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Ficha Técnica
Título original: À Espera de Moby Dick
Autoria: Nuno Amado
Editor: Francisco Camacho
Capa: Maria Manuel Lacerda
Revisão: Sofia Gonçalves
ISBN: 9789895560134
OFICINA DO LIVRO
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2012, Nuno Amado
e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: info@oficinadolivro.leya.com
www.oficinadolivro.leya.com
www.leya.pt

Por vontade expressa do autor, o livro respeita a ortografia anterior ao actual acordo
ortográfico.
.

Para a Raquel, que me deu as chaves de Versalhes


.

«Assim, contentes e erectos, avancemos com


passo firme aonde quer que as circunstâncias nos
levarem e percorramos todas as terras: não pode
haver lugar de desterro no mundo, uma vez que
nada no mundo é estranho ao homem.»
SÉNECA
CONSOLAÇÃO A MINHA MÃE HÉLVIA
PARTE I
I

Querido melhor amigo,

Não me vou matar. Sei que há quem tema que, depois


do que aconteceu, seja esse o meu desejo. Não é. Por
mais estranho que pareça, é verdade o que disse: vim
para os Açores para ver uma baleia. O isolamento, o
clima melancólico, a distância de todos os que me são
queridos, o tempo semelhante ao londrino e a ausência
de Internet são apenas vantagens adicionais.
Estou instalado num hotel moderno na marginal, de
quartos espaçosos e minimalistas com pequenos
quadros de flores acima da cama. A minha varanda tem
vista, mas o nevoeiro constante torna-a um pouco
supérflua. Não pretendo ficar aqui muito mais tempo,
preciso de solidão e silêncio. À noite, se o tempo o
permite, as pessoas entretêm-se andando de um lado
para o outro lá em baixo na marginal, quer nativos quer
turistas; distinção, aliás, fácil de fazer, pelas cores
garridas e roupas sintéticas dos segundos.
Ao pequeno-almoço há sempre pelo menos uma alemã
gorda a hesitar em frente aos bolos. Não é raro ver
grupos de espanhóis a rir sem melodia nem americanos
olhando desconfiados para tudo o que comem ou
japoneses demasiado tímidos para observar o mundo
sem ser através das máquinas de filmar. E todos velhos.
Quase não há turistas jovens nos Açores. Não há festas,
nem barulho, nem deboches. Ocasionalmente vê-se a
filha (neta?) de um deles, a sua juventude em contraste
fulgurante com o fundo gerontológico, sorrindo tímida
como se estivesse a visitar uma tia querida num lar.
Hoje vou ver casas. Pedi ao homem da agência locais
isolados e com vista para o mar. Dizem-me que é difícil
ver baleias a olho nu da ilha, muito menos agora que
não é a sua época. O hall do hotel está cheio de
anúncios de expedições marítimas para ver os cetáceos,
mas também há cartazes com as fábricas de chá, as
furnas e as lagoas. Para já não vou fazer nada disso.
Contudo, não deixa de ser ligeiramente reconfortante
saber que terei sempre qualquer coisa para me ocupar,
mesmo que seja entre reformados americanos e
alemães vestidos com blusões horrendos.
Sobre o que se passa comigo não te posso dizer muito.
Ainda não sou capaz. Se me permites a primeira de
muitas metáforas ineptas, digo-te que tenho de
endireitar as peças de dominó. E explico. Lembras-te
das pequenas reportagens cómicas na parte final do
telejornal, quando te querem fazer esquecer as imagens
das guerras e as notícias da crise com que te
aterrorizaram na hora anterior, e se vê um homem a
comer setenta cachorros quentes seguidos, ou o maior
bolo-rei do mundo feito numa aldeia no Minho que
pretende assim entrar para o Livro dos Recordes do
Guiness? Por vezes estas reportagens são sobre
dominós. Milhares, centenas de milhar, talvez mesmo
milhões de peças de dominó, colocadas de forma a
produzirem efeitos espantosos quando derrubadas, a
libertar balões, desenhar cenas de filmes, empurrar
comboios. Suponho que, no dia seguinte, depois do
espectáculo, alguém tenha de as arrumar. Julgo que não
seja fácil, porque têm diferentes cores, materiais,
tamanhos. Imagino enormes armazéns cheios de
dominós derrubados. Eu sinto-me como se fosse o
homem que os tem de apanhar a todos. A única
diferença é que o que se passou não foi celebração
nenhuma.
Em anexo segue uma lista de livros que te peço para
me enviares. Alguns serão difíceis de localizar, por isso
vai-os enviando à medida que os conseguires adquirir.
Peço-te também, e sabes que o meu coração ribomba de
agradecimento pela tua generosidade, que avises o
senhor Rodrigues para não me guardar mais jornais e
revistas. Não te será difícil reconhecê-lo. É o homem de
meia-idade, bigode farto e cabelo ralo que habita o
quiosque em frente da minha casa. Se por acaso ocorrer
que estejam uma série de homens de meia-idade de
bigode farto e cabelo ralo em redor desse quiosque
particular, fica sabendo que este tem um ar de talhante
delicado, pulsos e mãos grossos mas gestos subtis e
precisos. Se isto não chegar, mete conversa e verifica se
o teu interlocutor é detentor de um senso comum
encorpado, se morde o lábio inferior enquanto pondera,
se interrompe a conversa para, como uma decoradora
de montras, alinhar os jornais e revistas. Se assim for, é
do senhor Rodrigues que se trata. Dá-lhe o recado.
Agradecido por tal fico eu.
Não querendo questionar a tua lealdade, mais seguro
estou dela do que da existência do Sol, tenho, contudo,
que te fazer uma advertência. A tua simpatia e, mais
ainda, a tua vontade para aceitares ser o bombeiro de
qualquer incêndio que te surja pela frente, pode tentar-
te a oferecer o meu paradeiro aos vários suplicantes
que já imagino chantageando-te. Não cedas a lágrimas,
dedos em riste, ameaças, gemidos. Diz apenas que
estou vivo e que a minha probabilidade de assim
continuar é a mesma da maior parte das pessoas.
Qualquer assunto que aches urgente, informa-me tu
dele. És o meu mensageiro, confessor, moço de recados,
protector, psicoterapeuta, passpartout. A minha alma
canta a tua amizade, uma das poucas luzes eternas
desta floresta tenebrosa que atravesso.
Aqui o verde e o cinzento dominam. As ondas
murmuram continuamente e o horizonte, quando o
nevoeiro descansa, é um mundo interminável de água e
luz. Queria falar-te de tudo isto mas não sou ainda
capaz. O meu sono é curto, os pesadelos muitos e tão
largos que me visitam acordado. Mas, como te disse,
não me vou matar.

Abraço-te
II

Querido amigo,

O Sol é um milagre. É preciso viver debaixo de uma


teia de mil tons de cinzento para poder apreciar o que a
luz acende nas coisas. Hoje faz sol. Parece que
espalharam diamantes por todo o lado e que eles agora
luzem. Até o asfalto brilha. As pessoas mudam quase
tanto como o clima. Os turistas alegram-se e sorriem
por detrás das rugas, nos cafés os açorianos mexem-se
mais do que o costume e pequenas rajadas do seu
sotaque vibram no ar da manhã. Quase me sinto
culpado por estar alegre, mesmo que saiba que é uma
alegria morna e breve.
Além do aparecimento do Sol, o meu curto sorriso
também se deve, e muito, a ter encontrado o meu futuro
lar. A alguns quilómetros do centro, na parte oriental da
ilha, há uma enseada com meia dúzia de casas. A
estrada para lá chegar é íngreme e primitiva, um trilho
de terra batida pejado de ervas daninhas. Por todo o
lado há vacas, enormes, maciças e estúpidas, com
aquele ar de que não só comem erva mas também
pensam como erva. Porém, que animal espantoso! Por
mais que coce a cabeça não percebo que raio de
pressão evolutiva as levou a desenvolver a sua
camuflagem preta e branca. Em que ecossistema se
confundiria uma vaca com o seu habitat? Num tabuleiro
de xadrez? Num mundo a preto e branco? Serão os seus
predadores todos daltónicos? Divago, como sempre.
Ora, essa estrada íngreme vai serpenteando, descendo
a encosta e, após passar três enormes casas que
descreverei noutro dia, chega a uma bifurcação. Se
virares para a direita, numa curva apertada a estrada
torna-se plana e, após trezentos metros, termina junto a
uma casa de pedra com paredes grossas e ar rústico. O
telhado é azul-escuro, o único que aqui vi dessa cor.
Tem uma sala grande, um quarto, um escritório, cozinha
e casa de banho. A mobília, feita de madeira do Brasil,
tem um ar pesado. Quase não está decorada, salvo um
quadro enorme, a óleo, de um barco no meio de uma
tempestade, e meia dúzia de pechisbeques. A sala é
fantástica. Tem uma longa mesa ao centro, daquelas em
que se sentares duas pessoas à cabeceira terão
dificuldade em conversar. Existe também uma
imponente lareira com um relógio de cuco avariado
pousado no parapeito. A sala abre para um pequeno
terreno em frente ao mar. Apenas a dez ou quinze
metros de distância está a falésia. Assustador e
encantador. Se abrires as portas da sala, além de um
frio sedento de ossos, o cheiro e o som do Atlântico
invadem a casa com a sofreguidão de um cão acabado
de libertar. No escritório existe uma estante com livros
e uma poltrona de veludo verde gasto. É inegável que
nela se passaram muitas horas de leitura.
Se na bifurcação não virares à direita, em direcção à
casa, podes seguir em frente descendo até à enseada,
onde existe uma construção grande em madeira sobre o
areal. A praia é pequena. Quando lá fui havia dois
barcos, embora me pareça um sítio pouco apropriado
para atracar, já que a entrada na enseada é estreita e
em dias de temporal não é difícil imaginar um barco a
desfazer-se contra as rochas. Neste edifício existe um
restaurante que serve também, para a dúzia de
habitantes que aqui vive, de padaria, mercearia e
central telefónica, já que esta é uma zona, talvez pelas
suas particularidades geográficas, demasiado inóspita
para as redes de telemóvel. Não me lembro da última
vez em que estive numa casa sem telefone, mas é uma
sensação agradável.
O dono da casa que vou habitar é um marinheiro que
emigrou para os Estados Unidos. A renda é irrisória
comparada com Lisboa. Mudo-me este fim-de-semana.
Tenho uma lista de produtos essenciais para comprar,
na qual, pela primeira vez na minha vida, se inclui
lenha. Vou alugar um jipe para poder ir à cidade sempre
que precisar. Sei que não sou o melhor condutor do
mundo mas, desde que evite as vacas e o ocasional
açoriano suicidário, nada se passará.
O homem da agência falou-me um pouco dos
habitantes das outras casas. Ainda não os conheci mas
parecem um grupo, no mínimo, peculiar. Explicou-me
também que o restaurante se mantém aberto porque
todos os sábados muitas famílias passam o dia nesta
praia, o que achei bizarro. Seja como for, a presença de
pessoas apenas um dia por semana, e mesmo assim a
alguma distância, será suportável. Tudo começa a
parecer preferível aos pequenos-almoços rodeado do
grupo de pessoas que, em todo o mundo, mais tempo
leva a servir-se, porque é incapaz de escolher entre
croissants e torradas, chá e café, butter e marmelade.
Entretanto, se já respondeste à minha primeira carta e
me enviaste os livros, não te preocupes porque, para já,
utilizarei o hotel como posto de correio (o carteiro não
passa por aqui).
Anseio por novidades tuas. Espero-te bem.

Apreciando o sol
III

Querido amigo,

É a minha primeira manhã de domingo na casa nova.


Está escuro e chuvisca lá fora. Ouve-se o mar. Ouve-se
sempre o mar, como se estivesse a viver dentro de um
búzio. Dizem que uma pessoa se habitua e que, se um
dia o mar se calasse, eu ia sentir a falta dele, pois o
silêncio que se seguiria soaria a gemido. Espero que
sim. Dormi ainda pior do que o costume. Os pesadelos
continuam e a casa está fria e húmida. Cometi um erro
citadino, não pedi conselho a quem sabe e a quantidade
de lenha que comprei foi irrisória. Já está quase a
acabar. Eu devia ter percebido isso quando o homem
que ma vendeu perguntou onde é que a devia entregar,
respondi que a levava eu mesmo, e ele desatou a rir.
Passarei lá hoje à tarde e encomendarei lenha suficiente
até para construir um galeão.
O jipe é mais fácil de guiar do que pensava, mas terei
de ter cuidado com as curvas, especialmente quando
chove. Ontem à tarde, à chegada, cruzei-me com outro
carro. São os primeiros vizinhos que conheço, um casal
de reformados. Abri a janela e falámos um pouco.
Deram-me as boas-vindas, ofereceram ajuda e
convidaram-me para passar por sua casa para um café.
Ele é médico e ela foi professora. Como já estava escuro
não os observei bem. Aos meus ouvidos pareceram-me
lisboetas. Pergunto-me o que farão por aqui.
Como seria de esperar, a casa funciona a gerador e
bilhas de gás. Não tem televisão. O único aparelho que
anuncia uma vida exterior é um rádio gigante com
enormes manípulos no qual é mais fácil apanhar
estações de banda larga americanas do que
portuguesas.
Estou a pensar em comprar uma aparelhagem ou
qualquer coisa onde se possa ouvir música. A opção
mais fácil seria pedir-te para me enviares o meu MP3,
mas a minha vida nova deve ser feita de coisas também
novas e nada está mais associado ao passado do que a
música.
Na encosta acima da minha casa há uma série de
árvores. Não sei de que espécies são ou se dão fruto.
Sou um ignorante do mundo natural, habituado a
distinguir entre ruas e avenidas, rotundas e pracetas,
mas incapaz de diferenciar carvalhos de pinheiros.
Bem… talvez estes consiga diferenciar, mas pouco mais.
Espero emendar esta falha. É por isso que te peço para
me enviares livros sobre árvores. Com fotografias,
claro. Deixo ao teu critério. Eu próprio pretendo
procurar hoje, pela cidade, livros sobre a fauna e flora
dos Açores. Não viverei mais na ignorância!
Além disso, cada minuto que passa sem uma ocupação
é mais um buraco melancólico na proa do meu barco.
Perdoa-me as metáforas náuticas, mas temo que isto
seja só o princípio. A propósito, observei que um dos
barcos que costumam estar na praia saiu ao mar.
Pergunto-me o que terá alguém para fazer com este
tempo.
Espero encontrar uma carta tua no hotel.

Abraço
IV

Ex.mo Senhor editor do suplemento de livros do jornal A


Semana,

Quando outro dia lia o suplemento pelo qual V.Ex.a é


responsável, mais particularmente uma crítica a uma
edição recente de uma nova tradução da Anna
Karenina, o livro mais comentado do conde Tólstoi,
deparei-me com uma frase terrível. E assim era não por
motivos semânticos, gramaticais, intelectuais ou
estéticos, pois, se estes fossem os critérios, haveria
muito a dizer de quase todo o vosso suplemento, mas
porque falava do desenlace da história. Assume o vosso
crítico, um tal Ermenegildo Esteves, que todos os
leitores do suplemento literário do A Semana conhecem
o desenlace? Ou, pior ainda, ele não se importa de o
revelar, diminuindo o prazer aos futuros leitores do
Anna Karenina de o descobrirem sozinhos? Não é a
primeira vez que tal sucede neste suplemento. Será que
os seus críticos se esquecem de que, apesar de eles
estarem sempre a reler e nunca a ler, é também
necessário ler um livro pela primeira vez? E que essa
leitura deve ser, idealmente, realizada de modo virginal,
livre de contextualizações, comentários biográficos e
interpretações psicanalíticas, sócio-históricas ou
disparates afins. Para sua sorte, e mais ainda do senhor
Esteves, eu já conhecia o desenlace, tendo tido a boa
fortuna de ler o Anna Karenina em relativa virgindade,
sabendo apenas que falava de adultério e tinha causado
escândalo na época; duas características que não
estragam o prazer da história, pois são típicas de quase
todos os livros do século xix. Contudo, se eu não
conhecesse o desenlace, e ao ler a crítica esse me fosse
brutalmente transmitido, isso seria motivo suficiente
para um duelo.
Peço-lhe pois, encarecidamente, que tal não volte a
suceder. Vou continuar a ler o seu suplemento, pois
tenho algum prazer na discussão e apresentação de
livros, mesmo na prosa suburbana dos seus críticos. São
livres de escrever mal. Não são livres de perturbar o
prazer da literatura a quem cometeu o pecado de ainda
não ter lido as obras que eles leram.
Com isto não quero dizer que deixem de fazer
considerações sobre a evolução das histórias dos livros
que criticam. Mas que avisem. Que façam o que os
americanos chamam de spoiler alert. Comecem esse
parágrafo com «Quem ainda não conhece a história
deve saltar este parágrafo» ou outra formulação deste
género, que, apesar de deselegante, é muito valiosa.
Caso ignore o meu pedido, levando a que os meus
olhos inocentes sejam violados pela exposição impudica
do desfecho de uma história, terei de fazer justiça. No
mínimo V.Ex.a e o crítico responsável serão alvo de
bengaladas. Mas também pode ocorrer que vos parta as
pernas.

Com os melhores cumprimentos,


Um leitor atento
V

Querido amigo,

Que todos os deuses te abençoem! Que Jesus te lave


os pés, Allah te agracie, Buda medite por ti e Shiva te
abrace com todos os seus braços. Que todas as outras
divindades e santos te tenham em consideração e velem
por ti. Nada menos mereces. Os livros chegaram sãos e
salvos. Já os arrumei junto dos outros que aqui estavam.
Ainda não decidi qual irei ler primeiro. Vou saltitando
de um para o outro, cheirando, folheando, lendo
passagens aleatórias, segurando as folhas entre os
dedos, sentindo a textura do papel. Gracias.
Antes de te contar as coisas deveras interessantes que
se têm passado no meu exílio, vou responder já às
várias questões práticas que me colocas para que,
depois, seja dono de toda a tua atenção.
Ao contrário do que havia determinado, decidi manter
a coluna semanal no jornal. Com algumas alterações. A
dimensão da coluna será a mesma. Tudo o resto será
diferente. Primeiro, será assinada por outro nome:
escolhi o pseudónimo Tristão Lobo. Segundo, terá o
título «Motivos para não nos matarmos». Terceiro, terá
como tema tudo o que eu considere motivo suficiente
para adiar o suicídio pelo menos um dia. Tratar-se-á de
relatar acontecimentos, factos, histórias, versos,
receitas culinárias ou seja o que for que, para mim,
justifique mais um dia de sobrevivência. Quarto, as
cartas dos leitores deverão apenas versar sobre os seus
próprios «motivos para não nos matarmos». E penso
que é tudo. Fala com o Carlos Domingues, o editor. Se
ele recusar, tudo bem. Se aceitar, diz-lhe que receberá
por carta a minha coluna e que te deve dar o correio
dos leitores.
Teria todo o gosto se o teu filho fizesse do meu carro o
seu meio de transporte. Percebo as tuas preocupações
paternais com a segurança de uma Vespa antiga nas
avenidas de Lisboa. Sei também que gostarias de ver o
teu filho poupar dinheiro para comprar um carro,
porque achas que desenvolveria a sua perseverança,
determinação, bom senso e faria dele um adulto. Não
comento o que acho dessas qualidades, mas lembro-te
de que ele pode poupar à mesma. Para uma câmara de
filmar, guitarras eléctricas, blusões de cabedal, o que
quiser. Se for para uma longa viagem, mais feliz ainda
eu ficarei. Deixa-o guiar o meu carro e não lhe estarás a
fazer um favor só a ele, mas também a mim, pois
sentiria irrisoriamente atenuada a enorme dívida que
tenho para contigo e que aumenta de dia para dia.
Sobre o meu estado, e o teu desejo de que procure
acompanhamento profissional, devo dizer-te mais uma
vez que não me vou matar. Repara por favor no título
que proponho para a minha coluna. Além disso, duvido
de que haja muita gente a quem possa recorrer aqui na
ilha. Se os profissionais de saúde mental fossem
competentes, esta gente não pareceria tão
deliciosamente enlouquecida.
Já passou uma semana desde que me instalei na casa
nova. O frio diminuiu um pouco, agora que aprendi a
utilizar a lareira e me habituei ao cheiro a fumo. A
humidade é mais difícil de fazer desaparecer, até os
ossos sinto meio ensopados.
Aos poucos vou construindo um lar. Cozinho peixe
mais vezes do que alguma vez o fiz em Lisboa e bebo
chá em vez de café. Montei um candeeiro no escritório,
sobre a poltrona verde, para que possa ler em
condições. Em cima da longa mesa no centro da sala
tenho resmas de papel, envelopes, selos e uma lista de
destinatários a quem tenciono escrever cartas. Descobri
uma ampulheta num pequeno armário com a qual estou
fascinado, embora não lhe tenha ainda descortinado
outro uso senão como pisa-papéis. Hoje irei cortar o
cabelo e tirar esta barba messiânica; já está na altura
de deixar de parecer saído da Bíblia. Neste espírito de
renovação e vitalidade que persigo, comprei uns ténis e
planeio amanhã, pela primeira vez na minha vida, fazer
jogging.
Não te quero esconder os cantos escuros do que vivo
nem fingir que estou convertido num homem novo,
prático, alegre, vivo, uma espécie de pioneiro
americano que se vê à frente na corrida ao ouro. Ainda
choro. Muito, demasiado. Com violência, mãos
crispadas, raiva, desespero, o espectáculo todo, os
porquês gemidos, os murros na parede ou no peito. Mas
tento evitar estas pequenas explosões, estes testes
nucleares. Assim que me perco na autocomiseração,
procuro, mergulhado no turbilhão negro da angústia,
um pouco de sangue-frio, um qualquer sentido de
proporção que me leve à pilha de lenha debaixo do
telheiro. E, com a ajuda do machado, parto lenha. Aos
poucos a tempestade amaina e a preocupação em
dividir em duas metades quase perfeitas o bloco de
madeira acalma-me mais do que qualquer Xanax.
Existe um senão: os meus dedos estão cheios de
bolhas. Tenho mãos de trabalhador. Abro-as, a palma
virada para cima, e vejo calos, gretas, cortes. Espero
que as bolhas escamem e uma nova pele cresça.
Tenho ido à praia. Na primeira vez tomei café no
restaurante e falei um pouco com o casal que lá vive. O
homem é um tal senhor Joaquim, alto, de rosto redondo,
bochechas rosadas, com uma meticulosa risca ao lado
no cabelo acinzentado e patilhas à almirante Nelson.
Ele cozinha e a mulher e a sogra servem à mesa. A
comida é pouco variada mas boa. Quando lhes disse o
que pretendia da minha vida nos Açores, explicaram-me
que talvez daqui a três meses seja possível avistar
baleias de minha casa, desde que possua um telescópio.
Falaram-me também dos meus outros vizinhos. O casal
com que me cruzei, o médico e a professora, vive aqui
há uns anos. A primeira casa da estrada é de um
alemão, geógrafo ou geólogo, eles não conseguiram
precisar, que é também o dono de um dos barcos. Quase
todos os dias sai ao mar sem que ninguém saiba
exactamente para quê. A outra casa é o refúgio de
Verão de um milionário açoriano.
Quando lhes perguntei a que se devia o movimento do
fim-de-semana disseram-me que esta enseada tem uma
localização muito especial que faz com que, devido a
uma confluência de correntes e de outros pormenores
marítimos que me escapam, seja particularmente rica
em peixe. De facto, ontem, domingo, observei as
pessoas na praia e vi muitas canas de pesca. Hoje é
segunda-feira e chove, pelo que a praia está deserta.
À tarde vou à cidade comprar comida e procurar uma
aparelhagem. Estou farto de ouvir rádio e necessitado
de música aceitável como de pão para a boca.

Abraço-te

P.S. 1: Deixo-te em anexo o contacto do restaurante da


praia, caso haja uma emergência e precises de falar
comigo ao telefone.
P.S. 2: Também em anexo, segue um exemplo de
crónica para enviares ao Carlos Domingues.

Motivos para não nos matarmos


A possibilidade científica e espiritual de milagres
Nenhum cientista sério poderá afirmar que é de todo
impossível que o sol não nasça amanhã. Porque, ao
contrário do que se ensina nas escolas, não existem
certezas, apenas probabilidades muito elevadas. Tão
elevadas que podem, para efeitos práticos, ser
consideradas certezas. Mas não são. Existe talvez uma
probabilidade num trumpilião (um bilião de milhões de
trilhões) de que daqui a uma hora todas as rádios
transmitam o hino nacional do País de Gales. E, se
calhar, há a probabilidade de três num trumpilião de
que todas as laranjas no mundo caiam simultaneamente
das árvores. E a probabilidade de um em dois
trumpiliões de que todas as pessoas com a letra inicial
do seu nome alfabeticamente acima do M espirrem
sequencialmente. Existem hipóteses infinitas de coisas
altamente improváveis acontecerem. Logo é lógico que
algo bastante improvável aconteça. Se nos matarmos,
recusamos essas possibilidades. Recusamos a hipótese
de que o acontecimento altamente incerto que irá, por
certo, ocorrer seja o que nos faria querer continuar a
viver.
A vida é incerta. É uma das suas constantes. O mundo,
o clima, o preço do petróleo são imprevisíveis. Bem
como as pessoas, os seus desejos, comportamentos,
reacções. Mesmo eu próprio não posso garantir com
certeza absoluta o que farei perante a situação A ou B.
Existem padrões, tendências, probabilidades muito
elevadas. Mas não existem certezas.
E não havendo certezas, tudo, literalmente, é possível.
Se tudo é possível, por que razão havíamos de nos
matar?
Tristão Lobo
VI

Querido amigo,

Está feito. Cumpri os clichés todos de renovação.


Daria um belo filme de sábado à tarde. Cortei o cabelo
com máquina 4 e eliminei qualquer resquício de barba.
Primeiro aparei-a com uma tesoura e depois gastei duas
lâminas para a rapar por completo. Há anos que não
tinha a pele tão macia.
Comprei umas camisolas de lã, enormes, quentes e
inestéticas que uso continuamente. Olho-me ao espelho
e quase não me reconheço. Pareço um cruzamento
entre um monge medieval e um sobrevivente do
Holocausto, e sinto que sou um pouco de ambos, passe
o exagero.
Ateei a lareira de forma gloriosa e queimei uma série
de cartas velhas e documentos desnecessários,
enquanto escutava uma gravação para 45 polegadas de
canto gregoriano por um coro de monges da Ucrânia.
Sim, já tenho música. Comprei um gira-discos em
segunda mão numa pequena feira de bugigangas. A
qualidade é surpreendentemente boa. As colunas são
grandes e revestidas a madeira cor de mel. O ruído da
estática quando a agulha arranha o disco trouxe-me
recordações amenas da infância. O canto gregoriano é
apenas um dos discos estranhos que comprei nas três
lojas que visitei. Vida nova, música nova. Um dos discos
tem o fabuloso nome de «Clive Stewart sings sailor
songs». Na capa o Clive Stewart, que tem as feições de
um Abraham Lincoln depois de duas horas dentro da
máquina de lavar, sorri-me com uns dentes enormes e
amarelados. Ainda não o ouvi porque estou a guardá-lo
para dias de melhor tempo em que me seja possível
avistar o mar alto e pensar nos meus amados cetáceos.
As canções têm nomes como One Leg Molly, On the
High Sea e Out of the Storm. Estou ansioso por ouvi-las
e poder retribuir o sorriso enorme e amarelo do velho
Clive.
De regresso ao meu processo de fénix e à actividade
sobre a qual deves estar mais curioso: jogging. Yes, sir,
indeed. Sabias que o inventor da modalidade morreu ao
praticá-la, algumas décadas depois da sua primeira
corrida? De ataque cardíaco. Se isto não é a definição
de ironia... A mim, por enquanto, o jogging não matou.
Corro de manhã, bem cedo. Não me é difícil acordar,
já que o meu sono nunca é fluido e generoso. Visto um
fato de treino, meias grossas, os ténis novos e, de gorro
enfiado até abaixo das orelhas, vou correr. Cada dia
faço um percurso diferente. Começo por subir a encosta
até à estrada de asfalto. Depois da subida chego a um
pequeno planalto. Corro pelo mesmo prado onde as
vacas pastam. Ainda não me sinto à vontade a correr
perto delas. Tenho medo de que surja um touro ou que
alguma delas se lance a correr na minha direcção. Sei
que é ridículo, mas lembro-te de que dificilmente
encontrarás alguém mais citadino do que eu. Enquanto
corro, cada baforada torna-se uma nuvem de vapor. Não
é preciso muito para que sinta o corpo a ferver. Na
primeira vez não levei luvas e as minhas mãos sofreram.
Correr por aqui é uma sensação estranha. Um misto de
dor e prazer. Tenho corrido entre meia e uma hora.
Termino sempre descendo até à praia e andando um
pouco por lá. Na segunda vez que o fiz, o senhor
Joaquim convidou-me para tomar café. Declinei o
convite prometendo que o faria noutra ocasião. Talvez
amanhã me convide de novo.
Quando subo de regresso a casa, sinto a camisola
colada às costas, o cabelo húmido como se tivesse
acabado de tomar duche, os músculos quentes e a
mente totalmente desperta. O duche sabe-me bem. A
água demora a aquecer, mas depois cai quase a ferver,
produzindo tanto vapor que, em minutos, a casa de
banho parece Londres no princípio do século xix. Sento-
me na banheira velha, debaixo do jacto quente, agarro
os joelhos com os braços e deixo-me ficar assim. Só saio
quando a pele já está toda vermelha e o vapor se
condensa no tecto de tal forma que de lá caem gotas.
Visto as minhas roupas monásticas e barbeio-me com
uma precisão a que nunca antes aspirei.
O meu pequeno-almoço é digno dos melhores hotéis.
Como já te referi noutra carta, rendi-me ao chá. Recorro
a variedades da ilha. Coloco meia dúzia de folhas numa
daquelas fascinantes bolas de arame, que atiro para o
bule. Depois junto água quase a ferver. Enquanto o chá
vai saindo das folhas para a água (por certo existem
termos bem mais precisos e estéticos para tal, mas
desconheço-os), frito ovos e faço torradas. Como tudo
sentado na enorme mesa da sala, enquanto leio cartas
antigas ou escrevinho ideias e rascunhos. Além de
manteiga e compota, ponho também mel nas torradas. É
bom voltar a comer com apetite.
Os dias têm sido demasiado diferentes uns dos outros
para que te possa descrever o que se passa a seguir ao
pequeno-almoço. Posso ir à cidade, escrever, dar um
passeio, cortar lenha, ou, simplesmente, ir virando a
ampulheta vezes sem conta numa melancolia pesada.
Espero que estas descrições de actos tão simples não
te enfadem. Apesar de ter sido Moby Dick que me
trouxe aqui, vejo a minha vida como sendo mais
semelhante à do Robinson Crusoe. Um náufrago dando
o melhor uso a todos os pequenos objectos que
consegue obter, construindo uma vida nova numa ilha
deserta. Apesar de não ansiar por sextas-feiras, existe
uma certa alegria em construir uma rotina, em dominar
o ambiente inóspito (claro que o meu jipe e a conta
bancária ajudam). A analogia é má, mas, se me
considerares um náufrago emocional (ou existencial ou
qualquer outro al que querias usar), verás bastantes
paralelos.
E será assim, meu amigo, que hei-de regressar à
civilização. Gesto insignificante após gesto
insignificante, chá preparado após chá preparado, ovo
frito após ovo frito, jogging matinal após jogging
matinal. Dando a cada coisa o seu real valor e a sua
justa dimensão. Aprendendo a sobreviver.
Mas ainda falta tanto. Tanto.

P.S.: Obrigado por teres enviado a coluna protótipo


para o Carlos Domingues. Eu já esperava que ele
recusasse, e adivinho que tu também achaste não ser
esta uma das minhas ideias mais brilhantes, para não
dizer muito. Menos uma obrigação para mim, mais um
grau de liberdade.
VII

Querido amigo,

Ontem conheci o alemão. Após a minha corrida


matinal, quando andava de um lado para o outro na
praia a esticar os músculos e a tentar baixar o meu
pulso para valores abaixo da vizinhança de um ataque
cardíaco, o senhor Joaquim convidou-me para tomar
café. Preparou-o à turco, numa cafeteira enorme. Era
forte e espesso e tive de o beber com muito açúcar,
sentado num das cadeiras de plástico no alpendre do
restaurante. Foi então que apareceu o alemão, vestido
de mergulhador e arrastando garrafas de oxigénio.
Sentou-se connosco a beber café. É ainda mais alto do
que o senhor Joaquim. Deve ter entre quarenta e cinco
e cinquenta anos. O cabelo é ralo e ruivo, mas a barba é
vasta e muito encaracolada, o que, adicionando-se os
olhos verdes e as sardas, lhe dá um ar mais escocês do
que alemão. Um alemão a falar português com sotaque
dos Açores é algo que tens que ouvir pelo menos uma
vez na vida. Chama-se Hector e é biólogo marinho
(portanto nem geólogo nem geógrafo). Diz que está a
fazer pesquisa para uma tese de doutoramento. O
senhor Joaquim censurou-o por, mais uma vez, ir
mergulhar sozinho, o que nunca se deve fazer. Ele riu-se
e disse que sabia que o Joarrim (como lhe chama) o iria
salvar se lhe acontecesse alguma coisa, pelo que fiquei
a saber a quem pertence o segundo barco.
Quando lhe expliquei o meu interesse por baleias,
falou-me de um museu em Ponta Delgada e convidou-me
a passar por casa dele para me emprestar uns livros. O
convite pareceu-me genuíno. Ficou pouco tempo, por
causa das marés. Ainda o barco dele estava a sair da
enseada, já o senhor Joaquim fazia comentários sobre o
teutónico.
Ninguém sabe se é verdade o que ele diz sobre o
doutoramento. É também muito estranho e
incrivelmente perigoso que alguém vá mergulhar
sozinho. Apesar do mistério que o envolve, as pessoas
gostam dele. É um excelente cliente; janta todos os dias
no restaurante e elogia sempre a comida. Tem uma
peculiaridade engraçada. Acrescenta invariavelmente
sal. O senhor Joaquim, ofendido na sua capacidade de
cozinheiro, experimentou salgar-lhe a comida até a
tornar incomestível. O gigante alemão, após a primeira
garfada de um bacalhau à Braz, pegou no saleiro e pôs
ainda mais sal.
Além do seu apetite por cloreto de sódio, aprecia
bastante as senhoritas da casa de passe mais próxima.
O senhor Joaquim contou, fingindo-se embaraçado, que
lhe haviam dito que, nas idas semanais do alemão ao tal
bordel, não é incomum o senhor Hector subir aos
quartos acompanhado de duas senhoritas.
Tudo isto me deixou curioso. Tenciono visitar a figura
em breve. Entretanto, enquanto não tenho acesso aos
livros do Herr Dr., envio-te mais uma pequena lista de
livros.
Sei que foi uma carta curta, mas não podia deixar de
te informar sobre o biólogo marinho que mergulha
sozinho e aprecia sal e prostitutas.
Mais nos próximos capítulos.

Abraço
VIII

Querido amigo,

Estava a escrevinhar já não me recordo bem o quê


quando ouvi um som novo. Era a campainha, a primeira
vez que a ouvia desde que me mudei. À porta estava a
mulher do médico com um tupperware nas mãos.
Convidei-a a entrar e ofereci-lhe chá. Notei que ela,
embora de forma discreta, observava a casa com uma
minúcia que parece um exclusivo das mulheres e dos
detectives de ficção. Tinha-me vindo oferecer bolo de
cenoura e aproveitar para conhecer o novo vizinho.
Penso que ainda não ta descrevi. É uma mulher de
cinquenta e poucos anos, nem magra nem gorda. Tem
um rosto cansado e vincado, mas no qual é visível uma
beleza anterior. Os olhos são amendoados, de cor verde-
acinzentada, com pestanas muito curtas. As
sobrancelhas são pintadas, mas não de forma ostensiva.
O cabelo é meio loiro, meio branco, cortado um pouco
acima dos ombros. A boca é muito fina e expressiva,
ladeada por duas ou três rugas em forma de parêntesis.
Apesar de só termos falado pouco mais de uma hora,
notei algo de profundamente desconcertante nela. Não
sei explicar ao certo o quê. O princípio da conversa foi
sobre a vida nos Açores e na enseada. Narrei-lhe os
motivos oficiais do meu exílio, que ela escutou com um
atenção educada mas sem qualquer interesse genuíno
(o que até me convém). Deu-me alguns conselhos
práticos e indicações valiosas sobre a vida na ilha (onde
comprar isto e aquilo, como lidar com a chuva) e depois
trocámos banalidades sobre o tempo. Foi quando lhe
perguntei por que motivo ela e o marido haviam
escolhido os Açores para passar a reforma que a sua
bizarria (não me lembro de um termo melhor) veio ao
de cima. De imediato, colocou um sorriso exagerado
como se estivesse prestes a contar uma história muito
engraçada. Começou a falar rápido, desistindo de umas
frases a meio para iniciar outras, a maior parte das
vezes também interrompidas. Contou que viviam em
Lisboa, que tinham um filho adulto, que sabiam que as
ilhas dos Açores eram muito bonitas e mais meia dúzia
de coisas que não me pareceram estar relacionadas. Ela
deve ter percebido que eu não estava a acompanhar as
suas explicações e começou a falar do filho, tornando-se
então o seu discurso mais fluído e até um pouco
eufórico. Contou-me que o filho é um viajante, um
aventureiro, um explorador. Está a fazer uma volta ao
mundo e, apesar de isso o manter muito tempo longe
dos pais, escreve cartas com frequência, as mais belas e
soberbas cartas. Pelo que percebi, ele já atravessou a
Europa, já esteve na Ásia e na Oceânia e está agora no
Médio Oriente. Suspeito, contudo, que as coisas não
sejam exactamente como me conta. Digo-te isto não só
porque ela não foi capaz de dizer há quanto tempo se
iniciou a viagem (ia mudando conforme a fase da
conversa), mas pela sua atitude durante a narração da
história. Parecia, de dois em dois minutos, ser tomada
de uma emoção nova e lutar contra ela à minha frente.
Mexia muito as mãos, parecia ora melancólica ora feliz,
tanto fugia do meu olhar como o procurava avidamente.
Começava a contar episódios da viagem do filho e
abandonava-os a meio. Falou-me do seu comportamento
enquanto criança, procurando justificar, num fascínio
infantil pelos descobridores, o viajante adulto. Passado
algum tempo, calou-se abruptamente e ficou a olhar
para o mar. Após dois ou três minutos de silêncio, que
não me atrevi a quebrar, virou-se para mim, com o ar
formal com que havia chegado, e que abandonara quase
de imediato, e convidou-me para jantar com uma
solenidade roçando o cómico. Aceitei, claro.
Ao fim do dia, vesti a única camisa que trouxe, cobri-
me com o casacão e um cachecol e, de lanterna na mão,
caminhei pelos cerca de oitocentos metros que
distanciam as nossas casas.
Escrevo-te na manhã seguinte ao jantar. Como vou à
cidade esta tarde, não tenho tempo para te narrar o
curioso acontecimento. Perante este material de
folhetim vou cumprir as regras do género e terás de
esperar pelo próximo fascículo.

Estou-te tão grato quanto um artista de rua por um


dia de sol.
IX

Queridos pais,

É a minha primeira vez em Paris no Inverno e, Jesus


nos salve a todos, está frio. Escrevo-vos do mais
peculiar dos locais, mas há uma história por detrás da
minha localização e não a quero estragar. Cheguei
ontem de manhã, de comboio. O céu estava cinzento e
carregado, ameaçando chuva. Já mais do que habituado
à minha enorme mochila – que sinto ser tão parte da
minha anatomia como se fosse uma corcunda –, não me
apressei a encontrar uma pension ou a contactar a Julie,
tendo-me limitado a andar pelo centro, a fazer de
flaneur. Como Jesus está quase a fazer anos, as ruas
estão decoradas e pouco depois das quatro da tarde as
luzes natalícias são acesas partout, as montras exibem
um delírio de cor e brilho e nos passeios milhares de
parisienses e alguns turistas vagueiam e fazem
compras, todos vestidos para uma expedição polar,
sendo que nada mais cómico existe do que observar os
sábios, existencialistas, vetustos, veneráveis, filosóficos,
cultos e letrados parisienses de meia-idade com um
gorro na cabeça. Não lhes fica bem. Um filósofo que se
digne deve usar boina para o frio, à la Sartre.
Adivinho-vos tristes por mais uma vez não passarmos
o Natal juntos. Espero que esta carta chegue antes de
25 e ofereça algum consolo. Compreendam que não é
falta de amor o que me faz estar longe. Sempre soube
que mais não desejavam do que a minha felicidade e
esse é o único presente que vos posso oferecer. Saibam
que estou imensamente feliz. Por mais que viaje,
mantém-se a alegria de contemplar o novo e o
desconhecido, o peculiar e o comum. Cada dia é um
repositório de descobertas, fascínios, experiências,
curiosidades. Vivo numa euforia luminosa apenas
interrompida, de forma saudável, por períodos de
saudade e melancolia doce, períodos maioritariamente
ocupados pela vossa imagem, voz, até mesmo cheiro.
Ah, e pela saudade dos cozinhados da mãe. Mesmo sem
eu estar aí faz, por favor, as tuas rabanadas divinas.
Mas isto tudo para dizer que vos amo e sei que sou
amado por vocês. Nunca antes passei um Natal em
Paris e sei que me perdoarão a ausência sabendo quão
feliz estou por passar esta quadra na Cidade das Luzes.
Como contava, estava eu ontem a passear de mochila
às costas quando decido parar em frente a Notre Dame
– o que só agora vejo que foi bastante adequado, já que
me descrevi como corcunda. Permitam-me um tom
pedagógico. Em muitas capitais existe o chamado ponto
zero, de onde se medem as distâncias das estradas do
país. O de Paris fica em frente a Notre Dame. É um
círculo de pedra com uma estrela no meio. Ao longo da
circunferência está escrito «point zero des routes de
France». Sentei-me sobre esse ponto e pensei que podia
indicar com precisão a distância entre mim e todas as
cidades de França e muitas cidades europeias. Fiquei
ali sentado algum tempo, a ver a fila de turistas a entrar
em Notre Dame e a procurar imaginar que aspecto teria
um Quasimodo moderno. Tirei o meu bloco de
apontamentos e escrevi um pouco. E depois, Helas! Le
miracle. Começou a nevar. Uma neve tímida e efémera
cujo contacto com o chão era mortal. Levantei-me em
admiração e júbilo. Os flocos acumulavam-se na minha
roupa, especialmente nas luvas sobre as mãos
estendidas, como se a neve fosse maná. Reparei nos
sorrisos das pessoas. O que há no Homem que o faz
sorrir perante a primeira neve? A apenas alguns metros
de mim, o Sena; ao meu redor, salvo a lindíssima
catedral com mais de oito séculos, os prédios típicos da
Paris do barão Haussmann (e, à propos, sabiam que a
largura das boulevards parisienses, mais do que razões
estéticas, se deveu ao desejo de Napoleão III de uma
Paris em que as ruas fossem demasiado largas para
permitir a construção de barricadas?!). Fiquei eufórico.
Sabem bem do fascínio que a neve sempre exerceu
sobre mim, o que será talvez comum a muitos lisboetas,
e podem sem dúvida adivinhar como me senti.
Mas a história não é essa. A história começa uma hora
depois quando, já saciado de neve e a começar a sentir
frio, me enfiei na primeira livraria que encontrei. Antes
que comecem a imaginar aquelas livrarias de vários
andares que há por todo o Quartier Latin, farei uma
descrição da mais singular de todas as muitíssimas
livrarias onde já estive. O que me atraiu, além de
parecer um lugar quente e acolhedor, foram os enormes
quadros pretos, iguais aos dos colégios da minha
infância, onde estavam escritos a giz os anúncios mais
hilariantes. Um informava que um escritor americano
expatriado de meia-idade procurava uma jovem flausina
francesa para viverem uma utopia a dois numa tenda
junto a um rio. Outro alegava que um famoso filósofo
fumador de cachimbo havia roubado há duas décadas
um livro da livraria e que era convidado a devolvê-lo
sem o pagamento de multa. Quando entrei na livraria,
estava cheia de gente, a maioria turistas, já que grande
parte das obras está escrita em inglês. Os livros são,
por norma, velhos e usados, mas irremediavelmente
encantadores, com as mais diversas lombadas e capas,
muitas vezes com comentários escrevinhados nas
margens. A arrumação é caótica. As prateleiras são tão
velhas e estão tão cheias que a madeira encurvou, e as
mesas, de diferentes alturas e tamanhos, estão cobertas
de resmas de livros sem qualquer relação aparente. O
rés-do-chão dá a impressão de que, mais do que numa
livraria, se está no apartamento de um bibliófilo velho e
louco. Numa das passagens entre divisões (uma pessoa
sente-se num minúsculo labirinto literário, como se num
conto do Borges) está escrito: «Be not inhospitable to
strangers lest they be angels in disguise.»
Após subir umas escadas íngremes e sujas, descobri
que a minha impressão estava bastante próxima da
realidade. No primeiro andar, além de existir mais um
sem-número de estantes e mesas maduras de livros, há
vários quartos com pequenas camas, muitas vezes
encostadas às estantes, pelo que não é incomum as
pessoas se ajoelharem numa cama durante as suas
buscas literárias.
Passeava pelos corredores quando ouvi uma conversa
num dos quartos. Dois velhos discutiam Fitzgerald em
inglês. Se há alguma coisa que mudou em mim durante
todas as viagens que tenho feito foi a capacidade de
superar qualquer hesitação sobre o que é socialmente
correcto, sobre o que irão os outros pensar de mim, se
estarei a agir como um tolo, e sentimentos afins para,
de forma sincera e genuína, sem pensar demasiado,
sem antecipar uma resposta, me dirigir a estranhos. E
foi assim que me vi a debater se o Tender is the Night
era superior ao The Great Gatsby, defendendo eu «que
sim», o homem mais velho de enormes cabelos brancos
«que não» e um careca de barba longa, carrapito e
muito estrábico «que, sem qualquer dúvida, sim». Após
alguns minutos de debate, ao reparar que eu encostava
a minha enorme mochila contra a parede, o homem
mais velho, defensor do Gatsby, perguntou-me se eu
tinha ido ali para arranjar um lugar onde dormir. Como
o tom me pareceu ligeiramente acusador, assumi uma
atitude defensiva e expliquei-lhe que apenas me
abrigava da neve e que nem sequer sabia que as
pessoas poderiam dormir na livraria. Apesar da
explicação, ainda me olhou desconfiado.
– Os meus hóspedes têm de ler pelo menos um livro
por dia.
Demorei um pouco a perceber. Não me parecia
possível que existisse um local onde se oferecesse
guarida em troca da aquisição pessoal de literatura,
pois seria como pagar um restaurante recebendo uma
massagem. Como eu não respondia, o velho pôs-se à
procura nas prateleiras enquanto murmurava uma
espécie de tango em espanhol. Retirou um pequeno
livro: The Diamond as Big as the Ritz and Other Stories,
do Fitzgerald.
– Os contos dele são melhores do que os romances –
afirmou, como se estivesse a constatar que o sol nasce
todos os dias. O homem do carrapito concordou
efusivamente.
– Se leres isto entre hoje e amanhã, podes passar cá a
noite – propôs-me o dono da livraria.
E foi assim que dormi na Shakespeare and Company.
Pelo que descobri, é uma livraria famosa e aparece em
muitos guias de viagens. George Whitman, o velhote
que me ofereceu guarida, fundou-a em 1951. Ele é
absolutamente excepcional, um excêntrico à moda
antiga. Não só obriga os hóspedes a ler um livro por
dia, como acredita que vive dentro de um romance, que
algures um escritor está a descrever a sua realidade. A
ideia de abrigar escritores e leitores veio-lhe das suas
viagens pela América do Sul e da hospitalidade com que
foi acolhido por lá. Nestes quartos pequenos já
dormiram mais de 50 mil amantes de literatura (eu faço
parte desse número). A lista de escritores e intelectuais
que por esta livraria passaram ou com quem o George
conviveu é magnífica, incluindo Henry Miller, Anaïs
Ninn, Allen Ginsberg e outros.
Contudo, não se adormece cedo nem facilmente por
aqui. Acometido do sentimento de dever que vocês
ferozmente instilaram em mim, tentei avançar com a
leitura do livro para não ficar em dívida. De início
chateou-me um pouco a obrigatoriedade da coisa, como
se estivesse a fazer os trabalhos de casa, mas cedo o
humor do Scottie tomou conta de mim. Ia no terceiro
conto quando um russo me entrou no quarto (o que se
ganha aqui em excentricidade perde-se em
privacidade). Alexei é um estudante de matemática que
está a fazer um doutoramento em Lyon (sobre – não é
magnífico? – números imaginários!). Aproveitou as
férias de Natal para visitar Paris e, a conselho de
amigos e para poupar dinheiro, foi parar à Shakespeare
& Co. Tem o ar pálido dos eslavos, as feições rudes e os
olhos pequenos e claros. O cabelo é ralo e loiro. No
queixo usa uma pêra que parece existir mais por
motivos morais do que estéticos, embora eu desconheça
quais.
O Alexei interrompeu a minha leitura para me fazer
um pedido invulgar. Perguntou-me, num francês
horrendo e com uma gramática estropiada, se eu já
tinha lido A Insustentável Leveza do Ser. Lembrei-me
de imediato do Verão que passámos no Douro, no
princípio da minha adolescência, quando o pai me
ofereceu esse livro. Era um exemplar usado, que tu
mesmo tinhas comprado e lido anos antes, sendo ainda
visíveis as dobras nos cantos das páginas (não sei se
marcavam apenas o andamento da leitura ou se
recordavam passagens memoráveis). Ao saber que o
havia lido, o Alexei ficou tão feliz como as personagens
de Dostoiévski nos seus momentos eufóricos. Com
exultante alívio, sentou-se na minha cama, quase me
esmagando os pés, e pôs-se a gesticular e a falar.
Explicou-me que concordara em ler o livro a troco de
abrigo mas não conseguia avançar na leitura e temia
ser interrogado no dia seguinte, pelo que precisava que
eu lhe contasse a história. Procurei dissuadi-lo, dizendo-
lhe que sabia apenas os contornos e que não se tratava,
propriamente, de um romance com uma estrutura
narrativa clássica. Não obstante, o Alexei estava
determinado. Protestou, gesticulou com mãos de
camponês, fez esgares de sofrimento, mas, mais que
tudo, pedinchou como nunca vi ninguém pedinchar
(havia um travo alcoólico no seu hálito que se sentia
mesmo à distância). Foi assim que, folheando o livro
para trás e para a frente, procurando forçar a memória,
lhe fiz um esboço dos amores de Thomas e Teresa, e das
lágrimas da cadela Karenine. Adormeci tarde e acordei
cedo com a luz a entrar pela janela.
Levantei-me e olhei para a rua. Percebi que a neve
não tinha deixado de cair, que a certa altura, talvez
momentos depois de eu ter entrado na livraria, deixara
de derreter em contacto com o chão, para, floco sobre
floco, criar um manto branco sobre Paris. O sol brilhava,
ténue, e o céu estava azul. Sobre os passeios, os carros,
os telhados, os caixotes de lixo, os pequenos quiosques
(ainda fechados) junto ao Sena, resplandecia, branca
como nos filmes de bonecos animados, a neve.
Provavelmente uso metáforas velhas, porque milhões já
viveram o despertar para uma cidade branca. Mas, para
mim, foi a primeira vez. O meu presente de Natal
perfeito.
Vesti-me rapidamente e saí para a rua. Deixei a
mochila no quarto sem pensar sequer que ma podiam
roubar. Queria estar leve, tão leve que pudesse andar
pela neve sem deixar pegada. Percorri velozmente as
ruas, indiferente ao frio que me queimava a cara, gelava
a ponta do nariz e magoava as mãos apesar de eu as ter
(por ausência de luvas) enfiadas até ao fundo dos bolsos
do sobretudo. Caminhava olhando para a esquerda e
para a direita com mais voracidade ainda do que
costumo fazer; queria contemplar tudo, observar cada
telhado branco, cada toldo repleto de neve. Queria reter
em pormenor essa manhã luminosa. Por mais que
apreciasse o som terno da neve desfazendo-se sobre os
meus passos, sabia que muitos mais caminhantes
tornariam em poucas horas o manto fofo e claro numa
pasta acastanhada e escorregadia, e sentia-me um
pouco culpado por contribuir para essa transformação.
O céu manteve-se azul e o sol brilhou timidamente
durante o dia. Quando as luzes se acenderam nas
montras, janelas, telhados e boulevards de Paris, já nem
as crianças acreditavam que existisse em toda a cidade
neve branca suficiente para construir um boneco.

