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"Quando o mundo estiver unido na busca do

conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e


poder, então nossa sociedade poderá enfim

evoluir a um novo nível."


Ficha Técnica
Título original: À Espera de Moby Dick
Autoria: Nuno Amado
Editor: Francisco Camacho
Capa: Maria Manuel Lacerda
Revisão: Sofia Gonçalves
ISBN: 9789895560134
OFICINA DO LIVRO
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2012, Nuno Amado
e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: info@oficinadolivro.leya.com
www.oficinadolivro.leya.com
www.leya.pt

Por vontade expressa do autor, o livro respeita a ortografia anterior ao actual acordo ortográfico.
.

Para a Raquel, que me deu as chaves de Versalhes


.

«Assim, contentes e erectos, avancemos com passo firme aonde


quer que as circunstâncias nos levarem e percorramos todas as terras:
não pode haver lugar de desterro no mundo, uma vez que nada no
mundo é estranho ao homem.»
SÉNECA
CONSOLAÇÃO A MINHA MÃE HÉLVIA
PARTE I
I

Querido melhor amigo,

Não me vou matar. Sei que há quem tema que, depois do que aconteceu,
seja esse o meu desejo. Não é. Por mais estranho que pareça, é verdade o
que disse: vim para os Açores para ver uma baleia. O isolamento, o clima
melancólico, a distância de todos os que me são queridos, o tempo
semelhante ao londrino e a ausência de Internet são apenas vantagens
adicionais.
Estou instalado num hotel moderno na marginal, de quartos espaçosos e
minimalistas com pequenos quadros de flores acima da cama. A minha
varanda tem vista, mas o nevoeiro constante torna-a um pouco supérflua.
Não pretendo ficar aqui muito mais tempo, preciso de solidão e silêncio. À
noite, se o tempo o permite, as pessoas entretêm-se andando de um lado
para o outro lá em baixo na marginal, quer nativos quer turistas; distinção,
aliás, fácil de fazer, pelas cores garridas e roupas sintéticas dos segundos.
Ao pequeno-almoço há sempre pelo menos uma alemã gorda a hesitar
em frente aos bolos. Não é raro ver grupos de espanhóis a rir sem melodia
nem americanos olhando desconfiados para tudo o que comem ou
japoneses demasiado tímidos para observar o mundo sem ser através das
máquinas de filmar. E todos velhos. Quase não há turistas jovens nos
Açores. Não há festas, nem barulho, nem deboches. Ocasionalmente vê-se
a filha (neta?) de um deles, a sua juventude em contraste fulgurante com o
fundo gerontológico, sorrindo tímida como se estivesse a visitar uma tia
querida num lar.
Hoje vou ver casas. Pedi ao homem da agência locais isolados e com
vista para o mar. Dizem-me que é difícil ver baleias a olho nu da ilha,
muito menos agora que não é a sua época. O hall do hotel está cheio de
anúncios de expedições marítimas para ver os cetáceos, mas também há
cartazes com as fábricas de chá, as furnas e as lagoas. Para já não vou fazer
nada disso. Contudo, não deixa de ser ligeiramente reconfortante saber que
terei sempre qualquer coisa para me ocupar, mesmo que seja entre
reformados americanos e alemães vestidos com blusões horrendos.
Sobre o que se passa comigo não te posso dizer muito. Ainda não sou
capaz. Se me permites a primeira de muitas metáforas ineptas, digo-te que
tenho de endireitar as peças de dominó. E explico. Lembras-te das
pequenas reportagens cómicas na parte final do telejornal, quando te
querem fazer esquecer as imagens das guerras e as notícias da crise com
que te aterrorizaram na hora anterior, e se vê um homem a comer setenta
cachorros quentes seguidos, ou o maior bolo-rei do mundo feito numa
aldeia no Minho que pretende assim entrar para o Livro dos Recordes do
Guiness? Por vezes estas reportagens são sobre dominós. Milhares,
centenas de milhar, talvez mesmo milhões de peças de dominó, colocadas
de forma a produzirem efeitos espantosos quando derrubadas, a libertar
balões, desenhar cenas de filmes, empurrar comboios. Suponho que, no dia
seguinte, depois do espectáculo, alguém tenha de as arrumar. Julgo que não
seja fácil, porque têm diferentes cores, materiais, tamanhos. Imagino
enormes armazéns cheios de dominós derrubados. Eu sinto-me como se
fosse o homem que os tem de apanhar a todos. A única diferença é que o
que se passou não foi celebração nenhuma.
Em anexo segue uma lista de livros que te peço para me enviares. Alguns
serão difíceis de localizar, por isso vai-os enviando à medida que os
conseguires adquirir. Peço-te também, e sabes que o meu coração ribomba
de agradecimento pela tua generosidade, que avises o senhor Rodrigues
para não me guardar mais jornais e revistas. Não te será difícil reconhecê-
lo. É o homem de meia-idade, bigode farto e cabelo ralo que habita o
quiosque em frente da minha casa. Se por acaso ocorrer que estejam uma
série de homens de meia-idade de bigode farto e cabelo ralo em redor
desse quiosque particular, fica sabendo que este tem um ar de talhante
delicado, pulsos e mãos grossos mas gestos subtis e precisos. Se isto não
chegar, mete conversa e verifica se o teu interlocutor é detentor de um
senso comum encorpado, se morde o lábio inferior enquanto pondera, se
interrompe a conversa para, como uma decoradora de montras, alinhar os
jornais e revistas. Se assim for, é do senhor Rodrigues que se trata. Dá-lhe
o recado. Agradecido por tal fico eu.
Não querendo questionar a tua lealdade, mais seguro estou dela do que
da existência do Sol, tenho, contudo, que te fazer uma advertência. A tua
simpatia e, mais ainda, a tua vontade para aceitares ser o bombeiro de
qualquer incêndio que te surja pela frente, pode tentar-te a oferecer o meu
paradeiro aos vários suplicantes que já imagino chantageando-te. Não
cedas a lágrimas, dedos em riste, ameaças, gemidos. Diz apenas que estou
vivo e que a minha probabilidade de assim continuar é a mesma da maior
parte das pessoas.
Qualquer assunto que aches urgente, informa-me tu dele. És o meu
mensageiro, confessor, moço de recados, protector, psicoterapeuta,
passpartout. A minha alma canta a tua amizade, uma das poucas luzes
eternas desta floresta tenebrosa que atravesso.
Aqui o verde e o cinzento dominam. As ondas murmuram continuamente
e o horizonte, quando o nevoeiro descansa, é um mundo interminável de
água e luz. Queria falar-te de tudo isto mas não sou ainda capaz. O meu
sono é curto, os pesadelos muitos e tão largos que me visitam acordado.
Mas, como te disse, não me vou matar.

Abraço-te
II

Querido amigo,

O Sol é um milagre. É preciso viver debaixo de uma teia de mil tons de


cinzento para poder apreciar o que a luz acende nas coisas. Hoje faz sol.
Parece que espalharam diamantes por todo o lado e que eles agora luzem.
Até o asfalto brilha. As pessoas mudam quase tanto como o clima. Os
turistas alegram-se e sorriem por detrás das rugas, nos cafés os açorianos
mexem-se mais do que o costume e pequenas rajadas do seu sotaque
vibram no ar da manhã. Quase me sinto culpado por estar alegre, mesmo
que saiba que é uma alegria morna e breve.
Além do aparecimento do Sol, o meu curto sorriso também se deve, e
muito, a ter encontrado o meu futuro lar. A alguns quilómetros do centro,
na parte oriental da ilha, há uma enseada com meia dúzia de casas. A
estrada para lá chegar é íngreme e primitiva, um trilho de terra batida
pejado de ervas daninhas. Por todo o lado há vacas, enormes, maciças e
estúpidas, com aquele ar de que não só comem erva mas também pensam
como erva. Porém, que animal espantoso! Por mais que coce a cabeça não
percebo que raio de pressão evolutiva as levou a desenvolver a sua
camuflagem preta e branca. Em que ecossistema se confundiria uma vaca
com o seu habitat? Num tabuleiro de xadrez? Num mundo a preto e
branco? Serão os seus predadores todos daltónicos? Divago, como sempre.
Ora, essa estrada íngreme vai serpenteando, descendo a encosta e, após
passar três enormes casas que descreverei noutro dia, chega a uma
bifurcação. Se virares para a direita, numa curva apertada a estrada torna-se
plana e, após trezentos metros, termina junto a uma casa de pedra com
paredes grossas e ar rústico. O telhado é azul-escuro, o único que aqui vi
dessa cor. Tem uma sala grande, um quarto, um escritório, cozinha e casa
de banho. A mobília, feita de madeira do Brasil, tem um ar pesado. Quase
não está decorada, salvo um quadro enorme, a óleo, de um barco no meio
de uma tempestade, e meia dúzia de pechisbeques. A sala é fantástica. Tem
uma longa mesa ao centro, daquelas em que se sentares duas pessoas à
cabeceira terão dificuldade em conversar. Existe também uma imponente
lareira com um relógio de cuco avariado pousado no parapeito. A sala abre
para um pequeno terreno em frente ao mar. Apenas a dez ou quinze metros
de distância está a falésia. Assustador e encantador. Se abrires as portas da
sala, além de um frio sedento de ossos, o cheiro e o som do Atlântico
invadem a casa com a sofreguidão de um cão acabado de libertar. No
escritório existe uma estante com livros e uma poltrona de veludo verde
gasto. É inegável que nela se passaram muitas horas de leitura.
Se na bifurcação não virares à direita, em direcção à casa, podes seguir
em frente descendo até à enseada, onde existe uma construção grande em
madeira sobre o areal. A praia é pequena. Quando lá fui havia dois barcos,
embora me pareça um sítio pouco apropriado para atracar, já que a entrada
na enseada é estreita e em dias de temporal não é difícil imaginar um barco
a desfazer-se contra as rochas. Neste edifício existe um restaurante que
serve também, para a dúzia de habitantes que aqui vive, de padaria,
mercearia e central telefónica, já que esta é uma zona, talvez pelas suas
particularidades geográficas, demasiado inóspita para as redes de
telemóvel. Não me lembro da última vez em que estive numa casa sem
telefone, mas é uma sensação agradável.
O dono da casa que vou habitar é um marinheiro que emigrou para os
Estados Unidos. A renda é irrisória comparada com Lisboa. Mudo-me este
fim-de-semana. Tenho uma lista de produtos essenciais para comprar, na
qual, pela primeira vez na minha vida, se inclui lenha. Vou alugar um jipe
para poder ir à cidade sempre que precisar. Sei que não sou o melhor
condutor do mundo mas, desde que evite as vacas e o ocasional açoriano
suicidário, nada se passará.
O homem da agência falou-me um pouco dos habitantes das outras casas.
Ainda não os conheci mas parecem um grupo, no mínimo, peculiar.
Explicou-me também que o restaurante se mantém aberto porque todos os
sábados muitas famílias passam o dia nesta praia, o que achei bizarro. Seja
como for, a presença de pessoas apenas um dia por semana, e mesmo assim
a alguma distância, será suportável. Tudo começa a parecer preferível aos
pequenos-almoços rodeado do grupo de pessoas que, em todo o mundo,
mais tempo leva a servir-se, porque é incapaz de escolher entre croissants e
torradas, chá e café, butter e marmelade.
Entretanto, se já respondeste à minha primeira carta e me enviaste os
livros, não te preocupes porque, para já, utilizarei o hotel como posto de
correio (o carteiro não passa por aqui).
Anseio por novidades tuas. Espero-te bem.

Apreciando o sol
III

Querido amigo,

É a minha primeira manhã de domingo na casa nova. Está escuro e


chuvisca lá fora. Ouve-se o mar. Ouve-se sempre o mar, como se estivesse
a viver dentro de um búzio. Dizem que uma pessoa se habitua e que, se um
dia o mar se calasse, eu ia sentir a falta dele, pois o silêncio que se seguiria
soaria a gemido. Espero que sim. Dormi ainda pior do que o costume. Os
pesadelos continuam e a casa está fria e húmida. Cometi um erro citadino,
não pedi conselho a quem sabe e a quantidade de lenha que comprei foi
irrisória. Já está quase a acabar. Eu devia ter percebido isso quando o
homem que ma vendeu perguntou onde é que a devia entregar, respondi
que a levava eu mesmo, e ele desatou a rir. Passarei lá hoje à tarde e
encomendarei lenha suficiente até para construir um galeão.
O jipe é mais fácil de guiar do que pensava, mas terei de ter cuidado com
as curvas, especialmente quando chove. Ontem à tarde, à chegada, cruzei-
me com outro carro. São os primeiros vizinhos que conheço, um casal de
reformados. Abri a janela e falámos um pouco. Deram-me as boas-vindas,
ofereceram ajuda e convidaram-me para passar por sua casa para um café.
Ele é médico e ela foi professora. Como já estava escuro não os observei
bem. Aos meus ouvidos pareceram-me lisboetas. Pergunto-me o que farão
por aqui.
Como seria de esperar, a casa funciona a gerador e bilhas de gás. Não
tem televisão. O único aparelho que anuncia uma vida exterior é um rádio
gigante com enormes manípulos no qual é mais fácil apanhar estações de
banda larga americanas do que portuguesas.
Estou a pensar em comprar uma aparelhagem ou qualquer coisa onde se
possa ouvir música. A opção mais fácil seria pedir-te para me enviares o
meu MP3, mas a minha vida nova deve ser feita de coisas também novas e
nada está mais associado ao passado do que a música.
Na encosta acima da minha casa há uma série de árvores. Não sei de que
espécies são ou se dão fruto. Sou um ignorante do mundo natural,
habituado a distinguir entre ruas e avenidas, rotundas e pracetas, mas
incapaz de diferenciar carvalhos de pinheiros. Bem… talvez estes consiga
diferenciar, mas pouco mais. Espero emendar esta falha. É por isso que te
peço para me enviares livros sobre árvores. Com fotografias, claro. Deixo
ao teu critério. Eu próprio pretendo procurar hoje, pela cidade, livros sobre
a fauna e flora dos Açores. Não viverei mais na ignorância!
Além disso, cada minuto que passa sem uma ocupação é mais um buraco
melancólico na proa do meu barco. Perdoa-me as metáforas náuticas, mas
temo que isto seja só o princípio. A propósito, observei que um dos barcos
que costumam estar na praia saiu ao mar. Pergunto-me o que terá alguém
para fazer com este tempo.
Espero encontrar uma carta tua no hotel.

Abraço
IV

Ex.mo Senhor editor do suplemento de livros do jornal A Semana,

Quando outro dia lia o suplemento pelo qual V.Ex.a é responsável, mais
particularmente uma crítica a uma edição recente de uma nova tradução da
Anna Karenina, o livro mais comentado do conde Tólstoi, deparei-me com
uma frase terrível. E assim era não por motivos semânticos, gramaticais,
intelectuais ou estéticos, pois, se estes fossem os critérios, haveria muito a
dizer de quase todo o vosso suplemento, mas porque falava do desenlace
da história. Assume o vosso crítico, um tal Ermenegildo Esteves, que todos
os leitores do suplemento literário do A Semana conhecem o desenlace?
Ou, pior ainda, ele não se importa de o revelar, diminuindo o prazer aos
futuros leitores do Anna Karenina de o descobrirem sozinhos? Não é a
primeira vez que tal sucede neste suplemento. Será que os seus críticos se
esquecem de que, apesar de eles estarem sempre a reler e nunca a ler, é
também necessário ler um livro pela primeira vez? E que essa leitura deve
ser, idealmente, realizada de modo virginal, livre de contextualizações,
comentários biográficos e interpretações psicanalíticas, sócio-históricas ou
disparates afins. Para sua sorte, e mais ainda do senhor Esteves, eu já
conhecia o desenlace, tendo tido a boa fortuna de ler o Anna Karenina em
relativa virgindade, sabendo apenas que falava de adultério e tinha causado
escândalo na época; duas características que não estragam o prazer da
história, pois são típicas de quase todos os livros do século xix. Contudo,
se eu não conhecesse o desenlace, e ao ler a crítica esse me fosse
brutalmente transmitido, isso seria motivo suficiente para um duelo.
Peço-lhe pois, encarecidamente, que tal não volte a suceder. Vou
continuar a ler o seu suplemento, pois tenho algum prazer na discussão e
apresentação de livros, mesmo na prosa suburbana dos seus críticos. São
livres de escrever mal. Não são livres de perturbar o prazer da literatura a
quem cometeu o pecado de ainda não ter lido as obras que eles leram.
Com isto não quero dizer que deixem de fazer considerações sobre a
evolução das histórias dos livros que criticam. Mas que avisem. Que façam
o que os americanos chamam de spoiler alert. Comecem esse parágrafo
com «Quem ainda não conhece a história deve saltar este parágrafo» ou
outra formulação deste género, que, apesar de deselegante, é muito valiosa.
Caso ignore o meu pedido, levando a que os meus olhos inocentes sejam
violados pela exposição impudica do desfecho de uma história, terei de
fazer justiça. No mínimo V.Ex.a e o crítico responsável serão alvo de
bengaladas. Mas também pode ocorrer que vos parta as pernas.

Com os melhores cumprimentos,


Um leitor atento
V

Querido amigo,

Que todos os deuses te abençoem! Que Jesus te lave os pés, Allah te


agracie, Buda medite por ti e Shiva te abrace com todos os seus braços.
Que todas as outras divindades e santos te tenham em consideração e
velem por ti. Nada menos mereces. Os livros chegaram sãos e salvos. Já os
arrumei junto dos outros que aqui estavam. Ainda não decidi qual irei ler
primeiro. Vou saltitando de um para o outro, cheirando, folheando, lendo
passagens aleatórias, segurando as folhas entre os dedos, sentindo a textura
do papel. Gracias.
Antes de te contar as coisas deveras interessantes que se têm passado no
meu exílio, vou responder já às várias questões práticas que me colocas
para que, depois, seja dono de toda a tua atenção.
Ao contrário do que havia determinado, decidi manter a coluna semanal
no jornal. Com algumas alterações. A dimensão da coluna será a mesma.
Tudo o resto será diferente. Primeiro, será assinada por outro nome: escolhi
o pseudónimo Tristão Lobo. Segundo, terá o título «Motivos para não nos
matarmos». Terceiro, terá como tema tudo o que eu considere motivo
suficiente para adiar o suicídio pelo menos um dia. Tratar-se-á de relatar
acontecimentos, factos, histórias, versos, receitas culinárias ou seja o que
for que, para mim, justifique mais um dia de sobrevivência. Quarto, as
cartas dos leitores deverão apenas versar sobre os seus próprios «motivos
para não nos matarmos». E penso que é tudo. Fala com o Carlos
Domingues, o editor. Se ele recusar, tudo bem. Se aceitar, diz-lhe que
receberá por carta a minha coluna e que te deve dar o correio dos leitores.
Teria todo o gosto se o teu filho fizesse do meu carro o seu meio de
transporte. Percebo as tuas preocupações paternais com a segurança de
uma Vespa antiga nas avenidas de Lisboa. Sei também que gostarias de ver
o teu filho poupar dinheiro para comprar um carro, porque achas que
desenvolveria a sua perseverança, determinação, bom senso e faria dele um
adulto. Não comento o que acho dessas qualidades, mas lembro-te de que
ele pode poupar à mesma. Para uma câmara de filmar, guitarras eléctricas,
blusões de cabedal, o que quiser. Se for para uma longa viagem, mais feliz
ainda eu ficarei. Deixa-o guiar o meu carro e não lhe estarás a fazer um
favor só a ele, mas também a mim, pois sentiria irrisoriamente atenuada a
enorme dívida que tenho para contigo e que aumenta de dia para dia.
Sobre o meu estado, e o teu desejo de que procure acompanhamento
profissional, devo dizer-te mais uma vez que não me vou matar. Repara por
favor no título que proponho para a minha coluna. Além disso, duvido de
que haja muita gente a quem possa recorrer aqui na ilha. Se os
profissionais de saúde mental fossem competentes, esta gente não pareceria
tão deliciosamente enlouquecida.
Já passou uma semana desde que me instalei na casa nova. O frio
diminuiu um pouco, agora que aprendi a utilizar a lareira e me habituei ao
cheiro a fumo. A humidade é mais difícil de fazer desaparecer, até os ossos
sinto meio ensopados.
Aos poucos vou construindo um lar. Cozinho peixe mais vezes do que
alguma vez o fiz em Lisboa e bebo chá em vez de café. Montei um
candeeiro no escritório, sobre a poltrona verde, para que possa ler em
condições. Em cima da longa mesa no centro da sala tenho resmas de
papel, envelopes, selos e uma lista de destinatários a quem tenciono
escrever cartas. Descobri uma ampulheta num pequeno armário com a qual
estou fascinado, embora não lhe tenha ainda descortinado outro uso senão
como pisa-papéis. Hoje irei cortar o cabelo e tirar esta barba messiânica; já
está na altura de deixar de parecer saído da Bíblia. Neste espírito de
renovação e vitalidade que persigo, comprei uns ténis e planeio amanhã,
pela primeira vez na minha vida, fazer jogging.
Não te quero esconder os cantos escuros do que vivo nem fingir que
estou convertido num homem novo, prático, alegre, vivo, uma espécie de
pioneiro americano que se vê à frente na corrida ao ouro. Ainda choro.
Muito, demasiado. Com violência, mãos crispadas, raiva, desespero, o
espectáculo todo, os porquês gemidos, os murros na parede ou no peito.
Mas tento evitar estas pequenas explosões, estes testes nucleares. Assim
que me perco na autocomiseração, procuro, mergulhado no turbilhão negro
da angústia, um pouco de sangue-frio, um qualquer sentido de proporção
que me leve à pilha de lenha debaixo do telheiro. E, com a ajuda do
machado, parto lenha. Aos poucos a tempestade amaina e a preocupação
em dividir em duas metades quase perfeitas o bloco de madeira acalma-me
mais do que qualquer Xanax.
Existe um senão: os meus dedos estão cheios de bolhas. Tenho mãos de
trabalhador. Abro-as, a palma virada para cima, e vejo calos, gretas, cortes.
Espero que as bolhas escamem e uma nova pele cresça.
Tenho ido à praia. Na primeira vez tomei café no restaurante e falei um
pouco com o casal que lá vive. O homem é um tal senhor Joaquim, alto, de
rosto redondo, bochechas rosadas, com uma meticulosa risca ao lado no
cabelo acinzentado e patilhas à almirante Nelson. Ele cozinha e a mulher e
a sogra servem à mesa. A comida é pouco variada mas boa. Quando lhes
disse o que pretendia da minha vida nos Açores, explicaram-me que talvez
daqui a três meses seja possível avistar baleias de minha casa, desde que
possua um telescópio. Falaram-me também dos meus outros vizinhos. O
casal com que me cruzei, o médico e a professora, vive aqui há uns anos. A
primeira casa da estrada é de um alemão, geógrafo ou geólogo, eles não
conseguiram precisar, que é também o dono de um dos barcos. Quase todos
os dias sai ao mar sem que ninguém saiba exactamente para quê. A outra
casa é o refúgio de Verão de um milionário açoriano.
Quando lhes perguntei a que se devia o movimento do fim-de-semana
disseram-me que esta enseada tem uma localização muito especial que faz
com que, devido a uma confluência de correntes e de outros pormenores
marítimos que me escapam, seja particularmente rica em peixe. De facto,
ontem, domingo, observei as pessoas na praia e vi muitas canas de pesca.
Hoje é segunda-feira e chove, pelo que a praia está deserta.
À tarde vou à cidade comprar comida e procurar uma aparelhagem.
Estou farto de ouvir rádio e necessitado de música aceitável como de pão
para a boca.

Abraço-te

P.S. 1: Deixo-te em anexo o contacto do restaurante da praia, caso haja


uma emergência e precises de falar comigo ao telefone.
P.S. 2: Também em anexo, segue um exemplo de crónica para enviares
ao Carlos Domingues.
Motivos para não nos matarmos
A possibilidade científica e espiritual de milagres

Nenhum cientista sério poderá afirmar que é de todo impossível que o


sol não nasça amanhã. Porque, ao contrário do que se ensina nas escolas,
não existem certezas, apenas probabilidades muito elevadas. Tão elevadas
que podem, para efeitos práticos, ser consideradas certezas. Mas não são.
Existe talvez uma probabilidade num trumpilião (um bilião de milhões de
trilhões) de que daqui a uma hora todas as rádios transmitam o hino
nacional do País de Gales. E, se calhar, há a probabilidade de três num
trumpilião de que todas as laranjas no mundo caiam simultaneamente das
árvores. E a probabilidade de um em dois trumpiliões de que todas as
pessoas com a letra inicial do seu nome alfabeticamente acima do M
espirrem sequencialmente. Existem hipóteses infinitas de coisas altamente
improváveis acontecerem. Logo é lógico que algo bastante improvável
aconteça. Se nos matarmos, recusamos essas possibilidades. Recusamos a
hipótese de que o acontecimento altamente incerto que irá, por certo,
ocorrer seja o que nos faria querer continuar a viver.
A vida é incerta. É uma das suas constantes. O mundo, o clima, o preço
do petróleo são imprevisíveis. Bem como as pessoas, os seus desejos,
comportamentos, reacções. Mesmo eu próprio não posso garantir com
certeza absoluta o que farei perante a situação A ou B. Existem padrões,
tendências, probabilidades muito elevadas. Mas não existem certezas.
E não havendo certezas, tudo, literalmente, é possível. Se tudo é
possível, por que razão havíamos de nos matar?

