas um deles ter sido louco. Mas eram grandes campeões
pequenas causas, patronos generosos de ciências estranhas,
fundadores de sei-
tas polêmicas, guias confiáveis pelos atalhos da erudição.
Adrian era uma autoridade em fertilização de orquídeas. Vivia com a fa-
mília em Borlsover Conyers, até que um problema congênito dos pulmões
o obrigou a procurar um clima menos severo num lugar úmido no sudoes-

te, onde o conheci. Às vezes ele substituía um ou outro clérigo local. Meu
pai o descrevia como um bom pregador, que fazia longos
e inspiradores

sermões sobre temas que muitos homens considerariam in-viáveis.


-
Uma ótima prova -
ele dizia -
da verdade da doutrina da inspiração
verbal direta.
Adrian Borlsover era muito hábil com as mãos. Sua caligrafia era exce-
lente. Iustrava todos os seus trabalhos científicos, fazia suas próprias xilo-
gravuras e entalhava os retábulos que, atualmente, são a principal atração
da igreja em Borlsover Conyers. Era muito hábil em desenhar silhuetas de

jovens mulheres e fazer porcos e vacas de papel para as crianças, e inventou


mais de um instrumento de sopro.
Quando tinha 50 anos, Adrian Borlsover perdeu a visão. Em um espaço
de tempo bastante curto, ele se adaptou à nova condição de vida. Rapida-
mente aprendeu a ler em braile. Seu tato era tão aguçado que conseguiu
prosseguir em suas atividades na botânica. Ao passar levemente os dedos
pelas flores, conseguia identificá-las, mas, às vezes, usava os lábios. Encon-
trei muitas cartas dele entre as correspondências de meu pai; em nenhuma
delas é possível encontrar algum sinal de que ele era cego, a despeito do
fato de ele economizar exageradamente no espaço entre as linhas. No fim
de sua vida, Adrian Borlsover tinha um excelente tato, algo quase miste-
rioso. Diziam que ele era capaz de dizer a cor de uma fita quando esta
era colocada entre seus dedos. Meu pai não negava nem confirmava essa
informação.
Adrian Borlsover era solteirão. Seu irmão mais velho, Charles, casara-se
tarde, deixando um filho, Eustace, que vivia na sombria mansão georgiana
em Borlsover Conyers, onde podia trabalhar sem ser perturbado, coletando
material para seu grande livro sobre hereditariedade.
Assim como seu tio, ele era um homem respeitável. Os Borlsover sem-
pre foram naturalistas, mas Eustace possuía, em nível especial, o poder
de sistematizar seu conhecimento. Recebera educação acadêmica na
Alemanha; e então, após o trabalho de pós-graduação em Viena e em
Nápoles, viajou durante quatro anos pela América do Sul e pelo Oriente,
reunindo bastante material para um novo estudo sobre os processos de
variação.
Vivia sozinho em Borlsover Convers com Saunders, seu secretário, um
homem com uma reputação duvidosa na cidade, mas cuja habilidade
como matemático, combinada com seu talento para negócios, era muito
valiosa para Eustace.
Tio e sobrinho encontravam-se pouco. As visitas de Eustace se restrin-
giam a uma semana no verão ou no outono semanas tediosas, que se
-

arrastavam como a cadeira de rodas na qual o velho era levado à frente


ensolarada da casa. Os dois homens gostavam um do outro, cada qual à
sua maneira, apesar de que sua intimidade teria sido maior se dividissem as
mesmas visões religiosas. Adrian mantinha-se fiel aos dogmas evangélicos
antigos de sua juventude; seu sobrinho, por muitos anos, pensou em adotar
o budismo. Os dois homens tinham, também, a reticência que os Borlsover
sempre demonstraram, a que seus inimigos chamavam às vezes de hipo-

6o William F. Harvey
crisia. Adrian era reticente em relação às coisas que deixara sem fazer; já
Eustace dava a impressão de que as cortinas que ele tomara tanto cuidado
para deixar fechadas escondiam mais do que uma câmera quase vazia.
Dois anos antes de sua morte, Adrian Borlsover desenvolveu, sem saber,
o poder incomum da escrita automática. Eustace descobriu isso por acaso.
Adrian estava sentado na cama, lendo, passando os dedos da mão esquerda
pelas letras em braile, quando seu sobrinho percebeu que
um lápis que 0
velho segurava com a mão direita estava se movendo lentamente na página
oposta. Ele saiu de onde estava, perto da janela, e sentou-se ao
lado da
cama. A mão direita continuava se movendo, e agora ele conseguia ver,
claramente, que letras e palavras estavam sendo formadas.
"Adrian Borlsover", escreveu a mão direita, "Eustace Borlsover, Charles
Borlsover, Francis Borlsover, Sigismund Borlsover, Adrian Borlsover, Eus-
tace Borlsover, Saville Borlsover. B de Borlsover. A honestidade é a melhor
prática. Bela Belinda Borlsover".
Que disparate mais interessante! Eustace disse a si mesmo.
-
-

"O Rei George subiu ao trono em 1760", escreveu a mão. "Multidão,


um substantivo de massa; uma coleção de indivíduos. Adrian Borlsover,
Eustace Borlsover".
Acredito disse seu tio, fechando livro que seria muito melhor se
- -
o
-

você aproveitasse o sol da tarde e saísse para um passeio.


Talvez faça isso mesmo Eustace respondeu enquanto pegava livro.
- -
o

-
Não irei muito longe e, quando voltar, posso ler para você aqueles artigos
da Nature sobre os quais estávamos falando.
Foi caminhar, mas parou no primeiro abrigo que encontrou e, sentan-
do-se no canto mais bem protegido pelo vento, examinou o livro com aten-
ção. Quase todas as páginas estavam repletas de rabiscos feitos a lápis, filei-
ras de letras maiúsculas, palavras curtas, palavras longas, frases completas,

citações de livro escolar. O livro todo, na verdade, era parecido com um


caderno escolar e, analisando melhor, Eustace julgou que havia ampla evi-
dência de que a caligrafia do começo do livro, apesar de ser boa, não era,
nem de perto, tão boa quanto a do fim.
Ele deixou o tio no fim de outubro com a promessa de retornar no início
de dezembro. Estava claro que o poder de escrita automática do velho es-
tava sendo rapidamente desenvolvido e, pela primeira vez, esperou ansioso
por uma visita que combinaria dever e interesse.

A FERA DE CINCO DEDOS 61


Mas, ao retornar, ficou decepcionado. Seu tio lhe pareceu mais velho.
Também estava apático, preferindo que as outras pessoas lessem para ele e
ditando todas as suas cartas. Faltando um dia para partir, Eustace teve a opor-
tunidade de presenciar a nova habilidade de Adrian Borlsover.
O velho, encostado em travesseiros sobre a cama, estava adormecido. Suas
mãos estavam sobre o cobertor, com a esquerda segurando direita com fr-
a

meza. Eustace pegou um caderno em branco e colocou um lápis ao alcance


dos dedos da mão direita. Eles agarraram o lápis no mesmo instante, mas
voltaram soltá-lo para livrar-se de vez do aperto firme da mão esquerda.
a

Talvez, para evitar a interferência, eu deva segurar essa mão Eustace


-

disse para si mesmo, ao observar o lápis, que no mesmo instante, começou


a escrever:
-
"Descuidados Borlsover, desnecessariamente não-naturais, extraordina-
riamente excêntricos, censuravelmente curiosos."
-

Quem é você? Eustace perguntou em voz baixa.


-

"Não é da sua conta", escreveu a mão de Adrian.