Joyeux Noël!
X

Ao boxeur Matias Vilanova,

Li no jornal que acabou de perder o seu trigésimo


segundo combate consecutivo em trinta e dois combates
disputados, sendo que nunca atirou a toalha. O tom do
artigo era pseudocómico, uma daquelas peças
destinadas a explorar a schadenfreude dos leitores e
fazê-los sorrir da desgraça alheia (é possível que o meu
amigo desconheça a palavra schadenfreude, pedindo-
lhe eu desde já perdão pela arrogância intelectual
subjacente ao seu uso, e passando a explicar que é um
termo alemão que significa, aproximadamente, alegria
pela desgraça dos outros). Além de talento literário,
percebe-se que faltou ao jornalista decência,
compaixão, mesmo ternura. E faltou uma capacidade
fundamental para poder estar no mundo como Homem,
e que, lamentavelmente, é cada vez menos estimulada,
apreciada e praticada: imaginação. Faltou-lhe a
imaginação para procurar perceber o que o leva ao
ringue após trinta e uma derrotas. A imaginação para
antever os momentos anteriores ao combate, os minutos
finais no balneário em que, apesar de tudo e todos
tomarem como certa a sua derrota, apesar de mesmo o
próprio Matias ter poucas dúvidas de que será
derrotado, havia ainda uma parte de si que queria lutar,
uma parte que acreditava que talvez esse fosse o dia.
Um homem desejoso de socar o destino nas fuças.
Faltou ao jornalista a imaginação para tentar perceber o
que leva um homem a continuar a investir o seu tempo
e esforço numa empreitada para a qual nunca mostrou
talento, da qual nunca obteve resultados, que lhe exigiu
tudo e nunca lhe deu nada, que lhe causou dor e
humilhação. No artigo citam o Matias justificando a sua
persistência. Quando lhe perguntaram se ia voltar aos
ringues depois de mais uma derrota, respondeu: «Eu
vou para o ringue como um advogado vai para o
escritório»; e, perante a pergunta jocosa sobre se
acreditava ser possível alguma vez ganhar um combate,
«Entro em todos os combates para ganhar. Dou tudo o
que tenho e faço o que sei e posso». Quero dar-lhe os
parabéns por essas respostas, tão sábias quanto
comoventes.
Não consigo pensar no Matias sem utilizar palavras
antigas como nobreza e dever. Qualquer freira ou
comentador social teria pena de si e assumiria o
discurso número 33 do Manual do Moralista,
condenando a sociedade por exaltar o triunfo,
exacerbar a competitividade e, tratando-se de boxe,
com certeza haveria algumas frases sobre o quão
básico, primário, primitivo e misógino é este desporto
violento, que deveria ser banido, acrescentariam com
esgares de indignação e dedos em riste.
Não é o que penso. Não o considero uma vítima, mas
um herói. Um exemplo de persistência, perseverança e
determinação. Um homem que não se verga nem à
opinião dos outros, nem aos resultados, nem mesmo ao
senso comum. Um homem que acredita em si mesmo,
que procura o triunfo e está preparado para a derrota.
Que «dá tudo o que tem». Que «faz o que sabe e pode».
Já diziam as escrituras que quem dá o que tem, a mais
não é obrigado. Eu acredito que o Matias durma
tranquilo, que o seu sono seja o sono dos justos, e que
ande na rua de cabeça erguida como o campeão que é.
Que a glória vá para o vencedor é compreensível, mas
a honra deve ser partilhada com o derrotado. Atribuída
não como consolo mas por admiração. Porque ergueu as
luvas, encaixou os socos, e nunca deixou de procurar
uma abertura, um momento de menor alerta por parte
do superior adversário que lhe permitisse o soco da
reviravolta, o murro da redenção. Porque como Heitor,
em Tróia, não fugiu ao seu dever. Porque se recusou a
aceitar que o destino de um homem já está escrito, que
a sociedade, a cultura, os genes, a forma como a mamã
o amamentou ou o papá com ele jogou à bola, o meio
socioeconómico em que cresceu, o PIB do seu país, o
número de livros que tem em casa, a personalidade dos
seus melhores amigos, a sua altura ou peso, os seus
resultados escolares, o seu treino, a sua dieta, o número
de horas que dorme, as suas relações afectivas, o
número de vezes que foi derrotado, as estatísticas pré-
combate, que todas estas coisas, por mais ou menos
peso que tenham, determinem o que lhe vai acontecer.
Beckett dizia «Ever failed. No matter. Try again. Fail
again. Fail better». Na nossa língua: «Já falhou? Não faz
mal. Tente outra vez. Falhe outra vez. Falhe melhor.» E
é isso que o Matias tem feito de forma soberba.
Por isso, Campeão, os meus parabéns. Espero que
tenha uma carreira longa e que as vitórias cheguem. E
se um dia chegarem, mesmo que seja só uma, imagino
que sentirá o que os Muhammad Alis e Mike Tysons
nunca sentiram, pois só quem atravessou um deserto
conhece o verdadeiro sabor da água.
Espero que continue de punhos levantados, que saia
sempre do balneário com coragem e determinação, que
aprecie o ringue. Que aceite cada derrota com honra e
orgulho.
O boxe sempre serviu de metáfora fácil para tudo e
mais alguma coisa. Para mim, o seu caso lembra-me os
românticos falhados, a quem o amor derrota vezes sem
conta e que, apesar da dor e do desespero, e das feridas
profundas no mais importante músculo do corpo, se
voltam a levantar, erguem de novo os punhos e estão
dispostos a apaixonar-se e a acreditar que, da próxima
vez, sim, da próxima vez serão eles que terão o braço
levantado, da próxima vez o amor triunfará.

De um admirador agradecido
XI

Querido amigo,

O jantar! Espero que estejas de curiosidade aguçada.


Fui até lá seguindo um pequeno carreiro de terra
batida, serpenteando por entre árvores, flores e
arbustos cuidadosamente plantados e aparados, virando
abruptamente à direita em direcção à casa, não sem
antes passar, à esquerda, pela entrada de uma pequena
estufa de pano branco, plena de flores exuberantes
(quando, antes de espreitar pela abertura de pano, eu
antevia ananases). A casa é parecida com a minha,
provavelmente desenhada pelo mesmo arquitecto, mais
preocupado com robustez e discrição do que com a
expressão do seu eu artístico. Tem, no entanto, mais um
andar, uma espécie de águas-furtadas com uma janela
virada para o mar, lembrando um farol. O soberbo
jardim é fruto do trabalho da senhora Teresa Viana, a
professora que é mulher do médico, ou, como ela deseja
ser chamada, Teresa. Não só tem tempo para podar,
plantar, adubar, regar e sei lá mais o que se faz às
plantas, como consegue ter a casa tão limpa como os
óculos de um obsessivo-compulsivo e cozinhar
magníficas refeições como a que não me escusarei a
descrever.
Mais calma do que quando me veio visitar, mas com a
mesma simpatia de toque desafinado, ela recebeu-me à
porta com um sorriso tão genuinamente feliz como
surpreso, embora não veja por que motivo havia de
duvidar da minha comparência. Entreguei-lhe uma
garrafa de vinho (que me obrigou a uma viagem à
cidade) e limpei demoradamente os pés num tapete
multicolor de aspecto sintético, em claro contraste com
a sala descolorida (termo que uso em vez de cinzenta,
porque a verdade é que a mobília possuía cores, mas
eram tão tímidas e discretas que não me lembro de
nenhuma).
Num gesto cerimonioso, que conseguia
simultaneamente troçar da própria formalidade, fui
apresentado ao Dr. Augusto Viana. Preocupado se eu
havia apanhado chuva no caminho, ele escoltou-me ao
bar para me providenciar o necessário e urgente
lubrificante social, já que era, à altura, o único
convidado presente. Tudo nele era feito de forma suave,
com gestos, frases e expressões de um homem
habituado a inúmeros serões de conversas da treta.
Apesar de me pôr à vontade, não forçava a intimidade,
estando implícito em tudo o que fazia que me tratava
como uma visita, como alguém que devia ser recebido
com gentileza e cordialidade, mas não mais do que isso.
Após meia hora de conversa educada e polida sobre
variedades de brandy e a vida nos Açores, chegou Herr
Hector e, dez minutos depois, um casal de açorianos
nativos (o Dr. e a Dra. Fagundes, professores
universitários). Seguiram-se as apresentações e quase
uma hora de folhados de queijo, frutos secos, azeitonas,
patés, canapés à base de peixe e a típica conversa pára-
arranca destes jantares, igual aqui como em Lisboa,
com a excepção dos sotaques e da relativa exuberância
das personagens envolvidas.
Dispensarei já as personagens secundárias. Os
Fagundes pertencem ao tipo literário do professor de
aldeia. Crêem, de forma quase violenta, que pertencem
aos escolhidos, sendo a sua missão a defesa da alta
cultura numa terra de bárbaros. Acusam quase todos os
açorianos de filistinismo e emocionam-se muito sempre
que enunciam as falhas culturais da ilha, ofendendo-se
particularmente com os stocks reduzidos e mal
seleccionados das livrarias. Idealizam Lisboa de forma
ternurenta, imaginando que em cada casa se lê Proust,
se discute Filosofia e se trauteia Beethoven, enquanto
se prepara pato confitado com puré de ameixas. Tentam
ser espirituosos e cosmopolitas, o que os denuncia como
provincianos e aborrecidos. Parece-me também que são
incapazes de ler um livro sem informar todos os que os
rodeiam da sua ocupação com tão nobre tarefa. Talvez
exagere. O marido ainda contou uma piada semi-
obscena com um pingo de humor (embora a mulher o
tenha fulminado com um olhar de censura e se tenha
virado para nós com a angústia de Eva dois minutos
antes da expulsão do paraíso).
Herr Hector esteve soberbo. Salgou a comida, riu-se
de forma violenta, bebeu e comeu em abundância. E
falou. Falou das baleias, das correntes marítimas e do
sistema reprodutivo das estrelas-do-mar. Nada como
ouvir alguém conversar sobre o que sabe e gosta.
Quando tentou participar nos temas mais banais, como
a vida nos Açores, os costumes culturais dos povos ou a
necessidade de melancolia para a criação da grande
obra, limitou-se a enunciar lugares-comuns com um
tom, não sei se conseguirás perceber, de quase má-
criação. Talvez estivesse a tentar ser irónico, talvez lhe
escapasse toda a entoação da língua portuguesa ou
talvez estivesse apenas aborrecido. A mim divertiu-me
muito ver os Fagundes reagir aos seus comentários.
A anfitriã mostrou verdadeiro gosto no fluir da
conversa mas pouca vontade de participar, excepto se
para discutir os pratos ou corrigir qualquer referência
aos Açores (como a localização de uma fábrica de chá).
Encadeou os diferentes pratos com subtileza, fazendo-
nos passar das entradas para uma soberba sopa de
peixe, e desta para medalhões de porco preto, como
quem folheia páginas de um livro. Pode ser o efeito de
contraste entre os meus dotes culinários e os de uma
verdadeira dona de casa, mas foi uma das refeições
mais saborosas que já degustei. A sopa tinha a textura
perfeita e sabia à ideia platónica de peixe, enquanto o
porco não só estava no ponto em que a carne é tão
suculenta que quase se transforma em alma, como
vinha acompanhado de umas batatas a murro e de um
esparregado merecedores, por si só, de uma
constelação Michelin.
O Dr. Viana revelou-se quase sempre um anfitrião
exímio, embora um pouco distante. Geria os temas e as
participações dos convidados como um pivot de
telejornal. Procurava mais ouvir do que falar, embora
não se coibisse de contar anedotas e historietas sempre
que a conversa atravessava algum terreno mais árido.
Eu estava admirado com a forma como ele apreciava
estar ali e ao mesmo tempo não estar, um actor numa
peça. Até que Hector falou na Croácia.
Acho que foi a propósito dos heróis históricos que
alegadamente nasceram em vários locais. Hector
acrescentou o exemplo de Marco Polo (não me lembro
de quem foram os anteriores), que nasceu em Itália e na
Croácia, na ilha de Korcula. Eu confirmei, explicando
que já lá tinha estado e que a pequena ilha se
aproveitava para fins turísticos de ter sido o berço de
Marco Polo.
Quando o médico se apercebeu de que eu visitara a
Croácia várias vezes, começou a comportar-se como se
fosse outra pessoa. A patine social, o anfitrião calmo e
distanciado, o actor no palco, desapareceram. Surgiu
um homem com um interesse voraz. A conversa tornou-
se um diálogo e, após dez minutos, um interrogatório. O
Dr. Viana parecia querer saber tudo sobre a Croácia,
como se planeasse ir para lá viver. Fez não só perguntas
óbvias como algumas inesperadas: que tipo de pão se
come lá, como são os condutores, se eu havia utilizado
os correios, etc.
Numa ou noutra resposta que dei, os Fagundes viram
uma hipótese de fazer um comentário culto e
sofisticado, mas o anfitrião interrompeu-os de imediato,
sem a suavidade que havia demonstrado, posso mesmo
dizer que o fez com rudez.
Não sei quanto tempo durou o interrogatório sobre a
Croácia, mas quando terminou já tínhamos as chávenas
de café vazias. Havia uma certa estupefacção no rosto
de todos. Fui eu quem tentou clarificar as coisas:
– Mas porque lhe interessa tanto a Croácia?
Ele respondeu que era porque o seu filho ia lá passar
uns tempos. Fiquei de imediato curioso mas, antes que
tivesse tempo de perguntar fosse o que fosse, o médico
retomou os seus deveres de anfitrião e perguntou a
Herr Hector se tinha visto algum cetáceo nas suas
últimas saídas ao mar. O alemão riu-se muito (não
percebi porquê) e voltou a falar de cachalotes, golfinhos
roazes, épocas de acasalamento e outras coisas assim.
Quando me despedia do Dr. Viana, este perguntou-me
se eu havia viajado muito e mostrou vontade de
conversar mais comigo sobre as minhas viagens.
Explicou que sempre tivera muito interesse nas
aventuras e desventuras dos viajantes, e que esse
interesse aumentara ainda mais desde que o filho
decidira fazer de Marco Polo. Eu mostrei
disponibilidade, agradeci o jantar e parti de lanterna na
mão, de regresso ao meu palácio de humidade.
E foi isto o jantar. Apesar do meu desejo de solidão,
este mergulho ocasional nas conversas de salão não
deixa de me entreter um pouco.

Como sempre, espero que a vida te eleve em triunfo


aos ombros e que encontres sempre um lugar para
repousar.
XII

Querido amigo,

Vejo que estás mais interessado no que aconteceu do


que no que está a acontecer. Talvez porque te pareça
que esta minha vida de quase-eremita, este meu exílio
açoriano, esta minha experiência epistolar, esta minha
busca de redenção seja apenas mais um erro, mais um
dos muitos que cometi desde que aconteceu aquilo-que-
aconteceu. E o teu medo é que seja o erro definitivo, o
último prego no caixão proverbial, a última gota no
proverbial copo, o último copo de que, no dia seguinte,
com a boca seca e a mente enrolada em arame farpado,
nos lembramos ter bebido antes de tudo se tornar
confuso e etéreo.
Mas estás enganado. Não falo de aquilo-que-
aconteceu porque não quero. Porque durante muito
tempo, talvez demasiado, não fiz outra coisa, mesmo
que em silêncio. Porque houve uma altura em que
acreditava que aquilo-que-aconteceu abrira um vazio
em mim, um buraco negro que, como nos filmes de
ficção científica, sugava tudo para o seu vórtice. E cada
pensamento, cada gesto, cada desejo, era roubado ao
presente onde eu os criara, onde eu desejava que
florescessem e cobrissem de verde o espaço árido dos
meus dias, para ser levado para o passado, para ser
aspirado para o buraco negro. Toda a minha mente era
um boomerang. Por mais força e esperança que eu
colocasse no seu lançamento, retornava a aquilo-que-
aconteceu. E aquilo-que-aconteceu era o princípio e o
fim de tudo.
Quase todas as formas de consolo me foram
oferecidas. Mas, por mais ou menos ternura, por mais
ou menos sentido que fizessem, mesmo que carregadas
de sangue e lágrimas, mesmo que abençoadas com
amor e amizade, mesmo que vestidas de pele e calor,
mesmo que oferecidas por anjos ou santos, a verdade é
que eu estava inconsolável: fora da possibilidade de
consolo. Como se aquilo-que-aconteceu me tivesse
expulsado do paraíso e não me restasse mais do que
gerar dois filhos fratricidas.
Um padre, um psiquiatra, um psicanalista falariam de
falta de fé, desequilíbrio de serotonina, luto incompleto,
e todos teriam razão. E, quando passou o tempo que as
pessoas achavam o necessário para o luto de aquilo-
que-aconteceu, o tempo que era socialmente
considerado sensato para superar o sucedido, a
paciência começou a esgotar-se. O que me irritou.
Quem sabe o que este ou aquele acontecimento custam
ao outro? Quem pode afirmar qual é a dor justa, a dor
adequada, a dor suficiente para determinada ferida?
Quem é capaz de, olhando para a pele, saber quão
profundo é o corte? E, por todo o lado: «Não achas que
já chega?», «Não achas que já está na altura de?», «Não
seria melhor que?». E quando me recusava a responder
vinham, em catadupa, num jorro, em ebulição, com a
velocidade e irritação de um pai que, após explicar mil
vezes a uma criança os motivos pelos quais ela devia ter
o quarto arrumado, finalmente se passa e oferece a
justificação inapelável «porque eu mandei!», com toda a
superioridade moral de quem só quer ajudar e vê
dificuldades inexplicáveis colocadas no seu caminho,
assim chegavam as análises críticas às minhas acções.
Todos percebiam melhor que eu o meu comportamento.
Todos tinham um acesso privilegiado aos meus motivos
inconscientes. «Tu só estás assim porque», e depois
seguiam-se comentários à minha personalidade, à forma
como eu supostamente interpretara aquilo-que-
aconteceu, ao meu medo de viver, aos meus
mecanismos de defesa, à minha raiva por resolver, ao
meu masoquismo, ao meu sadismo, ao meu narcisismo e
egoísmo. E conselhos. Inúmeros, criativos, modestos ou
ambiciosos, abstractos ou concretos.
Não quero que mo digas, já to pedi, mas mesmo assim
não consigo deixar de me divertir ao imaginar o que
pensarão de mim agora, que historietas, que case
studies farão de mim, como em certos jantares dirão
«eu tinha um amigo a quem sucedeu aquilo-que-
aconteceu…».
E como conseguiria eu explicar o que sentia, o que
ainda sinto com frequência? Não é que a vida me
tivesse ficado vedada. Era capaz de apreciar a beleza
das coisas, de entender o humor ou a tristeza, de sentir
a vida a pulsar no mundo e em mim. Mas um pulsar
ténue. Um pouco como se tudo se passasse num aquário
no qual eu enfiava os dedos, e, apesar de sentir a água
morna, de algumas vezes até experimentar o toque leve
e esquivo de um peixe, era uma pausa momentânea, um
pequeno mergulho num outro habitat, no qual eu nunca
poderia sobreviver.
Via a vida por detrás de um véu.
Se vim para aqui retirar o véu ou esconder-me
definitivamente por detrás dele, ainda não sou capaz de
dizer.

Um abraço
XIV

Querido amigo,

Um lutador luta, um pintor pinta, o sol arde, uma flor


floresce, a vida… continua. Sem mais notícias dos Viana
depois do famoso jantar. A chuva instalou-se de vez e a
sua intensidade é tal que deixei o meu jogging matinal.
Não te preocupes porque não abdiquei dos exercícios
matutinos, substituindo a corrida por uma série de
flexões, abdominais e, o que te espantará, saltos à
corda. Exactamente. Comprei uma corda por impulso,
quando estive na cidade. Demorei uns dias a aprender,
mas já consigo saltar com perícia suficiente para se
ouvir o tchac tchac tchac da corda a bater no chão.
Ainda estou longe de um boxeur ou de uma miúda de
onze anos, mas chegarei lá.
Tenho lido muito na poltrona de veludo.
E tenho sentido algumas dificuldades com a escrita.
Começo cartas que nunca acabo. Apesar do entusiasmo
com que abordo a tarefa, em poucos minutos fico
descontente com a minha prosa, ou acho-me sem ideias
ou considero que a argumentação que uso é
desajustada ao destinatário da carta. Ando também, e já
deves ter reparado, com uma tendência perigosa para a
grandiloquência e para o sentimentalismo. Como se
cada parágrafo que escrevesse tivesse obrigações
messiânicas, como curar leprosos e dar visão aos cegos.
Sinto que, não só estou longe de conseguir sussurrar,
como tudo o que escrevo é gritado em histeria. Vejo-me
convertido numa adolescente vienense do virar do
século, mas não há Freud que me acuda.
Quanto mais calma e regulada é a minha vida mais
parece que as cartas saem em chamas, com todos os
vícios da megalomania: dispersão, sentimentalismo e
arrogância. Escrevo às pessoas como se as quisesse
agarrar pelos colarinhos e gritar vivam, o que é horrível
e indelicado; se alguém me agarrasse pelos colarinhos e
dissesse uma coisa dessas, seria motivo suficiente para
perder a cabeça. Por vezes ainda é pior e parece que
estou a apontar o dedo e a fazer pequenos movimentos
de cabeça, como um professor desiludido. Que alguém
me dê um estalo, como os homens nos filmes dão às
mulheres histéricas para as acalmar!
E, no entanto, divirto-me muito gritando, esperneando
e apontando dedos. Há uma parte minha que tira algo
disso, há um bombeiro fascinado pelas chamas que
adora que a sirene esteja sempre a tocar, que quer viver
em urgência.
E porque te digo tudo isto? Porque preciso de mostrar
as minhas pústulas a alguém, e tu és o escolhido. E não
te vou só mostrar pústulas como hemorróidas, cáries,
infecções, arranhões, nódoas negras e tudo o mais. De
vez em quando colocarei nestas cartas um pequeno
número de circo como recompensa, farei o pino numa
só mão, manterei quatro laranjas no ar, serei serrado ao
meio por uma assistente de seios fartos (não te posso
revelar como). Espero que te agrade.
Outras notícias: limpar e cuidar da casa ocupa-me
muito tempo. A humidade é rainha e senhora desta ilha,
mas não a deixarei estabelecer uma colónia na minha
casa. Nem vou mencionar a facilidade com que a
banheira velha fica manchada.
Não consegui esperar por melhor tempo para ouvir as
sailor songs. Às vezes, talvez por estar a ler muito sobre
baleias e baleeiros, naufrágios e marinheiros, sinto que
esta casa é um barco no meio da tempestade. Como
comandante, tento manter-me calmo apesar da
violência com que a chuva bate contra a janela. Se
tivermos de nos afundar, que seja.
Mas não te assustes, ainda estou longe de ter uma
perna de pau, uma pala no olho e um chapéu. Só no
outro dia aprendi qual é a proa e qual a ré, e a
diferença entre bombordo e estibordo. E se me torno
fastidioso com as referências náuticas, esse é um
problema teu. Com amizade o resolverás.

Despeço-me com o desejo de que as pessoas que se


sentam à tua frente no cinema sejam sempre de baixa
estatura.
XV

Querido amigo,

Apesar de toda a histeria dos deuses, da forma como


podem fazer suceder a crueldade à ternura sem
qualquer intervalo, ou como alternam catástrofes,
milagres e indiferença absoluta, existem sempre certos
capítulos da vida, totalizando alguns dias, com sorte
algumas semanas, em que eles nos abençoam e
podemos sentir o seu hálito doce em todas as coisas.
Eu tinha dezoito anos e o Verão estava no começo.
Lesionei-me num jogo de futebol à beira-mar, realizado
no primeiro dia de praia (fácil de imaginar, a areia lisa
da maré que descia, o ruído das ondas, as vozes das
crianças gritando ao contacto com a água, um grupo de
rapazes-homens a correr e arfar, oscilando entre o
abandono infantil ao jogo e a consciência das
observadoras femininas que os fazia endireitarem
demasiado as costas em sinal de virilidade). Regressei
coxo e sorridente com dores na perna. Três dias depois
começava a fisioterapia.
Como era época de exames, e eu queria perder o
mínimo tempo possível, escolhi a primeira hora de
sessão, oito da manhã. Nos primeiros três dias
amaldiçoei essa escolha e o meu eu que se levantava
para desligar o despertador no topo do armário (se o
tivesse ao lado da cama ter-me-ia limitado a desligá-lo e
continuado a dormir) desejou poder viajar no tempo e
agredir o meu eu que se havia comprometido com tal
horário. Mas lá tomava um duche rápido e apanhava o
autocarro para a clínica.
Por motivos de política de saúde, seguros e coisas
assim fui parar a uma clínica num apartamento antigo
no centro de Lisboa cuja grande maioria dos utentes era
idosa. Para minha grande surpresa, eles não tinham
problemas por estar acordados tão cedo (soube depois
que muitos acordavam horas antes e não conseguiam
voltar a dormir) e, quando eu chegava às oito e pouco,
ainda com desejos de vingança contra o meu eu do
passado, eles já enchiam as várias salas em conversa
animada como se o dia estivesse a meio. A primeira
parte do tratamento era o aquecimento dos músculos,
sem dúvida a actividade mais demorada de todo o
processo. A clínica tinha meia dúzia de lâmpadas para
dúzias de enfermos, pelo que havia que esperar por
uma vaga. Senti uma certa ironia na situação: querendo
poupar tempo, eu via-me a desperdiçá-lo ouvindo as
histórias de vida dos velhos e velhas, as suas críticas à
programação televisiva da noite anterior e bisbilhotices
variadas sobre outros pacientes e terapeutas.
Nisto tudo talvez houvesse a mão dos deuses.
Expliquei o meu problema à terapeuta, que se chamava
Sandra. Encontrámos uma solução. Se eu não me
importasse, sugeriu ela, era possível substituir o
aquecimento com as lâmpadas por uma caminhada a pé,
em ritmo lento, até à clínica. Ainda hesitei em andar
quatro a cinco quilómetros às oito da manhã (já me
custava tanto vir de autocarro!), mas acabei por aceitar.
Para as caminhadas gravei uma cassete (não havia
leitores de MP3 na altura, aliás, mesmo os walkmans
eram coisa nova), a qual denominei de «alvorada» com
um misto de poesia e piada. Ao quarto dia levantei-me
ainda mais cedo, bebi um café com leite e saí para a
rua. Após dez minutos, quando atravessava um jardim
já me sentia totalmente desperto. O dia nascia radioso,
luminoso, efervescente, eufórico. Ou pelo menos assim
me parecia. Como tinha de andar devagar havia tempo
para observar tudo, os milhentos encontros da luz solar
com o mundo, como ela se reflectia de diferentes
formas no chão, nas janelas, nas paredes, nas folhas,
nos telhados, na poça de água junto a um bebedouro,
nos azulejos de um mural, nas pétalas das flores, nas
penas dos patos.
Com o encadeamento dos dias, o meu gozo nestas
caminhadas matinais não só não diminuiu como
floresceu contagiando outras alturas do dia, outros
cenários, outros entusiasmos. Foi, e talvez aches que
esta formulação é bafienta como um sótão cheio de
tralha, mas não me ocorre outra, o despertar do meu
sentido estético. E, continuando com chavões
académicos e new age (processa-me se desejares!), foi a
tomada de consciência da imensidão do mundo, da
capacidade da beleza para deixar a sua marca em
qualquer paisagem, por vezes uma marca pequena e
tímida, como uma flor que cresceu à beira da auto-
estrada, mas a maior parte do tempo uma marca tão
hipnótica e inescapável como as cicatrizes que os chulos
de Nápoles faziam na cara das suas prostitutas.
Como dizia o outro: um homem é um homem e as suas
circunstâncias. E as minhas, na altura, eram as
melhores. Namorava com uma filha (única) de
milionários por quem estava apaixonado daquela forma
generosa e estúpida com que o amor abençoa os
adolescentes. Quiseram os deuses que os pais dela
estivessem de viagem aos Estados Unidos (tinham
amigos em Park Avenue!!). Eu disse aos meus que iria
passar a época de exames em casa de um amigo e
mudei-me para a vivenda de três andares onde ela
morava. Foi a primeira vez que vivi com uma mulher.
Fodíamos, falávamos, falávamos enquanto fodiamos e
falávamos sobre foder. Mas também estudávamos,
embora fosse difícil fazê-lo na presença um do outro,
pelo que por vezes ela ia ter com as amigas a um café e
eu ficava em casa a estudar. Mais do que resolver
equações de segundo grau, enumerar os vários
movimentos estéticos que influenciaram Fernando
Pessoa ou aprender as características dos protozoários,
gastava o meu tempo de solidão naquela casa imensa a
fazer turismo de amor, tocando, cheirando e
contemplando cremes, batons e roupa, abrindo gavetas,
lendo lombadas de livros, experimentando anéis e
pulseiras, olhando para fotografias.
Como já referi, fodíamos como coelhos. Íamos pondo
bandeiras imaginárias nos locais onde havíamos feito
amor. Quando toda a casa estava tomada, inventávamos
novos desafios e posições.
Ela era uma mulher amazona: morena, esguia,
selvagem e doce. Mais do que bonita, feérica, se me
permites palavra tão cristalina. Como é natural, eu
sentia-me incrivelmente abençoado, e quando a beijava,
quando a tinha nos meus braços, quando ondulava
dentro dela achava-me o mais feliz dos homens; e
apesar de ser inexplicável para mim tal arroubo de
fortuna também sentia que era exactamente o que eu
merecia, que se num prato da balança estivessem todos
os golpes e falhanços, todas as desilusões e pisadelas na
merda, o equilíbrio só podia ser conseguido colocando o
corpo dela no outro prato, esse corpo de flor carnívora
com membros dourados.
Perdi-me um pouco, o que é mais do que
compreensível em tão labiríntica temática. Portanto,
comecei a ir a pé de casa dela até à fisioterapia,
anulando a necessidade de esperar pelas lâmpadas que
aqueciam os músculos. Assim, entrava directamente
para o ultra-som e com isso poupava cerca de quarenta
minutos. No entanto, entre o ultra-som e a fisioterapia
com a terapeuta Sandra, ainda havia que esperar num
corredor castanho e deprimente, ao lado de três ou
quatro velhos. Os deuses não dormiam e quando me
queixei à minha namorada dessa espera ela sugeriu que
aproveitasse esse tempo para estudar. Eu recusei e ela,
com uma expressão de eureka no rosto, levantou-se e
foi até à estante (nua, lembro-me, como se tivesse sido
há meia hora, da sua nudez iluminada pelo sol da tarde
e de como ela se pôs à procura nas prateleiras – e
haverá alguma coisa mais sublime do que ver a mulher
amada, com quem fizemos amor pouco antes, procurar
nua por um livro?). Estendeu-me um livro de poesia:
Song of Myself do Walt Whitman.
Começa assim: «I celebrate myself and sing myself», e
continua no mesmo tom. E no dia seguinte, depois de
mais uma caminhada luminosa com auscultadores, e
quinze minutos de ultra-som, comecei a ler o meu
primeiro livro de poesia naquele corredor castanho e
deprimente.
Com o passar do tempo e das páginas, o corredor
manteve-se castanho mas deixou de ser deprimente. As
listas vastas da euforia interminável de Whitman
ressoavam na minha mente onde também luzia, mesmo
quando fechava os olhos, toda a claridade que eu sentia
colher nas minhas caminhadas. Tudo era maravilhoso.
Eu celebrava-me e cantava-me. E festejava o corredor
castanho e as cadeiras com o estofo roto e as orelhas do
velho ao lado de mim que pareciam ter crescido demais.
E quando acabava a fisioterapia saía para a rua como
quem entra no paraíso e voltava a pé para casa, onde
ela estava à minha espera.
Por essa altura, eu olhava, via e guardava todas estas
coisas no meu coração. Os prédios pareciam-me belos,
mas também as ruas, o céu e os cartazes publicitários.
E celebrava a cor verde e a azul e celebrava o frio do
metal tocando gentilmente nos candeeiros e a calçada
dando passos lentos; e achava que o mundo era
perfeito, que Lisboa era um poema, que a Avenida da
Liberdade era um verso, que tudo era poesia. E
apetecia-me dizer, como o único poeta a quem achara
graça até então (estudado nas salas de pé alto do meu
liceu): Oh, sim ena ena viva hela oh!
Às vezes apetecia-me chorar de felicidade.
Adolescente que era, pensei ter inventado a roda
quando descobri que se deve olhar o mundo como o faz
um cego nos primeiros minutos em que, após milagre
ou cirurgia, recupera a visão. Olhando dessa forma
descobre-se beleza nas telhas partidas de certos
telhados, em folhas de jornal presas num arbusto, até
em poças de mijo de cão no meio de uma estrada com
buracos.
Fosse da poesia, fosse da luz da manhã, fosse de ter
dezoito anos e estar apaixonado, fosse da música, fosse
do Verão… eu estava rejubilante. Eu era invencível e
imperturbável. Andava pelas ruas sorrindo para as
pessoas, sentindo que bastava que elas me pedissem
para que eu lhes concedesse milagres. Como Jesus,
cuspiria na terra, amassá-la-ia e colocá-la-ia nos olhos
das pessoas e faria com que elas vissem. Vissem!
Achava que, depois de descobrir a beleza intensa das
coisas, seria impossível voltar atrás, seria impossível
amaldiçoar o mundo. Não que não houvesse, mesmo
então, rachas e falhas e sacos de lixo à porta do meu
palácio. A alegria é líquida e quando a bebemos de um
só trago deixa um gosto levemente metálico de
incompletude. O momento mais alto de uma festa é
seguido pela melancolia de saber que esse instante já
passou.
Mesmo inocente e optimista, mesmo cego de amor e
inundado de Verão, eu sabia que aquele estado não
poderia durar para sempre.
Já alguma vez viste na televisão aqueles concursos
onde o concorrente entra para uma espécie de cabine
telefónica e tem um minuto para apanhar todas as notas
que conseguir? As notas são postas a voar por
ventoinhas que geram turbilhões de ar dentro da
cabine. Os pobres coitados vêem-se rodeados de
milhares de notas mas nunca conseguem apanhar mais
do que algumas dezenas. É o excesso que os despista. E
foi assim comigo na altura. Se eu soubesse quão
precários e difíceis de repetir eram aqueles dias, talvez
os tivesse estimado melhor. Hoje, recordo-me desse
tempo como se tivesse sido um longo sonho e consigo
evocar apenas meia dúzia de ocasiões nítidas, como a
da estante ou um certo banho de imersão onde
adormecemos os dois e poucas outras.
Ainda chove. Talvez chova para sempre, talvez este
Inverno nunca acabe e o mar suba e inunde tudo e
engula centímetro a centímetro a totalidade dos prédios
do mundo e ensope página a página todos os livros. Ou
talvez não.
Agradeço-te mais uma vez tudo o que tens feito por
mim. Como és um tipo inteligente, percebes que te vou
pedir outro favor. Fiquei triste por saber da morte da
professora Helena. Ela ensinou-me a escrever e a ler e
ainda me ensinou outras coisas que não consigo resumir
num verbo. Por favor, deposita um ramo de flores na sua
campa em meu nome. Uma coisa bonita. E nada de
flores mortiças ou já em declínio. Escolhe aquelas que
desabrocharam há pouco e cheiram a Primavera.
E vê se me descobres a morada da filha para eu lhe
escrever uma carta.
Por tudo isto, um dia, um desconhecido entregar-te-á
as chaves de Versalhes.
XVI

Ex.ma filha da professora Helena,

Eu fui uma das centenas de crianças a quem a sua


mãe ensinou a ler, escrever e contar. Na altura, a
professora Helena era uma mulher nova e, para os
meus olhos de 6 anos de idade, intensamente bela. Era,
também, uma docente extraordinária. Não só explicava
tudo de forma clara e simples, como sabia o que só os
verdadeiros mestres sabem: que para bem ensinar é
preciso aprender tudo de novo. Quando dizíamos «p
mais a… pá» havia no seu pá todo o entusiasmo da
descoberta que é fundamental à aprendizagem. Como
se também fosse para ela a primeira vez que p e a
equivaliam a pá. E o mesmo com dois mais dois serem
quatro. Mesmo quando se limitava a enunciar
conhecimentos, fazia-o com imensa alegria,
acrescentando um silencioso não é fantástico! depois de
cada afirmação. A Terra é redonda (não é fantástico?).
Portugal é banhado pelo oceano Atlântico (não é
fantástico?). O Sol é uma estrela (espantoso!). E todos
nos sentíamos contagiados e nos apercebíamos de que,
sim, era fantástico que dois e dois fossem quatro, que a
Terra fosse redonda e que o Sol fosse uma estrela.
Não só a sua mãe fazia tudo isto de forma exímia
como geria diariamente as crises, urgências, dúvidas,
medos, angústias, euforias, cansaços e sonhos de vinte
e tantas crianças. Não sei se ensinam aos professores o
que fazer quando uma criança se descuida na cadeira,
como reagir com os que chegam todas as manhãs a
chorar porque não querem ir para a escola, como lidar
com as ondas dos tsunamis familiares (divórcios, lutas,
irmãos mais novos, mais velhos…). Mas sei que a sua
mãe, a professora Helena, parecia saber exactamente o
que fazer em todas as situações. Como se ela já
esperasse que o tinteiro da Maria fosse rebentar, que o
Pedro escorregasse e abrisse o queixo contra o banco,
que a Teresa chorasse sem motivo aparente, que o João
se cortasse no dedo com a tesoura, que a Carlota
tivesse um ataque de asma, que o Diogo deitasse
sangue do nariz.
Eu na altura era um dos rapazes mais altos da aula.
Não sei porquê, deu-me para torturar o Martim, o
miúdo mais enfezado da turma, que choramingava com
frequência e uma vez por mês saía a correr da aula
deixando uma pequena poça de urina aos pés da sua
cadeira (nota com explicação causal de base
psicológica: acho que os pais dele se estavam a
divorciar, ou algo assim). Sempre que eu agarrava nos
cabelos dele e o imobilizava, os outros miúdos riam-se e
eu sentia-me bem. Sabe como são as crianças.
Um dia, no intervalo da manhã, ainda com o açúcar
dos bolos na mão (custavam quinze escudos cada),
agarrei o Martim pelo cabelo e arrastei-o até debaixo do
terraço. Ele fazia um esforço enorme para não chorar e
dizia-me: «Larga-me! Larga-me!» ou qualquer coisa
assim. À minha volta juntaram-se alguns rapazes e duas
ou três raparigas. Eu devia ter ouvido os risos cessar,
mas estava tão concentrado no sofrimento do Martim
que só quando senti um violento puxão nos cabelos me
apercebi de que a professora Helena tinha chegado.
Com a mão direita segurando-me os cabelos com
força, virou a minha cara para a dela e falou-me com
raiva, e sim, raiva é a palavra exacta. Não foi com
pedagogia, distanciamento, ternura ou qualquer outro
dos sentimentos que costumavam colorir as suas
palavras. Foi com raiva. E disse: «Quem puxa os cabelos
aos mais fracos, acaba com os mais fortes a puxarem-
lhe o cabelo.» Depois largou-me, e numa transformação
tão veloz quanto espantosa pegou no Martim (que
entretanto, sentindo-se vingado e aliviado, começara
finalmente a chorar) e levou-o ao colo com uma ternura
divina. Sempre que me lembro dessa imagem penso
num bombeiro salvando um recém-nascido de um fogo.
Enquanto ela se afastava, e dizia ao Martim não sei que
palavras mágicas de consolo, eu desatei a chorar.
Os outros miúdos dispersaram pensando
provavelmente que eu chorava da dor dos cabelos
puxados. Mas não era por causa disso que tinha os
olhos com lágrimas. Chorava de arrependimento e
chorava de inveja. É que, de certa forma, eu estava
apaixonado pela sua mãe. Nada mais desejava do que o
sorriso aprovador dela. Daí que, mais do que o puxão de
cabelos, fora a reprimenda que me magoara, a raiva nas
suas palavras, a descoberta de que caíra fora da sua
graça. E a inveja de, por minha causa, ver o
choramingas do Martim arrebatado pelos seus braços.
Gostava de lhe dizer que desde então respeitei sempre
os mais fracos e estive ciente das injustiças do mundo e
disposto a combatê-las. Não é verdade. Devo ter batido
ainda algumas vezes no Martim. Mas, por certo, não
tantas como fazia dantes. E nunca com o mesmo
abandono.
Foi também uma das poucas vezes em que vi uma
mulher bonita escolher o homem mais fraco. Às vezes
acho que toda a civilização se baseia na possibilidade
dessa escolha.
Desde que saí daquela escola não tornei a ver a sua
mãe, embora desconfie de que a vislumbrei por
segundos num autocarro. A sua mãe andava de
autocarro? Lamento agora nunca a ter procurado,
nunca ter feito uma visita. Como parca compensação
escrevo-lhe esta modesta carta. Nada mais é do que
uma vénia à memória da sua extraordinária mãe.