Tristão Lobo
VI

Querido amigo,

Está feito. Cumpri os clichés todos de renovação. Daria um belo filme de


sábado à tarde. Cortei o cabelo com máquina 4 e eliminei qualquer
resquício de barba. Primeiro aparei-a com uma tesoura e depois gastei duas
lâminas para a rapar por completo. Há anos que não tinha a pele tão macia.
Comprei umas camisolas de lã, enormes, quentes e inestéticas que uso
continuamente. Olho-me ao espelho e quase não me reconheço. Pareço um
cruzamento entre um monge medieval e um sobrevivente do Holocausto, e
sinto que sou um pouco de ambos, passe o exagero.
Ateei a lareira de forma gloriosa e queimei uma série de cartas velhas e
documentos desnecessários, enquanto escutava uma gravação para 45
polegadas de canto gregoriano por um coro de monges da Ucrânia. Sim, já
tenho música. Comprei um gira-discos em segunda mão numa pequena
feira de bugigangas. A qualidade é surpreendentemente boa. As colunas
são grandes e revestidas a madeira cor de mel. O ruído da estática quando a
agulha arranha o disco trouxe-me recordações amenas da infância. O canto
gregoriano é apenas um dos discos estranhos que comprei nas três lojas
que visitei. Vida nova, música nova. Um dos discos tem o fabuloso nome
de «Clive Stewart sings sailor songs». Na capa o Clive Stewart, que tem as
feições de um Abraham Lincoln depois de duas horas dentro da máquina
de lavar, sorri-me com uns dentes enormes e amarelados. Ainda não o ouvi
porque estou a guardá-lo para dias de melhor tempo em que me seja
possível avistar o mar alto e pensar nos meus amados cetáceos. As canções
têm nomes como One Leg Molly, On the High Sea e Out of the Storm.
Estou ansioso por ouvi-las e poder retribuir o sorriso enorme e amarelo do
velho Clive.
De regresso ao meu processo de fénix e à actividade sobre a qual deves
estar mais curioso: jogging. Yes, sir, indeed. Sabias que o inventor da
modalidade morreu ao praticá-la, algumas décadas depois da sua primeira
corrida? De ataque cardíaco. Se isto não é a definição de ironia... A mim,
por enquanto, o jogging não matou.
Corro de manhã, bem cedo. Não me é difícil acordar, já que o meu sono
nunca é fluido e generoso. Visto um fato de treino, meias grossas, os ténis
novos e, de gorro enfiado até abaixo das orelhas, vou correr. Cada dia faço
um percurso diferente. Começo por subir a encosta até à estrada de asfalto.
Depois da subida chego a um pequeno planalto. Corro pelo mesmo prado
onde as vacas pastam. Ainda não me sinto à vontade a correr perto delas.
Tenho medo de que surja um touro ou que alguma delas se lance a correr
na minha direcção. Sei que é ridículo, mas lembro-te de que dificilmente
encontrarás alguém mais citadino do que eu. Enquanto corro, cada
baforada torna-se uma nuvem de vapor. Não é preciso muito para que sinta
o corpo a ferver. Na primeira vez não levei luvas e as minhas mãos
sofreram. Correr por aqui é uma sensação estranha. Um misto de dor e
prazer. Tenho corrido entre meia e uma hora. Termino sempre descendo até
à praia e andando um pouco por lá. Na segunda vez que o fiz, o senhor
Joaquim convidou-me para tomar café. Declinei o convite prometendo que
o faria noutra ocasião. Talvez amanhã me convide de novo.
Quando subo de regresso a casa, sinto a camisola colada às costas, o
cabelo húmido como se tivesse acabado de tomar duche, os músculos
quentes e a mente totalmente desperta. O duche sabe-me bem. A água
demora a aquecer, mas depois cai quase a ferver, produzindo tanto vapor
que, em minutos, a casa de banho parece Londres no princípio do século
xix. Sento-me na banheira velha, debaixo do jacto quente, agarro os
joelhos com os braços e deixo-me ficar assim. Só saio quando a pele já está
toda vermelha e o vapor se condensa no tecto de tal forma que de lá caem
gotas. Visto as minhas roupas monásticas e barbeio-me com uma precisão
a que nunca antes aspirei.
O meu pequeno-almoço é digno dos melhores hotéis. Como já te referi
noutra carta, rendi-me ao chá. Recorro a variedades da ilha. Coloco meia
dúzia de folhas numa daquelas fascinantes bolas de arame, que atiro para o
bule. Depois junto água quase a ferver. Enquanto o chá vai saindo das
folhas para a água (por certo existem termos bem mais precisos e estéticos
para tal, mas desconheço-os), frito ovos e faço torradas. Como tudo
sentado na enorme mesa da sala, enquanto leio cartas antigas ou escrevinho
ideias e rascunhos. Além de manteiga e compota, ponho também mel nas
torradas. É bom voltar a comer com apetite.
Os dias têm sido demasiado diferentes uns dos outros para que te possa
descrever o que se passa a seguir ao pequeno-almoço. Posso ir à cidade,
escrever, dar um passeio, cortar lenha, ou, simplesmente, ir virando a
ampulheta vezes sem conta numa melancolia pesada.
Espero que estas descrições de actos tão simples não te enfadem. Apesar
de ter sido Moby Dick que me trouxe aqui, vejo a minha vida como sendo
mais semelhante à do Robinson Crusoe. Um náufrago dando o melhor uso
a todos os pequenos objectos que consegue obter, construindo uma vida
nova numa ilha deserta. Apesar de não ansiar por sextas-feiras, existe uma
certa alegria em construir uma rotina, em dominar o ambiente inóspito
(claro que o meu jipe e a conta bancária ajudam). A analogia é má, mas, se
me considerares um náufrago emocional (ou existencial ou qualquer outro
al que querias usar), verás bastantes paralelos.
E será assim, meu amigo, que hei-de regressar à civilização. Gesto
insignificante após gesto insignificante, chá preparado após chá preparado,
ovo frito após ovo frito, jogging matinal após jogging matinal. Dando a
cada coisa o seu real valor e a sua justa dimensão. Aprendendo a
sobreviver.
Mas ainda falta tanto. Tanto.

P.S.: Obrigado por teres enviado a coluna protótipo para o Carlos


Domingues. Eu já esperava que ele recusasse, e adivinho que tu também
achaste não ser esta uma das minhas ideias mais brilhantes, para não dizer
muito. Menos uma obrigação para mim, mais um grau de liberdade.
VII

Querido amigo,

Ontem conheci o alemão. Após a minha corrida matinal, quando andava


de um lado para o outro na praia a esticar os músculos e a tentar baixar o
meu pulso para valores abaixo da vizinhança de um ataque cardíaco, o
senhor Joaquim convidou-me para tomar café. Preparou-o à turco, numa
cafeteira enorme. Era forte e espesso e tive de o beber com muito açúcar,
sentado num das cadeiras de plástico no alpendre do restaurante. Foi então
que apareceu o alemão, vestido de mergulhador e arrastando garrafas de
oxigénio. Sentou-se connosco a beber café. É ainda mais alto do que o
senhor Joaquim. Deve ter entre quarenta e cinco e cinquenta anos. O
cabelo é ralo e ruivo, mas a barba é vasta e muito encaracolada, o que,
adicionando-se os olhos verdes e as sardas, lhe dá um ar mais escocês do
que alemão. Um alemão a falar português com sotaque dos Açores é algo
que tens que ouvir pelo menos uma vez na vida. Chama-se Hector e é
biólogo marinho (portanto nem geólogo nem geógrafo). Diz que está a
fazer pesquisa para uma tese de doutoramento. O senhor Joaquim
censurou-o por, mais uma vez, ir mergulhar sozinho, o que nunca se deve
fazer. Ele riu-se e disse que sabia que o Joarrim (como lhe chama) o iria
salvar se lhe acontecesse alguma coisa, pelo que fiquei a saber a quem
pertence o segundo barco.
Quando lhe expliquei o meu interesse por baleias, falou-me de um museu
em Ponta Delgada e convidou-me a passar por casa dele para me emprestar
uns livros. O convite pareceu-me genuíno. Ficou pouco tempo, por causa
das marés. Ainda o barco dele estava a sair da enseada, já o senhor
Joaquim fazia comentários sobre o teutónico.
Ninguém sabe se é verdade o que ele diz sobre o doutoramento. É
também muito estranho e incrivelmente perigoso que alguém vá mergulhar
sozinho. Apesar do mistério que o envolve, as pessoas gostam dele. É um
excelente cliente; janta todos os dias no restaurante e elogia sempre a
comida. Tem uma peculiaridade engraçada. Acrescenta invariavelmente
sal. O senhor Joaquim, ofendido na sua capacidade de cozinheiro,
experimentou salgar-lhe a comida até a tornar incomestível. O gigante
alemão, após a primeira garfada de um bacalhau à Braz, pegou no saleiro e
pôs ainda mais sal.
Além do seu apetite por cloreto de sódio, aprecia bastante as senhoritas
da casa de passe mais próxima. O senhor Joaquim contou, fingindo-se
embaraçado, que lhe haviam dito que, nas idas semanais do alemão ao tal
bordel, não é incomum o senhor Hector subir aos quartos acompanhado de
duas senhoritas.
Tudo isto me deixou curioso. Tenciono visitar a figura em breve.
Entretanto, enquanto não tenho acesso aos livros do Herr Dr., envio-te mais
uma pequena lista de livros.
Sei que foi uma carta curta, mas não podia deixar de te informar sobre o
biólogo marinho que mergulha sozinho e aprecia sal e prostitutas.
Mais nos próximos capítulos.

Abraço
VIII

Querido amigo,

Estava a escrevinhar já não me recordo bem o quê quando ouvi um som


novo. Era a campainha, a primeira vez que a ouvia desde que me mudei. À
porta estava a mulher do médico com um tupperware nas mãos. Convidei-a
a entrar e ofereci-lhe chá. Notei que ela, embora de forma discreta,
observava a casa com uma minúcia que parece um exclusivo das mulheres
e dos detectives de ficção. Tinha-me vindo oferecer bolo de cenoura e
aproveitar para conhecer o novo vizinho.
Penso que ainda não ta descrevi. É uma mulher de cinquenta e poucos
anos, nem magra nem gorda. Tem um rosto cansado e vincado, mas no
qual é visível uma beleza anterior. Os olhos são amendoados, de cor verde-
acinzentada, com pestanas muito curtas. As sobrancelhas são pintadas, mas
não de forma ostensiva. O cabelo é meio loiro, meio branco, cortado um
pouco acima dos ombros. A boca é muito fina e expressiva, ladeada por
duas ou três rugas em forma de parêntesis.
Apesar de só termos falado pouco mais de uma hora, notei algo de
profundamente desconcertante nela. Não sei explicar ao certo o quê. O
princípio da conversa foi sobre a vida nos Açores e na enseada. Narrei-lhe
os motivos oficiais do meu exílio, que ela escutou com um atenção
educada mas sem qualquer interesse genuíno (o que até me convém). Deu-
me alguns conselhos práticos e indicações valiosas sobre a vida na ilha
(onde comprar isto e aquilo, como lidar com a chuva) e depois trocámos
banalidades sobre o tempo. Foi quando lhe perguntei por que motivo ela e
o marido haviam escolhido os Açores para passar a reforma que a sua
bizarria (não me lembro de um termo melhor) veio ao de cima. De
imediato, colocou um sorriso exagerado como se estivesse prestes a contar
uma história muito engraçada. Começou a falar rápido, desistindo de umas
frases a meio para iniciar outras, a maior parte das vezes também
interrompidas. Contou que viviam em Lisboa, que tinham um filho adulto,
que sabiam que as ilhas dos Açores eram muito bonitas e mais meia dúzia
de coisas que não me pareceram estar relacionadas. Ela deve ter percebido
que eu não estava a acompanhar as suas explicações e começou a falar do
filho, tornando-se então o seu discurso mais fluído e até um pouco
eufórico. Contou-me que o filho é um viajante, um aventureiro, um
explorador. Está a fazer uma volta ao mundo e, apesar de isso o manter
muito tempo longe dos pais, escreve cartas com frequência, as mais belas e
soberbas cartas. Pelo que percebi, ele já atravessou a Europa, já esteve na
Ásia e na Oceânia e está agora no Médio Oriente. Suspeito, contudo, que
as coisas não sejam exactamente como me conta. Digo-te isto não só
porque ela não foi capaz de dizer há quanto tempo se iniciou a viagem (ia
mudando conforme a fase da conversa), mas pela sua atitude durante a
narração da história. Parecia, de dois em dois minutos, ser tomada de uma
emoção nova e lutar contra ela à minha frente. Mexia muito as mãos,
parecia ora melancólica ora feliz, tanto fugia do meu olhar como o
procurava avidamente. Começava a contar episódios da viagem do filho e
abandonava-os a meio. Falou-me do seu comportamento enquanto criança,
procurando justificar, num fascínio infantil pelos descobridores, o viajante
adulto. Passado algum tempo, calou-se abruptamente e ficou a olhar para o
mar. Após dois ou três minutos de silêncio, que não me atrevi a quebrar,
virou-se para mim, com o ar formal com que havia chegado, e que
abandonara quase de imediato, e convidou-me para jantar com uma
solenidade roçando o cómico. Aceitei, claro.
Ao fim do dia, vesti a única camisa que trouxe, cobri-me com o casacão
e um cachecol e, de lanterna na mão, caminhei pelos cerca de oitocentos
metros que distanciam as nossas casas.
Escrevo-te na manhã seguinte ao jantar. Como vou à cidade esta tarde,
não tenho tempo para te narrar o curioso acontecimento. Perante este
material de folhetim vou cumprir as regras do género e terás de esperar
pelo próximo fascículo.

Estou-te tão grato quanto um artista de rua por um dia de sol.


IX

Queridos pais,

É a minha primeira vez em Paris no Inverno e, Jesus nos salve a todos,


está frio. Escrevo-vos do mais peculiar dos locais, mas há uma história por
detrás da minha localização e não a quero estragar. Cheguei ontem de
manhã, de comboio. O céu estava cinzento e carregado, ameaçando chuva.
Já mais do que habituado à minha enorme mochila – que sinto ser tão parte
da minha anatomia como se fosse uma corcunda –, não me apressei a
encontrar uma pension ou a contactar a Julie, tendo-me limitado a andar
pelo centro, a fazer de flaneur. Como Jesus está quase a fazer anos, as ruas
estão decoradas e pouco depois das quatro da tarde as luzes natalícias são
acesas partout, as montras exibem um delírio de cor e brilho e nos passeios
milhares de parisienses e alguns turistas vagueiam e fazem compras, todos
vestidos para uma expedição polar, sendo que nada mais cómico existe do
que observar os sábios, existencialistas, vetustos, veneráveis, filosóficos,
cultos e letrados parisienses de meia-idade com um gorro na cabeça. Não
lhes fica bem. Um filósofo que se digne deve usar boina para o frio, à la
Sartre.
Adivinho-vos tristes por mais uma vez não passarmos o Natal juntos.
Espero que esta carta chegue antes de 25 e ofereça algum consolo.
Compreendam que não é falta de amor o que me faz estar longe. Sempre
soube que mais não desejavam do que a minha felicidade e esse é o único
presente que vos posso oferecer. Saibam que estou imensamente feliz. Por
mais que viaje, mantém-se a alegria de contemplar o novo e o
desconhecido, o peculiar e o comum. Cada dia é um repositório de
descobertas, fascínios, experiências, curiosidades. Vivo numa euforia
luminosa apenas interrompida, de forma saudável, por períodos de saudade
e melancolia doce, períodos maioritariamente ocupados pela vossa
imagem, voz, até mesmo cheiro. Ah, e pela saudade dos cozinhados da
mãe. Mesmo sem eu estar aí faz, por favor, as tuas rabanadas divinas.
Mas isto tudo para dizer que vos amo e sei que sou amado por vocês.
Nunca antes passei um Natal em Paris e sei que me perdoarão a ausência
sabendo quão feliz estou por passar esta quadra na Cidade das Luzes.
Como contava, estava eu ontem a passear de mochila às costas quando
decido parar em frente a Notre Dame – o que só agora vejo que foi
bastante adequado, já que me descrevi como corcunda. Permitam-me um
tom pedagógico. Em muitas capitais existe o chamado ponto zero, de onde
se medem as distâncias das estradas do país. O de Paris fica em frente a
Notre Dame. É um círculo de pedra com uma estrela no meio. Ao longo da
circunferência está escrito «point zero des routes de France». Sentei-me
sobre esse ponto e pensei que podia indicar com precisão a distância entre
mim e todas as cidades de França e muitas cidades europeias. Fiquei ali
sentado algum tempo, a ver a fila de turistas a entrar em Notre Dame e a
procurar imaginar que aspecto teria um Quasimodo moderno. Tirei o meu
bloco de apontamentos e escrevi um pouco. E depois, Helas! Le miracle.
Começou a nevar. Uma neve tímida e efémera cujo contacto com o chão
era mortal. Levantei-me em admiração e júbilo. Os flocos acumulavam-se
na minha roupa, especialmente nas luvas sobre as mãos estendidas, como
se a neve fosse maná. Reparei nos sorrisos das pessoas. O que há no
Homem que o faz sorrir perante a primeira neve? A apenas alguns metros
de mim, o Sena; ao meu redor, salvo a lindíssima catedral com mais de oito
séculos, os prédios típicos da Paris do barão Haussmann (e, à propos,
sabiam que a largura das boulevards parisienses, mais do que razões
estéticas, se deveu ao desejo de Napoleão III de uma Paris em que as ruas
fossem demasiado largas para permitir a construção de barricadas?!).
Fiquei eufórico. Sabem bem do fascínio que a neve sempre exerceu sobre
mim, o que será talvez comum a muitos lisboetas, e podem sem dúvida
adivinhar como me senti.
Mas a história não é essa. A história começa uma hora depois quando, já
saciado de neve e a começar a sentir frio, me enfiei na primeira livraria que
encontrei. Antes que comecem a imaginar aquelas livrarias de vários
andares que há por todo o Quartier Latin, farei uma descrição da mais
singular de todas as muitíssimas livrarias onde já estive. O que me atraiu,
além de parecer um lugar quente e acolhedor, foram os enormes quadros
pretos, iguais aos dos colégios da minha infância, onde estavam escritos a
giz os anúncios mais hilariantes. Um informava que um escritor americano
expatriado de meia-idade procurava uma jovem flausina francesa para
viverem uma utopia a dois numa tenda junto a um rio. Outro alegava que
um famoso filósofo fumador de cachimbo havia roubado há duas décadas
um livro da livraria e que era convidado a devolvê-lo sem o pagamento de
multa. Quando entrei na livraria, estava cheia de gente, a maioria turistas,
já que grande parte das obras está escrita em inglês. Os livros são, por
norma, velhos e usados, mas irremediavelmente encantadores, com as mais
diversas lombadas e capas, muitas vezes com comentários escrevinhados
nas margens. A arrumação é caótica. As prateleiras são tão velhas e estão
tão cheias que a madeira encurvou, e as mesas, de diferentes alturas e
tamanhos, estão cobertas de resmas de livros sem qualquer relação
aparente. O rés-do-chão dá a impressão de que, mais do que numa livraria,
se está no apartamento de um bibliófilo velho e louco. Numa das passagens
entre divisões (uma pessoa sente-se num minúsculo labirinto literário,
como se num conto do Borges) está escrito: «Be not inhospitable to
strangers lest they be angels in disguise.»
Após subir umas escadas íngremes e sujas, descobri que a minha
impressão estava bastante próxima da realidade. No primeiro andar, além
de existir mais um sem-número de estantes e mesas maduras de livros, há
vários quartos com pequenas camas, muitas vezes encostadas às estantes,
pelo que não é incomum as pessoas se ajoelharem numa cama durante as
suas buscas literárias.
Passeava pelos corredores quando ouvi uma conversa num dos quartos.
Dois velhos discutiam Fitzgerald em inglês. Se há alguma coisa que mudou
em mim durante todas as viagens que tenho feito foi a capacidade de
superar qualquer hesitação sobre o que é socialmente correcto, sobre o que
irão os outros pensar de mim, se estarei a agir como um tolo, e sentimentos
afins para, de forma sincera e genuína, sem pensar demasiado, sem
antecipar uma resposta, me dirigir a estranhos. E foi assim que me vi a
debater se o Tender is the Night era superior ao The Great Gatsby,
defendendo eu «que sim», o homem mais velho de enormes cabelos
brancos «que não» e um careca de barba longa, carrapito e muito estrábico
«que, sem qualquer dúvida, sim». Após alguns minutos de debate, ao
reparar que eu encostava a minha enorme mochila contra a parede, o
homem mais velho, defensor do Gatsby, perguntou-me se eu tinha ido ali
para arranjar um lugar onde dormir. Como o tom me pareceu ligeiramente
acusador, assumi uma atitude defensiva e expliquei-lhe que apenas me
abrigava da neve e que nem sequer sabia que as pessoas poderiam dormir
na livraria. Apesar da explicação, ainda me olhou desconfiado.
– Os meus hóspedes têm de ler pelo menos um livro por dia.
Demorei um pouco a perceber. Não me parecia possível que existisse um
local onde se oferecesse guarida em troca da aquisição pessoal de
literatura, pois seria como pagar um restaurante recebendo uma
massagem. Como eu não respondia, o velho pôs-se à procura nas
prateleiras enquanto murmurava uma espécie de tango em espanhol.
Retirou um pequeno livro: The Diamond as Big as the Ritz and Other
Stories, do Fitzgerald.
– Os contos dele são melhores do que os romances – afirmou, como se
estivesse a constatar que o sol nasce todos os dias. O homem do carrapito
concordou efusivamente.
– Se leres isto entre hoje e amanhã, podes passar cá a noite – propôs-me
o dono da livraria.
E foi assim que dormi na Shakespeare and Company. Pelo que descobri,
é uma livraria famosa e aparece em muitos guias de viagens. George
Whitman, o velhote que me ofereceu guarida, fundou-a em 1951. Ele é
absolutamente excepcional, um excêntrico à moda antiga. Não só obriga os
hóspedes a ler um livro por dia, como acredita que vive dentro de um
romance, que algures um escritor está a descrever a sua realidade. A ideia
de abrigar escritores e leitores veio-lhe das suas viagens pela América do
Sul e da hospitalidade com que foi acolhido por lá. Nestes quartos
pequenos já dormiram mais de 50 mil amantes de literatura (eu faço parte
desse número). A lista de escritores e intelectuais que por esta livraria
passaram ou com quem o George conviveu é magnífica, incluindo Henry
Miller, Anaïs Ninn, Allen Ginsberg e outros.
Contudo, não se adormece cedo nem facilmente por aqui. Acometido do
sentimento de dever que vocês ferozmente instilaram em mim, tentei
avançar com a leitura do livro para não ficar em dívida. De início chateou-
me um pouco a obrigatoriedade da coisa, como se estivesse a fazer os
trabalhos de casa, mas cedo o humor do Scottie tomou conta de mim. Ia no
terceiro conto quando um russo me entrou no quarto (o que se ganha aqui
em excentricidade perde-se em privacidade). Alexei é um estudante de
matemática que está a fazer um doutoramento em Lyon (sobre – não é
magnífico? – números imaginários!). Aproveitou as férias de Natal para
visitar Paris e, a conselho de amigos e para poupar dinheiro, foi parar à
Shakespeare & Co. Tem o ar pálido dos eslavos, as feições rudes e os olhos
pequenos e claros. O cabelo é ralo e loiro. No queixo usa uma pêra que
parece existir mais por motivos morais do que estéticos, embora eu
desconheça quais.
O Alexei interrompeu a minha leitura para me fazer um pedido invulgar.
Perguntou-me, num francês horrendo e com uma gramática estropiada, se
eu já tinha lido A Insustentável Leveza do Ser. Lembrei-me de imediato do
Verão que passámos no Douro, no princípio da minha adolescência,
quando o pai me ofereceu esse livro. Era um exemplar usado, que tu
mesmo tinhas comprado e lido anos antes, sendo ainda visíveis as dobras
nos cantos das páginas (não sei se marcavam apenas o andamento da
leitura ou se recordavam passagens memoráveis). Ao saber que o havia
lido, o Alexei ficou tão feliz como as personagens de Dostoiévski nos seus
momentos eufóricos. Com exultante alívio, sentou-se na minha cama,
quase me esmagando os pés, e pôs-se a gesticular e a falar. Explicou-me
que concordara em ler o livro a troco de abrigo mas não conseguia avançar
na leitura e temia ser interrogado no dia seguinte, pelo que precisava que
eu lhe contasse a história. Procurei dissuadi-lo, dizendo-lhe que sabia
apenas os contornos e que não se tratava, propriamente, de um romance
com uma estrutura narrativa clássica. Não obstante, o Alexei estava
determinado. Protestou, gesticulou com mãos de camponês, fez esgares de
sofrimento, mas, mais que tudo, pedinchou como nunca vi ninguém
pedinchar (havia um travo alcoólico no seu hálito que se sentia mesmo à
distância). Foi assim que, folheando o livro para trás e para a frente,
procurando forçar a memória, lhe fiz um esboço dos amores de Thomas e
Teresa, e das lágrimas da cadela Karenine. Adormeci tarde e acordei cedo
com a luz a entrar pela janela.
Levantei-me e olhei para a rua. Percebi que a neve não tinha deixado de
cair, que a certa altura, talvez momentos depois de eu ter entrado na
livraria, deixara de derreter em contacto com o chão, para, floco sobre
floco, criar um manto branco sobre Paris. O sol brilhava, ténue, e o céu
estava azul. Sobre os passeios, os carros, os telhados, os caixotes de lixo,
os pequenos quiosques (ainda fechados) junto ao Sena, resplandecia,
branca como nos filmes de bonecos animados, a neve. Provavelmente uso
metáforas velhas, porque milhões já viveram o despertar para uma cidade
branca. Mas, para mim, foi a primeira vez. O meu presente de Natal
perfeito.
Vesti-me rapidamente e saí para a rua. Deixei a mochila no quarto sem
pensar sequer que ma podiam roubar. Queria estar leve, tão leve que
pudesse andar pela neve sem deixar pegada. Percorri velozmente as ruas,
indiferente ao frio que me queimava a cara, gelava a ponta do nariz e
magoava as mãos apesar de eu as ter (por ausência de luvas) enfiadas até
ao fundo dos bolsos do sobretudo. Caminhava olhando para a esquerda e
para a direita com mais voracidade ainda do que costumo fazer; queria
contemplar tudo, observar cada telhado branco, cada toldo repleto de neve.
Queria reter em pormenor essa manhã luminosa. Por mais que apreciasse o
som terno da neve desfazendo-se sobre os meus passos, sabia que muitos
mais caminhantes tornariam em poucas horas o manto fofo e claro numa
pasta acastanhada e escorregadia, e sentia-me um pouco culpado por
contribuir para essa transformação.
O céu manteve-se azul e o sol brilhou timidamente durante o dia.
Quando as luzes se acenderam nas montras, janelas, telhados e boulevards
de Paris, já nem as crianças acreditavam que existisse em toda a cidade
neve branca suficiente para construir um boneco.