-
É
meu tio quem está escrevendo?
"Oh, minha alma profética, tio meu".
-
É alguémque eu conheço?
"Eustace, tolo, você me verá em breve".
-

Quando o verei?
"Quando o pobre e velho Adrian morrer."
-
Onde eu o verei?
"Onde não me verá?"
Em vez de formular a próxima pergunta, Eustace a escreveu: "Que horas
são?"
Os dedos soltaram lápis e se moveram três ou quatro vezes pelo papel.
o

Depois, pegando o lápis novamente, escreveram: "Dez minutos para as


quatro. Tire seu livro daqui, Eustace. Adrian não deve nos pegar fazen-
do isso. Ele não compreende nada disso, e não quero perturbar o velho
Adrian. Au revoir!"
Adrian Borlsover acordou assustado.
-
Estive sonhando de novo ele disse. -
Sonhos estranhos com algumas
-

cidades coligadas e cidades esquecidas. Você estava nesse sonho, Eustace,


apesar de não conseguir lembrar como. Eustace, quero avisá-lo. Não siga por
caminhos duvidosos. Escolha bem seus amigos. Seu pobre avô...

62 William F. Harvey
Um ataque de tosse interrompeu o que ele estava dizendo. Mas Eustace
vu que a mão ainda estava escrevendo. Ele conseguiu, sem ser notado, afas-
tar o livro.
-
Vou acender o gás ele disse e fazer um chá. Do outro lado da cama
- - -

ele viu as últimas frases que tinham sido escritas.


"É tarde demais, Adrian" ele leu. "Já somos amigos, não é, Eustace
- -

Borlsover?"
No dia seguinte, Eustace partiu. Achou que seu tio não estava bem na des-
pedida, e o velho falou com desânimo do fracasso que tinha sido sua vida.
Bobagem, tio disse o sobrinho. Você conseguiu vencer suas dificul-
- -
-

dades de uma maneira que cem mil pessoas não conseguiriam. Todos ficam
maravilhados com sua esplêndida perseverança em ensinar sua mão a assu-
mir o lugar de sua visão perdida. Para mim, tem sido uma revelação acerca
das possibilidades de educação.
-

Educação -
tio repetiu vagamente, como se a palavra iniciasse um
o

novo conjunto de pensamentos. A educação é boa desde que você saiba


-

para quem para que você a oferece. Mas com os tipos inferiores de homens,
e

com os espíritos mais baixos e mais sórdidos, tenho sérias dúvidas acerca de
seus resultados. Bem, adeus, Eustace, talvez não o veja novamente. Você é
um verdadeiro Borlsover, com todos os defeitos dos Borlsover. Case-se, Eus-
tace. Case-se com uma moça boa e sensata. E se por acaso eu não vir o

de novo, meu testamento está com meu advogado. Não lhe deixo nenhum

legado, pois sei que você tem bastante dinheiro, mas achei que você gostaria
de ficar com meus livros. Oh, e há apenas mais uma coisa. Você sabe, antes
do fim, as pessoas geralmente perdem o controle de si mesmas e fazem pe-
didos absurdos. Não dê atenção eles, Eustace. Adeus! e soltou a mão do
a
-

sobrinho. Eustace a pegou novamente e ela o reteve por uma fração de um


egundo a mais do que ele esperava, segurando a sua com uma virilidade
surpreendente. Havia também, naquele toque, uma leve intimidade.
-
Tio ele disse -, ainda vou vê-lo vivo e bem por muitos anos.
-

Dois meses depois, Adrian Borlsover faleceu.


Eustace Borlsover estava em Nápoles na época. Ele leu a nota de obituá-
rio no Moming Post no dia do funeral.
-
Pobre homem! -
ele disse. -
Não sei se terei espaço para guardar todos
os seus livros.

A FERA DE CINCO DEDOS 63


A dúvida voltou a sua mente novamente com mais força quando, três
dias depois, estava na biblioteca de Borlsover Conyers, um cômodo enorme
construído com fins utilitários e não estéticos, no ano de Waterloo, por um
Borlsover que era um admirador ardente do grande Napoleão. Foi projetada
no mesmo plano de muitas bibliotecas de universidades, com estantes altas
formando recessos profundos de silêncio empoeirado, como sepulturas ade-
quadas para os ódios das polêmicas esquecidas, as paixões mortas de vidas
passadas. No fundo do cômodo, atrás do busto de algum padre desconhecido
do século XVII, uma feia escada de ferro em espiral levava à galeria repleta
de estantes. Quase todas estavam cheias.
-
Preciso conversar com Saunders sobre isso -
Eustace disse. -
Acredito

que a sala de bilhar ficará repleta de livros.


Os dois homens se encontraram pela primeira vez depois de semanas na
sala de jantar, naquela noite.
-
Olá! Eustace disse, em pé ao lado da lareira, com as mãos nos bolsos.
-

-
Como está o mundo, Saunders? Por que veste essas roupas? Ele mesmo
-

estava vestindo uma jaqueta de caça. Não acreditava em luto, como dissera a
seu tio em sua última visita; e, apesar de usar gravatas de cores sóbrias, estava
com uma gravata vermelha naquela noite, na tentativa de chocar Morton, o
mordomo, e para fazer com que os servos discutissem entre si a questão do
luto em sua área reservada. Eustace era um autêntico Borlsover.
-
O mundo respondeu Saunders está como sempre, lento e confuso.
- -

Meu traje se deve ao convite do capitão Lockwood para jogar bridge.


Como chegará lá?
-

-
Há um problema com carro, por isso pedi a Jackson que me leve de
o

charrete. Alguma objeção?


Oh, claro que não! Temos dividido as coisas por muitos anos para que eu
-

levante objeções a esta altura.


-
Você encontrará sua correspondência na biblioteca continuou Saunders.
-

-
Já olhei a maioria. Há algumas cartas particulares que não abri. Há também
uma caixa com uma ratazana ou algo assim que chegou pelo correio à noite.
Provavelmente é a criatura de seis dedos que Terry estava para nos enviar para ser
cruzada com a albina de quatro dedos. Não olhei porque não quis sujar minha
roupa, mas posso dizer, pela maneira com que está pulando, que está faminta.
Oh, cuidarei dela disse Eustace enquanto você e o capitão disputam
- -
-

honestamente alguns trocados.

64 William F. Harvey
Depois do jantar e da partida de Saunders, Eustace entrou na biblioteca.
Apesar de lareira estar acesa, o cômodo não estava aconchegante.
a

-
Manteremos todas as luzes acesas, sempre ele disse, ao acionar os bo-
-

tões. E, Morton ele disse, quando o mordomo lhe trouxe o café -, traga-
- -

me uma chave de fenda ou algo parecido para que eu possa abrir esta caixa.
Seja qual for o animal da caixa, está dando muitos pulos. O que foi? Por que
ainda está aí?
-
Com licença, senhor, mas quando o carteiro o trouxe, disse que no cor-
reio as pessoas tinham feito furos na tampa. Não havia meio de o animal
respirar, e não queriam que ele morresse, senhor. Isso é tudo.
-
Foi um grande descuido do homem, seja quem for Eustace disse,
-

ao remover os parafusos -, colocar um animal como este em uma caixa de


madeira sem poder respirar. Que diabo, pensei em pedir a Morton que me
trouxesse uma gaiola em que eu pudesse colocá-lo. Agora, creio que terei de
pegar uma sozinho.
Ele colocou um pesado livro sobre a tampa de onde os parafusos haviam
sido tirados, e foi para a sala de bilhar. Ao voltar à biblioteca com uma
gaiola vazia na mão, escutou o barulho de algo caindo, e de algo rastejando
no chão.
-

Maldição! O animal escapou. Como vou encontrá-lo novamente nesta


biblioteca?
Procurar pela criatura realmente foi inútil. Ele tentou seguir o som dos
rastejos em um dos cantos atrás dos livros nas estantes em que o animal
parecia ter se escondido; mas foi impossível encontrá-lo. Eustace resolveu
seguir lendo em silêncio. Era provável que o animal ganhasse confiança e
se mostrasse. Saunders parecia ter checado, a seu modo metódico, a maioria
das correspondências. Ainda havia algumas cartas particulares.
O que era aquilo? Dois cliques e as luzes dos horríveis candelabros do teto
de repente se apagaram.
-
Talvez alguma coisa tenha acontecido com os fusíveis Eustace disse,
-

ao se aproximar dos botões ao lado da porta. Então, ele parou. Ouviu um


barulho do outro lado do cômodo, como se alguma coisa estivesse subindo
a escada de ferro. Se ele entrou na galeria ele disse -, muito bem. Acen-
- -

deu as luzes rapidamente, atravessou o cômodo subiu a escada. Mas não


e

conseguiu ver nada. Seu avô colocara um pequeno portão no topo da escada,
para que as crianças pudessem correr pela galeria sem o risco de se acidentar.