Agradecido e comovido
XVII

Amigo,

O meu cabelo vai crescendo devagar. Agora pareço


um fósforo e estou viciado em passar a palma da mão
pelos cabelos sentindo-os picarem-me a pele. Continuo
a usar as minhas roupas de monge, que me parecem
cada vez mais confortáveis. A chuva amainou
ligeiramente e voltei a correr, embora chegue a casa
sempre um pouco ensopado, o que não me impede de
saltar uns quinze minutos à corda, sendo que já o devo
fazer melhor do que uma rapariga de treze anos mas
ainda estou longe de um boxeur. Vou à cidade duas
vezes por semana encantado com o verde obsceno que
tinge esta ilha. Abasteço-me de produtos de limpeza
doméstica, comida, papel, envelopes e acendalhas.
Já ouvi várias vezes todos os discos que comprei e já
despachei metade dos livros que me enviaste. Mas não
te assustes sem motivo. Não te vou, para já, fazer mais
encomendas, uma vez que Herr Hector me emprestou
uma série de livros. Espero que estejas curioso por
saber em que circunstâncias.
Estava eu na praia a fazer os sprints finais na areia
antes de regressar a casa quando, vestido de fato de
mergulho, apareceu o alemão. Falámos um pouco e ele
convidou-me para passar por sua casa ao fim do dia.
Assim fiz.
Cedo abandonei qualquer estereótipo sobre a
arrumação e organização dos alemães. A casa é um
caos, mas um caos delicioso. Bem mais mobilada que a
minha, deu-me a impressão de que ele procurava criar
um museu do kitch acumulando peças de todos os
períodos, estilos e materiais. Assim, vês mesas de
acrílico ao lado de estantes de metal e andas por
tapetes sintéticos passando por secretárias de mogno
iluminadas com candeeiros à anos vinte. E tudo com um
ar vivido, com pernas partidas toscamente coladas, com
lascas, mossas e arranhões à mostra. E há livros, muitos
volumes. Livros enormes sobre marés e peixes, sobre
aspectos recônditos da biologia marinha, sobre a
história da pesca, sobre como operar um sonar. Mas
também romances, pequenas colectâneas de contos em
alemão, diários de exploradores, e clássicos como A Ilha
do Tesouro e (surpresa das surpresas) os livros do
Sandokan.
Vi também algum equipamento de mergulho: botijas
de oxigénio, fatos, barbatanas e aparelhometros cuja
função me escapa. E caixotes, uma série de caixotes de
cartão aqui e ali, como se ele se tivesse acabado de
mudar. Mas o que mais me surpreendeu foi um
papagaio de cores garridas que gritou «schnell!» aos
meus ouvidos.
Fomos para a cozinha conversar enquanto bebíamos a
cerveja. O ambiente era semelhante ao resto da casa:
dezenas de garrafas vazias, pratos sujos e outros com
restos de comida cobertos com um guardanapo de
papel. Despachadas as formalidades da praxe, ele
perguntou-me qual era a verdadeira razão de eu ter
vindo para os Açores.
Dei-lhe a resposta que tenho dado a todos, e ele
desatou às gargalhadas levando o papagaio a grande
agitação (o bicho chama-se Warum). Hector olhou-me
nos olhos e reparei pela primeira vez que os dele eram
mesmo claros, o que, contrastando com o rosto enorme
e a barba farta, lhe dava um ar de loucura. Disse-me
que todos os que por ali moravam tinham uma agenda
escondida, tinham os seus motivos escuros e húmidos
para o exílio.
– Nesse caso, quais são os teus? – perguntei-lhe.
– Vim para aqui para encontrar um tesouro! – afirmou,
com tanta convicção que, não fosse a gargalhada
sonora, eu poderia mesmo ter acreditado.
– Não… Foi porque matei uma pessoa na Alemanha –
brincou ele. Apesar do sorriso sarcástico que se seguiu
a esta afirmação, senti um terror profundo, como
naquelas histórias em que um camponês encontra o
diabo e com ele tem um diálogo banal.
Hector falou então do seu fascínio pelo mar e tudo o
que nele e dele vive, procurando justificar assim a sua
presença naquela falésia perdida do mundo. O efeito da
cerveja e o magnetismo que o alemão conseguia gerar
sempre que falava do que amava, relaxaram-me ao
ponto de sentir que lhe podia avançar uma explicação
mais sincera. Disse-lhe que em Lisboa tinha acontecido
uma coisa que havia mudado a minha vida, algo
cataclítico e radical que, após algum tempo,
impossibilitara uma vida sã e me obrigara a vir para os
Açores, decisão da qual não me arrependia.
A certa altura da conversa, ele convidou-me a levar
uns livros emprestados. Ao folhear as estantes e pilhas
espalhadas pela sala, dei de caras com Beached Whales,
um livro sobre o fenómeno das baleias que vão dar às
praias e ficam presas na areia. Ele reparou no interesse
com que folheava o livro e disse-me que já tinha
assistido a um episódio desses. Pedi-lhe para me contar.
– Quid prod quo – disse ele.
– O quê?
– Eu conto-te a história, que é de desilusão e
desespero. Mas tu também tens de me contar uma
história.
– De desilusão e desespero?
– Quid prod quo!
Aceitei a proposta e voltámos para a cozinha. Era
preciso mais álcool para soltar as línguas, para
fortalecer o espírito e enfrentar os demónios passados.
Quando andava na universidade, havia um professor
homossexual que todos os alunos adoravam, não só por
ser dos poucos que ignoravam as barreiras de currículo
e idade e os tratava como iguais, como pela sua paixão
pelo que ensinava e pela forma como procurava encher
tudo de interesse. No fim do ano, um grupo de alunos
organizou um campeonato de matraquilhos e o
professor cedeu a casa para o acontecimento. No
sábado à noite, quando já estávamos todos muito
bebidos, ouviu-se um estrondo e depois uma série de
ruídos horríveis. Corremos para ver o que era e
percebemos que vinham da arrecadação. A porta estava
trancada mas a natureza dos ruídos que vinham do
outro lado era tal que ninguém hesitou em a arrombar.
Mas não foi fácil. Quando finalmente conseguimos
entrar, já passara algum tempo em que não se ouvia
nada do outro lado. Oscilando devagar da esquerda
para a direita, da direita para a esquerda, estava o
corpo enforcado do professor. As horas e dias seguintes
foram terríveis.
Não deixou nenhum bilhete escrito, nenhuma carta de
despedida, nenhuma justificação. Suspeito que a
tragédia tivesse a ver com um dos alunos que agiu de
forma peculiar em todos aqueles dias e que, meses mais
tarde, quando lhe perguntei, me disse que a culpa era
dele embora se recusasse a explicar porquê. Talvez
fossem amantes, talvez o professor estivesse
apaixonado por ele e tivesse sido rejeitado. Não sei.
Mas a imagem do professor oscilando na corda, uma
imagem que, por muito horrível que fosse, não era
desprovida de beleza, assombrou-me durante algum
tempo.
E foi isto que, em bastantes mais palavras e de forma
menos linear, contei ao alemão. Os factos não foram
exactamente estes. O torneio ocorreu e o professor
suicidou-se, mas noutra altura e de outra maneira.
Contudo, sabes como o álcool me pode levar a querer
dar um tom melodramático às minhas histórias. Aliás,
melhor será dizer que o álcool estimula o pendor
natural que há em mim para o melodramatismo.
Ele, por sua vez, falou-me de um período que passou
na Austrália. Ao contrário de como faz nos Açores,
nessa altura os seus horários eram erráticos. Vivia
numa espécie de comuna composta por aventureiros,
meninos ricos e parasitas. Todos faziam surf, bebiam e
fodiam sempre que se proporcionava. Num dia de
alguma neblina, raro por aquelas partes, o tipo mais
madrugador acordou-os a todos aos gritos. A praia
estava cheia de baleias.
Em poucos minutos estavam todos a correr pelo areal
em direcção à visão mais surreal que Hector alguma vez
testemunhou. Dezenas de baleias piloto estavam
estendidas à beira-mar. Algumas pessoas já se
encontravam por lá, todas procurando fazer alguma
coisa mas meio perdidas sobre o quê. Hector assumiu
de imediato o comando e mandou que virassem todas as
baleias, para que ficassem de barriga para baixo, e se
certificassem de que os respiradores estavam limpos.
Depois havia que manter molhadas as que estavam mais
longe do mar, enquanto se ia puxando as outras para
água. O grupo de voluntários pôs-se às ordens de
Hector, o único biólogo marinho ali presente.
Ninguém se queixou de cansaço, ou protestou por
estar a carregar baldes e não a empurrar as baleias ou
a limpar os respiradores. Todos trabalharam
afincadamente, absorvidos pelo que estavam a fazer.
Dezenas de animais moribundos, um cheiro
nauseabundo, um dia excepcionalmente húmido e frio e
as pessoas sorriam como se a felicidade fosse aquilo.
Quando a primeira baleia, após alguns movimentos
tímidos, se pôs a nadar com a graça e o assombro que
lhe são característicos, todos se permitiram uns
segundos de pausa para irromper em aplausos e júbilo.
Alguns soltaram lágrimas. Logo retomaram o trabalho
com entusiasmo redobrado.
A operação durou mais de dez horas. Salvaram-se
dezanove baleias. Morreram vinte. Após se certificar de
que já não havia mais nada que pudesse ser feito,
Hector sentou-se no meio dos cadáveres. Estava
exausto. A noite já caíra e a luz das muitas fogueiras
entretanto acesas bruxuleava pelos corpos escuros dos
cetáceos como um filme projectado num ecrã. Os
salvadores estavam divididos. Alguns exultavam e
declaravam o dia um sucesso, sentindo-se vivos e
alegres. Outros eram incapazes de aceitar o enorme
número de vítimas que, após todo o esforço que haviam
feito, já não lhes pareciam animais desconhecidos, mas
seres familiares cuja perda devia ser chorada. Aos
poucos iam abandonando a praia. As toneladas de
mortandade que começavam a apodrecer na costa eram
um problema para outros resolverem.
Todos felicitavam Hector e lhe davam os parabéns. Ele
agradecia mas a sua postura impedia qualquer
camaradagem excessiva. Só após algumas horas, com a
lua alta, ficou finalmente só. As lágrimas começaram a
correr-lhe, céleres e quentes. Não era só em honra das
baleias mortas que chorava. Não era só pelos animais
magníficos que, apesar dos seus 5 a 6 metros e quase
três toneladas, se movem no mar como bailarinas num
palco. Era também porque sabia que acabara de viver o
momento mais belo de toda a sua vida.
Saí de casa de Hector perto das duas da manhã.
Debaixo do braço trouxe meia dúzia de livros, incluindo
o Beached Whales. Ziguezagueei em pernas de cerveja
em direcção à minha fortaleza com a alegria de quem se
sabe a caminho de uma nova amizade e com a
impressão de que a história de Hector era tão
adulterada quanto a minha. Mas se alterar os factos não
magoa ninguém e dá um pouco mais de vida ao ouvinte
crédulo, porque não contar a melhor história possível?
E assim corre a vida e gira o cosmos.

Desejando-te bem
XVIII

Queridos pais,

Estou perto de Florença a acampar com uns


americanos. Alugaram um Pão de Forma (aquelas
carrinhas Volkswagen dos anos 60) na Alemanha e estão
a atravessar a Europa. São cinco. Um casal, que dorme
na carrinha, e um trio dormindo numa tenda, dois
rapazes e uma rapariga com o feliz nome de Stella. São
quase todos estudantes de arte pelo que Florença é a
sua Jerusalém. Conheci-os no átrio de uma igreja em
Pisa quando uma chuva repentina nos tornou a todos
refugiados. Passámos essa tarde num café dessa cidade
cinzenta a conversar sobre viagens, estereótipos
culturais europeus e hambúrgueres. Adoptaram-me sem
hesitação.
O casal parece saído de um daqueles filmes de liceu, o
rei e a rainha do baile de finalistas. Até os seus nomes
soam melhor juntos: Dominic and Dalila. Ele estuda
Ciências Sociais e ela História de Arte. São os dois
loiros, altos e robustos. Exalam vitalidade e optimismo,
terminam as frases um do outro, olham-se com ternura
evidente e a sua piada recorrente é fingirem que ficam
muito chateados quando discutem o nome dos futuros
filhos. Do trio restante conheço mal os dois homens. O
Bobby é baixo e peludo com óculos redondos de
tartaruga. É o intelectual do grupo, quase sempre
segurando um livro de um teórico francês, excedendo
todos os outros na sua repulsa pelo provincianismo
americano e exaltação da cultura europeia e irritando-
se facilmente nas discussões, como um professor
obrigado a alterar os seus planos para ensinar matéria
em atraso a alunos preguiçosos. O Steve é uma
incógnita. Nada na sua aparência ou comportamento se
destaca, excepto, talvez, algum ciúme da minha
proximidade à Stella.
A Stella. Acho que eras tu, mãe, que usavas petite
para descrever algumas mulheres. Pois petite é o
adjectivo ideal para a Stella. Apesar do nome americano
(e lembro-me, pai, de que me levaste à Cinemateca a
ver esse filme, lembro-me dessa tarde de sol em que
pela primeira vez percebi porque tanta gente gosta do
Marlon Brando), ela é a mais latina do grupo. Estuda
Belas Artes e quer ser pintora. Ou já é pintora. Nunca
sei se devo usar o futuro ou o presente a falar de
artistas. É muito bonita, com uma boca grossa e
voluptuosa, olhos de boneco animado japonês e cabelo
longo e escuro, tão negro que, quando é directamente
iluminado, parece prateado. É também a única que fala
italiano (com um sotaque delicioso) e pretende estudar
um ano em Itália; ainda indecisa entre Roma e
Florença. Como devem suspeitar, estou encantado com
ela.
Estamos acampados num vale a poucos quilómetros
de Florença. Este é o quinto dia que estou com eles.
Todas as manhãs levantamos o acampamento e
seguimos, algo apertados, no Pão de Forma até à cidade
dos Médici. O Dominic e o Bobby falam de Maquiavel,
de Lourenço, o Magnífico, das intrigas, execuções e
escândalos do Renascimento. Elas, Stella e Dalila,
anseiam pela Galleria degli Uffizi, conversam sobre o
David de Miguel Ângelo e a cúpula de Brunelleschi. Eu
e o Steve dizemos pouco e saltitamos entre conversas.
Quando chegamos a Florença, formam-se duos.
Dominic e Dalila, Bobby e Steve e, claro, eu e Stella. Ela
discorre sobre arte com entusiasmo e erudição. Mostra-
se também curiosa sobre mim e a minha vida,
especialmente sobre os motivos das minhas viagens. Eu
falo-lhe de vocês e do resto. Digo que ela tem de visitar
Lisboa. Pode não ser Florença ou Roma, pode não ter
Miguel Ângelos ou da Vincis mas tem outras coisas. E
digo-lhe quais são.
Hoje sinto-me um pouco sufocado por arte e beleza.
Foram cinco dias de museus, igrejas e palácios, de
contemplar a Catedral e atravessar a Ponte Vecchio, de
centenas de estátuas, Cristos, querubins, anunciações.
Não vale a pena enunciar as obras-primas que vi,
sempre acompanhado de Stella, explicando-me (por
vezes com a ajuda de um livro) o que havia de
maravilhoso, de original, de divino nas obras de arte à
nossa frente, e que podia ser a forma como uma mão
estava desenhada, o contorno de uma capa, as cores
usadas para pintar o céu, a geometria da peça, certo
pormenor anatómico ou outro detalhe ansiando ser
notado.
Mas, mais do que tudo o que vinha assinalado nos
livros, mais do que aquelas obras que já vi centenas de
vezes em livros, em programas de televisão, em posters
num café qualquer, o que mais me impressionou, o que
me fez quase chorar foi uma sala na Galleria degli Uffizi
que visitámos ontem.
No segundo andar há uma sala dedicada ao mito de
Níobe e dos seus filhos. Penso que tu, pai, deves
conhecer a história, mas como há muitas versões vou
contar a que ouvi. Níobe era uma mulher mortal que
deu à luz catorze filhos, feito que apregoava e do qual
ela se orgulhava. Os deuses Apolo e Artémis decidem
castigá-la matando-lhe a descendência. A sala está
cheia de estátuas golpeadas pelos deuses ou prestes a
sê-lo, com os corpos e os rostos muito parecidos com os
das cenas de bombardeamentos dos filmes. A atmosfera
é arrepiante, como se tivéssemos interrompido os
deuses e as suas vítimas a meio de um acto de
extermínio e a interrupção houvesse transformado tudo
em pedra. O espantoso é a beleza de tudo aquilo, a
possibilidade de a dor ser bela, talvez porque faz
emergir nas feições o que de mais humano possuem.
Níobe é representada ainda viva, tentando proteger a
sua filha pequena e olhando para os céus com horror e
súplica.
Pela primeira vez os comentários de Stella foram um
pouco irritantes. Começou a dizer quais eram as
melhores e as piores peças, qual teria sido a sua
disposição original e que se via que não devia ter sido o
mesmo artista a esculpi-las a todas, pois havia alguns
pormenores grotescos em algumas das estátuas. Nada
daquilo me interessava muito, pois eu estava
plenamente absorvido na angústia que a sala emanava,
a pensar na fortuna e nos caprichos dos deuses. Tive de
lhe pedir para me deixar sozinho na sala, o que lhe
desagradou e quase causava a nossa primeira
discussão.
Fiquei mais de uma hora nessa sala. Senti ali aquilo
que ouvi outros dizer que sentem perante o Guernica (e
que eu não senti na minha passagem pelo Rainha Sofia).
O horror não só da guerra, mas de todas as catástrofes
inesperadas que os deuses, sem mais justificação do
que a de alguém se ter orgulhado da sua fertilidade,
causam. O que mais me chocou foi o rosto da Níobe. A
dor de uma mãe que perde os seus filhos. O cliché de
todas as reportagens sobre a guerra. Mas e todas as
mães que os perdem sem ser na guerra? Não sei se há
alguma coisa mais horrível do que olhar para uma mãe
que perdeu um filho jovem. É uma visão que coloca tudo
em causa, que questiona toda a estrutura do universo,
que abala os pilares da existência.
A crueldade dos deuses. Era no Shakespeare, não era,
pai? Qualquer coisa de os homens serem para os deuses
como as moscas para os putos reguilas: matam-nas por
diversão?
Saí da sala e fui ter com o grupo ao terraço do museu,
onde fumavam e tomavam café. A Stella estava um
pouco magoada. Isolámo-nos a um canto, com uma vista
soberba sobre Florença. Tentei explicar-lhe o impacto
que a sala tinha tido em mim. Acabámos a falar de
vocês e de há quanto tempo não vos via. Ela perguntou
se eu não vos estava a fazer o que Artémis fez, ao
afastar a mãe (e o pai) dos seus filhos.
Talvez seja verdade. Talvez vocês sintam às vezes que
eu desapareci para sempre. Talvez essa perda seja
insuportável e estas cartas não façam mais do que
atenuar a dor. Mas é possível a uma mãe recuperar o
gosto pela vida quando os deuses levaram os seus
filhos?
Quero acreditar que sim. Quero acreditar que o
mundo é suficientemente vasto e belo para permitir o
luto.
Não sei se ainda ficarei muito mais tempo por Itália,
mas, esteja onde estiver, terei sempre papel para vos
escrever.
XIX

Querido amigo,

Quatro dias de silêncio absoluto. Sem visitas,


encontros ou conversas. A vida resumida a uma dúzia
de verbos: dormir, sonhar, correr, cozinhar, comer,
cagar, mijar, lavar, ler, escrever, lembrar, chorar. Cada
vez mais afeiçoado à minha gruta, à sala ampla com
vista para o mar, à lareira quase sempre acesa, à
poltrona que já tem uma mossa na almofada de lá
passar horas e horas a ler ou apenas a segurar um livro
nas mãos ou contra o peito. Li o Beached Whales duas
vezes. Contemplo as fotografias com um fascínio que
podes achar mórbido, mas que não o é, de forma
alguma. Nada me tem parecido mais belo do que os
corpos gigantescos das baleias mortas na praia. Estou
cada vez mais encantado com esse animal soberbo. Leio
relatos de antropólogos que falam de tribos onde as
baleias são consideradas deuses vivos, os últimos dos
seres divinos coabitando com os humanos. E tal parece-
me verdade, a mim, o mais ateu dos religiosos, o mais
religioso dos ateus. Mesmo os seus nomes são belos:
leviatã, cetáceo, baleia. O seu canto atravessa metade
do planeta e há pouco mais de um século o seu esperma
iluminava as cidades europeias. OK, chega de elogio às
baleias, até porque ainda não vi nenhuma. Daqui a duas
semanas ou pouco mais, começa a época e os barcos
vão sair com turistas em busca dos últimos deuses
vivos. E eu estarei lá. Pronto para me desiludir, porque
é melhor assim. Preparado para uma experiência sem
alma, para ver talvez apenas uma cauda de cachalote a
umas centenas de metros e não sentir fulgor nessa
visão. Mas estarei lá. Chega de cetáceos.
Mostraste surpresa e curiosidade pelo que ocorreu
após o meu Verão de idílio, que de forma tão, como hei-
de dizer, tão nua – e, pecado mortal para qualquer
narrador: sentimental – te descrevi na minha carta.
Como dizia Salinger, a felicidade é um sólido mas a
alegria é um líquido. E é um líquido que não pode ser
contido, porque flui continuamente.
E assim foi. O Verão passou com a velocidade com que
os verões alegres passam. O Outono chegou. O regresso
às aulas. O amor não acabou aí, não acabou então,
apenas terminou a sua invencibilidade, a deliciosa ideia
errada de que poderia superar tudo. E o que aconteceu
depois é o que acontece em muitas histórias
semelhantes e que não vou narrar com mais pormenor
do que isto, não só por ser inútil, por poderes
facilmente imaginar o lento sufoco dos sonhos
adolescentes pelo mundo adulto, como por não ser o
tipo de memórias que quero trazer à luz. Nestes últimos
tempos eu, ou a minha mente, ou alma, ou seja o que
for, é uma floresta encantada. Sempre que entro na
floresta não tenho a certeza de que consiga alguma vez
sair de lá. Por vezes encontro unicórnios sublimes ou
pequenas fadas guardando lagos encantados, com quem
partilho chocolate quente e canto canções de infância.
Por vezes converso com duendes burocráticos vestidos
de fato e gravata com relatórios anuais de contas numa
mão e calculadoras noutra. Por vezes fujo do lobo mau,
do ciclope, de um ogre niilista ou de um professor de
liceu que uma vez me chamou medíocre. Não quero
entrar na floresta à procura do que correu mal no meu
primeiro amor, ou em qualquer outro. Espero que me
compreendas.
Quanto à insistência do Carlos Domingues sobre se
não é mesmo possível retomar as crónicas sobre
cinema: não e não e não e não e não. Já não vou ao
cinema. Embora sinta falta do escuro de uma sala de
cinema, da amplitude divina do ecrã onde um dia
julguei que podia caber toda a existência, nunca passei
tanto tempo sem ver um filme. Agora que penso nisso,
surpreende-me um pouco que passe tão bem sem
televisão e cinema, sem contemplar imagens móveis a
duas dimensões. Mas, se penso em tudo o que deixei
para trás, o cinema e a televisão são apenas
pormenores, notas de rodapé na lista das coisas que
arderam no fogo.
Noto que esta carta está demasiado cinzenta e cheia
de gotas de chuva descendo lentas numa janela. Não
quero que me aches deprimido. Podem ser breves e
raros, mas ainda há momentos em que exulto de
alegria. Um deles ocorreu esta manhã. Estava a colocar
ratoeiras no sótão quando decidi explorar um baú velho
e poeirento debaixo da pequena janela. Fiquei
desiludido quando não encontrei barras de ouro ou um
esqueleto. Apenas tralha, quinquilharia, objectos mais
ou menos partidos, guardados, imagino eu, por serem
símbolos tácteis de dias singularmente felizes. Algumas
bonecas de porcelana, meia cana de pesca, uma manta
esburacada, um candelabro e, surpresa das surpresas,
uma caixa de música. Dei-lhe corda e esperei pela
melodia, mas não funcionou. Trouxe-a comigo para a
sala e passei a manhã a tentar arranjá-la.
Estive hora e meia, ou mesmo mais, completamente
absorvido em cada roda dentada, arame e peça.
Consegui arranjá-la substituindo um arame partido.
Quando finalmente lhe dei corda e ela tocou a sua
melodia (o Für Elise de Beethoven), senti-me, como se
diz nos seminários de auto-ajuda, profundamente
realizado. Naqueles minutos divinos com o plinc ploc
metálico reproduzindo a música que o austríaco havia
imaginado séculos antes, esqueci-me por absoluto da
floresta encantada. Não pensava nem em ogres nem em
unicórnios, nem em memórias do cinema ou de Lisboa.
Não me assaltavam dúvidas, remorsos ou lamentos.
Fora da sombra da morte, eu apenas contemplava a
caixa de música, o seu interior nu, a sua manivela
prateada, e escutava com uma atenção total cada nota,
sentindo uma alegria indescritível na sua cadência.
E depois passou.
Adivinho já o que pensas desta historieta e a tua
preocupação com a minha, como dizes, «obsessão com a
redenção». Não te iludas. Não houve nada de redentor
na caixa de música. Foi apenas um momento fora do
tempo, um desvio breve por águas límpidas na travessia
de um rio lamacento. Mas eu sei que haverá mais
desvios destes.

Abraço-te
XX

Ex.mo Senhor Dr. Pereira,

Devo começar de forma abrupta, e apresentar-me


como certos narradores apresentam as personagens
antipáticas-depois-simpáticas, fazendo-as, na sua
primeira aparição, responder a qualquer frase cordata e
formal com um comentário sincero mas chocante,
mostrando independência de espírito, ironia e má-
criação. Aqui vai a minha: apenas lhe respondo e
apenas li a sua carta para acalmar o nosso amigo
comum que teme pela minha vida e me supõe louco.
Acredito que o senhor seja um profissional honesto, que
tenha o ar limpo e sofredor dos terapeutas, aquele
aspecto de padre sem vícios, que esteja treinado em
ouvir os maiores horrores sem mostrar perturbação.
Suponho até que a sua empatia (como vocês adoram
esta palavra!) pelos seus pacientes seja sincera e
genuína, que haja compaixão pelo sofrimento dos
neuróticos borderlines psicóticos que o visitam. Penso
também que não estarei muito longe da verdade quando
adivinho crises de consciência, debates intelectuais,
muitas horas gastas em opor corpo e mente, biologia e
psicologia, medicação e interpretação, e em releituras
de Freud com comentários à margem e talvez até
palestras sobre a televisão e o narcisismo.
Além disso, aprecio a sua capacidade para escrever
uma carta e enviá-la para a morada certa. Pode parecer
insignificante, mas tão poucos o fazem que me convenci
de que é uma das mais difíceis tarefas para o homem
moderno, seja isso o que for. Pela gentileza epistolar
mostrada e para bem do meu amigo, que tem feito por
mim mais do que Buda fez em defesa do cabelo rapado,
vou até responder a cada uma das suas questões:
De que tenho medo? De que as pessoas deixem de
escrever cartas. De cavalos castanhos com manchas
brancas no pescoço com a forma da Suíça. De ecrãs de
televisão com estática. Das pessoas que escrevem livros
ditados por divindades mas com má gramática. De
homens que usam uma pala no olho sem ser preta. De
palhaços com os pés pequenos. De vampiros mal
vestidos. De canalizadores que assobiam Wagner. De
relógios em que os ponteiros não se mexem mas que
fazem tic-tac. De anões muito altos e gigantes muito
baixos. De arranha-céus em que ninguém está
apaixonado. E penso que chega.
O que me traz alegria? O atacador desatado de um
miúdo de seis anos com um mau corte de cabelo. O
cheiro dos livros. Quando um arroto acumulado durante
meia hora finalmente se solta. A página 107 da edição
da Penguin do The Heart is a Lonely Hunter. O ruído de
um projector de cinema. A ideia de que o Charlie
Chaplin existiu mesmo, da mesma maneira que eu
agora existo. Um homem que beija uma mulher depois
de ela lhe dar um estalo. Horóscopos demasiado
específicos («terça à tarde cuidado com os dentes»).
Como era a minha relação com a minha mãe? E com o
meu pai? Imagine um casal de classe média sem nada
de peculiar. O marido ama a mulher, a mulher ama o
marido. Ambos amam os seus filhos. Ambos vêm de
famílias onde foram amados. Como em todas as
famílias, existem alguns desequilíbrios. Há quem se
sinta menos amado, quem se sinta menos apreciado,
quem se sinta pressionado. Mas a vida continua. Como
burgueses que são, preocupam-se com a boa educação,
a higiene e a cultura, sem achar que qualquer destas
deva ter predomínio sobre as outras. Eu cresço como as
outras crianças que andam na escola comigo. Os meus
pais são parecidos com os pais deles. Vemos os mesmos
programas de televisão, brincamos com os mesmos
brinquedos e visitamo-nos uns aos outros. As nossas
mães fazem os mesmos lanches de limonada e sandes
de fiambre e queijo. Eu cresço e os meus pais vêem-me
crescer. Não intervêm nem a mais nem a menos.
Respeitam as minhas decisões mas não deixam de
criticar ou louvar quando acham necessário, indo as
ocasiões e a forma como o fazem de encontro ao que eu
esperaria que eles fizessem. Serve para si?
O que me faz triste? Paragens de autocarro vazias à
chuva. Quando morre um cão cujo dono é uma criança.
A página 107 da edição da Penguin do The Heart is a
Lonely Hunter. Pensar na vida sexual dos bibliotecários
com bexigas na cara. O Mi bemol tocado num piano de
cauda. Pensar na vida espiritual dos managers de hedge
funds. Balões rebentados no asfalto. A irreversibilidade
do tempo. Que o café seja servido frio.

Espero tê-lo esclarecido. Espero que informe o meu


amigo da minha saúde mental. Espero que tenha
sorrido ao ler esta carta.

Com cumprimentos que não são os melhores mas são


muito bons
XXI

Querido amigo,

A vida social regressou. No meu jogging matinal


cruzei-me com o Dr. Viana e convidei-o, e à mulher, para
tomar chá. Passei o resto do dia a dar um ar decente à
minha toca, arrumando papéis e livros, limpando
migalhas, lavando loiça.
Às cinco horas em ponto, chegaram com os seus
sorrisos suaves e um bolo de laranja. Elogiaram a casa e
o chá que lhes preparei, sentámo-nos e fizemos a
conversa expectável de pessoas cosmopolitas e
sofisticadas que somos. Os temas fluíam sem
dificuldade. Ela é entusiasta e emotiva e ele tem humor
e muita cultura. Contudo, basta mencionar o seu filho
para que ocorra uma metamorfose. Isso faz-me
suspeitar ainda de que ocorreu alguma coisa grave ou
mesmo tremenda entre eles e o filho viajante. Se por um
lado a mãe agradece qualquer oportunidade de palrar
sobre o filho, por outro o marido parece vigiar o seu
discurso chegando mesmo a interrompê-la e a mudar de
assunto. É tudo um pouco edipiano e bizarro, o que me
dá pena porque as migalhas de informação que ainda
consegui sacar da mãe mostram um miúdo fascinante.
Não só é um viajante à moda antiga como parece ter
uma paixão por cartas quase tão febril como a minha.
Perguntei se eles se importavam de que eu escrevesse
ao seu filho. Ela sorriu e pareceu-me que ia responder
de forma afirmativa, mas o marido interrompeu-a mais
uma vez e, na sua forma suave e tranquila de falar, na
sua autoridade de médico que descreve passo a passo o
tratamento e os efeitos secundários, explicou-me a
impossibilidade de eu me corresponder com o seu filho,
pelo menos por enquanto. As razões que avançou eram
todas, como seria de esperar, sensatas e justas. A
própria mulher mudou de expressão e anuiu
significativamente ao ouvi-las. Como consegues
imaginar, tudo isto contribui para adensar o mistério e
deixa-me morto de curiosidade.
O reverso da medalha é a especulação delicada que o
casal Viana faz sobre o meu exílio. Também eles se
apercebem de que existe toda uma história tremenda e
também eles vão tentando, como se diz, tirar nabos da
púcara. Eu tenho a vantagem de ser só um e de estar
unido comigo mesmo, deflectindo as suas inquirições
com facilidade, às vezes mesmo com gozo.
Por outro lado, quando eles se foram embora fiquei
com alguma pena de que usemos todos estes
subterfúgios, mentiras, máscaras. Pus-me a pensar em
como seria se dissesse a verdade, se revelasse tudo o
que aconteceu. Não só a eles mas também a Hector, ao
senhor Joaquim e a quem mais desejar. Não duvido de
que, tal como eu tenho as minhas imaginativas teorias
sobre o que aconteceu entre o filho Viana e os seus pais,
também correm por aí histórias mais ou menos sórdidas
sobre mim.
O teu amigo psiquiatra escreveu-me. Também ele quer
que eu fale sobre aquilo-que-aconteceu, mesmo que por
carta. Pretende, por certo, um grande breakthrough,
uma cena de choro no divã, a redenção pela revelação.
Mas, se eu fizesse isso, como iria ele estender-me os
lenços de papel para limpar as lágrimas? Qual é a
maneira epistolar de fazer tal coisa? Contudo, não te
preocupes: como forma de te agradecer (e espero que
compreendas quão vasto é o agradecimento) e por
respeito a um psiquiatra que tenta fazer diagnósticos e
terapia por carta, responderei às suas cartas como
respondo às tuas.
Em anexo segue uma pequena lista de livros e dois ou
três nomes de pessoas de quem preciso de saber as
moradas; sei que os teus fabulosos dotes detectivescos
serão capazes de as descobrir. És o meu Sherlock sem
Holmes, o meu Poirot desbigodado, o meu Padre Brown
latino.
Muitas das nuances do meu lanche com os Viana
ficaram por contar. Suspeito que não os consigo
descrever adequadamente. Imagina-o como um
aristocrata inglês com uma vida sexual
verdadeiramente agradável, naturalmente não com a
sua mulher mas com uma freira alemã de visita a
Londres. E imagina-a como a Virginia Woolf a tentar
desempenhar o papel de uma mãe de família americana
numa sitcom. Mas mesmo assim não chega.
Fica para a próxima.
Espero que saibas que não me deito sem pedir a todas
as divindades presentes na Enciclopédia Religiosa de
Dias Garcia que façam todas as tuas horas leves e
mantenham pão estaladiço na tua mesa e champôs com
amaciador no teu duche, e que abençoem a tua família
com mel, ouro, saúde e a certeza de que vivemos no
melhor dos mundos.

Um abraço do fazedor de chá


XXII

Querido amigo,

Jantei com o Hector no restaurante da praia. Tenho de


me conter para não desatar a rir sempre que ele salga a
comida como se a quisesse conservar para o próximo
milénio. Se houver um paraíso, este gesto garantir-lhe-á
a entrada. Conversámos sobre animais marinhos e
livros de piratas. Somos ambos grandes adeptos de
Emílio Salgari e do seu herói Sandokan. Disse-lhe que
uma vez estive quase a aprender italiano para ler os
livros no original. Não sei porquê mas ele achou que era
uma das coisas mais hilariantes que ouvira. Quando lhe
perguntei porque se ria tanto, disse-me que achava
graça «a pessoas como eu». Inquiri o que ele pretendia
dizer com «pessoas como eu». «Pessoas que ponderam
aprender uma língua nova para ler no original um livro
de que gostaram muito.» Boa resposta, não? Vou tentar
transcrever em discurso directo a argumentação dele:
– Pessoas como tu estão sempre desesperadas por
provar o seu amor seja pelo que for. Mesmo por um
livro. Não se contentam em amar um livro de forma
quieta. Têm de ir aprender a língua original, têm de o
decorar, têm de o tatuar nas costas. Achas mesmo que
vai ser diferente em italiano? Que vai ser melhor?
Conheço muitos biólogos marinhos assim. Só que não é
por livros… é por golfinhos. Há tanta maricagem à volta
dos golfinhos que mesmo eu às vezes odeio esses filhos-
da-puta. Conheci gente que gostava mais de golfinhos
do que de pessoas. Sabes aquelas casas cheias de
posters de golfinhos? E vais mandar uma mija e o
sabonete tem a forma de um golfinho e a toalha tem
golfinhos e as estantes têm livros sobre golfinhos e,
foda-se, até a foder devem imitar os golfinhos…
E depois o enorme alemão ruivo pôs-se a representar
um homem a foder imitando um golfinho. Ri-me tanto
que achei que o meu cérebro ia rebentar. O senhor
Joaquim, que veio a correr da cozinha quando ouviu os
guinchos, ao olhar para a performance de Hector teve a
mesma reacção que eu. Em alguns segundos a sua
mulher e filho também estavam a rebolar de riso. As
lágrimas corriam-me pelo rosto e arfava como um
asmático.
Enquanto acalmávamos dei uma palmada amiga nas
costas do alemão e disse que «já não me ria assim
desde que» e parei. Parei porque me lembrei da última
vez em que me rira assim… Não preciso de te dizer
mais.
Por mais que o tentasse disfarçar, o alemão percebeu
a minha mudança abrupta de disposição. Deve ter sido
tão drástica que, por pudor, ele não perguntou nada.
Bebemos e comemos um pouco em silêncio. Depois
falámos dos Viana. Apesar de também achar que deve
ter ocorrido alguma coisa entre eles e o filho, Hector
não sabe mais do que eu e não está interessado no
mistério.
Hoje terminei de ler todos os livros que tenho cá por
casa. Não me apetecem releituras, por isso vou
investigar os alfarrabistas da cidade, recomendados
pelo excelentíssimo Dr. Augusto Viana durante o nosso
chá cordato do outro dia.

Saudações insulares
XXIII

Queridos pais,

Sei que desejariam ver-me de volta e mostrar-me a


vossa ilha que conheço tão mal. Sei também que
especialmente tu, mãe, querias que me deixasse de
apaixonar por Stellas e Ellens em galerias de arte e
favelas indianas e voltasse a Portugal e me apaixonasse
por uma Maria ou Joana que fosse bonita, mas não
demasiado, e se possível que viesse de uma família
cheia de primos e irmãos, todos de cabelo lavado e
cortado e camisa para dentro das calças, com cursos de
Direito, Engenharia e Medicina. Sei disso tudo, mas
tenho de vos desiludir mais uma vez e dizer que estou
em Praga perdidamente apaixonado por uma Christine.
Não foste tu, pai, que tiveste uma namorada francesa
quando vinhas fazer aqueles tratamentos à asma em
Paris? Pois agora sou eu que tenho uma namorada
francesa.
Conhecia-a na Ponte Carlos. Esta é uma das pontes
mais famosas do mundo. Mais uma vez farei de guia
turístico. A ponte é do século xiv e liga a parte antiga da
cidade ao caminho pedonal para o castelo. As ruas à sua
volta são lindíssimas, cheias de prédios que são
pequenas maravilhas coloridas. Se tivesse de classificar
o estilo arquitectónico de Praga, usaria a expressão
«monumentalidade anã». A ponte é flanqueada por 75
estátuas, a maioria de estilo gótico. Durante o dia está
cheia de artistas fazendo as mais variadas habilidades
para sacar uns trocos aos milhares de turistas que a
atravessam.
Aconteceu de manhã. Após um pequeno-almoço
singelo, mas saboroso, na pensão húmida onde durmo
(num quarto com mais nove pessoas), fui percorrer as
ruas desta cidade de conto de fadas na minha habitual
euforia de deslumbramento (que é, digo-o mais uma
vez, a maior dádiva que vocês me deram). Atravessei a
ponte devagar, vendo o sol bater nas muitas cúpulas de
igrejas, nos prédios coloridos e no Reno. Ouvi as bandas
de jazz, maravilhei-me com as bolas flutuantes dos
malabaristas e senti um certo temor dos homens
estátua. Quase no final da ponte, no meio do barulho e
da confusão, ouvi uma das cantatas de Bach que tu, pai,
costumas ouvir quando te fechavas no teu escritório a
escrever artigos sobre disfunções hormonais (ou outro
tema deste tipo). Dirigi-me para a origem da melodia e
vi, para minha surpresa, que era executada em copos de
água; para ser preciso, três filas de copos de variados
tamanhos com diferentes quantidades de água. O
músico tocava molhando os dedos e passando-os pela
borda do copo, tudo a uma velocidade incrível. O
músico era uma: Christine, como já devem ter
adivinhado. Acabei por ficar hora e meia a seu lado,
ouvindo-a tocar e conversando. Combinámos
encontrarmo-nos ao fim do dia em frente ao castelo.
Passei o dia subindo e descendo esta cidade
maravilhosa onde metade dos cafés têm Kafka no nome
e as casas estão pintadas em mais cores do que as que
existiam naquelas caixas de lápis Caran d’Ache que
vocês me compravam no princípio do ano lectivo.
Cheguei ao ponto de encontro, um largo à frente do
castelo, algum tempo antes da hora marcada. A apenas
uns metros havia um miradouro que explorei de
imediato. Qualquer coisa no rio e nos telhados cor de
laranja, nas ruas a subir e descer e na arquitectura
confusa me lembrou Lisboa. Senti uma saudade enorme
da minha cidade, de Portugal e de vocês. E ao mesmo
tempo senti-me incrivelmente feliz por estar ali naquele
momento. À entrada do castelo um qualquer estudante
de música tocava violoncelo recolhendo moedas num
chapéu. O dia morria lentamente, tingindo a cidade de
novos tons. Uma brisa morna soprava e agitava as
árvores do pequeno bosque em frente a Praga. Percebi
que queria que aquele momento durasse para sempre, o
instante imediatamente antes da chegada de Christine,
o momento em que percebi que, como no poema, a vida
me ia fazer o que a Primavera faz às flores.
E então ela chegou.
A Christine tem olhos verde-azulados e longas
pestanas. Tem algumas sardas no nariz, que é pequeno
e arredondado, e muitas nos braços. É alta e magra com
os ossos dos ombros visíveis. Tem os pés grandes e os
dedos das mãos são compridos e elegantes, com as
unhas arranjadas. A boca é muito larga e vermelha, o
tipo de boca que, se não fosse um dente deliciosamente
torto, seria ideal para um anúncio de batom. O cabelo é
castanho-claro e muito liso, normalmente atado num
rabo-de-cavalo mas por vezes solto e caótico como se
ela tivesse acabado de sair de uma festa de fox-trot.
Quando se ri, duas covinhas perfeitamente esféricas
formam-se nas suas bochechas, as quais
envermelhecem com facilidade. Por pudor não
mencionarei os seus seios, excepto para dizer que são
perfeitos.
Ao contrário do que seria o teu desejo, mãe, a família
dela nada tem a ver com a clássica família católica
burguesa de Lisboa ou do Porto. O pai é um ex-hippie
dono de uma oficina que repara instrumentos musicais
(o talento musical deve ser genético, pois o tio é o mais
famoso afinador de pianos de Paris). A mãe é jornalista
numa revista cultural. Existe um irmão mais velho que
trabalha num banco (é a ovelha negra da família) e um
irmão mais novo que está a fazer um mestrado sobre o
genocídio (imagino-o um humorista). A Christine está
em Praga a aprender a arte de tornar os copos de água
em instrumentos. Aparentemente o maior mestre do
mundo é um tal de Thomas Havel que espero conhecer
em breve.
Começámos a viver a nossa história de amor apenas
há quatro dias, os quais não descreverei por falta de
talento, mas que espero que possam imaginar.
Não sei se é preciso explicar porque me apaixonei por
uma bonita francesa que toca Bach em copos de água.
Mas, além de ser uma bonita francesa que toca Bach em
copos de água, existe em Christine uma vontade de
viver tão pura e luminosa que quase me assusta. Não
que ela seja o tipo de pessoa exuberante cujo carisma
contagia todos ao seu redor e os faz querer cantar, rir e
celebrar. A Christine fala pouco. Não é exactamente
tímida, mas parece estar-se nas tintas para o que as
pessoas acham dela, não fazendo o mínimo esforço para
convencer ou seduzir alguém. E, no entanto, como os
seus olhos se abrem e como ela sorri perante qualquer
dos milagres banais de que o mundo e Praga estão
cheios!
E aqui estou eu, longe de vós, apaixonado em Praga,
vivendo a minha vida como se fosse um livro. As coisas
que me acontecessem são tão extraordinárias que sinto
que, às vezes, até vocês devem duvidar de que sejam
verdade. Mas são. Eu próprio fico perplexo, mas é o que
acontece quando se aceita a estrada e o imprevisto.
Muitas vezes tenho discussões convosco na minha
mente. Oiço os teus argumentos, pai (e vejo o teu olhar
de saudade, mãe), e apresento os meus. Ou o meu,
singular, pois só um é suficiente e só um existe: a minha
felicidade. É por ela que vocês têm de aceitar o
sacrifício da minha distância, aceitar que a única prova
material da minha presença sejam estas palavras, sejam
estas cartas enviadas de outro mundo.
Estes dias em Praga têm sido de uma leveza de conto
de fadas. Parece-me que se saltasse sobre uma formiga
ela continuaria a andar sem me saber às suas costas. A
pele da Christine é a minha nova estrada e percorro-a
como num sonho acordado. As cúpulas das igrejas são
verdes e os prédios são baixos e coloridos. Existem
pessoas que tocam Bach em copos de água. Existem
pessoas que têm de deixar tudo para trás para servir o
seu Messias. Aos que foram deixados para trás, resta
apenas saber que os que partiram o fizeram porque o
tinham de fazer.
A minha felicidade é o Deus ao qual vocês têm de se
sacrificar. Mas percebam que é uma felicidade com
espaço para a melancolia, para o lamento e para a
saudade. Não só de vocês, mas de tudo. Mesmo do que
ainda não vivi. A ausência de botões de pause ou rewind
na vida torna-a um fluxo imparável, um rio sem
barragens possíveis. Estou apaixonado por Christine
mas sei que o nosso amor não tem muito por onde
crescer. Poderá ser «eterno enquanto dura», como diz
Vinicius, mas, mais do que isso, acho que terá de fazer o
que Robert Frost diz que a vida faz: «Compensar em
altura o que lhe falta em comprimento.» Viver em
viagem é saber que as paisagens de hoje ficarão para
trás amanhã. Que o Verão só dura até ao Outono, que só
dura até ao Inverno, que só dura até à Primavera, que
só dura até ao Verão, mas já outro Verão. De momento a
ideia de não ver mais Christine provoca-me tonturas e
enjoos. Quando a abraço, o mundo parece-me completo
e perfeito. E sei que, como a canção: «o que será, será.»
O que será, será. Estou pronto.
Espero que a notícia do meu coração apaixonado e o
relato de momentos de tão sublime amplitude aumente
um pouco a altura dos vossos dias.
Do vosso filho que vos ama
XXIV

Ex.mo Guru Conselheiro Espiritual Motivational Speaker


Membro Honorário do Comité da ONU para o Progresso
da Paz Entre os Povos, Dr. Cassius Advindus,

Como diz Vossa Excelência, no primeiro capítulo da


sua obra Deixe a Vida Inundar o Seu Viver, não fui eu
que encontrei os seus escritos mas eles que me
encontraram, meio escondidos atrás de uma pilha de
livros em segunda mão num alfarrabista barbudo numa
ilha dos Açores. Atraído pelas cores vibrantes, li o
extraordinário título e, através de um autocolante
redondo, soube que tinha vendido mais de três milhões
de exemplares por todo o mundo. Abri o livro com a
curiosidade de saber o que tinha interessado a tanta
gente. A primeira frase intrigou-me: «A maior parte das
pessoas não sabe que uma flor é uma flor.» Ora aí
estava um facto que eu desconhecia. Até então tinha
vivido a minha vida achando que as pessoas sabiam o
que era uma flor. Mas não me tome já por tolo, percebi
que era uma metáfora. As coisas espirituais não podem
ser ditas directamente em frases como «se o João tem
cem escudos para comprar maçãs…». Têm de ser
lançados mistérios, enigmas cuja reflexão colocará em
causa os frágeis alicerces sobre os quais muitos
edificaram a sua existência, para que do ruir desses
alicerces se ergam novos e belos templos a uma vida
mais genuína. Veja lá! Já estou a escrever um pouco
como Vossa Excelência! Mas divago. Permita-me um
parágrafo.
Atraído pela primeira frase, folheei o seu livro. Espero
que me perdoe, mas devo dizer-lhe que me ri muito ao
ler o índice e pequenos trechos. Não me leve a mal, mas
na altura eu era um burguês iludido, longe do caminho
da salvação. Acabei por o comprar (ainda por cima
barato, já que era em segunda mão) e levá-lo para casa.
Li-o com atenção e um lápis. Está cheio de sublinhados
e notas. Como é possível que a minha citação da
primeira frase pareça descontextualizada e trocista,
procuro corrigir o erro transcrevendo o primeiro
parágrafo:

«A maior parte das pessoas não sabe que uma flor é


uma flor. Podem pegar numa rosa, cheirá-la, sentir a
macieza das suas pétalas entre os seus dedos, mas não
compreenderão a essência da rosa. E assim como fazem
com uma flor, fazem com a vida.»