Joyeux Noël!
X

Ao boxeur Matias Vilanova,

Li no jornal que acabou de perder o seu trigésimo segundo combate


consecutivo em trinta e dois combates disputados, sendo que nunca atirou a
toalha. O tom do artigo era pseudocómico, uma daquelas peças destinadas
a explorar a schadenfreude dos leitores e fazê-los sorrir da desgraça alheia
(é possível que o meu amigo desconheça a palavra schadenfreude,
pedindo-lhe eu desde já perdão pela arrogância intelectual subjacente ao
seu uso, e passando a explicar que é um termo alemão que significa,
aproximadamente, alegria pela desgraça dos outros). Além de talento
literário, percebe-se que faltou ao jornalista decência, compaixão, mesmo
ternura. E faltou uma capacidade fundamental para poder estar no mundo
como Homem, e que, lamentavelmente, é cada vez menos estimulada,
apreciada e praticada: imaginação. Faltou-lhe a imaginação para procurar
perceber o que o leva ao ringue após trinta e uma derrotas. A imaginação
para antever os momentos anteriores ao combate, os minutos finais no
balneário em que, apesar de tudo e todos tomarem como certa a sua
derrota, apesar de mesmo o próprio Matias ter poucas dúvidas de que será
derrotado, havia ainda uma parte de si que queria lutar, uma parte que
acreditava que talvez esse fosse o dia. Um homem desejoso de socar o
destino nas fuças. Faltou ao jornalista a imaginação para tentar perceber o
que leva um homem a continuar a investir o seu tempo e esforço numa
empreitada para a qual nunca mostrou talento, da qual nunca obteve
resultados, que lhe exigiu tudo e nunca lhe deu nada, que lhe causou dor e
humilhação. No artigo citam o Matias justificando a sua persistência.
Quando lhe perguntaram se ia voltar aos ringues depois de mais uma
derrota, respondeu: «Eu vou para o ringue como um advogado vai para o
escritório»; e, perante a pergunta jocosa sobre se acreditava ser possível
alguma vez ganhar um combate, «Entro em todos os combates para ganhar.
Dou tudo o que tenho e faço o que sei e posso». Quero dar-lhe os parabéns
por essas respostas, tão sábias quanto comoventes.
Não consigo pensar no Matias sem utilizar palavras antigas como
nobreza e dever. Qualquer freira ou comentador social teria pena de si e
assumiria o discurso número 33 do Manual do Moralista, condenando a
sociedade por exaltar o triunfo, exacerbar a competitividade e, tratando-se
de boxe, com certeza haveria algumas frases sobre o quão básico, primário,
primitivo e misógino é este desporto violento, que deveria ser banido,
acrescentariam com esgares de indignação e dedos em riste.
Não é o que penso. Não o considero uma vítima, mas um herói. Um
exemplo de persistência, perseverança e determinação. Um homem que
não se verga nem à opinião dos outros, nem aos resultados, nem mesmo ao
senso comum. Um homem que acredita em si mesmo, que procura o
triunfo e está preparado para a derrota. Que «dá tudo o que tem». Que «faz
o que sabe e pode». Já diziam as escrituras que quem dá o que tem, a mais
não é obrigado. Eu acredito que o Matias durma tranquilo, que o seu sono
seja o sono dos justos, e que ande na rua de cabeça erguida como o
campeão que é.
Que a glória vá para o vencedor é compreensível, mas a honra deve ser
partilhada com o derrotado. Atribuída não como consolo mas por
admiração. Porque ergueu as luvas, encaixou os socos, e nunca deixou de
procurar uma abertura, um momento de menor alerta por parte do superior
adversário que lhe permitisse o soco da reviravolta, o murro da redenção.
Porque como Heitor, em Tróia, não fugiu ao seu dever. Porque se recusou a
aceitar que o destino de um homem já está escrito, que a sociedade, a
cultura, os genes, a forma como a mamã o amamentou ou o papá com ele
jogou à bola, o meio socioeconómico em que cresceu, o PIB do seu país, o
número de livros que tem em casa, a personalidade dos seus melhores
amigos, a sua altura ou peso, os seus resultados escolares, o seu treino, a
sua dieta, o número de horas que dorme, as suas relações afectivas, o
número de vezes que foi derrotado, as estatísticas pré-combate, que todas
estas coisas, por mais ou menos peso que tenham, determinem o que lhe
vai acontecer.
Beckett dizia «Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better».
Na nossa língua: «Já falhou? Não faz mal. Tente outra vez. Falhe outra vez.
Falhe melhor.» E é isso que o Matias tem feito de forma soberba.
Por isso, Campeão, os meus parabéns. Espero que tenha uma carreira
longa e que as vitórias cheguem. E se um dia chegarem, mesmo que seja só
uma, imagino que sentirá o que os Muhammad Alis e Mike Tysons nunca
sentiram, pois só quem atravessou um deserto conhece o verdadeiro sabor
da água.
Espero que continue de punhos levantados, que saia sempre do balneário
com coragem e determinação, que aprecie o ringue. Que aceite cada
derrota com honra e orgulho.
O boxe sempre serviu de metáfora fácil para tudo e mais alguma coisa.
Para mim, o seu caso lembra-me os românticos falhados, a quem o amor
derrota vezes sem conta e que, apesar da dor e do desespero, e das feridas
profundas no mais importante músculo do corpo, se voltam a levantar,
erguem de novo os punhos e estão dispostos a apaixonar-se e a acreditar
que, da próxima vez, sim, da próxima vez serão eles que terão o braço
levantado, da próxima vez o amor triunfará.

De um admirador agradecido
XI

Querido amigo,

O jantar! Espero que estejas de curiosidade aguçada. Fui até lá seguindo


um pequeno carreiro de terra batida, serpenteando por entre árvores, flores
e arbustos cuidadosamente plantados e aparados, virando abruptamente à
direita em direcção à casa, não sem antes passar, à esquerda, pela entrada
de uma pequena estufa de pano branco, plena de flores exuberantes
(quando, antes de espreitar pela abertura de pano, eu antevia ananases). A
casa é parecida com a minha, provavelmente desenhada pelo mesmo
arquitecto, mais preocupado com robustez e discrição do que com a
expressão do seu eu artístico. Tem, no entanto, mais um andar, uma espécie
de águas-furtadas com uma janela virada para o mar, lembrando um farol.
O soberbo jardim é fruto do trabalho da senhora Teresa Viana, a professora
que é mulher do médico, ou, como ela deseja ser chamada, Teresa. Não só
tem tempo para podar, plantar, adubar, regar e sei lá mais o que se faz às
plantas, como consegue ter a casa tão limpa como os óculos de um
obsessivo-compulsivo e cozinhar magníficas refeições como a que não me
escusarei a descrever.
Mais calma do que quando me veio visitar, mas com a mesma simpatia
de toque desafinado, ela recebeu-me à porta com um sorriso tão
genuinamente feliz como surpreso, embora não veja por que motivo havia
de duvidar da minha comparência. Entreguei-lhe uma garrafa de vinho
(que me obrigou a uma viagem à cidade) e limpei demoradamente os pés
num tapete multicolor de aspecto sintético, em claro contraste com a sala
descolorida (termo que uso em vez de cinzenta, porque a verdade é que a
mobília possuía cores, mas eram tão tímidas e discretas que não me lembro
de nenhuma).
Num gesto cerimonioso, que conseguia simultaneamente troçar da
própria formalidade, fui apresentado ao Dr. Augusto Viana. Preocupado se
eu havia apanhado chuva no caminho, ele escoltou-me ao bar para me
providenciar o necessário e urgente lubrificante social, já que era, à altura,
o único convidado presente. Tudo nele era feito de forma suave, com
gestos, frases e expressões de um homem habituado a inúmeros serões de
conversas da treta. Apesar de me pôr à vontade, não forçava a intimidade,
estando implícito em tudo o que fazia que me tratava como uma visita,
como alguém que devia ser recebido com gentileza e cordialidade, mas não
mais do que isso.
Após meia hora de conversa educada e polida sobre variedades de
brandy e a vida nos Açores, chegou Herr Hector e, dez minutos depois, um
casal de açorianos nativos (o Dr. e a Dra. Fagundes, professores
universitários). Seguiram-se as apresentações e quase uma hora de
folhados de queijo, frutos secos, azeitonas, patés, canapés à base de peixe e
a típica conversa pára-arranca destes jantares, igual aqui como em Lisboa,
com a excepção dos sotaques e da relativa exuberância das personagens
envolvidas.
Dispensarei já as personagens secundárias. Os Fagundes pertencem ao
tipo literário do professor de aldeia. Crêem, de forma quase violenta, que
pertencem aos escolhidos, sendo a sua missão a defesa da alta cultura
numa terra de bárbaros. Acusam quase todos os açorianos de filistinismo e
emocionam-se muito sempre que enunciam as falhas culturais da ilha,
ofendendo-se particularmente com os stocks reduzidos e mal seleccionados
das livrarias. Idealizam Lisboa de forma ternurenta, imaginando que em
cada casa se lê Proust, se discute Filosofia e se trauteia Beethoven,
enquanto se prepara pato confitado com puré de ameixas. Tentam ser
espirituosos e cosmopolitas, o que os denuncia como provincianos e
aborrecidos. Parece-me também que são incapazes de ler um livro sem
informar todos os que os rodeiam da sua ocupação com tão nobre tarefa.
Talvez exagere. O marido ainda contou uma piada semi-obscena com um
pingo de humor (embora a mulher o tenha fulminado com um olhar de
censura e se tenha virado para nós com a angústia de Eva dois minutos
antes da expulsão do paraíso).
Herr Hector esteve soberbo. Salgou a comida, riu-se de forma violenta,
bebeu e comeu em abundância. E falou. Falou das baleias, das correntes
marítimas e do sistema reprodutivo das estrelas-do-mar. Nada como ouvir
alguém conversar sobre o que sabe e gosta. Quando tentou participar nos
temas mais banais, como a vida nos Açores, os costumes culturais dos
povos ou a necessidade de melancolia para a criação da grande obra,
limitou-se a enunciar lugares-comuns com um tom, não sei se conseguirás
perceber, de quase má-criação. Talvez estivesse a tentar ser irónico, talvez
lhe escapasse toda a entoação da língua portuguesa ou talvez estivesse
apenas aborrecido. A mim divertiu-me muito ver os Fagundes reagir aos
seus comentários.
A anfitriã mostrou verdadeiro gosto no fluir da conversa mas pouca
vontade de participar, excepto se para discutir os pratos ou corrigir
qualquer referência aos Açores (como a localização de uma fábrica de
chá). Encadeou os diferentes pratos com subtileza, fazendo-nos passar das
entradas para uma soberba sopa de peixe, e desta para medalhões de porco
preto, como quem folheia páginas de um livro. Pode ser o efeito de
contraste entre os meus dotes culinários e os de uma verdadeira dona de
casa, mas foi uma das refeições mais saborosas que já degustei. A sopa
tinha a textura perfeita e sabia à ideia platónica de peixe, enquanto o porco
não só estava no ponto em que a carne é tão suculenta que quase se
transforma em alma, como vinha acompanhado de umas batatas a murro e
de um esparregado merecedores, por si só, de uma constelação Michelin.
O Dr. Viana revelou-se quase sempre um anfitrião exímio, embora um
pouco distante. Geria os temas e as participações dos convidados como um
pivot de telejornal. Procurava mais ouvir do que falar, embora não se
coibisse de contar anedotas e historietas sempre que a conversa atravessava
algum terreno mais árido. Eu estava admirado com a forma como ele
apreciava estar ali e ao mesmo tempo não estar, um actor numa peça. Até
que Hector falou na Croácia.
Acho que foi a propósito dos heróis históricos que alegadamente
nasceram em vários locais. Hector acrescentou o exemplo de Marco Polo
(não me lembro de quem foram os anteriores), que nasceu em Itália e na
Croácia, na ilha de Korcula. Eu confirmei, explicando que já lá tinha
estado e que a pequena ilha se aproveitava para fins turísticos de ter sido o
berço de Marco Polo.
Quando o médico se apercebeu de que eu visitara a Croácia várias vezes,
começou a comportar-se como se fosse outra pessoa. A patine social, o
anfitrião calmo e distanciado, o actor no palco, desapareceram. Surgiu um
homem com um interesse voraz. A conversa tornou-se um diálogo e, após
dez minutos, um interrogatório. O Dr. Viana parecia querer saber tudo
sobre a Croácia, como se planeasse ir para lá viver. Fez não só perguntas
óbvias como algumas inesperadas: que tipo de pão se come lá, como são os
condutores, se eu havia utilizado os correios, etc.
Numa ou noutra resposta que dei, os Fagundes viram uma hipótese de
fazer um comentário culto e sofisticado, mas o anfitrião interrompeu-os de
imediato, sem a suavidade que havia demonstrado, posso mesmo dizer que
o fez com rudez.
Não sei quanto tempo durou o interrogatório sobre a Croácia, mas
quando terminou já tínhamos as chávenas de café vazias. Havia uma certa
estupefacção no rosto de todos. Fui eu quem tentou clarificar as coisas:
– Mas porque lhe interessa tanto a Croácia?
Ele respondeu que era porque o seu filho ia lá passar uns tempos. Fiquei
de imediato curioso mas, antes que tivesse tempo de perguntar fosse o que
fosse, o médico retomou os seus deveres de anfitrião e perguntou a Herr
Hector se tinha visto algum cetáceo nas suas últimas saídas ao mar. O
alemão riu-se muito (não percebi porquê) e voltou a falar de cachalotes,
golfinhos roazes, épocas de acasalamento e outras coisas assim.
Quando me despedia do Dr. Viana, este perguntou-me se eu havia
viajado muito e mostrou vontade de conversar mais comigo sobre as
minhas viagens. Explicou que sempre tivera muito interesse nas aventuras
e desventuras dos viajantes, e que esse interesse aumentara ainda mais
desde que o filho decidira fazer de Marco Polo. Eu mostrei
disponibilidade, agradeci o jantar e parti de lanterna na mão, de regresso ao
meu palácio de humidade.
E foi isto o jantar. Apesar do meu desejo de solidão, este mergulho
ocasional nas conversas de salão não deixa de me entreter um pouco.

Como sempre, espero que a vida te eleve em triunfo aos ombros e que
encontres sempre um lugar para repousar.
XII

Querido amigo,

Vejo que estás mais interessado no que aconteceu do que no que está a
acontecer. Talvez porque te pareça que esta minha vida de quase-eremita,
este meu exílio açoriano, esta minha experiência epistolar, esta minha
busca de redenção seja apenas mais um erro, mais um dos muitos que
cometi desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu. E o teu medo é que seja
o erro definitivo, o último prego no caixão proverbial, a última gota no
proverbial copo, o último copo de que, no dia seguinte, com a boca seca e a
mente enrolada em arame farpado, nos lembramos ter bebido antes de tudo
se tornar confuso e etéreo.
Mas estás enganado. Não falo de aquilo-que-aconteceu porque não
quero. Porque durante muito tempo, talvez demasiado, não fiz outra coisa,
mesmo que em silêncio. Porque houve uma altura em que acreditava que
aquilo-que-aconteceu abrira um vazio em mim, um buraco negro que,
como nos filmes de ficção científica, sugava tudo para o seu vórtice. E
cada pensamento, cada gesto, cada desejo, era roubado ao presente onde eu
os criara, onde eu desejava que florescessem e cobrissem de verde o
espaço árido dos meus dias, para ser levado para o passado, para ser
aspirado para o buraco negro. Toda a minha mente era um boomerang. Por
mais força e esperança que eu colocasse no seu lançamento, retornava a
aquilo-que-aconteceu. E aquilo-que-aconteceu era o princípio e o fim de
tudo.
Quase todas as formas de consolo me foram oferecidas. Mas, por mais
ou menos ternura, por mais ou menos sentido que fizessem, mesmo que
carregadas de sangue e lágrimas, mesmo que abençoadas com amor e
amizade, mesmo que vestidas de pele e calor, mesmo que oferecidas por
anjos ou santos, a verdade é que eu estava inconsolável: fora da
possibilidade de consolo. Como se aquilo-que-aconteceu me tivesse
expulsado do paraíso e não me restasse mais do que gerar dois filhos
fratricidas.
Um padre, um psiquiatra, um psicanalista falariam de falta de fé,
desequilíbrio de serotonina, luto incompleto, e todos teriam razão. E,
quando passou o tempo que as pessoas achavam o necessário para o luto de
aquilo-que-aconteceu, o tempo que era socialmente considerado sensato
para superar o sucedido, a paciência começou a esgotar-se. O que me
irritou. Quem sabe o que este ou aquele acontecimento custam ao outro?
Quem pode afirmar qual é a dor justa, a dor adequada, a dor suficiente
para determinada ferida? Quem é capaz de, olhando para a pele, saber quão
profundo é o corte? E, por todo o lado: «Não achas que já chega?», «Não
achas que já está na altura de?», «Não seria melhor que?». E quando me
recusava a responder vinham, em catadupa, num jorro, em ebulição, com a
velocidade e irritação de um pai que, após explicar mil vezes a uma criança
os motivos pelos quais ela devia ter o quarto arrumado, finalmente se passa
e oferece a justificação inapelável «porque eu mandei!», com toda a
superioridade moral de quem só quer ajudar e vê dificuldades inexplicáveis
colocadas no seu caminho, assim chegavam as análises críticas às minhas
acções. Todos percebiam melhor que eu o meu comportamento. Todos
tinham um acesso privilegiado aos meus motivos inconscientes. «Tu só
estás assim porque», e depois seguiam-se comentários à minha
personalidade, à forma como eu supostamente interpretara aquilo-que-
aconteceu, ao meu medo de viver, aos meus mecanismos de defesa, à
minha raiva por resolver, ao meu masoquismo, ao meu sadismo, ao meu
narcisismo e egoísmo. E conselhos. Inúmeros, criativos, modestos ou
ambiciosos, abstractos ou concretos.
Não quero que mo digas, já to pedi, mas mesmo assim não consigo
deixar de me divertir ao imaginar o que pensarão de mim agora, que
historietas, que case studies farão de mim, como em certos jantares dirão
«eu tinha um amigo a quem sucedeu aquilo-que-aconteceu…».
E como conseguiria eu explicar o que sentia, o que ainda sinto com
frequência? Não é que a vida me tivesse ficado vedada. Era capaz de
apreciar a beleza das coisas, de entender o humor ou a tristeza, de sentir a
vida a pulsar no mundo e em mim. Mas um pulsar ténue. Um pouco como
se tudo se passasse num aquário no qual eu enfiava os dedos, e, apesar de
sentir a água morna, de algumas vezes até experimentar o toque leve e
esquivo de um peixe, era uma pausa momentânea, um pequeno mergulho
num outro habitat, no qual eu nunca poderia sobreviver.
Via a vida por detrás de um véu.
Se vim para aqui retirar o véu ou esconder-me definitivamente por detrás
dele, ainda não sou capaz de dizer.

Um abraço
XIII

Queridos pais,

Parto amanhã de manhã de Goa. É a última noite que passo em casa do


Mathieu. Sinto-me cansado da Índia. Estou farto dos eLivross europeus,
das festas trance, dos pedintes, dos vendedores, de ver os pobres a cagar na
rua. A vida aqui é exuberante, plena de som e fúria, tingida com as cores
mais vivas e correndo rápida, frenética, ávida e inapelável, arrastando tudo
e todos. Tudo é exagerado: a comida, a música, a pobreza, a riqueza, os
deuses, os filmes, o tempo… juntando-se num blitzkrieg dos sentidos. Eu,
que sempre me senti sôfrego de viver, que sempre achei que nada poderia
saciar-me, vejo-me, com grande surpresa, enfartado. Numa má piada:
preciso de um antiácido existencial.
E não foi só por causa da Ellen, a minha valquíria inesperada, presente
ambíguo dos deuses, insistindo em me levar pela mão do inferno ao
paraíso e do paraíso ao inferno. Não foi só pelos europeus, pelos meninos
mimados que por aqui andam num frenesim digno de Epicuro e que, apesar
das suas danças solipsistas, das suas filosofias de autodescoberta feitas de
chavões, banalidades e egoísmo mal disfarçado, julgam tudo e todos de
forma peremptória e definitiva, e colocam a vida das árvores e dos ratos
acima de vidas humanas, e que, porém, estão ainda e sempre a tentar
descobrir quem são. Não foi só pelo miúdo sujo e esquelético que me
tentou roubar a máquina fotográfica. E não foi só por ver quatro pessoas
numa lambreta e, meia hora depois, conhecer um dos novos milionários
tecnológicos e o ouvir falar duas horas de um awesome bordel na
República Checa. E não foi só pela humidade e pela beleza desmedida da
paisagem e pelos efeitos que o consumo excessivo de mangas produz. E
também não foi só pelas recordações dos subúrbios de Bombaim, ou pela
viagem de comboio em que eu e a Ellen nos beijámos pela primeira vez. E
não foi por ver as putas e os pobres e os doentes e os ricos e todo o elenco
do novo testamento menos Jesus e os apóstolos, sendo que não duvido de
ter visto um romano ou dois disfarçados. E não foi só pelo exotismo e pela
distância e pela impenetrabilidade de tudo isto. Mas também.
E sinto a vossa falta de um modo tremendo. Sempre soube que existiriam
momentos de nostalgia nas minhas viagens, mas a sua intensidade
surpreende-me. Hoje, vi num café uma garrafa de ginginha transmontana e
quase desatei a chorar. Compreendo o quão difícil deve ser para vocês esta
minha longa ausência e mais uma vez peço perdão e compreensão. É o que
tenho de fazer. É o meu caminho.
Esta carta poderá parecer mais triste do que as outras. Não importa. Faz
parte da vida, da viagem, do mundo, e faz parte de mim. Como quando
morreu o Jeckyll e tu, pai, o enterraste no quintal, perto da nespereira,
enquanto que tu, mãe, me falavas do céu dos cães e me limpavas as
lágrimas com as mangas da camisa e me assoavas com os teus dedos, um
dos sinais mais absolutos de amor. Não preciso sequer de fechar os olhos
para imaginar os vossos rostos de então, para me lembrar do cheiro a terra
escavada e das meias-luas de suor na camisa do pai.
Vou para Bombaim, ou Mumbai, como aqui se diz, e daí apanharei um
avião. Para onde? Ainda não sei. Para um sítio menos exuberante, menos
colorido, menos vivo. E porquê? Quais das razões com que justificamos os
nossos gestos são realmente a sua causa? A Índia e a Ellen esgotaram-me.
Fizeram-me sentir uma velha melancolia que, não sei se alguma vez vos
disse, quase sempre me acompanhou. Uma melancolia nascida da finitude
da vida. De saber que, por mais que viva, muito mais ainda fica por viver.
Que, por mais sítios que visite, muitos outros mais ficam por visitar. Que
tentar apreender a beleza do mundo é como querer recolher toda a água do
mar com um dedal. E como eu a amo, a vida, o mundo, tudo! E quero-a
como é, sem depurações, com toda a fealdade, desilusão, desespero e
horror, quero o sublime e o atroz. Mas, se me é impossível consumi-la na
sua totalidade, e só às vezes me apercebo disso, só às vezes tomo
consciência de que a vida é uma amante partilhada e nunca possuída senão
fugazmente, então tenho de aprender a aceitar o meu quinhão e a apreciá-lo
sem remorsos. Talvez tudo isto vos pareça demasiado parecido com os
livros de auto-ajuda, as palestras dos motivational speakers, ou as homílias
dos gurus que por aqui são tão apreciados. Talvez. A cada um a sua
verdade, o seu dia de jejum, o seu discurso e o seu animal sagrado.
Pai, mãe: saibam-me, apesar da melancolia, apesar do cansaço, feliz.
Não posso, de momento, ser o filho que vocês merecem, o filho que está
perto, disponível, que é fácil abraçar e beijar. Assim, temos de fazer estas
coisas à distância, como que sonhá-las.