À FERA DE CINCO DEDOS 65


Eustace o fechou e, tendo reduzido bastante a âmbito de sua busca, voltou
à mesa ao lado da lareira.
Como aquela biblioteca era sombria! Nada havia de aconchegante ali. Os
poucos bustos que um Borlsover do século XVIII tinha trazido de sua grand
tour poderiam ter sido usados para enfeitar uma antiga biblioteca. Ali, pare-
ciam deslocados. Deixavam o cômodo mais frio a despeito da velha cortina
vermelha de damasco e das grandes cornijas douradas.
Dois grandes livros caíram da galeria ao chão, com grande estrondo; de-
pois, quando Borlsover olhou, mais um e, em seguida, mais um.
-
Muito bem. Por causa disso, você vai morrer de fome, meu caro! -
ele
disse. Faremos uma experiência com o metabolismo de ratos em inanição.
-

Continue! Derrube-os! Acredito que sou eu quem está no controle. Mais -

uma vez, voltou a suas correspondências. A carta era do advogado da família.


Falava sobre a morte de seu tio e da valiosa coleção de livros que ele deixara
para o sobrinho em seu testamento.

"Houve um pedido que certamente foi uma grande surpresa para mim.
Como você sabe, o sr. Adrian Borlsover deixou instruções claras de que
seu corpo deveria ser enterrado da maneira mais simples possível em
Eastbourne. Ele expressou o desejo de que não houvesse coroas de flo-
res nem flores de qualquer tipo, e esperava que seus amigos e parentes
não julgassem necessário usar luto. Um dia antes de sua morte, recebe-
mos uma carta cancelando tais instruções. Ele queria que seu corpo fosse
embalsamado (deu-nos o endereço do homem que deveríamos chamar
-
Pennifer, Ludgate Hill), com ordens de que sua mão direita fosse envia-
da a você, afirmando que era um pedido especial de sua parte. Os outros

procedimentos a respeito do funeral continuaram inalterados."

-
Santo Deus! Eustace disse. O que o homem estava pretendendo? E
- -

o que tudo isso significa, em nome de tudo o que é sagrado?

Alguém estava na galeria. Alguém tinha puxado o cordão de uma das per-
sianas, porque ela foi enrolada para cima com rapidez e um estalo final. Al-
guém devia estar na galeria, pois logo outra persiana também foi aberta.
Alguém deveria estar caminhando pela galeria, pois uma persiana após a
outra começou se abrir, deixando entrar a luz da lua.
a

-
Ainda não decifrei esse mistério -
Eustace disse -, mas vou conseguir,

66 William F. Harvey
antes que seja muito tarde e apressou-se, subindo a escada em espiral. Assim
-

que chegou ao piso superior, as luzes se apagaram de novo, e mais uma vez
ouviu o rastejar no chão. Rapidamente seguiu, na ponta dos pés, sob a fraca
huz da lua, na direção do barulho, procurando, enquanto caminhava, um dos
botões. Por fim, seus dedos tocaram a superfície de metal e ele acendeu luz. a

Cerca de dez metros diante dele, rastejando pelo chão, estava uma mão de
homem. Eustace olhou para ela surpreso. Movia-se rapidamente, como uma
lagarta, com os dedos se encurvando para cima e depois se achatando para
baixo; o polegar parecia dar ao conjunto um movimento parecido ao de um
caranguejo. Enquanto ele observava, surpreso demais para se mexer, a mão
desapareceu em um canto. Eustace correu na direção dela. Não conseguiu
mais vê-la, mas pôde escutá-la, enquanto ela se escondia atrás dos livros de
uma das estantes. Um grande livro havia sido retirado. Havia um espaço na
prateleira de livros, onde ela estava. Com medo de que escapasse, ele pegou
o primeiro livro que viu e colocou-o no espaço. Em seguida, esvaziou duas
estantes, pegou as prateleiras e as colocou na frente, para reforçar a barreira.
-
Gostaria que Saunders estivesse aqui ele disse. Não se pode lidar com
- -

esse tipo de coisa sozinho. Já passava das onze, e havia pouca probabilidade
-

de Saunders retornar antes da meia-noite. Não ousou deixar a estante sem


ser vigiada, nem mesmo para correr para baixo e tocar a sineta. Morton, o

mordomo, costumava passar por ali às onze para checar se as janelas estavam
fechadas, mas podia ser que não viesse. Eustace estava completamente aba-
lado. Por fim, escutou os passos vindos de baixo.
-
Morton! -

gritou.
-
Morton!
-
Senhor?
-
O Saunders já retornou?
sr.
-
Ainda não, senhor.
-

Bem, traga-me um conhaque, rápido. Estou na galeria, seu incompe-


tente.
-

Obrigado Eustace disse, esvaziando o copo. Não vá dormir ainda,


- -

Morton. Cafram vários livros por acidente. Pegue-os e coloque-os nova-


-

mente na estante...
Morton nunca tinha visto Borlsover tão falante quanto naquela noite.
-

Aqui Eustace disse, quando os livros já tinham sido guardados


-
se-

gure estas tábuas para mim, Morton. Aquele animal da caixa fugiu, e estou
à procura dele.

À FERA DE CINCO DEDOS 67


-
Acho que eu o escuto passar arranhando os livros, senhor. Espero que
não sejam valiosos. Acredito que a carruagem chegou, senhor. Chamarei o
sr. Saunders.
Para Eustace, pareceu que o mordomo demorou cinco minutos para vol-
tar com Saunders, mas pode ter sido apenas um minuto. Certo, Morton,
-

pode ir. Ficarei aqui com Saunders.


O que houve? Saunders perguntou, ao caminhar com as mãos nos
- -

bolsos. Parecia ter se divertido a noite toda. Estava muito satisfeito, consigo
mesmo e com os vinhos do capitão Lockwood. -

Qual é o problema? Você


parece estar metido numa sinuca.
-

Aquele maluco do meu tio...Eustace começou a dizer. Oh, não pos-


-
-

so explicar tudo. A mão dele está brincando de esconde-esconde a noite toda.


Mas eu a encurralei atrás destes livros. Você precisa me ajudar a pegá-la.
-
O que houve com você, Eustace? Que brincadeira é essa?

Não é brincadeira, seu idiota! Se não acredita em mim, tire um desses


-

livros, ponha a mão no lugar sinta. e

Tudo bem Saunders disse -, mas espere-me enrolar as mangas da blu-


- -

sa.Então este é "o pó acumulado dos séculos", não é? Ele tirou o casaco,
-

ajoelhou-se e colocou o braço atrás da estante.


