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como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
É
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar
Por vontade expressa do autor, o livro respeita a ortografia anterior ao actual acordo ortográfico.
.
Não me vou matar. Sei que há quem tema que, depois do que aconteceu,
seja esse o meu desejo. Não é. Por mais estranho que pareça, é verdade o
que disse: vim para os Açores para ver uma baleia. O isolamento, o clima
melancólico, a distância de todos os que me são queridos, o tempo
semelhante ao londrino e a ausência de Internet são apenas vantagens
adicionais.
Estou instalado num hotel moderno na marginal, de quartos espaçosos e
minimalistas com pequenos quadros de flores acima da cama. A minha
varanda tem vista, mas o nevoeiro constante torna-a um pouco supérflua.
Não pretendo ficar aqui muito mais tempo, preciso de solidão e silêncio. À
noite, se o tempo o permite, as pessoas entretêm-se andando de um lado
para o outro lá em baixo na marginal, quer nativos quer turistas; distinção,
aliás, fácil de fazer, pelas cores garridas e roupas sintéticas dos segundos.
Ao pequeno-almoço há sempre pelo menos uma alemã gorda a hesitar
em frente aos bolos. Não é raro ver grupos de espanhóis a rir sem melodia
nem americanos olhando desconfiados para tudo o que comem ou
japoneses demasiado tímidos para observar o mundo sem ser através das
máquinas de filmar. E todos velhos. Quase não há turistas jovens nos
Açores. Não há festas, nem barulho, nem deboches. Ocasionalmente vê-se
a filha (neta?) de um deles, a sua juventude em contraste fulgurante com o
fundo gerontológico, sorrindo tímida como se estivesse a visitar uma tia
querida num lar.
Hoje vou ver casas. Pedi ao homem da agência locais isolados e com
vista para o mar. Dizem-me que é difícil ver baleias a olho nu da ilha,
muito menos agora que não é a sua época. O hall do hotel está cheio de
anúncios de expedições marítimas para ver os cetáceos, mas também há
cartazes com as fábricas de chá, as furnas e as lagoas. Para já não vou fazer
nada disso. Contudo, não deixa de ser ligeiramente reconfortante saber que
terei sempre qualquer coisa para me ocupar, mesmo que seja entre
reformados americanos e alemães vestidos com blusões horrendos.
Sobre o que se passa comigo não te posso dizer muito. Ainda não sou
capaz. Se me permites a primeira de muitas metáforas ineptas, digo-te que
tenho de endireitar as peças de dominó. E explico. Lembras-te das
pequenas reportagens cómicas na parte final do telejornal, quando te
querem fazer esquecer as imagens das guerras e as notícias da crise com
que te aterrorizaram na hora anterior, e se vê um homem a comer setenta
cachorros quentes seguidos, ou o maior bolo-rei do mundo feito numa
aldeia no Minho que pretende assim entrar para o Livro dos Recordes do
Guiness? Por vezes estas reportagens são sobre dominós. Milhares,
centenas de milhar, talvez mesmo milhões de peças de dominó, colocadas
de forma a produzirem efeitos espantosos quando derrubadas, a libertar
balões, desenhar cenas de filmes, empurrar comboios. Suponho que, no dia
seguinte, depois do espectáculo, alguém tenha de as arrumar. Julgo que não
seja fácil, porque têm diferentes cores, materiais, tamanhos. Imagino
enormes armazéns cheios de dominós derrubados. Eu sinto-me como se
fosse o homem que os tem de apanhar a todos. A única diferença é que o
que se passou não foi celebração nenhuma.
Em anexo segue uma lista de livros que te peço para me enviares. Alguns
serão difíceis de localizar, por isso vai-os enviando à medida que os
conseguires adquirir. Peço-te também, e sabes que o meu coração ribomba
de agradecimento pela tua generosidade, que avises o senhor Rodrigues
para não me guardar mais jornais e revistas. Não te será difícil reconhecê-
lo. É o homem de meia-idade, bigode farto e cabelo ralo que habita o
quiosque em frente da minha casa. Se por acaso ocorrer que estejam uma
série de homens de meia-idade de bigode farto e cabelo ralo em redor
desse quiosque particular, fica sabendo que este tem um ar de talhante
delicado, pulsos e mãos grossos mas gestos subtis e precisos. Se isto não
chegar, mete conversa e verifica se o teu interlocutor é detentor de um
senso comum encorpado, se morde o lábio inferior enquanto pondera, se
interrompe a conversa para, como uma decoradora de montras, alinhar os
jornais e revistas. Se assim for, é do senhor Rodrigues que se trata. Dá-lhe
o recado. Agradecido por tal fico eu.
Não querendo questionar a tua lealdade, mais seguro estou dela do que
da existência do Sol, tenho, contudo, que te fazer uma advertência. A tua
simpatia e, mais ainda, a tua vontade para aceitares ser o bombeiro de
qualquer incêndio que te surja pela frente, pode tentar-te a oferecer o meu
paradeiro aos vários suplicantes que já imagino chantageando-te. Não
cedas a lágrimas, dedos em riste, ameaças, gemidos. Diz apenas que estou
vivo e que a minha probabilidade de assim continuar é a mesma da maior
parte das pessoas.
Qualquer assunto que aches urgente, informa-me tu dele. És o meu
mensageiro, confessor, moço de recados, protector, psicoterapeuta,
passpartout. A minha alma canta a tua amizade, uma das poucas luzes
eternas desta floresta tenebrosa que atravesso.
Aqui o verde e o cinzento dominam. As ondas murmuram continuamente
e o horizonte, quando o nevoeiro descansa, é um mundo interminável de
água e luz. Queria falar-te de tudo isto mas não sou ainda capaz. O meu
sono é curto, os pesadelos muitos e tão largos que me visitam acordado.
Mas, como te disse, não me vou matar.
Abraço-te
II
Querido amigo,
Apreciando o sol
III
Querido amigo,
Abraço
IV
Quando outro dia lia o suplemento pelo qual V.Ex.a é responsável, mais
particularmente uma crítica a uma edição recente de uma nova tradução da
Anna Karenina, o livro mais comentado do conde Tólstoi, deparei-me com
uma frase terrível. E assim era não por motivos semânticos, gramaticais,
intelectuais ou estéticos, pois, se estes fossem os critérios, haveria muito a
dizer de quase todo o vosso suplemento, mas porque falava do desenlace
da história. Assume o vosso crítico, um tal Ermenegildo Esteves, que todos
os leitores do suplemento literário do A Semana conhecem o desenlace?
Ou, pior ainda, ele não se importa de o revelar, diminuindo o prazer aos
futuros leitores do Anna Karenina de o descobrirem sozinhos? Não é a
primeira vez que tal sucede neste suplemento. Será que os seus críticos se
esquecem de que, apesar de eles estarem sempre a reler e nunca a ler, é
também necessário ler um livro pela primeira vez? E que essa leitura deve
ser, idealmente, realizada de modo virginal, livre de contextualizações,
comentários biográficos e interpretações psicanalíticas, sócio-históricas ou
disparates afins. Para sua sorte, e mais ainda do senhor Esteves, eu já
conhecia o desenlace, tendo tido a boa fortuna de ler o Anna Karenina em
relativa virgindade, sabendo apenas que falava de adultério e tinha causado
escândalo na época; duas características que não estragam o prazer da
história, pois são típicas de quase todos os livros do século xix. Contudo,
se eu não conhecesse o desenlace, e ao ler a crítica esse me fosse
brutalmente transmitido, isso seria motivo suficiente para um duelo.
Peço-lhe pois, encarecidamente, que tal não volte a suceder. Vou
continuar a ler o seu suplemento, pois tenho algum prazer na discussão e
apresentação de livros, mesmo na prosa suburbana dos seus críticos. São
livres de escrever mal. Não são livres de perturbar o prazer da literatura a
quem cometeu o pecado de ainda não ter lido as obras que eles leram.
Com isto não quero dizer que deixem de fazer considerações sobre a
evolução das histórias dos livros que criticam. Mas que avisem. Que façam
o que os americanos chamam de spoiler alert. Comecem esse parágrafo
com «Quem ainda não conhece a história deve saltar este parágrafo» ou
outra formulação deste género, que, apesar de deselegante, é muito valiosa.
Caso ignore o meu pedido, levando a que os meus olhos inocentes sejam
violados pela exposição impudica do desfecho de uma história, terei de
fazer justiça. No mínimo V.Ex.a e o crítico responsável serão alvo de
bengaladas. Mas também pode ocorrer que vos parta as pernas.
Querido amigo,
Abraço-te
Tristão Lobo
VI
Querido amigo,
Querido amigo,
Abraço
VIII
Querido amigo,
Queridos pais,
Joyeux Noël!
X
De um admirador agradecido
XI
Querido amigo,
Como sempre, espero que a vida te eleve em triunfo aos ombros e que
encontres sempre um lugar para repousar.
XII
Querido amigo,
Vejo que estás mais interessado no que aconteceu do que no que está a
acontecer. Talvez porque te pareça que esta minha vida de quase-eremita,
este meu exílio açoriano, esta minha experiência epistolar, esta minha
busca de redenção seja apenas mais um erro, mais um dos muitos que
cometi desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu. E o teu medo é que seja
o erro definitivo, o último prego no caixão proverbial, a última gota no
proverbial copo, o último copo de que, no dia seguinte, com a boca seca e a
mente enrolada em arame farpado, nos lembramos ter bebido antes de tudo
se tornar confuso e etéreo.
Mas estás enganado. Não falo de aquilo-que-aconteceu porque não
quero. Porque durante muito tempo, talvez demasiado, não fiz outra coisa,
mesmo que em silêncio. Porque houve uma altura em que acreditava que
aquilo-que-aconteceu abrira um vazio em mim, um buraco negro que,
como nos filmes de ficção científica, sugava tudo para o seu vórtice. E
cada pensamento, cada gesto, cada desejo, era roubado ao presente onde eu
os criara, onde eu desejava que florescessem e cobrissem de verde o
espaço árido dos meus dias, para ser levado para o passado, para ser
aspirado para o buraco negro. Toda a minha mente era um boomerang. Por
mais força e esperança que eu colocasse no seu lançamento, retornava a
aquilo-que-aconteceu. E aquilo-que-aconteceu era o princípio e o fim de
tudo.
Quase todas as formas de consolo me foram oferecidas. Mas, por mais
ou menos ternura, por mais ou menos sentido que fizessem, mesmo que
carregadas de sangue e lágrimas, mesmo que abençoadas com amor e
amizade, mesmo que vestidas de pele e calor, mesmo que oferecidas por
anjos ou santos, a verdade é que eu estava inconsolável: fora da
possibilidade de consolo. Como se aquilo-que-aconteceu me tivesse
expulsado do paraíso e não me restasse mais do que gerar dois filhos
fratricidas.
Um padre, um psiquiatra, um psicanalista falariam de falta de fé,
desequilíbrio de serotonina, luto incompleto, e todos teriam razão. E,
quando passou o tempo que as pessoas achavam o necessário para o luto de
aquilo-que-aconteceu, o tempo que era socialmente considerado sensato
para superar o sucedido, a paciência começou a esgotar-se. O que me
irritou. Quem sabe o que este ou aquele acontecimento custam ao outro?
Quem pode afirmar qual é a dor justa, a dor adequada, a dor suficiente
para determinada ferida? Quem é capaz de, olhando para a pele, saber quão
profundo é o corte? E, por todo o lado: «Não achas que já chega?», «Não
achas que já está na altura de?», «Não seria melhor que?». E quando me
recusava a responder vinham, em catadupa, num jorro, em ebulição, com a
velocidade e irritação de um pai que, após explicar mil vezes a uma criança
os motivos pelos quais ela devia ter o quarto arrumado, finalmente se passa
e oferece a justificação inapelável «porque eu mandei!», com toda a
superioridade moral de quem só quer ajudar e vê dificuldades inexplicáveis
colocadas no seu caminho, assim chegavam as análises críticas às minhas
acções. Todos percebiam melhor que eu o meu comportamento. Todos
tinham um acesso privilegiado aos meus motivos inconscientes. «Tu só
estás assim porque», e depois seguiam-se comentários à minha
personalidade, à forma como eu supostamente interpretara aquilo-que-
aconteceu, ao meu medo de viver, aos meus mecanismos de defesa, à
minha raiva por resolver, ao meu masoquismo, ao meu sadismo, ao meu
narcisismo e egoísmo. E conselhos. Inúmeros, criativos, modestos ou
ambiciosos, abstractos ou concretos.
Não quero que mo digas, já to pedi, mas mesmo assim não consigo
deixar de me divertir ao imaginar o que pensarão de mim agora, que
historietas, que case studies farão de mim, como em certos jantares dirão
«eu tinha um amigo a quem sucedeu aquilo-que-aconteceu…».
E como conseguiria eu explicar o que sentia, o que ainda sinto com
frequência? Não é que a vida me tivesse ficado vedada. Era capaz de
apreciar a beleza das coisas, de entender o humor ou a tristeza, de sentir a
vida a pulsar no mundo e em mim. Mas um pulsar ténue. Um pouco como
se tudo se passasse num aquário no qual eu enfiava os dedos, e, apesar de
sentir a água morna, de algumas vezes até experimentar o toque leve e
esquivo de um peixe, era uma pausa momentânea, um pequeno mergulho
num outro habitat, no qual eu nunca poderia sobreviver.
Via a vida por detrás de um véu.
Se vim para aqui retirar o véu ou esconder-me definitivamente por detrás
dele, ainda não sou capaz de dizer.
Um abraço
XIII
Queridos pais,
Querido amigo,
Um lutador luta, um pintor pinta, o sol arde, uma flor floresce, a vida…
continua. Sem mais notícias dos Viana depois do famoso jantar. A chuva
instalou-se de vez e a sua intensidade é tal que deixei o meu jogging
matinal. Não te preocupes porque não abdiquei dos exercícios matutinos,
substituindo a corrida por uma série de flexões, abdominais e, o que te
espantará, saltos à corda. Exactamente. Comprei uma corda por impulso,
quando estive na cidade. Demorei uns dias a aprender, mas já consigo
saltar com perícia suficiente para se ouvir o tchac tchac tchac da corda a
bater no chão. Ainda estou longe de um boxeur ou de uma miúda de onze
anos, mas chegarei lá.
Tenho lido muito na poltrona de veludo.
E tenho sentido algumas dificuldades com a escrita. Começo cartas que
nunca acabo. Apesar do entusiasmo com que abordo a tarefa, em poucos
minutos fico descontente com a minha prosa, ou acho-me sem ideias ou
considero que a argumentação que uso é desajustada ao destinatário da
carta. Ando também, e já deves ter reparado, com uma tendência perigosa
para a grandiloquência e para o sentimentalismo. Como se cada parágrafo
que escrevesse tivesse obrigações messiânicas, como curar leprosos e dar
visão aos cegos. Sinto que, não só estou longe de conseguir sussurrar,
como tudo o que escrevo é gritado em histeria. Vejo-me convertido numa
adolescente vienense do virar do século, mas não há Freud que me acuda.
Quanto mais calma e regulada é a minha vida mais parece que as cartas
saem em chamas, com todos os vícios da megalomania: dispersão,
sentimentalismo e arrogância. Escrevo às pessoas como se as quisesse
agarrar pelos colarinhos e gritar vivam, o que é horrível e indelicado; se
alguém me agarrasse pelos colarinhos e dissesse uma coisa dessas, seria
motivo suficiente para perder a cabeça. Por vezes ainda é pior e parece que
estou a apontar o dedo e a fazer pequenos movimentos de cabeça, como
um professor desiludido. Que alguém me dê um estalo, como os homens
nos filmes dão às mulheres histéricas para as acalmar!
E, no entanto, divirto-me muito gritando, esperneando e apontando
dedos. Há uma parte minha que tira algo disso, há um bombeiro fascinado
pelas chamas que adora que a sirene esteja sempre a tocar, que quer viver
em urgência.
E porque te digo tudo isto? Porque preciso de mostrar as minhas pústulas
a alguém, e tu és o escolhido. E não te vou só mostrar pústulas como
hemorróidas, cáries, infecções, arranhões, nódoas negras e tudo o mais. De
vez em quando colocarei nestas cartas um pequeno número de circo como
recompensa, farei o pino numa só mão, manterei quatro laranjas no ar,
serei serrado ao meio por uma assistente de seios fartos (não te posso
revelar como). Espero que te agrade.
Outras notícias: limpar e cuidar da casa ocupa-me muito tempo. A
humidade é rainha e senhora desta ilha, mas não a deixarei estabelecer uma
colónia na minha casa. Nem vou mencionar a facilidade com que a
banheira velha fica manchada.
Não consegui esperar por melhor tempo para ouvir as sailor songs. Às
vezes, talvez por estar a ler muito sobre baleias e baleeiros, naufrágios e
marinheiros, sinto que esta casa é um barco no meio da tempestade. Como
comandante, tento manter-me calmo apesar da violência com que a chuva
bate contra a janela. Se tivermos de nos afundar, que seja.
Mas não te assustes, ainda estou longe de ter uma perna de pau, uma pala
no olho e um chapéu. Só no outro dia aprendi qual é a proa e qual a ré, e a
diferença entre bombordo e estibordo. E se me torno fastidioso com as
referências náuticas, esse é um problema teu. Com amizade o resolverás.