Sonhando com o abraço do reencontro,


O vosso filho
XIV

Querido amigo,

Um lutador luta, um pintor pinta, o sol arde, uma flor floresce, a vida…
continua. Sem mais notícias dos Viana depois do famoso jantar. A chuva
instalou-se de vez e a sua intensidade é tal que deixei o meu jogging
matinal. Não te preocupes porque não abdiquei dos exercícios matutinos,
substituindo a corrida por uma série de flexões, abdominais e, o que te
espantará, saltos à corda. Exactamente. Comprei uma corda por impulso,
quando estive na cidade. Demorei uns dias a aprender, mas já consigo
saltar com perícia suficiente para se ouvir o tchac tchac tchac da corda a
bater no chão. Ainda estou longe de um boxeur ou de uma miúda de onze
anos, mas chegarei lá.
Tenho lido muito na poltrona de veludo.
E tenho sentido algumas dificuldades com a escrita. Começo cartas que
nunca acabo. Apesar do entusiasmo com que abordo a tarefa, em poucos
minutos fico descontente com a minha prosa, ou acho-me sem ideias ou
considero que a argumentação que uso é desajustada ao destinatário da
carta. Ando também, e já deves ter reparado, com uma tendência perigosa
para a grandiloquência e para o sentimentalismo. Como se cada parágrafo
que escrevesse tivesse obrigações messiânicas, como curar leprosos e dar
visão aos cegos. Sinto que, não só estou longe de conseguir sussurrar,
como tudo o que escrevo é gritado em histeria. Vejo-me convertido numa
adolescente vienense do virar do século, mas não há Freud que me acuda.
Quanto mais calma e regulada é a minha vida mais parece que as cartas
saem em chamas, com todos os vícios da megalomania: dispersão,
sentimentalismo e arrogância. Escrevo às pessoas como se as quisesse
agarrar pelos colarinhos e gritar vivam, o que é horrível e indelicado; se
alguém me agarrasse pelos colarinhos e dissesse uma coisa dessas, seria
motivo suficiente para perder a cabeça. Por vezes ainda é pior e parece que
estou a apontar o dedo e a fazer pequenos movimentos de cabeça, como
um professor desiludido. Que alguém me dê um estalo, como os homens
nos filmes dão às mulheres histéricas para as acalmar!
E, no entanto, divirto-me muito gritando, esperneando e apontando
dedos. Há uma parte minha que tira algo disso, há um bombeiro fascinado
pelas chamas que adora que a sirene esteja sempre a tocar, que quer viver
em urgência.
E porque te digo tudo isto? Porque preciso de mostrar as minhas pústulas
a alguém, e tu és o escolhido. E não te vou só mostrar pústulas como
hemorróidas, cáries, infecções, arranhões, nódoas negras e tudo o mais. De
vez em quando colocarei nestas cartas um pequeno número de circo como
recompensa, farei o pino numa só mão, manterei quatro laranjas no ar,
serei serrado ao meio por uma assistente de seios fartos (não te posso
revelar como). Espero que te agrade.
Outras notícias: limpar e cuidar da casa ocupa-me muito tempo. A
humidade é rainha e senhora desta ilha, mas não a deixarei estabelecer uma
colónia na minha casa. Nem vou mencionar a facilidade com que a
banheira velha fica manchada.
Não consegui esperar por melhor tempo para ouvir as sailor songs. Às
vezes, talvez por estar a ler muito sobre baleias e baleeiros, naufrágios e
marinheiros, sinto que esta casa é um barco no meio da tempestade. Como
comandante, tento manter-me calmo apesar da violência com que a chuva
bate contra a janela. Se tivermos de nos afundar, que seja.
Mas não te assustes, ainda estou longe de ter uma perna de pau, uma pala
no olho e um chapéu. Só no outro dia aprendi qual é a proa e qual a ré, e a
diferença entre bombordo e estibordo. E se me torno fastidioso com as
referências náuticas, esse é um problema teu. Com amizade o resolverás.

Despeço-me com o desejo de que as pessoas que se sentam à tua frente


no cinema sejam sempre de baixa estatura.
XV

Querido amigo,

Apesar de toda a histeria dos deuses, da forma como podem fazer


suceder a crueldade à ternura sem qualquer intervalo, ou como alternam
catástrofes, milagres e indiferença absoluta, existem sempre certos
capítulos da vida, totalizando alguns dias, com sorte algumas semanas, em
que eles nos abençoam e podemos sentir o seu hálito doce em todas as
coisas.
Eu tinha dezoito anos e o Verão estava no começo. Lesionei-me num
jogo de futebol à beira-mar, realizado no primeiro dia de praia (fácil de
imaginar, a areia lisa da maré que descia, o ruído das ondas, as vozes das
crianças gritando ao contacto com a água, um grupo de rapazes-homens a
correr e arfar, oscilando entre o abandono infantil ao jogo e a consciência
das observadoras femininas que os fazia endireitarem demasiado as costas
em sinal de virilidade). Regressei coxo e sorridente com dores na perna.
Três dias depois começava a fisioterapia.
Como era época de exames, e eu queria perder o mínimo tempo possível,
escolhi a primeira hora de sessão, oito da manhã. Nos primeiros três dias
amaldiçoei essa escolha e o meu eu que se levantava para desligar o
despertador no topo do armário (se o tivesse ao lado da cama ter-me-ia
limitado a desligá-lo e continuado a dormir) desejou poder viajar no tempo
e agredir o meu eu que se havia comprometido com tal horário. Mas lá
tomava um duche rápido e apanhava o autocarro para a clínica.
Por motivos de política de saúde, seguros e coisas assim fui parar a uma
clínica num apartamento antigo no centro de Lisboa cuja grande maioria
dos utentes era idosa. Para minha grande surpresa, eles não tinham
problemas por estar acordados tão cedo (soube depois que muitos
acordavam horas antes e não conseguiam voltar a dormir) e, quando eu
chegava às oito e pouco, ainda com desejos de vingança contra o meu eu
do passado, eles já enchiam as várias salas em conversa animada como se o
dia estivesse a meio. A primeira parte do tratamento era o aquecimento dos
músculos, sem dúvida a actividade mais demorada de todo o processo. A
clínica tinha meia dúzia de lâmpadas para dúzias de enfermos, pelo que
havia que esperar por uma vaga. Senti uma certa ironia na situação:
querendo poupar tempo, eu via-me a desperdiçá-lo ouvindo as histórias de
vida dos velhos e velhas, as suas críticas à programação televisiva da noite
anterior e bisbilhotices variadas sobre outros pacientes e terapeutas.
Nisto tudo talvez houvesse a mão dos deuses. Expliquei o meu problema
à terapeuta, que se chamava Sandra. Encontrámos uma solução. Se eu não
me importasse, sugeriu ela, era possível substituir o aquecimento com as
lâmpadas por uma caminhada a pé, em ritmo lento, até à clínica. Ainda
hesitei em andar quatro a cinco quilómetros às oito da manhã (já me
custava tanto vir de autocarro!), mas acabei por aceitar.
Para as caminhadas gravei uma cassete (não havia leitores de MP3 na
altura, aliás, mesmo os walkmans eram coisa nova), a qual denominei de
«alvorada» com um misto de poesia e piada. Ao quarto dia levantei-me
ainda mais cedo, bebi um café com leite e saí para a rua. Após dez
minutos, quando atravessava um jardim já me sentia totalmente desperto.
O dia nascia radioso, luminoso, efervescente, eufórico. Ou pelo menos
assim me parecia. Como tinha de andar devagar havia tempo para observar
tudo, os milhentos encontros da luz solar com o mundo, como ela se
reflectia de diferentes formas no chão, nas janelas, nas paredes, nas folhas,
nos telhados, na poça de água junto a um bebedouro, nos azulejos de um
mural, nas pétalas das flores, nas penas dos patos.
Com o encadeamento dos dias, o meu gozo nestas caminhadas matinais
não só não diminuiu como floresceu contagiando outras alturas do dia,
outros cenários, outros entusiasmos. Foi, e talvez aches que esta
formulação é bafienta como um sótão cheio de tralha, mas não me ocorre
outra, o despertar do meu sentido estético. E, continuando com chavões
académicos e new age (processa-me se desejares!), foi a tomada de
consciência da imensidão do mundo, da capacidade da beleza para deixar a
sua marca em qualquer paisagem, por vezes uma marca pequena e tímida,
como uma flor que cresceu à beira da auto-estrada, mas a maior parte do
tempo uma marca tão hipnótica e inescapável como as cicatrizes que os
chulos de Nápoles faziam na cara das suas prostitutas.
Como dizia o outro: um homem é um homem e as suas circunstâncias. E
as minhas, na altura, eram as melhores. Namorava com uma filha (única)
de milionários por quem estava apaixonado daquela forma generosa e
estúpida com que o amor abençoa os adolescentes. Quiseram os deuses que
os pais dela estivessem de viagem aos Estados Unidos (tinham amigos em
Park Avenue!!). Eu disse aos meus que iria passar a época de exames em
casa de um amigo e mudei-me para a vivenda de três andares onde ela
morava. Foi a primeira vez que vivi com uma mulher.
Fodíamos, falávamos, falávamos enquanto fodiamos e falávamos sobre
foder. Mas também estudávamos, embora fosse difícil fazê-lo na presença
um do outro, pelo que por vezes ela ia ter com as amigas a um café e eu
ficava em casa a estudar. Mais do que resolver equações de segundo grau,
enumerar os vários movimentos estéticos que influenciaram Fernando
Pessoa ou aprender as características dos protozoários, gastava o meu
tempo de solidão naquela casa imensa a fazer turismo de amor, tocando,
cheirando e contemplando cremes, batons e roupa, abrindo gavetas, lendo
lombadas de livros, experimentando anéis e pulseiras, olhando para
fotografias.
Como já referi, fodíamos como coelhos. Íamos pondo bandeiras
imaginárias nos locais onde havíamos feito amor. Quando toda a casa
estava tomada, inventávamos novos desafios e posições.
Ela era uma mulher amazona: morena, esguia, selvagem e doce. Mais do
que bonita, feérica, se me permites palavra tão cristalina. Como é natural,
eu sentia-me incrivelmente abençoado, e quando a beijava, quando a tinha
nos meus braços, quando ondulava dentro dela achava-me o mais feliz dos
homens; e apesar de ser inexplicável para mim tal arroubo de fortuna
também sentia que era exactamente o que eu merecia, que se num prato da
balança estivessem todos os golpes e falhanços, todas as desilusões e
pisadelas na merda, o equilíbrio só podia ser conseguido colocando o corpo
dela no outro prato, esse corpo de flor carnívora com membros dourados.
Perdi-me um pouco, o que é mais do que compreensível em tão
labiríntica temática. Portanto, comecei a ir a pé de casa dela até à
fisioterapia, anulando a necessidade de esperar pelas lâmpadas que
aqueciam os músculos. Assim, entrava directamente para o ultra-som e
com isso poupava cerca de quarenta minutos. No entanto, entre o ultra-som
e a fisioterapia com a terapeuta Sandra, ainda havia que esperar num
corredor castanho e deprimente, ao lado de três ou quatro velhos. Os
deuses não dormiam e quando me queixei à minha namorada dessa espera
ela sugeriu que aproveitasse esse tempo para estudar. Eu recusei e ela, com
uma expressão de eureka no rosto, levantou-se e foi até à estante (nua,
lembro-me, como se tivesse sido há meia hora, da sua nudez iluminada
pelo sol da tarde e de como ela se pôs à procura nas prateleiras – e haverá
alguma coisa mais sublime do que ver a mulher amada, com quem fizemos
amor pouco antes, procurar nua por um livro?). Estendeu-me um livro de
poesia: Song of Myself do Walt Whitman.
Começa assim: «I celebrate myself and sing myself», e continua no
mesmo tom. E no dia seguinte, depois de mais uma caminhada luminosa
com auscultadores, e quinze minutos de ultra-som, comecei a ler o meu
primeiro livro de poesia naquele corredor castanho e deprimente.
Com o passar do tempo e das páginas, o corredor manteve-se castanho
mas deixou de ser deprimente. As listas vastas da euforia interminável de
Whitman ressoavam na minha mente onde também luzia, mesmo quando
fechava os olhos, toda a claridade que eu sentia colher nas minhas
caminhadas. Tudo era maravilhoso. Eu celebrava-me e cantava-me. E
festejava o corredor castanho e as cadeiras com o estofo roto e as orelhas
do velho ao lado de mim que pareciam ter crescido demais. E quando
acabava a fisioterapia saía para a rua como quem entra no paraíso e voltava
a pé para casa, onde ela estava à minha espera.
Por essa altura, eu olhava, via e guardava todas estas coisas no meu
coração. Os prédios pareciam-me belos, mas também as ruas, o céu e os
cartazes publicitários. E celebrava a cor verde e a azul e celebrava o frio do
metal tocando gentilmente nos candeeiros e a calçada dando passos lentos;
e achava que o mundo era perfeito, que Lisboa era um poema, que a
Avenida da Liberdade era um verso, que tudo era poesia. E apetecia-me
dizer, como o único poeta a quem achara graça até então (estudado nas
salas de pé alto do meu liceu): Oh, sim ena ena viva hela oh!
Às vezes apetecia-me chorar de felicidade. Adolescente que era, pensei
ter inventado a roda quando descobri que se deve olhar o mundo como o
faz um cego nos primeiros minutos em que, após milagre ou cirurgia,
recupera a visão. Olhando dessa forma descobre-se beleza nas telhas
partidas de certos telhados, em folhas de jornal presas num arbusto, até em
poças de mijo de cão no meio de uma estrada com buracos.
Fosse da poesia, fosse da luz da manhã, fosse de ter dezoito anos e estar
apaixonado, fosse da música, fosse do Verão… eu estava rejubilante. Eu
era invencível e imperturbável. Andava pelas ruas sorrindo para as pessoas,
sentindo que bastava que elas me pedissem para que eu lhes concedesse
milagres. Como Jesus, cuspiria na terra, amassá-la-ia e colocá-la-ia nos
olhos das pessoas e faria com que elas vissem. Vissem!
Achava que, depois de descobrir a beleza intensa das coisas, seria
impossível voltar atrás, seria impossível amaldiçoar o mundo. Não que não
houvesse, mesmo então, rachas e falhas e sacos de lixo à porta do meu
palácio. A alegria é líquida e quando a bebemos de um só trago deixa um
gosto levemente metálico de incompletude. O momento mais alto de uma
festa é seguido pela melancolia de saber que esse instante já passou.
Mesmo inocente e optimista, mesmo cego de amor e inundado de Verão,
eu sabia que aquele estado não poderia durar para sempre.
Já alguma vez viste na televisão aqueles concursos onde o concorrente
entra para uma espécie de cabine telefónica e tem um minuto para apanhar
todas as notas que conseguir? As notas são postas a voar por ventoinhas
que geram turbilhões de ar dentro da cabine. Os pobres coitados vêem-se
rodeados de milhares de notas mas nunca conseguem apanhar mais do que
algumas dezenas. É o excesso que os despista. E foi assim comigo na
altura. Se eu soubesse quão precários e difíceis de repetir eram aqueles
dias, talvez os tivesse estimado melhor. Hoje, recordo-me desse tempo
como se tivesse sido um longo sonho e consigo evocar apenas meia dúzia
de ocasiões nítidas, como a da estante ou um certo banho de imersão onde
adormecemos os dois e poucas outras.
Ainda chove. Talvez chova para sempre, talvez este Inverno nunca acabe
e o mar suba e inunde tudo e engula centímetro a centímetro a totalidade
dos prédios do mundo e ensope página a página todos os livros. Ou talvez
não.
Agradeço-te mais uma vez tudo o que tens feito por mim. Como és um
tipo inteligente, percebes que te vou pedir outro favor. Fiquei triste por
saber da morte da professora Helena. Ela ensinou-me a escrever e a ler e
ainda me ensinou outras coisas que não consigo resumir num verbo. Por
favor, deposita um ramo de flores na sua campa em meu nome. Uma coisa
bonita. E nada de flores mortiças ou já em declínio. Escolhe aquelas que
desabrocharam há pouco e cheiram a Primavera.
E vê se me descobres a morada da filha para eu lhe escrever uma carta.
Por tudo isto, um dia, um desconhecido entregar-te-á as chaves de
Versalhes.
XVI

Ex.ma filha da professora Helena,

Eu fui uma das centenas de crianças a quem a sua mãe ensinou a ler,
escrever e contar. Na altura, a professora Helena era uma mulher nova e,
para os meus olhos de 6 anos de idade, intensamente bela. Era, também,
uma docente extraordinária. Não só explicava tudo de forma clara e
simples, como sabia o que só os verdadeiros mestres sabem: que para bem
ensinar é preciso aprender tudo de novo. Quando dizíamos «p mais a…
pá» havia no seu pá todo o entusiasmo da descoberta que é fundamental à
aprendizagem. Como se também fosse para ela a primeira vez que p e a
equivaliam a pá. E o mesmo com dois mais dois serem quatro. Mesmo
quando se limitava a enunciar conhecimentos, fazia-o com imensa alegria,
acrescentando um silencioso não é fantástico! depois de cada afirmação. A
Terra é redonda (não é fantástico?). Portugal é banhado pelo oceano
Atlântico (não é fantástico?). O Sol é uma estrela (espantoso!). E todos nos
sentíamos contagiados e nos apercebíamos de que, sim, era fantástico que
dois e dois fossem quatro, que a Terra fosse redonda e que o Sol fosse uma
estrela.
Não só a sua mãe fazia tudo isto de forma exímia como geria
diariamente as crises, urgências, dúvidas, medos, angústias, euforias,
cansaços e sonhos de vinte e tantas crianças. Não sei se ensinam aos
professores o que fazer quando uma criança se descuida na cadeira, como
reagir com os que chegam todas as manhãs a chorar porque não querem ir
para a escola, como lidar com as ondas dos tsunamis familiares (divórcios,
lutas, irmãos mais novos, mais velhos…). Mas sei que a sua mãe, a
professora Helena, parecia saber exactamente o que fazer em todas as
situações. Como se ela já esperasse que o tinteiro da Maria fosse rebentar,
que o Pedro escorregasse e abrisse o queixo contra o banco, que a Teresa
chorasse sem motivo aparente, que o João se cortasse no dedo com a
tesoura, que a Carlota tivesse um ataque de asma, que o Diogo deitasse
sangue do nariz.
Eu na altura era um dos rapazes mais altos da aula. Não sei porquê, deu-
me para torturar o Martim, o miúdo mais enfezado da turma, que
choramingava com frequência e uma vez por mês saía a correr da aula
deixando uma pequena poça de urina aos pés da sua cadeira (nota com
explicação causal de base psicológica: acho que os pais dele se estavam a
divorciar, ou algo assim). Sempre que eu agarrava nos cabelos dele e o
imobilizava, os outros miúdos riam-se e eu sentia-me bem. Sabe como são
as crianças.
Um dia, no intervalo da manhã, ainda com o açúcar dos bolos na mão
(custavam quinze escudos cada), agarrei o Martim pelo cabelo e arrastei-o
até debaixo do terraço. Ele fazia um esforço enorme para não chorar e
dizia-me: «Larga-me! Larga-me!» ou qualquer coisa assim. À minha volta
juntaram-se alguns rapazes e duas ou três raparigas. Eu devia ter ouvido os
risos cessar, mas estava tão concentrado no sofrimento do Martim que só
quando senti um violento puxão nos cabelos me apercebi de que a
professora Helena tinha chegado.
Com a mão direita segurando-me os cabelos com força, virou a minha
cara para a dela e falou-me com raiva, e sim, raiva é a palavra exacta. Não
foi com pedagogia, distanciamento, ternura ou qualquer outro dos
sentimentos que costumavam colorir as suas palavras. Foi com raiva. E
disse: «Quem puxa os cabelos aos mais fracos, acaba com os mais fortes a
puxarem-lhe o cabelo.» Depois largou-me, e numa transformação tão veloz
quanto espantosa pegou no Martim (que entretanto, sentindo-se vingado e
aliviado, começara finalmente a chorar) e levou-o ao colo com uma ternura
divina. Sempre que me lembro dessa imagem penso num bombeiro
salvando um recém-nascido de um fogo. Enquanto ela se afastava, e dizia
ao Martim não sei que palavras mágicas de consolo, eu desatei a chorar.
Os outros miúdos dispersaram pensando provavelmente que eu chorava
da dor dos cabelos puxados. Mas não era por causa disso que tinha os
olhos com lágrimas. Chorava de arrependimento e chorava de inveja. É
que, de certa forma, eu estava apaixonado pela sua mãe. Nada mais
desejava do que o sorriso aprovador dela. Daí que, mais do que o puxão de
cabelos, fora a reprimenda que me magoara, a raiva nas suas palavras, a
descoberta de que caíra fora da sua graça. E a inveja de, por minha causa,
ver o choramingas do Martim arrebatado pelos seus braços.
Gostava de lhe dizer que desde então respeitei sempre os mais fracos e
estive ciente das injustiças do mundo e disposto a combatê-las. Não é
verdade. Devo ter batido ainda algumas vezes no Martim. Mas, por certo,
não tantas como fazia dantes. E nunca com o mesmo abandono.
Foi também uma das poucas vezes em que vi uma mulher bonita
escolher o homem mais fraco. Às vezes acho que toda a civilização se
baseia na possibilidade dessa escolha.
Desde que saí daquela escola não tornei a ver a sua mãe, embora
desconfie de que a vislumbrei por segundos num autocarro. A sua mãe
andava de autocarro? Lamento agora nunca a ter procurado, nunca ter feito
uma visita. Como parca compensação escrevo-lhe esta modesta carta. Nada
mais é do que uma vénia à memória da sua extraordinária mãe.