Há alguma coisa aqui ele disse. É um pouco grossa, e pinça como
-
- -

um caranguejo. Ah! Não, não faça isso! Ele tirou a mão rapidamente. Pe
-
_ _

gue um livro, rápido! Agora ela não consegue sair.


O que era? perguntou Eustace.
- -

um
Alguma coisa que queria muito me pegar. Senti algo parecido com
-

polegar e um dedo indicador. Dê-me um pouco de conhaque.


Como vamos tirá-la daí?
-

-
E se nsarmos uma rede?
Não adianta. Ela seria mais rápida. Eu lhe garanto, Saunders, ela per-
-

corre o chão com mais rapidez do que eu caminho. Mas acho que sei o que
vão até a
podemos fazer. Os dois livros nas pontas das estantes são grandes, e
parede. Os outros são menores.
Tirarei um por vez, e você empurra o restan-
te, até a deixarmos imprensada entre os dois livros maiores.
De fato, parecia ser o melhor plano. Ao tirarem os livros um por um, 0
espaço atrás ficou cada vez menor. Havia algo ali que estava muito
vivo.
Finalmente
Logo eles avistaram dedos procurando uma maneira de escapar.
conseguiram deixá-la presa entre os dois grandes livros.

68 William F. Harvey
Há músculos nela, mesmo que não haja carne e sangue quentes disse
- -

Saunders, ao que pressionava os livros. Parece ser uma mão direita. Acho
-

que se trata de um caso de alucinação contagiosa. Já li sobre casos assim.


Alucinação coisa nenhuma! disse Eustace, com o rosto pálido de
- -

raiva. Leve-a para baixo. Vamos colocá-la de volta à caixa.


-

Não foi nada fácil, mas, por fim, eles conseguiram.


-
Coloque os parafusos Eustace disse. Não correremos riscos. Colo-
- -

que a caixa em minha escrivaninha velha. Não há nada ali que eu queira.
Aqui está a chave. Graças a Deus não há problema algum com fechadu- a

ra.
-

Que noite agradável -


Saunders disse. -

Agora, conte-me mais sobre


seu tio.
Eles se sentaram e conversaram até o amanhecer. Saunders não queria
dormir. Eustace estava tentando explicar e esquecer; esconder de si mes-
mo um medo que nunca sentira antes medo de caminhar sozinho pelo
-
o

longo corredor até seu quarto.

-
O que quer que seja -
Eustace disse a Saunders na manhã do dia
seguinte proponho que esqueçamos o assunto. Não há nada que nos
prenda aqui pelos próximos dez dias. Vamos para os Lagos fazer um pouco
de escalada.
Para não encontrar ninguém durante o dia e ficarmos sentados, sozi-
-

nhos e entediados, todas as noites? Isso não é para mim, obrigado. Por que
não corremos para a cidade? Correr é a palavra exata neste caso, não é?
Estamos com sorte. Refaça-se, Eustace, e vamos ver a mão mais uma vez.
-
Como quiser Eustace disse. Aqui está a chave.
- -

Foram biblioteca e abriram escrivaninha. A caixa estava como eles


à a a

haviam deixado na noite anterior.


-
O que está esperando? Eustace perguntou.
-

-
Estou esperando que você se disponha a abrir tampa. Mas, como a

você parece estar indeciso, deixe-me fazer isso. Provavelmente não teremos
nenhum distúrbio esta manhã. Ele abriu a tampa e pegou a mão.
-

Fria? Eustace perguntou.


- -

Morna. Um pouco abaixo da temperatura do corpo, eu diria. Macia e


-

flexível também. Se for o embalsamamento, é de um tipo que eu nunca vi


antes. É a mão de seu tio?

A FERA DE CINCO DEDOS 69


-
Ah, sim, Eustace disse. Eu reconheceria esses dedos longos
é dele - -

em qualquer lugar. Coloque-a de volta na caixa, Saunders. Não se preocupe


com os parafusos. Eu trancarei a escrivaninha, para que ela não fuja. Vamos
do almo-
para a cidade por uma semana. Se conseguirmos partir logo depois
ço, conseguiremos chegar a Grantham ou Stamford à noite.
-
Certo Saunders disse -, e amanhã... bem, até amanhã já teremos es-
-

quecido tudo isso.

Se, no dia seguinte, eles não tinham esquecido tudo, é verdade que, no
fim da semana, tiveram uma ótima história de fantasmas para contar no jan-
tar que Eustace ofereceu no Dia das Bruxas.
-
O senhor não espera que acreditemos nisso, sr. Borlsover? Que terrível!
-
Eu juro, e Saunders também, não é, amigo?
-

Quantas vezes for preciso


-
Saunders disse. -
Era uma mão comprida e

magra, e me segurou.
-
Não me diga isso, sr. Saunders. Não. É horrível. Conte-nos outra! Mas
uma realmente assustadora, por favor.
Aqui está um problema! Eustace disse a Saunders no dia seguinte, ao
-
-

jogar uma carta sobre a mesa. Mas é um problema seu. À sra. Merrit,
-
se eu

compreendi bem, nos deu aviso prévio.


-
Oh, isso é absurdo Saunders respondeu.
- -
Ela não sabe o que está

falando. Vamos ver o que ela escreveu.

"Caro senhor [ele leu),


Esta carta é para informá-lo de que lhe dou um aviso prévio, começando na
terça-feira, 13. Há muito tempo acho a casa grande demais para mim; mas
depois que Jane Parht Emma Laidlaw foram embora sem maiores explica-
e

ções, deixando as outras garotas assustadas, a ponto de terem medo de sair dos
quartos sozinhas ou descer as escadas com medo de pisar em sapos ou ouvi-
los passando pelos corredores à noite, tudo que posso dizer é o que este lugar
não é o certo para mim. Por isso, peço ao senhor, sr. Borlsover, que encontre
outra governanta, que não se oponha a viver em uma casa grande
vazia, que
e

algumas pessoas dizem ser assombrada, mesmo que eu não acredite


nisso por

um minuto sequer, pois minha mãe sempre foi uma metodista.


Atenciosamente,
Elizabeth Mert.

70 William F. Harvey
Ps -
Por favor, dê minhas lembranças ao sr. Saunders. Espero que ele não

fique pior de sua gripe"

-
SaundersEustace disse -, você sempre teve um jeito muito bom para
-

bdar com os empregados. Não pode deixar a pobre sra. Merrit partir.
-
É claro que ela não pode partir Saunders disse. Está provavelmente
- -

tentando aumentar o salário. Vou escrever para ela ainda esta manhã.
-
Não. Não há nada melhor do que um encontro frente frente. Já estoua

farto desta cidade. Voltaremos amanhã, e você poderá cuidar melhor de sua
de semanas
gripe. Não se esqueça de que ela foi para o peito, e você precisará
de alimentação e cuidados.
-
Tudo bem. Acredito que posso lidar com sra. Merrit.
a

Mas a sra. Merrit estava mais determinada do que ele pensara. Ficou mui-
to chateada ao saber da piora do sr. Saunders, e de como ele passava as noites
em Londres acordado, tossindo; sentia muito mesmo. Trocou a roupa de
cama dele com satisfação, limpou o quarto e perguntou se ele gostaria
de tomar leite quente com pão antes de dormir. Mas teria de partir no tim
do mês.
-
Tente convencê-la com um aumento de salário -
foi o conselho de
Eustace.
Não resolveu. A sra. Merrit estava decidida, mas conhecia uma mulher,
chamada sra. Goddard, que havia trabalhado como governanta do lorde Gar-
grave, talvez ela aceitasse o salário proposto.
-
O
que houve com os empregados, Morton? Eustace perguntou naque-
-

la noite, quando o mordomo levou o café à biblioteca. Por que sra. Merrit
-
a

quer ir embora?
-
Com licença, senhor, eu ia mesmo lhe dizer. Preciso fazer uma confis-
são, senhor. Quando encontrei seu bilhete, pedindo que eu abrisse a escri-
vaninha e tirasse de lá a caixa com ratazana, quebrei a fechadura, como
a

o senhor pediu, e fiquei satisfeito com isso, pois conseguia escutar o animal
dentro da caixa fazendo muito barulho, e pensei que ele quisesse comer. Por
isso, tirei da caixa, senhor, peguei uma gaiola e estava prestes a transferilo
O

para lá, quando ele escapou.


que está me dizendo? Nunca escrevi tal bilhete.
-
O

Desculpe-me, senhor; foi um bilhete que peguei aqui no chão no dia em


que o senhor e o sr. Saunders partiram. Está aqui no
meu bolso.