Querido amigo,
Eu fui uma das centenas de crianças a quem a sua mãe ensinou a ler,
escrever e contar. Na altura, a professora Helena era uma mulher nova e,
para os meus olhos de 6 anos de idade, intensamente bela. Era, também,
uma docente extraordinária. Não só explicava tudo de forma clara e
simples, como sabia o que só os verdadeiros mestres sabem: que para bem
ensinar é preciso aprender tudo de novo. Quando dizíamos «p mais a…
pá» havia no seu pá todo o entusiasmo da descoberta que é fundamental à
aprendizagem. Como se também fosse para ela a primeira vez que p e a
equivaliam a pá. E o mesmo com dois mais dois serem quatro. Mesmo
quando se limitava a enunciar conhecimentos, fazia-o com imensa alegria,
acrescentando um silencioso não é fantástico! depois de cada afirmação. A
Terra é redonda (não é fantástico?). Portugal é banhado pelo oceano
Atlântico (não é fantástico?). O Sol é uma estrela (espantoso!). E todos nos
sentíamos contagiados e nos apercebíamos de que, sim, era fantástico que
dois e dois fossem quatro, que a Terra fosse redonda e que o Sol fosse uma
estrela.
Não só a sua mãe fazia tudo isto de forma exímia como geria
diariamente as crises, urgências, dúvidas, medos, angústias, euforias,
cansaços e sonhos de vinte e tantas crianças. Não sei se ensinam aos
professores o que fazer quando uma criança se descuida na cadeira, como
reagir com os que chegam todas as manhãs a chorar porque não querem ir
para a escola, como lidar com as ondas dos tsunamis familiares (divórcios,
lutas, irmãos mais novos, mais velhos…). Mas sei que a sua mãe, a
professora Helena, parecia saber exactamente o que fazer em todas as
situações. Como se ela já esperasse que o tinteiro da Maria fosse rebentar,
que o Pedro escorregasse e abrisse o queixo contra o banco, que a Teresa
chorasse sem motivo aparente, que o João se cortasse no dedo com a
tesoura, que a Carlota tivesse um ataque de asma, que o Diogo deitasse
sangue do nariz.
Eu na altura era um dos rapazes mais altos da aula. Não sei porquê, deu-
me para torturar o Martim, o miúdo mais enfezado da turma, que
choramingava com frequência e uma vez por mês saía a correr da aula
deixando uma pequena poça de urina aos pés da sua cadeira (nota com
explicação causal de base psicológica: acho que os pais dele se estavam a
divorciar, ou algo assim). Sempre que eu agarrava nos cabelos dele e o
imobilizava, os outros miúdos riam-se e eu sentia-me bem. Sabe como são
as crianças.
Um dia, no intervalo da manhã, ainda com o açúcar dos bolos na mão
(custavam quinze escudos cada), agarrei o Martim pelo cabelo e arrastei-o
até debaixo do terraço. Ele fazia um esforço enorme para não chorar e
dizia-me: «Larga-me! Larga-me!» ou qualquer coisa assim. À minha volta
juntaram-se alguns rapazes e duas ou três raparigas. Eu devia ter ouvido os
risos cessar, mas estava tão concentrado no sofrimento do Martim que só
quando senti um violento puxão nos cabelos me apercebi de que a
professora Helena tinha chegado.
Com a mão direita segurando-me os cabelos com força, virou a minha
cara para a dela e falou-me com raiva, e sim, raiva é a palavra exacta. Não
foi com pedagogia, distanciamento, ternura ou qualquer outro dos
sentimentos que costumavam colorir as suas palavras. Foi com raiva. E
disse: «Quem puxa os cabelos aos mais fracos, acaba com os mais fortes a
puxarem-lhe o cabelo.» Depois largou-me, e numa transformação tão veloz
quanto espantosa pegou no Martim (que entretanto, sentindo-se vingado e
aliviado, começara finalmente a chorar) e levou-o ao colo com uma ternura
divina. Sempre que me lembro dessa imagem penso num bombeiro
salvando um recém-nascido de um fogo. Enquanto ela se afastava, e dizia
ao Martim não sei que palavras mágicas de consolo, eu desatei a chorar.
Os outros miúdos dispersaram pensando provavelmente que eu chorava
da dor dos cabelos puxados. Mas não era por causa disso que tinha os
olhos com lágrimas. Chorava de arrependimento e chorava de inveja. É
que, de certa forma, eu estava apaixonado pela sua mãe. Nada mais
desejava do que o sorriso aprovador dela. Daí que, mais do que o puxão de
cabelos, fora a reprimenda que me magoara, a raiva nas suas palavras, a
descoberta de que caíra fora da sua graça. E a inveja de, por minha causa,
ver o choramingas do Martim arrebatado pelos seus braços.
Gostava de lhe dizer que desde então respeitei sempre os mais fracos e
estive ciente das injustiças do mundo e disposto a combatê-las. Não é
verdade. Devo ter batido ainda algumas vezes no Martim. Mas, por certo,
não tantas como fazia dantes. E nunca com o mesmo abandono.
Foi também uma das poucas vezes em que vi uma mulher bonita
escolher o homem mais fraco. Às vezes acho que toda a civilização se
baseia na possibilidade dessa escolha.
Desde que saí daquela escola não tornei a ver a sua mãe, embora
desconfie de que a vislumbrei por segundos num autocarro. A sua mãe
andava de autocarro? Lamento agora nunca a ter procurado, nunca ter feito
uma visita. Como parca compensação escrevo-lhe esta modesta carta. Nada
mais é do que uma vénia à memória da sua extraordinária mãe.
Agradecido e comovido
XVII
Amigo,
Desejando-te bem
XVIII
Queridos pais,
Querido amigo,
Abraço-te
XX
Com cumprimentos que não são os melhores mas são muito bons
XXI
Querido amigo,
Querido amigo,
Saudações insulares
XXIII
Queridos pais,
«A maior parte das pessoas não sabe que uma flor é uma flor. Podem
pegar numa rosa, cheirá-la, sentir a macieza das suas pétalas entre os seus
dedos, mas não compreenderão a essência da rosa. E assim como fazem
com uma flor, fazem com a vida.»
O Mestre (posso tratá-lo por Mestre?) mostra logo, nestas curtas linhas,
que o livro trata de temas importantes e grandiosos, que contém lições
valiosas e desconhecidas da maioria dos seres humanos. Além disso, faz
um diagnóstico preciso do estado da humanidade nestes terríveis tempos
em que vivemos, onde as pessoas cheiram flores sem compreender a sua
essência e fazem com a vida o que fazem (ou seja, não fazem) com as
flores.
Ainda em pé no estabelecimento algo desarrumado do barbudo
alfarrabista, li com muita atenção a contracapa. Fiquei a saber que o Dr.
(posso tratá-lo por Dr.?) sofreu uma profunda crise espiritual aos 30 anos
(e que idade para se sofrer uma crise espiritual!!) que o levou à Índia, ao
Tibete e ao Médio Oriente. Que estudou todos os textos sagrados de todas
as religiões e, com a ajuda dos seus vastos conhecimentos de física
quântica, psicologia, astrologia, numerologia e cabala, criou uma filosofia
de vida que conjuga Cristo e Buda, Freud e Iemanjá, os chacras e o yin e o
yang e outras essências, energias e forças motivacionais. Mas o que me
convenceu de que Vossa Sabedoria (posso tratá-lo por Vossa Sabedoria?)
era genuíno e não uma fraude foi a foto na contracapa. Não sei se já
reparou, mas muitos dos gurus de auto-ajuda têm uns enormes e perfeitos
dentes de uma brancura extraordinária. Não posso acreditar na palavra de
alguém com uns dentes tão brancos (não me pergunte porquê) e foi por isso
que, quando vi a sua cara rechonchuda com dentes amarelados e
irregulares, percebi que se tratava de alguém na posse de verdadeira
sabedoria.
Contudo, senhor Cassius Advindus (posso tratá-lo por Cassius
Advindus?), ao ler com muita atenção as suas inspiradas palavras
surgiram-me algumas dúvidas que gostava de ver esclarecidas. Primeiro,
no capítulo oito, «Libertando a amplitude cósmica da consciência», o
Senhor diz que existem exercícios simples e não dispendiosos que se
podem realizar para «libertar a amplitude cósmica da consciência» e
«conseguir tudo o que genuinamente queremos». Isto, naturalmente,
entusiasmou-me bastante pois eu sou o tipo de pessoa que quer «conseguir
tudo o que genuinamente quer». Mas fiquei chateado quando li que podia
saber mais sobre esses exercícios lendo o seu outro livro, O Amor
Expandido: Descubra que Além dos Limites não há Limites. Comprei esse
livro e li-o. E fiquei furioso quando percebi que os exercícios eram apenas
um pequeno vislumbre do que seria possível alcançar frequentando um dos
seus workshops «Viva, Finalmente!».
Vossa Excelentíssima Fraude (posso tratá-lo por Vossa Excelentíssima
Fraude?) perceberá que foi apenas o meu cepticismo e espírito burguês e
materialista, talvez mesmo a presença horrível do Medo dentro de mim,
que me fez duvidar das boas intenções e espírito messiânico que o inspira,
até porque, como vem escrito na contracapa, a sua fundação realiza
grandes doações para a caridade. Não obstante, tenho de continuar a
apresentar as questões e dúvidas que me assaltaram aquando da leitura das
suas obras.
Não crê Vossa Idiotia (posso tratá-lo por Vossa Idiotia?) que leva a
metáfora do Medo e do Amor, por vezes, demasiado longe? Vou citar:
«Foi o Medo que levou Hitler a fazer o que fez, tal como é o Medo que
leva um homem a violar e matar. E Medo do quê? Do Amor que há dentro
deles, pois cada um de nós tem reservas ilimitadas de Amor. O problema
do Mal, que muitos pensadores tentaram resolver durante milénios, tem
uma solução fácil: o Mal é a incapacidade de cada um de se ligar à fonte de
Amor dentro dele.»
Imagino que se Kant tivesse sabido isto teria tido bastante mais tempo
livre. Mas, até agora, tudo o que Vossa Cretinice (posso tratá-lo por Vossa
Cretinice?) afirmou é apenas estúpido, foleiro, mal escrito, com
demasiadas maiúsculas (parece um texto em alemão) e relativamente
inofensivo. Mas não basta ao Dr. Bastardo (posso tratá-lo por Dr.
Bastardo?) apregoar a sua filosofia e exercícios de expansão do absurdo.
Tem de atacar a concorrência. É aqui que eu me irrito. Passo a citar:
«Um dos problemas da Humanidade é que o verbo mais conjugado não é
amar, mas comprar.»
«Vivemos nos mais tristes tempos com mais fome e mortandade do que
em qualquer outra altura da espécie humana. Desligamo-nos do Divino e
de nós mesmos e vivemos vidas de Medo, a olhar constantemente para o
tamanho do carro dos vizinhos, ignorando que uma flor é uma flor, e que
basta dizermos Sim, realmente dizermos Sim, para acedermos às fontes
inesgotáveis de Amor em nós.»
Não lhe vou explicar, senhor Hemorróida (posso tratá-lo por senhor
Hemorróida?), tudo o que há de errado no seu amontoado de clichês. Mas
vou fazer-lhe uma confissão. Também eu me dou por vezes a pensar em
moldes semelhantes aos seus. Também eu começo frases como «Vivemos
nos mais tristes tempos» ou «um dos problemas da humanidade», mas a
forma como continuam é diferente. Por exemplo, eu acho que um dos
problemas da humanidade é a quase ausência de balões nos céus das
cidades. Se uns biliões de balões coloridos fossem largados com frequência
nas ruas de Londres, Paris e Teerão, as coisas correriam bastante melhor. E
dou comigo a pensar que «vivemos nos mais tristes dos tempos» porque já
quase ninguém usa monóculo, cartola, luvas, há poucos duelos e é muito
raro apanhar um autocarro num qualquer lugar do mundo e discutir Jane
Austen com o passageiro do lado. Agora imagine que eu tentava que todos
pensassem como eu?
Devo, ainda, dizer-lhe que discordo do Ex.mo Palhaço (posso tratá-lo
por Ex.mo Palhaço?) e acho que, para grande parte das pessoas, ser ainda é
mais importante do que ter, e que a maior parte de nós, mais do que estar
preocupada com o tamanho do carro dos vizinhos, está preocupada em
cuidar da família, dos amigos e do trabalho. E devo dizer que não acho que
vivamos tempos terríveis, de crise ou medo, mas sim que vivemos na mais
feliz, próspera, luminosa, tremenda, insuperável das eras, nem que seja
porque é a única que eu conheço, a único da qual eu posso dizer que
respirei o ar. E quanto às vidas autómatas, devo avisá-lo de que esse
insulto, por muito que seja um chavão antigo, me ofende, e que, até Vossa
Cretinice pedir desculpa à «maioria das pessoas», caso eu me cruze com
Vossa Estupidez, lhe darei umas quantas bengaladas. Porque não há vidas
autómatas, vidas alienadas, apenas biliões de pessoas enfrentando na sua
maneira única e irrepetível essa besta multiforme e gloriosa que é a vida. E
se Vossa Defecação Cerebral não gosta, pois que vá para a autómata que o
pariu.
Tenho dito.
Um leitor atento
XXV
Querido amigo,
Abraço
XXVI
Queridos pais,
Apenas uma breve nota de Marraquexe. Estou a dormir num terraço com
mais vinte pessoas. Pela primeira vez este ano estou acompanhado de um
grupo de portugueses (do Porto). Agrada-me muito voltar a falar português
e não ter de explicar onde fica o Algarve, o que é o Chiado e ter quem
perceba a minha saudade dos pastéis de nata. Donde estamos avista-se a
famosa praça Jeema el Fna onde Hitchcock filmou cenas para a segunda
versão do The Man Who Knew Too Much, o teu filme preferido, pai, que
me levaste a ver à Cinemateca, e no qual a Doris Day canta Whatever Will
Be Will Be. Lembro-me de que te comoveste como nunca te vi comovido
(excepto talvez quando o avô morreu) na cena final em que ela, apesar do
terror e da angústia de uma mãe à beira de perder o seu filho, tem de
exercer a mais rara das qualidades: graça sob pressão (tão melhor em
inglês: grace under pressure), e cantar Che Sera Sera para tentar salvá-lo.
Mas voltemos à praça. É uma mistura do que se vê nos filmes com um
centro comercial. Existem cobras hipnotizadas, pequenos macacos e outras
coisas exóticas para turista ver e fotografar, e existem bazares (os
verdadeiros bazares), com babushkas e djambés e túnicas e jogos de xadrez
com as peças feitas em madeira e bules de chá e tapetes, milhares de
tapetes, como se a ideia fosse cobrir o deserto. E é tudo colorido, vibrante e
cheio de perfumes variados. Há rostos do deserto, com mais rugas que a
pele de um elefante e olhos cerrados que parecem – ou talvez seja apenas o
meu desejo – esconder uma sabedoria intemporal, uma sabedoria das mil e
uma noites. Mas também há rostos ridículos e banais, vendedores de
camisolas de futebol, de telemóveis, de pilhas, de câmaras digitais, que
gritam em inglês, francês e alemão.
Amanhã partimos para o deserto. Não se preocupem, temos três jipes e o
grupo em que estou preparou tudo ao pormenor. São gente de profissões
respeitáveis: advogados, directores de marketing, contabilistas. Todos
homens. Melhor assim, talvez. Connosco vai um guia marroquino, um
Tarik el-Ahmar com quem tenho conversado, no meu francês coxo, embora
sinta que ele diz apenas aquilo que acha que eu quero ouvir – o que torna
as nossas conversas cómicas porque eu não sei o que quero ouvir.
E tenho de ficar por aqui. Como suponho que não existam marcos de
correio no deserto, preferi enviar-vos algumas palavras deste terraço nesta
noite quente em Marraquexe.
Querido amigo,
no coreto
…………… jogava à bola.
Não posso continuar. Não posso nem quero descrever o quão difícil foi
abandonar a felicidade pura, a inocência que eu tinha então, quando achava
que o universo era benevolente e tudo era possível. Que a minha casa
estava assinalada e a peste não bateria à porta. Não posso deixar que me
possua a lembrança táctil da relva na pele. Da pele na pele. Não posso
querer recordar-me de todo o langor, todo o abandono, todo o prazer
luminoso, toda a felicidade que vem a um corpo ensopado em ternura por
se saber amado.
Amanhã vou ver baleias. Imagino que um monstro de carne e espuma
salta e abalroa o barco. Imagino que me engole e lá dentro encontro Jonas
e Gepetto. Mas, o mais importante, encontro um bálsamo para todas as
minhas recordações de um mundo que é mais belo do que merece. Que é
mais belo do que aquilo que mereço.
XXVIII
Querido amigo,
Foi assim: Acordei cedo. Não corri, nem saltei à corda, nem fiz flexões e
abdominais. Tomei um duche rápido, vesti-me e fui para a cidade de
estômago vazio. Cheguei lá às oito e pouco e tomei o pequeno-almoço,
galão e torrada, numa esplanada da marginal perto do local onde estava o
barco. Já há muito que não me sentia tão nervoso, foi até agradável voltar a
sentir todos os sintomas da antecipação.