O Mestre (posso tratá-lo por Mestre?) mostra logo,


nestas curtas linhas, que o livro trata de temas
importantes e grandiosos, que contém lições valiosas e
desconhecidas da maioria dos seres humanos. Além
disso, faz um diagnóstico preciso do estado da
humanidade nestes terríveis tempos em que vivemos,
onde as pessoas cheiram flores sem compreender a sua
essência e fazem com a vida o que fazem (ou seja, não
fazem) com as flores.
Ainda em pé no estabelecimento algo desarrumado do
barbudo alfarrabista, li com muita atenção a
contracapa. Fiquei a saber que o Dr. (posso tratá-lo por
Dr.?) sofreu uma profunda crise espiritual aos 30 anos
(e que idade para se sofrer uma crise espiritual!!) que o
levou à Índia, ao Tibete e ao Médio Oriente. Que
estudou todos os textos sagrados de todas as religiões
e, com a ajuda dos seus vastos conhecimentos de física
quântica, psicologia, astrologia, numerologia e cabala,
criou uma filosofia de vida que conjuga Cristo e Buda,
Freud e Iemanjá, os chacras e o yin e o yang e outras
essências, energias e forças motivacionais. Mas o que
me convenceu de que Vossa Sabedoria (posso tratá-lo
por Vossa Sabedoria?) era genuíno e não uma fraude foi
a foto na contracapa. Não sei se já reparou, mas muitos
dos gurus de auto-ajuda têm uns enormes e perfeitos
dentes de uma brancura extraordinária. Não posso
acreditar na palavra de alguém com uns dentes tão
brancos (não me pergunte porquê) e foi por isso que,
quando vi a sua cara rechonchuda com dentes
amarelados e irregulares, percebi que se tratava de
alguém na posse de verdadeira sabedoria.
Contudo, senhor Cassius Advindus (posso tratá-lo por
Cassius Advindus?), ao ler com muita atenção as suas
inspiradas palavras surgiram-me algumas dúvidas que
gostava de ver esclarecidas. Primeiro, no capítulo oito,
«Libertando a amplitude cósmica da consciência», o
Senhor diz que existem exercícios simples e não
dispendiosos que se podem realizar para «libertar a
amplitude cósmica da consciência» e «conseguir tudo o
que genuinamente queremos». Isto, naturalmente,
entusiasmou-me bastante pois eu sou o tipo de pessoa
que quer «conseguir tudo o que genuinamente quer».
Mas fiquei chateado quando li que podia saber mais
sobre esses exercícios lendo o seu outro livro, O Amor
Expandido: Descubra que Além dos Limites não há
Limites. Comprei esse livro e li-o. E fiquei furioso
quando percebi que os exercícios eram apenas um
pequeno vislumbre do que seria possível alcançar
frequentando um dos seus workshops «Viva,
Finalmente!».
Vossa Excelentíssima Fraude (posso tratá-lo por Vossa
Excelentíssima Fraude?) perceberá que foi apenas o
meu cepticismo e espírito burguês e materialista, talvez
mesmo a presença horrível do Medo dentro de mim,
que me fez duvidar das boas intenções e espírito
messiânico que o inspira, até porque, como vem escrito
na contracapa, a sua fundação realiza grandes doações
para a caridade. Não obstante, tenho de continuar a
apresentar as questões e dúvidas que me assaltaram
aquando da leitura das suas obras.
Não crê Vossa Idiotia (posso tratá-lo por Vossa
Idiotia?) que leva a metáfora do Medo e do Amor, por
vezes, demasiado longe? Vou citar:

«Foi o Medo que levou Hitler a fazer o que fez, tal


como é o Medo que leva um homem a violar e matar. E
Medo do quê? Do Amor que há dentro deles, pois cada
um de nós tem reservas ilimitadas de Amor. O problema
do Mal, que muitos pensadores tentaram resolver
durante milénios, tem uma solução fácil: o Mal é a
incapacidade de cada um de se ligar à fonte de Amor
dentro dele.»

Imagino que se Kant tivesse sabido isto teria tido


bastante mais tempo livre. Mas, até agora, tudo o que
Vossa Cretinice (posso tratá-lo por Vossa Cretinice?)
afirmou é apenas estúpido, foleiro, mal escrito, com
demasiadas maiúsculas (parece um texto em alemão) e
relativamente inofensivo. Mas não basta ao Dr. Bastardo
(posso tratá-lo por Dr. Bastardo?) apregoar a sua
filosofia e exercícios de expansão do absurdo. Tem de
atacar a concorrência. É aqui que eu me irrito. Passo a
citar:

«Um dos problemas da Humanidade é que o verbo


mais conjugado não é amar, mas comprar.»

«A vida burguesa materialista da classe média do


mundo ocidental é um exemplo claro da alienação
espiritual do mundo moderno, onde ter é mais
importante que ser, e onde somos todos reduzidos a
autómatos ao serviço do Sistema.»

«Vivemos nos mais tristes tempos com mais fome e


mortandade do que em qualquer outra altura da espécie
humana. Desligamo-nos do Divino e de nós mesmos e
vivemos vidas de Medo, a olhar constantemente para o
tamanho do carro dos vizinhos, ignorando que uma flor
é uma flor, e que basta dizermos Sim, realmente
dizermos Sim, para acedermos às fontes inesgotáveis de
Amor em nós.»

Não lhe vou explicar, senhor Hemorróida (posso tratá-


lo por senhor Hemorróida?), tudo o que há de errado no
seu amontoado de clichês. Mas vou fazer-lhe uma
confissão. Também eu me dou por vezes a pensar em
moldes semelhantes aos seus. Também eu começo
frases como «Vivemos nos mais tristes tempos» ou «um
dos problemas da humanidade», mas a forma como
continuam é diferente. Por exemplo, eu acho que um
dos problemas da humanidade é a quase ausência de
balões nos céus das cidades. Se uns biliões de balões
coloridos fossem largados com frequência nas ruas de
Londres, Paris e Teerão, as coisas correriam bastante
melhor. E dou comigo a pensar que «vivemos nos mais
tristes dos tempos» porque já quase ninguém usa
monóculo, cartola, luvas, há poucos duelos e é muito
raro apanhar um autocarro num qualquer lugar do
mundo e discutir Jane Austen com o passageiro do lado.
Agora imagine que eu tentava que todos pensassem
como eu?
Devo, ainda, dizer-lhe que discordo do Ex.mo Palhaço
(posso tratá-lo por Ex.mo Palhaço?) e acho que, para
grande parte das pessoas, ser ainda é mais importante
do que ter, e que a maior parte de nós, mais do que
estar preocupada com o tamanho do carro dos vizinhos,
está preocupada em cuidar da família, dos amigos e do
trabalho. E devo dizer que não acho que vivamos
tempos terríveis, de crise ou medo, mas sim que
vivemos na mais feliz, próspera, luminosa, tremenda,
insuperável das eras, nem que seja porque é a única
que eu conheço, a único da qual eu posso dizer que
respirei o ar. E quanto às vidas autómatas, devo avisá-lo
de que esse insulto, por muito que seja um chavão
antigo, me ofende, e que, até Vossa Cretinice pedir
desculpa à «maioria das pessoas», caso eu me cruze
com Vossa Estupidez, lhe darei umas quantas
bengaladas. Porque não há vidas autómatas, vidas
alienadas, apenas biliões de pessoas enfrentando na sua
maneira única e irrepetível essa besta multiforme e
gloriosa que é a vida. E se Vossa Defecação Cerebral
não gosta, pois que vá para a autómata que o pariu.
Tenho dito.

Um leitor atento
XXV

Querido amigo,

O tempo melhorou e a Primavera parece estar a


chegar. Daqui a duas semanas vou procurar ver baleias.
Iniciei algumas dezenas de cartas que acabei por
amachucar e projectar, com ambas as mãos, para os
diversos cantos dos meus aposentos. Nos últimos dias
habita-me uma irrequietude. O tempo melhorou um
pouco, apesar de alguma neblina e do ocasional e
previsível chuvisco.
O Hector passa os dias no mar. Encontrei-o outro dia
na praia a preparar o barco e pedi-lhe para me levar ao
mar um dia destes. Recusou-se, argumentando, meio na
brincadeira, que eu não tinha estofo de marinheiro.
Respondi que ele não queria era ter de partilhar o
tesouro comigo, que queria os dobrões de ouro todos
para ele. Foi então que ele me fez esta estranha
pergunta:
– Não tens medo de te afundar?
– Não... – respondi, mas sem certeza do que dizia,
vendo na palavra afundar contornos que o alemão
provavelmente ignorava.
– Nesse caso, talvez um dia te leve – e piscou-me o
olho.
E este foi o único diálogo que tive nos últimos dias.
Não por falta de oportunidade. Agora que os meus
arredores estão ainda mais verdes e vibrantes, o
número de visitantes da pequena enseada aumenta e
não apenas aos fins-de-semana. Por vezes sou atacado
de misantropismo e odeio com violência as figuras
pequenas que vislumbro da minha varanda. Odiar é um
termo demasiado forte. Afinal, nunca fui especialmente
dado a misantropismo, malthusianismo, especismo ou
qualquer outro sistema intelectual que compare homens
a insectos, sendo eu até mais propenso a querer fazer
como Cristo pediu e amar todos os homens como Ele
nos amou, entregando-me por vezes a orgias de ternura
(que me esforço por manter secretas) na presença de
velhas que vejo escarrar, adolescentes com demasiadas
borbulhas e qualquer tipo de manetas, incluindo os com
ganchos a fazer de mão. Assim, ontem, atacado por
saudades da espécie humana, visitei os Viana. Ele
estava na cidade a tratar de assuntos, mas a mulher
ofereceu-me chá e pão-de-ló, que, claro, não recusei.
Aproveitando a ocasião de estar a sós com ela,
consegui navegar na conversa para o seu filho. Senta-te
pois à mesa, querido amigo, põe o guardanapo ao colo,
diz graças porque saiu-me o jackpot. Não é que a
senhora Teresa Viana – não acreditando que as suas
descrições mirabolantes, projectadas com um orgulho
materno incandescente, fizessem justiça ao seu filho –
quis corroborar a sua narrativa com factos? E fê-lo
dando-me a ler duas cartas dele. A forma ofegante e
embaraçada com que mas entregou e me pediu para
não dizer nada ao marido levaram a que me sentisse em
pleno adultério. Prometi-lhe, como um amante faria,
toda a discrição e agradeci-lhe vivamente, o que não foi
difícil pois fiquei muito satisfeito, como podes imaginar.
Satisfeito não está correcto: é melhor dizer eufórico, em
estado de graça. A minha curiosidade era tal que me
preparava para ler a carta ali mesmo, em frente à
chávena de chá vazia e ao prato com as migalhas do
pão-de-ló; o que chocou a senhora Viana. Mais
ruborizada ainda, agarrou-me as mãos para me impedir
de desdobrar as folhas. Teria de lê-las longe dela e em
segredo, explicou-me. Daí a uns dias, assim continuava
o plano, ela passaria a buscá-las em minha casa sob o
pretexto de me levar um doce qualquer. Se me permites
o trocadilho, a minha fome de leitura foi apaziguada
pela promessa de doces caseiros.
Seguiram-se mais uns minutos de conversa, já sobre
outros assuntos bem menos interessantes, e, finalmente
(finalmente!), regressei a casa, quase a correr, para ler
as cartas.
O papel em que estão escritas não tem nada de
especial: folhas brancas A4 sem linhas. A caligrafia é
um pouco bruta mas fácil de ler e as frases seguem-se
perfeitamente horizontais como que escritas sobre
linhas invisíveis. Um vento parece soprar sobre as letras
inclinando-as da esquerda para a direita, especialmente
aos tês e aos éles. Tentei detectar algum cheiro
particular no papel, mas nesta ilha tudo cheira a mar,
ou o cheiro a mar está-me tão entranhado nas narinas
que já não sou capaz de cheirar mais nada (abro uma
excepção para os meus encontros com as vacas e os
seus dejectos durante o jogging).
Quanto a todas as questões que havia colocado sobre
a relação dos Viana com o filho, a carta trouxe-me mais
dúvidas do que certezas. Ao contrário do que eu
pensava, não há sinais de existir uma disputa ou
qualquer tipo de animosidade entre eles. O filho parece
expressar genuínas saudades e fala-lhes (ou melhor,
escreve) com ternura. Por outro lado... que cartas
tremendas! A imagem que tenho dele vai mudando a
cada parágrafo. Por vezes escreve com uma distância
quase glaciar: descreve do lugar onde está,
enumerando factos e curiosidades, quase como se
estivesse a escrever para um guia de viagens. Noutras
partes relata mirabolantes encontros e aventuras que
não podem ser senão absolutas verdades ou inegáveis
mentiras, não existindo possível meio-termo. Ele parece
obcecado com a ideia de viagem e com a alegria que
esta lhe traz. É fácil perceber que se justifica perante os
pais. E ao mesmo tempo, na sofreguidão dos
pormenores, no romantismo desenfreado dos seus
encontros, há uma melancolia sempre à espreita, uma
sede sem fim, uma lista de lugares a visitar que nunca
poderá ser completada.
O que mais me comoveu, o que me surpreendeu com
violência e ternura foi descobrir que eu e ele somos
doppelgangers, que ele é o meu duplo, o meu negativo,
o meu reflexo no espelho. Passo a tentar explicar: A
sensação com que fiquei foi a de que ele procura nas
viagens o que eu procuro no exílio. De que também a
ele aconteceu algum aquilo-que-aconteceu, que ele não
pode mencionar. E que existe uma rebeldia óbvia e uma
luta um pouco mais escondida, para perseguir a beleza
das coisas, para mergulhar na vida que parece, ao
mesmo tempo, uma fuga de alguma coisa, um terror das
sombras. Oscar Wildes me maldigam em ditos
espirituosos, pois sinto que me estou a expressar de
forma muito pobre. Correr para a vida não é o mesmo
que fugir da morte. Correr para escapar às sombras não
é o mesmo que correr para a luz. Parece, parece,
parece, mas não é. Um dos meus muitos problemas é
esquecer-me de que não se mantém um cubo de gelo na
mão por muita força com que o apertemos. Já te
imagino a coçar a cabeça, murmurando: «Cubo de gelo?
O gajo está maluco!»
Sim, o gajo, eu, está maluco. Basta de mim.
Espero ansiosamente que ela venha buscar as cartas.
Quero ler mais. Quero saber o que foi o aquilo-que-
aconteceu do seu filho. Não te sei explicar, nem vou
tentar mais metáforas geladas, mas sinto (e, sim, é por
influência da minha costela romântica, do meu fígado
romântico, do meu intestino delgado romântico, dos
meus rins românticos, de todo o meu organismo
romântico) que o meu destino e o destino do filho dos
Viana estão associados, que o que lhe sucedeu e
sucederá não me pode ser indiferente.
Talvez seja o Atlântico a afectar-me, talvez seja todo
este tempo sem cinema nem televisão, talvez seja do
ruído interminável, contínuo e opressivo das ondas, ou
talvez seja apenas do pão-de-ló. Mas estou assim.
Contudo, não te preocupes, não me vou matar. Longe
disso.

Abraço
XXVI

Queridos pais,

Apenas uma breve nota de Marraquexe. Estou a


dormir num terraço com mais vinte pessoas. Pela
primeira vez este ano estou acompanhado de um grupo
de portugueses (do Porto). Agrada-me muito voltar a
falar português e não ter de explicar onde fica o
Algarve, o que é o Chiado e ter quem perceba a minha
saudade dos pastéis de nata. Donde estamos avista-se a
famosa praça Jeema el Fna onde Hitchcock filmou cenas
para a segunda versão do The Man Who Knew Too
Much, o teu filme preferido, pai, que me levaste a ver à
Cinemateca, e no qual a Doris Day canta Whatever Will
Be Will Be. Lembro-me de que te comoveste como
nunca te vi comovido (excepto talvez quando o avô
morreu) na cena final em que ela, apesar do terror e da
angústia de uma mãe à beira de perder o seu filho, tem
de exercer a mais rara das qualidades: graça sob
pressão (tão melhor em inglês: grace under pressure), e
cantar Che Sera Sera para tentar salvá-lo.
Mas voltemos à praça. É uma mistura do que se vê nos
filmes com um centro comercial. Existem cobras
hipnotizadas, pequenos macacos e outras coisas
exóticas para turista ver e fotografar, e existem bazares
(os verdadeiros bazares), com babushkas e djambés e
túnicas e jogos de xadrez com as peças feitas em
madeira e bules de chá e tapetes, milhares de tapetes,
como se a ideia fosse cobrir o deserto. E é tudo
colorido, vibrante e cheio de perfumes variados. Há
rostos do deserto, com mais rugas que a pele de um
elefante e olhos cerrados que parecem – ou talvez seja
apenas o meu desejo – esconder uma sabedoria
intemporal, uma sabedoria das mil e uma noites. Mas
também há rostos ridículos e banais, vendedores de
camisolas de futebol, de telemóveis, de pilhas, de
câmaras digitais, que gritam em inglês, francês e
alemão.
Amanhã partimos para o deserto. Não se preocupem,
temos três jipes e o grupo em que estou preparou tudo
ao pormenor. São gente de profissões respeitáveis:
advogados, directores de marketing, contabilistas.
Todos homens. Melhor assim, talvez. Connosco vai um
guia marroquino, um Tarik el-Ahmar com quem tenho
conversado, no meu francês coxo, embora sinta que ele
diz apenas aquilo que acha que eu quero ouvir – o que
torna as nossas conversas cómicas porque eu não sei o
que quero ouvir.
E tenho de ficar por aqui. Como suponho que não
existam marcos de correio no deserto, preferi enviar-
vos algumas palavras deste terraço nesta noite quente
em Marraquexe.

Beijos ternos do vosso filho


XXVII

Querido amigo,

É Primavera, ou o que passa por Primavera nesta ilha.


E eu tentei, tentei com a paciência de quem coloca
peças de dominó, com a tenacidade dos alpinistas e dos
exploradores do Pólo Sul, tentei com esperança e
desespero e com o ar ridículo daquelas corridas em que
se equilibra um ovo numa colher que se leva na boca.
Mas o ovo caiu, não avistei o Pólo Sul nem cheguei ao
cume e as peças ficaram tortas. O quê? O que foi que eu
tentei? Não me lembrar. Não mergulhar nas águas
mornas e traiçoeiras da reminiscência, no gozo
masoquista de reviver o passado. E falhei
espectacularmente, como o homem que quis girar trinta
pratos ao mesmo tempo e os partiu a todos.
Comecei a sentir as cócegas da memória enquanto
observava os «populares» na enseada em frente à
minha janela. Foi sábado, o primeiro sábado de sol e
Primavera. Não aguentei e abri as janelas para que o
ruído do mundo e da vida me entrassem pela casa com
o cheiro do mar. Como seria de esperar havia crianças,
até bebés. Pus a cabeça de fora de casa (primeiro erro)
e deliciei-me com os gritos, guinchos e melodias de pais
e filhos (segundo erro). O cérebro, a memória ou a
acção de qualquer deus antigo, dos que recebiam
oferendas de fruta em cestos de vime, foi ligando
imagens, sons e sensações na minha mente, como quem
enrola lençóis para fazer uma corda e escapar de
qualquer torre, até que, daquela tarde primaveril numa
pequena praia de uma ilha dos Açores, fui transportado
no tempo e no espaço para outra tarde primaveril. E
quando me vi lá, quando me vi deitado na relva do
Jardim da Estrela, em toda a languidez e preguiça das
três da tarde, rodeado de «sabes bem quem mas não
direi», ao invés de trepar pelo lençol de volta à torre, ao
invés de abanar a cabeça, de regressar aos Açores e ao
momento actual, embrenhei-me na lembrança, como
uma mosca presa na teia. A luz iluminava as folhas
novas que, vistas de baixo, pareciam verde-fluorescente.
Soprava uma brisa ligeira e eu sentia a relva fresca
contra a pele dos braços e o cheiro da terra
ligeiramente húmida. A poucos metros de mim, crianças
subiam e desciam escorregas, sentavam-se com grande
aparato em baloiços, enchiam o queixo de gelado,
enfiavam o dedo no nariz, tudo isto sob o olhar atento
das mães e pais ou das amas, que se destacavam por
serem pretas, por terem braços de um castanho sedoso
com que envolviam com ternura genuína as crianças
brancas, loiras e chorosas quando estas batiam com a
cabeça, se assustavam com os cães ou (mundo cruel!)
deixavam cair o gelado no chão. Pela relva, havia casais
estendidos entrecruzando membros, putos a jogar à
bola, turistas em tronco nu com o mapa estendido ao
lado, de mochilas sujas e garrafas de água brilhando ao
sol. E vozes, uma imensidão de vozes que quase
chilreavam, cada uma com a sua melodia única,
debitando nomes e histórias ou apenas pedindo um gole
de água ou uma pose para a fotografia. De vez em
quando, ao longe, o contraponto melódico do trinar dos
eléctricos. Vejo flores totalmente desabrochadas com
pétalas radiosas e perfume intenso, quase consigo
sentir quão sedosas serão se as apertar entre os dedos.
Um pavão abre a cauda em cima de um telhado laranja,
as suas cores quase eléctricas refulgindo ao sol da
tarde. Uma mulher voluptuosa baixa-se em câmara
lenta para beber água no bebedouro, e as pregas, as
dobras, os vincos do seu simples vestido branco tornam-
se mais vivos e belos do que os retratados nos mais
admirados quadros. Velhos com boinas pretas e
cinzentas, alguns com a barba branca por fazer,
centenas de pequenos pontos despontando em
bochechas flácidas e cobertas de sulcos, jogam às
cartas. Casais tão idílicos que parecem nunca ter
discutido na vida lêem os jornais de sábado no café,
virando cada página com um gesto teatral. E o coreto
onde
o coreto alto e antigo e verde onde
o coreto no coração do jardim onde
(E entre o local onde estou, deitado na relva, e o
coreto passa uma bicicleta com um rádio a tocar alto. O
condutor leva duas bandeiras em cada manípulo e só
ouve música popular e parece passar tardes a
atravessar Lisboa com o seu ar zangado e o seu enorme
rádio.)

no coreto
…………… jogava à bola.

Não posso continuar. Não posso nem quero descrever


o quão difícil foi abandonar a felicidade pura, a
inocência que eu tinha então, quando achava que o
universo era benevolente e tudo era possível. Que a
minha casa estava assinalada e a peste não bateria à
porta. Não posso deixar que me possua a lembrança
táctil da relva na pele. Da pele na pele. Não posso
querer recordar-me de todo o langor, todo o abandono,
todo o prazer luminoso, toda a felicidade que vem a um
corpo ensopado em ternura por se saber amado.
Amanhã vou ver baleias. Imagino que um monstro de
carne e espuma salta e abalroa o barco. Imagino que me
engole e lá dentro encontro Jonas e Gepetto. Mas, o
mais importante, encontro um bálsamo para todas as
minhas recordações de um mundo que é mais belo do
que merece. Que é mais belo do que aquilo que mereço.
XXVIII

Querido amigo,

Foi assim: Acordei cedo. Não corri, nem saltei à corda,


nem fiz flexões e abdominais. Tomei um duche rápido,
vesti-me e fui para a cidade de estômago vazio. Cheguei
lá às oito e pouco e tomei o pequeno-almoço, galão e
torrada, numa esplanada da marginal perto do local
onde estava o barco. Já há muito que não me sentia tão
nervoso, foi até agradável voltar a sentir todos os
sintomas da antecipação.
Antes da partida houve um briefing. Sentaram-nos a
todos num pequeno auditório, junto ao porto, onde nos
mostraram um vídeo, em português e inglês, que
explicava os cuidados que devíamos ter durante a
viagem. Falaram também do tipo de baleias e golfinhos
que é possível avistar e dos seus padrões migratórios,
anatomia, comportamento. Prepararam-nos para uma
desilusão, repetindo com frequência que muitas vezes
não se avistam baleias, que estas não obedecem a
ninguém, muito menos a turistas. Depois, trocando
sorrisos cúmplices e levemente embaraçados, vestimos
coletes salva-vidas cor de laranja que cheiravam a mar.
Um a um, entrámos para o barco, um semi-rígido
branco de nome Ofélia. Eu sentei-me do lado direito,
entre um casal português e um pai nórdico com os seus
três filhos adolescentes. Por essa altura a neblina
matinal tinha desaparecido completamente e um dia de
sol instalava-se. O motor começou a rugir e o barco
partiu, provocando um ligeiro frémito nos passageiros
de colete. Observei a ilha a afastar-se, as casas a
diminuírem de tamanho e as árvores a tornarem-se
manchas de verde indistinto. De certa forma sentia que
estava a despedir-me, sensação estranha para quem
sabe ir regressar num par de horas. Aos poucos senti o
abraço do mar, a sensação de pequenez que é estar
rodeado de água e a única terra ser uma ilha cada vez
mais distante. Os salpicos humedeceram-me a roupa e o
sal colou-se à pele. No barco, os três membros que
constituíam a tripulação revezavam-se entre pilotar,
falar por rádio com os observadores na ilha e conversar
com os passageiros, acautelando os mais medrosos e
verificando possíveis enjoos. Quase toda a gente estava
munida de máquinas fotográficas e de filmar, que por
enquanto usavam apenas uns nos outros, mas que
estavam especialmente reservadas para os monstros
marinhos. Quando o barco saltava um pouco mais, havia
alguns guinchos. Uma criança começou a chorar, o que
levou a que o pai a abraçasse com um enorme sorriso
de ternura que me comoveu mais do que esperava. Após
cerca de quarenta minutos, o barco parou e ficámos à
espera. Entre as conversas e o ruído do vento ouviam-se
os estalidos metálicos do rádio. Pus-me a olhar para o
mar. Confesso-te que me passou pela cabeça,
hipnotizado pela profundidade da água, retirar o colete
e deixar-me cair, entrar no enorme oceano e descer,
descer até ao fim, até onde nadam os mais estranhos
peixes e vivem criaturas que nunca viram um Homem,
criaturas com cores e formatos tão variados e
maravilhosos que parecem ser a forma da natureza se
vangloriar, de dizer: «Vejam as coisas de que sou capaz!
Nada me é impossível!» Por segundos de tontura fechei
os olhos, inclinado sobre o mar, e imaginei essa descida,
imaginei o que seria ser uma pedra afundando-se na
mais profunda escuridão, afastando-me de todo o ruído,
luz e vida que existe à superfície. O arranque súbito do
barco terminou a minha reverie e quase lançou uma
francesa borda fora. A pequena tripulação congregou-se
na proa falando de forma excitada. Um deles, um tipo
de cerca de trinta anos com a pele bronzeada e cabelo
loiro queimado, disse-nos que estávamos com sorte e
repetiu depois em inglês «You are lucky!». Os
passageiros sorriram todos e entraram num frenesim de
preparação tecnológica, retirando as câmaras e
preparando-as como se fossem marinheiros com arpões,
ou, para usar metáforas não marinhas, cowboys
carregando pistolas com balas antes do duelo. Eu, ao
contrário do que a vida me ensinou vezes sem conta,
deixei-me ficar ansioso e expectante, deixei-me enrolar
numa teia de fantasia e preparei-me para um milagre. O
meu coração acelerou, devo ter aberto os olhos mais do
que o costume, devo ter até dilatado as pupilas. Eram
dois cachalotes. E lá os vimos, por curtos segundos
antes de mergulharem durante mais uma hora. Não se
pode dizer que tenha sido um desencontro total, pois
ainda se viu a enorme cauda, após uma curta mas
belíssima suspensão no ar, descer de forma tremenda
com o típico splash cinematográfico que encheu de
prazer ruidoso quase toda a gente no barco. Mas eu,
talvez por haver esperado demasiado, talvez por ter
ansiado tanto por esse momento, não senti que nenhum
nó se desfazia em mim, não senti a admiração que
esperava sentir, nem medo ou tremor, senti apenas que
via o mesmo que havia visto em fotografias e vídeos,
mas um pouco mais perto, e acompanhado do cheiro a
mar. No resto da viagem ainda se cruzou com o nosso
barco um grupo de golfinhos roazes, mas a tristeza já
me habitava e pouca curiosidade senti por essas
magnificas criaturas. Passei o resto da viagem ansiando
que uma baleia emergisse de repente à beira do nosso
barco e nos abalroasse, nos enviasse a todos para as
profundezas do mar. O que, como podes deduzir, não
aconteceu.
Quando o barco atracou e os outros passageiros
saíram satisfeitos e palradores, eu pisei o solo com a
reticência de um prisioneiro nos seus primeiros passos
de entrada na prisão. Parecia que até há poucas horas a
minha vida tinha seguido um propósito, mesmo que
fosse ténue e ridículo como o de ver uma baleia. Agora
já nem isso tinha. Conduzi para casa como que em
choque. O dia soalheiro tornava a ilha ainda mais bela
em toda a sua exuberância verde. Cheguei a casa
desiludido comigo e com o mundo. Entrei. Fechei a
porta. Descalcei-me. Andei cambaleante pelas várias
divisões como se estivesse à procura de alguma coisa
mas me tivesse esquecido do que era. Após alguns
minutos (ou terão sido horas?), sentei-me na minha
poltrona de leitura, apoiei os meus cotovelos um pouco
acima dos joelhos e a minha cara nas mãos, e chorei.
Não sei por quanto tempo o fiz. Até adormecer,
suponho, pois acordei há pouco. São cinco da manhã.
Sinto-me estranho. Sinto que sou uma pedra a afundar
no mar. Nas águas que agora atravesso, já não há luz. E
continuo a descer.
Se ao meu redor existem as mais maravilhosas
criaturas, de pouco me serve. Não consigo ver nada. E
continuo a descer.
XXIX

Ex.mos Senhores do Instituto Nacional de Estatística,

Sei-vos dedicados à recolha de informação importante


sobre a nossa Pátria, informação passível de
quantificação e análise estatística para poderem
apresentar relatórios anuais e semestrais e também por
ocasiões especiais como «o dia do idoso» ou «o dia da
criança» ou apenas o septuagésimo aniversário de um
vice-director. Sei também que a informação deve poder
ser transformada em percentagens e índices, e
fornecida em quadros e gráficos, incluindo os
apetitosamente denominados pie-charts. Suponho que o
vosso objectivo é que, através da divulgação dessa
informação, os «decisores» possam tomar as tais
decisões de forma «informada» e a Pátria possa
avançar, o declínio ser evitado e que se marque mais um
golo a favor do progresso.
Ora, sendo eu também um cidadão que toma decisões,
venho colocar algumas questões estatísticas para as
quais, na vossa busca e acumulação de informação, é
possível (tenho os dedos cruzados!) que tenhais a
resposta.
Sei que, à semelhança da literatura, vos preocupais
muito com nascimentos, casamentos e mortes, e que até
sois capazes de dizer quais destes se têm processado
mais e até em que meses (é verdade que há mais
casamentos em Junho e mortes em Dezembro?). Será
que me poderíeis dizer quantas pessoas morreram na
última década atingidas pela queda de um piano? Ou,
caso apenas tenham elaborado uma estatística para
todos os instrumentos musicais, então reformulo:
quantas pessoas morreram atingidas por um piano ou
um trombone ou pela queda de qualquer outro
instrumento?
E, já agora, quantas morreram por amor? Como se
compara a desilusão amorosa com o cancro do pulmão
na lista das causas de morte? E morrem mais pessoas
engasgadas ou vítimas de ataques de animais?
Já agora, nas vossas estatísticas existe alguma
informação sobre o choro? Qual a sua frequência
média? Quantas lágrimas por dia (ou semana, mês, ano)
chora um português? Ou será que é contabilizado em
centilitros? E é superior ou inferior à média europeia?
Choram os portugueses mais ou menos do que os
espanhóis, suecos, russos? E, já agora, choram mais as
crianças ou os idosos? E é verdade que as mulheres
choram mais do que os homens, ou a única diferença é
que estes o fazem às escondidas?
E, Ex.mos Senhores, quanto ao riso? É também
contabilizado? Diferenciam-se as gargalhadas dos
sorrisos? Nestes últimos distingue-se os amarelos dos
genuínos?
Qual é a taxa de amor à primeira vista nas cidades? As
pessoas apaixonam-se mais em que momento do dia?
Há alguma associação entre a frequência das salas de
cinema e a felicidade de um país? Existe uma
correlação entre o consumo de gelados e a actividade
sexual? Há algum indicador de esperança média de
paixão? De longevidade do sonho? De mortalidade das
ilusões?
Quanto ao kitsch, está relacionado com a densidade
populacional? Quanto mais pessoas por metro
quadrado, mais sofás cor-de-rosa?
Quem causa mais corações partidos: as mulheres
excessivamente belas com propensão para a melancolia
ou as mulheres moderadamente belas com propensão
para a euforia?
Há menos crimes nos bairros com mais livrarias? Há
mais crimes nos bairros com teatros? Um declínio no
número total de golos marcados nos campeonatos
nacionais está associado a um aumento de inscrições
em cursos universitários de natureza artística?
Por favor, se possível, respondam-me a estas questões.
Num espírito de partilha, quero retribuir a vossa
colaboração. Tenho recolhido, ao longo dos anos,
informação valiosa que, suspeito, não é contabilizada
nas vossas sondagens e inquéritos. Espero dar um
pequeno contributo para preencher essa lacuna.
Fiquem, pois, sabendo que:
75% das vezes em que me apaixonei não estava
vestido de verde.
De 60 a 70% das vezes em que bebi café com leite foi
ao pequeno-almoço.
Mais de 90% dos romances que li valeram a pena.
As versões originais dos livros de Dostoiévski estão
escritas em russo em mais de 99%.
Não parece existir uma correlação estatisticamente
significativa entre a minha capacidade de tocar tuba e o
tamanho da minha barba.
100% das vezes em que saí de um filme antes do seu
fim, utilizei calão ao falar acerca deste.
0% das vezes em que vi a Ava Gardner numa tela de
cinema pensei: «Afinal não é assim tão bonita.»
Já chorei mais vezes pelas catástrofes que sucederam
a personagens fictícias do que ao ouvir notícias de
catástrofes naturais com vítimas reais.
Nunca conheci, apesar de supor que seja um nome
não tão raro, alguém chamado Gaspar.
Por outro lado, conheço dois Efisménios.
A percentagem de pessoas que pertenceram a
qualquer das minhas turmas de liceu que se tornou
gestora de empresas é superior à dos que se tornaram
agentes de Hollywood.
Perto de 80% das vezes em que entrei numa florista
para comprar flores estava eufórico.
Desconfio de que exista uma ligeira correlação entre a
leitura de poesia e uma simpatia instantânea por
mendigos coxos de unhas aparadas.

Espero que estas informações e hipóteses vos sejam


úteis. Anseio pelas vossas respostas, nem que o façam a
apenas uma das minhas questões.
Congratulo-vos pelo importante trabalho que
desempenhais e desejo-vos a melhor sorte na recolha
desses fundamentais números que dão orientação e
motivo para o orgulho pátrio.

Com 100% dos melhores cumprimentos,


Um dos números na coluna da população total
XXX

Querido amigo, rei dos perdoadores,

Irei de joelhos até ao cume do Kilimanjaro pela aflição


que te causei. Peço-te que me perdoes, não só por te ter
assustado com aquela maldita carta de
autocomiseração, mas também pelas duas semanas de
silêncio que se seguiram. Não te censuro por teres
pedido ao senhor Joaquim para subir até minha casa e
me convencer a ir falar contigo ao telefone. A nossa
curta conversa terminou há pouco mais de meia hora e,
como te acabei de prometer, vou escrever-te de
imediato com todos os detalhes e justificações para o
silêncio.
Já não pego em papel e caneta desde essa madrugada
confusa. Porquê? Porque não me apeteceu, porque não
tive forças, por todos esses singulares motivos que
mantêm os deprimidos à margem da vida. Talvez tenha
sido isso, talvez tenha querido ficar à margem da vida.
Não me bastava mudar-me para os Açores, deixar de
ver televisão, abandonar a Internet e o telefone.
Passei a maior parte da minha vida tentando colocar-
me no centro do rio, no local onde a corrente é mais
forte e onde eu sentia que tudo fluía ao meu redor. Aos
poucos fui-me apercebendo de que é inútil. Um fluxo
não se agarra. A vida passa por nós onde quer que
estejamos e não é o nosso movimento que a torna mais
ou menos fluída, mais ou menos segura, mais ou menos
rica. Ou, pelo menos, não é o nosso movimento externo.
Sim, bem sei, começo a soar um místico instantâneo,
daqueles a quem basta juntar meio copo de água e
mexer com uma colher. Mas hoje, nesta carta, alarga
ainda mais a tua paciência e recebe com amizade todos
estes disparates que, apercebo-me agora, preciso de
vomitar.
No princípio era a luz viajando pelo espaço ou na
ponta da língua de Deus. E a mente divina imaginou um
cosmos onde um dia existissem cidades cheias de
contabilistas e restaurantes de fast food e museus de
design e lojas de descontos e cinemas e jardins com
escorregas e bancos recatados onde casais apaixonados
trocassem carícias. E Deus imaginou que nesse mundo
existiria vida acima e abaixo da terra, dentro e fora do
mar e que essa vida teria as mais variadas formas e
seria exuberante em cor, som, textura e propósito. Anjos
percorreriam esse mundo disfarçados: encarnariam
poetas, agentes de seguros, músicos desempregados,
jardineiros, um alemão chamado Bach, crianças
disléxicas, empregadas de balcão ou pedreiros. E
haveria uma forma de vida diferente de todas as outras,
porque consciente, porque capaz de se rir dos filmes do
Chaplin, porque capaz de fazer piadas sobre genitais,
porque predestinada, milhões de anos antes, a inventar
pianos.
E assim se fez segundo a sua vontade. E assim foi que
também eu me vi envolvido no meio desta história, com
vida acima e abaixo de mim, com mais cores e sons e
texturas ao meu redor do que as que poderei em toda
uma vida experimentar. Assim foi que, na marcha do
tempo, do antes para o depois, fui descobrindo coisas,
aprendendo coisas, crescendo, mudando, acumulando e
perdendo, cruzando-me não só com a vida mas também
com a morte. A vida é o contrário do cinema. No cinema
a nossa mente cria a ilusão de movimento a partir de
uma série de imagens paradas. A vida é como um filme
ininterrupto que nos esforçamos por parar, por fixar
numa só imagem, num fotograma que possamos
arquivar e pôr numa moldura na mesinha-de-cabeceira
da nossa alma.
A vida é movimento ininterrupto, mudança perpétua, e
temos de utilizar a ilusão para criar a ideia de que
existem coisas estáticas: identidades, corpos, amores,
lares, momentos. Achamos que podemos regressar a
quem fomos, estar de novo onde estivemos, amar o que
amámos. Mas não, nada é exactamente igual, nós não
somos nunca nós, mas uma outra versão, mesmo que a
diferença seja ligeira.
É apenas uma ilusão, inversa à do cinema, que nos
permite sentir que estamos, que somos. Mais correcto
seria se disséssemos que passamos e que fomos e
seremos.
Em relação ao que tive e já não tenho, não há nada a
fazer. Tal como não posso voltar a ser o que fui, por
muito que o deseje. Tenho de me inventar de novo.
Tenho de descobrir uma forma de estar e uma forma de
ser. Já não estou tão preso ao desespero como há duas
semanas atrás. Confundi um mamífero de toneladas
com a redenção. Mas a redenção não precisa de vir em
epifanias acompanhada de uma orquestra
melodramática. Quero acreditar que também pode ser
construída pouco a pouco, como um muro ou um
relatório de contas. Lucros na coluna da esquerda,
prejuízos na da direita.
E para te provar o quão determinado estou em
combater a tristeza, vou dizê-lo pela primeira vez. Vou
escrevê-lo pela primeira vez, e, como sabes que não
conseguirei escrever mais nada depois disso, despeço-
me já. Um último pedido de perdão, e um abraço terno
de agradecimento. Tenho lágrimas nos olhos e tremo
como uma criança assustada, mas aqui vai: O meu amor
morreu.
XXXI

Queridos pais,

Hoje não interessa onde estou. Escrevo esta carta em


reacção a um comentário solto por alguém que vocês
não conhecem num local que nunca visitaram. Hoje não
interessam os pormenores. Quando descrevi as minhas
viagens e falei de vocês e de como vos escrevia com
frequência mas já não vos via, tocava, abraçava há
muito, ouvi o comentário de que o amor também é
egoísta, de que, mesmo sabendo-me feliz, os meus pais
sofreriam a minha ausência. Não foi uma revelação,
estou a par das vossas saudades (e das minhas). Mas eu
talvez tenha abusado da ideia de que aquilo que os pais
mais querem para um filho é que ele seja feliz. Talvez
abdicassem de um pouco dessa felicidade por um pouco
de companhia. Pensando bem, é certo que abdicariam.
Começo a considerar que me julgam ingrato, que
acham estranho que eu consiga ser tão feliz sem estar
perto de vocês. Espero que as cartas vos mostrem que
não. Seria mais feliz se estivessem ao meu lado ou se
vos visse de tempos a tempos. Porque não regresso
então? Porque não passo pelos Açores, já que passo por
todo o Mundo? Porque é assim que tem de ser. Se
Ulisses tivesse visitado Penélope entre as sereias e
Calipso, não haveria Odisseia. A minha viagem tem de
completar-se antes de regressar a casa. Quando isso
será, não sei. Estou tão ignorante do verdadeiro dia de
chegada a casa como estava Ulisses. Mas saibam-me
feliz, e saibam que cada dia que passa vos peço perdão
por não vos poder dar o que merecem. Saibam apenas
que cada minuto que passo é abençoado, como
abençoado foi cada minuto ao vosso lado.
Do vosso filho
Longe mas perto

P.S.: Como ando de país em país, tenho dado a vossa


morada a algumas das pessoas que mostraram vontade
de me escrever. Só vocês estão sempre a par dos meus
movimentos, por isso peço-vos que me vão enviando as
cartas que aí chegarem.
PARTE II
I

Querido amigo,

Recomeçamos, não nos rendemos. O mundo insiste em


ignorar os estados de espírito dos seus habitantes e,
ocasionalmente, sem aviso, os atacar com momentos de
beleza incandescente. A melhoria do tempo trouxe uma
série de pessoas, sábado passado, à minha enseada.
Para combater a melancolia que me tem mordido como
pulgas, levei um livro para a areia e sentei-me no meio
da gente. Tentei entrar naquele estado langoroso que a
praia é tão eficaz em produzir, embalando o espírito
com o ruído das ondas, o chilrear das conversas e o
sussurro da brisa. Contudo, ao invés de relaxar e me
abandonar ao momento, à sensação do pé entrando pela
areia, à contemplação hipnótica dos rabiscos de luz que
o sol faz no mar, o que senti foi o aperto de um nó
alojado entre a alma e o estômago e o aumento da
distância para com as pessoas que me rodeavam, tão
enrodilhadas em viver, tão esquecidas da dor. Os meus
pensamentos foram-se tornando mais escuros e
espinhosos. Deixei de reparar no mar, na areia e nas
toalhas coloridas estendidas em diferentes ângulos.
Deixei de observar as famílias desempenhando os seus
rituais igualmente únicos e banais. Deixei de perscrutar
o horizonte para encontrar baleias ou barcos. Quando já
quase me tinha esquecido de onde estava e me
enredava em meditações soturnas, aconteceu um
pequeno milagre. Fui atingido na cara por uma bola de
plástico. A dor causada foi irrelevante perante a
surpresa. Olhei meio atordoado para a bola, já
inofensiva ao meu lado na areia, e depois para um
miúdo, com cabelos castanhos e olhos redondos, que me
contemplava, assustado.
– Foste tu que chutaste a bola? – perguntei-lhe.
– Desculpe. Sim, fui eu… foi sem querer, desculpe
muito…
Tive de fazer um grande esforço para não sorrir
perante o «desculpe muito». Mantive-me com o ar mais
zangado que consegui:
– Se voltas a fazer isto, se voltas a acertar-me com a
bola na cara…
O miúdo estava petrificado, assim como os seus dois
amigos que, cobardemente, observavam o desenrolar
dos acontecimentos alguns metros atrás.
– Se voltas a chutar a bola e a acertar-me… –
continuei agressivo –, dou-te um gelado! – E aqui sorri.
Ao invés de rebentar numa gargalhada, como eu
esperava, o miúdo manteve-se imóvel e assustado.
– Não é fácil acertar na minha cabeça pequena. É
preciso pontaria. Assim, se tu ou um dos teus amigos
conseguir acertar um remate na minha cabeça aí do
fundo, eu ofereço-lhe um gelado.
– A sério, senhor? – perguntou o miúdo, já menos
assustado, mas ainda perplexo.
– A sério, cavalheiro! – e dizendo isto, inclinei o meu
tronco para a frente numa espécie de vénia.
Foi assim que, durante meia hora, servi de alvo. À vez,
os miúdos colocavam-se por detrás da bola com a
concentração e solenidade de um marcador de penáltis
e tentavam rematar-me à cara. Infelizmente, a sua falta
de jeito aliada à imprevisível trajectória de uma bola de
plástico tornaram a tarefa mais difícil do que pareceria.
Após dez minutos de falhanços, fui-me chegando
subtilmente à frente e, com a ajuda de uma inclinação
ou outra do meu corpo, lá consegui ser atingido na cara
várias vezes para alegria dos miúdos e júbilo meu. Cada
bolada que levei foi como um estalo do destino, uma
lembrança física de que estou vivo e de que o mundo
não me vai deixar esquecer esse facto, mesmo que
tenha de recorrer a projécteis de plástico.
Após a sessão de tiro ao alvo, fui até ao restaurante do
senhor Joaquim para saldar a minha dívida de gelados.
A dona Olga disse que eu tinha a cara inchada e
perguntou-me se eu caíra. Respondi-lhe que sim, que
havia caído, mas que já me tinha levantado e que agora
estava tudo bem.
– Caí, mas já me levantei!– repeti enquanto regressava
ao areal carregado de gelados de morango e baunilha.
Sim, meu amigo. É verdade. Caí, mas já me levantei.

Vivo e com dores na cara


II

Meu querido português,

É a primeira vez que escrevo uma carta a sério.


Lembro-me da conversa que tivemos no parque de
campismo nos subúrbios de Florença, depois de ter
dado contigo, com papel e caneta na mão, a escrever
para os teus pais. Quando brinquei por não utilizares a
Internet e te lembrei de que já ninguém escrevia cartas,
disseste-me que era por isso mesmo que as escrevias,
que um e-mail nunca poderia substituir uma carta, que
uma carta era sempre um gesto de respeito pelo tempo
e pela distância, que era como um viajante, que
percorria países e trocava de mãos, que podia andar
perdida, chegar atrasada ou mesmo nunca chegar. Foi
então que me apercebi de que me estava a apaixonar
por ti, que as coisas que tu dizias e a maneira como as
dizias, que o silêncio aveludado que se seguia à tua voz,
que o teu olhar sempre feliz eram para mim obras de
arte, que, se eu pudesse, compraria por qualquer preço
e traria comigo para todo o lado.