Agradecido e comovido
XVII

Amigo,

O meu cabelo vai crescendo devagar. Agora pareço um fósforo e estou


viciado em passar a palma da mão pelos cabelos sentindo-os picarem-me a
pele. Continuo a usar as minhas roupas de monge, que me parecem cada
vez mais confortáveis. A chuva amainou ligeiramente e voltei a correr,
embora chegue a casa sempre um pouco ensopado, o que não me impede
de saltar uns quinze minutos à corda, sendo que já o devo fazer melhor do
que uma rapariga de treze anos mas ainda estou longe de um boxeur. Vou à
cidade duas vezes por semana encantado com o verde obsceno que tinge
esta ilha. Abasteço-me de produtos de limpeza doméstica, comida, papel,
envelopes e acendalhas.
Já ouvi várias vezes todos os discos que comprei e já despachei metade
dos livros que me enviaste. Mas não te assustes sem motivo. Não te vou,
para já, fazer mais encomendas, uma vez que Herr Hector me emprestou
uma série de livros. Espero que estejas curioso por saber em que
circunstâncias.
Estava eu na praia a fazer os sprints finais na areia antes de regressar a
casa quando, vestido de fato de mergulho, apareceu o alemão. Falámos um
pouco e ele convidou-me para passar por sua casa ao fim do dia. Assim fiz.
Cedo abandonei qualquer estereótipo sobre a arrumação e organização
dos alemães. A casa é um caos, mas um caos delicioso. Bem mais
mobilada que a minha, deu-me a impressão de que ele procurava criar um
museu do kitch acumulando peças de todos os períodos, estilos e materiais.
Assim, vês mesas de acrílico ao lado de estantes de metal e andas por
tapetes sintéticos passando por secretárias de mogno iluminadas com
candeeiros à anos vinte. E tudo com um ar vivido, com pernas partidas
toscamente coladas, com lascas, mossas e arranhões à mostra. E há livros,
muitos volumes. Livros enormes sobre marés e peixes, sobre aspectos
recônditos da biologia marinha, sobre a história da pesca, sobre como
operar um sonar. Mas também romances, pequenas colectâneas de contos
em alemão, diários de exploradores, e clássicos como A Ilha do Tesouro e
(surpresa das surpresas) os livros do Sandokan.
Vi também algum equipamento de mergulho: botijas de oxigénio, fatos,
barbatanas e aparelhometros cuja função me escapa. E caixotes, uma série
de caixotes de cartão aqui e ali, como se ele se tivesse acabado de mudar.
Mas o que mais me surpreendeu foi um papagaio de cores garridas que
gritou «schnell!» aos meus ouvidos.
Fomos para a cozinha conversar enquanto bebíamos a cerveja. O
ambiente era semelhante ao resto da casa: dezenas de garrafas vazias,
pratos sujos e outros com restos de comida cobertos com um guardanapo
de papel. Despachadas as formalidades da praxe, ele perguntou-me qual
era a verdadeira razão de eu ter vindo para os Açores.
Dei-lhe a resposta que tenho dado a todos, e ele desatou às gargalhadas
levando o papagaio a grande agitação (o bicho chama-se Warum). Hector
olhou-me nos olhos e reparei pela primeira vez que os dele eram mesmo
claros, o que, contrastando com o rosto enorme e a barba farta, lhe dava
um ar de loucura. Disse-me que todos os que por ali moravam tinham uma
agenda escondida, tinham os seus motivos escuros e húmidos para o exílio.
– Nesse caso, quais são os teus? – perguntei-lhe.
– Vim para aqui para encontrar um tesouro! – afirmou, com tanta
convicção que, não fosse a gargalhada sonora, eu poderia mesmo ter
acreditado.
– Não… Foi porque matei uma pessoa na Alemanha – brincou ele.
Apesar do sorriso sarcástico que se seguiu a esta afirmação, senti um terror
profundo, como naquelas histórias em que um camponês encontra o diabo
e com ele tem um diálogo banal.
Hector falou então do seu fascínio pelo mar e tudo o que nele e dele vive,
procurando justificar assim a sua presença naquela falésia perdida do
mundo. O efeito da cerveja e o magnetismo que o alemão conseguia gerar
sempre que falava do que amava, relaxaram-me ao ponto de sentir que lhe
podia avançar uma explicação mais sincera. Disse-lhe que em Lisboa tinha
acontecido uma coisa que havia mudado a minha vida, algo cataclítico e
radical que, após algum tempo, impossibilitara uma vida sã e me obrigara a
vir para os Açores, decisão da qual não me arrependia.
A certa altura da conversa, ele convidou-me a levar uns livros
emprestados. Ao folhear as estantes e pilhas espalhadas pela sala, dei de
caras com Beached Whales, um livro sobre o fenómeno das baleias que
vão dar às praias e ficam presas na areia. Ele reparou no interesse com que
folheava o livro e disse-me que já tinha assistido a um episódio desses.
Pedi-lhe para me contar.
– Quid prod quo – disse ele.
– O quê?
– Eu conto-te a história, que é de desilusão e desespero. Mas tu também
tens de me contar uma história.
– De desilusão e desespero?
– Quid prod quo!
Aceitei a proposta e voltámos para a cozinha. Era preciso mais álcool
para soltar as línguas, para fortalecer o espírito e enfrentar os demónios
passados.
Quando andava na universidade, havia um professor homossexual que
todos os alunos adoravam, não só por ser dos poucos que ignoravam as
barreiras de currículo e idade e os tratava como iguais, como pela sua
paixão pelo que ensinava e pela forma como procurava encher tudo de
interesse. No fim do ano, um grupo de alunos organizou um campeonato
de matraquilhos e o professor cedeu a casa para o acontecimento. No
sábado à noite, quando já estávamos todos muito bebidos, ouviu-se um
estrondo e depois uma série de ruídos horríveis. Corremos para ver o que
era e percebemos que vinham da arrecadação. A porta estava trancada mas
a natureza dos ruídos que vinham do outro lado era tal que ninguém
hesitou em a arrombar. Mas não foi fácil. Quando finalmente conseguimos
entrar, já passara algum tempo em que não se ouvia nada do outro lado.
Oscilando devagar da esquerda para a direita, da direita para a esquerda,
estava o corpo enforcado do professor. As horas e dias seguintes foram
terríveis.
Não deixou nenhum bilhete escrito, nenhuma carta de despedida,
nenhuma justificação. Suspeito que a tragédia tivesse a ver com um dos
alunos que agiu de forma peculiar em todos aqueles dias e que, meses mais
tarde, quando lhe perguntei, me disse que a culpa era dele embora se
recusasse a explicar porquê. Talvez fossem amantes, talvez o professor
estivesse apaixonado por ele e tivesse sido rejeitado. Não sei. Mas a
imagem do professor oscilando na corda, uma imagem que, por muito
horrível que fosse, não era desprovida de beleza, assombrou-me durante
algum tempo.
E foi isto que, em bastantes mais palavras e de forma menos linear,
contei ao alemão. Os factos não foram exactamente estes. O torneio
ocorreu e o professor suicidou-se, mas noutra altura e de outra maneira.
Contudo, sabes como o álcool me pode levar a querer dar um tom
melodramático às minhas histórias. Aliás, melhor será dizer que o álcool
estimula o pendor natural que há em mim para o melodramatismo.
Ele, por sua vez, falou-me de um período que passou na Austrália. Ao
contrário de como faz nos Açores, nessa altura os seus horários eram
erráticos. Vivia numa espécie de comuna composta por aventureiros,
meninos ricos e parasitas. Todos faziam surf, bebiam e fodiam sempre que
se proporcionava. Num dia de alguma neblina, raro por aquelas partes, o
tipo mais madrugador acordou-os a todos aos gritos. A praia estava cheia
de baleias.
Em poucos minutos estavam todos a correr pelo areal em direcção à
visão mais surreal que Hector alguma vez testemunhou. Dezenas de baleias
piloto estavam estendidas à beira-mar. Algumas pessoas já se encontravam
por lá, todas procurando fazer alguma coisa mas meio perdidas sobre o
quê. Hector assumiu de imediato o comando e mandou que virassem todas
as baleias, para que ficassem de barriga para baixo, e se certificassem de
que os respiradores estavam limpos. Depois havia que manter molhadas as
que estavam mais longe do mar, enquanto se ia puxando as outras para
água. O grupo de voluntários pôs-se às ordens de Hector, o único biólogo
marinho ali presente.
Ninguém se queixou de cansaço, ou protestou por estar a carregar baldes
e não a empurrar as baleias ou a limpar os respiradores. Todos trabalharam
afincadamente, absorvidos pelo que estavam a fazer. Dezenas de animais
moribundos, um cheiro nauseabundo, um dia excepcionalmente húmido e
frio e as pessoas sorriam como se a felicidade fosse aquilo. Quando a
primeira baleia, após alguns movimentos tímidos, se pôs a nadar com a
graça e o assombro que lhe são característicos, todos se permitiram uns
segundos de pausa para irromper em aplausos e júbilo. Alguns soltaram
lágrimas. Logo retomaram o trabalho com entusiasmo redobrado.
A operação durou mais de dez horas. Salvaram-se dezanove baleias.
Morreram vinte. Após se certificar de que já não havia mais nada que
pudesse ser feito, Hector sentou-se no meio dos cadáveres. Estava exausto.
A noite já caíra e a luz das muitas fogueiras entretanto acesas bruxuleava
pelos corpos escuros dos cetáceos como um filme projectado num ecrã. Os
salvadores estavam divididos. Alguns exultavam e declaravam o dia um
sucesso, sentindo-se vivos e alegres. Outros eram incapazes de aceitar o
enorme número de vítimas que, após todo o esforço que haviam feito, já
não lhes pareciam animais desconhecidos, mas seres familiares cuja perda
devia ser chorada. Aos poucos iam abandonando a praia. As toneladas de
mortandade que começavam a apodrecer na costa eram um problema para
outros resolverem.
Todos felicitavam Hector e lhe davam os parabéns. Ele agradecia mas a
sua postura impedia qualquer camaradagem excessiva. Só após algumas
horas, com a lua alta, ficou finalmente só. As lágrimas começaram a
correr-lhe, céleres e quentes. Não era só em honra das baleias mortas que
chorava. Não era só pelos animais magníficos que, apesar dos seus 5 a 6
metros e quase três toneladas, se movem no mar como bailarinas num
palco. Era também porque sabia que acabara de viver o momento mais
belo de toda a sua vida.
Saí de casa de Hector perto das duas da manhã. Debaixo do braço trouxe
meia dúzia de livros, incluindo o Beached Whales. Ziguezagueei em pernas
de cerveja em direcção à minha fortaleza com a alegria de quem se sabe a
caminho de uma nova amizade e com a impressão de que a história de
Hector era tão adulterada quanto a minha. Mas se alterar os factos não
magoa ninguém e dá um pouco mais de vida ao ouvinte crédulo, porque
não contar a melhor história possível?
E assim corre a vida e gira o cosmos.

Desejando-te bem
XVIII

Queridos pais,

Estou perto de Florença a acampar com uns americanos. Alugaram um


Pão de Forma (aquelas carrinhas Volkswagen dos anos 60) na Alemanha e
estão a atravessar a Europa. São cinco. Um casal, que dorme na carrinha, e
um trio dormindo numa tenda, dois rapazes e uma rapariga com o feliz
nome de Stella. São quase todos estudantes de arte pelo que Florença é a
sua Jerusalém. Conheci-os no átrio de uma igreja em Pisa quando uma
chuva repentina nos tornou a todos refugiados. Passámos essa tarde num
café dessa cidade cinzenta a conversar sobre viagens, estereótipos culturais
europeus e hambúrgueres. Adoptaram-me sem hesitação.
O casal parece saído de um daqueles filmes de liceu, o rei e a rainha do
baile de finalistas. Até os seus nomes soam melhor juntos: Dominic and
Dalila. Ele estuda Ciências Sociais e ela História de Arte. São os dois
loiros, altos e robustos. Exalam vitalidade e optimismo, terminam as frases
um do outro, olham-se com ternura evidente e a sua piada recorrente é
fingirem que ficam muito chateados quando discutem o nome dos futuros
filhos. Do trio restante conheço mal os dois homens. O Bobby é baixo e
peludo com óculos redondos de tartaruga. É o intelectual do grupo, quase
sempre segurando um livro de um teórico francês, excedendo todos os
outros na sua repulsa pelo provincianismo americano e exaltação da cultura
europeia e irritando-se facilmente nas discussões, como um professor
obrigado a alterar os seus planos para ensinar matéria em atraso a alunos
preguiçosos. O Steve é uma incógnita. Nada na sua aparência ou
comportamento se destaca, excepto, talvez, algum ciúme da minha
proximidade à Stella.
A Stella. Acho que eras tu, mãe, que usavas petite para descrever
algumas mulheres. Pois petite é o adjectivo ideal para a Stella. Apesar do
nome americano (e lembro-me, pai, de que me levaste à Cinemateca a ver
esse filme, lembro-me dessa tarde de sol em que pela primeira vez percebi
porque tanta gente gosta do Marlon Brando), ela é a mais latina do grupo.
Estuda Belas Artes e quer ser pintora. Ou já é pintora. Nunca sei se devo
usar o futuro ou o presente a falar de artistas. É muito bonita, com uma
boca grossa e voluptuosa, olhos de boneco animado japonês e cabelo longo
e escuro, tão negro que, quando é directamente iluminado, parece prateado.
É também a única que fala italiano (com um sotaque delicioso) e pretende
estudar um ano em Itália; ainda indecisa entre Roma e Florença. Como
devem suspeitar, estou encantado com ela.
Estamos acampados num vale a poucos quilómetros de Florença. Este é
o quinto dia que estou com eles. Todas as manhãs levantamos o
acampamento e seguimos, algo apertados, no Pão de Forma até à cidade
dos Médici. O Dominic e o Bobby falam de Maquiavel, de Lourenço, o
Magnífico, das intrigas, execuções e escândalos do Renascimento. Elas,
Stella e Dalila, anseiam pela Galleria degli Uffizi, conversam sobre o
David de Miguel Ângelo e a cúpula de Brunelleschi. Eu e o Steve dizemos
pouco e saltitamos entre conversas.
Quando chegamos a Florença, formam-se duos. Dominic e Dalila, Bobby
e Steve e, claro, eu e Stella. Ela discorre sobre arte com entusiasmo e
erudição. Mostra-se também curiosa sobre mim e a minha vida,
especialmente sobre os motivos das minhas viagens. Eu falo-lhe de vocês e
do resto. Digo que ela tem de visitar Lisboa. Pode não ser Florença ou
Roma, pode não ter Miguel Ângelos ou da Vincis mas tem outras coisas. E
digo-lhe quais são.
Hoje sinto-me um pouco sufocado por arte e beleza. Foram cinco dias de
museus, igrejas e palácios, de contemplar a Catedral e atravessar a Ponte
Vecchio, de centenas de estátuas, Cristos, querubins, anunciações. Não vale
a pena enunciar as obras-primas que vi, sempre acompanhado de Stella,
explicando-me (por vezes com a ajuda de um livro) o que havia de
maravilhoso, de original, de divino nas obras de arte à nossa frente, e que
podia ser a forma como uma mão estava desenhada, o contorno de uma
capa, as cores usadas para pintar o céu, a geometria da peça, certo
pormenor anatómico ou outro detalhe ansiando ser notado.
Mas, mais do que tudo o que vinha assinalado nos livros, mais do que
aquelas obras que já vi centenas de vezes em livros, em programas de
televisão, em posters num café qualquer, o que mais me impressionou, o
que me fez quase chorar foi uma sala na Galleria degli Uffizi que visitámos
ontem.
No segundo andar há uma sala dedicada ao mito de Níobe e dos seus
filhos. Penso que tu, pai, deves conhecer a história, mas como há muitas
versões vou contar a que ouvi. Níobe era uma mulher mortal que deu à luz
catorze filhos, feito que apregoava e do qual ela se orgulhava. Os deuses
Apolo e Artémis decidem castigá-la matando-lhe a descendência. A sala
está cheia de estátuas golpeadas pelos deuses ou prestes a sê-lo, com os
corpos e os rostos muito parecidos com os das cenas de bombardeamentos
dos filmes. A atmosfera é arrepiante, como se tivéssemos interrompido os
deuses e as suas vítimas a meio de um acto de extermínio e a interrupção
houvesse transformado tudo em pedra. O espantoso é a beleza de tudo
aquilo, a possibilidade de a dor ser bela, talvez porque faz emergir nas
feições o que de mais humano possuem. Níobe é representada ainda viva,
tentando proteger a sua filha pequena e olhando para os céus com horror e
súplica.
Pela primeira vez os comentários de Stella foram um pouco irritantes.
Começou a dizer quais eram as melhores e as piores peças, qual teria sido a
sua disposição original e que se via que não devia ter sido o mesmo artista
a esculpi-las a todas, pois havia alguns pormenores grotescos em algumas
das estátuas. Nada daquilo me interessava muito, pois eu estava
plenamente absorvido na angústia que a sala emanava, a pensar na fortuna
e nos caprichos dos deuses. Tive de lhe pedir para me deixar sozinho na
sala, o que lhe desagradou e quase causava a nossa primeira discussão.
Fiquei mais de uma hora nessa sala. Senti ali aquilo que ouvi outros dizer
que sentem perante o Guernica (e que eu não senti na minha passagem
pelo Rainha Sofia). O horror não só da guerra, mas de todas as catástrofes
inesperadas que os deuses, sem mais justificação do que a de alguém se ter
orgulhado da sua fertilidade, causam. O que mais me chocou foi o rosto da
Níobe. A dor de uma mãe que perde os seus filhos. O cliché de todas as
reportagens sobre a guerra. Mas e todas as mães que os perdem sem ser na
guerra? Não sei se há alguma coisa mais horrível do que olhar para uma
mãe que perdeu um filho jovem. É uma visão que coloca tudo em causa,
que questiona toda a estrutura do universo, que abala os pilares da
existência.
A crueldade dos deuses. Era no Shakespeare, não era, pai? Qualquer
coisa de os homens serem para os deuses como as moscas para os putos
reguilas: matam-nas por diversão?
Saí da sala e fui ter com o grupo ao terraço do museu, onde fumavam e
tomavam café. A Stella estava um pouco magoada. Isolámo-nos a um
canto, com uma vista soberba sobre Florença. Tentei explicar-lhe o impacto
que a sala tinha tido em mim. Acabámos a falar de vocês e de há quanto
tempo não vos via. Ela perguntou se eu não vos estava a fazer o que
Artémis fez, ao afastar a mãe (e o pai) dos seus filhos.
Talvez seja verdade. Talvez vocês sintam às vezes que eu desapareci para
sempre. Talvez essa perda seja insuportável e estas cartas não façam mais
do que atenuar a dor. Mas é possível a uma mãe recuperar o gosto pela vida
quando os deuses levaram os seus filhos?
Quero acreditar que sim. Quero acreditar que o mundo é suficientemente
vasto e belo para permitir o luto.
Não sei se ainda ficarei muito mais tempo por Itália, mas, esteja onde
estiver, terei sempre papel para vos escrever.
XIX

Querido amigo,

Quatro dias de silêncio absoluto. Sem visitas, encontros ou conversas. A


vida resumida a uma dúzia de verbos: dormir, sonhar, correr, cozinhar,
comer, cagar, mijar, lavar, ler, escrever, lembrar, chorar. Cada vez mais
afeiçoado à minha gruta, à sala ampla com vista para o mar, à lareira quase
sempre acesa, à poltrona que já tem uma mossa na almofada de lá passar
horas e horas a ler ou apenas a segurar um livro nas mãos ou contra o
peito. Li o Beached Whales duas vezes. Contemplo as fotografias com um
fascínio que podes achar mórbido, mas que não o é, de forma alguma.
Nada me tem parecido mais belo do que os corpos gigantescos das baleias
mortas na praia. Estou cada vez mais encantado com esse animal soberbo.
Leio relatos de antropólogos que falam de tribos onde as baleias são
consideradas deuses vivos, os últimos dos seres divinos coabitando com os
humanos. E tal parece-me verdade, a mim, o mais ateu dos religiosos, o
mais religioso dos ateus. Mesmo os seus nomes são belos: leviatã, cetáceo,
baleia. O seu canto atravessa metade do planeta e há pouco mais de um
século o seu esperma iluminava as cidades europeias. OK, chega de elogio
às baleias, até porque ainda não vi nenhuma. Daqui a duas semanas ou
pouco mais, começa a época e os barcos vão sair com turistas em busca
dos últimos deuses vivos. E eu estarei lá. Pronto para me desiludir, porque
é melhor assim. Preparado para uma experiência sem alma, para ver talvez
apenas uma cauda de cachalote a umas centenas de metros e não sentir
fulgor nessa visão. Mas estarei lá. Chega de cetáceos.
Mostraste surpresa e curiosidade pelo que ocorreu após o meu Verão de
idílio, que de forma tão, como hei-de dizer, tão nua – e, pecado mortal para
qualquer narrador: sentimental – te descrevi na minha carta. Como dizia
Salinger, a felicidade é um sólido mas a alegria é um líquido. E é um
líquido que não pode ser contido, porque flui continuamente.
E assim foi. O Verão passou com a velocidade com que os verões alegres
passam. O Outono chegou. O regresso às aulas. O amor não acabou aí, não
acabou então, apenas terminou a sua invencibilidade, a deliciosa ideia
errada de que poderia superar tudo. E o que aconteceu depois é o que
acontece em muitas histórias semelhantes e que não vou narrar com mais
pormenor do que isto, não só por ser inútil, por poderes facilmente
imaginar o lento sufoco dos sonhos adolescentes pelo mundo adulto, como
por não ser o tipo de memórias que quero trazer à luz. Nestes últimos
tempos eu, ou a minha mente, ou alma, ou seja o que for, é uma floresta
encantada. Sempre que entro na floresta não tenho a certeza de que consiga
alguma vez sair de lá. Por vezes encontro unicórnios sublimes ou pequenas
fadas guardando lagos encantados, com quem partilho chocolate quente e
canto canções de infância. Por vezes converso com duendes burocráticos
vestidos de fato e gravata com relatórios anuais de contas numa mão e
calculadoras noutra. Por vezes fujo do lobo mau, do ciclope, de um ogre
niilista ou de um professor de liceu que uma vez me chamou medíocre.
Não quero entrar na floresta à procura do que correu mal no meu primeiro
amor, ou em qualquer outro. Espero que me compreendas.
Quanto à insistência do Carlos Domingues sobre se não é mesmo
possível retomar as crónicas sobre cinema: não e não e não e não e não. Já
não vou ao cinema. Embora sinta falta do escuro de uma sala de cinema, da
amplitude divina do ecrã onde um dia julguei que podia caber toda a
existência, nunca passei tanto tempo sem ver um filme. Agora que penso
nisso, surpreende-me um pouco que passe tão bem sem televisão e cinema,
sem contemplar imagens móveis a duas dimensões. Mas, se penso em tudo
o que deixei para trás, o cinema e a televisão são apenas pormenores, notas
de rodapé na lista das coisas que arderam no fogo.
Noto que esta carta está demasiado cinzenta e cheia de gotas de chuva
descendo lentas numa janela. Não quero que me aches deprimido. Podem
ser breves e raros, mas ainda há momentos em que exulto de alegria. Um
deles ocorreu esta manhã. Estava a colocar ratoeiras no sótão quando
decidi explorar um baú velho e poeirento debaixo da pequena janela.
Fiquei desiludido quando não encontrei barras de ouro ou um esqueleto.
Apenas tralha, quinquilharia, objectos mais ou menos partidos, guardados,
imagino eu, por serem símbolos tácteis de dias singularmente felizes.
Algumas bonecas de porcelana, meia cana de pesca, uma manta
esburacada, um candelabro e, surpresa das surpresas, uma caixa de música.
Dei-lhe corda e esperei pela melodia, mas não funcionou. Trouxe-a comigo
para a sala e passei a manhã a tentar arranjá-la.
Estive hora e meia, ou mesmo mais, completamente absorvido em cada
roda dentada, arame e peça. Consegui arranjá-la substituindo um arame
partido. Quando finalmente lhe dei corda e ela tocou a sua melodia (o Für
Elise de Beethoven), senti-me, como se diz nos seminários de auto-ajuda,
profundamente realizado. Naqueles minutos divinos com o plinc ploc
metálico reproduzindo a música que o austríaco havia imaginado séculos
antes, esqueci-me por absoluto da floresta encantada. Não pensava nem em
ogres nem em unicórnios, nem em memórias do cinema ou de Lisboa. Não
me assaltavam dúvidas, remorsos ou lamentos. Fora da sombra da morte,
eu apenas contemplava a caixa de música, o seu interior nu, a sua manivela
prateada, e escutava com uma atenção total cada nota, sentindo uma alegria
indescritível na sua cadência.
E depois passou.
Adivinho já o que pensas desta historieta e a tua preocupação com a
minha, como dizes, «obsessão com a redenção». Não te iludas. Não houve
nada de redentor na caixa de música. Foi apenas um momento fora do
tempo, um desvio breve por águas límpidas na travessia de um rio
lamacento. Mas eu sei que haverá mais desvios destes.

Abraço-te
XX

Ex.mo Senhor Dr. Pereira,

Devo começar de forma abrupta, e apresentar-me como certos narradores


apresentam as personagens antipáticas-depois-simpáticas, fazendo-as, na
sua primeira aparição, responder a qualquer frase cordata e formal com um
comentário sincero mas chocante, mostrando independência de espírito,
ironia e má-criação. Aqui vai a minha: apenas lhe respondo e apenas li a
sua carta para acalmar o nosso amigo comum que teme pela minha vida e
me supõe louco. Acredito que o senhor seja um profissional honesto, que
tenha o ar limpo e sofredor dos terapeutas, aquele aspecto de padre sem
vícios, que esteja treinado em ouvir os maiores horrores sem mostrar
perturbação. Suponho até que a sua empatia (como vocês adoram esta
palavra!) pelos seus pacientes seja sincera e genuína, que haja compaixão
pelo sofrimento dos neuróticos borderlines psicóticos que o visitam. Penso
também que não estarei muito longe da verdade quando adivinho crises de
consciência, debates intelectuais, muitas horas gastas em opor corpo e
mente, biologia e psicologia, medicação e interpretação, e em releituras de
Freud com comentários à margem e talvez até palestras sobre a televisão e
o narcisismo.
Além disso, aprecio a sua capacidade para escrever uma carta e enviá-la
para a morada certa. Pode parecer insignificante, mas tão poucos o fazem
que me convenci de que é uma das mais difíceis tarefas para o homem
moderno, seja isso o que for. Pela gentileza epistolar mostrada e para bem
do meu amigo, que tem feito por mim mais do que Buda fez em defesa do
cabelo rapado, vou até responder a cada uma das suas questões:
De que tenho medo? De que as pessoas deixem de escrever cartas. De
cavalos castanhos com manchas brancas no pescoço com a forma da Suíça.
De ecrãs de televisão com estática. Das pessoas que escrevem livros
ditados por divindades mas com má gramática. De homens que usam uma
pala no olho sem ser preta. De palhaços com os pés pequenos. De
vampiros mal vestidos. De canalizadores que assobiam Wagner. De
relógios em que os ponteiros não se mexem mas que fazem tic-tac. De
anões muito altos e gigantes muito baixos. De arranha-céus em que
ninguém está apaixonado. E penso que chega.
O que me traz alegria? O atacador desatado de um miúdo de seis anos
com um mau corte de cabelo. O cheiro dos livros. Quando um arroto
acumulado durante meia hora finalmente se solta. A página 107 da edição
da Penguin do The Heart is a Lonely Hunter. O ruído de um projector de
cinema. A ideia de que o Charlie Chaplin existiu mesmo, da mesma
maneira que eu agora existo. Um homem que beija uma mulher depois de
ela lhe dar um estalo. Horóscopos demasiado específicos («terça à tarde
cuidado com os dentes»).
Como era a minha relação com a minha mãe? E com o meu pai?
Imagine um casal de classe média sem nada de peculiar. O marido ama a
mulher, a mulher ama o marido. Ambos amam os seus filhos. Ambos vêm
de famílias onde foram amados. Como em todas as famílias, existem
alguns desequilíbrios. Há quem se sinta menos amado, quem se sinta
menos apreciado, quem se sinta pressionado. Mas a vida continua. Como
burgueses que são, preocupam-se com a boa educação, a higiene e a
cultura, sem achar que qualquer destas deva ter predomínio sobre as outras.
Eu cresço como as outras crianças que andam na escola comigo. Os meus
pais são parecidos com os pais deles. Vemos os mesmos programas de
televisão, brincamos com os mesmos brinquedos e visitamo-nos uns aos
outros. As nossas mães fazem os mesmos lanches de limonada e sandes de
fiambre e queijo. Eu cresço e os meus pais vêem-me crescer. Não intervêm
nem a mais nem a menos. Respeitam as minhas decisões mas não deixam
de criticar ou louvar quando acham necessário, indo as ocasiões e a forma
como o fazem de encontro ao que eu esperaria que eles fizessem. Serve
para si?
O que me faz triste? Paragens de autocarro vazias à chuva. Quando
morre um cão cujo dono é uma criança. A página 107 da edição da
Penguin do The Heart is a Lonely Hunter. Pensar na vida sexual dos
bibliotecários com bexigas na cara. O Mi bemol tocado num piano de
cauda. Pensar na vida espiritual dos managers de hedge funds. Balões
rebentados no asfalto. A irreversibilidade do tempo. Que o café seja
servido frio.