A FERA DE CINCO DEDOS q1


Certamente caligrafia era parecida com a de Eustace. O bilhete estava
a

escrito a lápis e começava de modo abrupto.


"Pegue um martelo, Morton", ele leu, "ou alguma outra ferramenta e que-
bre a fechadura da escrivaninha velha na biblioteca. Tire de lá a caixa. Não

precisa fazer mais nada. À tampa já está aberta. Eustace Borlsover".


-
E você abriu a escrivaninha?
-
Sim, senhor, e quando estava preparando a jaula, o animal escapou.
-

Que animal?
-
O animal de dentro da caixa, senhor.
-
Como ele era?
-
Bem, senhor, não sei dizer Morton respondeu, nervoso.
- -
Eu estava de
costas e ele estava saindo da sala quando eu vi. o

Qual era sua cor? Saunders perguntou. Preta?


- -

-
Oh, não, senhor, era um branco cinzento. Ele se movia de modo estra-
nho, senhor. Acredito que não tinha rabo.
-
O que você fez depois?
-
Tentei pegá-lo, mas não adiantou. Por isso, armei as ratoeiras e deixei a
biblioteca fechada. E então, aquela moça, Emma Laidlaw, deixou a porta
aberta quando estava fazendo a faxina e ele escapou.
E você acredita que é o animal que tem assustado as empregadas?
-

-
Bem, não, senhor. Elas disseram que viram peço desculpas, senhor
-

-
uma mão. Emma viu uma vez no começo da escada. Ela pensou se tratar
a

de um sapo meio paralisado, mas branco. E Parht estava lavando os pratos


na copa. Não estava pensando em nada em particular. Era quase noite. Ela
tirou as mãos da água e as estava secando, distraidamente, na toalha, quando
percebeu que também estava secando a mão de outra pessoa, porém mais
fria que a dela.
-
Que bobagem! Saunders exclamou.
-

Exatamente, senhor, foi o que eu disse a ela, mas não conseguimos


controlá-la.
-
Você não acredita nisso tudo? -
Eustace perguntou, virando-se repenti-
namente ao mordomo.
-
Eu, senhor? Não, senhor! Não vi nada.
-
Não escutou nada?
Bem, senhor, se quer saber, as campainhas andam tocando fora de
-

hora e não há ninguém quando chegamos; e quando saímos para fechar

72 William F. Harvey
as cortinas à noite, quase sempre parece que alguém chegou antes de nós.
Mas. como eu digo à sra. Merrit, um jovem macaco pode fazer coisas sur-
reendentes, e todos sabemos que o sr. Borlsover já teve alguns animais
estranhos por aqui.
-
Muito bem, Morton, já é o bastante.
-
O que você acha disso? Saunders perguntou, quando os dois ficaram
-

ozinhos. Estou me referindo à carta que ele disse que você escreveu.
-

-
Oh, isso é bem simples -
Eustace respondeu. -
Viu o papel em que

foi escrito? Deixei de usar aquele tipo de papel há anos, mas havia algumas
folhas e envelopes soltos na escrivaninha velha. Não prendemos a tampa da
caixa quando a trancamos lá. À mão saiu, encontrou um lápis, escreveu um
bilhete e o jogou no chão pela abertura, onde Morton o encontrou. Isso é
claro como o dia.
-
Masmão não poderia escrever!
a
-
Não poderia? Você não viu as coisas que eu vi. -
E então contou a Saun-
ders o que tinha acontecido em Eastbourne.
-
Bem Saunders disse -, nesse caso, temos pelo menos uma explicação
-

sobre o testamento. Foi a mão que escreveu, sem que seu tio soubesse, aquela
carta ao advogado, na qual pedia para ser entregue a você. Seu tio nada teve
a ver com aquele pedido. Na verdade, me parece que ele desconhava dessa
escrita automática e a temia.
Então, se não é meu tio, o que é?
-

Acredito que algumas pessoas diriam que um espírito desencarnado pe-


-

um pequeno corpo para ele.


gou seu tio para educá-lo de modo a preparar
conta própria.
Agora, entrou naquele pequeno corpo está vagando por
e

Bem, o que faremos?


-

Ficaremos de olhos abertos Saunders disse -, e tentaremos pegá-la.


-
-

Se não conseguirmos, teremos de esperar até que morra. Afinal de contas, é


feita de carne e osso, não pode viver para sempre.
Durante dois dias, nada aconteceu. E então Saunders a viu escorregar
um pouco para
pelo corrimão da escada. Foi pego de surpresa e demorou
correr atrás dela, e a coisa lhe escapou. Três dias depois, Eustace, escrevendo
sozinho na biblioteca à noite, a viu sobre um livro aberto do outro lado da
sala. Os dedos passavam pela página, como se estivessem lendo, mas antes
e subiu
que pudesse levantar-se de seu assento, ela tinha percebido perigo
o
ela
pelas cortinas. Eustace a contemplou com expressão sombria enquanto

À FERA DE CINCO DEDOS 73


se prendia à cornija com três dedos esticados e o polegar e o indicador uni-
dos, fazendo um gesto ofensivo para ele.
Já sei o que vou fazer ele disse. Se eu conseguir levá-la para fora,
- - -

mandarei os cães pegá-la.


Ele contou sua idéia a Saunders.
-
É uma ótima idéia -
Mas não vamos esperar encontrá-la lá
ele disse. -

fora. Pegaremos os cães. Há dois terriers e um vira-lata do caseiro, que corre


atrás de ratos como um raio. Seu spaniel não tem o espírito para esse tipo
de brincadeira.
Levaram os cães para dentro da casa, e o vira-lata roeu os chinelos e os
terrier pularam em Morton enquanto este servia a mesa; ainda assim, os
três foram mantidos ali. Até mesmo uma segurança falsa é melhor do que
nenhuma.
Durante duas semanas, nada aconteceu. Então a mão foi pega, não pelos
cães, mas pelo papagaio da sra. Merrit. A ave tinha o hábito de remover os pre-
gadores que mantinham seus recipientes de comida e de água no lugar, e de
escapar pelos buracos nas laterais de sua gaiola. Quando se via em liberdade,
Peter não queria retornar, e vagava pela casa durante dias. Depois de seis sema-
nas consecutivas de cativeiro, o papagaio mais uma vez tinha descoberto uma
nova maneira de escapar e estava à vontade, explorando as Aorestas feitas de
cortinas e cantando hinos de louvor à liberdade nas cornijas e nos quadros.
Não adianta tentar pegá-lo
-
Eustace disse a sra. Merrit, quando ela
-

entrou na sala certa tarde, quase noite, com uma escada. Deixe Peter em
-

paz. Faça-o ficar com fome até se entregar, sra. Merrit, e não deixe bananas e
sementes à vista para ele comer quando quiser. A senhora é muito bondosa.
Bem, senhor, vejo que ele está fora do alcance agora naquele quadro;
-

assim, se o senhor não se importar de fechar a porta, quando sair da sala,


eu trarei a gaiola dele esta noite e colocarei um pouco de carne dentro
dela. Ele gosta de carne, embora ela o faça arrancar as penas. Dizem que
se cozinharmos...
-
Tudo bem, sra. Merrit disse Eustace, que estava ocupado escrevendo
-

1á basta: vou cuidar da ave.