Já se passaram quinze dias e sete horas desde que nos


separámos. O contingente americano, como nos
chamavas, seguiu para Veneza e tu seguiste para Praga.
Não sei por onde começar a contar-te tudo o que tenho
pensado nestes dias, todas as metamorfoses que se têm
dado dentro de mim. Veneza é ainda mais do que eu
esperava, e eu esperava muito. Quando dei por mim, a
filha de um mecânico da Carolina do Norte, sentada nas
arcadas do Palácio do Doge a ver o pôr-do-sol na Praça
de São Marcos, senti-me grata, senti-me inundada de
felicidade. E desejei ter-te ao meu lado. Lembrei-me do
teu entusiasmo constante, da tua incrível capacidade de
apreciar, de te deixares maravilhar. Tens de visitar
Veneza; esta cidade foi feita para ti. Tenho andado pelos
canais e pontes com a boca aberta de espanto. Não há
turistas suficientes no mundo para enfealcer estas ruas.
E quando o pôr-do-sol chega e as águas se acendem
como um espectáculo de luz de Las Vegas, parece que a
própria fealdade deixa de ser possível, mesmo como
lembrança, mesmo como hipótese. Veneza durante o dia
é uma cidade incrivelmente bela, poucas outras se lhe
comparam. Mas ao pôr-do-sol, não sei bem como
explicar, é como se deixasse de ser uma cidade, é como
de deixasse de ser um sítio e fosse uma sensação, um nó
que se desata por dentro, uma obra de arte colectiva e
infinita, feita de prédios, de canais, de pessoas, de
brisas e de barcos.

Já decidi que quero viver aqui, nem que seja um ano.


Quando era pequena e ia comer gelados a Franklin
Street com a minha avó, passávamos junto aos jardins
da universidade e eu olhava com idolatria para as
alunas deitadas na relva, lendo livros e rindo de forma
primaveril das piadas dos rapazes que as rodeavam.
Mais tarde estive eu aí, aliás, ainda há poucos meses
estava eu nessa posição, encostada a uma árvore com
um livro de Veronese na mão. Penso em como a
pequenita de rabo-de-cavalo e ténis gigantescos, com
um gelado de pistacho na mão, ficaria alegre se
soubesse que se tornaria numa dessas estudantes rindo
melodicamente estendida no relvado. Mas o que ela
nunca imaginou, e o que ocupava os sonhos da
universitária estudante de arte, é o destino que agora
percorro. Um dos meus professores preferidos dizia que
a arte é a actividade mais democrática de todas. Uma
obra-prima não exige, para ser apreciada, que o seu
contemplador seja rico, ou que seja masculino, desta ou
daquela nacionalidade, de determinada religião ou raça,
mais novo ou mais velho. Muitos alunos protestavam
contra esta visão utópica. Afinal, se algum motivo existe
para nos inscrevermos num curso de arte é podermos
desenvolver a nossa capacidade de a apreciar. A
resposta desse professor era uma história. Em tempos
idos, ele reunira alguns dos habitantes mais
desafortunados de Chapel Hill e sentara-os no salão
principal da universidade para que pudessem ouvir
algumas obras de Bach tocadas por alunos. Embora
para muitos dos espectadores esse concerto fosse
apenas uma forma mais confortável de se aborrecerem,
alguns comoveram-se de tal forma que chegaram
mesmo a chorar. Não sei se a história é verdadeira, mas
é plausível. O mesmo professor dizia que mais do que
estudar a teoria, aquilo que nos faria perceber ainda
melhor o poder da arte era viver, ou melhor: Viver! E foi
isso que me fez apaixonar-me por ti: sentir que tu o
fazes, que vives como ninguém.

Quando andámos por Florença, havia momentos em


que o teu gozo em contemplar certo edifício ou certo
quadro era tão visível que quase se tornava palpável;
acredito que se tocasse nos teus olhos os sentiria mais
quentes. Admito que senti inveja. Várias vezes o teu
entusiasmo contrastou com a minha falta dele. É por
isso que devoro os guias e os livros. Para tentar
encontrar mais gozo. Porque duvido da minha
capacidade de apreciar. Muitas vezes o meu prazer é
uma mentira. Todos os detalhes que acumulei, todos os
conhecimentos que absorvi dizem-me que a obra X é
uma grande obra, mas diante dela o meu coração não
pestaneja sequer. E tu, que não sabes o que é um
chiaroscuro, que muitas vezes desconheces o episódio
bíblico retratado, delicias-te, comoves-te, exultas. E não
só com a arte. Com tudo. Um relojoeiro sem dentes
fumando na Ponte Vecchio encanta-te, como te
encantam as laranjas do mercado, como te encanta a
loja de brinquedos perto da Praça Santa Maria Novella.
Não é curioso o amor? Acho o teu rosto a mais
encantadora das visões. Não há um Miguel Ângelo ou
um da Vinci que se compare. E porquê? Às vezes
suspeito de que o que é belo, o é por todas as
associações que nos traz. Talvez eu te ache belo porque
imaginar as linhas que te desenham me faz sentir viva,
me lembra o sabor de laranjas frescas e a sensação
física de dar uma gargalhada. Desculpa se me estou a
tornar abstracta demais. Sabes que é o meu defeito.

As saudades que tenho de ti, palavra que me


ensinaste, misturam-se com o prazer de Veneza. Há
tanto aqui para viver. Os vaporettos mais não são que o
inverso da Barca de Caronte, pois é para o paraíso que
levam os seus passageiros. Por mais devagar que se
desloquem, ainda é demasiado rápido para mim. Sinto
que não consigo absorver toda a beleza que desliza à
minha frente. As portas que dão para a água; os becos
que uma luz diagonal transforma em quadros
instantâneos; os venezianos que se reconhecem de
imediato pela sua normalidade, pela forma como, ao
contrário dos turistas, andam por Veneza como se fosse
a coisa mais usual as casas serem construídas sobre
andas, as escadas descerem para dentro de água, o lixo
ser recolhido de barco, que cada rua tenha um palácio,
que se viva sem vislumbrar um automóvel. Veneza é
plena de símbolos e ícones: olhas para as montras e
encontras sempre as máscaras de carnaval e os vidros
de Murano, e não se anda muito sem se ouvir
Goooooondola, o uivo promocional dos gondolieri,
sempre vestidos com as famosas camisolas listradas.
Mas mais maravilhoso ainda é estar calmamente a
observar um canal e ver surgir um desses famosos
barcos, como uma bailarina feita de madeira, flutuando
sobre as águas.
O pior desta cidade são as tardes. O calor é húmido e
inclemente. Nos primeiros dias achei caricatos os
grupos de turistas asiáticos que andam sempre de
chapéu-de-chuva aberto, mas cedo os percebi. É uma
cidade que pede que se durmam sestas, ou, pelo menos,
que se aguarde, num banco à sombra e de gelado na
mão, a passagem das horas infernais. Para mim, a
melhor solução é passá-las nos museus. Como deves
imaginar, Veneza está para uma estudante de arte como
uma gigantesca loja de brinquedos para um miúdo de
seis anos. Adoro a Scuola Grande di San Rocco,
carregada de Tintorettos como uma macieira de maçãs
no auge da Primavera. E adoro-a também porque foi
fundada para salvar da peste a família que a pagou. Não
é uma história magnífica? O horror da peste e o medo
da morte permitem a criação e promoção do belo.
Apesar disso, o meu museu preferido ainda é
L’Accademia, que fica mesmo em frente à ponte do
mesmo nome. Lá estão quadros de todos os Venezianos,
do Ticiano, do Canaletto, mas, mais que tudo, do
Veronese, especialmente o Festa em casa de Levi. É que
Veronese não é só um pintor, é um contador de
histórias, um cómico, um provocador, um arquitecto…
Divago, de novo, sabes como eu sou quando falo de
arte.
E por falar nisso: este ano é ano de Bienal de Arte.
Fomos lá já duas vezes. A bienal tem lugar na parte
mais a sul de Veneza, o Giardino. Uma série de
pequenos palazzos de pedra albergam exposições dos
vários países. Maravilha-me a mistura entre a falsa
antiguidade dos mini palazzos (quase todos
neoclássicos), as obras dentro destes, a vista de Veneza
na distância do horizonte e os cruzeiros gigantescos
atracados em frente à bienal. Sinto-me como se nos
tivessem enfiado numa máquina do tempo e esta se
tivesse avariado.
E no meio dos canais, dos canalettos, dos gellatti di
mocha, das pequenas pontes, das piazzas, dos turistas
orientais, dos jovens comendo pizza na Piazza
Margherita, dos espectadores de arte com olhares
sofisticados consultando o mapa da bienal, por entre
dias passados a atravessar o Rialto a ler as inscrições
dos cadeados que os amantes prendem à ponte
dell’Accademia, a contemplar os artistas de rua fazendo
girar bolas, a consultar livros que dizem que Henry
James dormiu aqui, que Proust almoçou ali, que Byron
nadou acolá, por entre as conversas sobre estética,
banhada na luz do pôr-do-sol mais retratado na história
da arte, por entre as multidões aguardando a sua vez de
entrar na Basílica de São Marcos ou para subir ao
campanário, envolta na brisa da lagoa durante as
viagens de vaporetto, comendo fruta fresca no mercado
do Rialto, ouvindo os gemidos amorosos na nossa
pensão de paredes finas, bebericando cerveja enquanto
as luzes nocturnas deslizam pelas águas escuras, não te
esqueço e lamento não viver tudo isto contigo, e sei que
talvez nunca nos veremos outra vez.
Amo-te.
Esta palavra pode parecer exagero, o efeito de Itália
numa americana do Sul, que cresceu rodeada de
demasiados livros e de poucos rapazes. Mas não posso
dizer outra coisa senão: amo-te.
Tenho vivido momentos tão tristes que não deve haver
um quadro no mundo capaz de os retratar. Nunca fui
tão feliz e tão infeliz como agora. Rodeada de todos
estes tesouros seria capaz de os trocar por ti. Talvez
seja a ideia de que nunca nos voltaremos a ver que
torna o meu amor tão incandescente. E, contudo, eu
espero por ti, alimento a esperança de receber uma
carta tua, um bilhete, um sinal. Quando me autorizo a
sonhar de forma mais violenta, imagino-me sentada à
sombra, numa das tardes vaporosas de Veneza, e vejo,
vinda na minha direcção, uma figura a descer uma das
pequenas pontes que ligam os canais. E essa figura, aos
poucos, passo a passo, perde o seu carácter indistinto e
ganha os teus contornos, as tuas feições, a tua alma.
Minutos depois, o mundo poderia acabar que eu já
saberia qual era a intenção de Deus quando imaginou a
felicidade.

With love,
Stella
III

Ex.mo director do canal de Televisão…

Devo, logo à partida, confessar que não sou neste


momento um espectador do seu canal. Por favor não se
ofenda. Não é apenas do seu canal, mas de qualquer
canal. A verdade é que não vejo televisão já há alguns
meses. Peço que não interprete a minha ausência de
conhecimento sobre os programas pelos quais V.Ex.ª é o
principal responsável como uma crítica. Não duvido da
qualidade do seu canal. Acredito que a sua chegada a
um cargo de tamanha importância não se deve ao
acaso, mas às suas qualidades pessoais, nas quais por
certo se poderá incluir a sensatez, a cultura e a
humanidade, no sentido que esta tem quando utilizada
como característica pessoal (não sei se o mesmo
acontece com V.Ex.ª, mas eu adoro ouvir alguém dizer
que «X é um homem cheio de humanidade»). Já que o
senhor (senhora?) director é possuidor destas
qualidades e está consciente do papel civilizador da
televisão, não duvido de que o seu canal emitirá horas e
horas de programas que informam, entretêm e educam,
e que nestes se contará por certo uma telenovela com
adúlteros, concursos com electrodomésticos como
prémio e programas de opinião com luminárias mais ou
menos obstipadas.
Admitida a minha condição de não espectador,
acrescento que lhe venho fazer um pedido. Antes de o
apresentar, deixe-me dizer-lhe que sinto já em si pouca
vontade de continuar a ler. Um homem como V.Ex.ª tem
muitos assuntos para tratar, pessoas com que se reunir
para, contrariando a sua vontade real, lhes sorrir, e
pessoas com quem tem de se reunir para, expressando
a sua vontade real, lhes falar de forma ríspida e mostrar
a sua desilusão. Deixe-me, pois, garantir-lhe que se
atender ao meu pedido não só será mínimo o esforço
que terá de dispensar como ainda terá uma
contrapartida que, creio, achará muito interessante.
O pedido é o seguinte: Há alguns anos, ao visionar um
telejornal, num dia que de alguma forma se relaciona
com o poeta Fernando Pessoa (provavelmente no
aniversário do nascimento ou da morte), passaram uma
reportagem com algumas pessoas do Bairro de Campo
de Ourique que o conheceram em vida. Os
entrevistados eram todos crianças na altura em que o
corpo físico do Álvaro de Campos vivia na Rua Coelho
da Rocha. Uma das entrevistadas descreve-o de manhã,
a tomar um pequeno-almoço composto por um copo de
vinho tinto e um queque, refeição perfeita na minha
opinião. Mas o que me interessa é a história contada
por outro entrevistado. Nada mais nada menos do que o
filho do barbeiro de Fernando Pessoa. Pelo que ainda
me lembro da história, o barbeiro ia muitas vezes a casa
do poeta cortar-lhe o cabelo e o filho acompanhava-o
com regularidade nessas expedições. Pessoa falava com
prazer com ambos. Certo dia o miúdo estava mais
silencioso e ensimesmado e Pessoa notou (e que poeta
poderia deixar de notar essa tragédia que é um miúdo,
habitualmente vivo, estar ensimesmado?). Quando o
cabide carnal de Alberto Caeiro perguntou ao miúdo o
que se passava, este respondeu que uns rapazes lá da
rua o tinham chateado, ou uma coisa deste tipo. Que fez
então Pessoa? Vou-lhe dizer já, Ex.mo director. É uma
cena que, desde essa reportagem, reproduzo vezes sem
conta no cineteatro technicolor da minha mente.
Pessoa, que por certo estava sentado daquela forma
muito direita em que os homens se sentam quando
cortam o cabelo, estendeu o braço, poisou a mão na
cabeça do miúdo e, com a solenidade de um rei fazendo
de um bravo guerreiro um cavaleiro da Coroa, com a
concentração de um mago lançando um feitiço, disse:

«Não te deixes vencer por incompetentes.


Não te deixes vencer por incompetentes.
Não te deixes vencer por incompetentes.»

E depois retirou a mão e sorriu, como se soubesse


que, a partir daquele dia, o miúdo estaria abençoado e
nem um só dos seus cabelos seria tocado pelo mal.

Dei-lhe estas duas linhas para recuperar da história.


Mesmo que a sua reacção tenha sido infinitesimal
quando comparada com a minha quando vi esta
reportagem, não duvido de que tenha sorrido e se
sentido um pouco mais em paz com o mundo. Perceba
por favor que, como a maior parte das pessoas, eu
passei milhares de horas em frente ao pequeno ecrã. Da
guerra em directo ao toque de bola do Bergkamp, da
nudez de certas actrizes às entrevistas com políticos em
desgraça, das imagens de motins às de astronautas
transmitidas do espaço, esta história foi a coisa mais
bela, direi mesmo, mais sublime que tive oportunidade
de testemunhar olhando para uma televisão.
O que eu lhe peço, caro director, é que V.Ex.ª, ou
alguém por si ordenado, procure esta reportagem nos
arquivos do seu canal, embora eu deva admitir que não
tenho a certeza de que tenha sido neste canal que eu a
visionei (escreverei uma carta semelhante, mas sem os
elogios à sua pessoa, aos directores dos outros canais).
Se encontrar a reportagem, e me enviar uma cópia
para a morada em anexo, eu escreverei ao filho do
barbeiro do Fernando Pessoa para lhe agradecer ter
contado tal história. E aqui reside a contrapartida. Não
duvido de que os jornalistas responsáveis tenham
agradecido ao homem que o Pessoa abençoou. Mas
duvido que o tenham feito de forma adequada. Explico-
me melhor. O que aconteceu foi que os jornalistas
expressaram a sua gratidão pela narração de uma
história curiosa. No entanto, existe aqui uma
desproporção. É como se alguém a quem foi oferecida
uma caixa cheia de moedas de ouro agradecesse pela
caixa, e não pelo ouro.
Aquilo que os jornalistas e, depois, os espectadores
receberam, não foi uma historieta curiosa sobre o
Fernando Pessoa. Foi um poema. E não um poema
qualquer, mas um poema encarnado, um poema feito
gesto. Se eu revivesse a minha vida de novo e tivesse de
escolher entre nunca ter conhecido a obra completa de
muitos poetas ou nunca ter ouvido esta história, não
abdicaria da segunda.
Não me alongo mais sobre o tema da poesia porque
sei que V.Ex.ª é um homem com uma agenda carregada
e inúmeras decisões difíceis para tomar. O que me
proponho fazer é agradecer, na devida proporção, o
poema que o filho do barbeiro do Fernando Pessoa
iluminou. Ao fazê-lo não duvido de que alguma justiça
será reposta no Cosmos. E aí está a contrapartida. Ao
colaborar comigo neste projecto (palavra que utilizo
para me aproximar do mundo que V.Ex.ª habita), o
senhor director participará, de certa forma, num
poema. Não sei se V.Ex.ª é religioso. Se o for
compreenderá de imediato como este pequeno gesto
pode constituir um grande empurrão em direcção ao
paraíso ou a uma reencarnação muito bem-sucedida.
Mesmo não o sendo, não duvido de que o seu
comportamento é orientado pelos mais elevados
princípios morais, nos quais se inclui que o beneficiário
da generosidade de outrem expresse a sua gratidão de
forma proporcional à magnitude da bênção recebida.
Aguardarei a sua resposta com alguma expectativa. Se
se deparar com dificuldades na recuperação desta
reportagem, pois imagine que Fernando Pessoa colocou
a sua mão na cabeça de V.Ex.ª e lhe disse:

«Não te deixes vencer por incompetentes.


Não te deixes vencer por incompetentes.
Não te deixes vencer por incompetentes.»

Agradeço a atenção dispensada, coloco-me à sua


disposição para qualquer esclarecimento adicional e
desejo-lhe boa sorte para os seus projectos.

Um ex-telespectador
IV

Querido amigo,

Para que possas perceber que o meu dia-a-dia não é


tão desolado ou enlouquecido como julgas, vou-te fazer
o relato desta passada semana.

Segunda-feira

Dei por mim a passear por um pequeno centro


comercial perto da marginal. Alguma coisa me consolou
na existência daquelas lojas iguais a tantas outras, onde
se vai comprar jornais, camisolas e sandes de frango
com alface. Talvez tenha sido, mais do que as lojas em
si, a ideia de um mundo onde as pessoas ainda sentem
vontade de trocar de camisa, ler as notícias ou provar
um panini de mozarela. Acabei por fazer o mesmo:
comprei roupa, o que só havia feito uma vez desde que
aqui cheguei (acho que já mencionei as minhas
camisolas largas). Não te tenho falado disso, mas
emagreci bastante. A roupa que trouxe para cá já me
estava a ficar muito larga. Por vezes sentia que quem
me observasse com atenção suspeitaria que eu era um
presidiário acabado de se evadir, envergando com
desconforto as roupas do primeiro infeliz que
encontrara fora dos muros da prisão. Admito que obtive
um ligeiro prazer quando vesti, ainda no corredor do
centro comercial, uma das camisolas novas. Comecei a
sentir que era como as pessoas que andavam por ali,
que os meus infortúnios não lhes seriam estranhos, nem
os seus triunfos me pareceriam incompreensíveis. Quis
prolongar essa sensação. Comprei um jornal e fui para a
zona da restauração. Escolhi um menu num restaurante
chinês e sentei-me a comer e a ler perto das outras
pessoas. Custou-me um pouco ter interesse pelas
notícias do jornal. Não tenho facilidade em interessar-
me pelos pormenores de uma guerra longínqua, de um
caso de corrupção ou das propostas para legislar o
sistema financeiro. Rapidamente a minha atenção
passou do jornal e do prato de galinha à não sei quê (do
qual apenas comi algumas garfadas) para a gente que
me rodeava. Notei que havia muitas crianças
espalhadas por aquelas mesas, comendo hambúrgueres,
sandes ou gelados. O episódio da praia, onde ofereci
gelados para que os miúdos me chutassem a bola à
cara, despertou a minha vontade de conviver com
crianças. Apeteceu-me ir falar com elas. Imaginei-me a
abordar os pais e a pedir se podia brincar um pouco
com os seus filhos. Seria curioso observar a reacção dos
miúdos, bem como a dos pais, o horror com que me
olhariam… e, contudo, não fez sempre parte da vida dos
adultos o convívio com crianças? Tem de ser uma
característica dos adultos o desinteresse pelo mundo
interior de todas as crianças que não sejam seus
descendentes?

Terça-feira

Após o jogging matinal passei por casa dos Viana. Ao


contrário do que sempre tinha acontecido, quando
toquei à campainha ninguém respondeu. Como sabia
que eles se encontravam em casa – o carro estava
estacionado a três metros de mim –, voltei a tocar.
Devem ter passado quase uns cinco minutos até que o
médico, meio ofegante e muito irritado, me abriu a
porta, olhando-me com alguma antipatia. Não só não me
convidou para entrar como me perguntou o que eu
pretendia num tom distante da cortesia. Surpreendido
pela recepção, disse-lhe que gostaria de falar com a
mulher dele. Ele informou-me que ela estava doente e
que era uma má altura. Apercebi-me de que devia ter
interrompido uma discussão. De imediato mostrei a
minha preocupação para com a mulher dele e expressei
o desejo de melhoras rápidas. Para justificar a minha
visita («vim cá para tentar saber mais sobre o vosso
filho» não ia servir) disse que viera pedir a receita do
bolo de laranja.
– Tenho a certeza de que, quando a Teresa estiver
melhor, terá todo o gosto em passar por sua casa com a
receita – disse, despachando-me sem cerimónias.
A frustração deste encontro deixou-me um pouco
irritado. Há qualquer coisa de muito estranho com este
casal, sem dúvida. Regressei a casa e tentei escrever,
mas não saiu nada. Continuava a pensar nos Viana e
queria discutir o seu comportamento com alguém. Meti-
me no jipe e fui a casa do alemão. Bati com o nariz na
porta, a segunda visita falhada do dia. A frustração
acumulava-se e aumentava a minha necessidade de
falar. Dirigi-me à cidade. Estava determinado. Antes do
dia acabar, eu haveria de ter uma conversa.
Não foi fácil. As conversas talvez sejam como o amor:
só se encontram quando não se está à procura delas.
Comecei no supermercado. Abordei com a máxima
delicadeza as mães que faziam compras. Fiz piadas
sobre iogurtes, pedi ajuda para escolher detergente da
loiça, disse várias vezes «não sou daqui» com um ar de
cachorro abandonado, pedi receitas e sugestões.
Ninguém foi indelicado comigo. Todas as pessoas me
responderam de forma cordial, naquele sotaque sinuoso
que percorre as palavras portuguesas com os mesmos
ziguezagues das estradas desta ilha. Algumas
despacharam-me com a cortesia que se pode esperar
das pessoas civilizadas enquanto compram manteiga e
papel higiénico, outras esticaram essa cortesia,
respondendo com paciência às minhas várias, e tolas,
questões.
– Bom dia. Desculpe, eu não costumo fazer compras…
acha que esta é uma boa marca? – começava eu,
segurando uma embalagem de plástico cheia de um
líquido cor de limão radioactivo e sorrindo como um
turista atrapalhado numa grande cidade.
– Sim, serve muito bem – sorria-me de volta a dona de
casa.
– E já agora, desculpe lá, mudei-me há pouco para
aqui… e gostava de cozinhar peixe… – e aqui começava
a notar logo alguma impaciência na minha interlocutora
–, mas não sei qual será o mais fresco...
– Aqui é tudo fresco…
– Ah, óptimo. Mas qual será o mais saboroso?
– Mmmm – e por esta altura as mulheres já mostravam
todos os sinais de querer terminar a conversa: – Isso
depende do seu gosto… – e o sorriso esbatia-se, as
rodas do carrinho iniciavam a sua marcha e, sem
subtileza, elas desviavam os olhos de mim para as
prateleiras.
– A senhora, o que recomendaria? – insistia eu ainda.
– Talvez o robalo. Bem… tenho compras para fazer…
bons cozinhados…
– Obrigado – respondia eu à figura que se afastava de
mim naqueles corredores cheios de embalagens e
números.
Mais frase banal, menos frase banal, foram estes os
diálogos. Tentei falar com os poucos homens que
andavam pelo supermercado, mas também não pegou.
Recomendaram-me um vinho ou outro e foi isso. A
sequência de falhanços aumentava ainda mais a minha
necessidade de conversar.
Pus-me a andar pelas ruas. Acho que devo ter
parecido um pouco louco. Olhava para as pessoas olhos
nos olhos e sorria-lhes. Senti-me pronto a agarrar
alguém e a pedir-lhe, suplicar-lhe para conversar um
pouco comigo. Abordei várias pessoas com perguntas
sobre direcções, recomendações para restaurantes,
locais a visitar. Até que alguém me disse «Oh amigo,
mas se quer saber essas coisas, o melhor é ir ao posto
de turismo». Claro! Óbvio! Quase beijei o senhor
apressado que me fez essa sugestão. Iniciei a curta
caminhada para o meu destino e, na certeza de que
poderia ter uma conversa de mais do que cinco minutos,
as ruas pareceram-me mais belas, as pessoas mais
felizes e o céu menos cinzento. O posto de turismo era
uma sala com algumas cadeiras, dois balcões e muitos
posters. Atendeu-me uma rapariga de uns vinte anos.
– Hello! – disse-me ela.
– Olá! – sorri-lhe.
– Ah, desculpe – e logo nesta palavra vibrava todo o
sotaque açoriano, com o u a enrolar-se como uma onda.
O sorriso dela era sincero, acho que até corou um
pouco.
A nossa conversa foi longa. Ela abriu um mapa da ilha
e começou a fazer sinais e a escrever sugestões. Eu fiz
tantas perguntas que foi necessário recorrer a um
segundo, e mesmo a um terceiro mapa. Várias vezes
fomos interrompidos por idosos de outras partes do
mundo. Eu deixava-os falar com a Maria – o nome da
rapariga – e aguardava, fingindo que estudava os sinais
que ela fizera nos meus mapas. A rotina era sempre a
mesma: abria um mapa legendado na língua dos seus
interlocutores, fazia meia dúzia de círculos, entregava-
lhes folhetos sobre as expedições para ver as baleias ou
os passeios às furnas, respondia a uma ou duas
questões e desejava-lhes uma boa estadia. Senti, com
alegria, que Maria os despachava para voltar a falar
comigo. Depois sorria-me e tornava a falar do melhor
local para comer cozido, das horas em que era mais
interessante visitar as fábricas de chá, de onde se podia
comprar boas hortênsias. E entre estes temas eu ia
perguntando por ela, se estudava, o que pretendia do
futuro, se já visitara Lisboa, onde é que as pessoas da
idade dela iam à noite, que praias preferia, de que sítios
gostava tanto que nunca os recomendava aos turistas. A
conversa durou duas a três horas. No fim agradeci-lhe a
paciência que tinha demonstrado para um chato como
eu. Maria sorriu, coquete, e disse-me que, se todas as
pessoas que lá entrassem fossem como eu, o seu
trabalho não seria tão aborrecido.
– Volte sempre que quiser! – foi como se despediu. Na
altura, senti uma ligeira picada numa parte de mim
adormecida há muito. Interpretei aquele comentário,
que pode muito bem ter sido inocente, como uma
abertura a outro tipo de conversa, onde as palavras não
têm o significado normal ou até são mesmo
desnecessárias. Foi uma sensação muito rápida, durou
nem um segundo, mas fez-me olhar para Maria e ver
não uma miúda muito mais nova do que eu, mas uma
mulher que me desafiava. Senti que devia andar
resoluto na sua direcção e beijá-la, ou mesmo tomá-la
ali, sobre a secretária ou contra a parede. O momento
passou, felizmente. Sorri-lhe, desejei-lhe um bom dia e
saí.
Andei devagar de volta ao jipe. Sentia-me culpado por
ter sido surpreendido pelo desejo. E sentia-me cansado
do dia. Voltei para casa. Uma chuva miúda começou a
cair. Quando me sentei na sala e espalhei os mapas na
mesa, a chuva já era forte e o ar vibrava com o seu som
ritmado.
Num dos mapas, em que ela havia assinalado o seu
jardim preferido, notei que o marcara com o símbolo de
uma cara sorridente. Não percebo bem porquê, mas
isso fez-me sentir uma pontada de ternura, a que se
seguiu uma melancolia líquida. Peguei numa caneta e
desenhei uma cara triste ao lado do sorriso. Olhei para
a janela e para a chuva que caía. Uma das coisas boas
dos Açores é que o tempo parece acompanhar o meu
estado de espírito.

Quarta-feira

Choveu todo o dia. Fui correr, mesmo assim. Li,


escrevi, cozinhei, comi. Ao fim da tarde, quando a chuva
amainou, desci até ao mar. Estavam lá os dois barcos.
Perguntei-me por Hector, onde estaria e o que andaria a
fazer. Acho que vi uma alforreca ao longe, mas pode ter
sido ilusão de óptica. O que faria uma alforreca aqui
nesta esta altura? Também lhe aconteceu alguma coisa
e saiu de onde estava para vir escrever cartas para os
Açores? Serei eu uma alforreca? Serei venenoso ao
toque? Gelatinoso de aparência? Estarei ao sabor das
marés?

Quinta-feira

O sol voltou. Deixei-me ficar na cama a observar a


forma como a luz ia habitando o meu quarto. Imaginei
que a luz era feita de partículas individuais que se
pareciam com bonecos brancos irradiando luz do seu
peito. Só me levantei quando já tinha o quarto cheio de
bonecos luminosos. Almocei no restaurante da praia
onde também almoçou um grupo de pescadores
especialmente ruidoso e divertido. A seguir, fui até casa
de Hector mas ele não estava lá, nem o seu carro. Pode
ter tido que regressar à Alemanha. Não percebo porque
não me avisou.
Voltei para casa e, pouco tempo depois de ter entrado,
apareceu-me o Dr. Viana à porta com um ar cansado e a
receita do bolo de laranja nas mãos. Convidei-o para
tomar chá. Iniciámos a nossa conversa, que mais
pareceu uma batalha. Eu procurei perceber o que se
passava com a mulher dele e descobrir tudo o que podia
sobre o seu filho. Ele esquivou-se às questões de forma
subtil, ziguezagueando por entre as minhas abordagens.
Além de querer compensar a antipatia do nosso último
encontro, ele vinha, cedo o percebi, falar da Croácia.
Trouxe o tema quase por acaso e, se não tivesse sido a
insistência durante o jantar, eu não teria achado tão
estranho o seu interesse pelo assunto. Dei-lhe o que ele
queria. Falei da minha viagem, das praias cheias de
pedra e de italianos, dos restaurantes em Dubrovnik
com pizzas do tamanho de discos voadores, dos ferrys
entre as ilhas, dos sinais de proibição de armas à
entrada dos cafés, e de uma série de outras coisas. Falei
com o prazer da nostalgia, embora com pequenas
picadas de dor, por motivos que podes facilmente
compreender. Não sei como ele o faz, que talento tem,
se frequentou algum curso de psicoterapia ou ouviu
confissões numa qualquer religião, mas a certa altura
senti que contava a minha vida ao mais interessado dos
biógrafos. Parecia não haver nenhum detalhe na
narrativa que fosse demasiado insignificante, nenhuma
descrição excessivamente pormenorizada ou
aborrecida, nenhum acontecimento a mais. Durante o
relato tentei várias vezes mudar de assunto, mas, sem
grande alarde, de forma quase gentil, ele manteve-me a
falar da minha viagem até que, talvez por já saber tudo
o que pretendia, se pôs a falar dos Açores e, desta vez
já sem subtileza, a averiguar sobre o meu exílio. E eu
respondi-lhe, mas fi-lo da mesma forma que ele falou do
filho ou da mulher, proferindo frases que, apesar da sua
estrutura correcta, apesar de utilizarem as palavras
pretendidas pelo interlocutor, não lhe diziam nada do
que ele queria ouvir.
Estávamos envolvidos nesta conversa absurda quando
ele me perguntou se me sentia triste. Fui surpreendido
pela pergunta, tão pessoal e directa, depois de uma
longa conversa onde se falou muito e disse pouco. Sorri
um daqueles sorrisos de embaraço. Quis responder mas
percebi que havia sido desmascarado, como se ele
tivesse reconhecido sem dificuldade um sotaque que eu
me esforçara por esconder e que acreditara ser
imperceptível. O meu rosto traíra-me. Desviei o olhar,
pois ele agora observava-me com um ar quase de
piedade, e pus-me a contemplar o mar em silêncio.
Ficámos assim algum tempo, se segundos ou minutos,
não sei, mas o tempo suficiente para o silêncio deixar de
poder ser percebido como uma pausa na conversa e se
tornar na conversa em si.
Voltei a olhar para o médico que, como eu havia feito,
se pusera a contemplar o Atlântico. Havia nele um
cansaço tremendo, aquele tipo de cansaço que impele
não ao sono mas ao movimento perpétuo. Imaginei que
ele era o único detentor das chaves de todos os quartos
de um gigantesco hotel, percorrendo os corredores
infinitos de olhos baixos, abrindo e fechando portas,
sem saber se era manhã ou noite. Comovi-me e pensei
em contar-lhe. Pensei em aproveitar esta melancolia
morna em que nos afundáramos os dois e contar-lhe
aquilo-que-me-aconteceu. Contar tudo, com o detalhe
com que contei a minha viagem à Croácia. Comecei a
pensar por onde começaria e bastou isso para que me
assolasse uma tristeza violenta. Pigarreei para não
chorar. Nunca percebi porque é que isso resulta, mas
resultou. Levantei-me de imediato e levei as chávenas
para a cozinha. Ele também se levantou e vi de novo no
seu rosto o cansaço do funcionário de hotel destinado a
trabalhar sem fim abrindo portas para os outros.
Agradeceu o chá e estendeu-me a mão. Apertei-a com
força procurando expressar nem sei bem o quê,
qualquer coisa entre o agradecimento, o sinal de alerta
e o pedido de ajuda. Já com a porta aberta, não resisti:
– Sente muito a falta do seu filho?
Ao contrário de mim, ele não se surpreendeu pela
pergunta directa e íntima. Olhou-me nos olhos como um
professor que quer assegurar-se de que o aluno
compreende a sua explicação:
– Mais do que do meu filho, sinto a falta da vida com
ele.
Vi-o a andar devagar em direcção à sua casa. Era fim
de tarde, todas as nuvens haviam abandonado o céu que
agora ganhava cores de fogo e de magma, a brisa que
soprava do mar era amena, as flores explodiam no auge
da Primavera e as ondas rebentavam numa valsa lenta.
Aquele bocado do mundo estava perfeito e eu fechei-lhe
a porta, corri as cortinas e deixei-me levar numa
enxurrada de choro.
Isto foi ontem. Hoje acordei um pouco mais leve e até
fui capaz de apreciar a Primavera durante a minha
corrida matutina. Depois passei o dia em casa a
escrever-te esta carta. Só parei para fazer o bolo de
laranja. Está agora no forno. Espero que fique bom.

Abraço-te

P.S.: O bolo ficou maravilhoso.


V

Queridos pais,

Quem como eu faz da sua vida uma viagem cedo


percebe que o tempo se divide em dois: a permanência
e a deslocação. Tenho-vos escrito sobre a permanência,
o período em que um viajante descobre um novo local,
em que procura conhecer as singularidades das ruas e
gentes que o rodeiam, em que imagina o espaço que
ocupa como um destino final. Em Paris tenta ser
parisiense, em Londres, londrino e em Nápoles,
napolitano. Com a ajuda da imaginação, o viajante
percorre as ruas da cidade destino e tenta imaginar que
estas são as suas ruas. A sua atenção prende-se em tudo
o que é singular, na língua, nas letras, nos candeeiros,
nos rostos, na comida, no clima, em suma, em tudo
aquilo que seja particular deste lugar, porque só chove
daquela forma em Londres, porque as flores nunca são
tão primaveris como em Amsterdão, porque uma pizza
em Nápoles é uma experiência teológica.
Se a permanência é feita de características únicas, a
deslocação procura a universalidade, a repetição, ser
Tróia e Atenas ao mesmo tempo. Raramente recebe
mais do que umas poucas linhas dos escritores de
viagens, excepto para a ocasional aventura de voos
perdidos e barcos avariados. Mas não merece esse
mundo de bombas de gasolina, aeroportos, fronteiras,
salas de espera, estações de comboio e afins, uma
descrição? Não é este mundo quase um país em si
mesmo, também ele com as suas singularidades, os seus
encantos, os seus mitos e histórias?
Estou no aeroporto de Amesterdão. Perdi o meu voo.
Das vinte horas que terei de esperar, doze já passaram.
Alguém numa das minhas viagens comparou os
aeroportos aos purgatórios. Não é uma comparação
descabida. Se bem que, para mim, pelo menos no dia de
hoje, o aeroporto aproxima-se bem mais ao paraíso do
que ao purgatório. É possível que esteja a exagerar, mas
acho que nenhum lugar reúne de forma tão perfeita o
espírito humano, com todas as suas qualidades e
defeitos.
Estou sentado num dos muitos cafés que existem
espalhados pelo aeroporto. São zonas de passagem,
criadas para que o tempo passe de forma mais indolor e
olvidável possível. Mas, por isso mesmo, é um espaço
onde as pessoas podem pensar, onde podem suspirar,
onde as circunstâncias as obrigam a ficar horas
sentadas. Para muitos é a primeira vez em largos anos
que se vêem com horas de sobra nas mãos e sem uma
lista de coisas para fazer.
Gosto de aeroportos. Gosto de me saber num edifício
rodeado de aviões. Gosto de imaginar, mesmo que por
breves segundos, cada destino que surge nos ecrãs.
Gosto dos avisos nos altifalantes: «Passengers boarding
the flight 345 for Madrid, Spain, should proceed to gate
82» ou «Mr Janpuri, you are delaying the flight!». Gosto
do contraste entre as pessoas suspirando, sem saber
mais o que fazer enquanto aguardam o seu voo, e as
outras correndo como nunca correram na vida, todas
urgência e ansiedade, tentando chegar a horas ao
embarque. Gosto da mistura de línguas, de raças, de
roupas. Gosto do ritmo cacofónico das rodas das malas,
como minúsculas carruagens puxadas em todas as
direcções. Gosto da multidão subindo e descendo
escadas rolantes, deixando-se levar pelas passadeiras,
olhando para anúncios em línguas desconhecidas. Gosto
dos cafés e papelarias com jornais em diferentes
alfabetos. Gosto das lojas de roupas, de malas, de
presentes, com chocolates enormes e bonecos de
plástico retratando um aspecto do país onde o
aeroporto reside. Gosto de ver passar os pilotos e as
hospedeiras, de ver os seus uniformes, o seu ar
levemente importante e os sorrisos de quem faz da
coisa mais extraordinária do mundo (voar, voar!) um
gesto quotidiano, não muito mais difícil do que lavar o
cabelo ou fazer a barba. Gosto da arquitectura, da
sensação de espaço, dos quilómetros quadrados de
vidro entre os passageiros e o mundo exterior. Gosto
dos ecrãs gigantes com os nomes das cidades de todo o
mundo, e a panóplia de letras e números. Gosto dos
viajantes habitués para quem tudo isto é rotina, mais
uma das coisas a fazer para fechar outro negócio, e o
seu ar levemente aborrecido e muito profissional, já
sem saber quantas vezes estiveram naquele aeroporto
em particular. Gosto dos posters acolhendo os
passageiros em nome de uma cidade que muitos não
chegarão sequer a visitar, já que usam aquele aeroporto
apenas como uma sala de espera entre um acto
milagroso e outro. Gosto daqueles a quem o aeroporto
assusta, olhando preocupados para os bilhetes e para os
monitores, com medo de se perderem, de perderem o
voo, de que o avião caia, de que as malas se extraviem,
talvez mesmo de que apanhem o voo errado e aterrem
numa terra longínqua da qual não saberão como voltar.
Gosto das filas para depositar malas, filas para comprar
um café servido em copo descartável, filas para passar
pelos detectores de metais. Gosto de ver que meias as
pessoas levam quando se descalçam, e o seu ar meio
desagradado quando tiram os cintos. Gosto do tilintar
metálico de quando os guardas inclinam os tabuleiros
de plástico que passaram pelo aparelho de raios X, onde
um funcionário aborrecido procura vislumbrar bombas
entre carteiras, pacotes de pastilhas elásticas, revistas
enroladas, pulseiras, caixas de óculos, carregadores de
telemóveis e toda a infinita parafernália do mundano.
Gosto dos cafés solitários entre o check-in e a zona de
embarque, com meia dúzia de bolos e sanduíches feitos
para agradar a todos os paladares. Gosto das mangas
para entrar nos aviões com o seu ar de peça gigante de
Mecanno, que para mim são como pontes entre o
mundo da terra e o mundo dos ares. Gosto de ver
aqueles carros pequenos passarem com as malas, gosto
da ideia de trânsito, de deslocação, de objectos e
pessoas com destino definido, com o seu futuro escrito
num papel. Gosto das casas de banho enormes, com
homens a esfregar a cara com água ou a fazer a barba,
com gente a olhar-se ao espelho, a verificar as rugas e
as olheiras antes do encontro com a pessoa querida.
Gosto dos aeroportos como bolsa da saudade, onde em
minutos se reencontram pessoas que não se viam há
anos, e onde, após beijos emocionados, se despedem
casais que nunca mais se encontrarão. Gosto da
expressão melancólica dos que ficam, depois da
despedida. Gosto da sensação de que, enquanto aqui
estou, estou um pouco à deriva, sem âncora, mas certo
de que daqui a mais algum tempo me encontrarei num
avião e em breve estarei num lugar distante. Gosto do
metal reluzente por todo o lado, das estruturas que
abrigam escadas, guichets, passadeiras, anúncios,
jaulas para fumadores, bebedouros. Gosto da ideia de
que tudo isto foi feito por homens, do esforço que foi
necessário, do conhecimento acumulado, da
coordenação de milhões de gestos para este
espectáculo. E gosto quando surge no ecrã, ao lado do
meu destino, com o nome do meu voo, a palavra
boarding, e por mais voos que tenha feito, por mais
viagens que tenha experienciado, por mais destinos que
já conheça, sinto sempre um acelerar do pulso, uma
libertação de energia, como se uma roda dentada
dentro de mim tivesse encaixado noutra e iniciado a sua
revolução. Creio que, nestas alturas, enquanto dou os
primeiros passos na direcção do meu avião, sorrio
sempre, sorrio como no meu primeiro voo, quando tu,
pai, me olhaste nos olhos e me disseste que daí a nada
estaríamos no céu e tinhas a certeza de que eu não teria
medo, porque eu tinha olhos de pássaro. Lembras-te,
pai? E tu, mãe, procurando esconder o teu medo, tu que
não gostas de voar, sentada junto ao corredor tentando
não me revelar o quanto te angustiava estar num avião.
Só soube desse teu medo anos depois. Nesse dia não só
era novo demais para ter reparado nele, como o meu
lugar à janela me oferecia demasiadas fontes de
entusiasmo para que as subtilezas da expressão humana
fossem dignas da minha atenção, mesmo as da minha
mãe. Ainda me lembro de como, apesar de as ter visto
em filmes e fotografias, as nuvens, vistas de cima, me
pareceram um país de algodão, onde se poderiam
construir palácios, lojas de relógios ou estádios de
futebol.
E com estas recordações e esta carta, o tempo
continuou a passar e já estou bem mais perto do meu
voo, de voltar a sentir as rodas a encaixar-se dentro de
mim e começarem a rodar.
Despeço-me rapidamente. Saibam que sinto a vossa
falta, quer seja em permanência ou em deslocação.
Espero que andem felizes pela vossa ilha.

O vosso filho em trânsito


VI

Querido amigo,

Li a tua carta com preocupação. Pela primeira vez


desde que vim para aqui vou ter de te criticar:
demoraste linhas demasiadas para me dizeres que o teu
filho está bem, que o acidente não lhe causou qualquer
dano. E gastaste essas linhas expressando o teu
sentimento de culpa paterna, pedindo-me desculpas (vê
lá, tu pedindo-me desculpas a mim, que absurdo!)
porque o teu filho destruiu o meu carro. Tudo o que
tens feito por mim vale mais do que qualquer carro,
vale mais do que todos os carros que já foram
construídos, vale mais do que uma garagem do tamanho
da Gronelândia onde caibam todos os veículos, com
uma, duas ou mais rodas, que alguma vez circularam. O
importante, como bem o disseste, é que o João está
bem, e que mais ninguém se magoou. Peço-te que trates
do seguro e de todas essas chatices. Como sempre, a
papelada que for para assinar, envia-me e colocarei o
meu nome onde me disseres para o fazer. Só tenho pena
de não te poder ceder a minha assinatura, de não
poderes ser tu a assinar sempre com o meu nome, que o
gesto com que coloco o meu nome no papel não se
transfira por magia para o teu generoso cérebro.
Fiquei também preocupado pelo sentimento de culpa
que o teu filho mostrou. Confessaste o teu orgulho na
rectidão moral do João quando se propôs pagar todos os
danos. Ora, primeiro, a maior parte será coberta pelo
seguro. Segundo, terceiro, quarto e quinto, nunca
aceitaria tal coisa. Dizes-me que ele anda com um peso
na consciência, que tem dificuldade em dormir, que
deixou de sair à noite para poupar dinheiro e que insiste
em me telefonar para pedir desculpas in viva voce.
Custa-me saber que o João está em sofrimento e que eu
sou, mesmo que indirectamente, a sua causa. Claro que
ele me pode telefonar, é só uma questão de
agendarmos. Isto se ele ainda sentir essa necessidade
depois de ler a minha carta. É que, para tentar resolver
tudo isso, escrevi-lhe uma carta. Segue em anexo a
esta. Espero que ele a leia.
Falaste pouco do teu susto com o acidente. Imagino
que também tu estejas abalado. Não precisas de evitar
esses assuntos comigo. Podes partilhar os teus medos e
anseios, podes descrever-me com o maior detalhe os
teus mais terríveis pesadelos, podes fazer comparações,
desabafar, exagerar, sem qualquer receio sobre o que
vou sentir quando te ler. Gostava muito que assim
fizesses.
Por vezes penso com tristeza que há pessoas nos
Himalaias que não sabem da existência de alguém tão
gentil, generoso e paciente como tu. Se tivesse as suas
moradas, escreveria a cada uma delas para eliminar
essa lacuna…

Um forte abraço
VII

Querido João,

O teu pai informou-me do teu desejo de penitência.