Antes da partida houve um briefing. Sentaram-nos a todos num pequeno
auditório, junto ao porto, onde nos mostraram um vídeo, em português e
inglês, que explicava os cuidados que devíamos ter durante a viagem.
Falaram também do tipo de baleias e golfinhos que é possível avistar e dos
seus padrões migratórios, anatomia, comportamento. Prepararam-nos para
uma desilusão, repetindo com frequência que muitas vezes não se avistam
baleias, que estas não obedecem a ninguém, muito menos a turistas.
Depois, trocando sorrisos cúmplices e levemente embaraçados, vestimos
coletes salva-vidas cor de laranja que cheiravam a mar. Um a um, entrámos
para o barco, um semi-rígido branco de nome Ofélia. Eu sentei-me do lado
direito, entre um casal português e um pai nórdico com os seus três filhos
adolescentes. Por essa altura a neblina matinal tinha desaparecido
completamente e um dia de sol instalava-se. O motor começou a rugir e o
barco partiu, provocando um ligeiro frémito nos passageiros de colete.
Observei a ilha a afastar-se, as casas a diminuírem de tamanho e as árvores
a tornarem-se manchas de verde indistinto. De certa forma sentia que
estava a despedir-me, sensação estranha para quem sabe ir regressar num
par de horas. Aos poucos senti o abraço do mar, a sensação de pequenez
que é estar rodeado de água e a única terra ser uma ilha cada vez mais
distante. Os salpicos humedeceram-me a roupa e o sal colou-se à pele. No
barco, os três membros que constituíam a tripulação revezavam-se entre
pilotar, falar por rádio com os observadores na ilha e conversar com os
passageiros, acautelando os mais medrosos e verificando possíveis enjoos.
Quase toda a gente estava munida de máquinas fotográficas e de filmar,
que por enquanto usavam apenas uns nos outros, mas que estavam
especialmente reservadas para os monstros marinhos. Quando o barco
saltava um pouco mais, havia alguns guinchos. Uma criança começou a
chorar, o que levou a que o pai a abraçasse com um enorme sorriso de
ternura que me comoveu mais do que esperava. Após cerca de quarenta
minutos, o barco parou e ficámos à espera. Entre as conversas e o ruído do
vento ouviam-se os estalidos metálicos do rádio. Pus-me a olhar para o
mar. Confesso-te que me passou pela cabeça, hipnotizado pela
profundidade da água, retirar o colete e deixar-me cair, entrar no enorme
oceano e descer, descer até ao fim, até onde nadam os mais estranhos
peixes e vivem criaturas que nunca viram um Homem, criaturas com cores
e formatos tão variados e maravilhosos que parecem ser a forma da
natureza se vangloriar, de dizer: «Vejam as coisas de que sou capaz! Nada
me é impossível!» Por segundos de tontura fechei os olhos, inclinado sobre
o mar, e imaginei essa descida, imaginei o que seria ser uma pedra
afundando-se na mais profunda escuridão, afastando-me de todo o ruído,
luz e vida que existe à superfície. O arranque súbito do barco terminou a
minha reverie e quase lançou uma francesa borda fora. A pequena
tripulação congregou-se na proa falando de forma excitada. Um deles, um
tipo de cerca de trinta anos com a pele bronzeada e cabelo loiro queimado,
disse-nos que estávamos com sorte e repetiu depois em inglês «You are
lucky!». Os passageiros sorriram todos e entraram num frenesim de
preparação tecnológica, retirando as câmaras e preparando-as como se
fossem marinheiros com arpões, ou, para usar metáforas não marinhas,
cowboys carregando pistolas com balas antes do duelo. Eu, ao contrário do
que a vida me ensinou vezes sem conta, deixei-me ficar ansioso e
expectante, deixei-me enrolar numa teia de fantasia e preparei-me para um
milagre. O meu coração acelerou, devo ter aberto os olhos mais do que o
costume, devo ter até dilatado as pupilas. Eram dois cachalotes. E lá os
vimos, por curtos segundos antes de mergulharem durante mais uma hora.
Não se pode dizer que tenha sido um desencontro total, pois ainda se viu a
enorme cauda, após uma curta mas belíssima suspensão no ar, descer de
forma tremenda com o típico splash cinematográfico que encheu de prazer
ruidoso quase toda a gente no barco. Mas eu, talvez por haver esperado
demasiado, talvez por ter ansiado tanto por esse momento, não senti que
nenhum nó se desfazia em mim, não senti a admiração que esperava sentir,
nem medo ou tremor, senti apenas que via o mesmo que havia visto em
fotografias e vídeos, mas um pouco mais perto, e acompanhado do cheiro a
mar. No resto da viagem ainda se cruzou com o nosso barco um grupo de
golfinhos roazes, mas a tristeza já me habitava e pouca curiosidade senti
por essas magnificas criaturas. Passei o resto da viagem ansiando que uma
baleia emergisse de repente à beira do nosso barco e nos abalroasse, nos
enviasse a todos para as profundezas do mar. O que, como podes deduzir,
não aconteceu.
Quando o barco atracou e os outros passageiros saíram satisfeitos e
palradores, eu pisei o solo com a reticência de um prisioneiro nos seus
primeiros passos de entrada na prisão. Parecia que até há poucas horas a
minha vida tinha seguido um propósito, mesmo que fosse ténue e ridículo
como o de ver uma baleia. Agora já nem isso tinha. Conduzi para casa
como que em choque. O dia soalheiro tornava a ilha ainda mais bela em
toda a sua exuberância verde. Cheguei a casa desiludido comigo e com o
mundo. Entrei. Fechei a porta. Descalcei-me. Andei cambaleante pelas
várias divisões como se estivesse à procura de alguma coisa mas me
tivesse esquecido do que era. Após alguns minutos (ou terão sido horas?),
sentei-me na minha poltrona de leitura, apoiei os meus cotovelos um pouco
acima dos joelhos e a minha cara nas mãos, e chorei. Não sei por quanto
tempo o fiz. Até adormecer, suponho, pois acordei há pouco. São cinco da
manhã. Sinto-me estranho. Sinto que sou uma pedra a afundar no mar. Nas
águas que agora atravesso, já não há luz. E continuo a descer.
Se ao meu redor existem as mais maravilhosas criaturas, de pouco me
serve. Não consigo ver nada. E continuo a descer.
XXIX
Espero que estas informações e hipóteses vos sejam úteis. Anseio pelas
vossas respostas, nem que o façam a apenas uma das minhas questões.
Congratulo-vos pelo importante trabalho que desempenhais e desejo-vos
a melhor sorte na recolha desses fundamentais números que dão orientação
e motivo para o orgulho pátrio.
Queridos pais,
Querido amigo,
Já decidi que quero viver aqui, nem que seja um ano. Quando era
pequena e ia comer gelados a Franklin Street com a minha avó,
passávamos junto aos jardins da universidade e eu olhava com idolatria
para as alunas deitadas na relva, lendo livros e rindo de forma primaveril
das piadas dos rapazes que as rodeavam. Mais tarde estive eu aí, aliás,
ainda há poucos meses estava eu nessa posição, encostada a uma árvore
com um livro de Veronese na mão. Penso em como a pequenita de rabo-de-
cavalo e ténis gigantescos, com um gelado de pistacho na mão, ficaria
alegre se soubesse que se tornaria numa dessas estudantes rindo
melodicamente estendida no relvado. Mas o que ela nunca imaginou, e o
que ocupava os sonhos da universitária estudante de arte, é o destino que
agora percorro. Um dos meus professores preferidos dizia que a arte é a
actividade mais democrática de todas. Uma obra-prima não exige, para ser
apreciada, que o seu contemplador seja rico, ou que seja masculino, desta
ou daquela nacionalidade, de determinada religião ou raça, mais novo ou
mais velho. Muitos alunos protestavam contra esta visão utópica. Afinal, se
algum motivo existe para nos inscrevermos num curso de arte é podermos
desenvolver a nossa capacidade de a apreciar. A resposta desse professor
era uma história. Em tempos idos, ele reunira alguns dos habitantes mais
desafortunados de Chapel Hill e sentara-os no salão principal da
universidade para que pudessem ouvir algumas obras de Bach tocadas por
alunos. Embora para muitos dos espectadores esse concerto fosse apenas
uma forma mais confortável de se aborrecerem, alguns comoveram-se de
tal forma que chegaram mesmo a chorar. Não sei se a história é verdadeira,
mas é plausível. O mesmo professor dizia que mais do que estudar a teoria,
aquilo que nos faria perceber ainda melhor o poder da arte era viver, ou
melhor: Viver! E foi isso que me fez apaixonar-me por ti: sentir que tu o
fazes, que vives como ninguém.
Quando andámos por Florença, havia momentos em que o teu gozo em
contemplar certo edifício ou certo quadro era tão visível que quase se
tornava palpável; acredito que se tocasse nos teus olhos os sentiria mais
quentes. Admito que senti inveja. Várias vezes o teu entusiasmo contrastou
com a minha falta dele. É por isso que devoro os guias e os livros. Para
tentar encontrar mais gozo. Porque duvido da minha capacidade de
apreciar. Muitas vezes o meu prazer é uma mentira. Todos os detalhes que
acumulei, todos os conhecimentos que absorvi dizem-me que a obra X é
uma grande obra, mas diante dela o meu coração não pestaneja sequer. E
tu, que não sabes o que é um chiaroscuro, que muitas vezes desconheces o
episódio bíblico retratado, delicias-te, comoves-te, exultas. E não só com a
arte. Com tudo. Um relojoeiro sem dentes fumando na Ponte Vecchio
encanta-te, como te encantam as laranjas do mercado, como te encanta a
loja de brinquedos perto da Praça Santa Maria Novella. Não é curioso o
amor? Acho o teu rosto a mais encantadora das visões. Não há um Miguel
Ângelo ou um da Vinci que se compare. E porquê? Às vezes suspeito de
que o que é belo, o é por todas as associações que nos traz. Talvez eu te
ache belo porque imaginar as linhas que te desenham me faz sentir viva,
me lembra o sabor de laranjas frescas e a sensação física de dar uma
gargalhada. Desculpa se me estou a tornar abstracta demais. Sabes que é o
meu defeito.
With love,
Stella
III
Dei-lhe estas duas linhas para recuperar da história. Mesmo que a sua
reacção tenha sido infinitesimal quando comparada com a minha quando vi
esta reportagem, não duvido de que tenha sorrido e se sentido um pouco
mais em paz com o mundo. Perceba por favor que, como a maior parte das
pessoas, eu passei milhares de horas em frente ao pequeno ecrã. Da guerra
em directo ao toque de bola do Bergkamp, da nudez de certas actrizes às
entrevistas com políticos em desgraça, das imagens de motins às de
astronautas transmitidas do espaço, esta história foi a coisa mais bela, direi
mesmo, mais sublime que tive oportunidade de testemunhar olhando para
uma televisão.
O que eu lhe peço, caro director, é que V.Ex.ª, ou alguém por si
ordenado, procure esta reportagem nos arquivos do seu canal, embora eu
deva admitir que não tenho a certeza de que tenha sido neste canal que eu a
visionei (escreverei uma carta semelhante, mas sem os elogios à sua
pessoa, aos directores dos outros canais).
Se encontrar a reportagem, e me enviar uma cópia para a morada em
anexo, eu escreverei ao filho do barbeiro do Fernando Pessoa para lhe
agradecer ter contado tal história. E aqui reside a contrapartida. Não
duvido de que os jornalistas responsáveis tenham agradecido ao homem
que o Pessoa abençoou. Mas duvido que o tenham feito de forma
adequada. Explico-me melhor. O que aconteceu foi que os jornalistas
expressaram a sua gratidão pela narração de uma história curiosa. No
entanto, existe aqui uma desproporção. É como se alguém a quem foi
oferecida uma caixa cheia de moedas de ouro agradecesse pela caixa, e não
pelo ouro.
Aquilo que os jornalistas e, depois, os espectadores receberam, não foi
uma historieta curiosa sobre o Fernando Pessoa. Foi um poema. E não um
poema qualquer, mas um poema encarnado, um poema feito gesto. Se eu
revivesse a minha vida de novo e tivesse de escolher entre nunca ter
conhecido a obra completa de muitos poetas ou nunca ter ouvido esta
história, não abdicaria da segunda.
Não me alongo mais sobre o tema da poesia porque sei que V.Ex.ª é um
homem com uma agenda carregada e inúmeras decisões difíceis para
tomar. O que me proponho fazer é agradecer, na devida proporção, o
poema que o filho do barbeiro do Fernando Pessoa iluminou. Ao fazê-lo
não duvido de que alguma justiça será reposta no Cosmos. E aí está a
contrapartida. Ao colaborar comigo neste projecto (palavra que utilizo para
me aproximar do mundo que V.Ex.ª habita), o senhor director participará,
de certa forma, num poema. Não sei se V.Ex.ª é religioso. Se o for
compreenderá de imediato como este pequeno gesto pode constituir um
grande empurrão em direcção ao paraíso ou a uma reencarnação muito
bem-sucedida. Mesmo não o sendo, não duvido de que o seu
comportamento é orientado pelos mais elevados princípios morais, nos
quais se inclui que o beneficiário da generosidade de outrem expresse a sua
gratidão de forma proporcional à magnitude da bênção recebida.
Aguardarei a sua resposta com alguma expectativa. Se se deparar com
dificuldades na recuperação desta reportagem, pois imagine que Fernando
Pessoa colocou a sua mão na cabeça de V.Ex.ª e lhe disse:
Um ex-telespectador
IV
Querido amigo,
Para que possas perceber que o meu dia-a-dia não é tão desolado ou
enlouquecido como julgas, vou-te fazer o relato desta passada semana.
Segunda-feira
Terça-feira
Após o jogging matinal passei por casa dos Viana. Ao contrário do que
sempre tinha acontecido, quando toquei à campainha ninguém respondeu.
Como sabia que eles se encontravam em casa – o carro estava estacionado
a três metros de mim –, voltei a tocar. Devem ter passado quase uns cinco
minutos até que o médico, meio ofegante e muito irritado, me abriu a porta,
olhando-me com alguma antipatia. Não só não me convidou para entrar
como me perguntou o que eu pretendia num tom distante da cortesia.
Surpreendido pela recepção, disse-lhe que gostaria de falar com a mulher
dele. Ele informou-me que ela estava doente e que era uma má altura.
Apercebi-me de que devia ter interrompido uma discussão. De imediato
mostrei a minha preocupação para com a mulher dele e expressei o desejo
de melhoras rápidas. Para justificar a minha visita («vim cá para tentar
saber mais sobre o vosso filho» não ia servir) disse que viera pedir a receita
do bolo de laranja.
– Tenho a certeza de que, quando a Teresa estiver melhor, terá todo o
gosto em passar por sua casa com a receita – disse, despachando-me sem
cerimónias.
A frustração deste encontro deixou-me um pouco irritado. Há qualquer
coisa de muito estranho com este casal, sem dúvida. Regressei a casa e
tentei escrever, mas não saiu nada. Continuava a pensar nos Viana e queria
discutir o seu comportamento com alguém. Meti-me no jipe e fui a casa do
alemão. Bati com o nariz na porta, a segunda visita falhada do dia. A
frustração acumulava-se e aumentava a minha necessidade de falar. Dirigi-
me à cidade. Estava determinado. Antes do dia acabar, eu haveria de ter
uma conversa.
Não foi fácil. As conversas talvez sejam como o amor: só se encontram
quando não se está à procura delas. Comecei no supermercado. Abordei
com a máxima delicadeza as mães que faziam compras. Fiz piadas sobre
iogurtes, pedi ajuda para escolher detergente da loiça, disse várias vezes
«não sou daqui» com um ar de cachorro abandonado, pedi receitas e
sugestões. Ninguém foi indelicado comigo. Todas as pessoas me
responderam de forma cordial, naquele sotaque sinuoso que percorre as
palavras portuguesas com os mesmos ziguezagues das estradas desta ilha.
Algumas despacharam-me com a cortesia que se pode esperar das pessoas
civilizadas enquanto compram manteiga e papel higiénico, outras
esticaram essa cortesia, respondendo com paciência às minhas várias, e
tolas, questões.
– Bom dia. Desculpe, eu não costumo fazer compras… acha que esta é
uma boa marca? – começava eu, segurando uma embalagem de plástico
cheia de um líquido cor de limão radioactivo e sorrindo como um turista
atrapalhado numa grande cidade.
– Sim, serve muito bem – sorria-me de volta a dona de casa.
– E já agora, desculpe lá, mudei-me há pouco para aqui… e gostava de
cozinhar peixe… – e aqui começava a notar logo alguma impaciência na
minha interlocutora –, mas não sei qual será o mais fresco...
– Aqui é tudo fresco…
– Ah, óptimo. Mas qual será o mais saboroso?
– Mmmm – e por esta altura as mulheres já mostravam todos os sinais de
querer terminar a conversa: – Isso depende do seu gosto… – e o sorriso
esbatia-se, as rodas do carrinho iniciavam a sua marcha e, sem subtileza,
elas desviavam os olhos de mim para as prateleiras.
– A senhora, o que recomendaria? – insistia eu ainda.
– Talvez o robalo. Bem… tenho compras para fazer… bons
cozinhados…
– Obrigado – respondia eu à figura que se afastava de mim naqueles
corredores cheios de embalagens e números.