Espero tê-lo esclarecido. Espero que informe o meu amigo da minha


saúde mental. Espero que tenha sorrido ao ler esta carta.

Com cumprimentos que não são os melhores mas são muito bons
XXI

Querido amigo,

A vida social regressou. No meu jogging matinal cruzei-me com o Dr.


Viana e convidei-o, e à mulher, para tomar chá. Passei o resto do dia a dar
um ar decente à minha toca, arrumando papéis e livros, limpando migalhas,
lavando loiça.
Às cinco horas em ponto, chegaram com os seus sorrisos suaves e um
bolo de laranja. Elogiaram a casa e o chá que lhes preparei, sentámo-nos e
fizemos a conversa expectável de pessoas cosmopolitas e sofisticadas que
somos. Os temas fluíam sem dificuldade. Ela é entusiasta e emotiva e ele
tem humor e muita cultura. Contudo, basta mencionar o seu filho para que
ocorra uma metamorfose. Isso faz-me suspeitar ainda de que ocorreu
alguma coisa grave ou mesmo tremenda entre eles e o filho viajante. Se por
um lado a mãe agradece qualquer oportunidade de palrar sobre o filho, por
outro o marido parece vigiar o seu discurso chegando mesmo a interrompê-
la e a mudar de assunto. É tudo um pouco edipiano e bizarro, o que me dá
pena porque as migalhas de informação que ainda consegui sacar da mãe
mostram um miúdo fascinante. Não só é um viajante à moda antiga como
parece ter uma paixão por cartas quase tão febril como a minha. Perguntei
se eles se importavam de que eu escrevesse ao seu filho. Ela sorriu e
pareceu-me que ia responder de forma afirmativa, mas o marido
interrompeu-a mais uma vez e, na sua forma suave e tranquila de falar, na
sua autoridade de médico que descreve passo a passo o tratamento e os
efeitos secundários, explicou-me a impossibilidade de eu me corresponder
com o seu filho, pelo menos por enquanto. As razões que avançou eram
todas, como seria de esperar, sensatas e justas. A própria mulher mudou de
expressão e anuiu significativamente ao ouvi-las. Como consegues
imaginar, tudo isto contribui para adensar o mistério e deixa-me morto de
curiosidade.
O reverso da medalha é a especulação delicada que o casal Viana faz
sobre o meu exílio. Também eles se apercebem de que existe toda uma
história tremenda e também eles vão tentando, como se diz, tirar nabos da
púcara. Eu tenho a vantagem de ser só um e de estar unido comigo mesmo,
deflectindo as suas inquirições com facilidade, às vezes mesmo com gozo.
Por outro lado, quando eles se foram embora fiquei com alguma pena de
que usemos todos estes subterfúgios, mentiras, máscaras. Pus-me a pensar
em como seria se dissesse a verdade, se revelasse tudo o que aconteceu.
Não só a eles mas também a Hector, ao senhor Joaquim e a quem mais
desejar. Não duvido de que, tal como eu tenho as minhas imaginativas
teorias sobre o que aconteceu entre o filho Viana e os seus pais, também
correm por aí histórias mais ou menos sórdidas sobre mim.
O teu amigo psiquiatra escreveu-me. Também ele quer que eu fale sobre
aquilo-que-aconteceu, mesmo que por carta. Pretende, por certo, um
grande breakthrough, uma cena de choro no divã, a redenção pela
revelação. Mas, se eu fizesse isso, como iria ele estender-me os lenços de
papel para limpar as lágrimas? Qual é a maneira epistolar de fazer tal
coisa? Contudo, não te preocupes: como forma de te agradecer (e espero
que compreendas quão vasto é o agradecimento) e por respeito a um
psiquiatra que tenta fazer diagnósticos e terapia por carta, responderei às
suas cartas como respondo às tuas.
Em anexo segue uma pequena lista de livros e dois ou três nomes de
pessoas de quem preciso de saber as moradas; sei que os teus fabulosos
dotes detectivescos serão capazes de as descobrir. És o meu Sherlock sem
Holmes, o meu Poirot desbigodado, o meu Padre Brown latino.
Muitas das nuances do meu lanche com os Viana ficaram por contar.
Suspeito que não os consigo descrever adequadamente. Imagina-o como
um aristocrata inglês com uma vida sexual verdadeiramente agradável,
naturalmente não com a sua mulher mas com uma freira alemã de visita a
Londres. E imagina-a como a Virginia Woolf a tentar desempenhar o papel
de uma mãe de família americana numa sitcom. Mas mesmo assim não
chega.
Fica para a próxima.
Espero que saibas que não me deito sem pedir a todas as divindades
presentes na Enciclopédia Religiosa de Dias Garcia que façam todas as
tuas horas leves e mantenham pão estaladiço na tua mesa e champôs com
amaciador no teu duche, e que abençoem a tua família com mel, ouro,
saúde e a certeza de que vivemos no melhor dos mundos.

Um abraço do fazedor de chá


XXII

Querido amigo,

Jantei com o Hector no restaurante da praia. Tenho de me conter para


não desatar a rir sempre que ele salga a comida como se a quisesse
conservar para o próximo milénio. Se houver um paraíso, este gesto
garantir-lhe-á a entrada. Conversámos sobre animais marinhos e livros de
piratas. Somos ambos grandes adeptos de Emílio Salgari e do seu herói
Sandokan. Disse-lhe que uma vez estive quase a aprender italiano para ler
os livros no original. Não sei porquê mas ele achou que era uma das coisas
mais hilariantes que ouvira. Quando lhe perguntei porque se ria tanto,
disse-me que achava graça «a pessoas como eu». Inquiri o que ele
pretendia dizer com «pessoas como eu». «Pessoas que ponderam aprender
uma língua nova para ler no original um livro de que gostaram muito.» Boa
resposta, não? Vou tentar transcrever em discurso directo a argumentação
dele:
– Pessoas como tu estão sempre desesperadas por provar o seu amor seja
pelo que for. Mesmo por um livro. Não se contentam em amar um livro de
forma quieta. Têm de ir aprender a língua original, têm de o decorar, têm
de o tatuar nas costas. Achas mesmo que vai ser diferente em italiano? Que
vai ser melhor? Conheço muitos biólogos marinhos assim. Só que não é
por livros… é por golfinhos. Há tanta maricagem à volta dos golfinhos que
mesmo eu às vezes odeio esses filhos-da-puta. Conheci gente que gostava
mais de golfinhos do que de pessoas. Sabes aquelas casas cheias de posters
de golfinhos? E vais mandar uma mija e o sabonete tem a forma de um
golfinho e a toalha tem golfinhos e as estantes têm livros sobre golfinhos e,
foda-se, até a foder devem imitar os golfinhos…
E depois o enorme alemão ruivo pôs-se a representar um homem a foder
imitando um golfinho. Ri-me tanto que achei que o meu cérebro ia
rebentar. O senhor Joaquim, que veio a correr da cozinha quando ouviu os
guinchos, ao olhar para a performance de Hector teve a mesma reacção
que eu. Em alguns segundos a sua mulher e filho também estavam a
rebolar de riso. As lágrimas corriam-me pelo rosto e arfava como um
asmático.
Enquanto acalmávamos dei uma palmada amiga nas costas do alemão e
disse que «já não me ria assim desde que» e parei. Parei porque me lembrei
da última vez em que me rira assim… Não preciso de te dizer mais.
Por mais que o tentasse disfarçar, o alemão percebeu a minha mudança
abrupta de disposição. Deve ter sido tão drástica que, por pudor, ele não
perguntou nada. Bebemos e comemos um pouco em silêncio. Depois
falámos dos Viana. Apesar de também achar que deve ter ocorrido alguma
coisa entre eles e o filho, Hector não sabe mais do que eu e não está
interessado no mistério.
Hoje terminei de ler todos os livros que tenho cá por casa. Não me
apetecem releituras, por isso vou investigar os alfarrabistas da cidade,
recomendados pelo excelentíssimo Dr. Augusto Viana durante o nosso chá
cordato do outro dia.

Saudações insulares
XXIII

Queridos pais,

Sei que desejariam ver-me de volta e mostrar-me a vossa ilha que


conheço tão mal. Sei também que especialmente tu, mãe, querias que me
deixasse de apaixonar por Stellas e Ellens em galerias de arte e favelas
indianas e voltasse a Portugal e me apaixonasse por uma Maria ou Joana
que fosse bonita, mas não demasiado, e se possível que viesse de uma
família cheia de primos e irmãos, todos de cabelo lavado e cortado e
camisa para dentro das calças, com cursos de Direito, Engenharia e
Medicina. Sei disso tudo, mas tenho de vos desiludir mais uma vez e dizer
que estou em Praga perdidamente apaixonado por uma Christine. Não foste
tu, pai, que tiveste uma namorada francesa quando vinhas fazer aqueles
tratamentos à asma em Paris? Pois agora sou eu que tenho uma namorada
francesa.
Conhecia-a na Ponte Carlos. Esta é uma das pontes mais famosas do
mundo. Mais uma vez farei de guia turístico. A ponte é do século xiv e liga
a parte antiga da cidade ao caminho pedonal para o castelo. As ruas à sua
volta são lindíssimas, cheias de prédios que são pequenas maravilhas
coloridas. Se tivesse de classificar o estilo arquitectónico de Praga, usaria a
expressão «monumentalidade anã». A ponte é flanqueada por 75 estátuas, a
maioria de estilo gótico. Durante o dia está cheia de artistas fazendo as
mais variadas habilidades para sacar uns trocos aos milhares de turistas que
a atravessam.
Aconteceu de manhã. Após um pequeno-almoço singelo, mas saboroso,
na pensão húmida onde durmo (num quarto com mais nove pessoas), fui
percorrer as ruas desta cidade de conto de fadas na minha habitual euforia
de deslumbramento (que é, digo-o mais uma vez, a maior dádiva que vocês
me deram). Atravessei a ponte devagar, vendo o sol bater nas muitas
cúpulas de igrejas, nos prédios coloridos e no Reno. Ouvi as bandas de
jazz, maravilhei-me com as bolas flutuantes dos malabaristas e senti um
certo temor dos homens estátua. Quase no final da ponte, no meio do
barulho e da confusão, ouvi uma das cantatas de Bach que tu, pai,
costumas ouvir quando te fechavas no teu escritório a escrever artigos
sobre disfunções hormonais (ou outro tema deste tipo). Dirigi-me para a
origem da melodia e vi, para minha surpresa, que era executada em copos
de água; para ser preciso, três filas de copos de variados tamanhos com
diferentes quantidades de água. O músico tocava molhando os dedos e
passando-os pela borda do copo, tudo a uma velocidade incrível. O músico
era uma: Christine, como já devem ter adivinhado. Acabei por ficar hora e
meia a seu lado, ouvindo-a tocar e conversando. Combinámos
encontrarmo-nos ao fim do dia em frente ao castelo.
Passei o dia subindo e descendo esta cidade maravilhosa onde metade
dos cafés têm Kafka no nome e as casas estão pintadas em mais cores do
que as que existiam naquelas caixas de lápis Caran d’Ache que vocês me
compravam no princípio do ano lectivo. Cheguei ao ponto de encontro, um
largo à frente do castelo, algum tempo antes da hora marcada. A apenas
uns metros havia um miradouro que explorei de imediato. Qualquer coisa
no rio e nos telhados cor de laranja, nas ruas a subir e descer e na
arquitectura confusa me lembrou Lisboa. Senti uma saudade enorme da
minha cidade, de Portugal e de vocês. E ao mesmo tempo senti-me
incrivelmente feliz por estar ali naquele momento. À entrada do castelo um
qualquer estudante de música tocava violoncelo recolhendo moedas num
chapéu. O dia morria lentamente, tingindo a cidade de novos tons. Uma
brisa morna soprava e agitava as árvores do pequeno bosque em frente a
Praga. Percebi que queria que aquele momento durasse para sempre, o
instante imediatamente antes da chegada de Christine, o momento em que
percebi que, como no poema, a vida me ia fazer o que a Primavera faz às
flores.
E então ela chegou.
A Christine tem olhos verde-azulados e longas pestanas. Tem algumas
sardas no nariz, que é pequeno e arredondado, e muitas nos braços. É alta e
magra com os ossos dos ombros visíveis. Tem os pés grandes e os dedos
das mãos são compridos e elegantes, com as unhas arranjadas. A boca é
muito larga e vermelha, o tipo de boca que, se não fosse um dente
deliciosamente torto, seria ideal para um anúncio de batom. O cabelo é
castanho-claro e muito liso, normalmente atado num rabo-de-cavalo mas
por vezes solto e caótico como se ela tivesse acabado de sair de uma festa
de fox-trot. Quando se ri, duas covinhas perfeitamente esféricas formam-se
nas suas bochechas, as quais envermelhecem com facilidade. Por pudor
não mencionarei os seus seios, excepto para dizer que são perfeitos.
Ao contrário do que seria o teu desejo, mãe, a família dela nada tem a
ver com a clássica família católica burguesa de Lisboa ou do Porto. O pai é
um ex-hippie dono de uma oficina que repara instrumentos musicais (o
talento musical deve ser genético, pois o tio é o mais famoso afinador de
pianos de Paris). A mãe é jornalista numa revista cultural. Existe um irmão
mais velho que trabalha num banco (é a ovelha negra da família) e um
irmão mais novo que está a fazer um mestrado sobre o genocídio (imagino-
o um humorista). A Christine está em Praga a aprender a arte de tornar os
copos de água em instrumentos. Aparentemente o maior mestre do mundo
é um tal de Thomas Havel que espero conhecer em breve.
Começámos a viver a nossa história de amor apenas há quatro dias, os
quais não descreverei por falta de talento, mas que espero que possam
imaginar.
Não sei se é preciso explicar porque me apaixonei por uma bonita
francesa que toca Bach em copos de água. Mas, além de ser uma bonita
francesa que toca Bach em copos de água, existe em Christine uma
vontade de viver tão pura e luminosa que quase me assusta. Não que ela
seja o tipo de pessoa exuberante cujo carisma contagia todos ao seu redor e
os faz querer cantar, rir e celebrar. A Christine fala pouco. Não é
exactamente tímida, mas parece estar-se nas tintas para o que as pessoas
acham dela, não fazendo o mínimo esforço para convencer ou seduzir
alguém. E, no entanto, como os seus olhos se abrem e como ela sorri
perante qualquer dos milagres banais de que o mundo e Praga estão cheios!
E aqui estou eu, longe de vós, apaixonado em Praga, vivendo a minha
vida como se fosse um livro. As coisas que me acontecessem são tão
extraordinárias que sinto que, às vezes, até vocês devem duvidar de que
sejam verdade. Mas são. Eu próprio fico perplexo, mas é o que acontece
quando se aceita a estrada e o imprevisto. Muitas vezes tenho discussões
convosco na minha mente. Oiço os teus argumentos, pai (e vejo o teu olhar
de saudade, mãe), e apresento os meus. Ou o meu, singular, pois só um é
suficiente e só um existe: a minha felicidade. É por ela que vocês têm de
aceitar o sacrifício da minha distância, aceitar que a única prova material
da minha presença sejam estas palavras, sejam estas cartas enviadas de
outro mundo.
Estes dias em Praga têm sido de uma leveza de conto de fadas. Parece-
me que se saltasse sobre uma formiga ela continuaria a andar sem me saber
às suas costas. A pele da Christine é a minha nova estrada e percorro-a
como num sonho acordado. As cúpulas das igrejas são verdes e os prédios
são baixos e coloridos. Existem pessoas que tocam Bach em copos de
água. Existem pessoas que têm de deixar tudo para trás para servir o seu
Messias. Aos que foram deixados para trás, resta apenas saber que os que
partiram o fizeram porque o tinham de fazer.
A minha felicidade é o Deus ao qual vocês têm de se sacrificar. Mas
percebam que é uma felicidade com espaço para a melancolia, para o
lamento e para a saudade. Não só de vocês, mas de tudo. Mesmo do que
ainda não vivi. A ausência de botões de pause ou rewind na vida torna-a
um fluxo imparável, um rio sem barragens possíveis. Estou apaixonado por
Christine mas sei que o nosso amor não tem muito por onde crescer.
Poderá ser «eterno enquanto dura», como diz Vinicius, mas, mais do que
isso, acho que terá de fazer o que Robert Frost diz que a vida faz:
«Compensar em altura o que lhe falta em comprimento.» Viver em viagem
é saber que as paisagens de hoje ficarão para trás amanhã. Que o Verão só
dura até ao Outono, que só dura até ao Inverno, que só dura até à
Primavera, que só dura até ao Verão, mas já outro Verão. De momento a
ideia de não ver mais Christine provoca-me tonturas e enjoos. Quando a
abraço, o mundo parece-me completo e perfeito. E sei que, como a canção:
«o que será, será.» O que será, será. Estou pronto.
Espero que a notícia do meu coração apaixonado e o relato de momentos
de tão sublime amplitude aumente um pouco a altura dos vossos dias.

Do vosso filho que vos ama


XXIV

Ex.mo Guru Conselheiro Espiritual Motivational Speaker Membro


Honorário do Comité da ONU para o Progresso da Paz Entre os Povos, Dr.
Cassius Advindus,

Como diz Vossa Excelência, no primeiro capítulo da sua obra Deixe a


Vida Inundar o Seu Viver, não fui eu que encontrei os seus escritos mas
eles que me encontraram, meio escondidos atrás de uma pilha de livros em
segunda mão num alfarrabista barbudo numa ilha dos Açores. Atraído
pelas cores vibrantes, li o extraordinário título e, através de um autocolante
redondo, soube que tinha vendido mais de três milhões de exemplares por
todo o mundo. Abri o livro com a curiosidade de saber o que tinha
interessado a tanta gente. A primeira frase intrigou-me: «A maior parte das
pessoas não sabe que uma flor é uma flor.» Ora aí estava um facto que eu
desconhecia. Até então tinha vivido a minha vida achando que as pessoas
sabiam o que era uma flor. Mas não me tome já por tolo, percebi que era
uma metáfora. As coisas espirituais não podem ser ditas directamente em
frases como «se o João tem cem escudos para comprar maçãs…». Têm de
ser lançados mistérios, enigmas cuja reflexão colocará em causa os frágeis
alicerces sobre os quais muitos edificaram a sua existência, para que do
ruir desses alicerces se ergam novos e belos templos a uma vida mais
genuína. Veja lá! Já estou a escrever um pouco como Vossa Excelência!
Mas divago. Permita-me um parágrafo.
Atraído pela primeira frase, folheei o seu livro. Espero que me perdoe,
mas devo dizer-lhe que me ri muito ao ler o índice e pequenos trechos. Não
me leve a mal, mas na altura eu era um burguês iludido, longe do caminho
da salvação. Acabei por o comprar (ainda por cima barato, já que era em
segunda mão) e levá-lo para casa. Li-o com atenção e um lápis. Está cheio
de sublinhados e notas. Como é possível que a minha citação da primeira
frase pareça descontextualizada e trocista, procuro corrigir o erro
transcrevendo o primeiro parágrafo:

«A maior parte das pessoas não sabe que uma flor é uma flor. Podem
pegar numa rosa, cheirá-la, sentir a macieza das suas pétalas entre os seus
dedos, mas não compreenderão a essência da rosa. E assim como fazem
com uma flor, fazem com a vida.»

O Mestre (posso tratá-lo por Mestre?) mostra logo, nestas curtas linhas,
que o livro trata de temas importantes e grandiosos, que contém lições
valiosas e desconhecidas da maioria dos seres humanos. Além disso, faz
um diagnóstico preciso do estado da humanidade nestes terríveis tempos
em que vivemos, onde as pessoas cheiram flores sem compreender a sua
essência e fazem com a vida o que fazem (ou seja, não fazem) com as
flores.
Ainda em pé no estabelecimento algo desarrumado do barbudo
alfarrabista, li com muita atenção a contracapa. Fiquei a saber que o Dr.
(posso tratá-lo por Dr.?) sofreu uma profunda crise espiritual aos 30 anos
(e que idade para se sofrer uma crise espiritual!!) que o levou à Índia, ao
Tibete e ao Médio Oriente. Que estudou todos os textos sagrados de todas
as religiões e, com a ajuda dos seus vastos conhecimentos de física
quântica, psicologia, astrologia, numerologia e cabala, criou uma filosofia
de vida que conjuga Cristo e Buda, Freud e Iemanjá, os chacras e o yin e o
yang e outras essências, energias e forças motivacionais. Mas o que me
convenceu de que Vossa Sabedoria (posso tratá-lo por Vossa Sabedoria?)
era genuíno e não uma fraude foi a foto na contracapa. Não sei se já
reparou, mas muitos dos gurus de auto-ajuda têm uns enormes e perfeitos
dentes de uma brancura extraordinária. Não posso acreditar na palavra de
alguém com uns dentes tão brancos (não me pergunte porquê) e foi por isso
que, quando vi a sua cara rechonchuda com dentes amarelados e
irregulares, percebi que se tratava de alguém na posse de verdadeira
sabedoria.
Contudo, senhor Cassius Advindus (posso tratá-lo por Cassius
Advindus?), ao ler com muita atenção as suas inspiradas palavras
surgiram-me algumas dúvidas que gostava de ver esclarecidas. Primeiro,
no capítulo oito, «Libertando a amplitude cósmica da consciência», o
Senhor diz que existem exercícios simples e não dispendiosos que se
podem realizar para «libertar a amplitude cósmica da consciência» e
«conseguir tudo o que genuinamente queremos». Isto, naturalmente,
entusiasmou-me bastante pois eu sou o tipo de pessoa que quer «conseguir
tudo o que genuinamente quer». Mas fiquei chateado quando li que podia
saber mais sobre esses exercícios lendo o seu outro livro, O Amor
Expandido: Descubra que Além dos Limites não há Limites. Comprei esse
livro e li-o. E fiquei furioso quando percebi que os exercícios eram apenas
um pequeno vislumbre do que seria possível alcançar frequentando um dos
seus workshops «Viva, Finalmente!».
Vossa Excelentíssima Fraude (posso tratá-lo por Vossa Excelentíssima
Fraude?) perceberá que foi apenas o meu cepticismo e espírito burguês e
materialista, talvez mesmo a presença horrível do Medo dentro de mim,
que me fez duvidar das boas intenções e espírito messiânico que o inspira,
até porque, como vem escrito na contracapa, a sua fundação realiza
grandes doações para a caridade. Não obstante, tenho de continuar a
apresentar as questões e dúvidas que me assaltaram aquando da leitura das
suas obras.
Não crê Vossa Idiotia (posso tratá-lo por Vossa Idiotia?) que leva a
metáfora do Medo e do Amor, por vezes, demasiado longe? Vou citar:

«Foi o Medo que levou Hitler a fazer o que fez, tal como é o Medo que
leva um homem a violar e matar. E Medo do quê? Do Amor que há dentro
deles, pois cada um de nós tem reservas ilimitadas de Amor. O problema
do Mal, que muitos pensadores tentaram resolver durante milénios, tem
uma solução fácil: o Mal é a incapacidade de cada um de se ligar à fonte de
Amor dentro dele.»

Imagino que se Kant tivesse sabido isto teria tido bastante mais tempo
livre. Mas, até agora, tudo o que Vossa Cretinice (posso tratá-lo por Vossa
Cretinice?) afirmou é apenas estúpido, foleiro, mal escrito, com
demasiadas maiúsculas (parece um texto em alemão) e relativamente
inofensivo. Mas não basta ao Dr. Bastardo (posso tratá-lo por Dr.
Bastardo?) apregoar a sua filosofia e exercícios de expansão do absurdo.
Tem de atacar a concorrência. É aqui que eu me irrito. Passo a citar:
«Um dos problemas da Humanidade é que o verbo mais conjugado não é
amar, mas comprar.»