Sei muito bem que certas culpas não desaparecem por
mera indicação exterior de que são desnecessárias. A
culpa pode ser como um grilhão que nos prende os pés
e que mais ninguém vê. Quando alguém nos insta a ser
livres e partir, procuramos mostrar-lhe as nossas
correntes, só que estas, apesar do seu peso para nós,
são invisíveis para os outros. É por isso que as religiões
possuem rituais de expiação, palavras, gestos e actos
mágicos que nos podem libertar. Sei que não basta eu
dizer que não te deves sentir culpado para que tal
aconteça. Sei que sentes uma necessidade de ser
redimido. Na confissão católica, o padre ouve os
pecados e determina a penitência. Desconheço se
existem tabelas que fazem corresponder a mentira o
roubo ou o adultério a um número determinado de pais-
nossos ou ave-marias. Mas de certeza que não foi
determinada a penitência para o pecado de se estar a
conduzir o carro de outra pessoa no momento em que
ocorre um acidente. Assim, se não te importares, e
porque te sentes em falta para comigo (sentimento
demasiado errado para que eu o comente),
estabelecerei eu a tua penitência. Será uma penitência
dupla. A primeira parte é simples. Terás de ler esta
carta até ao fim. A segunda parte será explicada mais à
frente.
Agora que tenho a tua atenção, fico quase incapaz de
escrever pela imensidão de coisas que gostava de te
dizer. Contudo, ia parecer a repetição da ancestral
história do homem velho desgastado com a vida,
consumido em arrependimento e tatuado por decisões
erradas, a urgir o jovem para que não siga o seu
caminho, a dizer-lhe que viva. Conheço a tua
inteligência e sei que isso não é preciso. Não duvido de
que navegues de forma fluída entre prazer e dever, de
que acumules alegria e amigos, de que saibas procurar
o júbilo sem te perderes na busca. Com o sangue do teu
pai nas veias e as suas palavras nos teus ouvidos, outra
coisa não é possível. Além disso, eu não sou um homem
desgastado com a vida. Não cometi o pecado de não ter
vivido. Cometi outros, mas esse não.
Vou pedir-te que tenhas paciência comigo. O teu pai é
um óptimo correspondente, mas preciso de ser lido por
alguém que ainda viveu pouco, alguém na posse de
todas as possibilidades e da vitalidade da juventude.
Não porque eu seja daqueles adultos que inveje a
juventude, porque a vida adulta lhe sabe a pouco. A vida
a mim nunca soube a pouco. Nem eu invejo a juventude,
a tua ou a de outro qualquer. Mas preciso de dizer umas
coisas. Lê-as como conselhos, como disparates, como
desabafos, como crise de meia-idade, como expressões
de desespero, lê-as como quiseres, mas sempre sabendo
que elas foram escritas por alguém que não tem medo
de olhar para os seus ossos, por alguém que tentou não
esconder imperfeições, passar uma imagem melhorada
ou, de qualquer outra forma, desviar-se da verdade, da
sua verdade.
Aos dezasseis anos descobri o amor e o mundo, e
talvez estas duas descobertas nunca se façam senão em
simultâneo. Descobri que o mundo era vasto e infinito
de possibilidades, que, ao contrário do que me
acontecera até aí, nenhum dia poderia passar sem que
nele encontrasse um alvo de espanto, uma marca funda
feita pela beleza na superfície das coisas. E descobri
que um sorriso menos generoso de uma rapariga de
olhos castanhos era suficiente para me fazer sentir que
todas as infinitas possibilidades do cosmos não
chegariam para a minha felicidade.
Aperceber-me da infinitude do mundo e da finitude do
amor, ir percebendo que existiam demasiadas coisas
imperdíveis à face da terra, que existiam demasiadas
possibilidades de amar para que alguns amores
ficassem por viver, fez nascer em mim, como um cancro
no pulmão, retirando-me cada vez mais ar, e levando-me
quase ao sufoco, a ideia de que o tempo passa. De que
passa e nunca pára, que é como uma locomotiva sem
travões. Tal fez-me viver a minha juventude em
urgência, consciente, demasiado consciente da
passagem do tempo, como se um relógio enorme
pairasse sobre a minha cabeça fazendo ribombar cada
segundo como um trovão mitológico. Vivi esses anos
batalhando diariamente contra a passagem dos dias,
batalhando contra o tic-tac, contra as páginas
esvoaçantes dos calendários. Sedento de vida, procurei-
a por todo o lado. Por vezes fui estúpido, outras ousado,
preferi cair no ridículo a sucumbir a uma vida que não
fosse tudo o que podia ser, que não contivesse tudo o
que pudesse conter, que não fosse incandescente,
expansiva, incrível, feérica. Mas toda esta irrequietude,
toda esta procura afastou-me muitas vezes do agora, de
viver o momento no momento. Só com o passar dos
anos é que fui aprendendo a não estar em urgência, a
não olhar para o minuto seguinte como mais uma
batalha. Mas consegui. Até certo ponto, claro…
Já adulto, apercebi-me de quanta sorte tinha, de todas
as coisas que conhecera e amara, da generosidade dos
que me rodeavam, do universo vasto que se criara
dentro de mim. Não deixei de querer engolir a vida com
casca e sementes, mas passei a sentir-me saciado. Se
enquanto jovem eu andava como quem se lança numa
carga marcial, já adulto passei a andar devagar – por
vezes demasiado devagar, testando a paciência
daqueles que passeavam comigo (pergunta ao teu pai!).
Aprendi a andar com o passo de quem já está satisfeito
de todas as formas e consegue estar no mundo, numa
rua, numa praça, mesmo que por breves momentos,
sem objectivos, sem propósito e sem destino. Essa
sensação, de ser apenas um espectador do cosmos sem
qualquer intenção que não seja a de se maravilhar com
o espectáculo das coisas, essa sensação tive-a algumas
vezes. E, curiosamente, foi nesses poucos momentos
que senti que vencera a batalha contra o tempo. Que
desaparecia o tic-tac sobre mim.
Por agora já deves ter reparado que, ao invés de uma
carta de um velho invejoso da juventude, querendo
gritar aos ouvidos dos jovens para se lançarem à vida,
com urgência, com os dentes de fora, sem perder um
segundo, recebes a carta de um velho que quer
sussurrar aos ouvidos dos jovens para terem calma,
para olharem ao seu redor, para cheirarem as flores e
apreciarem as pequenas coisas. Sim, admito a minha
culpa, vê tu os meus grilhões. Sim, podes confirmar com
o teu pai, eu sou uma montanha de sentimentalismo e
chavões, como dizia Salinger (e sim, também sou dos
velhos que citam escritores do seu tempo): ponho por
vezes nas coisas mais ternura do que Deus poria. Mas
sabes que mais? Não me importo. Os chavões aceitam-
se quando são proferidos em inocência, quando o seu
emissor acredita que foi o primeiro a pensar aquilo, o
primeiro a dar àquela ideia aquelas palavras.
Obrigado por teres lido estas divagações bafientas. A
primeira parte da tua penitência está cumprida, vamos
à segunda.
Terás de adquirir uma bengala. Se queres usar o
dinheiro que tens poupado para me pagar na sua
aquisição, ou se queres arranjar um ramo de árvore ou
a perna de uma mesa e, apelando ao artista em ti,
construir uma bengala, a escolha é tua. O fundamental
é arranjares uma bengala que seja imediatamente
percebida como tal, que uma criança de cinco anos e
um velho de noventa, quando questionados sobre o
nome do objecto, respondam sem hesitar: É uma
bengala!
Adquirida a bengala, deves dirigir-te com ela à
redacção do jornal A Semana. Pede para falar com o
editor ou com o crítico Ermenegildo Esteves,
idealmente com os dois ao mesmo tempo. Se
conseguires falar com um deles, ou com os dois (seria
maravilhoso!), após um primeiro cumprimento, simula
que lhes vais dar com a bengala. Depois do susto,
explica que eles foram avisados e que da próxima vez é
a sério. Se não conseguires falar com nenhum deles, diz
que vieste entregar a bengala e deixa-lhes um envelope
com o seguinte texto:

«Fica o aviso. Da próxima vez é a sério!»

Suponho que tudo isto te pareça um pouco bizarro.


Lembro-te de que não se chega à redenção por
caminhos simples. Acredita em mim e na importância
do gesto que vais fazer.
Não te maço mais. Agradeço a tua atenção. Desejo-te
dias intensos e outros aborrecidos.

Abraço

P.S.: Não contes nada disto ao teu pai…


VIII

Querido amigo,

Espero que estejas bem e que os anjos velem a tua


cama, e que o teu filho não se tenha irritado ou
exasperado demais com a carta que lhe enviei.
Por aqui foi a semana dos regressos. Hector está de
volta, e com o braço partido. Pouco me falou do seu
desaparecimento ou das causas do braço engessado; só
me disse que esteve na Alemanha a tratar de uns
assuntos e que escorregou a carregar caixotes.
Almoçámos no senhor Joaquim numa tarde que parecia
já de Verão. A minha pequena praia começa a ter
banhantes durante a semana, com as suas toalhas,
cestos e parafernália variada. Por um lado, oferecem-me
um espectáculo fascinante; por outro, parecem fazer
pouco do meu isolamento e tornar o meu desterro num
capricho de louco.
O almoço fez-me rir muito, o que já não acontecia há
demasiado tempo. O alemão voltou a salgar demasiado
a comida, a falar aos berros e a contar histórias
incríveis com muitos gestos. O sotaque dele é tão
bizarro que parece saído daqueles filmes de Hollywood
passados num país exótico, em que os actores
americanos tentam falar um inglês estranho, como se a
sua primeira língua fosse outra. O efeito cómico foi
aumentado pelo braço ligado ao peito, que o forçou a
comer só com uma mão. No fim do almoço, Hector
lançou-me um desafio. Dada a sua limitação actual, ele
precisa de alguém que o ajude a conduzir o barco.
Garantiu-me que me explicará tudo e que, na verdade,
só há uma ou duas coisas no barco que ele não
consegue fazer só com uma mão. Marcámos para
amanhã. Estou curioso para perceber que faz ele nestas
saídas. Será que vislumbrarei o tal tesouro?
Entretanto, a Teresa Viana bateu-me à porta há dois
dias. Trazia um sorriso cansado e uma caixa com
scones. Acolhi-a com agrado. Não sei o que se passou
naquela casa nas últimas semanas, mas a senhora
queria falar. Falar como só as mulheres conseguem
fazer. Pouco depois de nos sentarmos para comer os
scones e beber um chá que eu preparei de forma
exímia, ela iniciou um dilúvio de palavras que não vou
tentar reproduzir. Falou sobre ter estado adoentada,
que os seus problemas de saúde por vezes atacam sem
aviso, que lhe dão enxaquecas tão fortes que ela é
incapaz de fazer mais do que se deitar no escuro e
contar inspirações. Falou-me da melancolia, de uma
tristeza que a assalta sem motivo, apesar da sua vida
abençoada, apesar do seu marido dedicado, apesar do
seu filho encantador e viajante que lhe escreve as
cartas mais bonitas do mundo. Aproveitei para lhe
perguntar por ele, e consegui levá-la a falar-me das
discussões entre o marido e o filho. Disse-me que,
apesar de se amarem, havia vezes em que se
desencontravam e discutiam, sendo que certa ocasião,
há alguns anos, a discussão foi tão crispada que só a
recordação desse conflito lhe dava arrepios. Falou-me
de como o marido era um homem generoso, que sabia
tudo – foram estas as suas palavras: «ele sabe tudo!» – e
que passava os dias a ler e a escrever no seu escritório.
A escrever o quê, perguntei. «Ah, não sei, artigos
médicos, essas coisas.» Intrigado, questionei há quanto
tempo ele não exercia medicina, mas ela não me foi
capaz de responder com um número certo. Aliás, notei
em todo o seu discurso alguma confusão com datas.
Durante aquele monólogo, com direito a breves
interrupções para as minhas perguntas, toda ela era
irrequietude, os seus olhos piscavam e saltitavam por
todo o lado, as mãos nunca paravam quietas,
agarravam-se uma à outra, e de imediato se largavam
para se segurarem ao vestido ou à cadeira, os pés
nunca ficavam completamente assentes no chão,
dançando um bailado escondido, esticando-se, fazendo
pontas, sapateando. Fiquei um pouco preocupado e
tentei perceber até que ponto esta inquietude,
juntamente com as enxaquecas e a confusão, não
podiam ser sintomas de alguma coisa grave. Não tive
sucesso. Apesar da emotividade excessiva e de algumas
confusões, ela quando quer é perita em mudar de
assunto.
Aproveitei para lhe dizer que tinha gostado muito de
ler as cartas do seu filho e perguntei-lhe se não havia a
hipótese de ler outras. Nesse momento, ela sorriu de
forma quase demencial. «Ahhh! Mas foi isso mesmo que
vim cá fazer.» Tirou então da carteira uma carta de
várias páginas. Fora enviada de Paris, por altura do
Natal, o que só percebi durante a leitura já que, tal
como as outras, não tinha data nem vinha num
envelope. Pediu-me para a ler de imediato, pois tinha
medo de que o marido desse pela falta das cartas e
descobrisse que ela mas mostrava. Lembrei-me do seu
olhar horrorizado quando, apenas algumas semanas
para antes, me preparava para ler uma carta do filho
diante dela, e registei uma mudança. Se este nosso
segredo fosse um adultério, esta seria a fase em que
fazíamos amor na cama do marido.
Sem demoras, li a carta sob o olhar atento dela, o
olhar satisfeito de uma mãe que vê o filho fazer uma
habilidade em público e que constata a admiração das
outras pessoas. Percebi que o objectivo não era apenas
dar-me a conhecer o filho, mas ver a minha reacção às
palavras dele. Felizmente, não tive dificuldades em
felicitá-la pela carta, embora me tenha parecido um
pouco fantasiosa. Começo a pensar que o propósito do
filho talvez seja tornar-se um escritor de viagens, ou
mesmo publicar as cartas que escreve aos pais. Esta
pareceu-me demasiado pensada, as peripécias
exageradas, os pormenores mais estudados do que
observados… mas posso estar a sofrer de falta de
imaginação. É possível que todas estas coisas literárias
e mirabolantes aconteçam ao filho dos Viana. Se assim
é, estamos perante esse caso raríssimo do viajante que
encontra a viagem desejada, do homem que obtém o
destino que sonhou.
Depois da leitura, ela partiu, não sem antes se
esquivar a mais perguntas minhas. Começo a ficar
frustrado com estas conversas com os Viana. Pedia-te
que investigasses se ele exerceu medicina em Lisboa, e,
se sim, onde e até quando. Já te imagino a torcer o nariz
ao meu pedido, e a começares mesmo a acreditar que
estou louco. Sei que não preciso de o fazer, e que a tua
gentileza se imporia sempre sobre as dúvidas, mas vou
dar-te uma pequena recompensa. O teu psiquiatra, ou
melhor, o psiquiatra que tu recomendaste, respondeu à
minha carta, o que, admito, me surpreendeu. O homem
talvez não seja assim tão negligenciável enquanto
correspondente, como cheguei a pensar. Por cortesia e
pela nossa amizade, irei responder-lhe. E tu, meu caro,
não queres fazer de Watson deste teu Sherlock
desterrado?

Abraços detectivescos
IX

Ex.mos Senhores do Instituto Nacional de Estatística,

No seguimento da nossa correspondência*, venho


informar-vos de que conheci alguém chamado Gaspar. O
facto ocorreu no dia ____________, num centro comercial
na cidade ____________, onde o referido Gaspar trabalha
numa papelaria. Podeis agora proceder à consequente
reformulação das vossas bases de dados.

Com 99% de sinceridade


Um dos números da coluna da população total

*A verdade, meus senhores, é que estive a pensar se


comentaria a natureza da nossa relação, e se vós
poderíeis considerar rude uma menção directa desta.
Acabei por me decidir a fazê-lo, pois, afinal, como é que
poderíamos estabelecer uma relação franca de
correspondência, como poderíamos juntos contribuir
para o avanço da nação e da humanidade, se eu não
fosse completamente honesto com V.Ex.as, esperando,
naturalmente, honestidade e franqueza recíproca. Devo,
assim, referir que a nossa correspondência tem sido
predominantemente unilateral, e por
predominantemente eu quero transmitir a ideia de em
exclusivo, mas de forma mais suave. Ou seja, sem
rodeios, no fundo o que pretendo lembrar é que ainda
não tive resposta à carta, plena de informação
relevante, que vos enviei. Acredito que terão uma
justificação sensata e justa para tal ocorrência e
aguardo por lê-la quando receber a vossa resposta.
Espero, da superfície do meu coração, do fundo da
minha pele, do átrio espaçoso da minha alma, que este
pequeno reparo não melindre V.Ex.as, nem seja causa de
desmotivação entre o vosso pessoal. Não é de todo a
minha intenção prejudicar a vossa importante função.
Temos o mesmo propósito, o aumento do conhecimento
e o progresso da Pátria.
X

Querido amigo,

Escrevo-te ainda em choque, recém-saído de um


turbilhão inimaginável. Senta-te e respira fundo.
Começo pelo princípio.
Apesar do sol de ontem, o dia de hoje nasceu
enevoado. Acordei muito cedo e fui de jipe buscar
Hector. Tomei café em casa dele, no meio daquela sala
que parece a arrecadação de um louco. Quando saímos,
ele pediu-me para carregar um caixote, e eu aproveitei
para brincar sobre o conteúdo destes caixotes todos e a
confusão em que ele vivia.
– Como vocês portugueses dizem… – sorriu-me Hector
revelando duas covas nas suas bochechas barbudas –
tralha!
– Então e vamos levar tralha para o nosso passeio? É
pouco ecológico livrarmo-nos do lixo no mar – gozei com
ele, mas já levando nas mãos um caixote banal de
cartão grosso, com uns números escritos a marcador
preto num dos lados.
Hector olhou-me de forma estranha. Depois sorriu
exageradamente, como um maníaco que vê uma piada
hilariante num comentário fortuito, e deu-me uma
palmada nas costas:
– Não me fales em ecologia, meu amigo!
Este pequeno episódio é capaz de me ter feito corar.
Foi a primeira vez que percebi que era possível ter
encontrado um novo amigo. Que existia uma sensação
de camaradagem entre mim e o alemão, apesar das
inúmeras diferenças entre nós. Se eu e Hector nos
tornássemos amigos, essa seria a primeira relação nova
desde aquilo-que-aconteceu. Enfim, o que senti na
altura foi a leve euforia da amizade, um prazer terno
por me sentir próximo de alguém que estava
fisicamente presente, que me sorria de frente e me
olhava nos olhos, o prazer de ser tocado por um novo
amigo.
Estacionei o jipe o mais próximo possível da areia. Em
alguns minutos estava quase tudo pronto para
partirmos. O senhor Joaquim, quando nos viu a preparar
o barco, provocou o Hector:
– Então vai levar passageiros. Finalmente segue o meu
conselho para não navegar sozinho!
Hector respondeu de forma seca ao senhor Joaquim,
quase com agressividade, e o outro lá regressou ao seu
restaurante. Quando transportei o caixote do jipe para o
barco, notei uma tensão em Hector que nunca tinha
sentido antes. Não pensei muito sobre isso, porque de
imediato ele me deu uma série de indicações náuticas
que segui de forma eficaz – tanto tempo a ler sobre
barcos e marinheiros tinha-me preparado. Ajudei
Hector a entrar para a nossa embarcação e zarpámos.
Mesmo só com um braço, ele conduziu-nos de forma
exímia para fora da enseada. Era muito cedo e a neblina
parecia não querer levantar. Perguntei a Hector se não
havia perigo de chocarmos contra outra embarcação.
Ele tranquilizou-me explicando que passavam poucos
barcos por ali, e os únicos que costumavam passar eram
grandes o suficiente para que os avistássemos a tempo.
Fomo-nos afastando da ilha e o ar foi ficando mais
limpo. O motor do barco era bem mais ruidoso do que o
do semi-rígido da minha inglória incursão balear,
tornando a conversa difícil. Mas, mesmo tendo isso em
conta, notei que Hector estava menos palavroso, mais
circunspecto, talvez mesmo preocupado. À medida que
entrávamos pelo mar adentro, a neblina desvanecia-se,
mas o meu incómodo crescia e o semblante de Hector
tornava-se mais sombrio.
Claro que por esta altura já te ocorreram uma série de
hipóteses que deviam ter sido óbvias para mim antes de
ter entrado no barco. Não sei se é a vida no desterro, se
é esta necessidade de toque humano, se foi querer
acreditar que ainda podia ter relações reais e ternas
depois de aquilo-que-aconteceu, mas só aí, quando a
minha ilha diminuía no horizonte, comecei a olhar para
Hector de outra forma. Afinal, que sabia eu deste
alemão, além de que ele era especialmente extrovertido
e propenso ao exagero (e talvez à mentira)? Olhei para
o caixote de cartão e, em pânico, percebi que estava no
barco de alguém que vive sozinho no recanto de uma
ilha de um país distante do seu, que possui um barco e
o utiliza frequentemente mas que ninguém sabe para
quê, que tem empilhados em casa uma série de
caixotes, que partiu um braço porque «escorregou nas
escadas» e que, apesar do braço partido, insiste em sair
para o mar de manhã, num dia de neblina, com um co-
piloto inexperiente e um caixote suspeito. No medo que
comecei a sentir, encontrei algum alívio por termos sido
vistos pelo senhor Joaquim. «Uma testemunha!» –
pensei. Contudo, em vez de questionar Hector sobre a
nossa viagem, os caixotes e as suas saídas para o mar,
fiquei em silêncio e, num quase delírio, imaginei o que
faria se o alemão abrisse o caixote e tirasse lá de dentro
uma cabeça humana.
A situação em que estava era irreal, parecia saída de
um argumento de série B: a neblina que levantava, o
caixote e o seu conteúdo misterioso, o ruído
ensurdecedor do motor, e o ar tenso do alemão que o
transformava por completo. Recordei-me do que sentira
na última viagem de barco, quando olhara para as
profundezas do mar e quisera cair. Esta viagem era o
oposto da outra. A fantasia que me surgiu não foi de um
afogamento, mas de estar já na barca de Caronte,
levando os meus mortos para o seu destino.
E se tudo o que eu havia perdido estivesse dentro
daquele caixote?
Já navegávamos em mar alto quando Hector desligou
o motor e, olhando-me como um general que vai emitir
uma ordem indiscutível, fez-me sinal para me manter
em silêncio. O meu coração parecia querer sair do
corpo e, por mais que tentasse, sentia-me incapaz de
encontrar uma explicação para a nossa presença ali que
não fosse terrível. Queria falar, dizer qualquer coisa,
sorrir, quebrar aquela atmosfera assustadora. Queria
abandonar as minhas recém-nascidas e sombrias
suspeitas sobre Hector, queria voltar a sentir-me
próximo e em segurança junto dele, regressar ao calor
que me percorrera após a palmada nas costas que ele
me dera quando me chamou amigo.
O alemão olhava para o horizonte azul-esverdeado
como Ahab à espera de Moby Dick. O único ruído, agora
que o motor se calara, era o da flutuação do barco num
mar que apesar de calmo parecia esconder coisas
aterradoras. O céu mostrava-se agora completamente
azul. Eu respirava devagar e sentia as palmas das mãos
suadas. Pus-me a olhar para os pés. Tinha calçados uns
sapatos velhos, uns sapatos que ela me oferecera.
E foi então que surgiu. A primeira vez que o vi estava
já tão perto de nós que parecia ter-se materializado
num só instante ao nosso lado. Era um barco, uma
lancha azulada com um nome numa língua que não
conheço. Aproximou-se devagar e, aos poucos, os seus
tripulantes tornaram-se-me nítidos. Eram três, dois
enormes africanos, um deles de tronco nu, um tronco
musculado de boxeur, e um europeu loiro, com a pele
vermelha do sol, testa larga e óculos escuros de aros
redondos. Engoli em seco. Senti-me estúpido e culpei-
me, angustiado por ter tomado todas as decisões
erradas que me tinham levado até àquela situação.
Enquanto o barco vinha na nossa direcção, Hector
olhou-me fixamente. Parecia um aviso e uma ordem. De
quê e para quê, eu não saberia dizer.
Como estás com a minha carta na mão, sabes que as
coisas não correram mal ao ponto de eu não regressar,
ou de não ter oportunidade ou condições para te
escrever. Mas, enquanto o barco se aproximava, eu não
sabia disso. Pensei no pior dos cenários. A minha língua
ficou seca com a hipótese de que a morte estivesse
próxima, de que era possível, de que podia vir na sua
forma inesperada e, desta vez, para mim.
Pensei no absurdo da vida, pensei que, apesar de
todas as vezes desde aquilo-que-aconteceu em que
desejara morrer, agora, quando parecia haver a
possibilidade (pelo menos na minha imaginação) de que
isso acontecesse, senti que não desejava a morte.
Dentro do desespero que me assolou, percebi com uma
clareza absoluta que queria continuar a viver, que não
estava pronto para deixar o mundo dos vivos, para
abandonar a terra, para desistir do jogo da passagem
dos dias. Queria viver, queria continuar vivo, apesar da
dor, apesar da falibilidade dos sonhos, apesar dos
mortos, apesar da minha história, das minhas
memórias, do meu destino.
Hector e o homem loiro começaram a falar em
alemão. O tom era neutro, nem amigável, nem
agressivo. A certa altura o loiro apontou para mim e
disse qualquer coisa que me soou a interrogação.
Hector respondeu com uma negação. Posso não saber
falar alemão, mas sei que ele disse «Nein», seguido de
qualquer coisa. Imaginei mil perguntas. Se não fosse a
tensão em que estava, que me crispava o corpo como a
um catatónico, acho que me teria liquefeito, acho que
os meus ossos se teriam transformado em papa e todo
eu desabaria dentro de mim até me transformar numa
alforreca. Creio que vislumbrei uma arma de fogo na
lancha, atrás do africano em tronco nu, o qual parecia
observar tudo com um ar melancólico. O loiro lançou
uma corda para dentro do nosso barco. Hector, só com
uma mão, agarrou-a e prendeu-a com um nó. Com os
barcos tocando-se, o loiro entrou para o nosso. Hector
cumprimentou-o com um aperto de mão. De seguida o
homem dirigiu-se a mim e estendeu-me a mão:
– Hello, I’m Stephan!
Não consegui falar, mas apertei-lhe a mão
vigorosamente, o que fez com que ele me sorrisse. Um
sorriso como eu nunca tinha visto antes. Não sei que
metáfora ou comparação utilizar para te explicar. Um
pouco como um cientista sorrindo aos ratos brancos que
irão ser electrocutados numa experiência futura. Ou
talvez mais o tipo de sorriso que um psicopata faz à
vítima presa na cave quando está especialmente bem-
disposto. O Stephan encaminhou-se então para o
caixote, agachou-se, disse qualquer coisa em alemão e
abriu a tampa. Infelizmente, de onde eu estava era
impossível olhar lá para dentro, e Deus, Buda ou
Leonardo da Vinci me livre de eu me mexer um
centímetro que fosse naquela altura. O loiro fechou a
tampa e urrou umas palavras aos dois africanos na
lancha. Depois pegou no caixote e deu-o ao que estava
em tronco nu. Trocou duas frases com Hector e subiu
para a sua lancha. Hector soltou a corda que unia os
dois barcos e estes começaram a afastar-se. O loiro
olhou para mim com um sorriso enorme e pôs um dedo
sobre a boca, no gesto universal de silêncio. Ribombou
então pelo ar o ruído do motor da lancha e esta afastou-
se de nós a grande velocidade.
Aos poucos, como um membro adormecido que
recupera o fluxo de sangue, a vida voltou a mim num
formigueiro. O alívio começou a encher-me como um
dilúvio. Hector ligou o nosso motor, evitando olhar para
mim. O barco arrancou na direcção oposta da lancha
misteriosa, na direcção da ilha, do meu porto seguro.
De repente fui acometido por um vómito. Debrucei-me
sobre o mar e vomitei com violência. Parecia que o meu
corpo se queria esvaziar, ou mesmo que se queria virar
do avesso. Vomitei de forma tão intensa que me vieram
lágrimas grossas aos olhos. Vi o vómito a afastar-se,
uma mancha na superfície do oceano, uma marca na
pele do mundo, um sinal flutuante de que eu continuava
vivo.
Quando o meu estômago já estava vazio, voltei a
sentar-me. Hector olhou para mim, pela primeira vez
desde que me mandara estar em silêncio, e estendeu-
me uma garrafa de água.
– Obrigado – disse-me.
– Eu devia partir-te a cara! – respondi eu, mas não
deixei de receber a garrafa e beber aquela água, que,
na altura, depois da tensão, do medo e do vómito, me
soube ao paraíso.
– Não ias bater num homem com o braço partido, pois
não?
Estava com raiva do alemão, mas a principal sensação
que me invadia, a emoção que vibrava por todo o meu
corpo era o alívio. Eu estava vivo. Isso era o mais
importante.
– O que havia no caixote? – perguntei.
– Achas mesmo que queres saber? – sorriu-me Hector.
– Nada de mais. Uns búzios especiais que eu apanhei…
– Búzios...
– Sim, búzios…
– E eles não podiam ter ido buscar esses búzios à ilha?
Hector passou a mão pela barba como quem finge
pensar num complexo problema filosófico: – Não seria
bom. Lá o Stephan é persona non grata…
– És contrabandista?
– Contrabandista? Eu!? Tu achas que foi isso que
aconteceu aqui, contrabando?
– Sim, acho. Mas não acredito que seja de búzios…
– De quê, então? – sorriu Hector.
– Não sei… drogas, armas… sei lá em que merdas
estás metido!
– Contrabando de drogas e armas! Então eu ia trazer-
te para testemunhares o contrabando. Para ser preso a
seguir?
– Só se eu te denunciasse é que eras preso…
– Mas claro que tu denunciarias. Ou melhor, irias
denunciar, se fossem mesmo armas ou droga…
– Pois, mas não são…
– Claro que não.
– São búzios, não é?
Hector olhou-me muito agradado:
– Sim, sim! Búzios!
– Pena não ter podido ver esses búzios…
– Ah, mas querias vê-los? – Hector fez uma expressão
de tristeza exagerada. – Se eu soubesse disso… Podia
ter-tos mostrado…
Cansado de ironia, já não lhe respondi. Pus-me a olhar
para a ilha, cada vez mais próxima. Tentei não o
mostrar, mas sentia-me feliz. Cada salto do barco, cada
metro que percorríamos na direcção de terra era mais
um ponto de exclamação após as duas simples e
maravilhosas palavras, as palavras mais essenciais que
se pode alguma vez proferir: estou vivo.
O resto desse dia, assim que deixei o alemão na praia
e me meti no jipe, foi passado num estado de euforia.
Fiz o que não vim aqui para fazer: turismo. Passei por
casa e peguei num dos mapas que a miúda do posto de
turismo enchera de círculos e lancei-me em direcção
aos pontos assinalados. Passei as horas de luz que
restavam desse dia em lagoas, vales e furnas, extasiado
com a beleza, com o verde fulgurante, com o relevo
sinuoso, com as texturas do solo, com os aromas que
saiam da terra, encantado com o olhar terno que os
casais de turistas velhotes trocavam entre si,
maravilhado com as flores que surgiam de surpresa
depois de alguma curva, espantado com a cor do céu,
como se fosse a primeira vez que eu a visse
verdadeiramente, como se só nesse dia tivesse
percebido que o céu não é como uma tela, não é um
espaço uniforme, mas é denso e profundo como um mar
infinito virado do avesso. E aparecendo e
desaparecendo por entre curvas e colinas e árvores,
como um deus a jogar às escondidas, rodeando tudo e
todos, o mar, o mar resplandecente, o mar onde se
afundara o meu vómito, o mar que me separava da
minha vida anterior, o mar que vi então como se fosse o
tempo feito líquido, fluindo continuamente, nunca
parando, corrente puxando corrente, atravessando o
mundo, nunca exactamente igual, nunca completamente
diferente, povoado por baleias, atravessado por navios,
vislumbrado pelas estrelas.
De vez em quando, nestas horas excessivas mesmo
para mim, pensava na lancha azul, pensava no olhar
melancólico do africano musculado, pensava no sorriso
louco do Stephan, pensava no caixote. Imaginei-o cheio
de granadas, imaginei-o cheio de sacos de heroína,
imaginei-o cheio de búzios. Búzios mágicos que, quando
encostados ao ouvido, permitiam ouvir não o mar, mas o
sussurro de Deus.

Do teu amigo
Cúmplice de contrabando de búzios
XI

Ex.mo Senhor Dr. Pereira,

Como está? Como lhe corre a vida? Espero que bem.


Espero que muito bem. Não tome a minha ironia por
animosidade. Não tome, aliás, a minha ironia por ironia.
Sou mais verdadeiro quanto mais exageradas e
impossíveis soam as coisas que digo. Quero agradecer-
lhe a sua carta. Mostrou-me ser um homem cortês e
desenvolto, um homem que numa visita a um circo, por
pedido do anfitrião, seria capaz de sair dos seus sapatos
e colocar umas andas. Gostei de ver que apreciou a
minha carta, gostei das suas referências ao Buster
Keaton e gostei, acima de tudo, da sua persistência em
contribuir para a paz de alma do nosso amigo comum.
Como eu, o senhor sem dúvida vê nele o zénite da
bondade e da gentileza. Agora, caríssimo doutor, terei
de recusar a sua proposta para que eu visite um colega
seu, mesmo que este seja «uma alma literária,
apreciador de Bach, Cervantes e T. S. Eliot». Sejamos
sinceros, o que se pretende, com essa minha visita, não
é que eu discuta esses ou outros nomes, que se fale de
sinfonias, ou se recite poemas, mas que se avalie o risco
de eu cometer alguma loucura, ou melhor, de cometer
um tipo particular de loucura, um tipo definitivo de
loucura. Suponho, também, que pode estar escondida
uma vontade de me medicar, de tentar controlar, opor,
conter essa loucura com comprimidos misteriosos que
irão mudar as inclinações químicas do meu cérebro.
Nada tenho contra essas pílulas, aventuras cerebrais ou
variantes, sendo que nem me oporia, se a situação o
justificasse, a electrochoques, vendo mesmo algo de
poético na passagem de uma corrente eléctrica
adicional pelo interior do meu crânio. Porém, a situação
não justifica tais intervenções. Vou tentar explicar-lhe.
Outro dia estive num centro comercial. Veja lá, numa
ilha cheia de lugares paradisíacos e eu, num dos poucos
passeios que dei, fui a um centro comercial. A certa
altura passei junto às salas de cinema. Não duvido de
que, quando o senhor falou com o nosso amigo comum
sobre mim, a importância do cinema na minha vida, não
só pela questão profissional, mas por todos os outros
motivos, tenha sido abordada. Desde pequeno que vi
numa sala de cinema, mesmo nas salas mais
minúsculas, o lugar mais amplo do mundo. Nenhuma
praça, nenhum porto, nenhum cume de montanha me
ofereceu tantas visões do paraíso como um ecrã de
cinema. Mais do que beleza ou transcendência, o que eu
procurei no cinema foi a multiplicação da vida. A ficção,
nas suas melhores encarnações, permite a resolução de
uma das questões mais difíceis da nossa existência.
Permite-nos superar os constrangimentos da nossa
narrativa e viver outras vidas. Os teóricos falam da
«suspensão da descrença», da ideia de que, para se
poder apreciar certas obras de ficção, temos de nos
permitir acreditar no mundo ficcional. Simplificando,
suspensão da descrença é ser capaz de ver o super-
homem voar sem pensar «como é que ele voa?», é
acreditar que um vagabundo de bigode e chapéu de
coco é mesmo capaz de causar o caos sem sofrer
penalizações mais graves do que uns pontapés no rabo,
é ver surgir um vampiro e não questionarmos a sua
dificuldade em arranjar um dentista, e é acreditar que o
amor é mesmo o destino, e que supera todos os
obstáculos, especialmente os cómicos. Ora, quando eu
me sentava na sala escura, o que eu queria, o que eu às
vezes conseguia, era bem mais do que a suspensão da
descrença. Era a suspensão do eu. Nos filmes
abençoados, as angústias e sonhos dos heróis
substituíam os meus, eu deixava de ser eu e tornava-me
um com as almas encarnadas naqueles rostos enormes,
brilhando por detrás dos olhos em close-up, e sofria
com eles, e chorava por eles e extasiava-me com os seus
triunfos e vivia, no espaço de duas horas, uma outra
vida.
Já alguém deve ter feito esta comparação, tão óbvia e
clara. Sair de um filme é um pouco como nascer. Do
escuro, de um mundo uterino que nos parece só nosso,
sai-se para um caos de luz e gente, onde o sentimento
de espaço e de tempo é diferente. Se no cinema, como
no útero, tudo nos é dado, e só temos de nos deixar
levar pela história, fora dele, o espectador torna-se
narrador e personagem. A passividade já não chega; é
preciso iniciativa, é preciso procurar, é preciso decidir e
arriscar. Eu sentia este contraste de forma ainda mais
intensa quando saía do cinema a meio da tarde, como
fiz muitas vezes, e daquele espaço escuro onde só a tela
é iluminada, saía para as ruas encharcadas de sol. Não
era raro, então, que durante alguns minutos eu visse as
coisas ao contrário, suspeitando da ficção do mundo
real e ansiando pela realidade do cinema, pelo regresso
ao mundo do filme.
Ora, na última vez que fui ao cinema este regresso ao
mundo real foi ainda mais brutal, mil vezes mais brutal,
milhões de vezes mais brutal. Espectador responsável
que era, desligava sempre o telemóvel assim que
entrava na sessão. À saída, naqueles primeiros passos
num mundo sem director de fotografia, cenógrafos ou
realizadores, um dos meus gestos quotidianos era ligar
o telemóvel, gesto simbólico que me ligava de novo ao
meu eu real, ao meu eu que fora abandonado durante o
filme. Como o mundo não se suspende durante os
filmes, enquanto eu vivia outras vidas, contidas numa
tela, a vida mais ampla continuava a desenrolar-se lá
fora. O tic seguia-se ao tac que era seguido por um
outro tic, o dominó da existência derrubava as suas
peças, acontecia a sucessão ininterrupta das coisas,
gestos que causam gestos que causam outros gestos.
Cá fora, na luz inclemente das quatro e meia da tarde,
chegou então, com aqueles ruídos electrónicos, tão
ofensiva na sua banalidade, uma mensagem. Esta
mensagem era a queda da primeira peça de dominó que
faria com que tantas outras caíssem. Era o princípio de
uma vida nova. De uma vida à qual seria arrancada a
principal razão de viver. De uma vida tão diferente da
vida anterior àquela sessão que não pode ser a mesma.
Era como se, enquanto eu estava a ver aquele filme, um
deus infinitamente cruel tivesse substituído o universo.
Antes de entrar naquela sala escura, eu vivia no melhor
dos mundos, num universo onde as coisas faziam
sentido, a beleza servia um propósito e a felicidade era
possível. O universo que encontrei à saída, anunciado
pelo som de pechisbeque da mensagem de telemóvel,
era um universo que, apesar de parecer semelhante ao
outro, apesar de conter também árvores e nuvens e
pessoas, havia sido esvaziado da hipótese de felicidade.
Desde então não voltei a entrar numa sala de cinema.
E contudo, quando outro dia passei junto às
bilheteiras, o cartaz de um filme chamou-me a atenção.
Nele via-se uma fotografia de um funâmbulo num cabo
que ligava dois prédios. Na parte de baixo do cartaz
estavam algumas frases de críticos elogiando o filme.
Através delas percebi que os prédios eram as torres
gémeas. E foi então que me ocorreu, foi quase
imperceptível, uma microemoção (se existe tal coisa…
diga-me o doutor, que é o especialista), um germe de
pensamento, um sussurro quase inaudível pronunciado
no meu interior: «Tenho de ir ver isto!» Como
antigamente, como todas as vezes em que um cartaz ou
uma apresentação me provocava uma onda de
entusiasmo e me fazia pensar «tenho de ir ver isto». E
repare no «tenho». Na necessidade da coisa.
Claro que, de imediato, me lembrei de que já não era
essa pessoa que «tinha» de ir ver filmes, e me lembrei
do porquê e me afastei com pés pesados de tristeza da
zona dos cinemas e do seu cheiro a pipocas.
Por isso, como vê, não há motivos para se preocupar.
Eu vejo nesse sussurro do meu antigo eu um sinal de
que vai tudo correr bem. Embora bem no sentido
reconfigurado da palavra, o bem depois de aquilo-que-
aconteceu, se me faço entender. Provavelmente, não.
Desculpe.
Devo confessar-lhe que tenho ainda dias maus. Que,
embora não sofra de alucinações, me perco em mundos
imaginários. Construo cosmos inteiros na minha mente
e depois custa-me regressar ao aqui e agora, ao espaço
em redor do meu corpo, ao tempo ancorado naquilo que
o relógio da cozinha afirmar. E confesso-lhe também
que, nas cartas que escrevo ao nosso amigo comum,
omito certos pormenores e exagero outros, contando-
lhe uma vida um pouco diferente da que vivo aqui,
massajando alguns factos para tornar a história mais
próxima do que sinto.
Termino pedindo-lhe que, caso o nosso amigo comum
o contacte preocupado comigo, o tranquilize, e lhe
garanta, como eu também tenho tentado fazer, que,
apesar de eu viver num mundo incomparavelmente mais
pobre do que o mundo de antes de aquilo-que-
aconteceu, não tenho nenhum intenção de o abandonar.