Mais frase banal, menos frase banal, foram estes os diálogos. Tentei falar
com os poucos homens que andavam pelo supermercado, mas também não
pegou. Recomendaram-me um vinho ou outro e foi isso. A sequência de
falhanços aumentava ainda mais a minha necessidade de conversar.
Pus-me a andar pelas ruas. Acho que devo ter parecido um pouco louco.
Olhava para as pessoas olhos nos olhos e sorria-lhes. Senti-me pronto a
agarrar alguém e a pedir-lhe, suplicar-lhe para conversar um pouco
comigo. Abordei várias pessoas com perguntas sobre direcções,
recomendações para restaurantes, locais a visitar. Até que alguém me disse
«Oh amigo, mas se quer saber essas coisas, o melhor é ir ao posto de
turismo». Claro! Óbvio! Quase beijei o senhor apressado que me fez essa
sugestão. Iniciei a curta caminhada para o meu destino e, na certeza de que
poderia ter uma conversa de mais do que cinco minutos, as ruas
pareceram-me mais belas, as pessoas mais felizes e o céu menos cinzento.
O posto de turismo era uma sala com algumas cadeiras, dois balcões e
muitos posters. Atendeu-me uma rapariga de uns vinte anos.
– Hello! – disse-me ela.
– Olá! – sorri-lhe.
– Ah, desculpe – e logo nesta palavra vibrava todo o sotaque açoriano,
com o u a enrolar-se como uma onda. O sorriso dela era sincero, acho que
até corou um pouco.
A nossa conversa foi longa. Ela abriu um mapa da ilha e começou a fazer
sinais e a escrever sugestões. Eu fiz tantas perguntas que foi necessário
recorrer a um segundo, e mesmo a um terceiro mapa. Várias vezes fomos
interrompidos por idosos de outras partes do mundo. Eu deixava-os falar
com a Maria – o nome da rapariga – e aguardava, fingindo que estudava os
sinais que ela fizera nos meus mapas. A rotina era sempre a mesma: abria
um mapa legendado na língua dos seus interlocutores, fazia meia dúzia de
círculos, entregava-lhes folhetos sobre as expedições para ver as baleias ou
os passeios às furnas, respondia a uma ou duas questões e desejava-lhes
uma boa estadia. Senti, com alegria, que Maria os despachava para voltar a
falar comigo. Depois sorria-me e tornava a falar do melhor local para
comer cozido, das horas em que era mais interessante visitar as fábricas de
chá, de onde se podia comprar boas hortênsias. E entre estes temas eu ia
perguntando por ela, se estudava, o que pretendia do futuro, se já visitara
Lisboa, onde é que as pessoas da idade dela iam à noite, que praias
preferia, de que sítios gostava tanto que nunca os recomendava aos turistas.
A conversa durou duas a três horas. No fim agradeci-lhe a paciência que
tinha demonstrado para um chato como eu. Maria sorriu, coquete, e disse-
me que, se todas as pessoas que lá entrassem fossem como eu, o seu
trabalho não seria tão aborrecido.
– Volte sempre que quiser! – foi como se despediu. Na altura, senti uma
ligeira picada numa parte de mim adormecida há muito. Interpretei aquele
comentário, que pode muito bem ter sido inocente, como uma abertura a
outro tipo de conversa, onde as palavras não têm o significado normal ou
até são mesmo desnecessárias. Foi uma sensação muito rápida, durou nem
um segundo, mas fez-me olhar para Maria e ver não uma miúda muito
mais nova do que eu, mas uma mulher que me desafiava. Senti que devia
andar resoluto na sua direcção e beijá-la, ou mesmo tomá-la ali, sobre a
secretária ou contra a parede. O momento passou, felizmente. Sorri-lhe,
desejei-lhe um bom dia e saí.
Andei devagar de volta ao jipe. Sentia-me culpado por ter sido
surpreendido pelo desejo. E sentia-me cansado do dia. Voltei para casa.
Uma chuva miúda começou a cair. Quando me sentei na sala e espalhei os
mapas na mesa, a chuva já era forte e o ar vibrava com o seu som ritmado.
Num dos mapas, em que ela havia assinalado o seu jardim preferido,
notei que o marcara com o símbolo de uma cara sorridente. Não percebo
bem porquê, mas isso fez-me sentir uma pontada de ternura, a que se
seguiu uma melancolia líquida. Peguei numa caneta e desenhei uma cara
triste ao lado do sorriso. Olhei para a janela e para a chuva que caía. Uma
das coisas boas dos Açores é que o tempo parece acompanhar o meu
estado de espírito.
Quarta-feira
Choveu todo o dia. Fui correr, mesmo assim. Li, escrevi, cozinhei, comi.
Ao fim da tarde, quando a chuva amainou, desci até ao mar. Estavam lá os
dois barcos. Perguntei-me por Hector, onde estaria e o que andaria a fazer.
Acho que vi uma alforreca ao longe, mas pode ter sido ilusão de óptica. O
que faria uma alforreca aqui nesta esta altura? Também lhe aconteceu
alguma coisa e saiu de onde estava para vir escrever cartas para os Açores?
Serei eu uma alforreca? Serei venenoso ao toque? Gelatinoso de aparência?
Estarei ao sabor das marés?
Quinta-feira
Abraço-te
Queridos pais,
Quem como eu faz da sua vida uma viagem cedo percebe que o tempo se
divide em dois: a permanência e a deslocação. Tenho-vos escrito sobre a
permanência, o período em que um viajante descobre um novo local, em
que procura conhecer as singularidades das ruas e gentes que o rodeiam,
em que imagina o espaço que ocupa como um destino final. Em Paris tenta
ser parisiense, em Londres, londrino e em Nápoles, napolitano. Com a
ajuda da imaginação, o viajante percorre as ruas da cidade destino e tenta
imaginar que estas são as suas ruas. A sua atenção prende-se em tudo o que
é singular, na língua, nas letras, nos candeeiros, nos rostos, na comida, no
clima, em suma, em tudo aquilo que seja particular deste lugar, porque só
chove daquela forma em Londres, porque as flores nunca são tão
primaveris como em Amsterdão, porque uma pizza em Nápoles é uma
experiência teológica.
Se a permanência é feita de características únicas, a deslocação procura a
universalidade, a repetição, ser Tróia e Atenas ao mesmo tempo.
Raramente recebe mais do que umas poucas linhas dos escritores de
viagens, excepto para a ocasional aventura de voos perdidos e barcos
avariados. Mas não merece esse mundo de bombas de gasolina, aeroportos,
fronteiras, salas de espera, estações de comboio e afins, uma descrição?
Não é este mundo quase um país em si mesmo, também ele com as suas
singularidades, os seus encantos, os seus mitos e histórias?
Estou no aeroporto de Amesterdão. Perdi o meu voo. Das vinte horas que
terei de esperar, doze já passaram. Alguém numa das minhas viagens
comparou os aeroportos aos purgatórios. Não é uma comparação
descabida. Se bem que, para mim, pelo menos no dia de hoje, o aeroporto
aproxima-se bem mais ao paraíso do que ao purgatório. É possível que
esteja a exagerar, mas acho que nenhum lugar reúne de forma tão perfeita o
espírito humano, com todas as suas qualidades e defeitos.
Estou sentado num dos muitos cafés que existem espalhados pelo
aeroporto. São zonas de passagem, criadas para que o tempo passe de
forma mais indolor e olvidável possível. Mas, por isso mesmo, é um
espaço onde as pessoas podem pensar, onde podem suspirar, onde as
circunstâncias as obrigam a ficar horas sentadas. Para muitos é a primeira
vez em largos anos que se vêem com horas de sobra nas mãos e sem uma
lista de coisas para fazer.
Gosto de aeroportos. Gosto de me saber num edifício rodeado de aviões.
Gosto de imaginar, mesmo que por breves segundos, cada destino que
surge nos ecrãs. Gosto dos avisos nos altifalantes: «Passengers boarding
the flight 345 for Madrid, Spain, should proceed to gate 82» ou «Mr
Janpuri, you are delaying the flight!». Gosto do contraste entre as pessoas
suspirando, sem saber mais o que fazer enquanto aguardam o seu voo, e as
outras correndo como nunca correram na vida, todas urgência e ansiedade,
tentando chegar a horas ao embarque. Gosto da mistura de línguas, de
raças, de roupas. Gosto do ritmo cacofónico das rodas das malas, como
minúsculas carruagens puxadas em todas as direcções. Gosto da multidão
subindo e descendo escadas rolantes, deixando-se levar pelas passadeiras,
olhando para anúncios em línguas desconhecidas. Gosto dos cafés e
papelarias com jornais em diferentes alfabetos. Gosto das lojas de roupas,
de malas, de presentes, com chocolates enormes e bonecos de plástico
retratando um aspecto do país onde o aeroporto reside. Gosto de ver passar
os pilotos e as hospedeiras, de ver os seus uniformes, o seu ar levemente
importante e os sorrisos de quem faz da coisa mais extraordinária do
mundo (voar, voar!) um gesto quotidiano, não muito mais difícil do que
lavar o cabelo ou fazer a barba. Gosto da arquitectura, da sensação de
espaço, dos quilómetros quadrados de vidro entre os passageiros e o
mundo exterior. Gosto dos ecrãs gigantes com os nomes das cidades de
todo o mundo, e a panóplia de letras e números. Gosto dos viajantes
habitués para quem tudo isto é rotina, mais uma das coisas a fazer para
fechar outro negócio, e o seu ar levemente aborrecido e muito profissional,
já sem saber quantas vezes estiveram naquele aeroporto em particular.
Gosto dos posters acolhendo os passageiros em nome de uma cidade que
muitos não chegarão sequer a visitar, já que usam aquele aeroporto apenas
como uma sala de espera entre um acto milagroso e outro. Gosto daqueles
a quem o aeroporto assusta, olhando preocupados para os bilhetes e para os
monitores, com medo de se perderem, de perderem o voo, de que o avião
caia, de que as malas se extraviem, talvez mesmo de que apanhem o voo
errado e aterrem numa terra longínqua da qual não saberão como voltar.
Gosto das filas para depositar malas, filas para comprar um café servido
em copo descartável, filas para passar pelos detectores de metais. Gosto de
ver que meias as pessoas levam quando se descalçam, e o seu ar meio
desagradado quando tiram os cintos. Gosto do tilintar metálico de quando
os guardas inclinam os tabuleiros de plástico que passaram pelo aparelho
de raios X, onde um funcionário aborrecido procura vislumbrar bombas
entre carteiras, pacotes de pastilhas elásticas, revistas enroladas, pulseiras,
caixas de óculos, carregadores de telemóveis e toda a infinita parafernália
do mundano. Gosto dos cafés solitários entre o check-in e a zona de
embarque, com meia dúzia de bolos e sanduíches feitos para agradar a
todos os paladares. Gosto das mangas para entrar nos aviões com o seu ar
de peça gigante de Mecanno, que para mim são como pontes entre o
mundo da terra e o mundo dos ares. Gosto de ver aqueles carros pequenos
passarem com as malas, gosto da ideia de trânsito, de deslocação, de
objectos e pessoas com destino definido, com o seu futuro escrito num
papel. Gosto das casas de banho enormes, com homens a esfregar a cara
com água ou a fazer a barba, com gente a olhar-se ao espelho, a verificar as
rugas e as olheiras antes do encontro com a pessoa querida. Gosto dos
aeroportos como bolsa da saudade, onde em minutos se reencontram
pessoas que não se viam há anos, e onde, após beijos emocionados, se
despedem casais que nunca mais se encontrarão. Gosto da expressão
melancólica dos que ficam, depois da despedida. Gosto da sensação de
que, enquanto aqui estou, estou um pouco à deriva, sem âncora, mas certo
de que daqui a mais algum tempo me encontrarei num avião e em breve
estarei num lugar distante. Gosto do metal reluzente por todo o lado, das
estruturas que abrigam escadas, guichets, passadeiras, anúncios, jaulas para
fumadores, bebedouros. Gosto da ideia de que tudo isto foi feito por
homens, do esforço que foi necessário, do conhecimento acumulado, da
coordenação de milhões de gestos para este espectáculo. E gosto quando
surge no ecrã, ao lado do meu destino, com o nome do meu voo, a palavra
boarding, e por mais voos que tenha feito, por mais viagens que tenha
experienciado, por mais destinos que já conheça, sinto sempre um acelerar
do pulso, uma libertação de energia, como se uma roda dentada dentro de
mim tivesse encaixado noutra e iniciado a sua revolução. Creio que, nestas
alturas, enquanto dou os primeiros passos na direcção do meu avião, sorrio
sempre, sorrio como no meu primeiro voo, quando tu, pai, me olhaste nos
olhos e me disseste que daí a nada estaríamos no céu e tinhas a certeza de
que eu não teria medo, porque eu tinha olhos de pássaro. Lembras-te, pai?
E tu, mãe, procurando esconder o teu medo, tu que não gostas de voar,
sentada junto ao corredor tentando não me revelar o quanto te angustiava
estar num avião. Só soube desse teu medo anos depois. Nesse dia não só
era novo demais para ter reparado nele, como o meu lugar à janela me
oferecia demasiadas fontes de entusiasmo para que as subtilezas da
expressão humana fossem dignas da minha atenção, mesmo as da minha
mãe. Ainda me lembro de como, apesar de as ter visto em filmes e
fotografias, as nuvens, vistas de cima, me pareceram um país de algodão,
onde se poderiam construir palácios, lojas de relógios ou estádios de
futebol.
E com estas recordações e esta carta, o tempo continuou a passar e já
estou bem mais perto do meu voo, de voltar a sentir as rodas a encaixar-se
dentro de mim e começarem a rodar.
Despeço-me rapidamente. Saibam que sinto a vossa falta, quer seja em
permanência ou em deslocação. Espero que andem felizes pela vossa ilha.
Querido amigo,
Li a tua carta com preocupação. Pela primeira vez desde que vim para
aqui vou ter de te criticar: demoraste linhas demasiadas para me dizeres
que o teu filho está bem, que o acidente não lhe causou qualquer dano. E
gastaste essas linhas expressando o teu sentimento de culpa paterna,
pedindo-me desculpas (vê lá, tu pedindo-me desculpas a mim, que
absurdo!) porque o teu filho destruiu o meu carro. Tudo o que tens feito
por mim vale mais do que qualquer carro, vale mais do que todos os carros
que já foram construídos, vale mais do que uma garagem do tamanho da
Gronelândia onde caibam todos os veículos, com uma, duas ou mais rodas,
que alguma vez circularam. O importante, como bem o disseste, é que o
João está bem, e que mais ninguém se magoou. Peço-te que trates do
seguro e de todas essas chatices. Como sempre, a papelada que for para
assinar, envia-me e colocarei o meu nome onde me disseres para o fazer.
Só tenho pena de não te poder ceder a minha assinatura, de não poderes ser
tu a assinar sempre com o meu nome, que o gesto com que coloco o meu
nome no papel não se transfira por magia para o teu generoso cérebro.
Fiquei também preocupado pelo sentimento de culpa que o teu filho
mostrou. Confessaste o teu orgulho na rectidão moral do João quando se
propôs pagar todos os danos. Ora, primeiro, a maior parte será coberta pelo
seguro. Segundo, terceiro, quarto e quinto, nunca aceitaria tal coisa. Dizes-
me que ele anda com um peso na consciência, que tem dificuldade em
dormir, que deixou de sair à noite para poupar dinheiro e que insiste em me
telefonar para pedir desculpas in viva voce. Custa-me saber que o João está
em sofrimento e que eu sou, mesmo que indirectamente, a sua causa. Claro
que ele me pode telefonar, é só uma questão de agendarmos. Isto se ele
ainda sentir essa necessidade depois de ler a minha carta. É que, para tentar
resolver tudo isso, escrevi-lhe uma carta. Segue em anexo a esta. Espero
que ele a leia.
Falaste pouco do teu susto com o acidente. Imagino que também tu
estejas abalado. Não precisas de evitar esses assuntos comigo. Podes
partilhar os teus medos e anseios, podes descrever-me com o maior detalhe
os teus mais terríveis pesadelos, podes fazer comparações, desabafar,
exagerar, sem qualquer receio sobre o que vou sentir quando te ler. Gostava
muito que assim fizesses.
Por vezes penso com tristeza que há pessoas nos Himalaias que não
sabem da existência de alguém tão gentil, generoso e paciente como tu. Se
tivesse as suas moradas, escreveria a cada uma delas para eliminar essa
lacuna…
Um forte abraço
VII
Querido João,
O teu pai informou-me do teu desejo de penitência. Sei muito bem que
certas culpas não desaparecem por mera indicação exterior de que são
desnecessárias. A culpa pode ser como um grilhão que nos prende os pés e
que mais ninguém vê. Quando alguém nos insta a ser livres e partir,
procuramos mostrar-lhe as nossas correntes, só que estas, apesar do seu
peso para nós, são invisíveis para os outros. É por isso que as religiões
possuem rituais de expiação, palavras, gestos e actos mágicos que nos
podem libertar. Sei que não basta eu dizer que não te deves sentir culpado
para que tal aconteça. Sei que sentes uma necessidade de ser redimido. Na
confissão católica, o padre ouve os pecados e determina a penitência.
Desconheço se existem tabelas que fazem corresponder a mentira o roubo
ou o adultério a um número determinado de pais-nossos ou ave-marias.