Por pouco tempo houve silêncio na sala.
-

Coçar Peter! disse a ave. Coçar o pobre Peter!


- -

Cale-se, ave maldita!


-
O pobre Peter! Coçar! Coçar!

74 William F. Harvey
-
É mais provável que eu torça seu pescoço, se colocar minhas mãos em
você. Ele olhou para o quadro, e ali estava a mão, segurando-se em um
-

do papagaio com
ancho com três dedos, e coçando devagarinho a cabeça
o quarto. Eustace correu até a sineta e a tocou com firmeza, em seguida,
orreu até a janela, fechando-a com força. Assustada com barulho, a ave
o

acudiu as asas, preparando-se para voar, €, assim que o fez, os dedos da


mão o seguraram pela garganta. Peter soltou um grunhido agudo ao voar
esajeitado pela sala, em círculos descendentes, incomodado pelo peso
sobre ele. O papagaio caiu, e Eustace viu dedos e penas rolarem pelo chão.
A briga acabou de repente, com o polegar e o indicador pressionando o
e meio engasga-
pescoço da ave, que virou os olhos e emitiu um som fraco
do. Antes que os dedos tivessem tempo de soltar o animal, Eustace pegou
a mão.
-
Chame sr. Saunders aqui ele disse à empregada, que correu para
o
-

tendê-lo. -

Diga a ele que quero vê-lo imediatamente.


Então ele foi com a mão na direção da lareira. Havia um corte nas costas
dela, onde o bico do papagaio a rasgara, mas não havia sangue na ferida. Ele
notou, com nojo, que as unhas estavam longas e sem cor.
-
Vou matar esta coisa do inferno! ele disse. Mas não conseguiu quei-
-

má-la. Tentou lançá-la às chamas, mas suas mãos, como que obedecendo a
uma reação primitiva, não permitiram. E assim Saunders o encontrou, páli-
do e transtornado, com a mão ainda presa entre os dedos.
Consegui pegá-la ele disse, triunfante.
- -

-
Ótimo, vamos dar uma olhada.
-
Não agora, pois está solta. Dê-me alguns pregos e um martelo, além de
uma tábua qualquer.
-
Você consegue segurá-la?
-

Sim, está bastante mole, cansada pela briga que teve com Peter.
-
E agora? perguntou Saunders quando retornou com as coisas.
-
-
O
que
vamos fazer?
-
Cravar um prego nela antes de mais nada, para que não fuja. Em segui-
da, poderemos analisá-la com calma.
Faça isso você mesmo disse Saunders. Não me incomodo de ajudá-lo
- -
-

com porquinhos-da-Índia de vez em quando, quando há algo a ser aprendi-


do, principalmente porque não temo a vingança de um porquinho-da-Índia.
Essa coisa é diferente.

À FERA DE CINCO DEDOS 75


-
Oh, meu Deus -

Veja só. A mão estava se


ele riu histericamente. - -

contorcendo com agonia, virando-se e revirando-se, como uma minhoca sob


o prego.
-
Bem -
disse Saunders -, você a martelou. Vou deixá-lo sozinho para
examiná-la.
Não vá, pelo amor de Deus! Cubra-a, homem; cubra-a! Jogue um pano
-

sobre ela! Aqui! e tirou a capa protetora de móveis do encosto da cadeira e


-

envolveu a tábua com ela. Agora, tire as chaves de meu bolso e abra o cofre.
-

Tire as coisas de lá. Oh, senhor, ela está se debatendo! Abra logo! Ele jogou -

a mão dentro do cofre e fechou a porta com força.


-
Vamos deixá-la ali até que morra ele disse. Quero queimar no fogo
- -

do inferno se algum dia abrir a porta desse cofre de novo.

A sra. Merrit partiu no fim do


mês. Sua sucessora, a sra. Handyside, cer-
tamente foi mais bem-sucedida no controle dos empregados. Logo no início
ela declarou que não toleraria bobagens, e as fofocas logo cessaram.
-
Eu não me surpreenderia se Eustace se casasse um dia desses Saunders -

disse. Bem, não tenho pressa de que um evento como esse aconteça. Eu
-

o conheço muito bem para que a futura sra. Borlsover goste de mim. Será a
mesma velha história de novo: uma longa amizade lentamente amadureci-
da... um casamento... e uma longa amizade esquecida rapidamente.
Mas Eustace não seguiu o conselho do tio para que se casasse. Os velhos
hábitos prevaleceram e impediram a nova experiência. Tornou-se, de certa
forma, menos indolente, e demonstrou uma inclinação maior para a vida
social no campo.
E então aconteceu o assalto. Os homens, conforme foi dito, arrombaram a
casa pela estufa. Foi quase apenas uma tentativa, pois conseguiram levar so-
mente alguns pratos da despensa. O cofre no escritório foi encontrado aberto
evazio, mas, como sr. Borlsover informou ao inspetor de polícia, ele não
o

mantinha nada valioso dentro dele nos últimos seis meses.


Então o senhor teve sorte, pois o prejuízo foi pequeno o homem respon-
-
-

deu. Mas, pela maneira como agiram, posso afirmar que eram experientes.
-

Devem ter sido surpreendidos pelo alarme quando começaram a


ação.
Sim Eustace disse. Acredito que tive sorte.
- - -

Não tenho a menor dúvida o inspetor disse de que conseguiremos


- - -

encontrar os homens. Eu disse que eles devem ser experientes no crime. A

76 William F. Harvey
maneira como entraram e arrombaram cofre deixa isso claro. Mas há mais
o

ema coisa que me intriga. Um deles teve o descuido de não usar luvas, não
onsigo entender o que ele estava tentando fazer. Encontrei suas impressões
digitais em toda a extensão do verniz recém-passado na madcira das janelas,
em todas as salas do piso inferior. São bem visíveis.
-
Dedos da mão esquerda, da direita ou das duas?
-
Oh, sempre da direita. Isso é o mais intrigante. Ele deve ser bem corajoso,
e acredito que foi ele quem escreveu este bilhete. Tirou um pedaço de papel
-

do bolso. -
Ele escreveu as seguintes palavras, senhor: "Eu fugi, Eustace Borl-
sover, mas logo estarei de volta". Deve ser um detento recém-fugido da prisão.
Assim, será mais fácil encontrá-lo. O senhor reconhece caligrafia? a

-
Não -
Eustace disse. -
Não é
ninguém que eu conheça.
a letra de
-
Não ficarei aqui por muito tempo Eustace disse a Saunders, durante
-

o almoço. Consegui viver bem nos últimos seis meses, mas não vou cor-
-

rer o risco de ver aquela coisa de novo. Irei para a cidade esta tarde. Peça a
Morton que arrume minhas coisas e que me leve de carro a Brighton depois
de amanhã. E traga as provas daqueles dois papéis com você. Nós os ana-
-

lisaremos juntos.
-

Quanto tempo você vai ficar fora?