«A vida burguesa materialista da classe média do mundo ocidental é um


exemplo claro da alienação espiritual do mundo moderno, onde ter é mais
importante que ser, e onde somos todos reduzidos a autómatos ao serviço
do Sistema.»

«Vivemos nos mais tristes tempos com mais fome e mortandade do que
em qualquer outra altura da espécie humana. Desligamo-nos do Divino e
de nós mesmos e vivemos vidas de Medo, a olhar constantemente para o
tamanho do carro dos vizinhos, ignorando que uma flor é uma flor, e que
basta dizermos Sim, realmente dizermos Sim, para acedermos às fontes
inesgotáveis de Amor em nós.»

Não lhe vou explicar, senhor Hemorróida (posso tratá-lo por senhor
Hemorróida?), tudo o que há de errado no seu amontoado de clichês. Mas
vou fazer-lhe uma confissão. Também eu me dou por vezes a pensar em
moldes semelhantes aos seus. Também eu começo frases como «Vivemos
nos mais tristes tempos» ou «um dos problemas da humanidade», mas a
forma como continuam é diferente. Por exemplo, eu acho que um dos
problemas da humanidade é a quase ausência de balões nos céus das
cidades. Se uns biliões de balões coloridos fossem largados com frequência
nas ruas de Londres, Paris e Teerão, as coisas correriam bastante melhor. E
dou comigo a pensar que «vivemos nos mais tristes dos tempos» porque já
quase ninguém usa monóculo, cartola, luvas, há poucos duelos e é muito
raro apanhar um autocarro num qualquer lugar do mundo e discutir Jane
Austen com o passageiro do lado. Agora imagine que eu tentava que todos
pensassem como eu?
Devo, ainda, dizer-lhe que discordo do Ex.mo Palhaço (posso tratá-lo
por Ex.mo Palhaço?) e acho que, para grande parte das pessoas, ser ainda é
mais importante do que ter, e que a maior parte de nós, mais do que estar
preocupada com o tamanho do carro dos vizinhos, está preocupada em
cuidar da família, dos amigos e do trabalho. E devo dizer que não acho que
vivamos tempos terríveis, de crise ou medo, mas sim que vivemos na mais
feliz, próspera, luminosa, tremenda, insuperável das eras, nem que seja
porque é a única que eu conheço, a único da qual eu posso dizer que
respirei o ar. E quanto às vidas autómatas, devo avisá-lo de que esse
insulto, por muito que seja um chavão antigo, me ofende, e que, até Vossa
Cretinice pedir desculpa à «maioria das pessoas», caso eu me cruze com
Vossa Estupidez, lhe darei umas quantas bengaladas. Porque não há vidas
autómatas, vidas alienadas, apenas biliões de pessoas enfrentando na sua
maneira única e irrepetível essa besta multiforme e gloriosa que é a vida. E
se Vossa Defecação Cerebral não gosta, pois que vá para a autómata que o
pariu.
Tenho dito.

Um leitor atento
XXV

Querido amigo,

O tempo melhorou e a Primavera parece estar a chegar. Daqui a duas


semanas vou procurar ver baleias.
Iniciei algumas dezenas de cartas que acabei por amachucar e projectar,
com ambas as mãos, para os diversos cantos dos meus aposentos. Nos
últimos dias habita-me uma irrequietude. O tempo melhorou um pouco,
apesar de alguma neblina e do ocasional e previsível chuvisco.
O Hector passa os dias no mar. Encontrei-o outro dia na praia a preparar
o barco e pedi-lhe para me levar ao mar um dia destes. Recusou-se,
argumentando, meio na brincadeira, que eu não tinha estofo de marinheiro.
Respondi que ele não queria era ter de partilhar o tesouro comigo, que
queria os dobrões de ouro todos para ele. Foi então que ele me fez esta
estranha pergunta:
– Não tens medo de te afundar?
– Não... – respondi, mas sem certeza do que dizia, vendo na palavra
afundar contornos que o alemão provavelmente ignorava.
– Nesse caso, talvez um dia te leve – e piscou-me o olho.
E este foi o único diálogo que tive nos últimos dias. Não por falta de
oportunidade. Agora que os meus arredores estão ainda mais verdes e
vibrantes, o número de visitantes da pequena enseada aumenta e não
apenas aos fins-de-semana. Por vezes sou atacado de misantropismo e
odeio com violência as figuras pequenas que vislumbro da minha varanda.
Odiar é um termo demasiado forte. Afinal, nunca fui especialmente dado a
misantropismo, malthusianismo, especismo ou qualquer outro sistema
intelectual que compare homens a insectos, sendo eu até mais propenso a
querer fazer como Cristo pediu e amar todos os homens como Ele nos
amou, entregando-me por vezes a orgias de ternura (que me esforço por
manter secretas) na presença de velhas que vejo escarrar, adolescentes com
demasiadas borbulhas e qualquer tipo de manetas, incluindo os com
ganchos a fazer de mão. Assim, ontem, atacado por saudades da espécie
humana, visitei os Viana. Ele estava na cidade a tratar de assuntos, mas a
mulher ofereceu-me chá e pão-de-ló, que, claro, não recusei.
Aproveitando a ocasião de estar a sós com ela, consegui navegar na
conversa para o seu filho. Senta-te pois à mesa, querido amigo, põe o
guardanapo ao colo, diz graças porque saiu-me o jackpot. Não é que a
senhora Teresa Viana – não acreditando que as suas descrições
mirabolantes, projectadas com um orgulho materno incandescente,
fizessem justiça ao seu filho – quis corroborar a sua narrativa com factos?
E fê-lo dando-me a ler duas cartas dele. A forma ofegante e embaraçada
com que mas entregou e me pediu para não dizer nada ao marido levaram a
que me sentisse em pleno adultério. Prometi-lhe, como um amante faria,
toda a discrição e agradeci-lhe vivamente, o que não foi difícil pois fiquei
muito satisfeito, como podes imaginar. Satisfeito não está correcto: é
melhor dizer eufórico, em estado de graça. A minha curiosidade era tal que
me preparava para ler a carta ali mesmo, em frente à chávena de chá vazia
e ao prato com as migalhas do pão-de-ló; o que chocou a senhora Viana.
Mais ruborizada ainda, agarrou-me as mãos para me impedir de desdobrar
as folhas. Teria de lê-las longe dela e em segredo, explicou-me. Daí a uns
dias, assim continuava o plano, ela passaria a buscá-las em minha casa sob
o pretexto de me levar um doce qualquer. Se me permites o trocadilho, a
minha fome de leitura foi apaziguada pela promessa de doces caseiros.
Seguiram-se mais uns minutos de conversa, já sobre outros assuntos bem
menos interessantes, e, finalmente (finalmente!), regressei a casa, quase a
correr, para ler as cartas.
O papel em que estão escritas não tem nada de especial: folhas brancas
A4 sem linhas. A caligrafia é um pouco bruta mas fácil de ler e as frases
seguem-se perfeitamente horizontais como que escritas sobre linhas
invisíveis. Um vento parece soprar sobre as letras inclinando-as da
esquerda para a direita, especialmente aos tês e aos éles. Tentei detectar
algum cheiro particular no papel, mas nesta ilha tudo cheira a mar, ou o
cheiro a mar está-me tão entranhado nas narinas que já não sou capaz de
cheirar mais nada (abro uma excepção para os meus encontros com as
vacas e os seus dejectos durante o jogging).
Quanto a todas as questões que havia colocado sobre a relação dos Viana
com o filho, a carta trouxe-me mais dúvidas do que certezas. Ao contrário
do que eu pensava, não há sinais de existir uma disputa ou qualquer tipo de
animosidade entre eles. O filho parece expressar genuínas saudades e fala-
lhes (ou melhor, escreve) com ternura. Por outro lado... que cartas
tremendas! A imagem que tenho dele vai mudando a cada parágrafo. Por
vezes escreve com uma distância quase glaciar: descreve do lugar onde
está, enumerando factos e curiosidades, quase como se estivesse a escrever
para um guia de viagens. Noutras partes relata mirabolantes encontros e
aventuras que não podem ser senão absolutas verdades ou inegáveis
mentiras, não existindo possível meio-termo. Ele parece obcecado com a
ideia de viagem e com a alegria que esta lhe traz. É fácil perceber que se
justifica perante os pais. E ao mesmo tempo, na sofreguidão dos
pormenores, no romantismo desenfreado dos seus encontros, há uma
melancolia sempre à espreita, uma sede sem fim, uma lista de lugares a
visitar que nunca poderá ser completada.
O que mais me comoveu, o que me surpreendeu com violência e ternura
foi descobrir que eu e ele somos doppelgangers, que ele é o meu duplo, o
meu negativo, o meu reflexo no espelho. Passo a tentar explicar: A
sensação com que fiquei foi a de que ele procura nas viagens o que eu
procuro no exílio. De que também a ele aconteceu algum aquilo-que-
aconteceu, que ele não pode mencionar. E que existe uma rebeldia óbvia e
uma luta um pouco mais escondida, para perseguir a beleza das coisas,
para mergulhar na vida que parece, ao mesmo tempo, uma fuga de alguma
coisa, um terror das sombras. Oscar Wildes me maldigam em ditos
espirituosos, pois sinto que me estou a expressar de forma muito pobre.
Correr para a vida não é o mesmo que fugir da morte. Correr para escapar
às sombras não é o mesmo que correr para a luz. Parece, parece, parece,
mas não é. Um dos meus muitos problemas é esquecer-me de que não se
mantém um cubo de gelo na mão por muita força com que o apertemos. Já
te imagino a coçar a cabeça, murmurando: «Cubo de gelo? O gajo está
maluco!»
Sim, o gajo, eu, está maluco. Basta de mim.
Espero ansiosamente que ela venha buscar as cartas. Quero ler mais.
Quero saber o que foi o aquilo-que-aconteceu do seu filho. Não te sei
explicar, nem vou tentar mais metáforas geladas, mas sinto (e, sim, é por
influência da minha costela romântica, do meu fígado romântico, do meu
intestino delgado romântico, dos meus rins românticos, de todo o meu
organismo romântico) que o meu destino e o destino do filho dos Viana
estão associados, que o que lhe sucedeu e sucederá não me pode ser
indiferente.
Talvez seja o Atlântico a afectar-me, talvez seja todo este tempo sem
cinema nem televisão, talvez seja do ruído interminável, contínuo e
opressivo das ondas, ou talvez seja apenas do pão-de-ló. Mas estou assim.
Contudo, não te preocupes, não me vou matar. Longe disso.

Abraço
XXVI

Queridos pais,

Apenas uma breve nota de Marraquexe. Estou a dormir num terraço com
mais vinte pessoas. Pela primeira vez este ano estou acompanhado de um
grupo de portugueses (do Porto). Agrada-me muito voltar a falar português
e não ter de explicar onde fica o Algarve, o que é o Chiado e ter quem
perceba a minha saudade dos pastéis de nata. Donde estamos avista-se a
famosa praça Jeema el Fna onde Hitchcock filmou cenas para a segunda
versão do The Man Who Knew Too Much, o teu filme preferido, pai, que
me levaste a ver à Cinemateca, e no qual a Doris Day canta Whatever Will
Be Will Be. Lembro-me de que te comoveste como nunca te vi comovido
(excepto talvez quando o avô morreu) na cena final em que ela, apesar do
terror e da angústia de uma mãe à beira de perder o seu filho, tem de
exercer a mais rara das qualidades: graça sob pressão (tão melhor em
inglês: grace under pressure), e cantar Che Sera Sera para tentar salvá-lo.
Mas voltemos à praça. É uma mistura do que se vê nos filmes com um
centro comercial. Existem cobras hipnotizadas, pequenos macacos e outras
coisas exóticas para turista ver e fotografar, e existem bazares (os
verdadeiros bazares), com babushkas e djambés e túnicas e jogos de xadrez
com as peças feitas em madeira e bules de chá e tapetes, milhares de
tapetes, como se a ideia fosse cobrir o deserto. E é tudo colorido, vibrante e
cheio de perfumes variados. Há rostos do deserto, com mais rugas que a
pele de um elefante e olhos cerrados que parecem – ou talvez seja apenas o
meu desejo – esconder uma sabedoria intemporal, uma sabedoria das mil e
uma noites. Mas também há rostos ridículos e banais, vendedores de
camisolas de futebol, de telemóveis, de pilhas, de câmaras digitais, que
gritam em inglês, francês e alemão.
Amanhã partimos para o deserto. Não se preocupem, temos três jipes e o
grupo em que estou preparou tudo ao pormenor. São gente de profissões
respeitáveis: advogados, directores de marketing, contabilistas. Todos
homens. Melhor assim, talvez. Connosco vai um guia marroquino, um
Tarik el-Ahmar com quem tenho conversado, no meu francês coxo, embora
sinta que ele diz apenas aquilo que acha que eu quero ouvir – o que torna
as nossas conversas cómicas porque eu não sei o que quero ouvir.
E tenho de ficar por aqui. Como suponho que não existam marcos de
correio no deserto, preferi enviar-vos algumas palavras deste terraço nesta
noite quente em Marraquexe.

Beijos ternos do vosso filho


XXVII

Querido amigo,

É Primavera, ou o que passa por Primavera nesta ilha. E eu tentei, tentei


com a paciência de quem coloca peças de dominó, com a tenacidade dos
alpinistas e dos exploradores do Pólo Sul, tentei com esperança e desespero
e com o ar ridículo daquelas corridas em que se equilibra um ovo numa
colher que se leva na boca. Mas o ovo caiu, não avistei o Pólo Sul nem
cheguei ao cume e as peças ficaram tortas. O quê? O que foi que eu tentei?
Não me lembrar. Não mergulhar nas águas mornas e traiçoeiras da
reminiscência, no gozo masoquista de reviver o passado. E falhei
espectacularmente, como o homem que quis girar trinta pratos ao mesmo
tempo e os partiu a todos.
Comecei a sentir as cócegas da memória enquanto observava os
«populares» na enseada em frente à minha janela. Foi sábado, o primeiro
sábado de sol e Primavera. Não aguentei e abri as janelas para que o ruído
do mundo e da vida me entrassem pela casa com o cheiro do mar. Como
seria de esperar havia crianças, até bebés. Pus a cabeça de fora de casa
(primeiro erro) e deliciei-me com os gritos, guinchos e melodias de pais e
filhos (segundo erro). O cérebro, a memória ou a acção de qualquer deus
antigo, dos que recebiam oferendas de fruta em cestos de vime, foi ligando
imagens, sons e sensações na minha mente, como quem enrola lençóis para
fazer uma corda e escapar de qualquer torre, até que, daquela tarde
primaveril numa pequena praia de uma ilha dos Açores, fui transportado no
tempo e no espaço para outra tarde primaveril. E quando me vi lá, quando
me vi deitado na relva do Jardim da Estrela, em toda a languidez e
preguiça das três da tarde, rodeado de «sabes bem quem mas não direi», ao
invés de trepar pelo lençol de volta à torre, ao invés de abanar a cabeça, de
regressar aos Açores e ao momento actual, embrenhei-me na lembrança,
como uma mosca presa na teia. A luz iluminava as folhas novas que, vistas
de baixo, pareciam verde-fluorescente. Soprava uma brisa ligeira e eu
sentia a relva fresca contra a pele dos braços e o cheiro da terra
ligeiramente húmida. A poucos metros de mim, crianças subiam e desciam
escorregas, sentavam-se com grande aparato em baloiços, enchiam o
queixo de gelado, enfiavam o dedo no nariz, tudo isto sob o olhar atento
das mães e pais ou das amas, que se destacavam por serem pretas, por
terem braços de um castanho sedoso com que envolviam com ternura
genuína as crianças brancas, loiras e chorosas quando estas batiam com a
cabeça, se assustavam com os cães ou (mundo cruel!) deixavam cair o
gelado no chão. Pela relva, havia casais estendidos entrecruzando
membros, putos a jogar à bola, turistas em tronco nu com o mapa estendido
ao lado, de mochilas sujas e garrafas de água brilhando ao sol. E vozes,
uma imensidão de vozes que quase chilreavam, cada uma com a sua
melodia única, debitando nomes e histórias ou apenas pedindo um gole de
água ou uma pose para a fotografia. De vez em quando, ao longe, o
contraponto melódico do trinar dos eléctricos. Vejo flores totalmente
desabrochadas com pétalas radiosas e perfume intenso, quase consigo
sentir quão sedosas serão se as apertar entre os dedos. Um pavão abre a
cauda em cima de um telhado laranja, as suas cores quase eléctricas
refulgindo ao sol da tarde. Uma mulher voluptuosa baixa-se em câmara
lenta para beber água no bebedouro, e as pregas, as dobras, os vincos do
seu simples vestido branco tornam-se mais vivos e belos do que os
retratados nos mais admirados quadros. Velhos com boinas pretas e
cinzentas, alguns com a barba branca por fazer, centenas de pequenos
pontos despontando em bochechas flácidas e cobertas de sulcos, jogam às
cartas. Casais tão idílicos que parecem nunca ter discutido na vida lêem os
jornais de sábado no café, virando cada página com um gesto teatral. E o
coreto onde
o coreto alto e antigo e verde onde
o coreto no coração do jardim onde
(E entre o local onde estou, deitado na relva, e o coreto passa uma
bicicleta com um rádio a tocar alto. O condutor leva duas bandeiras em
cada manípulo e só ouve música popular e parece passar tardes a atravessar
Lisboa com o seu ar zangado e o seu enorme rádio.)

no coreto
…………… jogava à bola.

Não posso continuar. Não posso nem quero descrever o quão difícil foi
abandonar a felicidade pura, a inocência que eu tinha então, quando achava
que o universo era benevolente e tudo era possível. Que a minha casa
estava assinalada e a peste não bateria à porta. Não posso deixar que me
possua a lembrança táctil da relva na pele. Da pele na pele. Não posso
querer recordar-me de todo o langor, todo o abandono, todo o prazer
luminoso, toda a felicidade que vem a um corpo ensopado em ternura por
se saber amado.
Amanhã vou ver baleias. Imagino que um monstro de carne e espuma
salta e abalroa o barco. Imagino que me engole e lá dentro encontro Jonas
e Gepetto. Mas, o mais importante, encontro um bálsamo para todas as
minhas recordações de um mundo que é mais belo do que merece. Que é
mais belo do que aquilo que mereço.
XXVIII

Querido amigo,

Foi assim: Acordei cedo. Não corri, nem saltei à corda, nem fiz flexões e
abdominais. Tomei um duche rápido, vesti-me e fui para a cidade de
estômago vazio. Cheguei lá às oito e pouco e tomei o pequeno-almoço,
galão e torrada, numa esplanada da marginal perto do local onde estava o
barco. Já há muito que não me sentia tão nervoso, foi até agradável voltar a
sentir todos os sintomas da antecipação.
Antes da partida houve um briefing. Sentaram-nos a todos num pequeno
auditório, junto ao porto, onde nos mostraram um vídeo, em português e
inglês, que explicava os cuidados que devíamos ter durante a viagem.
Falaram também do tipo de baleias e golfinhos que é possível avistar e dos
seus padrões migratórios, anatomia, comportamento. Prepararam-nos para
uma desilusão, repetindo com frequência que muitas vezes não se avistam
baleias, que estas não obedecem a ninguém, muito menos a turistas.
Depois, trocando sorrisos cúmplices e levemente embaraçados, vestimos
coletes salva-vidas cor de laranja que cheiravam a mar. Um a um, entrámos
para o barco, um semi-rígido branco de nome Ofélia. Eu sentei-me do lado
direito, entre um casal português e um pai nórdico com os seus três filhos
adolescentes. Por essa altura a neblina matinal tinha desaparecido
completamente e um dia de sol instalava-se. O motor começou a rugir e o
barco partiu, provocando um ligeiro frémito nos passageiros de colete.
Observei a ilha a afastar-se, as casas a diminuírem de tamanho e as árvores
a tornarem-se manchas de verde indistinto. De certa forma sentia que
estava a despedir-me, sensação estranha para quem sabe ir regressar num
par de horas. Aos poucos senti o abraço do mar, a sensação de pequenez
que é estar rodeado de água e a única terra ser uma ilha cada vez mais
distante. Os salpicos humedeceram-me a roupa e o sal colou-se à pele. No
barco, os três membros que constituíam a tripulação revezavam-se entre
pilotar, falar por rádio com os observadores na ilha e conversar com os
passageiros, acautelando os mais medrosos e verificando possíveis enjoos.
Quase toda a gente estava munida de máquinas fotográficas e de filmar,
que por enquanto usavam apenas uns nos outros, mas que estavam
especialmente reservadas para os monstros marinhos. Quando o barco
saltava um pouco mais, havia alguns guinchos. Uma criança começou a
chorar, o que levou a que o pai a abraçasse com um enorme sorriso de
ternura que me comoveu mais do que esperava. Após cerca de quarenta
minutos, o barco parou e ficámos à espera. Entre as conversas e o ruído do
vento ouviam-se os estalidos metálicos do rádio. Pus-me a olhar para o
mar. Confesso-te que me passou pela cabeça, hipnotizado pela
profundidade da água, retirar o colete e deixar-me cair, entrar no enorme
oceano e descer, descer até ao fim, até onde nadam os mais estranhos
peixes e vivem criaturas que nunca viram um Homem, criaturas com cores
e formatos tão variados e maravilhosos que parecem ser a forma da
natureza se vangloriar, de dizer: «Vejam as coisas de que sou capaz! Nada
me é impossível!» Por segundos de tontura fechei os olhos, inclinado sobre
o mar, e imaginei essa descida, imaginei o que seria ser uma pedra
afundando-se na mais profunda escuridão, afastando-me de todo o ruído,
luz e vida que existe à superfície. O arranque súbito do barco terminou a
minha reverie e quase lançou uma francesa borda fora. A pequena
tripulação congregou-se na proa falando de forma excitada. Um deles, um
tipo de cerca de trinta anos com a pele bronzeada e cabelo loiro queimado,
disse-nos que estávamos com sorte e repetiu depois em inglês «You are
lucky!». Os passageiros sorriram todos e entraram num frenesim de
preparação tecnológica, retirando as câmaras e preparando-as como se
fossem marinheiros com arpões, ou, para usar metáforas não marinhas,
cowboys carregando pistolas com balas antes do duelo. Eu, ao contrário do
que a vida me ensinou vezes sem conta, deixei-me ficar ansioso e
expectante, deixei-me enrolar numa teia de fantasia e preparei-me para um
milagre. O meu coração acelerou, devo ter aberto os olhos mais do que o
costume, devo ter até dilatado as pupilas. Eram dois cachalotes. E lá os
vimos, por curtos segundos antes de mergulharem durante mais uma hora.
Não se pode dizer que tenha sido um desencontro total, pois ainda se viu a
enorme cauda, após uma curta mas belíssima suspensão no ar, descer de
forma tremenda com o típico splash cinematográfico que encheu de prazer
ruidoso quase toda a gente no barco. Mas eu, talvez por haver esperado
demasiado, talvez por ter ansiado tanto por esse momento, não senti que
nenhum nó se desfazia em mim, não senti a admiração que esperava sentir,
nem medo ou tremor, senti apenas que via o mesmo que havia visto em
fotografias e vídeos, mas um pouco mais perto, e acompanhado do cheiro a
mar. No resto da viagem ainda se cruzou com o nosso barco um grupo de
golfinhos roazes, mas a tristeza já me habitava e pouca curiosidade senti
por essas magnificas criaturas. Passei o resto da viagem ansiando que uma
baleia emergisse de repente à beira do nosso barco e nos abalroasse, nos
enviasse a todos para as profundezas do mar. O que, como podes deduzir,
não aconteceu.
Quando o barco atracou e os outros passageiros saíram satisfeitos e
palradores, eu pisei o solo com a reticência de um prisioneiro nos seus
primeiros passos de entrada na prisão. Parecia que até há poucas horas a
minha vida tinha seguido um propósito, mesmo que fosse ténue e ridículo
como o de ver uma baleia. Agora já nem isso tinha. Conduzi para casa
como que em choque. O dia soalheiro tornava a ilha ainda mais bela em
toda a sua exuberância verde. Cheguei a casa desiludido comigo e com o
mundo. Entrei. Fechei a porta. Descalcei-me. Andei cambaleante pelas
várias divisões como se estivesse à procura de alguma coisa mas me
tivesse esquecido do que era. Após alguns minutos (ou terão sido horas?),
sentei-me na minha poltrona de leitura, apoiei os meus cotovelos um pouco
acima dos joelhos e a minha cara nas mãos, e chorei. Não sei por quanto
tempo o fiz. Até adormecer, suponho, pois acordei há pouco. São cinco da
manhã. Sinto-me estranho. Sinto que sou uma pedra a afundar no mar. Nas
águas que agora atravesso, já não há luz. E continuo a descer.
Se ao meu redor existem as mais maravilhosas criaturas, de pouco me
serve. Não consigo ver nada. E continuo a descer.
XXIX