Mas de certeza que não foi determinada a penitência para o pecado de se
estar a conduzir o carro de outra pessoa no momento em que ocorre um
acidente. Assim, se não te importares, e porque te sentes em falta para
comigo (sentimento demasiado errado para que eu o comente),
estabelecerei eu a tua penitência. Será uma penitência dupla. A primeira
parte é simples. Terás de ler esta carta até ao fim. A segunda parte será
explicada mais à frente.
Agora que tenho a tua atenção, fico quase incapaz de escrever pela
imensidão de coisas que gostava de te dizer. Contudo, ia parecer a
repetição da ancestral história do homem velho desgastado com a vida,
consumido em arrependimento e tatuado por decisões erradas, a urgir o
jovem para que não siga o seu caminho, a dizer-lhe que viva. Conheço a
tua inteligência e sei que isso não é preciso. Não duvido de que navegues
de forma fluída entre prazer e dever, de que acumules alegria e amigos, de
que saibas procurar o júbilo sem te perderes na busca. Com o sangue do
teu pai nas veias e as suas palavras nos teus ouvidos, outra coisa não é
possível. Além disso, eu não sou um homem desgastado com a vida. Não
cometi o pecado de não ter vivido. Cometi outros, mas esse não.
Vou pedir-te que tenhas paciência comigo. O teu pai é um óptimo
correspondente, mas preciso de ser lido por alguém que ainda viveu pouco,
alguém na posse de todas as possibilidades e da vitalidade da juventude.
Não porque eu seja daqueles adultos que inveje a juventude, porque a vida
adulta lhe sabe a pouco. A vida a mim nunca soube a pouco. Nem eu
invejo a juventude, a tua ou a de outro qualquer. Mas preciso de dizer umas
coisas. Lê-as como conselhos, como disparates, como desabafos, como
crise de meia-idade, como expressões de desespero, lê-as como quiseres,
mas sempre sabendo que elas foram escritas por alguém que não tem medo
de olhar para os seus ossos, por alguém que tentou não esconder
imperfeições, passar uma imagem melhorada ou, de qualquer outra forma,
desviar-se da verdade, da sua verdade.
Aos dezasseis anos descobri o amor e o mundo, e talvez estas duas
descobertas nunca se façam senão em simultâneo. Descobri que o mundo
era vasto e infinito de possibilidades, que, ao contrário do que me
acontecera até aí, nenhum dia poderia passar sem que nele encontrasse um
alvo de espanto, uma marca funda feita pela beleza na superfície das
coisas. E descobri que um sorriso menos generoso de uma rapariga de
olhos castanhos era suficiente para me fazer sentir que todas as infinitas
possibilidades do cosmos não chegariam para a minha felicidade.
Aperceber-me da infinitude do mundo e da finitude do amor, ir
percebendo que existiam demasiadas coisas imperdíveis à face da terra,
que existiam demasiadas possibilidades de amar para que alguns amores
ficassem por viver, fez nascer em mim, como um cancro no pulmão,
retirando-me cada vez mais ar, e levando-me quase ao sufoco, a ideia de
que o tempo passa. De que passa e nunca pára, que é como uma
locomotiva sem travões. Tal fez-me viver a minha juventude em urgência,
consciente, demasiado consciente da passagem do tempo, como se um
relógio enorme pairasse sobre a minha cabeça fazendo ribombar cada
segundo como um trovão mitológico. Vivi esses anos batalhando
diariamente contra a passagem dos dias, batalhando contra o tic-tac, contra
as páginas esvoaçantes dos calendários. Sedento de vida, procurei-a por
todo o lado. Por vezes fui estúpido, outras ousado, preferi cair no ridículo a
sucumbir a uma vida que não fosse tudo o que podia ser, que não
contivesse tudo o que pudesse conter, que não fosse incandescente,
expansiva, incrível, feérica. Mas toda esta irrequietude, toda esta procura
afastou-me muitas vezes do agora, de viver o momento no momento. Só
com o passar dos anos é que fui aprendendo a não estar em urgência, a não
olhar para o minuto seguinte como mais uma batalha. Mas consegui. Até
certo ponto, claro…
Já adulto, apercebi-me de quanta sorte tinha, de todas as coisas que
conhecera e amara, da generosidade dos que me rodeavam, do universo
vasto que se criara dentro de mim. Não deixei de querer engolir a vida com
casca e sementes, mas passei a sentir-me saciado. Se enquanto jovem eu
andava como quem se lança numa carga marcial, já adulto passei a andar
devagar – por vezes demasiado devagar, testando a paciência daqueles que
passeavam comigo (pergunta ao teu pai!). Aprendi a andar com o passo de
quem já está satisfeito de todas as formas e consegue estar no mundo,
numa rua, numa praça, mesmo que por breves momentos, sem objectivos,
sem propósito e sem destino. Essa sensação, de ser apenas um espectador
do cosmos sem qualquer intenção que não seja a de se maravilhar com o
espectáculo das coisas, essa sensação tive-a algumas vezes. E,
curiosamente, foi nesses poucos momentos que senti que vencera a batalha
contra o tempo. Que desaparecia o tic-tac sobre mim.
Por agora já deves ter reparado que, ao invés de uma carta de um velho
invejoso da juventude, querendo gritar aos ouvidos dos jovens para se
lançarem à vida, com urgência, com os dentes de fora, sem perder um
segundo, recebes a carta de um velho que quer sussurrar aos ouvidos dos
jovens para terem calma, para olharem ao seu redor, para cheirarem as
flores e apreciarem as pequenas coisas. Sim, admito a minha culpa, vê tu
os meus grilhões. Sim, podes confirmar com o teu pai, eu sou uma
montanha de sentimentalismo e chavões, como dizia Salinger (e sim,
também sou dos velhos que citam escritores do seu tempo): ponho por
vezes nas coisas mais ternura do que Deus poria. Mas sabes que mais? Não
me importo. Os chavões aceitam-se quando são proferidos em inocência,
quando o seu emissor acredita que foi o primeiro a pensar aquilo, o
primeiro a dar àquela ideia aquelas palavras.
Obrigado por teres lido estas divagações bafientas. A primeira parte da
tua penitência está cumprida, vamos à segunda.
Terás de adquirir uma bengala. Se queres usar o dinheiro que tens
poupado para me pagar na sua aquisição, ou se queres arranjar um ramo de
árvore ou a perna de uma mesa e, apelando ao artista em ti, construir uma
bengala, a escolha é tua. O fundamental é arranjares uma bengala que seja
imediatamente percebida como tal, que uma criança de cinco anos e um
velho de noventa, quando questionados sobre o nome do objecto,
respondam sem hesitar: É uma bengala!
Adquirida a bengala, deves dirigir-te com ela à redacção do jornal A
Semana. Pede para falar com o editor ou com o crítico Ermenegildo
Esteves, idealmente com os dois ao mesmo tempo. Se conseguires falar
com um deles, ou com os dois (seria maravilhoso!), após um primeiro
cumprimento, simula que lhes vais dar com a bengala. Depois do susto,
explica que eles foram avisados e que da próxima vez é a sério. Se não
conseguires falar com nenhum deles, diz que vieste entregar a bengala e
deixa-lhes um envelope com o seguinte texto:
Abraço
Querido amigo,
Espero que estejas bem e que os anjos velem a tua cama, e que o teu
filho não se tenha irritado ou exasperado demais com a carta que lhe
enviei.
Por aqui foi a semana dos regressos. Hector está de volta, e com o braço
partido. Pouco me falou do seu desaparecimento ou das causas do braço
engessado; só me disse que esteve na Alemanha a tratar de uns assuntos e
que escorregou a carregar caixotes. Almoçámos no senhor Joaquim numa
tarde que parecia já de Verão. A minha pequena praia começa a ter
banhantes durante a semana, com as suas toalhas, cestos e parafernália
variada. Por um lado, oferecem-me um espectáculo fascinante; por outro,
parecem fazer pouco do meu isolamento e tornar o meu desterro num
capricho de louco.
O almoço fez-me rir muito, o que já não acontecia há demasiado tempo.
O alemão voltou a salgar demasiado a comida, a falar aos berros e a contar
histórias incríveis com muitos gestos. O sotaque dele é tão bizarro que
parece saído daqueles filmes de Hollywood passados num país exótico, em
que os actores americanos tentam falar um inglês estranho, como se a sua
primeira língua fosse outra. O efeito cómico foi aumentado pelo braço
ligado ao peito, que o forçou a comer só com uma mão. No fim do almoço,
Hector lançou-me um desafio. Dada a sua limitação actual, ele precisa de
alguém que o ajude a conduzir o barco. Garantiu-me que me explicará tudo
e que, na verdade, só há uma ou duas coisas no barco que ele não consegue
fazer só com uma mão. Marcámos para amanhã. Estou curioso para
perceber que faz ele nestas saídas. Será que vislumbrarei o tal tesouro?
Entretanto, a Teresa Viana bateu-me à porta há dois dias. Trazia um
sorriso cansado e uma caixa com scones. Acolhi-a com agrado. Não sei o
que se passou naquela casa nas últimas semanas, mas a senhora queria
falar. Falar como só as mulheres conseguem fazer. Pouco depois de nos
sentarmos para comer os scones e beber um chá que eu preparei de forma
exímia, ela iniciou um dilúvio de palavras que não vou tentar reproduzir.
Falou sobre ter estado adoentada, que os seus problemas de saúde por
vezes atacam sem aviso, que lhe dão enxaquecas tão fortes que ela é
incapaz de fazer mais do que se deitar no escuro e contar inspirações.
Falou-me da melancolia, de uma tristeza que a assalta sem motivo, apesar
da sua vida abençoada, apesar do seu marido dedicado, apesar do seu filho
encantador e viajante que lhe escreve as cartas mais bonitas do mundo.
Aproveitei para lhe perguntar por ele, e consegui levá-la a falar-me das
discussões entre o marido e o filho. Disse-me que, apesar de se amarem,
havia vezes em que se desencontravam e discutiam, sendo que certa
ocasião, há alguns anos, a discussão foi tão crispada que só a recordação
desse conflito lhe dava arrepios. Falou-me de como o marido era um
homem generoso, que sabia tudo – foram estas as suas palavras: «ele sabe
tudo!» – e que passava os dias a ler e a escrever no seu escritório. A
escrever o quê, perguntei. «Ah, não sei, artigos médicos, essas coisas.»
Intrigado, questionei há quanto tempo ele não exercia medicina, mas ela
não me foi capaz de responder com um número certo. Aliás, notei em todo
o seu discurso alguma confusão com datas. Durante aquele monólogo, com
direito a breves interrupções para as minhas perguntas, toda ela era
irrequietude, os seus olhos piscavam e saltitavam por todo o lado, as mãos
nunca paravam quietas, agarravam-se uma à outra, e de imediato se
largavam para se segurarem ao vestido ou à cadeira, os pés nunca ficavam
completamente assentes no chão, dançando um bailado escondido,
esticando-se, fazendo pontas, sapateando. Fiquei um pouco preocupado e
tentei perceber até que ponto esta inquietude, juntamente com as
enxaquecas e a confusão, não podiam ser sintomas de alguma coisa grave.
Não tive sucesso. Apesar da emotividade excessiva e de algumas
confusões, ela quando quer é perita em mudar de assunto.
Aproveitei para lhe dizer que tinha gostado muito de ler as cartas do seu
filho e perguntei-lhe se não havia a hipótese de ler outras. Nesse momento,
ela sorriu de forma quase demencial. «Ahhh! Mas foi isso mesmo que vim
cá fazer.» Tirou então da carteira uma carta de várias páginas. Fora enviada
de Paris, por altura do Natal, o que só percebi durante a leitura já que, tal
como as outras, não tinha data nem vinha num envelope. Pediu-me para a
ler de imediato, pois tinha medo de que o marido desse pela falta das cartas
e descobrisse que ela mas mostrava. Lembrei-me do seu olhar horrorizado
quando, apenas algumas semanas para antes, me preparava para ler uma
carta do filho diante dela, e registei uma mudança. Se este nosso segredo
fosse um adultério, esta seria a fase em que fazíamos amor na cama do
marido.
Sem demoras, li a carta sob o olhar atento dela, o olhar satisfeito de uma
mãe que vê o filho fazer uma habilidade em público e que constata a
admiração das outras pessoas. Percebi que o objectivo não era apenas dar-
me a conhecer o filho, mas ver a minha reacção às palavras dele.
Felizmente, não tive dificuldades em felicitá-la pela carta, embora me
tenha parecido um pouco fantasiosa. Começo a pensar que o propósito do
filho talvez seja tornar-se um escritor de viagens, ou mesmo publicar as
cartas que escreve aos pais. Esta pareceu-me demasiado pensada, as
peripécias exageradas, os pormenores mais estudados do que observados…
mas posso estar a sofrer de falta de imaginação. É possível que todas estas
coisas literárias e mirabolantes aconteçam ao filho dos Viana. Se assim é,
estamos perante esse caso raríssimo do viajante que encontra a viagem
desejada, do homem que obtém o destino que sonhou.
Depois da leitura, ela partiu, não sem antes se esquivar a mais perguntas
minhas. Começo a ficar frustrado com estas conversas com os Viana.
Pedia-te que investigasses se ele exerceu medicina em Lisboa, e, se sim,
onde e até quando. Já te imagino a torcer o nariz ao meu pedido, e a
começares mesmo a acreditar que estou louco. Sei que não preciso de o
fazer, e que a tua gentileza se imporia sempre sobre as dúvidas, mas vou
dar-te uma pequena recompensa. O teu psiquiatra, ou melhor, o psiquiatra
que tu recomendaste, respondeu à minha carta, o que, admito, me
surpreendeu. O homem talvez não seja assim tão negligenciável enquanto
correspondente, como cheguei a pensar. Por cortesia e pela nossa amizade,
irei responder-lhe. E tu, meu caro, não queres fazer de Watson deste teu
Sherlock desterrado?
Abraços detectivescos
IX
Querido amigo,
Do teu amigo
Cúmplice de contrabando de búzios
XI
Como está? Como lhe corre a vida? Espero que bem. Espero que muito
bem. Não tome a minha ironia por animosidade. Não tome, aliás, a minha
ironia por ironia. Sou mais verdadeiro quanto mais exageradas e
impossíveis soam as coisas que digo. Quero agradecer-lhe a sua carta.
Mostrou-me ser um homem cortês e desenvolto, um homem que numa
visita a um circo, por pedido do anfitrião, seria capaz de sair dos seus
sapatos e colocar umas andas. Gostei de ver que apreciou a minha carta,
gostei das suas referências ao Buster Keaton e gostei, acima de tudo, da
sua persistência em contribuir para a paz de alma do nosso amigo comum.
Como eu, o senhor sem dúvida vê nele o zénite da bondade e da gentileza.
Agora, caríssimo doutor, terei de recusar a sua proposta para que eu visite
um colega seu, mesmo que este seja «uma alma literária, apreciador de
Bach, Cervantes e T. S. Eliot». Sejamos sinceros, o que se pretende, com
essa minha visita, não é que eu discuta esses ou outros nomes, que se fale
de sinfonias, ou se recite poemas, mas que se avalie o risco de eu cometer
alguma loucura, ou melhor, de cometer um tipo particular de loucura, um
tipo definitivo de loucura. Suponho, também, que pode estar escondida
uma vontade de me medicar, de tentar controlar, opor, conter essa loucura
com comprimidos misteriosos que irão mudar as inclinações químicas do
meu cérebro. Nada tenho contra essas pílulas, aventuras cerebrais ou
variantes, sendo que nem me oporia, se a situação o justificasse, a
electrochoques, vendo mesmo algo de poético na passagem de uma
corrente eléctrica adicional pelo interior do meu crânio. Porém, a situação
não justifica tais intervenções. Vou tentar explicar-lhe.
Outro dia estive num centro comercial. Veja lá, numa ilha cheia de
lugares paradisíacos e eu, num dos poucos passeios que dei, fui a um
centro comercial. A certa altura passei junto às salas de cinema. Não
duvido de que, quando o senhor falou com o nosso amigo comum sobre
mim, a importância do cinema na minha vida, não só pela questão
profissional, mas por todos os outros motivos, tenha sido abordada. Desde
pequeno que vi numa sala de cinema, mesmo nas salas mais minúsculas, o
lugar mais amplo do mundo. Nenhuma praça, nenhum porto, nenhum
cume de montanha me ofereceu tantas visões do paraíso como um ecrã de
cinema. Mais do que beleza ou transcendência, o que eu procurei no
cinema foi a multiplicação da vida. A ficção, nas suas melhores
encarnações, permite a resolução de uma das questões mais difíceis da
nossa existência. Permite-nos superar os constrangimentos da nossa
narrativa e viver outras vidas. Os teóricos falam da «suspensão da
descrença», da ideia de que, para se poder apreciar certas obras de ficção,
temos de nos permitir acreditar no mundo ficcional. Simplificando,
suspensão da descrença é ser capaz de ver o super-homem voar sem pensar
«como é que ele voa?», é acreditar que um vagabundo de bigode e chapéu
de coco é mesmo capaz de causar o caos sem sofrer penalizações mais
graves do que uns pontapés no rabo, é ver surgir um vampiro e não
questionarmos a sua dificuldade em arranjar um dentista, e é acreditar que
o amor é mesmo o destino, e que supera todos os obstáculos, especialmente
os cómicos. Ora, quando eu me sentava na sala escura, o que eu queria, o
que eu às vezes conseguia, era bem mais do que a suspensão da descrença.