-
Não sei dizer ao certo, mas prepare-se para ficar por algum tempo. Ira-
balhamos muito no verão, e preciso de férias. Conseguirei uma casa em Bri-
ghton. Você vai gostar de descansar durante a viagem no
Hitchin. Entro em
contato para passar-lhe o endereço de Brighton.
A casa que ele escolheu em Brighton era numa vila agradável. Ele já tinha
estado ali antes. Era mantida por um ex-criado dos tempos de colégio, um
homem calado, que tinha às suas ordens um excelente cozinheiro. As salas
ficavam no primeiro piso. Os dois quartos ficavam nos fundos e eram próxi-
mos um do outro.
-
O sr. Saunders pode ficar com o menor, apesar de ser o único que tem
lareira -
Ficarei com o maior dos dois, já que tem um banheiro
ele disse. -

ao lado. Gostaria de saber quando ele chegará com carro. o

Saunders chegou perto das sete horas, estava com muito frio, mal-humo-
rado e sujo.
-
Acenderemos lareira na sala de jantar Eustace disse e pediremos a
a
- -

Prince que desfaça as malas enquanto estivermos jantando. Como estavam


as estradas?

À FERA DE CINCO DEDOS 77


Terríveis. Cheias de lama, e com um vento muito frio soprando o dia
-

todo. E estamos em julho. Santa Inglaterra!


-
Sim -
Eustace disse. -
Acho que poderíamos deixar a velha Inglaterra
por alguns meses.
Eles voltaram um pouco depois da meia-noite.
Você não deveria sentir frio, Saunders Eustace disse -, usando um óti-
- -

mo casaco com forro de pele como este. Você está bem agasalhado, de modo
geral. Veja essas luvas, por exemplo. Quem sentiria frio usando-as?
Mas elas são grossas demais para dirigir. Vista-as e verá e ele as jogou
- -

pela porta sobre a cama de Eustace, e continuou desfazendo suas malas.


Um minuto depois, escutou um grito de terror. Oh, Senhor ele escu- - --

tou -, ela está na luva! Rápido, Saunders, rápido! Então ouviu-se um -

barulho. Eustace a lançara para longe. Eu a joguei no banheiro ele


-

disse. Ela bateu na parede e caiu na banheira. Venha comigo, se quiser


-

ajudar. Saunders empunhando uma vela acesa, olhou por sobre a borda da
banheira. Ali estava ela, velha e mutilada, muda e cega, com um buraco
dilacerado no meio, rastejando, tentando subir pelos lados escorregadios,
mas voltando a cair.
-

Fique aí -
Esvaziarei uma caixa ou algo assim, e a co-
Saunders disse. -

locaremos dentro. Ela não pode escapar enquanto eu estiver fora.


Sim, ela vai escapar Eustace gritou. Está saindo agora, está escalando
- - -

a parede. Não, sua praga, sua praga nojenta, não faça isso! Volte, Saunders;
-

ela está escapando de mim. Não consigo segurá-la. Está escorregadia. Maldi-
tas unhas! Feche a janela, idiota! Ela saiu! Ouviu-se o som de algo caindo
-

do outro lado, e Eustace caiu para trás, desfalecido.

Durante duas semanas ele ficou doente.


-
Não sei o que pensar o médico disse a Saunders. Só posso dizer que o
- -

sr. Borlsover sofreu um grande abalo emocional. É melhor que me permitam


mandar alguém para ajudá-lo a cuidar dele. E, por favor, cumpra o desejo
dele de nunca ficar sozinho no escuro, Se eu fosse você, deixaria uma luz
acesa a noite toda. Mas ele deve receber mais ar fresco. É um absurdo essa
fobia que elc sente por janelas abertas.
Eustace não queria ninguém seu lado além de Saunders.
a

= Eu não Eles colocariam aqui de algu-


quero a outra pessoa ele disse. a
- -

ma forma. Sei disso.

78 William F. Harvey
-
Não se preocupe com isso, amigo. Esse tipo de coisa não pode durar
para sempre. Você sabe que a vi dessa vez, assim
como você. Ela não estava
tão ativa quanto antes. Não viverá muito, principalmente depois da queda.
Eu a ouvi bater no chão. Assim que você estiver um pouco mais forte, sai-
remos deste lugar, não com toda a bagagem, mas apenas com as roupas do

orpo, para que ela não consiga se esconder em nenhum lugar. Escaparemos
dela assim. Não deixaremos endereço e não receberemos entregas. Alegre-se,
Eustace! Você estará bem daqui a um ou dois dias. O médico disse que cu
posso levá-lo para fora em uma cadeira de rodas amanhã.
-
O que eu fiz? Eustace perguntou. Por que ela vem atrás de mim?
- -

Não sou pior do que os outros homens. Não sou pior do que você, Saunders,
você sabe que não sou. Você é que estava por trás daquele negócio sujo em
San Diego, e isso aconteceu há 15 anos!
-
Não tem nada a ver com aquilo, é claro Saunders disse. Estamos no
- -

éculo XX, acreditar que os pecados nos


e até mesmo os padres deixaram de

erseguem. Antes de você pegar a mão na biblioteca, ela estava repleta de


malevolência contra você e contra toda a humanidade. Depois que você
-

a furou com um prego, ela naturalmente esqueceu as outras pessoas e con-


centrou a atenção em você. Ela ficou trancada naquele cofre, você sabe, por
quase seis meses. É tempo suficiente para se pensar em vingança.
Eustace Borlsover não saía do quarto, mas acreditou que era boa a su-
gestão de Saunders de sair de Brighton. Rapidamente começou a recobrar
sua força.
-
Partiremos no dia 1º de setembro -
ele disse.

A noite do dia de agosto foi muito quente. Ao meio-dia a janela estava


31

bem aberta, mas foi fechada uma hora antes do escurecer. Há muito tempo
a sra. Prince deixara de estranhar os hábitos incomuns dos cavalheiros do
de tirar as
primeiro andar. Assim que eles chegaram, ela recebeu a ordem
ficar mais
pesadas cortinas dos dois quartos, e a cada dia os quartos pareciam
vazios. Nada ficou dentro deles.
-
O sr. Borlsover não gosta de que haja espaços em que a poeira pode se
cumular Saunders dissera, como desculpa. Ele gosta de ter à vista todos
-
-

os cantos do quarto.
-
Não posso abrir a janela, só um pouco? ele perguntou
-
a Eustace na-

quela noite. Estamos simplesmente assando aqui.


-

À FERA DE CINCO DEDOS 79


-
Não, não mexa na janela. Não somos duas moças saídas de um curso de
higiene. Pegue o tabuleiro de xadrez.
Os dois se sentaram e jogaram. Às dez horas, a sra. Prince foi até a porta
com um bilhete.
-
Sinto muito por não tê-lo trazido antes -
ela disse -, mas estava na caixa
de correspondência.
-
Abra-o, Saunders, e veja se precisa de resposta.
Era breve. Não havia endereço nem assinatura.
"Onze horas desta noite é um bom horário para o nosso último encontro?"
-
De quem é? Borlsover perguntou.
-

-
É para mim Saunders disse. Não há resposta, sra. Prince. E colocou
- - -

o papel no bolso.
-
Uma carta de um alfaiate; acredito que ele soube de nossa partida.
Foi uma boa desculpa, e Eustace não fez mais perguntas. Continuaram
o Jogo.
Lá fora, Saunders conseguia ouvir o relógio da sala sussurrando os segun-

dos, gritando os quartos de hora.


Xeque-mate Eustace disse. O relógio bateu onze horas. Ao mesmo
- -

tempo ouviu-se uma leve batida à porta; parecia vir da parte mais baixa.
-
Quem é? Eustace perguntou.
-

Não houve resposta.