Com cumprimentos de elevado calibre


XII

Queridos pais,

Estas semanas em Madrid têm-me trazido inúmeras


recordações de quando viemos os três aqui. A cidade
não deve ter mudado muito, mas a forma como eu a vivo
agora é – não podia deixar de ser – muito diferente. Há
qualquer coisa nos madrilenos contra a ideia de ficar
sentado. Estar em Madrid é andar de um lado para o
outro, é percorrer as ruas cheias de gente para trás e
para a frente, é passar uma noite em vinte sítios
diferentes, com tantas semelhanças e antíteses entre si
como os sotaques que se ouvem, o madrileno, claro,
mas também o argentino, mexicano, paraguaio e por aí
fora. Aluguei um quarto muito pequeno em Lavapiés,
uma caixa de sapatos, como eles dizem aqui. A minha
senhoria, que vive no quarto maior da casa, é uma
mulher de vinte e poucos anos, com o nome de Anna
Pollstein, que é pouco dada a grandes conversas, mas
que me trata com cortesia e que sorri vezes suficientes
para que eu me sinta, não em minha casa, mas na casa
de um familiar distante. Anna está a estagiar como
advogada numa importante firma madrilena, daquelas
com quatro nomes. Além do Direito, ela pratica violino,
tocando fim-de-semana sim, fim-de-semana não, num
quarteto de cordas. Mulher de hábitos, ensaia todos os
dias ao fim da tarde durante uma hora. Suponho que
outros arrendatários não suportariam a repetição
incessante da versão para violino da Casta Diva, mas
para mim ela surge como uma bênção. Não sei
descrever quão maravilhoso foi certo anoitecer em que
Anna não falhou demasiadas notas e a música ecoou
pelo pequeno apartamento enquanto eu observava, da
pequena varanda da sala, a multidão de pessoas
passando pela nossa rua a caminho dos restaurantes de
Lavapiés.
O frio aqui é coisa séria. No primeiro dia em que
nevou (e já vão quatro desde que cá estou) fui passear,
ensopado de alegria como sempre fico quando neva,
para o Parque do Retiro. Parei em frente do lago
artificial onde se podem dar passeios naqueles
minúsculos e ridículos barcos de plástico, o que eu fiz
com o pai, enquanto tu, mãe, nos olhavas cheia de
orgulho, sentada nas escadas. Lembrei-me desse
episódio e de outros da nossa viagem e senti a vossa
falta. Não sei se rezar é um termo justo, mas desejei
que vocês estivessem bem sem mim, que a minha
deambulação mundial não vos causasse demasiada dor
ou vos levasse a questionar esse laço entre nós que,
tenho a certeza, tenho a certeza como nunca ninguém
teve de nada, é indestrutível.
Estava embrenhado na tristeza da saudade, as mãos
enfiadas nos bolsos do meu blusão, a boca escondida no
cachecol, o olhar suspenso sobre o lago, quando surgiu
a Dani. O seu aspecto era único. Tinha um enorme
gorro laranja na cabeça coroado por um pompom cor-
de-rosa e uma franja entre o loiro e o castanho, abaixo
da qual brilhavam os seus olhos amendoados e verdes,
rodeados de três ou quatro rugas profundas. O seu
corpo estava coberto com um comprido sobretudo
cinzento, de corte marcial, e o cachecol que lhe rodeava
o pescoço parecia de um clube de futebol. As suas mãos
seguravam uma enorme máquina fotográfica como um
médico segura um recém-nascido para mostrá-lo à mãe.
Dani tinha uma boca larga mas fina e um ar que só vi
antes em certas estrelas de cinema, um ar
simultaneamente melancólico e sensual, de quem se
prepara para fazer amor uma última vez e morrer de
seguida. Comecei, de imediato, a esquecer a…
Dani perguntou-me se me podia tirar uma fotografia.
Duas horas e muitas avenidas depois, ela pusera-me a
par do seu projecto artístico de fotografar uma pessoa
por dia do ano, e que esse retrato contivesse a essência
do dia. Nesta conversa perguntei-lhe se eu era, então, o
senhor 13 de Dezembro, ao que ela me respondeu, com
todo o charme de uma prima ballerina procurando o
papel principal, que isso ainda não estava decidido.
Para jogar pelo seguro, ela fotografava várias pessoas
por dia e só depois escolhia qual representava melhor
aquelas 24 horas. O projecto iniciara-se em Outubro.
Daniela, ou Dani, como ela preferia ser chamada, já que
diminuía os nomes de todas as pessoas, já tinha
fotografado mais de cem pessoas.
A partir daí passámos a encontrar-nos quase todos os
dias. Tornei-me amigo dela, mas também assistente,
terapeuta, confidente e apaixonado secreto. Nas nossas
noites de tapas, croquetas & cañas, como Dani as
baptizou, fui conhecendo a sua história.
O seu pai havia sido um homem poderoso no tempo de
Franco. Morrera quando ela tinha 12 anos e, desde
então, a sua mãe e os seus dois irmãos haviam
transformado um pai autoritário, desprovido de ternura,
amigo da garrafa e da estalada como método de
resolução de conflitos familiares, e de quem se
suspeitava ter ordenado a tortura de várias pessoas,
num santo que tinha direito a missas, orações, e
histórias enternecedoras e caricatas das quais era
protagonista. Dani recusara-se, mesmo sendo tão nova,
a participar nesta fraude post mortem e iniciara uma
guerra familiar que ainda se mantinha nos dias de hoje.
Mas, mais do que os conflitos com a família, o que
perturbava Dani era a relação ciclónica que mantinha
com o seu namorado. Há já alguns anos que namorava
com Esteban Kemtrás, um médico de sangue húngaro,
dez anos mais velho do que ela, que tivera um primeiro
casamento em que produzira dois filhos e sabe-se lá
quantos adultérios. A ex-senhora Kemtrás era uma
mulher da alta sociedade espanhola, que montava a
cavalo com membros da família real e deplorava Dani.
Esteban, por seu lado, fazia apenas o suficiente para
manter a namorada, sem deixar de privilegiar a sua
primeira família. Dani contou-me que, no seu
aniversário, Esteban faltara à sua festa porque se
sentira na obrigação de ir à abertura da nova galeria da
ex-mulher.
Todos estes altos e baixos na relação de Dani com os
que lhe eram próximos produziam nela efeitos
imediatos. Assim, cada encontro com ela tinha o seu
quê de ida ao casino. Tanto podia chegar alegre e
vibrante, cheia de vontade de falar e andar, ou vir
chorosa e desesperada e saudar-me assim: «Qué guay
seria morir hoy!»
Não costumo encantar-me com mulheres trágicas em
relações infelizes, mas Dani é especial. Nos seus dias
bons, ela parece a encarnação do espírito de movimento
perpétuo de Madrid. E ela conhece a cidade, todas as
suas calles, passeos, plazas, vías, barrios. E com ela
conheci eu também os bares mais sofisticados e os mais
decadentes, os palacetes da aristocracia aborrecida, as
galerias de artistas vaidosos, os minúsculos
apartamentos de poetas sul-americanos, discotecas gay
na Chueca, tascos clandestinos em Lavapiés onde se
fuma haxixe por um cachimbo marroquino, ateliers de
design na Gran Vía, onde toda a gente pontua as suas
frases com expressões em inglês ditas com um sotaque
tão serrado que são quase incompreensíveis. Com ela
fui a exposições, museus, festivais, vernissages,
aberturas, happenings, bottellons, fiestas e mesmo a
uma manifestação contra, ou a favor, de já não sei
exactamente o quê. A maior parte das vezes
adaptávamos-nos os dois a esta vida boémia, ela bem
mais do que eu, aceitando oferendas em formas de
comprimido ou de linhas brancas paralelas que a
deixavam ainda mais inconstante e frenética. Eu,
naturalmente, recusava. Mas, por vezes, mesmo que
tudo estivesse a correr bem e estivéssemos cobertos de
alegria até ao umbigo, bastava uma mensagem do
namorado para Dani ir do céu ao inferno.
Quando eu já estava certo de estar apaixonado por
esta madrilena complicada, uns dias antes do Natal, ela
convidou-me para jantar no dia 25 com a sua família.
Colocou a coisa de tal forma que seria eu a fazer-lhe um
favor, o de a acompanhar à sempre dolorosa reunião
familiar, e não ela a zelar para que eu não passasse o
Natal sozinho. Nesse dia, almocei com a minha
senhoria, para quem a data dizia pouco, e encontrei-me
com a Dani ao fim do dia, na Plaza Mayor. Caminhamos
juntos até casa da sua mãe, os meus passos leves e
alegres. Quando chegámos estavam lá os dois irmãos
mais velhos, Xavier e Jorge, bem como a mulher deste,
Sara, e o seu filho bebé. A mãe de Dani saudou-me de
forma cortês, mas fria. Já os irmãos foram mais
simpáticos. Fomos para a sala, decorada a rigor, com
uma mesa cheia e uma pequena árvore de Natal a um
canto, rodeada de embrulhos. Assim que me pôs um
copo de vinho tinto na mão, Dani disse-me que voltava
já e retirou-se para a cozinha, onde estava a sua mãe e
Sara. Xavier, a quem Dani chamava Tchá, e Jorge, a
quem ela chamava Jor, puseram-se a conversar comigo
sobre viagens, futebol e o tempo. Alguns minutos
depois, Sara chegou à sala e trocou um olhar irritado
com Jorge. Quando acabei o meu copo de vinho, Dani
ainda estava na cozinha, de onde se ouvia de vez em
quando uma ou outra expressão agressiva. Passado
algum tempo, a mãe de Dani veio também para a sala e
entrou na conversa. Chegou a altura de nos sentarmos
para o jantar e Dani ainda não havia voltado. Xavier foi
procurar por ela e regressou com um anúncio que,
mesmo estando eu já habituado às excentricidades
daquela mulher, me surpreendeu:
«Dormindo.»
Foi um jantar bizarro. Eles procuraram pôr-me à
vontade, mas sempre que alguém tentava comentar a
ausência de Dani o ambiente ficava pior. Por alturas da
sobremesa, Dani regressou do mundo do sono, com a
cara de uma criança que despertou demasiado cedo.
Sentou-se ao meu lado e pediu-me desculpa com a
naturalidade de quem diz «Bom-dia» à mesa do
pequeno-almoço. Veio o café. Os embrulhos
permaneceram junto à árvore, porque só no Dia de Reis
é que são distribuídos. Pouco tempo depois Dani
anunciou que íamos embora. Nas despedidas, Sara, a
mulher de Jor, abraçou-me e disse-me, num meio
sorriso: «Pobrecito.»
Já na rua, Dani explicou, sem se alongar, que discutira
com a mãe por causa de Esteban e que, por não
aguentar a pressão e o horror (foi esta a palavra usada)
da noite de Natal, tomara uns calmantes. Em vez de me
acompanhar na viagem de regresso, despediu-se e
apanhou um táxi. Percebi que, por aquela altura,
Esteban já devia ter terminado o jantar com a ex-mulher
e os filhos e Dani ia voltar para ele. Não vos consigo
descrever o que senti quando o táxi dela partiu, mas era
frio e escuro e tinha espinhos.
Para procurar algum consolo nas iluminações das
ruas, e porque estava sem pressa de regressar a casa,
decidi voltar de autocarro. Na paragem um velho de
olhos tristes meteu conversa comigo, que se prolongou
até meio da viagem. Falámos de Madrid. Ele
recomendou-me uma série de locais para comer
croquetas. Parecia ser a única coisa que lhe interessava,
e, ouvindo-o falar, uma pessoa julgaria que a principal
actividade comercial, o zénite turístico, o
entretenimento preferido de toda a Madrid era comer
croquetas. O velho saiu a meio da viagem,
provavelmente para ir comer croquetas algures, e,
poucos segundos depois de ter ficado só, senti um toque
no ombro. Virei-me para trás e Lucía sorriu-me.
Lucía era uma argentina de trinta anos que
regressava de uma festa com amigos, tinha uma boca
carnuda e olhos cor de caramelo. Tocara-me no ombro
porque, não podendo deixar de ouvir a minha conversa
com o velho, me vinha recomendar uma visita ao
Palácio Real onde ela trabalhava como guia. Quis-me
oferecer um folheto, mas, após uma busca apaixonada
na sua carteira enorme, reparou que não o tinha ali. A
conversa continuou. Irritado com Dani e com o jantar
pantanoso que tivera de atravessar, esta surpresa com
sotaque de Buenos Aires pareceu-me uma compensação
do destino, um presente de Natal. Sem demoras,
comecei a tentar seduzi-la. E ela respondeu na mesma
moeda. A certa altura anunciou-me que iria sair na
próxima paragem. Saí também. Disse-lhe que me
apetecia andar um pouco e que, se ela quisesse, podia
acompanhá-la a casa.
Chegámos à porta e Lucía convidou-me a subir, com o
razoável pretexto de que assim me podia dar o tal
folheto. Era uma casa pequena mas acolhedora, cheia
de cores vivas e mobília confortável. Lucía ofereceu-me
um copo de vinho e acendeu um cigarro de marijuana.
Queridos pais, já vos disse antes que, salvo excepções
óbvias, vos escreverei sem censura, como se estivesse a
escrever aos meus melhores amigos, o que, no fundo,
também é verdade. Assim, admito que pouco tempo
depois de me sentar no sofá da sala, a boca voluptuosa
de Lucía chocava contra a minha e os nossos peitos
apertavam-se um contra o outro.
Após alguns minutos (se calhar, só mesmo segundos)
de desejo crescente, Lucía afastou-me com delicadeza.
Parecia querer mostrar que tinha pudor, que não era
uma rapariga dessas. Disse-me que não costumava
fazer isto, mas que fora a noite de Natal mais triste que
tivera. Falou-me então do pai em Buenos Aires, e de
como a relação complicada com ele a levara,
juntamente com motivos menos trágicos, a Espanha.
Era o seu primeiro Natal longe de casa e, apesar da
gentileza do grupo de amigos, todos também
emigrantes, com quem passara o serão, a saudade
fizera-a sair cedo e fora assim que nos havíamos
encontrado, dois órfãos em Madrid, na noite de Natal.
Regressámos aos beijos e fomos para o quarto
caminhando de frente um para o outro, ela recuando e
eu avançando. Quando nos deitámos na cama, enquanto
Lucía me puxava a camisa para fora das calças, disse-
me, em tom de gozo: «É Natal, vamos fazer um Jesus!»
E, então, parei. Ela explicou de imediato que estava a
brincar e retirou um preservativo da mesa-de-cabeceira.
Mas não fora por isso que eu parara. Alguma coisa
naquele comentário me fez pensar em todas estas
famílias separadas, fez-me pensar em Dani e no
fantasma do seu pai. Fez-me pensar na família de Lucía,
no Natal de Verão que estariam a passar, em Buenos
Aires, com saudades da filha. E, claro, fez-me pensar em
vocês e no vosso Natal sem mim. Porque, ao contrário
das mulheres com quem passei esta quadra, eu não
estou zangado convosco, nem vocês comigo. A distância
entre nós tem outras justificações. Temo que, apesar de
vocês me dizerem o contrário, elas não vos sejam
compreensíveis. Sei que a comparação é
desproporcionada, mas imagino que Maria não pôde
deixar de se perguntar se não havia outra opção além
da cruz. Mas, queridos pais, a mim não é a cruz que
cabe, mas a viagem. E não é pela morte que cumpro o
meu destino, mas pela vida.
Não consegui continuar. Da forma mais terna e suave
que encontrei, afastei-me de Lucía e saí de sua casa,
esperando que ela não ficasse magoada, como
certamente ficou.
Andando pelas ruas ainda se viam, através das
janelas, salas iluminadas com pessoas a rir. O frio
apertava-me os ossos e, olhando para o céu, perguntei-
me se nevaria no dia seguinte.

Do vosso filho
XIII

Querido amigo,

Excelente trabalho de investigação da tua parte.


Agora sei que o Dr. Augusto Viana exerceu na Avenida
da República em Lisboa até há três anos e que se
reformou mais cedo do que o esperado. Ainda não sei
bem como usar esta informação, mas não duvido da sua
importância.
Agradeço também a tua preocupação comigo e as tuas
recomendações cautelosas para informar a Polícia.
Compreende que não o farei. O que fiz foi acumular
alguma coragem e ir ter com Hector, alguns dias depois
da nossa excursão. Quando toquei à porta estava
ansioso, mas sentia também que vivia uma aventura. Se
calhar aquela conversa toda do vício da adrenalina é
verdade e qualquer dia lá estou eu a saltar de
parapente dos picos açorianos. Apesar de ser uma da
tarde, Hector abriu-me a porta com o ar de quem havia
acabado de acordar. O braço permanecia ligado e o seu
sorriso mantinha-se irónico. Sem dizer nada, fez-me um
gesto para entrar, demasiado exagerado, entre a vénia e
a continência.
A sala continuava caótica, os misteriosos caixotes
ainda por lá. Hector notou que eu olhava para eles mas
não fez comentários. Ofereceu-me café e fomos para a
cozinha, que parecia o cenário de uma luta até à morte
entre dois cozinheiros, tal o amontoado de loiça suja,
utensílios de cozinha e restos de comida.
Hector colocou uma cafeteira a ferver e, no seu
sotaque usual, disse-me:
– Ou eu te devo desculpas ou tu me deves um
agradecimento.
– E porque é que eu te havia de agradecer?
O alemão fez uma pausa exagerada:
– Certo. Isso significa que eu te devo um pedido de
desculpas. Aqui vai: Desculpa, entschuldigung, perdão.
– Mas porque é que achas que te havia de agradecer?
– insisti.
Hector estendeu-me uma chávena de café. O seu rosto
não mostrava qualquer emoção especial, era a cara de
alguém que se está a lembrar de onde estacionou o
carro:
– Admito que parte do motivo por que te trouxe
comigo é egoísta. Mas também achei que te fazia bem.
– Fazia bem?
A cara de Hector ganhou expressão e contorceu-se,
irritada:
– Sim… estavas a precisar de um abanão. Ouve, não
sei o que te aconteceu, em que sarilho te meteste antes
de vir para cá. Não me interessa. Mas a vida continua.
Já chega de dormir.
As palavras que o alemão me dizia já eu as havia dito
a mim mesmo muitas vezes. Apesar disso, irritaram-me.
Quem era aquele tipo para fazer juízos sobre mim, para
me envolver em sabe-se lá o quê e dizer que o fazia
para me «ajudar»?
– E quem é que te elegeu meu terapeuta? E que merda
é que se passou no outro dia? Então aquilo foi tudo para
me «ajudar»?
– Não, não. Calma. Eu precisei de ti, e achei que tu
precisavas de uma coisa daquelas. Uma mão lava a
outra.
– E não me podias ter avisado antes? Antes de me
envolveres em…
– Calma. Não te envolvi em nada. Aquilo que
testemunhaste não tem nada de ilegal. Tratou-se apenas
de uma troca em águas internacionais.
– Uma troca?
– Mas tens mesmo de saber tudo? Que diferença te
faz?
– Faz-me muita diferença saber que estive envolvido
no tráfico de armas ou drogas…
Hector lançou uma gargalhada.
– Armas? Outra vez… Meu amigo, não se passou nada
de grave. Relaxa. Apesar de gostar que me confundas
com um misterioso traficante de armas, não se passa
nada disso. Mas… vê tu mesmo. – E dizendo isto, saiu da
cozinha. Fui atrás dele. O alemão puxou um dos
caixotes para o centro da sala e, com a única mão
disponível, rasgou a tampa colada com fita isoladora
castanha.
– Olha!
Aproximei-me do caixote e olhei. O que vi não eram
nem armas, nem droga, nem medicamentos, nem nada
que eu antes imaginasse que fosse alvo de tráfico. O
que era… perdoa-me, mas não te direi. Sei que as
nossas cartas são secretas, mas não quero fazer de ti
um cúmplice.
A única coisa que posso fazer é assegurar-te que não
corri risco de vida naquela viagem, longe disso. Posso
dizer-te que fiquei, na conversa que se seguiu, a saber
muito mais sobre o tráfico de espécies, leis
internacionais, mecanismos clandestinos que alimentam
pesquisas científicas, as profundezas dos mares e outras
coisas. Quanto ao homem loiro e seus capangas
africanos, apesar de não serem os terríveis criminosos
que eu imaginei, também, acreditando em Hector, não
eram os homens mais cumpridores da lei navegando os
oceanos.
No fim da conversa, percebendo que o alemão
revelara bem mais do que seria necessário, que ele me
pusera a par de uma série de segredos, que confiara em
mim ao ponto de, caso eu quisesse, o poder incriminar
com facilidade, perguntei-lhe porque me contara ele
tudo aquilo, porque me levara no barco, porque
confiava em mim daquela forma.
– E porque não? – comentou, tranquilo. – Perguntas-
me porque confiei em ti? Eu confio nas pessoas. Não em
todas, mas na maior parte. E tu és fácil de confiar. Claro
que às vezes o excesso de confiança pode correr mal –
Hector moveu o seu braço partido num gesto ambíguo,
que tanto podia ser acidental ou uma indicação das
consequências dolorosas de confiar nas pessoas
erradas. – Mas a maior parte das vezes as coisas correm
bem. O mundo pode ser maravilhoso, maravilhoso…
– Não duvido disso. Só que, mesmo que tudo corra
bem a maior parte das vezes, basta, basta que… – e aqui
veio-me um nó à garganta que me impediu de continuar.
Bebi um gole de café e respirei fundo. O alemão ouvia-
me quase de costas enquanto coçava a barba com toda
a força do seu braço intacto.
– Basta que uma coisa corra mal só uma vez – disse
eu, finalmente. – Basta isso.
– Basta isso para quê? – perguntou Hector.
A primeira resposta que me veio à cabeça foi «para
que não seja mais possível a felicidade», isto porque
tinha escrito qualquer frase assim ao teu amigo
psiquiatra nessa manhã. Mas não a proferi. Não sei se
por ter medo de que, dizendo-a em voz alta, a tornasse
real, ou talvez o contrário: que ao proferir tal afirmação
a tornasse ridícula, o que faria o alemão rir e me faria
sentir patético.
– Para que deixemos de ser a mesma pessoa –
respondi.
Hector franziu o rosto mostrando descrença. Depois
levantou o queixo e coçou o pescoço enquanto grunhia
qualquer coisa em alemão.
– Não acho – respondeu-me.
Nessa altura já estávamos fora de casa. É um
pormenor importante, e o facto de eu ainda não o ter
mencionado, na descrição da conversa, mostra que
daria um péssimo dramaturgo; se fosse escrever uma
peça, provavelmente ia esquecer-me de personagens a
meio do palco e fazer outras sair de cena sem qualquer
motivo. Estar lá fora é importante porque é diferente
estar ao sol e cheirar o mar e ouvir bem de perto as
ondas do que estar numa cozinha em que os restos de
comida nos pratos sujos parecem já ter dado origem a
espécies mutantes. Talvez nessa cozinha a minha
reacção tivesse sido diferente quando Hector, abrindo
um sorriso gentil, um sorriso verdadeiramente gentil, o
sorriso que garante que o seu portador não possui,
nesse momento, qualquer má vontade, que não é em
nada diferente do que os cristãos acham de Jesus
Cristo, em suma, o sorriso de uma criança que acabou
de ver um truque de magia mesmo bom, me disse:
– Não acho que baste uma só coisa para deixarmos de
ser a mesma pessoa. A não ser que essa coisa seja uma
operação de mudança de sexo!
Ri-me. Ri com a boca e com os olhos e com o corpo
todo. Ri-me como não me ria há muito muito tempo. Ri-
me até ficar sem ar. Ri-me alarvemente com ruídos
animalescos. Ri-me com abandono, deixando-me levar
na gargalhada como um tronco caído num rio.
Lembras-te da expressão «arrebenta a bolha»?
Quando era miúdo e estávamos a meio de uma
brincadeira, a senha para parar o jogo, para regressar
ao «mundo real» era dizer, na voz mais alta que se
conseguisse: «arrebenta a bolha.» Não é maravilhoso?
Na altura eu dizia-o sem pensar sobre o seu significado.
Ter-me-ia feito tanto sentido dizer «toc lac pac» como
«arrebenta a bolha». Hoje vejo um poema inteiro no
«arrebenta a bolha». Ora, escrevendo-te sobre o riso
que aquela piada, que é possível que não tenha assim
tanta graça quanto isso, me provocou, penso que o riso
é um «arrebenta a bolha» inverso. É um sinal ao mundo
sério e sisudo de que o vamos abandonar. É impossível
estar a rir com prazer e ao mesmo tempo estar
preocupado. Uma coisa pode suceder-se à outra, mas
não podem existir em simultâneo. O riso é a senha
mágica para sair do desespero, para deixar de dar às
coisas demasiada importância. É, e escrevo-o com a
única linguagem que vejo adequada para expressá-lo,
um divino «que se foda!». Quando ri depois da piada de
Hector, não fiz mais do que dizer: que se foda!
Se o que senti naqueles segundos pudesse ser
traduzido em texto, seria mais ou menos isto:

Que se foda a tristeza e a melancolia, que se foda a


passagem do tempo, que se fodam as memórias, que se
fodam as contas por pagar, que se foda o amor, que se
foda o passado, o presente e o futuro, que se fodam as
vacas, que se fodam os barcos, que se foda o jogging,
que se foda a virtude, que se fodam todas as virtudes e
todos os pecados mortais, que se foda Santo Agostinho
e São Tomás de Aquino, que se foda a falésia, que se
foda o oceano, que se fodam as placas tectónicas, que
se foda o Governo da República, que se foda a ética, que
se fodam todos os livros sobre estética, que se foda a
música, que se foda Johann Sebastian Bach e toda a sua
descendência, que se foda a carreira, que se fodam os
sonhos, os alcançados e os perdidos, que se foda o sono,
que se foda o horizonte, que se foda a arte e a
literatura, que se foda o momento, que se foda Karl
Marx, que se foda Sigmund Freud, que se foda regar as
plantas, que se foda dar de comer ao cão, que se foda o
azar, que se foda o destino, que se foda a sorte, que se
fodam os referendos, que se foda o futebol, que se foda
o cinema, que se foda a amizade, que se fodam as noites
escuras e intermináveis, que se foda querer uma vida
melhor, que se foda quem fomos, que se foda o que
perdemos, que se fodam as fodas, que se foda a alegria
e a redenção, que se fodam as baleias, que se foda
Moby Dick, que se foda o cosmos, que se foda o tempo-
espaço infinito, que se foda a Primavera e as flores que
desabrocham, que se foda a família, que se fodam as
bibliotecas, que se foda a inocência, que se foda Gustav
Klimt, que se foda o iogurte grego, que se foda lavar os
dentes, que se foda a perseverança, que se foda querer
aprender e crescer, que se foda a paz de espírito, que se
foda o sentido da vida, que se foda a curva da estrada,
que se foda a traição, que se foda a Coca-Cola, que se
foda Rainer Maria Rilke, que se fodam os sinos das
igrejas, que se fodam as ilhas dos Açores, que se foda a
poesia, que se foda Lisboa inteira, especialmente o
Chiado, que se foda o pastel de nata, e que se foda, que
se foda bem fodida, que se foda como não se fode mais
nada, que se foda a morte. Porque eu, agora, estou a rir.

E aqui estou, horas depois, ainda com um sorriso. Aos


poucos vão regressando as larvas da melancolia – já as
sinto a entrarem-me pelas unhas dos pés. Só que agora
sei que ainda consigo rir. Talvez exagere na minha boa
disposição, mas sinto uma esperança de que não falte
muito para estar contigo e darmos gargalhadas juntos.
Como sabes que não deves levar demasiado a sério os
meus momentos escuros, também deves saber não
acreditar demasiado nas esporádicas explosões de luz.
Se amanhã já não tiver dentro de mim a esperança do
riso, não te desiludas.

Sorrindo
P.S.: Se a minha querida avó fosse viva e lesse esta
carta, e usasse o seu método usual de correcção do meu
vocabulário, sem dúvida que eu ficaria sem orelha…
XIV

Querido amigo,

Espero que a vida te continue a soprar de feição e que


tenhas sempre pequenos-almoços tomados com tempo e
que preencham a roda dos alimentos.
Visitei os Viana, e fi-lo com um pretexto sólido e
gentil. Ia convidá-los para jantar. Estava mesmo
disposto a encomendar comida, limpar a casa,
abastecer-me de bebidas espirituosas e canapés, na
esperança de que algo mais me fosse revelado. Fui a pé
até casa deles fazer o convite. Quando estava na parte
final do caminho notei um vulto dentro da estufa.
Espreitei lá para dentro e vi a Teresa Viana agachada
sobre a terra. Foi curioso observá-la. Tinha umas
galochas azul-eléctrico, umas luvas de borracha
amarelas e um chapéu de palha. Estava tão envolvida
na sua labuta como um monge em oração. Chamei-a.
Ela olhou para cima, sorriu-me e acenou, mas não fez
qualquer movimento que indicasse que me viria
cumprimentar. Disse-me que o marido estava em casa e
voltou ao seu trabalho. Bati à porta e, desta vez, foi um
Dr. Viana sorridente que me apareceu. Afirmou-se
contente por me ver e desafiou-me para um passeio.
Quando começámos a andar, fiz-lhe o convite. Ele
recusou porque tinha de ir tratar de assuntos a Lisboa.
– Vou ter de ficar sem a companhia dos meus vizinhos!
– disse eu com alguma tristeza sincera.
Ele informou-me então de que a sua mulher iria
permanecer nos Açores. De imediato percebi que teria
alguns dias para tentar, sem a perturbação da presença
do marido, obter dela toda a informação que
conseguisse. Assim, deixei-me ir naquele passeio e
naquela conversa sem qualquer agenda ou intenção.
Não falámos nem da Croácia, nem do filho, nem sequer
da vida nos Açores. O dia estava ameno e luminoso, o
mar calmo, e até as vacas que surgiam ao dobrar da
curva da estrada pareciam mais sábias do que o
costume. Subimos a encosta e andámos pelas estradas
sinuosas no topo da falésia.
Ainda conversámos uma hora. Depois despedi-me dos
Viana e voltei, quase que leve, a casa.

De resto não há muito para te contar. Por vezes tenho


tantas saudades de Lisboa que me imagino a passear lá,
por exemplo do Marquês de Pombal até ao Chiado, ou
de Algés ao Terreiro do Paço. Tanto vou sozinho, como
acompanhado de ti, do Fernando Pessoa ou, claro, da…
Entretanto, como o João não ainda não me telefonou,
suponho que a minha carta tenha surtido efeito. O
acidente acabou por me proporcionar o enorme prazer
de escrever ao teu filho. Como me diziam as velhas
melancólicas da minha infância, «há males que vêm por
bem».
Despeço-me com votos de que nunca te aconteça só
reparar que já não há champô a meio do duche.

Excepcionalmente breve
O teu amigo
XV

Querido amigo,

Não fui logo lá. Esperei dois ou três dias, a ensaiar o


que diria, que argumentos usar, que sorriso fazer para
conseguir as minhas respostas. Quando bati à porta, fi-
lo devagar, como se estivesse a marcar o compasso para
uma orquestra de sussurros. A Teresa Viana abriu-me a
porta e senti que tinha estado tranquilamente à minha
espera. Serviu-me bolachas caseiras, feitas nessa
manhã, e chá de camomila. No tabuleiro, dobradas
debaixo do prato das bolachas, estavam as cartas.
–Estas são maravilhosas! – anunciou a minha anfitriã,
sorrindo calorosamente, não sendo claro se estava a
referir-se às bolachas ou às cartas.
Ainda falámos um bocado antes da leitura. A conversa
foi sobre Lisboa. Ela perguntou-me onde é que eu tinha
vivido e eu falei-lhe dos bairros onde durante anos
despertei, da música do amolador de facas, dos jardins,
dos miúdos a jogar à bola perto da estrada. Quando
terminei o chá e as bolachas, ela levantou o tabuleiro da
mesa, mas, em vez de o levar para a cozinha, virou-se
na minha direcção e estendeu-mo. Percebi que esperava
que eu pegasse nas cartas, o que fiz de imediato.
Mantive-as dobradas na minha mão, esperando
pacientemente que ela regressasse da cozinha. Só
quando ela estava sentada à minha frente, as mãos
pousadas sobre o colo, uma dentro da outra, é que
comecei a ler.
Encontrei a mesma caligrafia ondulante, as mesmas
folhas dobradas em três, a mesma ausência de datas ou
envelopes. O filho continuava a descrever os variados
locais por onde passava, enchendo as páginas de
detalhes curiosos e aventuras literárias. Estas cartas,
contudo, falavam também da relação com os pais, e
tentavam explicar, de forma apaixonada mas confusa, os
motivos da viagem. Depois de as ler fiquei ainda mais
com a impressão de que havia sido uma terrível
discussão com o pai o que o levara a partir.
A primeira carta tinha sido escrita de Viena e falava
dos palácios da Sissi, dos quadros de Gustav Klimt e do
underground artístico, onde, para não variar, ele tinha
feito amigos. A segunda fora escrita em Madrid, por
altura do Natal, e continha, como todas as outras,
mirabolantes descrições de acontecimentos e lugares,
que fariam brilhar os olhos de qualquer produtor de
Hollywood. Mas foi a terceira carta que quase me fez
saltar da cadeira. Fora escrita da Croácia, de
Dubrovnik, para ser mais preciso. Lembrei-me das
conversas que tive com o Dr. Viana sobre este país e de
ele ter dito, apenas uns meses antes, que o seu filho
estava lá. Era, pois, uma carta recente. Li-a duas vezes,
sob o olhar observador da mãe orgulhosa, que se
mantinha sentada à minha frente sem parar de sorrir. A
carta fora escrita ao estilo das outras. Contava as
aventuras do autor e descrevia os lugares por onde
passara, alguns dos quais meus conhecidos e que eu
referira a Augusto Viana.
Será que ele os visitara porque eu tinha falado deles
ao seu pai, e este lhos recomendara? Seria esta carta
diferente se eu não tivesse vindo para os Açores?
Curioso como pequenos gestos nossos se podem
propagar pelo mundo e voltar, tempos depois e sob
formas inimagináveis, às nossas vidas. Um episódio em
especial fez-me acreditar nessa possibilidade. O filho
descrevia um jantar animado que ele e os seus
companheiros (para quem viaja só, ele mostra uma
enorme tendência para encontrar parceiros de
aventura) haviam tido num restaurante com um nome
francês próximo de um convento e mantido por freiras.
Ora, quem é que também teve um jantar animado num
restaurante de freiras durante uma viagem ao Leste da
Europa? Sim, querido amigo, moi même! Foi este
pormenor que me fez achar que o Dr. Viana se mantinha
num contacto mais frequente e próximo com o filho do
que demonstrava.
Quando acabei de ler as cartas, sorri e disse-lhe:
– Sim, sim, maravilhosas!
Como num adultério, parecia ser esta a altura em que,
cumprida a traição, resta aos seus participantes uma
despedida brusca e o regresso às suas vidas. Assim foi,
e em poucos segundos encontrava-me no caminho de
terra, já de costas voltadas para a casa. Passei pela
estufa e, não sei explicar porquê, senti um arrepio. Não
conseguia deixar de pensar nas cartas e nas minhas
conversas com o médico Augusto Viana. Em vez de
regressar a casa, virei à direita na bifurcação e pus-me
a subir a encosta, o horizonte era feito de campos
verdes, pinceladas de árvores e as omnipresentes vacas.
Alguma coisa não estava a bater certo na história dos
Viana. Seria o seu filho quem parecia ser nas cartas?
Não obstante uma ou outra frase de lamento, as cartas
estavam cheias de vida e optimismo; apesar das
passagens menos felizes, procuravam mostrar alguém
plenamente satisfeito com o espectáculo do mundo,
alguém que não tomava por mote ora et labora, o reza e
trabalha dos monges, mas que vivia et aplaudia. Em
essência: um sábio, um Jesus Cristo passivo, que
recebia milagres em vez de os fazer. Seria ele realmente
assim, ou estaria a querer mostrar aos pais que a sua
viagem era a melhor das viagens, a tentar justificar a
sua decisão numa alegria inventada? Era pouco
provável que todas aquelas aventuras acontecessem a
uma só pessoa, mas também seria pouco provável que
alguém inventasse tudo aquilo. Muitas das histórias
estavam em bruto, continham personagens inúteis ou
finais abruptos, perdiam demasiado tempo em
acontecimentos sem sentido e continham pormenores
supérfluos que pioravam a história, daqueles que os
narradores talentosos omitem mas que a vida possui em
abundância.
Também me intrigavam as declarações de amor aos
pais associadas às explicações sinuosas que tentavam
justificar o não regresso. Porque sentia ele tanta
necessidade em se mostrar um filho agradecido? Na
minha caminhada, parecia que cada passo que eu dava
trazia uma nova pergunta. Como pagava ele todas
aquelas viagens? Quanto do que escrevia era verdade e
quanto inventado? Porque não tinham data as cartas?
Que acontecera a todos aqueles amores e a todas
aquelas pessoas que ele referia? Quantas delas
existiriam mesmo? E para onde lhe escrevia o pai? Seria
para um e-mail? A relação invertida, o filho sábio
enviando cartas aos pais de todo o mundo e estes
respondendo por e-mail de uma ilha perdida com
sugestões de restaurantes, parecia inverosímil.
Não era só no filho que eu pensava. Tal como em
relação a Hector, eu desenvolvera com os Viana uma
espécie de intimidade que, examinada com calma, não
tinha onde se sustentar. Que sabia eu daquelas pessoas?
Tínhamos tido conversas intensas, mas haviam sido
poucas e cheias de respostas esquivas e meias
verdades. E como caracterizar a minha relação com a
Teresa Viana? Como explicar estes nossos encontros em
que, depois do chá, ela me via a ler as cartas do filho?
Existia nisso uma violação de pudor na qual eu tinha
participado sem objecção. Seria justo estar a ler as
cartas do filho? Imagina que alguém roubava as cartas
que eu te envio e as lia…
Passeei algumas horas e voltei para casa. Fui-te
escrevendo esta carta enquanto fazia esparguete e
pendurava a roupa no estendal lá fora com vista para o
mar. Nunca te tinha falado no meu estendal, pois não?
Como vês, não só daria um mau dramaturgo, como um
mau romancista. O estendal é um local tão dramático e
pleno de simbologia que qualquer narrador do meu
desterro já o teria referido. Pendurar os lençóis com o
mar enorme e desperto à minha frente, ver as minhas
peças de roupa a serem chicoteadas pelo vento, sentir o
cheiro do mar misturar-se com o do detergente, acordar
e ver da sala que a roupa deixada a secar está ensopada
depois de uma noite de chuva… Enfim, pedras preciosas
que me teriam ajudado a explicar-te melhor como tenho
vivido aqui.
Já comi e já estendi a roupa. Não consigo deixar de
pensar na possibilidade de que o que eu disse ao Dr.
Viana tenha levado o seu filho àquele restaurante, e de
que as freiras que me sorriram nessa noite, tenham
sorrido agora ao filho dos meus actuais vizinhos. A
sensação que tive quando li a primeira carta do filho era
que, de certa forma, ele era o meu duplo. Lembras-te?
Agora não posso deixar de sentir que os nossos destinos
estão ligados.
Espero que o Dr. Viana volte rapidamente. Quero
perguntar-lhe se ele recomendou o restaurante ao filho.
Quero perguntar-lhe qual o próximo destino dele. Quero
perguntar-lhe o que aconteceu, o que causou a viagem.
Quero perguntar-lhe como lida com as saudades.
Sei que não preciso de me justificar por em algumas
cartas não perguntar por ti. Quero que todos os teus
dias sejam abençoados, e que nunca deixes queimar as
torradas. Se os envelopes fossem maiores e mais
resistentes, enviava-te sempre a mais saudável vaca que
encontrasse nestas encostas para que tivesses sempre
leite fresco à mesa do teu pequeno-almoço.

Em plena vénia
XVI

Queridos pais,

Estou eufórico. O jet lag ainda não passou depois de


dois dias e fez com que acordasse às seis da manhã sem
sono. Tomei banho, vesti-me depressa e saí de casa sem
acordar os meus gentis anfitriões. Atravessei uma
Brooklyn que despertava, os seus habitantes saindo dos
prédios de pedra com ares sonolentos e entrando nos
cafés e delis para de lá saírem com um inevitável latte
macchiato em copo descartável e qualquer coisa para
comer na outra mão. Ao contrário da maior parte deles,
eu não fui para o metro, mas para a ponte. A ponte de
Brooklyn.
Atravessei-a a pé e quase morri de felicidade. Tive de
parar várias vezes, não só para apreciar uma das visões
mais irreais que já abençoaram os meus olhos – a ilha
de Manhattan acordando à minha frente – mas porque
me invadia uma sensação de triunfo e deslumbramento,
uma alegria tão violenta que não sabia o que lhe fazer.
Com os pés naquela ponte senti que pulsava debaixo de
mim a aorta do mundo, que eu ocupava o epicentro do
planeta e que o que se passava bem perto de mim
ecoava por todo o lado. Talvez por ter visto tantas vezes
Manhattan na televisão ou no cinema, Nova Iorque foi
sempre para mim um território fora do real, um espaço
que só existia na imaginação. Ver-me aqui é entrar na
tela do cinema; passear por esta cidade é como
conversar com o Super-Homem.
Agora já subi Nova Iorque em júbilo. Duvido de que
qualquer general romano regressado de uma campanha
vitoriosa tenha atravessado Roma com metade da
pompa e triunfo com que o fiz. Devo ter parecido louco
aos milhares de pessoas com quem me cruzei, a maioria
felizmente demasiado envolvida nos seus afazeres para
notar os meus olhos húmidos, o meu ar perplexo e o
meu sorriso, este sorriso que não descola, que me
continua a cansar os músculos da cara mesmo enquanto
vos escrevo, este sorriso que, tenho a certeza, é o mais
amplo que já experimentei.
Tirando os frutos do amor, acho que nada alguma vez
me fará mais feliz do que estou agora. Encontro-me
sentado na relva em Bryant Park, a uns metros de mim
dois velhos a jogar xadrez e logo a seguir a Sexta
Avenida. Do outro lado do parque fica a Quinta, a mais
famosa, que percorri tantas vezes acompanhando as
personagens dos filmes. E por todo o lado estão estas
ruas largas, estes prédios crescendo para o céu e gente,
muita gente, tanta gente, uma multidão, uma multitude
de todas as raças, alturas, portes, idades, zumbindo,
sonhando, vivendo ao meu redor.
Mas a minha alegria não vem só de estar aqui. Vem da
viagem que me trouxe aqui, do caminho que
desembocou neste destino. E mais do que isso, das
coisas que vi e vivi. Graças a vocês, a minha vida foi
uma vida de encanto, em que atravessei muitos dias
como se fossem o primeiro depois de um coma.
Agora encanto-me com as pessoas e encanto-me com
as coisas que fazem e encanto-me com a luz da manhã e
o céu do meio-dia e a brisa do princípio da noite.
Encanto-me com as luzes a acenderem-se no fim do dia
em Nova Iorque, mas também me encantaria com as do
Porto ou de Istambul. Como, bebo e durmo com gosto.
Cada acto que pratico é a sua própria recompensa.
Cada dia que vivo é um milagre.
De certa maneira, sinto que foi preciso chegar aqui,
ao centro do mundo, para perceber que o centro do
mundo não é só aqui, mas é onde quer que estejamos. E
esteja onde estiver, na companhia de seja quem for, em
direcção a nenhum ou a todos os destinos, sinto que se
a minha vida terminasse agora, terminaria bem e eu
teria sido a pessoa mais abençoada da existência.
Gostava de passear nestas ruas convosco. Gostava de
ver como reagirias, mãe, aos dog walkers, os
passeadores profissionais de cães que visitam Central
Park com dez canídeos à sua volta, fazendo-os parecer
uma espécie de polvo com trelas em vez de tentáculos.
E adoraria estar no topo do Empire State Building
contigo, pai, para podermos apontar para a Estátua da
Liberdade e comentar como parece pequena dali. Mas,
como acho que já vos escrevi, a minha viagem, aliás,
qualquer viagem, é sempre feita de incompletude. Tal
como a vida. Só que, e foi isso que senti de forma tão
intensa a meio da ponte de Brooklyn, a incompletude, a
saudade, a imperfeição são a única forma de não
colocarmos um tecto à felicidade, de permitir que, não
importa quão vasto o nosso horizonte, não importa quão
grande o nosso triunfo, haja sempre mais para ver, mais
para conseguir. Se calhar é por isso que a Terra é
redonda; para impedir que, mesmo contemplada da
Lua, seja vista toda de uma vez.
Não podendo estar em todo o lado ao mesmo tempo e
junto de todos com quem quero estar, aprendo a saber
estar no aqui e agora. O truque é ter dentro de mim
todos os lugares e pessoas. Hoje, sinto que resulta. E
estando em Nova Iorque estou também em Berlim,
Lisboa, Islamabad, nos Açores. E escrevendo isto
sozinho, escrevo-o também na vossa companhia, e na
companhia dos meus amigos e dos meus antigos
amores.
Agora tenho de ir. Aqui há prédios com aldeias
inteiras lá dentro, bairros que são verdadeiras cidades e
pessoas com mundos dentro. E lá vou eu, queridos pais,
pôr-me a andar, gastar as solas, ganhar horizontes,
alimentar a alma.

Despeço-me from the top of the world


XVII

Querido amigo,

Não sei como te escrever esta carta. Queria começar


pelo tema principal, gritá-lo, mas vou tentar acalmar-me
e narrar-te os acontecimentos deste dia pela sequência
correcta. Na última carta que te escrevi, e que esta
manhã fui levar aos correios da cidade, contei-te sobre
o restaurante gerido pelas freiras onde quer eu, quer o
filho dos Viana jantámos. Passei a noite a pensar nas
cartas que li ontem e a recordar-me da minha viagem à
Europa de Leste. Foi na fase mais escura da insónia que
me ocorreu: o restaurante das freiras não ficava em
Dubrovnik. Não ficava sequer na Croácia, mas na
República Checa. Durante a noite fui-me lembrando de
mais detalhes dessa minha viagem e, aos poucos,
ficando certo de que me tinha enganado e dito ao Dr.
Viana que o restaurante ficava em Dubrovnik. Mesmo
assim quis certificar-me e, quebrando uma promessa,
fui à Internet. E lá surgiu, o restaurante de nome
francês, com fotografias das freiras servindo e sorrindo,
na simpática cidade de Brno, na República Checa.
Levantei-me da cadeira de plástico diante do
computador como quem entra num sonho. Feito piloto
de ralis, voltei para a minha encosta a uma velocidade
criminosa e quase derrubei a estufa quando estacionei
em frente à casa dos Viana. O barulho da travagem
trouxe a Teresa Viana para a rua.
Saltei do carro e andei velozmente na sua direcção.
Ela percebeu que eu estava fora de mim e assustou-se:
– Que se passa? Que se passa?
– Desculpe chegar desta maneira, mas preciso de ver
as cartas de ontem! É que, é que… – achei então melhor
não dizer a verdade – é que o seu filho falou em alguém
que só hoje me apercebi de que pode ser alguém que eu
conheço… – ela ainda parecia hesitante – alguém de
quem perdi o rasto, mas que é importante para mim.
Muito importante!
– Está bem, está bem! – disse ela, talvez convencida
pelo meu tom desesperado. Na entrada, ainda hesitou
uns segundos, meio desorientada, lançando-se depois
para as escadas.
– Vou ali buscá-las ao gabinete do meu marido – disse-
me, já uns degraus acima de mim.
Fui atrás dela, mas a Teresa Viana virou-se para trás e
levantou as duas mãos:
– Não. Não pode vir comigo. O meu marido não quer
que ninguém entre no gabinete dele.
A forma como a sua voz soou foi muito diferente do
tom habitual. Além de alarme, continha um toque de
ameaça. Desci as escadas e fingi que esperaria na sala,
mas alguns segundos depois voltei para trás sem fazer
barulho. Cheguei ao primeiro andar, onde nunca tinha
estado, e a primeira coisa que vi foi uma enorme janela
com vista para o mar. À minha esquerda estava
entreaberta a porta do quarto, do qual só vislumbrei os
pés da cama. Da porta à direita, apenas encostada, ouvi
os movimentos dela.
Empurrei a porta devagar. Foi então que vi.
O escritório era uma divisão rectangular com uma
janela na parede oposta à porta. Em frente à janela
estava uma secretária antiga, cheia de livros, papéis e
algumas molduras. Quer a parede à esquerda, quer a
parede à direita, estavam cobertas de estantes. Demorei
uns segundos a aperceber-me do seu conteúdo. Quando
aquilo que os meus olhos viram chegou à minha mente,
foi como se um mecanismo gigante e complexo, há
muito tempo à espera acumulando poeira, começasse
finalmente a funcionar. Todas aquelas estantes, com
dezenas de prateleiras, estavam cobertas de livros de
viagens, guias turísticos e mapas. As lombadas,
centenas delas, continham nomes de países e cidades:

Guia de Madrid
American Express – Roma
Paris em Dois Dias
Top 10 Vienna
Lonely Planet da Europa de Leste
Índia Mágica
Let’s Go – Berlim
Londres – Passeios e Monumentos
Amesterdão Low Cost
Uma Semana em Praga
Tesouros de Budapeste
Marraquexe sem Segredos
Viagem a Moscovo…

Aproximei-me das estantes e observei com mais


atenção. Acho que não havia nenhum guia à venda que
não estivesse ali. Só sobre Paris contei dezasseis livros.
A Teresa olhava-me em choque, o seu corpo feito
estátua, e nas suas mãos, nos seus dedos crispados, as
cartas.
– Que é isto tudo? – perguntei.
Ela continuava imóvel.
– Para que são todos estes livros de viagens? Para
quê?
– São do meu filho – respondeu.
Tirei alguns livros da estante. Nesse momento eu já
tinha uma suspeita bem formada e procurava apenas
provas.
– Então, se são do seu filho, como é que este guia é do
ano passado? Não me disse que o seu filho está a viajar
há anos?
Ela respondeu mais rápido do que o que eu esperava:
– Ele envia-nos os guias quando já não precisa deles.
O meu marido é que os arruma…
– Mas então porque é que estes são em português?
Ela ficou confusa:
– Português, que mal tem isso?
Senti pena dela. A sua confusão aumentava e
começavam a formar-se lágrimas nos seus olhos, mas
continuava naquela posição de bicho-de-conta prestes a
fechar-se.
– Oiça, este é um guia da Roménia, publicado o ano
passado. Em português. Se o seu filho está a viajar há
anos, como é que ele encontrou um guia em português
sobre a Roménia? Não fazia mais sentido que estivesse
em inglês? E como é que ele enviaria todas estas
centenas de livros e guias para aqui? Uma coisa é
enviar uma carta, mas dezasseis livros sobre Paris?
Começou a chorar.
– Não sei, não percebo… o meu marido… ele é que…
Segurei-a por um braço e com toda a gentileza que
consegui, levei-a dali para fora. Ela não largava as
cartas, às quais se agarrava como certos bebés às suas
mães. Sentei-a numa das cadeiras da sala e agachei-me
à sua frente.
– Não é o seu filho que escreve estas cartas, pois não?
Olhou-me por entre as lágrimas, mas não disse nada.
– É o seu marido que escreve estas cartas, não é? –
perguntei no tom com que se acalma uma criança.
– Diga-me, o que é que aconteceu ao seu filho?
Ao ouvir a pergunta, ela guinchou e mais lágrimas
escorreram-lhe pelo rosto, pingando-lhe do queixo para
o colo.
– Pode contar-me. Pode dizer-me o que…
Mas não terminei a frase, porque o seu olhar mudou
de repente, tornando-se febril e cortante. A voz dela
caiu sobre mim em toda a sua loucura:
– Se não sais já daqui, ele mata-te a ti também!
Um arrepio percorreu-me a espinha, não só pelas
palavras, mas pela raiva com que ela as proferiu, por
toda a loucura que emanava do seu rosto e voz.
Levantei-me. Todo eu tremia, tantas e tão pesadas
tinham sido as descobertas dos últimos minutos.
Deixei-a a olhar para mim. transformada numa bruxa
mitológica, saí e corri até ao jipe e regressei a minha
casa. Quando fechei a porta da rua desatei a berrar.
Não sei porquê, mas uivei uma boa meia hora. Quando
fiquei rouco e cansado, comecei a escrever o que estás
a ler. Tudo me passa pela cabeça. Até imaginei que o
filho está morto debaixo da estufa!
Apesar disso não te envio já esta carta. Iria deixar-te
preocupado. Vou esperar pela chegada do Dr. Augusto
Viana e pelo desenlace desta história. O pouco senso
comum que ainda me resta diz-me que ele não matou o
filho. Apesar disso, por segurança, vou colocar esta
carta num envelope e deixá-lo debaixo da cama, caso os
meus delírios mais exagerados sejam reais e me
aconteça qualquer coisa.
Espero que isto não seja uma despedida. Precisaria de
uma carta de mil páginas para o fazer.
XVIII

Querido amigo,

Como estás a ler esta carta sabes que estou vivo e


que, pelo menos a esse respeito, correu tudo bem. Terás
de utilizar a imaginação para tentar compreender como
vivi os acontecimentos que te vou narrar. Terás de ter
presente que, quando o Dr. Augusto Viana me bateu à
porta, eu não sabia se não era também a morte que me
chamava. Quando ele me disse, sem simpatia no olhar,
mas também sem maldade, que precisávamos de falar, e
que, apesar de serem onze da noite, como estava Lua
cheia e um tempo agradável, ele ficaria muito
agradecido se eu passeasse com ele, eu não sabia se
regressaria desse passeio. Mas fui. Queria saber, não só
o que se tinha passado, o que acontecera ao seu filho,
mas também se este seria um mundo onde a morte
poderia vir das mãos de um homem que fora capaz de
me perguntar se eu estava triste. Para que possas estar
mais próximo do que eu vivi, apelo à tua imaginação.
Imagina como foi ir passear à noite com um possível
assassino. Imagina como foi para mim o desenrolar da
nossa conversa, como o meu medo aumentou quando
nos afastámos da casa e nos encaminhámos para a
falésia. Imagina a Lua gorda e cheia dominando o céu
nocturno, e imagina-a deitada sobre o mar, e imagina
uma brisa salgada e leve, um cheiro a terra molhada e
uma falésia escarpada ao pé de mim. E imagina a minha
vertigem. Por dentro e por fora. Imagina também a voz
do Dr. Viana, com um ritmo de metrónomo, seca, sem
tremer mesmo quando diz as coisas mais terríveis.
Tento reproduzi-las:

– Um médico sabe que há muitas maneiras de matar


uma pessoa. Por vezes um médico diz à família «Não há
nada mais que possamos fazer». E, de facto, o doente
em causa recebeu todos os cuidados que qualquer
hospital lhe daria. Mas o médico sabe que, apesar de
ter feito tudo o que a sua profissão exige, de ter tomado
as decisões sensatas, se o moribundo fosse outro, se
fosse alguém amado pelo médico, haveria mais a fazer.
Podia não ser sensato e muito possivelmente não
resultaria. Mas poderia ser feito. Desistir sem esse
último esforço desesperado não é a mesma coisa que
espetar uma faca em alguém, mas também é matar. Não
é falta de zelo, mas é um assassínio por falta de
esperança, por falta de ousadia. E os assassínios
acontecem mais vezes do que pensamos. Não os de faca
e bala, mas os assassínios perpetrados pelas palavras,
pelos gestos, pela retirada de amor, pelo silêncio. Oscar
Wilde dizia que todos os homens matam aquilo que
amam. Foi o que eu fiz. Eu matei o meu filho. Não o quis
fazer, mas sou o responsável. Discutimos. Eu disse
coisas horríveis, e disse-as não por serem verdade mas
porque achava que iam ter certo efeito, o efeito que eu
pretendia. Nós, Homens, somos coisas curiosas. Temos
todas estas palavras ao nosso dispor mas usamo-las
muitas vezes como uma bola de bilhar, esperando que
façam ricochete aqui e tabela ali, enviando-as na
direcção contrária à que pretendemos ir, para ganhar
mais com o seu percurso. As coisas horríveis que eu
disse ao meu filho pretendiam o que todo o pai
pretende: que ele fosse mais feliz. Que a sua vida fosse
mais plena e o seu mundo fizesse mais sentido. E, no
entanto, não deixaram de ser críticas, recriminações,
insultos. A última vez que ouvi a voz do meu filho foi no
fim dessa discussão, em Lisboa. Sabe quais foram as
últimas palavras que me disse? «Eu pago a merda da
multa!» Porque, no meio dessa conversa atroz, foi uma
das coisas de que o acusei, foi uma das minhas armas
de arremesso: a multa. Ele morreu aqui, nesta ilha.
Como, não interessa. Dizem que foi um acidente. A
minha mulher teve outra sorte no que diz respeito às
últimas palavras. Ele ainda lhe telefonou da ilha, e
quando a Teresa lhe perguntou o que ele ia fazer para
os Açores, o meu filho respondeu, e na sua resposta
está um pequeno exemplo da pessoa maravilhosa que
ele era, da pessoa maravilhosa que eu ataquei de forma
bárbara: «Vou descobrir um tesouro!» Foi isso que ele
disse: «Vou descobrir um tesouro…» Ele morreu nesta
ilha. Perguntaram-nos se queríamos que o corpo fosse
enviado para Lisboa. Imaginar o caixão rodeado de
malas a sobrevoar o Atlântico causou-me uma angústia
enorme. Além disso, não achei justo que fosse ele que
tivesse de regressar. Se foi vontade dele vir para aqui,
pois então viríamos nós também para esta ilha, enterrá-
lo perto do seu tesouro. Não vale a pena descrever-lhe
esses dias. No fim do funeral, quando chegámos ao
hotel, a minha mulher, que suportara as cerimónias com
um estoicismo admirável, desmaiou. Os dias seguintes
foram ainda mais terríveis do que os das cerimónias
fúnebres. Eu olhava para os olhos da minha mulher e
conseguia ver, de hora para hora, a luz a extinguir-se
dentro deles. Uma mãe em luto é das coisas mais
terríveis que podem existir. O que eu via era pior do que
isso, era algo para além do luto, o que via era alguém a
morrer por dentro, a perder a alma. Ela teve de ser
internada no hospital, e apesar de todos os
medicamentos, apesar de todas as injecções, apesar dos
barbitúricos, das benzodiazepinas, dos relaxantes
musculares, dos antidepressivos, nada parecia melhorar
o seu estado. Sentado ao lado dela, eu também morria
por dentro, mas não tinha a benesse da loucura. Tinha
de viver lúcido cada segundo que passava, cada
segundo interminável de uma vida em que o meu filho
tinha morrido e a minha mulher enlouquecera. Conhece
o Franz Kafka, o escritor checo? Conhece a história da
boneca? Quando Kafka viveu em Berlim, costumava
passear pelos jardins, muitas vezes na companhia de
uma mulher alemã, Dora. Num desses passeios o casal
repara numa criança que chora. Kafka vai ter com a
rapariguita e pergunta-lhe porque está triste. A criança,
com a voz aos soluços, conta-lhe que perdeu a sua
boneca. Kafka pede-lhe uma descrição da desaparecida,
e escuta-a com um ar muito atento. Quando a rapariga
já não se lembra de mais nenhum pormenor, o escritor
surpreende-a dizendo-lhe que, não só ele conhece
aquela boneca, como sabe que ela não está perdida.
Anuncia então que o motivo pelo qual a miúda não a
encontra é por que a boneca partiu de viagem. A
rapariguita pergunta-lhe como é que ele sabe isso.
«Porque ela me escreveu uma carta!», responde Kafka.
Desconfiada de tantas coincidências, a criança pede
para ver a carta, embora não saiba ler. O escritor
lamenta não a ter consigo, e, para convencer a criança
da verdade da sua história, promete trazê-la no dia
seguinte. Nessa noite, Kafka redige, com o cuidado e a
arte com que escrevia os seus contos, a carta da
boneca, que devia cumprir a dupla missão de mostrar o
afecto da boneca pela miúda e justificar a sua viagem. O
escritor põe a viajante a explicar que, apesar de gostar
muito da rapariguita, sentira algum enfado por viver
sempre com as mesmas pessoas, no mesmo sítio e,
sendo uma boneca cheia de curiosidade pelo mundo,
decidira viajar para conhecer novos lugares e fazer
novos amigos. A boneca termina a carta voltando a
assegurar à rapariga de que gosta muito dela, e dizendo
que se hão-de reencontrar, e compromete-se a escrever
uma carta por dia contando as suas viagens. No dia
seguinte, no mesmo jardim, a rapariguinha ouve Kafka
ler em voz alta a carta da boneca. Não seria a única vez.
A partir daí, Kafka escreve uma nova carta todos os
dias. A boneca cresce, visita lugares novos, vai à escola,
faz amigos, vive aventuras. Ao longo das cartas surgem
sempre demonstrações do amor da boneca pela
rapariga, e explicações sobre o adiar do seu regresso.
Kafka pretende ir preparando a criança para a ideia de
que a boneca nunca regressará, mas não sabe que fim
dar à história. Tem de arranjar uma forma de fazer com
que a boneca desapareça sem desaparecer, que ame a
miúda mas não volte para ela, no fundo, tem de fazer o
impossível, fazer com que uma coisa que se perdeu não
tenha sido perdida. Finalmente, ocorre-lhe a solução
ideal. Ele casa a boneca. O romance e a cerimónia do
casamento são descritos em várias cartas, até que a
boneca escreve à rapariga explicando-lhe que não
poderá regressar porque agora tem de viver com o
marido, e descrevendo com grande detalhe a sua nova
casa. Na última carta, a boneca agradece à rapariga os
tempos felizes que passaram juntas e despede-se, com
grande carinho, da sua melhor amiga. E, assim, em três
semanas de cartas diárias, Kafka substitui na mente da
rapariga uma boneca inanimada por uma boneca viva e
cheia de histórias que seguiu o seu destino, embora sem
esquecer a rapariga, e que vive agora, à distância, uma
vida feliz. Quando eu escrevi a primeira carta, a ideia
não era que a minha mulher acreditasse nela. Eu não
pretendia fingir que o nosso filho continuava vivo, longe
de nós mas feliz, a viver inúmeras aventuras. Não sei
dizer exactamente o que esperava. Achei que a minha
mulher perceberia que fora escrita por mim, e
esperava, talvez, mostrar-lhe que algo dele vivia ainda
em mim, que a sua voz continuava a ecoar. Foi um acto
desesperado, uma das coisas que se faz para se fazer
qualquer coisa. Li-a no hospital ao lado da cama, numa
altura em que ela quase não falava. Quando acabei a
leitura, a minha mulher sorriu, pela primeira vez desde
que ele morrera, e disse-me: «Temos de lhe responder!»
Nos primeiros tempos, julguei que podia fazer o papel
de Kafka, mas aconteceu o contrário. Acho que as
cartas se foram tornando mais importantes para mim do
que para a minha mulher. Comecei a perder dias
inteiros em pesquisas. Já sei que entrou no meu
gabinete, portanto, sabe do que estou a falar. Tornou-se
importante, tornou-se fundamental que aquelas
narrativas fossem próximas da realidade. Para escrever
uma carta de três páginas sobre um lugar eu lia
centenas. Apesar do meu cuidado, por vezes a minha
mulher desconfiava e comentava algum pormenor, e
outras vezes ainda dizia qualquer coisa que me fazia
crer que ela sabia quem era o verdadeiro autor. Houve
recaídas. Muitas. Às vezes acusava-me de o ter morto,
noutras dizia que tínhamos de ir ter com ele aonde quer
que fosse. A certa altura, já não sabia se ela chorava
porque o nosso filho tinha morrido, ou porque ele nunca
mais regressava para nós. A última recaída aconteceu
ainda no outro dia, quando você nos visitou a pedir a
receita do bolo. Lamento se fui indelicado, mas chegou
num momento terrível. Nunca deixámos os Açores. Não
lhe sei bem dizer porquê. A minha mulher começou a
fantasiar que tínhamos vindo para aqui para viver a
reforma e esperar pelo final da volta ao mundo do nosso
filho. Eu não me senti capaz de regressar para Lisboa e
temi o efeito que o regresso teria na minha mulher, por
isso adiei-o. O tempo passa muito rápido. Achei que
precisava de alguns meses para resolver tudo, para
fazer o luto, para trazer a minha mulher de volta à
realidade. Mas passaram-se anos. Não sei quem precisa
mais destas cartas, se ela, se eu. Há dias em que passo
mais horas a imaginar as viagens do meu filho do que a
viver a minha vida, a nossa vida. Para tornar a história o
mais real possível, comecei, a certa altura, a escrever
cartas que haviam sido escritas por companheiros de
viagens dele. Não me bastava já descrever o mundo
pelos olhos do meu filho. Coloquei outros olhos a
descrevê-lo, sempre generosos, sempre apaixonados.
Escrevi-as até em inglês e traduzi-as depois para a
minha mulher. Cheguei a pensar falsificar recibos de
hotéis de todo o mundo passados em nome dele, para
melhor a convencer. Mas não foi preciso. Apesar da
dúvida ocasional, ela quis sempre acreditar. Eu sei que
é demais, eu sei que estou a fazer uma loucura. Kafka
casou a boneca, mas que fim posso eu dar ao meu filho?
Que motivo poderia um filho ter para não voltar a ver os
seus pais? Comecei a última carta várias vezes, mas
nunca a acabei. Até arranjei um motivo para ele não
voltar. Iniciei cartas onde ele explicava que tivera de
ceder o seu passaporte para salvar uma família, e que
agora não poderia regressar, mas viveria feliz. Mas
como iria explicar que ele não escrevesse mais? Que
pretexto podia existir? Talvez até se encontrasse uma
razão plausível, mas para isso eu tinha que deixar de
escrever as cartas, tinha de desistir do mundo
imaginário onde acontecem as aventuras do meu filho.
Quando me sento à frente de uma folha em branco, ele
pode estar em qualquer lugar do mundo, desde que não
seja aqui, e tudo lhe pode ter acontecido. Quando ele
começa uma carta, sei que está feliz e que o mundo é
um lugar maravilhoso e aguardo por saber que coisas
fantásticas testemunhou, em que lugar incrível se
encontra, que mulheres belíssimas lhe deram o seu
beijo. Como posso eu substituir este mundo infinito de
possibilidades por outro em que nada lhe acontece,
onde ele não está em lado nenhum e ninguém o beija?
Existem vezes em que confundo aquilo que ele
realmente viveu com invenções minhas. Se calhar há-de
chegar o dia em que eu acredito que as cartas são
verdadeiras. Soube sempre que a minha mulher lhe
estava a mostrar as cartas. Não fiz nada para o impedir
porque senti que a história ficava ainda mais real, já
que existia agora alguém que só conhecia o meu filho
pela vida que ele levava depois de ter morrido. Quando
me pediu para lhe escrever e eu recusei, cheguei a
ponderar aceitar a proposta, mas achei que seria
demais. Eu responder-lhe em nome do meu filho seria
quase uma blasfémia. Uma coisa é deixá-lo acreditar na
sua existência, outra era responder-lhe com a voz de um
morto. Tudo isto foi longe demais. O luto de um filho é
sempre uma caminhada estranha, que cada pai faz à
sua maneira. Lembro-me de visitar um amigo meu,
quase um ano depois de o seu filho adolescente ter
morrido. Ele e a sua mulher pareciam ter terminado o
luto. A prova mais poderosa nesse sentido era terem
transformado o quarto do filho num escritório. Muitos
pais em luto são incapazes sequer de fazer a cama, e
deixam os quartos como estavam no último dia que o
filho viveu, os posters na parede, os cadernos abertos
na secretária… Por não ter passado por essa
experiência, pensei então, quando vi o escritório, que o
processo de luto, essa expressão burocrática para o que
há de mais terrível na vida, estava a correr-lhes bem. Só
que, por altura da sobremesa, num jantar que tivera
bastantes gargalhadas, tomei a iniciativa de ir à cozinha
buscar açúcar. Antes que a anfitriã me conseguisse
dizer qualquer coisa, eu já tinha aberto a porta da
despensa. É possível que eu tenha sentido algo parecido
com o que sentiu quando viu o meu escritório. No chão
da despensa, arrumadas como um exército no dia de
inspecção, estavam algumas dezenas de pacotes de leite
de soja. De início não percebi o significado, mas depois
lembrei-me de que o filho do meu amigo era intolerante
à lactose. O horrível desta história é perceber o quão
doloroso era, para aqueles pais, sempre que iam às
compras, tentar não comprar leite de soja. Eu imagino o
esforço para continuar a andar, para não parar o
carrinho. E imagino a dor quando, por fraqueza, se pega
no leite que se sabe que ninguém vai beber, e se paga o
leite, e se arruma na despensa. Conto-lhe esta história
porque me acontece o mesmo. Eu quero parar de
escrever as cartas, eu quero aceitar que o meu filho
morreu, que ele já não está cá, que não está nem em
Paris nem em Londres a viver aventuras, a apaixonar-
se, a ser feliz.
Mas não consigo.

Nem mais uma palavra foi dita, por mim ou por ele. O
dia já nascia quando o Dr. Augusto Viana acabou o seu
monólogo. Ficámos ainda uma meia hora a ver a luz
inundar o mundo e a cor regressar às coisas. Não
consigo, agora, dizer-te muito mais. Tentar reproduzir
as palavras dele cansou-me quase tanto como ouvi-las.
Despedimo-nos com um aperto de mão na bifurcação do
caminho. Eu queria dizer tanta, tanta coisa. E ao mesmo
tempo sentia que nada do que eu dissesse serviria, que
por muito cuidadas que fossem as minhas palavras não
seriam capazes de expressar o que eu pretendia. Tirei
então a fotografia do bolso. Aquela fotografia. Tive
vergonha de te dizer até agora, mas ando sempre com
ela. Mesmo quando vou correr, levo-a no bolso do fato
de treino.
Mostrei a fotografia ao Dr. Viana. Ele pegou nela com
cuidado extremo. Após alguns segundos de
contemplação, acenou com a cabeça em sinal de
compreensão. Levantou depois o rosto e olhou-me nos
olhos. O olhar que dois vizinhos trocam quando se vêem
lado a lado, à noite na rua, diante do seu prédio que
arde sem salvação possível.
XIX

Ex.mo Director da Casa Fernando Pessoa,

Começo por felicitá-lo pelo cargo que ocupa. Para


mim, e creio que para muitos, a sua posição é de maior
importância, encontrando-se, na hierarquia de cargos
institucionais, um pouco abaixo do Papa, na sua
condição de anfitrião da Basílica de São Pedro, mas
acima do presidente francês.
Após a felicitação, apresento-me. O meu nome é o que
assina esta carta. A minha formação e currículo são
irrelevantes, bem como a minha descrição física. Talvez
lhe interesse uma caracterização moral. Sou um homem
incapaz de não sorrir a uma criança que me sorri.
Apesar disso, tenho inúmeras falhas e peco tanto como
as cidades do Antigo Testamento. Pago os meus
impostos, mas sem gosto, e já estacionei, sem remorsos,
em passadeiras, mas nunca andei de transportes
públicos sem bilhete. De momento a minha ocupação
principal é a redacção de cartas com o intuito de tornar
o mundo um lugar melhor, diminuindo o sofrimento e
promovendo a felicidade. É por este motivo que lhe
escrevo.
Acredito que V.Ex.ª e a sua equipa laboram num erro.
A Casa Fernando Pessoa divulga, debate e exulta a obra
do homónimo, na qual inclui as obras de, entre outros,
Alberto Caeiro, do engenheiro Álvaro de Campos, de
Ricardo Reis e de Bernardo Soares. As várias
instituições mundiais que celebram a vida dos seus
autores, fazem-no porque consideram que a sua obra é
única e bela, que mostra uma forma singular de encarar
o mundo e a vida transmitida numa voz inconfundível.
Ora, não possui, por exemplo, o admirável engenheiro
Álvaro de Campos uma obra única e bela, que mostra
uma forma singular de encarar o mundo e a vida
através de uma voz inconfundível? Considera a Casa
Fernando Pessoa que a obra de Álvaro de Campos é a
mesma que a de Fernando Pessoa?
Claro que quem viveu, oficialmente, naquela casa da
Rua Coelho da Rocha, foi o cidadão Fernando Pessoa.
Só dele, aliás, se irão encontrar registos burocráticos.
Mas lá porque foi o único dos poetas que a sua
instituição celebra que pagou impostos e teve direito a
lápide, significa isso que os outros não existiram, ou até
que não viveram nessa casa? Acredita mesmo que, pelas
janelas através das quais V.Ex.ª vê a rua, sempre que o
corpo do cidadão Fernando Pessoa olhava para a rua
era o poeta Fernando Pessoa que olhava para essa
mesma rua? O engenheiro Álvaro de Campos também
olhou através dessa janela. E Alberto Caeiro. E o que
sentiram e pensaram foi diferente, como diferente é a
sua poesia. Vou até mais longe. Na casa de banho onde
Fernando Pessoa se sentava e ficava mais leve, também
se sentou Ricardo Reis. Não sei se todos os heterónimos
faziam as suas necessidades da mesma forma, ou se
algum sofria de obstipação. Mas que se sentaram todos
a olhar para os mesmos azulejos, disso não duvido.
Compreendo que seria dispendioso abrir uma casa
para cada um dos nomes que mencionei. Proponho-lhe,
pois, uma de duas soluções. A primeira, e ideal, será
alterar o nome da sua instituição para Casa Fernando
Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis,
Bernardo Soares e Amigos. Estou consciente da
semelhança com o nome de uma firma de advogados,
mas acho que vale a pena o risco. É possível que
considere esta solução extremada. Se for esse o caso,
perdoe-me por achar que está na posição errada, já que
não compreende a obra de qualquer dos poetas que
pretende celebrar. Tenho uma segunda proposta, mais
modesta. Dê um quarto a cada um deles. A casa pode
ser do Fernando, mas que o Álvaro tenha onde pôr os
sapatos e o Alberto onde pendurar o capote.
Existem duas formas de viver, que só por vezes se
sobrepõem. Por fora e por dentro. Ambas são
fundamentais para uma vida plena. Há quem descure a
segunda em favor da primeira e acabe incapaz de
perceber que uma flor não é um vegetal, mas um
milagre. E há quem descure a primeira em favor da
segunda e acabe a tentar jantar um soneto e a proteger-
se do frio com uma recordação.
Ao manter o presente nome, mantém o equívoco de
que o Fernando Pessoa era mais do que os outros e,
desse modo, a sua instituição dá primazia à vida externa
e diminui a importância da vida interior. O que é irónico
vindo de quem quer promover a poesia.
Espero pois que proceda às alterações necessárias
para rectificar esta situação.
Agradeço a sua atenção. Lamento se achou o meu tom
impositivo ou paternalista. É um risco que corro em
nome da minha missão. Desejo-lhe as maiores alegrias
no cumprimento do seu cargo, e já agora, igualmente
fora dele. Aproveito também para lhe propor que a
«Tabacaria» seja lida todas as semanas em voz alta, na
sua instituição, de preferência por uma rapariga
excessivamente bela que, quando chova, fume cigarros
com gestos melancólicos debaixo de toldos. Ou então
por um jovem poeta com bexigas na cara e unhas muito
roídas que sonhe sem freio. Ou ainda por um velho
arrependido da vida, com papos debaixo dos olhos,
mãos calejadas e orelhas imperiais.

Em verso livre
P.S. 1: Ou, também, por uma grávida de sete meses
com olhos bondosos e que saiba tricotar. Ou uma
prostituta coxa que chore sempre nos finais felizes dos
telefilmes. Ou um marinheiro de uniforme com
tatuagens no pulso.

P.S. 2: Se preferir, também não me choca que, ao invés


da «Tabacaria», se leia a «Ode Triunfal», mas que o
leitor seja então um maníaco com ar angelical e olhos
doces, ou um ex-presidiário cujo crime tenha sido
rasgar as últimas páginas de romances oitocentistas, ou
uma mulher apaixonada que saiba atirar um prato à
parede…
XX

Querido amigo,

Quando te enviei a última carta decidi, num impulso,


marcar outra expedição balear. No dia seguinte lá me
encontrei de novo a receber o briefing, a vestir os
impermeáveis e os coletes laranjas e a entrar para o
barco, igual ao anterior excepto no nome: Aurora.
Estava um dia de céu azul e escassas nuvens. Tivemos
sorte. Poucos minutos depois de o semi-rígido ter
parado ao largo da ilha, ouviu-se uma entusiástica
comunicação via rádio a informar-nos do paradeiro
próximo de dois cachalotes. Foi possível observá-los
alguns minutos. Ao contrário da tristeza da expedição
anterior, sentia-me alegre e, enquanto vislumbrava os
magníficos animais, pensei que o mundo ainda
guardava algumas maravilhas. Mais ainda do que os
olhos misteriosos da baleia, ou até dos golfinhos com
quem de novo nos cruzámos, o que mais me encantou
foram os risos sonoros das crianças a bordo,
especialmente dos cinco ou seis filhos de um casal
francês que parecia ter assumido a responsabilidade de
povoar o planeta. Era um pequeno exército de asterixes
que ria com tal entusiasmo e abandono que parecia
difícil alguém, alguma vez, em qualquer lugar, ter
estado tão contente como estas crianças estavam.
Quando a expedição terminou e se iniciou o regresso,
havia uma atmosfera festiva no barco e parecia que
todos os passageiros estavam mais leves. Crianças e
adultos trocavam histórias em várias línguas: os filhos
apontavam para o mar, faziam movimentos enérgicos e
chilreavam o seu entusiasmo; os pais respondiam com
olhos exageradamente abertos e pequenos gestos de
ternura, uma mão poisada sobre uma cabeça movendo-
se para a esquerda e para a direita como um maestro
dirigindo uma orquestra, um breve beijo numa
bochecha corada, o segurar de um dedo.
Quando atracámos, saí do Aurora à frente da família
francesa e quis o destino que me fosse possibilitado
ajudar também as crianças a desembarcar. Uma por
uma dei-lhes a mão enquanto elas desciam do barco
para terra. Já não sentia há muito o que era ter uma
mão minúscula dentro da minha. Vais chamar-me
místico ou achar que sou louco, mas descobri que as
mãos das crianças são todas a mesma mão. Senti que
não dava a mão apenas aos miúdos franceses, mas às
outras crianças a quem no passado dei a mão. Quando
os pais finalmente desceram e me agradeceram, eu
sorria como um maníaco. Quis pedir-lhes para ir com
eles, oferecer-me para os seguir, convencê-los de que
eles não notariam sequer que eu estava lá, que eu só
surgiria quando fosse preciso tirar uma criança de um
barco, segurá-la na rua, ajudá-la a atravessar a
passadeira, a subir umas escadas. Eu seria o adulto-a-
quem-dar-a-mão. A minha vida não só seria útil como eu
sentiria, várias vezes por dia, que segurava nas mãos
uma mão pequena e viva, uma mão cheia de futuro, uma
mão feliz com todo o tempo do mundo pela frente.
A família francesa foi à sua vida, da qual eu não fazia
parte, e eu fui passear pela cidade com o meu sorriso.
Cruzei-me com os Fagundes, aquele casal do jantar em
casa dos Viana. A nossa visão dos outros depende
sobretudo do que se passa dentro de nós. Desta vez, os
Fagundes não me pareceram provincianos ou
neuróticos, mas pessoas como as outras, com os seus
defeitos e qualidades, e com quem até foi agradável
tomar café e falar de Lisboa.
Regressei a casa cansado da breve felicidade que me
iluminara durante o dia. Comi qualquer coisa e deitei-
me com um céu limpo ainda sem estrelas. Enquanto
adormecia, e quase conseguia sentir o peso e o calor
das mãos dos miúdos franceses, um plano, pois esta é a
melhor palavra que encontro, foi-se formando no lugar
apocalíptico que é a minha mente.

Acordei cedo e repousado. Fui correr. O céu, as vacas,


as flores, as árvores, o aroma no ar e a luz murmuravam
em uníssono que era Verão. O suor escorria-me pelo
rosto e pelas costas. Durante a corrida pensava no meu
plano e, enleado num optimismo que não sentia há
muito tempo, ia afastando os muitos e sensatos
obstáculos à sua concretização.
Depois do banho, e do pequeno-almoço com um chá
tão forte que quase parecia sopa, pus-me a escrever. Só
que não era eu que escrevia. O autor das cartas era o
filho dos Viana, e os destinatários eram, claro, os pais.
Não quero analisar demasiado este ímpeto, deixo isso
para o teu amigo, o Dr. Pereira, mas acho que foi a
minha última revolta contra a morte. Acho que o que eu
tentei fazer foi, naquelas cartas, transformar-me no
filho deles. Se eu já não queria viver a minha vida e eles
queriam o filho vivo, porque não transformar-me nele?
Porque não abandonar o mundo exterior e viver as
aventuras do filho dos Viana em Madrid ou Praga ou
onde for?
Nunca escrevi tanto em tão pouco tempo. Foram cinco
dias inteiros debruçado sobre o papel.
O processo foi – como hei-de dizer – curioso. Outro dia
escrevi ao teu Dr. Pereira e falei-lhe de que, no passado,
eu procurara muitas vezes no cinema a suspensão do
eu, a troca da minha vida e das minhas preocupações
pelos anseios, falhanços e triunfos das personagens. O
que senti, procurando encarnar o filho dos Viana, não
foi muito diferente. Ele chegava a uma cidade e eu
procurava imaginar essa cidade não como eu a
imaginaria mas como ele o faria. Ele apaixonava-se e eu
procurava imaginar como seria para ele aquele amor.
Ele comia laranjas e eu tinha de descrever não como as
laranjas me saberiam a mim, mas a ele.
O resultado, como acho que suspeitarás, foi ridículo,
uma série de cartas horríveis sem comparação com as
que o Augusto Viana escrevera. Quando as li todas
seguidas surpreendeu-me a forma como, apesar do meu
esforço, elas soavam tão falsas como aqueles filmes cujo
argumento passa por dezenas de mãos e acaba numa
coisa sem pés nem cabeça. O absurdo do meu plano
tornou-se então claro para mim. Como podia eu
imaginar como saberiam as laranjas ao filho dos Viana,
como poderia eu saber como ecoaria dentro dele um
passeio em Barcelona, como seria eu capaz de calcular
as desventuras dos seus amores?
Percebi que é verdade aquela forma de consolo que
diz que os mortos continuam vivos dentro de quem os
amou. Era por amar e conhecer o seu filho que o Dr.
Viana o conseguia ressuscitar nas cartas. Afinal, não é o
amor também a capacidade de vivermos as histórias do
outro como se fossem nossas? Pensei nos meus mortos e
em como eu conseguia, sem esforço, imaginá-los em
quase todas as situações, saber como reagiriam se o
jantar estivesse frio, se tivessem um furo no pneu a
meio de uma viagem longa, se ouvissem certa música
na rádio, se estivessem especialmente maldispostos ou
bem-dispostos, se a sobremesa fosse pudim, se Portugal
ganhasse, se chovesse dois dias seguidos. Pensei nas
pessoas que amava e perdi e em como elas reagiriam à
visão de uma baleia, o que achariam de Hector, ou o
que diriam do meu aspecto. E era como se, na minha
mente, ou seja lá onde for, elas estivessem sentadas
numa sala de cinema e fosse possível passar qualquer
história no ecrã para observar as suas reacções. Eu
saberia, então, quando é que iam sorrir, quando é que
iam ter medo, quando iam suspirar. Sei que tudo isto
pode parecer ridículo, absurdo ou desesperado, mas se,
além do seu corpo físico, aquilo que faz de uma pessoa
quem é, for a forma como ela experimenta o mundo,
como aprecia ananases ou se aborrece com pedantes ou
se encanta com malabaristas, então isso significa que
alguma coisa continua viva nos outros quando alguém
morre, que todos nós existimos uns nos outros, que a
forma como eu vejo o mundo é feita em parte pela
forma como as pessoas que amo o vêem, e que o olhar
dos que me amam sobre as coisas é também
influenciado pelo meu.
Na primeira carta que te escrevi daqui, falei-te em
dominós. Até agora a imagem de um dominó caído era
para mim um símbolo da perda. Aquele dominó já
cumprira o seu destino, nada mais lhe restava, nada
mais lhe aconteceria. O dominó caído era um dominó
morto. Contudo, eu só me conseguia sentir assim
perante uma peça de dominó individual depois de todas
terem sido derrubadas. Como se, enquanto a serpente
de dominós ainda estiver em movimento, não se possa
olhar para as peças já caídas como mortas. E é essa a
grande diferença entre a vida e os dominós. Na vida, a
corrente nunca termina e nenhuma peça de dominó
morre realmente porque faz parte do movimento.
Muitos místicos defendem que tudo é a mesma coisa,
que o cosmos é uno. A ideia de fronteira, de separação,
de diferença é apenas isso, uma ideia, e uma ideia
ilusória, uma miragem para que se possam contar
histórias. Se as pessoas fossem dominós, seriam peças
alinhadas numa fila interminável em que cada queda
traria em si o ímpeto e a história de todas as peças
caídas antes.
Por esta altura suponho que já avisaste a polícia, os
bombeiros e os enfermeiros de todos os hospícios para
procederem à detenção urgente da minha pessoa.
Imagino os relatórios dos psiquiatras: «Confabulação
mística com dominós», «surto budista-light com
despersonalização aguda» ou «apocalipse espiritual
narrativo». Mas não te preocupes. Apesar da minha
linguagem mística, não tive uma epifania. Posso ter
percebido as coisas, mas não as sinto. Por compreender
que a morte é necessária para que possam existir
histórias, já que está na natureza das histórias ter um
princípio, meio e fim, não deixo de me revoltar com a
morte. Por perceber que os meus mortos vivem ainda
dentro de mim não deixo de sentir demasiado a sua
falta. Por ver um sentido, mesmo que ténue, para
aquilo-que-aconteceu, não me sinto redimido. Continuo
a sentir-me vazio, continuo a sentir que fui vítima de um
golpe que nunca ficará curado. Mas sinto também que a
vida urge.
Já chega de exílio.
Anuncio-te o meu regresso. Ver a loucura poética em
que o Dr. Viana e a mulher caíram, e a forma como eu
ainda a tentei superar, assustou-me. Por muito que me
encantem os mundos imaginários, não quero correr o
risco de me perder neles, não quero fechar-me por
completo às surpresas da realidade. Posso não ter
encontrado aqui a redenção por que esperava, aquela
que surge por milagre com a velocidade de um trovão e
cura todas as feridas. Posso não ter tido o momento
mágico no qual eu aceitaria aquilo-que-aconteceu como
se aceita o sabor das cerejas ou a cor da terra.
E, no entanto, a vida não deixou de me trazer as suas
pequenas redenções, na forma de búzios traficados,
cachalotes resplandecentes ou no sorriso generoso e
imediato que uma criança nos oferece sem que lhe
tenhamos dado nada.
A única vingança que há perante a morte, como já
alguém disse, é viver. E viver com os mortos e os vivos
dentro de nós. Viver num mundo que, apesar de já não
conter o que nele eu mais amava, ainda tem muito para
ser amado.
Vou comprar o meu bilhete.

Até breve
XXI

Querido amigo,

Estou muito perto de ti, mas ainda não nos vimos. Os


últimos sete dias da minha vida já se passaram na
cidade que mais alegrias e tristezas me trouxe: Lisboa.
Para já, estou a morar numa pensão no Rossio. Não sei
ainda se regressarei à minha casa.
As despedidas da ilha foram rápidas. Passei por casa
de Hector a devolver-lhe os seus livros e acabámos a
jantar no restaurante do senhor Joaquim. O braço dele
já estava bom e o seu humor mantinha-se. Disse que um
dia ainda me visitava em Lisboa a pedir para eu guardar
um caixote cheio de búzios.
Encaixotei todos os livros que fui acumulando aqui e,
antes de entregar o jipe, visitei o posto de turismo.
Esperava que a Maria lá estivesse. Estava. Reconheceu-
me de imediato e saudou-me com um sorriso. Perguntei-
lhe se gostava de livros e quando ela, com um ar
intrigado, me disse que sim, convenci-a a acompanhar-
me até ao jipe.
Devemos ter demorado uns dois, três minutos a ir do
edifício até ao estacionamento. Mas foram dois, três
minutos nos quais me senti de novo adolescente e nos
quais voltei a sentir a euforia tingida de timidez que é
andar lado a lado com uma senhorita que desejamos.
Abri a mala do jipe e mostrei-lhe os quatro caixotes de
livros que lhe queria oferecer. Maria recusou sem
deixar de sorrir. Achou, sem dúvida, que era um gesto
excessivo e, para tentar resolver as coisas, propôs
escolher um ou dois livros apenas. Eu insisti, e expliquei
que, uma vez que ia partir ainda nesse dia, não podia
levar todos aqueles livros comigo. Não sei se sonhei ou
se ela ficou mesmo um pouco triste ao ouvir isto. Voltei
a insistir que ela ficasse com eles, mas Maria propôs-me
pagar pelos livros.
– Troco-os por um beijo – lembrei-me de dizer, como
um adolescente que, por falta de experiência, procura
agir como a personagem de um filme. Ao contrário do
que seria de esperar, ela não achou este comentário
ridículo, antes sorriu envergonhada, desviando depois o
rosto na direcção do mar.
Quando se virou para mim, disse-me: «Está bem.»
Quase não reagi quando ela se inclinou para a frente e
me beijou na bochecha. À velocidade a que tudo isto se
passou, não sei se cheguei a ter tempo de esperar que
fosse na boca, mas fiquei um pouco desiludido com a
castidade do ósculo. Um minuto antes eu não esperara
nem pretendera obter qualquer beijo, mas o ser humano
é veloz a criar ilusões e lento a lidar com o seu fim.
Desapontado, carreguei os caixotes para um pequeno
gabinete atrás do posto de turismo.
Quando olhei para Maria para me despedir ela notou,
sem dúvida, que eu estava desiludido. Que ridículo lhe
devo ter parecido. Como ousava eu, um homem bem
mais velho, que falara com ela apenas uma vez e que
agora lhe oferecia uns caixotes de livros velhos, achar-
me no direito de receber um beijo de uma mulher
assim? Mas, meu amigo, os milagres existem, e não
minto quando te conto que ela então me beijou. Um
beijo que se sabia primeiro e último.
–Este é de graça! – disse-me, tal e qual como num
filme.
Foi o primeiro beijo a sério que recebi desde aquilo-
que-aconteceu.
Não voltei a ver os Viana. Quando passei para me
despedir, o carro não estava lá e a casa encontrava-se
fechada. No voo para Lisboa, assim que o avião
levantou, comecei a escrever-lhes. Depois de aterrar, só
saí do aeroporto quando terminei a carta e a enviei para
os Açores.
Era uma carta tão ridícula quanto sincera, tão
ambiciosa quanto carregada de falhas, tão patética
quanto genuína. Hoje de manhã, uma semana depois,
foi-me devolvida com um carimbo a informar que o
destinatário já não residia naquela morada.
Ainda não falei com ninguém desde que cheguei. Não
te disse mas, nas últimas semanas, deixei crescer a
barba como se fosse formar uma banda folk. Magro,
bronzeado e barbudo como estou, com um boné na
cabeça e óculos escuros, consigo andar pelas ruas e ser
confundido com um turista. Já me cruzei com algumas
pessoas que me conhecem, e notei, aliviado, que o olhar
delas nunca poisou em mim.
Em breve vou voltar a ser eu, vou voltar a falar e
visitar as pessoas que magoei, que ignorei ou de quem
recusei indelicadamente a ajuda. Mas precisava destes
dias. Precisava de voltar a percorrer estas ruas sem ter
de conversar, sem ter de dar explicações, sem ter de
pôr pessoas a par, sem ter de contar o tempo que já
passou desde aquilo-que-aconteceu.
O meu encanto para com a vida vai regressando. As
feridas não desaparecem, mas cicatrizam.
Nos três primeiros dias passeei só à noite,
aproveitando o silêncio e a pouca gente para me
reencontrar com a minha cidade. Reencontrei as
avenidas, ruas e largos onde tiveram lugar tantos dos
momentos mais importantes da minha vida. Não há um
recanto desta cidade para o qual eu não tenha uma
história ou uma esquina que eu não tenha cruzado. É-
me difícil encontrar uma árvore que não me tenha
oferecido sombra, um banco onde não tenha
descansado, um bairro onde não haja um amigo. E ao
mesmo tempo, apesar de não ter sido tão extensa a
minha ausência, Lisboa já mudou um pouco, já há
prédios que eu vira em obras e que agora têm gente lá
dentro, outros que ruíram, fachadas pintadas de cor
diferente. Vou reparando nos restaurantes que
fecharam, nas pastelarias que agora são bancos, em
ruas onde os carros passam no sentido contrário. O
tempo também passou por aqui, também passa por
aqui, como passa por todo o lado, por toda a gente.
Ao quarto dia já ousei passear ao fim da tarde, um
daqueles fins de tarde de Verão em que cheira a
maresia e em que a luz desliza pelas coisas tão devagar
que parece que o dia nunca morrerá e todas as pessoas
encontrarão a sua felicidade antes de que a primeira
estrela se veja no céu.
No quinto dia, domingo, almocei perto do castelo de
São Jorge, rodeado de turistas corados da subida e do
calor. Bebi cerveja, comi croquetes, e, vá-se lá saber
porquê, nunca tirei os óculos escuros nem o boné e falei
em inglês com os empregados. Desci, meio bêbado,
para a minha pensão. Cheguei a pensar em visitar-te,
mas não quis que o nosso reencontro acontecesse
comigo suado, com barba de sem-abrigo e com o hálito
ébrio.
Segunda-feira, apanhei o barco no Terreiro do Paço e
passei o dia na outra margem a olhar para Lisboa e a
pensar que aquele seria o último dia do meu desterro.
E assim cheguei a terça-feira – hoje. Acordei de forma
espontânea e vi que era cedo, muito cedo. Levantei-me,
mesmo assim. Barbeei-me até ter o rosto liso. Com o
aftershave a arder-me na pele, senti-me fresco e pronto.
Saí para a rua. O dia estava apenas a começar.
Encaminhei-me para Alfama, subi as ruas estreitas e
íngremes em transe, tão focado estava no meu destino.
Quando cheguei à Feira da Ladra ainda havia poucas
bancas e vendedores, mas já lá estavam os que eu
pretendia. Fui à banca onde se podem comprar
fotografias antigas, até álbuns inteiros de famílias
desconhecidas, provavelmente herdados e depois
vendidos por uma quantia irrisória. Nunca percebi
quem compra estas fotografias, quem deseja ter consigo
os registos de outras vidas. Num caixote de madeira
estavam centenas de fotografias avulso, a maior parte a
preto e branco. Havia imagens de casais muito direitos
com expressões rígidas, havia fotografias de crianças
vestidas com o seu fato de domingo, havia noivas em pé
ao lado de mesas com arranjos de flores, havia retratos
de família com os pais no centro e a sua prole alinhada
aos lados, havia fotografias de rapazes fardados com
rostos melancólicos. Pensei quando é que aquelas
fotografias teriam deixado de ser olhadas, quando é que
passaram, provavelmente graças a uma herança, a ser
posse de alguém para quem as pessoas retratadas
pouco diziam. Mas pensei também noutra hipótese, que
talvez algumas daquelas fotografias não tivessem sido
vendidas, oferecidas ou descartadas por falta de afecto
mas, sim, por excesso de afecto. Pensei que haveria
quem tivesse visto estes retratos tantas vezes que eles
se tinham tornado opressivos, que a sua contemplação
causasse os malefícios da contemplação do sol do meio-
dia, cujo excesso de brilho nos cega para observar o
resto das coisas. Sem que ninguém reparasse, peguei
na fotografia que me tem acompanhado, olhei-a uma
última vez e pousei-a na banca, perdida no meio das
outras.
Afastei-me sem olhar para trás, primeiro devagar, com
medo de que alguém reparasse em mim e me acusasse
de fosse o que fosse, depois um pouco mais rápido, até
sentir que quase corria.
Desci em direcção à Baixa. O rio cintilava próximo de
mim e as ruas começavam a encher-se. Percebi que as
cidades também têm marés, mas marés feitas de
pessoas. Que há horas em que os passeios se enchem e
horas em que se esvaziam, que a vida tem um ritmo e
que esse ritmo é imparável. E deixei-me ir.
Senti saudades de Lisboa e alegria por as poder
matar. Saudades de descer a Avenida da Liberdade, de
comer pastéis de Belém, de ver o Tejo a aparecer e
desaparecer quando se desce uma colina, saudades de
estar deitado na relva dos jardins, saudades de ouvir os
eléctricos deslizando sobre o Chiado, saudades de
aguardar nas passadeiras de peões no Largo do Rato,
de percorrer cansado a Avenida da República, de
atravessar o Bairro Alto, saudades da vista do
miradouro da Graça, de Santa Catarina e de todos os
outros, saudades do fresco da Mãe d’Água, saudades
dos bancos do jardim do Príncipe Real, saudades da
vida em Lisboa.
Quando cheguei ao Terreiro do Paço vindo de Alfama,
decidi apanhar o metro para sair na estação mais a
norte e poder assim passar o meu dia a descer a cidade,
matar as minhas saudades passo a passo, rua a rua.
Já debaixo do chão, fora do alcance do sol, depois de
descer as escadas largas, virei à direita na direcção
pretendida. De repente dei comigo defronte da pequena
multidão acabada de sair do metro. Por um momento fui
acometido de um terror enorme, como se a multidão me
fosse engolir ou esmagar. Mas o terror passou. Foi
substituído por ternura. Enquanto as pessoas passavam
por mim, cada uma com um destino diferente, eu olhei
para elas e tentei ler nos seus olhos, rostos, gestos,
maneiras de andar, que vida levavam, donde vinham,
que sonhos alimentavam, que tristezas queriam
abandonar. Uma alegria enorme abriu-se como um pára-
quedas dentro de mim. Senti que cada pessoa que
comigo se cruzava tinha dentro de si um mundo, um
mundo enorme e pleno com tantos momentos de triunfo
e derrota, de anseio e júbilo, de enfado e melancolia que
chegariam para escrever uma nova história das Mil e
Uma Noites.
Pus-me a pensar em todas as pessoas que, por essa
hora, circulavam pela cidade, e que apesar de trazerem
em si sonhos desfeitos, amores falhados e mortos de
cuja saudade não se conseguem livrar, continuavam a
percorrer as ruas, a atravessar Lisboa, a navegar pela
vida. Continuavam a cumprir as mil tarefas da
existência. A lavar-se, a comer, a fazer a cama, a pagar
impostos, a obedecer a patrões, a serenar familiares, a
consolar amigos, a questionar Deus, a cumprir leis, a
pagar multas, a aguardar a mudança de cor do
semáforo, a roer as unhas em engarrafamentos, a
esperar ao calor na paragem de autocarro, a ser mal
entendidos pelos que amam, a lavar loiça, a despejar o
lixo, a sorrir por gentileza de piadas sem graça, a
testemunhar no espelho a passagem do tempo, a
acordar mesmo quando queriam continuar a dormir. E
dentro desta existência que lhes pede tanto, que nos
pede tanto, apesar de todos os botões que é preciso
todos os dias apertar, continuará a haver mais beleza e
gozo ao nosso dispor do que caberiam a um semideus.
Se cada um de nós traz dentro de si um cosmos,
estamos destinados, mais tarde ou mais cedo, numa
conversa que até pode ter-se iniciado para comentar o
calor que faz, a vislumbrar a vida interior do outro e,
assim, ter acesso a outra narrativa, a outros sonhos, a
outra forma de ver e de viver. Cada pessoa com quem
me cruzo na rua é um possível multiplicador de mim
próprio. E eu sou um possível multiplicador de qualquer
pessoa.
Esta é a última carta que te escrevo. A partir daqui, as
minhas palavras para ti não serão escritas, mas faladas.
Perdoa-me a grandiloquência, o exagero e a pieguice.
São apenas a minha forma de expressar alívio por ver
que não perdi nem a esperança, nem a capacidade de
me sentir alegre, mesmo que seja uma alegria menos
feroz e para sempre incompleta. Faço-o à minha
maneira, porque sempre preferi um louco poético a um
poeta sem loucura.
Desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu não se
passou um só momento em que eu pensasse que não
podia contar contigo, em que suspeitasse de que já não
terias mais paciência para os meus lamentos de
lavadeira, a minha irresponsabilidade infantil, o meu
dramatismo de novela da tarde. Se a amizade fosse uma
competição olímpica, o júri abriria uma excepção e dar-
te-ia não só a medalha de ouro, mas também a de prata
e a de bronze.
Agora resta-me viver a vida fora do papel, feliz por
saber que, perto de mim, pode estar um pianista
sonâmbulo, uma criança perguntando a um adulto onde
fica a cama de Deus, um guarda-livros apaixonado por
uma cantora lírica, um jovem a quem os médicos têm de
retirar uma colher de pus do seu lindo corpo, um
adolescente que se apaixonou pela primeira vez no dia
anterior, um amigo que me abrirá sempre a porta.
Como te disse, o suicídio nunca será uma opção para
mim. Agora, depois deste dia divino, consigo até
precisar as muitas razões para continuar vivo. Dizem
que há sete biliões de pessoas no mundo. São sete
biliões de motivos para não me matar.

Obrigado, muito obrigado

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