Era a suspensão do eu. Nos filmes abençoados, as angústias e sonhos dos
heróis substituíam os meus, eu deixava de ser eu e tornava-me um com as
almas encarnadas naqueles rostos enormes, brilhando por detrás dos olhos
em close-up, e sofria com eles, e chorava por eles e extasiava-me com os
seus triunfos e vivia, no espaço de duas horas, uma outra vida.
Já alguém deve ter feito esta comparação, tão óbvia e clara. Sair de um
filme é um pouco como nascer. Do escuro, de um mundo uterino que nos
parece só nosso, sai-se para um caos de luz e gente, onde o sentimento de
espaço e de tempo é diferente. Se no cinema, como no útero, tudo nos é
dado, e só temos de nos deixar levar pela história, fora dele, o espectador
torna-se narrador e personagem. A passividade já não chega; é preciso
iniciativa, é preciso procurar, é preciso decidir e arriscar. Eu sentia este
contraste de forma ainda mais intensa quando saía do cinema a meio da
tarde, como fiz muitas vezes, e daquele espaço escuro onde só a tela é
iluminada, saía para as ruas encharcadas de sol. Não era raro, então, que
durante alguns minutos eu visse as coisas ao contrário, suspeitando da
ficção do mundo real e ansiando pela realidade do cinema, pelo regresso ao
mundo do filme.
Ora, na última vez que fui ao cinema este regresso ao mundo real foi
ainda mais brutal, mil vezes mais brutal, milhões de vezes mais brutal.
Espectador responsável que era, desligava sempre o telemóvel assim que
entrava na sessão. À saída, naqueles primeiros passos num mundo sem
director de fotografia, cenógrafos ou realizadores, um dos meus gestos
quotidianos era ligar o telemóvel, gesto simbólico que me ligava de novo
ao meu eu real, ao meu eu que fora abandonado durante o filme. Como o
mundo não se suspende durante os filmes, enquanto eu vivia outras vidas,
contidas numa tela, a vida mais ampla continuava a desenrolar-se lá fora. O
tic seguia-se ao tac que era seguido por um outro tic, o dominó da
existência derrubava as suas peças, acontecia a sucessão ininterrupta das
coisas, gestos que causam gestos que causam outros gestos.
Cá fora, na luz inclemente das quatro e meia da tarde, chegou então, com
aqueles ruídos electrónicos, tão ofensiva na sua banalidade, uma
mensagem. Esta mensagem era a queda da primeira peça de dominó que
faria com que tantas outras caíssem. Era o princípio de uma vida nova. De
uma vida à qual seria arrancada a principal razão de viver. De uma vida tão
diferente da vida anterior àquela sessão que não pode ser a mesma. Era
como se, enquanto eu estava a ver aquele filme, um deus infinitamente
cruel tivesse substituído o universo. Antes de entrar naquela sala escura, eu
vivia no melhor dos mundos, num universo onde as coisas faziam sentido,
a beleza servia um propósito e a felicidade era possível. O universo que
encontrei à saída, anunciado pelo som de pechisbeque da mensagem de
telemóvel, era um universo que, apesar de parecer semelhante ao outro,
apesar de conter também árvores e nuvens e pessoas, havia sido esvaziado
da hipótese de felicidade.
Desde então não voltei a entrar numa sala de cinema.
E contudo, quando outro dia passei junto às bilheteiras, o cartaz de um
filme chamou-me a atenção. Nele via-se uma fotografia de um funâmbulo
num cabo que ligava dois prédios. Na parte de baixo do cartaz estavam
algumas frases de críticos elogiando o filme. Através delas percebi que os
prédios eram as torres gémeas. E foi então que me ocorreu, foi quase
imperceptível, uma microemoção (se existe tal coisa… diga-me o doutor,
que é o especialista), um germe de pensamento, um sussurro quase
inaudível pronunciado no meu interior: «Tenho de ir ver isto!» Como
antigamente, como todas as vezes em que um cartaz ou uma apresentação
me provocava uma onda de entusiasmo e me fazia pensar «tenho de ir ver
isto». E repare no «tenho». Na necessidade da coisa.
Claro que, de imediato, me lembrei de que já não era essa pessoa que
«tinha» de ir ver filmes, e me lembrei do porquê e me afastei com pés
pesados de tristeza da zona dos cinemas e do seu cheiro a pipocas.
Por isso, como vê, não há motivos para se preocupar. Eu vejo nesse
sussurro do meu antigo eu um sinal de que vai tudo correr bem. Embora
bem no sentido reconfigurado da palavra, o bem depois de aquilo-que-
aconteceu, se me faço entender. Provavelmente, não. Desculpe.
Devo confessar-lhe que tenho ainda dias maus. Que, embora não sofra de
alucinações, me perco em mundos imaginários. Construo cosmos inteiros
na minha mente e depois custa-me regressar ao aqui e agora, ao espaço em
redor do meu corpo, ao tempo ancorado naquilo que o relógio da cozinha
afirmar. E confesso-lhe também que, nas cartas que escrevo ao nosso
amigo comum, omito certos pormenores e exagero outros, contando-lhe
uma vida um pouco diferente da que vivo aqui, massajando alguns factos
para tornar a história mais próxima do que sinto.
Termino pedindo-lhe que, caso o nosso amigo comum o contacte
preocupado comigo, o tranquilize, e lhe garanta, como eu também tenho
tentado fazer, que, apesar de eu viver num mundo incomparavelmente mais
pobre do que o mundo de antes de aquilo-que-aconteceu, não tenho
nenhum intenção de o abandonar.
Queridos pais,
Do vosso filho
XIII
Querido amigo,
E aqui estou, horas depois, ainda com um sorriso. Aos poucos vão
regressando as larvas da melancolia – já as sinto a entrarem-me pelas
unhas dos pés. Só que agora sei que ainda consigo rir. Talvez exagere na
minha boa disposição, mas sinto uma esperança de que não falte muito
para estar contigo e darmos gargalhadas juntos.
Como sabes que não deves levar demasiado a sério os meus momentos
escuros, também deves saber não acreditar demasiado nas esporádicas
explosões de luz. Se amanhã já não tiver dentro de mim a esperança do
riso, não te desiludas.
Sorrindo
P.S.: Se a minha querida avó fosse viva e lesse esta carta, e usasse o seu
método usual de correcção do meu vocabulário, sem dúvida que eu ficaria
sem orelha…
XIV
Querido amigo,
De resto não há muito para te contar. Por vezes tenho tantas saudades de
Lisboa que me imagino a passear lá, por exemplo do Marquês de Pombal
até ao Chiado, ou de Algés ao Terreiro do Paço. Tanto vou sozinho, como
acompanhado de ti, do Fernando Pessoa ou, claro, da…
Entretanto, como o João não ainda não me telefonou, suponho que a
minha carta tenha surtido efeito. O acidente acabou por me proporcionar o
enorme prazer de escrever ao teu filho. Como me diziam as velhas
melancólicas da minha infância, «há males que vêm por bem».
Despeço-me com votos de que nunca te aconteça só reparar que já não
há champô a meio do duche.
Excepcionalmente breve
O teu amigo
XV
Querido amigo,
Não fui logo lá. Esperei dois ou três dias, a ensaiar o que diria, que
argumentos usar, que sorriso fazer para conseguir as minhas respostas.
Quando bati à porta, fi-lo devagar, como se estivesse a marcar o compasso
para uma orquestra de sussurros. A Teresa Viana abriu-me a porta e senti
que tinha estado tranquilamente à minha espera. Serviu-me bolachas
caseiras, feitas nessa manhã, e chá de camomila. No tabuleiro, dobradas
debaixo do prato das bolachas, estavam as cartas.
–Estas são maravilhosas! – anunciou a minha anfitriã, sorrindo
calorosamente, não sendo claro se estava a referir-se às bolachas ou às
cartas.
Ainda falámos um bocado antes da leitura. A conversa foi sobre Lisboa.
Ela perguntou-me onde é que eu tinha vivido e eu falei-lhe dos bairros
onde durante anos despertei, da música do amolador de facas, dos jardins,
dos miúdos a jogar à bola perto da estrada. Quando terminei o chá e as
bolachas, ela levantou o tabuleiro da mesa, mas, em vez de o levar para a
cozinha, virou-se na minha direcção e estendeu-mo. Percebi que esperava
que eu pegasse nas cartas, o que fiz de imediato. Mantive-as dobradas na
minha mão, esperando pacientemente que ela regressasse da cozinha. Só
quando ela estava sentada à minha frente, as mãos pousadas sobre o colo,
uma dentro da outra, é que comecei a ler.
Encontrei a mesma caligrafia ondulante, as mesmas folhas dobradas em
três, a mesma ausência de datas ou envelopes. O filho continuava a
descrever os variados locais por onde passava, enchendo as páginas de
detalhes curiosos e aventuras literárias. Estas cartas, contudo, falavam
também da relação com os pais, e tentavam explicar, de forma apaixonada
mas confusa, os motivos da viagem. Depois de as ler fiquei ainda mais
com a impressão de que havia sido uma terrível discussão com o pai o que
o levara a partir.
A primeira carta tinha sido escrita de Viena e falava dos palácios da
Sissi, dos quadros de Gustav Klimt e do underground artístico, onde, para
não variar, ele tinha feito amigos. A segunda fora escrita em Madrid, por
altura do Natal, e continha, como todas as outras, mirabolantes descrições
de acontecimentos e lugares, que fariam brilhar os olhos de qualquer
produtor de Hollywood. Mas foi a terceira carta que quase me fez saltar da
cadeira. Fora escrita da Croácia, de Dubrovnik, para ser mais preciso.
Lembrei-me das conversas que tive com o Dr. Viana sobre este país e de
ele ter dito, apenas uns meses antes, que o seu filho estava lá. Era, pois,
uma carta recente. Li-a duas vezes, sob o olhar observador da mãe
orgulhosa, que se mantinha sentada à minha frente sem parar de sorrir. A
carta fora escrita ao estilo das outras. Contava as aventuras do autor e
descrevia os lugares por onde passara, alguns dos quais meus conhecidos e
que eu referira a Augusto Viana.
Será que ele os visitara porque eu tinha falado deles ao seu pai, e este
lhos recomendara? Seria esta carta diferente se eu não tivesse vindo para os
Açores? Curioso como pequenos gestos nossos se podem propagar pelo
mundo e voltar, tempos depois e sob formas inimagináveis, às nossas
vidas. Um episódio em especial fez-me acreditar nessa possibilidade. O
filho descrevia um jantar animado que ele e os seus companheiros (para
quem viaja só, ele mostra uma enorme tendência para encontrar parceiros
de aventura) haviam tido num restaurante com um nome francês próximo
de um convento e mantido por freiras. Ora, quem é que também teve um
jantar animado num restaurante de freiras durante uma viagem ao Leste da
Europa? Sim, querido amigo, moi même! Foi este pormenor que me fez
achar que o Dr. Viana se mantinha num contacto mais frequente e próximo
com o filho do que demonstrava.
Quando acabei de ler as cartas, sorri e disse-lhe:
– Sim, sim, maravilhosas!
Como num adultério, parecia ser esta a altura em que, cumprida a
traição, resta aos seus participantes uma despedida brusca e o regresso às
suas vidas. Assim foi, e em poucos segundos encontrava-me no caminho
de terra, já de costas voltadas para a casa. Passei pela estufa e, não sei
explicar porquê, senti um arrepio. Não conseguia deixar de pensar nas
cartas e nas minhas conversas com o médico Augusto Viana. Em vez de
regressar a casa, virei à direita na bifurcação e pus-me a subir a encosta, o
horizonte era feito de campos verdes, pinceladas de árvores e as
omnipresentes vacas.
Alguma coisa não estava a bater certo na história dos Viana. Seria o seu
filho quem parecia ser nas cartas? Não obstante uma ou outra frase de
lamento, as cartas estavam cheias de vida e optimismo; apesar das
passagens menos felizes, procuravam mostrar alguém plenamente satisfeito
com o espectáculo do mundo, alguém que não tomava por mote ora et
labora, o reza e trabalha dos monges, mas que vivia et aplaudia. Em
essência: um sábio, um Jesus Cristo passivo, que recebia milagres em vez
de os fazer. Seria ele realmente assim, ou estaria a querer mostrar aos pais
que a sua viagem era a melhor das viagens, a tentar justificar a sua decisão
numa alegria inventada? Era pouco provável que todas aquelas aventuras
acontecessem a uma só pessoa, mas também seria pouco provável que
alguém inventasse tudo aquilo. Muitas das histórias estavam em bruto,
continham personagens inúteis ou finais abruptos, perdiam demasiado
tempo em acontecimentos sem sentido e continham pormenores supérfluos
que pioravam a história, daqueles que os narradores talentosos omitem mas
que a vida possui em abundância.
Também me intrigavam as declarações de amor aos pais associadas às
explicações sinuosas que tentavam justificar o não regresso. Porque sentia
ele tanta necessidade em se mostrar um filho agradecido? Na minha
caminhada, parecia que cada passo que eu dava trazia uma nova pergunta.
Como pagava ele todas aquelas viagens? Quanto do que escrevia era
verdade e quanto inventado? Porque não tinham data as cartas? Que
acontecera a todos aqueles amores e a todas aquelas pessoas que ele
referia? Quantas delas existiriam mesmo? E para onde lhe escrevia o pai?
Seria para um e-mail? A relação invertida, o filho sábio enviando cartas
aos pais de todo o mundo e estes respondendo por e-mail de uma ilha
perdida com sugestões de restaurantes, parecia inverosímil.
Não era só no filho que eu pensava. Tal como em relação a Hector, eu
desenvolvera com os Viana uma espécie de intimidade que, examinada
com calma, não tinha onde se sustentar. Que sabia eu daquelas pessoas?
Tínhamos tido conversas intensas, mas haviam sido poucas e cheias de
respostas esquivas e meias verdades. E como caracterizar a minha relação
com a Teresa Viana? Como explicar estes nossos encontros em que, depois
do chá, ela me via a ler as cartas do filho? Existia nisso uma violação de
pudor na qual eu tinha participado sem objecção. Seria justo estar a ler as
cartas do filho? Imagina que alguém roubava as cartas que eu te envio e as
lia…
Passeei algumas horas e voltei para casa. Fui-te escrevendo esta carta
enquanto fazia esparguete e pendurava a roupa no estendal lá fora com
vista para o mar. Nunca te tinha falado no meu estendal, pois não? Como
vês, não só daria um mau dramaturgo, como um mau romancista. O
estendal é um local tão dramático e pleno de simbologia que qualquer
narrador do meu desterro já o teria referido. Pendurar os lençóis com o mar
enorme e desperto à minha frente, ver as minhas peças de roupa a serem
chicoteadas pelo vento, sentir o cheiro do mar misturar-se com o do
detergente, acordar e ver da sala que a roupa deixada a secar está ensopada
depois de uma noite de chuva… Enfim, pedras preciosas que me teriam
ajudado a explicar-te melhor como tenho vivido aqui.
Já comi e já estendi a roupa. Não consigo deixar de pensar na
possibilidade de que o que eu disse ao Dr. Viana tenha levado o seu filho
àquele restaurante, e de que as freiras que me sorriram nessa noite, tenham
sorrido agora ao filho dos meus actuais vizinhos. A sensação que tive
quando li a primeira carta do filho era que, de certa forma, ele era o meu
duplo. Lembras-te? Agora não posso deixar de sentir que os nossos
destinos estão ligados.
Espero que o Dr. Viana volte rapidamente. Quero perguntar-lhe se ele
recomendou o restaurante ao filho. Quero perguntar-lhe qual o próximo
destino dele. Quero perguntar-lhe o que aconteceu, o que causou a viagem.
Quero perguntar-lhe como lida com as saudades.
Sei que não preciso de me justificar por em algumas cartas não perguntar
por ti. Quero que todos os teus dias sejam abençoados, e que nunca deixes
queimar as torradas. Se os envelopes fossem maiores e mais resistentes,
enviava-te sempre a mais saudável vaca que encontrasse nestas encostas
para que tivesses sempre leite fresco à mesa do teu pequeno-almoço.
Em plena vénia
XVI
Queridos pais,
Estou eufórico. O jet lag ainda não passou depois de dois dias e fez com
que acordasse às seis da manhã sem sono. Tomei banho, vesti-me depressa
e saí de casa sem acordar os meus gentis anfitriões. Atravessei uma
Brooklyn que despertava, os seus habitantes saindo dos prédios de pedra
com ares sonolentos e entrando nos cafés e delis para de lá saírem com um
inevitável latte macchiato em copo descartável e qualquer coisa para
comer na outra mão. Ao contrário da maior parte deles, eu não fui para o
metro, mas para a ponte. A ponte de Brooklyn.
Atravessei-a a pé e quase morri de felicidade. Tive de parar várias vezes,
não só para apreciar uma das visões mais irreais que já abençoaram os
meus olhos – a ilha de Manhattan acordando à minha frente – mas porque
me invadia uma sensação de triunfo e deslumbramento, uma alegria tão
violenta que não sabia o que lhe fazer. Com os pés naquela ponte senti que
pulsava debaixo de mim a aorta do mundo, que eu ocupava o epicentro do
planeta e que o que se passava bem perto de mim ecoava por todo o lado.