-
Sra. Prince, é a senhora?
-
Ela está lá em cima Saunders disse.
- -
Posso escutá-la caminhando pela
sala.
-
Então feche porta. Tranque-a também. Sua vez, Saunders.
a

Enquanto Saunders olhava o tabuleiro de xadrez, Eustace caminhou até


a janela e examinou as trancas. Fez o mesmo no quarto de Saunders, e no
banheiro. Não havia portas entre os três cômodos, ou as teria fechado e tran-
cado também,
Agora, Saunders ele disse não passe a noite toda pensando em uma jo-
- -

gada. Já tive tempo de fumar um cigarro. É ruim esperar à toa. Só há uma


possibilidade para você. O que foi isso?
As folhas batendo de encontro à janela. Pronto. Sua vez agora, Eustace.
-

Não foram as folhas, idiota. Era alguém batendo à porta disse Eustace, e
-
-

levantou a cortina. Lá fora, segurando-se ao caixilho, estava a mão.


-
O que ela está segurando?

do William F. Harvey
Um canivete. Ela vai tentar abrir a janela puxando trinco com lâmina.
-
o a

-
Bem, deixe que ela tente Eustace disse. Esses trincos são virados
- -

para baixo. Não podem ser abertos desse jeito. De qualquer maneira, vamos
fechar as persianas. É sua vez, Saunders. Já joguei.
Mas Saunders não conseguiu concentrar-se no jogo. Não conseguia
compreender Eustace que, repentinamente, parecia ter perdido o medo.
O que me diz de bebermos um pouco de vinho? ele perguntou.
- -

-
Você parece estar levando essas coisas sem problemas, mas não consigo
deixar de dizer que estou me sentindo amedrontado.
-
Não há o que temer. Não há nada de sobrenatural sobre essa mão,
Saunders. Quero dizer, ela parece ser governada pelas leis do tempo e do
espaço. Não é o tipo de coisa que se esvai no ar ou que atravessa portas.
E uma vez que é assim, eu a desaho a entrar aqui. Deixaremos este lugar
pela manhã. Eu, de uma vez por todas, me livrei dos medos. Encha seu
copo, homem! As janelas estão todas fechadas, a porta também está fe-
chada e trancada. Perdoe-me, meu tio Adrian! Beba, homem! O que está
esperando?
Saunders estava em pé com seu copo meio erguido.
Ela pode entrar ele disse, assustado. Ela pode entrar! Nós nos es-
- - -

quecemos. Há uma lareira em meu quarto. Ela vai descer pela chaminé.
-

Rápido! -
disse Eustace, correndo para o outro quarto. -
Não temos
tempo a perder. O que podemos fazer? Acenda a lareira, Saunders. Dê-me
um fósforo. Rápido!
Eles devem estar no outro quarto. Vou pegá-los.
-

Corra, homem, pelo amor de Deus! Olhe dentro do armário! Olhe


-

dentro do banheiro! Venha e fique aqui, vou olhar!


Seja rápido! gritou Saunders. Estou escutando algo!
- - -

Então coloque um lençol de seu quarto na saída da chaminé. Não,


-

aqui está um fósforo!


Ele finalmente encontrou um, que caiu entre as tábuas do assoalho do chão.
À lareira está acesa? Bem, mas
pode ser que não queime. Eu sei... o
-

óleo daquela velha lamparina este algodão. Agora o fósforo, rápido! Tire
e

o lençol daí, seu tolo. Não precisamos mais dele.


Escutou-se um grande estrondo vindo da lareira, quando as chamas su-
biram. Saunders demorou uma fração de segundo com o lençol. O óleo
tinha caído sobre ele, que também queimava.

À FERA DE CINCO DEDOS 81


lugar todo vai pegar fogo! Eustace gritou, tentando extinguir as cha-
-
-
O

mas com um cobertor. Não adianta! Não consigo! Você deve abrir a porta,
-

Saunders, e pedir ajuda.


Saunders correu para a porta e mexeu desajeitadamente nos ferrolhos. A
chave estava presa na fechadura.
-
Corra! gritou Eustace
-
ou o calor ficará muito forte para mim. À-

chave finalmente foi virada na fechadura. Por um segundo Saunders parou


mas
para olhar para trás. Depois ele não conseguia dizer ao certo que era,
o

naquele momento pensou ter visto algo negro e carbonizado saindo vaga-
rosamente das chamas, em direção a Eustace Borlsover. Por um momento
ele pensou em voltar para junto de seu amigo, mas o barulho o cheiro de
e

queimado fizeram com que saísse correndo pelo corredor, gritando:


voltou ao
Fogo! Fogo! Ele correu para telefone para pedir ajuda, e
- -
o

banheiro ele deveria ter pensado nisso antes para pegar água. Ào entrar
-
-

no quarto, ouviu um grito de terror que terminou repentinamente e o som


da queda de um corpo.

Essa é a história que eu ouvi, em várias noites de sábado seguidas, do


professor de matemática em uma escola de segunda categoria.
Saunders
tem sido forçado a ganhar a vida de um modo que outros homens podem
considerar menos compatível com vida que ele levava. Por acaso eu tinha
a

mencionado o nome de Adrian Borlsover, e tentei entender na época por


que ele mudara de assunto de modo estranhamente abrupto. Uma semana
depois, Saunders começou ame contar algo de sua própria história, bastan-
te infame, apesar de protegida por uma discrição que eu conseguia com-

preender bem, pois tinha de encobrir não apenas os próprios erros, mas,
também, os erros de um amigo morto. Da tragédia final ele, a princípio,
não queria falar; foi apenas aos poucos que eu consegui juntar os pedaços
da narrativa mostrada nas páginas anteriores. Saunders relutou em tirar

qualquer conclusão. Em um momento acreditou que a fera com dedos era


possuída pelo espírito de Sigismund Borlsover, um ancestral sinistro do
século XVIII, que, de acordo com a lenda, construiu e promoveu rituais no
feio templo pagão que ficava perto do lago. Em outro momento, Saunders
acreditou que o espírito pertencia um homem a quem Eustace certa vez
a

empregara como assistente de laboratório, "um sujeito rude, rancoroso,


de cabelos escuros", segundo ele, "que morreu amaldiçoando seu médico,

82 William F. Harvey
porque o rapaz não conseguiu ajudá-lo a viver para ajustar umas contas
quaisquer com Borlsover".
Do ponto de vista da evidência contemporânea direta, a história de Saun-
ders é praticamente impossível de ser comprovada. Todas as cartas men-
cionadas na narrativa foram destruídas, com exceção do último recado
que
Eustace recebeu, ou melhor, que ele deveria ter recebido, mas que foi in-
terceptada por Saunders. Eu mesmo vi. A caligrafia cra fina c trêmula, a
o

caligraha de um idoso. O que me surpreendeu na época foi que Saunders


parecia guardar o recado por entre as páginas de sua Bíblia.
Eu tinha visto Adrian Borlsover uma vez. Saunders eu conheci bem. Mas
foi por acaso que conheci uma terceira pessoa da história, Morton, o mor-
domo. Saunders e eu estávamos conversando no jardim zoológico em uma
tarde de domingo, quando ele chamou minha atenção para um senhor em
pé diante do viveiro dos répteis.
-

Olá, Morton -
ele disse, dando-lhe um tapinha nas costas. -
Como a
vida o está tratando?
-
Muito mal, sr. Saunders -

respondeu o velho, apesar de seu rosto ter


se iluminado com surpresa.
a
-
Os invernos são muito longos atualmente.
Parece não haver verões ou primaveras.
Você não encontrou o que procurava?
-

Não, senhor, ainda não, mas encontrarei um dia. Eu sempre disse a eles
-

que o sr. Borlsover mantinha alguns animais estranhos.


-
É o que ele está procurando?
eu perguntei, quando nos afastamos dele.
-

-
Um animal com cinco dedos Saunders disse. Esta tarde, como está
- -

no viveiro dos répteis, acredito que será um réptil com uma mão. Na próxima
semana, será um macaco praticamente sem corpo. O pobre velhote é mate-
nalista de nascença.

À FERA DE CINCO DEDOS


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