Talvez por ter visto tantas vezes Manhattan na televisão ou no cinema,
Nova Iorque foi sempre para mim um território fora do real, um espaço que
só existia na imaginação. Ver-me aqui é entrar na tela do cinema; passear
por esta cidade é como conversar com o Super-Homem.
Agora já subi Nova Iorque em júbilo. Duvido de que qualquer general
romano regressado de uma campanha vitoriosa tenha atravessado Roma
com metade da pompa e triunfo com que o fiz. Devo ter parecido louco aos
milhares de pessoas com quem me cruzei, a maioria felizmente demasiado
envolvida nos seus afazeres para notar os meus olhos húmidos, o meu ar
perplexo e o meu sorriso, este sorriso que não descola, que me continua a
cansar os músculos da cara mesmo enquanto vos escrevo, este sorriso que,
tenho a certeza, é o mais amplo que já experimentei.
Tirando os frutos do amor, acho que nada alguma vez me fará mais feliz
do que estou agora. Encontro-me sentado na relva em Bryant Park, a uns
metros de mim dois velhos a jogar xadrez e logo a seguir a Sexta Avenida.
Do outro lado do parque fica a Quinta, a mais famosa, que percorri tantas
vezes acompanhando as personagens dos filmes. E por todo o lado estão
estas ruas largas, estes prédios crescendo para o céu e gente, muita gente,
tanta gente, uma multidão, uma multitude de todas as raças, alturas, portes,
idades, zumbindo, sonhando, vivendo ao meu redor.
Mas a minha alegria não vem só de estar aqui. Vem da viagem que me
trouxe aqui, do caminho que desembocou neste destino. E mais do que
isso, das coisas que vi e vivi. Graças a vocês, a minha vida foi uma vida de
encanto, em que atravessei muitos dias como se fossem o primeiro depois
de um coma.
Agora encanto-me com as pessoas e encanto-me com as coisas que
fazem e encanto-me com a luz da manhã e o céu do meio-dia e a brisa do
princípio da noite. Encanto-me com as luzes a acenderem-se no fim do dia
em Nova Iorque, mas também me encantaria com as do Porto ou de
Istambul. Como, bebo e durmo com gosto. Cada acto que pratico é a sua
própria recompensa. Cada dia que vivo é um milagre.
De certa maneira, sinto que foi preciso chegar aqui, ao centro do mundo,
para perceber que o centro do mundo não é só aqui, mas é onde quer que
estejamos. E esteja onde estiver, na companhia de seja quem for, em
direcção a nenhum ou a todos os destinos, sinto que se a minha vida
terminasse agora, terminaria bem e eu teria sido a pessoa mais abençoada
da existência.
Gostava de passear nestas ruas convosco. Gostava de ver como reagirias,
mãe, aos dog walkers, os passeadores profissionais de cães que visitam
Central Park com dez canídeos à sua volta, fazendo-os parecer uma espécie
de polvo com trelas em vez de tentáculos. E adoraria estar no topo do
Empire State Building contigo, pai, para podermos apontar para a Estátua
da Liberdade e comentar como parece pequena dali. Mas, como acho que
já vos escrevi, a minha viagem, aliás, qualquer viagem, é sempre feita de
incompletude. Tal como a vida. Só que, e foi isso que senti de forma tão
intensa a meio da ponte de Brooklyn, a incompletude, a saudade, a
imperfeição são a única forma de não colocarmos um tecto à felicidade, de
permitir que, não importa quão vasto o nosso horizonte, não importa quão
grande o nosso triunfo, haja sempre mais para ver, mais para conseguir. Se
calhar é por isso que a Terra é redonda; para impedir que, mesmo
contemplada da Lua, seja vista toda de uma vez.
Não podendo estar em todo o lado ao mesmo tempo e junto de todos com
quem quero estar, aprendo a saber estar no aqui e agora. O truque é ter
dentro de mim todos os lugares e pessoas. Hoje, sinto que resulta. E
estando em Nova Iorque estou também em Berlim, Lisboa, Islamabad, nos
Açores. E escrevendo isto sozinho, escrevo-o também na vossa companhia,
e na companhia dos meus amigos e dos meus antigos amores.
Agora tenho de ir. Aqui há prédios com aldeias inteiras lá dentro, bairros
que são verdadeiras cidades e pessoas com mundos dentro. E lá vou eu,
queridos pais, pôr-me a andar, gastar as solas, ganhar horizontes, alimentar
a alma.
Querido amigo,
Não sei como te escrever esta carta. Queria começar pelo tema principal,
gritá-lo, mas vou tentar acalmar-me e narrar-te os acontecimentos deste dia
pela sequência correcta. Na última carta que te escrevi, e que esta manhã
fui levar aos correios da cidade, contei-te sobre o restaurante gerido pelas
freiras onde quer eu, quer o filho dos Viana jantámos. Passei a noite a
pensar nas cartas que li ontem e a recordar-me da minha viagem à Europa
de Leste. Foi na fase mais escura da insónia que me ocorreu: o restaurante
das freiras não ficava em Dubrovnik. Não ficava sequer na Croácia, mas na
República Checa. Durante a noite fui-me lembrando de mais detalhes dessa
minha viagem e, aos poucos, ficando certo de que me tinha enganado e
dito ao Dr. Viana que o restaurante ficava em Dubrovnik. Mesmo assim
quis certificar-me e, quebrando uma promessa, fui à Internet. E lá surgiu, o
restaurante de nome francês, com fotografias das freiras servindo e
sorrindo, na simpática cidade de Brno, na República Checa. Levantei-me
da cadeira de plástico diante do computador como quem entra num sonho.
Feito piloto de ralis, voltei para a minha encosta a uma velocidade
criminosa e quase derrubei a estufa quando estacionei em frente à casa dos
Viana. O barulho da travagem trouxe a Teresa Viana para a rua.
Saltei do carro e andei velozmente na sua direcção. Ela percebeu que eu
estava fora de mim e assustou-se:
– Que se passa? Que se passa?
– Desculpe chegar desta maneira, mas preciso de ver as cartas de ontem!
É que, é que… – achei então melhor não dizer a verdade – é que o seu filho
falou em alguém que só hoje me apercebi de que pode ser alguém que eu
conheço… – ela ainda parecia hesitante – alguém de quem perdi o rasto,
mas que é importante para mim. Muito importante!
– Está bem, está bem! – disse ela, talvez convencida pelo meu tom
desesperado. Na entrada, ainda hesitou uns segundos, meio desorientada,
lançando-se depois para as escadas.
– Vou ali buscá-las ao gabinete do meu marido – disse-me, já uns
degraus acima de mim.
Fui atrás dela, mas a Teresa Viana virou-se para trás e levantou as duas
mãos:
– Não. Não pode vir comigo. O meu marido não quer que ninguém entre
no gabinete dele.
A forma como a sua voz soou foi muito diferente do tom habitual. Além
de alarme, continha um toque de ameaça. Desci as escadas e fingi que
esperaria na sala, mas alguns segundos depois voltei para trás sem fazer
barulho. Cheguei ao primeiro andar, onde nunca tinha estado, e a primeira
coisa que vi foi uma enorme janela com vista para o mar. À minha
esquerda estava entreaberta a porta do quarto, do qual só vislumbrei os pés
da cama. Da porta à direita, apenas encostada, ouvi os movimentos dela.
Empurrei a porta devagar. Foi então que vi.
O escritório era uma divisão rectangular com uma janela na parede
oposta à porta. Em frente à janela estava uma secretária antiga, cheia de
livros, papéis e algumas molduras. Quer a parede à esquerda, quer a parede
à direita, estavam cobertas de estantes. Demorei uns segundos a aperceber-
me do seu conteúdo. Quando aquilo que os meus olhos viram chegou à
minha mente, foi como se um mecanismo gigante e complexo, há muito
tempo à espera acumulando poeira, começasse finalmente a funcionar.
Todas aquelas estantes, com dezenas de prateleiras, estavam cobertas de
livros de viagens, guias turísticos e mapas. As lombadas, centenas delas,
continham nomes de países e cidades:
Guia de Madrid
American Express – Roma
Paris em Dois Dias
Top 10 Vienna
Lonely Planet da Europa de Leste
Índia Mágica
Let’s Go – Berlim
Londres – Passeios e Monumentos
Amesterdão Low Cost
Uma Semana em Praga
Tesouros de Budapeste
Marraquexe sem Segredos
Viagem a Moscovo…
Aproximei-me das estantes e observei com mais atenção. Acho que não
havia nenhum guia à venda que não estivesse ali. Só sobre Paris contei
dezasseis livros. A Teresa olhava-me em choque, o seu corpo feito estátua,
e nas suas mãos, nos seus dedos crispados, as cartas.
– Que é isto tudo? – perguntei.
Ela continuava imóvel.
– Para que são todos estes livros de viagens? Para quê?
– São do meu filho – respondeu.
Tirei alguns livros da estante. Nesse momento eu já tinha uma suspeita
bem formada e procurava apenas provas.
– Então, se são do seu filho, como é que este guia é do ano passado? Não
me disse que o seu filho está a viajar há anos?
Ela respondeu mais rápido do que o que eu esperava:
– Ele envia-nos os guias quando já não precisa deles. O meu marido é
que os arruma…
– Mas então porque é que estes são em português?
Ela ficou confusa:
– Português, que mal tem isso?
Senti pena dela. A sua confusão aumentava e começavam a formar-se
lágrimas nos seus olhos, mas continuava naquela posição de bicho-de-
conta prestes a fechar-se.
– Oiça, este é um guia da Roménia, publicado o ano passado. Em
português. Se o seu filho está a viajar há anos, como é que ele encontrou
um guia em português sobre a Roménia? Não fazia mais sentido que
estivesse em inglês? E como é que ele enviaria todas estas centenas de
livros e guias para aqui? Uma coisa é enviar uma carta, mas dezasseis
livros sobre Paris?
Começou a chorar.
– Não sei, não percebo… o meu marido… ele é que…
Segurei-a por um braço e com toda a gentileza que consegui, levei-a dali
para fora. Ela não largava as cartas, às quais se agarrava como certos bebés
às suas mães. Sentei-a numa das cadeiras da sala e agachei-me à sua frente.
– Não é o seu filho que escreve estas cartas, pois não?
Olhou-me por entre as lágrimas, mas não disse nada.
– É o seu marido que escreve estas cartas, não é? – perguntei no tom com
que se acalma uma criança.
– Diga-me, o que é que aconteceu ao seu filho?
Ao ouvir a pergunta, ela guinchou e mais lágrimas escorreram-lhe pelo
rosto, pingando-lhe do queixo para o colo.
– Pode contar-me. Pode dizer-me o que…
Mas não terminei a frase, porque o seu olhar mudou de repente,
tornando-se febril e cortante. A voz dela caiu sobre mim em toda a sua
loucura:
– Se não sais já daqui, ele mata-te a ti também!
Um arrepio percorreu-me a espinha, não só pelas palavras, mas pela
raiva com que ela as proferiu, por toda a loucura que emanava do seu rosto
e voz. Levantei-me. Todo eu tremia, tantas e tão pesadas tinham sido as
descobertas dos últimos minutos.
Deixei-a a olhar para mim. transformada numa bruxa mitológica, saí e
corri até ao jipe e regressei a minha casa. Quando fechei a porta da rua
desatei a berrar. Não sei porquê, mas uivei uma boa meia hora. Quando
fiquei rouco e cansado, comecei a escrever o que estás a ler. Tudo me passa
pela cabeça. Até imaginei que o filho está morto debaixo da estufa!
Apesar disso não te envio já esta carta. Iria deixar-te preocupado. Vou
esperar pela chegada do Dr. Augusto Viana e pelo desenlace desta história.
O pouco senso comum que ainda me resta diz-me que ele não matou o
filho. Apesar disso, por segurança, vou colocar esta carta num envelope e
deixá-lo debaixo da cama, caso os meus delírios mais exagerados sejam
reais e me aconteça qualquer coisa.
Espero que isto não seja uma despedida. Precisaria de uma carta de mil
páginas para o fazer.
XVIII
Querido amigo,
Como estás a ler esta carta sabes que estou vivo e que, pelo menos a esse
respeito, correu tudo bem. Terás de utilizar a imaginação para tentar
compreender como vivi os acontecimentos que te vou narrar. Terás de ter
presente que, quando o Dr. Augusto Viana me bateu à porta, eu não sabia
se não era também a morte que me chamava. Quando ele me disse, sem
simpatia no olhar, mas também sem maldade, que precisávamos de falar, e
que, apesar de serem onze da noite, como estava Lua cheia e um tempo
agradável, ele ficaria muito agradecido se eu passeasse com ele, eu não
sabia se regressaria desse passeio. Mas fui. Queria saber, não só o que se
tinha passado, o que acontecera ao seu filho, mas também se este seria um
mundo onde a morte poderia vir das mãos de um homem que fora capaz de
me perguntar se eu estava triste. Para que possas estar mais próximo do
que eu vivi, apelo à tua imaginação. Imagina como foi ir passear à noite
com um possível assassino. Imagina como foi para mim o desenrolar da
nossa conversa, como o meu medo aumentou quando nos afastámos da
casa e nos encaminhámos para a falésia. Imagina a Lua gorda e cheia
dominando o céu nocturno, e imagina-a deitada sobre o mar, e imagina
uma brisa salgada e leve, um cheiro a terra molhada e uma falésia
escarpada ao pé de mim. E imagina a minha vertigem. Por dentro e por
fora. Imagina também a voz do Dr. Viana, com um ritmo de metrónomo,
seca, sem tremer mesmo quando diz as coisas mais terríveis. Tento
reproduzi-las:
Nem mais uma palavra foi dita, por mim ou por ele. O dia já nascia
quando o Dr. Augusto Viana acabou o seu monólogo. Ficámos ainda uma
meia hora a ver a luz inundar o mundo e a cor regressar às coisas. Não
consigo, agora, dizer-te muito mais. Tentar reproduzir as palavras dele
cansou-me quase tanto como ouvi-las. Despedimo-nos com um aperto de
mão na bifurcação do caminho. Eu queria dizer tanta, tanta coisa. E ao
mesmo tempo sentia que nada do que eu dissesse serviria, que por muito
cuidadas que fossem as minhas palavras não seriam capazes de expressar o
que eu pretendia. Tirei então a fotografia do bolso. Aquela fotografia. Tive
vergonha de te dizer até agora, mas ando sempre com ela. Mesmo quando
vou correr, levo-a no bolso do fato de treino.
Mostrei a fotografia ao Dr. Viana. Ele pegou nela com cuidado extremo.
Após alguns segundos de contemplação, acenou com a cabeça em sinal de
compreensão. Levantou depois o rosto e olhou-me nos olhos. O olhar que
dois vizinhos trocam quando se vêem lado a lado, à noite na rua, diante do
seu prédio que arde sem salvação possível.
XIX
Começo por felicitá-lo pelo cargo que ocupa. Para mim, e creio que para
muitos, a sua posição é de maior importância, encontrando-se, na
hierarquia de cargos institucionais, um pouco abaixo do Papa, na sua
condição de anfitrião da Basílica de São Pedro, mas acima do presidente
francês.
Após a felicitação, apresento-me. O meu nome é o que assina esta carta.
A minha formação e currículo são irrelevantes, bem como a minha
descrição física. Talvez lhe interesse uma caracterização moral. Sou um
homem incapaz de não sorrir a uma criança que me sorri. Apesar disso,
tenho inúmeras falhas e peco tanto como as cidades do Antigo Testamento.
Pago os meus impostos, mas sem gosto, e já estacionei, sem remorsos, em
passadeiras, mas nunca andei de transportes públicos sem bilhete. De
momento a minha ocupação principal é a redacção de cartas com o intuito
de tornar o mundo um lugar melhor, diminuindo o sofrimento e
promovendo a felicidade. É por este motivo que lhe escrevo.
Acredito que V.Ex.ª e a sua equipa laboram num erro. A Casa Fernando
Pessoa divulga, debate e exulta a obra do homónimo, na qual inclui as
obras de, entre outros, Alberto Caeiro, do engenheiro Álvaro de Campos,
de Ricardo Reis e de Bernardo Soares. As várias instituições mundiais que
celebram a vida dos seus autores, fazem-no porque consideram que a sua
obra é única e bela, que mostra uma forma singular de encarar o mundo e a
vida transmitida numa voz inconfundível. Ora, não possui, por exemplo, o
admirável engenheiro Álvaro de Campos uma obra única e bela, que
mostra uma forma singular de encarar o mundo e a vida através de uma
voz inconfundível? Considera a Casa Fernando Pessoa que a obra de
Álvaro de Campos é a mesma que a de Fernando Pessoa?
Claro que quem viveu, oficialmente, naquela casa da Rua Coelho da
Rocha, foi o cidadão Fernando Pessoa. Só dele, aliás, se irão encontrar
registos burocráticos. Mas lá porque foi o único dos poetas que a sua
instituição celebra que pagou impostos e teve direito a lápide, significa isso
que os outros não existiram, ou até que não viveram nessa casa? Acredita
mesmo que, pelas janelas através das quais V.Ex.ª vê a rua, sempre que o
corpo do cidadão Fernando Pessoa olhava para a rua era o poeta Fernando
Pessoa que olhava para essa mesma rua? O engenheiro Álvaro de Campos
também olhou através dessa janela. E Alberto Caeiro. E o que sentiram e
pensaram foi diferente, como diferente é a sua poesia. Vou até mais longe.
Na casa de banho onde Fernando Pessoa se sentava e ficava mais leve,
também se sentou Ricardo Reis. Não sei se todos os heterónimos faziam as
suas necessidades da mesma forma, ou se algum sofria de obstipação. Mas
que se sentaram todos a olhar para os mesmos azulejos, disso não duvido.
Compreendo que seria dispendioso abrir uma casa para cada um dos
nomes que mencionei. Proponho-lhe, pois, uma de duas soluções. A
primeira, e ideal, será alterar o nome da sua instituição para Casa Fernando
Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares
e Amigos. Estou consciente da semelhança com o nome de uma firma de
advogados, mas acho que vale a pena o risco. É possível que considere esta
solução extremada. Se for esse o caso, perdoe-me por achar que está na
posição errada, já que não compreende a obra de qualquer dos poetas que
pretende celebrar. Tenho uma segunda proposta, mais modesta. Dê um
quarto a cada um deles. A casa pode ser do Fernando, mas que o Álvaro
tenha onde pôr os sapatos e o Alberto onde pendurar o capote.
Existem duas formas de viver, que só por vezes se sobrepõem. Por fora e
por dentro. Ambas são fundamentais para uma vida plena. Há quem
descure a segunda em favor da primeira e acabe incapaz de perceber que
uma flor não é um vegetal, mas um milagre. E há quem descure a primeira
em favor da segunda e acabe a tentar jantar um soneto e a proteger-se do
frio com uma recordação.
Ao manter o presente nome, mantém o equívoco de que o Fernando
Pessoa era mais do que os outros e, desse modo, a sua instituição dá
primazia à vida externa e diminui a importância da vida interior. O que é
irónico vindo de quem quer promover a poesia.
Espero pois que proceda às alterações necessárias para rectificar esta
situação.
Agradeço a sua atenção. Lamento se achou o meu tom impositivo ou
paternalista. É um risco que corro em nome da minha missão. Desejo-lhe
as maiores alegrias no cumprimento do seu cargo, e já agora, igualmente
fora dele. Aproveito também para lhe propor que a «Tabacaria» seja lida
todas as semanas em voz alta, na sua instituição, de preferência por uma
rapariga excessivamente bela que, quando chova, fume cigarros com
gestos melancólicos debaixo de toldos. Ou então por um jovem poeta com
bexigas na cara e unhas muito roídas que sonhe sem freio. Ou ainda por
um velho arrependido da vida, com papos debaixo dos olhos, mãos
calejadas e orelhas imperiais.
Em verso livre
P.S. 1: Ou, também, por uma grávida de sete meses com olhos bondosos
e que saiba tricotar. Ou uma prostituta coxa que chore sempre nos finais
felizes dos telefilmes. Ou um marinheiro de uniforme com tatuagens no
pulso.
Querido amigo,
Até breve
XXI
Querido amigo,
Estou muito perto de ti, mas ainda não nos vimos. Os últimos sete dias
da minha vida já se passaram na cidade que mais alegrias e tristezas me
trouxe: Lisboa. Para já, estou a morar numa pensão no Rossio. Não sei
ainda se regressarei à minha casa.
As despedidas da ilha foram rápidas. Passei por casa de Hector a
devolver-lhe os seus livros e acabámos a jantar no restaurante do senhor
Joaquim. O braço dele já estava bom e o seu humor mantinha-se. Disse que
um dia ainda me visitava em Lisboa a pedir para eu guardar um caixote
cheio de búzios.
Encaixotei todos os livros que fui acumulando aqui e, antes de entregar o
jipe, visitei o posto de turismo. Esperava que a Maria lá estivesse. Estava.
Reconheceu-me de imediato e saudou-me com um sorriso. Perguntei-lhe se
gostava de livros e quando ela, com um ar intrigado, me disse que sim,
convenci-a a acompanhar-me até ao jipe.
Devemos ter demorado uns dois, três minutos a ir do edifício até ao
estacionamento. Mas foram dois, três minutos nos quais me senti de novo
adolescente e nos quais voltei a sentir a euforia tingida de timidez que é
andar lado a lado com uma senhorita que desejamos. Abri a mala do jipe e
mostrei-lhe os quatro caixotes de livros que lhe queria oferecer. Maria
recusou sem deixar de sorrir. Achou, sem dúvida, que era um gesto
excessivo e, para tentar resolver as coisas, propôs escolher um ou dois
livros apenas. Eu insisti, e expliquei que, uma vez que ia partir ainda nesse
dia, não podia levar todos aqueles livros comigo. Não sei se sonhei ou se
ela ficou mesmo um pouco triste ao ouvir isto. Voltei a insistir que ela
ficasse com eles, mas Maria propôs-me pagar pelos livros.
– Troco-os por um beijo – lembrei-me de dizer, como um adolescente
que, por falta de experiência, procura agir como a personagem de um
filme. Ao contrário do que seria de esperar, ela não achou este comentário
ridículo, antes sorriu envergonhada, desviando depois o rosto na direcção
do mar.
Quando se virou para mim, disse-me: «Está bem.»
Quase não reagi quando ela se inclinou para a frente e me beijou na
bochecha. À velocidade a que tudo isto se passou, não sei se cheguei a ter
tempo de esperar que fosse na boca, mas fiquei um pouco desiludido com a
castidade do ósculo. Um minuto antes eu não esperara nem pretendera
obter qualquer beijo, mas o ser humano é veloz a criar ilusões e lento a
lidar com o seu fim. Desapontado, carreguei os caixotes para um pequeno
gabinete atrás do posto de turismo.
Quando olhei para Maria para me despedir ela notou, sem dúvida, que eu
estava desiludido. Que ridículo lhe devo ter parecido. Como ousava eu, um
homem bem mais velho, que falara com ela apenas uma vez e que agora
lhe oferecia uns caixotes de livros velhos, achar-me no direito de receber
um beijo de uma mulher assim? Mas, meu amigo, os milagres existem, e
não minto quando te conto que ela então me beijou. Um beijo que se sabia
primeiro e último.
–Este é de graça! – disse-me, tal e qual como num filme.
Foi o primeiro beijo a sério que recebi desde aquilo-que-aconteceu.
Não voltei a ver os Viana. Quando passei para me despedir, o carro não
estava lá e a casa encontrava-se fechada. No voo para Lisboa, assim que o
avião levantou, comecei a escrever-lhes. Depois de aterrar, só saí do
aeroporto quando terminei a carta e a enviei para os Açores.
Era uma carta tão ridícula quanto sincera, tão ambiciosa quanto
carregada de falhas, tão patética quanto genuína. Hoje de manhã, uma
semana depois, foi-me devolvida com um carimbo a informar que o
destinatário já não residia naquela morada.
Ainda não falei com ninguém desde que cheguei. Não te disse mas, nas
últimas semanas, deixei crescer a barba como se fosse formar uma banda
folk. Magro, bronzeado e barbudo como estou, com um boné na cabeça e
óculos escuros, consigo andar pelas ruas e ser confundido com um turista.
Já me cruzei com algumas pessoas que me conhecem, e notei, aliviado, que
o olhar delas nunca poisou em mim.
Em breve vou voltar a ser eu, vou voltar a falar e visitar as pessoas que
magoei, que ignorei ou de quem recusei indelicadamente a ajuda. Mas
precisava destes dias. Precisava de voltar a percorrer estas ruas sem ter de
conversar, sem ter de dar explicações, sem ter de pôr pessoas a par, sem ter
de contar o tempo que já passou desde aquilo-que-aconteceu.
O meu encanto para com a vida vai regressando. As feridas não
desaparecem, mas cicatrizam.
Nos três primeiros dias passeei só à noite, aproveitando o silêncio e a
pouca gente para me reencontrar com a minha cidade. Reencontrei as
avenidas, ruas e largos onde tiveram lugar tantos dos momentos mais
importantes da minha vida. Não há um recanto desta cidade para o qual eu
não tenha uma história ou uma esquina que eu não tenha cruzado. É-me
difícil encontrar uma árvore que não me tenha oferecido sombra, um banco
onde não tenha descansado, um bairro onde não haja um amigo. E ao
mesmo tempo, apesar de não ter sido tão extensa a minha ausência, Lisboa
já mudou um pouco, já há prédios que eu vira em obras e que agora têm
gente lá dentro, outros que ruíram, fachadas pintadas de cor diferente. Vou
reparando nos restaurantes que fecharam, nas pastelarias que agora são
bancos, em ruas onde os carros passam no sentido contrário. O tempo
também passou por aqui, também passa por aqui, como passa por todo o
lado, por toda a gente.
Ao quarto dia já ousei passear ao fim da tarde, um daqueles fins de tarde
de Verão em que cheira a maresia e em que a luz desliza pelas coisas tão
devagar que parece que o dia nunca morrerá e todas as pessoas encontrarão
a sua felicidade antes de que a primeira estrela se veja no céu.
No quinto dia, domingo, almocei perto do castelo de São Jorge, rodeado
de turistas corados da subida e do calor. Bebi cerveja, comi croquetes, e,
vá-se lá saber porquê, nunca tirei os óculos escuros nem o boné e falei em
inglês com os empregados. Desci, meio bêbado, para a minha pensão.
Cheguei a pensar em visitar-te, mas não quis que o nosso reencontro
acontecesse comigo suado, com barba de sem-abrigo e com o hálito ébrio.
Segunda-feira, apanhei o barco no Terreiro do Paço e passei o dia na
outra margem a olhar para Lisboa e a pensar que aquele seria o último dia
do meu desterro.
E assim cheguei a terça-feira – hoje. Acordei de forma espontânea e vi
que era cedo, muito cedo. Levantei-me, mesmo assim. Barbeei-me até ter o
rosto liso. Com o aftershave a arder-me na pele, senti-me fresco e pronto.
Saí para a rua. O dia estava apenas a começar.
Encaminhei-me para Alfama, subi as ruas estreitas e íngremes em transe,
tão focado estava no meu destino. Quando cheguei à Feira da Ladra ainda
havia poucas bancas e vendedores, mas já lá estavam os que eu pretendia.
Fui à banca onde se podem comprar fotografias antigas, até álbuns inteiros
de famílias desconhecidas, provavelmente herdados e depois vendidos por
uma quantia irrisória. Nunca percebi quem compra estas fotografias, quem
deseja ter consigo os registos de outras vidas. Num caixote de madeira
estavam centenas de fotografias avulso, a maior parte a preto e branco.
Havia imagens de casais muito direitos com expressões rígidas, havia
fotografias de crianças vestidas com o seu fato de domingo, havia noivas
em pé ao lado de mesas com arranjos de flores, havia retratos de família
com os pais no centro e a sua prole alinhada aos lados, havia fotografias de
rapazes fardados com rostos melancólicos. Pensei quando é que aquelas
fotografias teriam deixado de ser olhadas, quando é que passaram,
provavelmente graças a uma herança, a ser posse de alguém para quem as
pessoas retratadas pouco diziam. Mas pensei também noutra hipótese, que
talvez algumas daquelas fotografias não tivessem sido vendidas, oferecidas
ou descartadas por falta de afecto mas, sim, por excesso de afecto. Pensei
que haveria quem tivesse visto estes retratos tantas vezes que eles se
tinham tornado opressivos, que a sua contemplação causasse os malefícios
da contemplação do sol do meio-dia, cujo excesso de brilho nos cega para
observar o resto das coisas. Sem que ninguém reparasse, peguei na
fotografia que me tem acompanhado, olhei-a uma última vez e pousei-a na
banca, perdida no meio das outras.
Afastei-me sem olhar para trás, primeiro devagar, com medo de que
alguém reparasse em mim e me acusasse de fosse o que fosse, depois um
pouco mais rápido, até sentir que quase corria.
Desci em direcção à Baixa. O rio cintilava próximo de mim e as ruas
começavam a encher-se. Percebi que as cidades também têm marés, mas
marés feitas de pessoas. Que há horas em que os passeios se enchem e
horas em que se esvaziam, que a vida tem um ritmo e que esse ritmo é
imparável. E deixei-me ir.
Senti saudades de Lisboa e alegria por as poder matar. Saudades de
descer a Avenida da Liberdade, de comer pastéis de Belém, de ver o Tejo a
aparecer e desaparecer quando se desce uma colina, saudades de estar
deitado na relva dos jardins, saudades de ouvir os eléctricos deslizando
sobre o Chiado, saudades de aguardar nas passadeiras de peões no Largo
do Rato, de percorrer cansado a Avenida da República, de atravessar o
Bairro Alto, saudades da vista do miradouro da Graça, de Santa Catarina e
de todos os outros, saudades do fresco da Mãe d’Água, saudades dos
bancos do jardim do Príncipe Real, saudades da vida em Lisboa.
Quando cheguei ao Terreiro do Paço vindo de Alfama, decidi apanhar o
metro para sair na estação mais a norte e poder assim passar o meu dia a
descer a cidade, matar as minhas saudades passo a passo, rua a rua.
Já debaixo do chão, fora do alcance do sol, depois de descer as escadas
largas, virei à direita na direcção pretendida. De repente dei comigo
defronte da pequena multidão acabada de sair do metro. Por um momento
fui acometido de um terror enorme, como se a multidão me fosse engolir
ou esmagar. Mas o terror passou. Foi substituído por ternura. Enquanto as
pessoas passavam por mim, cada uma com um destino diferente, eu olhei
para elas e tentei ler nos seus olhos, rostos, gestos, maneiras de andar, que
vida levavam, donde vinham, que sonhos alimentavam, que tristezas
queriam abandonar. Uma alegria enorme abriu-se como um pára-quedas
dentro de mim. Senti que cada pessoa que comigo se cruzava tinha dentro
de si um mundo, um mundo enorme e pleno com tantos momentos de
triunfo e derrota, de anseio e júbilo, de enfado e melancolia que chegariam
para escrever uma nova história das Mil e Uma Noites.
Pus-me a pensar em todas as pessoas que, por essa hora, circulavam pela
cidade, e que apesar de trazerem em si sonhos desfeitos, amores falhados e
mortos de cuja saudade não se conseguem livrar, continuavam a percorrer
as ruas, a atravessar Lisboa, a navegar pela vida. Continuavam a cumprir
as mil tarefas da existência. A lavar-se, a comer, a fazer a cama, a pagar
impostos, a obedecer a patrões, a serenar familiares, a consolar amigos, a
questionar Deus, a cumprir leis, a pagar multas, a aguardar a mudança de
cor do semáforo, a roer as unhas em engarrafamentos, a esperar ao calor na
paragem de autocarro, a ser mal entendidos pelos que amam, a lavar loiça,
a despejar o lixo, a sorrir por gentileza de piadas sem graça, a testemunhar
no espelho a passagem do tempo, a acordar mesmo quando queriam
continuar a dormir. E dentro desta existência que lhes pede tanto, que nos
pede tanto, apesar de todos os botões que é preciso todos os dias apertar,
continuará a haver mais beleza e gozo ao nosso dispor do que caberiam a
um semideus.
Se cada um de nós traz dentro de si um cosmos, estamos destinados,
mais tarde ou mais cedo, numa conversa que até pode ter-se iniciado para
comentar o calor que faz, a vislumbrar a vida interior do outro e, assim, ter
acesso a outra narrativa, a outros sonhos, a outra forma de ver e de viver.
Cada pessoa com quem me cruzo na rua é um possível multiplicador de
mim próprio. E eu sou um possível multiplicador de qualquer pessoa.
Esta é a última carta que te escrevo. A partir daqui, as minhas palavras
para ti não serão escritas, mas faladas. Perdoa-me a grandiloquência, o
exagero e a pieguice. São apenas a minha forma de expressar alívio por ver
que não perdi nem a esperança, nem a capacidade de me sentir alegre,
mesmo que seja uma alegria menos feroz e para sempre incompleta. Faço-
o à minha maneira, porque sempre preferi um louco poético a um poeta
sem loucura.
Desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu não se passou um só
momento em que eu pensasse que não podia contar contigo, em que
suspeitasse de que já não terias mais paciência para os meus lamentos de
lavadeira, a minha irresponsabilidade infantil, o meu dramatismo de novela
da tarde. Se a amizade fosse uma competição olímpica, o júri abriria uma
excepção e dar-te-ia não só a medalha de ouro, mas também a de prata e a
de bronze.
Agora resta-me viver a vida fora do papel, feliz por saber que, perto de
mim, pode estar um pianista sonâmbulo, uma criança perguntando a um
adulto onde fica a cama de Deus, um guarda-livros apaixonado por uma
cantora lírica, um jovem a quem os médicos têm de retirar uma colher de
pus do seu lindo corpo, um adolescente que se apaixonou pela primeira vez
no dia anterior, um amigo que me abrirá sempre a porta.
Como te disse, o suicídio nunca será uma opção para mim. Agora, depois
deste dia divino, consigo até precisar as muitas razões para continuar vivo.
Dizem que há sete biliões de pessoas no mundo. São sete biliões de
motivos para não me matar.