Ex.mos Senhores do Instituto Nacional de Estatística,

Sei-vos dedicados à recolha de informação importante sobre a nossa


Pátria, informação passível de quantificação e análise estatística para
poderem apresentar relatórios anuais e semestrais e também por ocasiões
especiais como «o dia do idoso» ou «o dia da criança» ou apenas o
septuagésimo aniversário de um vice-director. Sei também que a
informação deve poder ser transformada em percentagens e índices, e
fornecida em quadros e gráficos, incluindo os apetitosamente denominados
pie-charts. Suponho que o vosso objectivo é que, através da divulgação
dessa informação, os «decisores» possam tomar as tais decisões de forma
«informada» e a Pátria possa avançar, o declínio ser evitado e que se
marque mais um golo a favor do progresso.
Ora, sendo eu também um cidadão que toma decisões, venho colocar
algumas questões estatísticas para as quais, na vossa busca e acumulação
de informação, é possível (tenho os dedos cruzados!) que tenhais a
resposta.
Sei que, à semelhança da literatura, vos preocupais muito com
nascimentos, casamentos e mortes, e que até sois capazes de dizer quais
destes se têm processado mais e até em que meses (é verdade que há mais
casamentos em Junho e mortes em Dezembro?). Será que me poderíeis
dizer quantas pessoas morreram na última década atingidas pela queda de
um piano? Ou, caso apenas tenham elaborado uma estatística para todos os
instrumentos musicais, então reformulo: quantas pessoas morreram
atingidas por um piano ou um trombone ou pela queda de qualquer outro
instrumento?
E, já agora, quantas morreram por amor? Como se compara a desilusão
amorosa com o cancro do pulmão na lista das causas de morte? E morrem
mais pessoas engasgadas ou vítimas de ataques de animais?
Já agora, nas vossas estatísticas existe alguma informação sobre o choro?
Qual a sua frequência média? Quantas lágrimas por dia (ou semana, mês,
ano) chora um português? Ou será que é contabilizado em centilitros? E é
superior ou inferior à média europeia? Choram os portugueses mais ou
menos do que os espanhóis, suecos, russos? E, já agora, choram mais as
crianças ou os idosos? E é verdade que as mulheres choram mais do que os
homens, ou a única diferença é que estes o fazem às escondidas?
E, Ex.mos Senhores, quanto ao riso? É também contabilizado?
Diferenciam-se as gargalhadas dos sorrisos? Nestes últimos distingue-se os
amarelos dos genuínos?
Qual é a taxa de amor à primeira vista nas cidades? As pessoas
apaixonam-se mais em que momento do dia? Há alguma associação entre a
frequência das salas de cinema e a felicidade de um país? Existe uma
correlação entre o consumo de gelados e a actividade sexual? Há algum
indicador de esperança média de paixão? De longevidade do sonho? De
mortalidade das ilusões?
Quanto ao kitsch, está relacionado com a densidade populacional?
Quanto mais pessoas por metro quadrado, mais sofás cor-de-rosa?
Quem causa mais corações partidos: as mulheres excessivamente belas
com propensão para a melancolia ou as mulheres moderadamente belas
com propensão para a euforia?
Há menos crimes nos bairros com mais livrarias? Há mais crimes nos
bairros com teatros? Um declínio no número total de golos marcados nos
campeonatos nacionais está associado a um aumento de inscrições em
cursos universitários de natureza artística?
Por favor, se possível, respondam-me a estas questões.
Num espírito de partilha, quero retribuir a vossa colaboração. Tenho
recolhido, ao longo dos anos, informação valiosa que, suspeito, não é
contabilizada nas vossas sondagens e inquéritos. Espero dar um pequeno
contributo para preencher essa lacuna. Fiquem, pois, sabendo que:
75% das vezes em que me apaixonei não estava vestido de verde.
De 60 a 70% das vezes em que bebi café com leite foi ao pequeno-
almoço.
Mais de 90% dos romances que li valeram a pena.
As versões originais dos livros de Dostoiévski estão escritas em russo em
mais de 99%.
Não parece existir uma correlação estatisticamente significativa entre a
minha capacidade de tocar tuba e o tamanho da minha barba.
100% das vezes em que saí de um filme antes do seu fim, utilizei calão
ao falar acerca deste.
0% das vezes em que vi a Ava Gardner numa tela de cinema pensei:
«Afinal não é assim tão bonita.»
Já chorei mais vezes pelas catástrofes que sucederam a personagens
fictícias do que ao ouvir notícias de catástrofes naturais com vítimas reais.
Nunca conheci, apesar de supor que seja um nome não tão raro, alguém
chamado Gaspar.
Por outro lado, conheço dois Efisménios.
A percentagem de pessoas que pertenceram a qualquer das minhas
turmas de liceu que se tornou gestora de empresas é superior à dos que se
tornaram agentes de Hollywood.
Perto de 80% das vezes em que entrei numa florista para comprar flores
estava eufórico.
Desconfio de que exista uma ligeira correlação entre a leitura de poesia e
uma simpatia instantânea por mendigos coxos de unhas aparadas.

Espero que estas informações e hipóteses vos sejam úteis. Anseio pelas
vossas respostas, nem que o façam a apenas uma das minhas questões.
Congratulo-vos pelo importante trabalho que desempenhais e desejo-vos
a melhor sorte na recolha desses fundamentais números que dão orientação
e motivo para o orgulho pátrio.

Com 100% dos melhores cumprimentos,


Um dos números na coluna da população total
XXX

Querido amigo, rei dos perdoadores,

Irei de joelhos até ao cume do Kilimanjaro pela aflição que te causei.


Peço-te que me perdoes, não só por te ter assustado com aquela maldita
carta de autocomiseração, mas também pelas duas semanas de silêncio que
se seguiram. Não te censuro por teres pedido ao senhor Joaquim para subir
até minha casa e me convencer a ir falar contigo ao telefone. A nossa curta
conversa terminou há pouco mais de meia hora e, como te acabei de
prometer, vou escrever-te de imediato com todos os detalhes e justificações
para o silêncio.
Já não pego em papel e caneta desde essa madrugada confusa. Porquê?
Porque não me apeteceu, porque não tive forças, por todos esses singulares
motivos que mantêm os deprimidos à margem da vida. Talvez tenha sido
isso, talvez tenha querido ficar à margem da vida. Não me bastava mudar-
me para os Açores, deixar de ver televisão, abandonar a Internet e o
telefone.
Passei a maior parte da minha vida tentando colocar-me no centro do rio,
no local onde a corrente é mais forte e onde eu sentia que tudo fluía ao meu
redor. Aos poucos fui-me apercebendo de que é inútil. Um fluxo não se
agarra. A vida passa por nós onde quer que estejamos e não é o nosso
movimento que a torna mais ou menos fluída, mais ou menos segura, mais
ou menos rica. Ou, pelo menos, não é o nosso movimento externo.
Sim, bem sei, começo a soar um místico instantâneo, daqueles a quem
basta juntar meio copo de água e mexer com uma colher. Mas hoje, nesta
carta, alarga ainda mais a tua paciência e recebe com amizade todos estes
disparates que, apercebo-me agora, preciso de vomitar.
No princípio era a luz viajando pelo espaço ou na ponta da língua de
Deus. E a mente divina imaginou um cosmos onde um dia existissem
cidades cheias de contabilistas e restaurantes de fast food e museus de
design e lojas de descontos e cinemas e jardins com escorregas e bancos
recatados onde casais apaixonados trocassem carícias. E Deus imaginou
que nesse mundo existiria vida acima e abaixo da terra, dentro e fora do
mar e que essa vida teria as mais variadas formas e seria exuberante em
cor, som, textura e propósito. Anjos percorreriam esse mundo disfarçados:
encarnariam poetas, agentes de seguros, músicos desempregados,
jardineiros, um alemão chamado Bach, crianças disléxicas, empregadas de
balcão ou pedreiros. E haveria uma forma de vida diferente de todas as
outras, porque consciente, porque capaz de se rir dos filmes do Chaplin,
porque capaz de fazer piadas sobre genitais, porque predestinada, milhões
de anos antes, a inventar pianos.
E assim se fez segundo a sua vontade. E assim foi que também eu me vi
envolvido no meio desta história, com vida acima e abaixo de mim, com
mais cores e sons e texturas ao meu redor do que as que poderei em toda
uma vida experimentar. Assim foi que, na marcha do tempo, do antes para
o depois, fui descobrindo coisas, aprendendo coisas, crescendo, mudando,
acumulando e perdendo, cruzando-me não só com a vida mas também com
a morte. A vida é o contrário do cinema. No cinema a nossa mente cria a
ilusão de movimento a partir de uma série de imagens paradas. A vida é
como um filme ininterrupto que nos esforçamos por parar, por fixar numa
só imagem, num fotograma que possamos arquivar e pôr numa moldura na
mesinha-de-cabeceira da nossa alma.
A vida é movimento ininterrupto, mudança perpétua, e temos de utilizar
a ilusão para criar a ideia de que existem coisas estáticas: identidades,
corpos, amores, lares, momentos. Achamos que podemos regressar a quem
fomos, estar de novo onde estivemos, amar o que amámos. Mas não, nada
é exactamente igual, nós não somos nunca nós, mas uma outra versão,
mesmo que a diferença seja ligeira.
É apenas uma ilusão, inversa à do cinema, que nos permite sentir que
estamos, que somos. Mais correcto seria se disséssemos que passamos e
que fomos e seremos.
Em relação ao que tive e já não tenho, não há nada a fazer. Tal como não
posso voltar a ser o que fui, por muito que o deseje. Tenho de me inventar
de novo. Tenho de descobrir uma forma de estar e uma forma de ser. Já não
estou tão preso ao desespero como há duas semanas atrás. Confundi um
mamífero de toneladas com a redenção. Mas a redenção não precisa de vir
em epifanias acompanhada de uma orquestra melodramática. Quero
acreditar que também pode ser construída pouco a pouco, como um muro
ou um relatório de contas. Lucros na coluna da esquerda, prejuízos na da
direita.
E para te provar o quão determinado estou em combater a tristeza, vou
dizê-lo pela primeira vez. Vou escrevê-lo pela primeira vez, e, como sabes
que não conseguirei escrever mais nada depois disso, despeço-me já. Um
último pedido de perdão, e um abraço terno de agradecimento. Tenho
lágrimas nos olhos e tremo como uma criança assustada, mas aqui vai: O
meu amor morreu.
XXXI

Queridos pais,

Hoje não interessa onde estou. Escrevo esta carta em reacção a um


comentário solto por alguém que vocês não conhecem num local que
nunca visitaram. Hoje não interessam os pormenores. Quando descrevi as
minhas viagens e falei de vocês e de como vos escrevia com frequência
mas já não vos via, tocava, abraçava há muito, ouvi o comentário de que o
amor também é egoísta, de que, mesmo sabendo-me feliz, os meus pais
sofreriam a minha ausência. Não foi uma revelação, estou a par das vossas
saudades (e das minhas). Mas eu talvez tenha abusado da ideia de que
aquilo que os pais mais querem para um filho é que ele seja feliz. Talvez
abdicassem de um pouco dessa felicidade por um pouco de companhia.
Pensando bem, é certo que abdicariam.
Começo a considerar que me julgam ingrato, que acham estranho que eu
consiga ser tão feliz sem estar perto de vocês. Espero que as cartas vos
mostrem que não. Seria mais feliz se estivessem ao meu lado ou se vos
visse de tempos a tempos. Porque não regresso então? Porque não passo
pelos Açores, já que passo por todo o Mundo? Porque é assim que tem de
ser. Se Ulisses tivesse visitado Penélope entre as sereias e Calipso, não
haveria Odisseia. A minha viagem tem de completar-se antes de regressar
a casa. Quando isso será, não sei. Estou tão ignorante do verdadeiro dia de
chegada a casa como estava Ulisses. Mas saibam-me feliz, e saibam que
cada dia que passa vos peço perdão por não vos poder dar o que merecem.
Saibam apenas que cada minuto que passo é abençoado, como abençoado
foi cada minuto ao vosso lado.
Do vosso filho
Longe mas perto
P.S.: Como ando de país em país, tenho dado a vossa morada a algumas
das pessoas que mostraram vontade de me escrever. Só vocês estão sempre
a par dos meus movimentos, por isso peço-vos que me vão enviando as
cartas que aí chegarem.
P
ARTE II
I

Querido amigo,

Recomeçamos, não nos rendemos. O mundo insiste em ignorar os


estados de espírito dos seus habitantes e, ocasionalmente, sem aviso, os
atacar com momentos de beleza incandescente. A melhoria do tempo
trouxe uma série de pessoas, sábado passado, à minha enseada. Para
combater a melancolia que me tem mordido como pulgas, levei um livro
para a areia e sentei-me no meio da gente. Tentei entrar naquele estado
langoroso que a praia é tão eficaz em produzir, embalando o espírito com o
ruído das ondas, o chilrear das conversas e o sussurro da brisa. Contudo, ao
invés de relaxar e me abandonar ao momento, à sensação do pé entrando
pela areia, à contemplação hipnótica dos rabiscos de luz que o sol faz no
mar, o que senti foi o aperto de um nó alojado entre a alma e o estômago e
o aumento da distância para com as pessoas que me rodeavam, tão
enrodilhadas em viver, tão esquecidas da dor. Os meus pensamentos foram-
se tornando mais escuros e espinhosos. Deixei de reparar no mar, na areia e
nas toalhas coloridas estendidas em diferentes ângulos. Deixei de observar
as famílias desempenhando os seus rituais igualmente únicos e banais.
Deixei de perscrutar o horizonte para encontrar baleias ou barcos. Quando
já quase me tinha esquecido de onde estava e me enredava em meditações
soturnas, aconteceu um pequeno milagre. Fui atingido na cara por uma
bola de plástico. A dor causada foi irrelevante perante a surpresa. Olhei
meio atordoado para a bola, já inofensiva ao meu lado na areia, e depois
para um miúdo, com cabelos castanhos e olhos redondos, que me
contemplava, assustado.
– Foste tu que chutaste a bola? – perguntei-lhe.
– Desculpe. Sim, fui eu… foi sem querer, desculpe muito…
Tive de fazer um grande esforço para não sorrir perante o «desculpe
muito». Mantive-me com o ar mais zangado que consegui:
– Se voltas a fazer isto, se voltas a acertar-me com a bola na cara…
O miúdo estava petrificado, assim como os seus dois amigos que,
cobardemente, observavam o desenrolar dos acontecimentos alguns metros
atrás.
– Se voltas a chutar a bola e a acertar-me… – continuei agressivo –, dou-
te um gelado! – E aqui sorri. Ao invés de rebentar numa gargalhada, como
eu esperava, o miúdo manteve-se imóvel e assustado.
– Não é fácil acertar na minha cabeça pequena. É preciso pontaria.
Assim, se tu ou um dos teus amigos conseguir acertar um remate na minha
cabeça aí do fundo, eu ofereço-lhe um gelado.
– A sério, senhor? – perguntou o miúdo, já menos assustado, mas ainda
perplexo.
– A sério, cavalheiro! – e dizendo isto, inclinei o meu tronco para a
frente numa espécie de vénia.
Foi assim que, durante meia hora, servi de alvo. À vez, os miúdos
colocavam-se por detrás da bola com a concentração e solenidade de um
marcador de penáltis e tentavam rematar-me à cara. Infelizmente, a sua
falta de jeito aliada à imprevisível trajectória de uma bola de plástico
tornaram a tarefa mais difícil do que pareceria. Após dez minutos de
falhanços, fui-me chegando subtilmente à frente e, com a ajuda de uma
inclinação ou outra do meu corpo, lá consegui ser atingido na cara várias
vezes para alegria dos miúdos e júbilo meu. Cada bolada que levei foi
como um estalo do destino, uma lembrança física de que estou vivo e de
que o mundo não me vai deixar esquecer esse facto, mesmo que tenha de
recorrer a projécteis de plástico.
Após a sessão de tiro ao alvo, fui até ao restaurante do senhor Joaquim
para saldar a minha dívida de gelados. A dona Olga disse que eu tinha a
cara inchada e perguntou-me se eu caíra. Respondi-lhe que sim, que havia
caído, mas que já me tinha levantado e que agora estava tudo bem.
– Caí, mas já me levantei!– repeti enquanto regressava ao areal
carregado de gelados de morango e baunilha.
Sim, meu amigo. É verdade. Caí, mas já me levantei.

Vivo e com dores na cara


II

Meu querido português,

É a primeira vez que escrevo uma carta a sério. Lembro-me da conversa


que tivemos no parque de campismo nos subúrbios de Florença, depois de
ter dado contigo, com papel e caneta na mão, a escrever para os teus pais.
Quando brinquei por não utilizares a Internet e te lembrei de que já
ninguém escrevia cartas, disseste-me que era por isso mesmo que as
escrevias, que um e-mail nunca poderia substituir uma carta, que uma carta
era sempre um gesto de respeito pelo tempo e pela distância, que era como
um viajante, que percorria países e trocava de mãos, que podia andar
perdida, chegar atrasada ou mesmo nunca chegar. Foi então que me
apercebi de que me estava a apaixonar por ti, que as coisas que tu dizias e a
maneira como as dizias, que o silêncio aveludado que se seguia à tua voz,
que o teu olhar sempre feliz eram para mim obras de arte, que, se eu
pudesse, compraria por qualquer preço e traria comigo para todo o lado.

Já se passaram quinze dias e sete horas desde que nos separámos. O


contingente americano, como nos chamavas, seguiu para Veneza e tu
seguiste para Praga. Não sei por onde começar a contar-te tudo o que tenho
pensado nestes dias, todas as metamorfoses que se têm dado dentro de
mim. Veneza é ainda mais do que eu esperava, e eu esperava muito.
Quando dei por mim, a filha de um mecânico da Carolina do Norte,
sentada nas arcadas do Palácio do Doge a ver o pôr-do-sol na Praça de São
Marcos, senti-me grata, senti-me inundada de felicidade. E desejei ter-te ao
meu lado. Lembrei-me do teu entusiasmo constante, da tua incrível
capacidade de apreciar, de te deixares maravilhar. Tens de visitar Veneza;
esta cidade foi feita para ti. Tenho andado pelos canais e pontes com a boca
aberta de espanto. Não há turistas suficientes no mundo para enfealcer
estas ruas. E quando o pôr-do-sol chega e as águas se acendem como um
espectáculo de luz de Las Vegas, parece que a própria fealdade deixa de ser
possível, mesmo como lembrança, mesmo como hipótese. Veneza durante
o dia é uma cidade incrivelmente bela, poucas outras se lhe comparam.
Mas ao pôr-do-sol, não sei bem como explicar, é como se deixasse de ser
uma cidade, é como de deixasse de ser um sítio e fosse uma sensação, um
nó que se desata por dentro, uma obra de arte colectiva e infinita, feita de
prédios, de canais, de pessoas, de brisas e de barcos.

Já decidi que quero viver aqui, nem que seja um ano. Quando era
pequena e ia comer gelados a Franklin Street com a minha avó,
passávamos junto aos jardins da universidade e eu olhava com idolatria
para as alunas deitadas na relva, lendo livros e rindo de forma primaveril
das piadas dos rapazes que as rodeavam. Mais tarde estive eu aí, aliás,
ainda há poucos meses estava eu nessa posição, encostada a uma árvore
com um livro de Veronese na mão. Penso em como a pequenita de rabo-de-
cavalo e ténis gigantescos, com um gelado de pistacho na mão, ficaria
alegre se soubesse que se tornaria numa dessas estudantes rindo
melodicamente estendida no relvado. Mas o que ela nunca imaginou, e o
que ocupava os sonhos da universitária estudante de arte, é o destino que
agora percorro. Um dos meus professores preferidos dizia que a arte é a
actividade mais democrática de todas. Uma obra-prima não exige, para ser
apreciada, que o seu contemplador seja rico, ou que seja masculino, desta
ou daquela nacionalidade, de determinada religião ou raça, mais novo ou
mais velho. Muitos alunos protestavam contra esta visão utópica. Afinal, se
algum motivo existe para nos inscrevermos num curso de arte é podermos
desenvolver a nossa capacidade de a apreciar. A resposta desse professor
era uma história. Em tempos idos, ele reunira alguns dos habitantes mais
desafortunados de Chapel Hill e sentara-os no salão principal da
universidade para que pudessem ouvir algumas obras de Bach tocadas por
alunos. Embora para muitos dos espectadores esse concerto fosse apenas
uma forma mais confortável de se aborrecerem, alguns comoveram-se de
tal forma que chegaram mesmo a chorar. Não sei se a história é verdadeira,
mas é plausível. O mesmo professor dizia que mais do que estudar a teoria,
aquilo que nos faria perceber ainda melhor o poder da arte era viver, ou
melhor: Viver! E foi isso que me fez apaixonar-me por ti: sentir que tu o
fazes, que vives como ninguém.
Quando andámos por Florença, havia momentos em que o teu gozo em
contemplar certo edifício ou certo quadro era tão visível que quase se
tornava palpável; acredito que se tocasse nos teus olhos os sentiria mais
quentes. Admito que senti inveja. Várias vezes o teu entusiasmo contrastou
com a minha falta dele. É por isso que devoro os guias e os livros. Para
tentar encontrar mais gozo. Porque duvido da minha capacidade de
apreciar. Muitas vezes o meu prazer é uma mentira. Todos os detalhes que
acumulei, todos os conhecimentos que absorvi dizem-me que a obra X é
uma grande obra, mas diante dela o meu coração não pestaneja sequer. E
tu, que não sabes o que é um chiaroscuro, que muitas vezes desconheces o
episódio bíblico retratado, delicias-te, comoves-te, exultas. E não só com a
arte. Com tudo. Um relojoeiro sem dentes fumando na Ponte Vecchio
encanta-te, como te encantam as laranjas do mercado, como te encanta a
loja de brinquedos perto da Praça Santa Maria Novella. Não é curioso o
amor? Acho o teu rosto a mais encantadora das visões. Não há um Miguel
Ângelo ou um da Vinci que se compare. E porquê? Às vezes suspeito de
que o que é belo, o é por todas as associações que nos traz. Talvez eu te
ache belo porque imaginar as linhas que te desenham me faz sentir viva,
me lembra o sabor de laranjas frescas e a sensação física de dar uma
gargalhada. Desculpa se me estou a tornar abstracta demais. Sabes que é o
meu defeito.

As saudades que tenho de ti, palavra que me ensinaste, misturam-se com


o prazer de Veneza. Há tanto aqui para viver. Os vaporettos mais não são
que o inverso da Barca de Caronte, pois é para o paraíso que levam os seus
passageiros. Por mais devagar que se desloquem, ainda é demasiado rápido
para mim. Sinto que não consigo absorver toda a beleza que desliza à
minha frente. As portas que dão para a água; os becos que uma luz
diagonal transforma em quadros instantâneos; os venezianos que se
reconhecem de imediato pela sua normalidade, pela forma como, ao
contrário dos turistas, andam por Veneza como se fosse a coisa mais usual
as casas serem construídas sobre andas, as escadas descerem para dentro de
água, o lixo ser recolhido de barco, que cada rua tenha um palácio, que se
viva sem vislumbrar um automóvel. Veneza é plena de símbolos e ícones:
olhas para as montras e encontras sempre as máscaras de carnaval e os
vidros de Murano, e não se anda muito sem se ouvir Goooooondola, o uivo
promocional dos gondolieri, sempre vestidos com as famosas camisolas
listradas. Mas mais maravilhoso ainda é estar calmamente a observar um
canal e ver surgir um desses famosos barcos, como uma bailarina feita de
madeira, flutuando sobre as águas.
O pior desta cidade são as tardes. O calor é húmido e inclemente. Nos
primeiros dias achei caricatos os grupos de turistas asiáticos que andam
sempre de chapéu-de-chuva aberto, mas cedo os percebi. É uma cidade que
pede que se durmam sestas, ou, pelo menos, que se aguarde, num banco à
sombra e de gelado na mão, a passagem das horas infernais. Para mim, a
melhor solução é passá-las nos museus. Como deves imaginar, Veneza está
para uma estudante de arte como uma gigantesca loja de brinquedos para
um miúdo de seis anos. Adoro a Scuola Grande di San Rocco, carregada de
Tintorettos como uma macieira de maçãs no auge da Primavera. E adoro-a
também porque foi fundada para salvar da peste a família que a pagou. Não
é uma história magnífica? O horror da peste e o medo da morte permitem a
criação e promoção do belo. Apesar disso, o meu museu preferido ainda é
L’Accademia, que fica mesmo em frente à ponte do mesmo nome. Lá estão
quadros de todos os Venezianos, do Ticiano, do Canaletto, mas, mais que
tudo, do Veronese, especialmente o Festa em casa de Levi. É que Veronese
não é só um pintor, é um contador de histórias, um cómico, um provocador,
um arquitecto… Divago, de novo, sabes como eu sou quando falo de arte.
E por falar nisso: este ano é ano de Bienal de Arte. Fomos lá já duas
vezes. A bienal tem lugar na parte mais a sul de Veneza, o Giardino. Uma
série de pequenos palazzos de pedra albergam exposições dos vários
países. Maravilha-me a mistura entre a falsa antiguidade dos mini palazzos
(quase todos neoclássicos), as obras dentro destes, a vista de Veneza na
distância do horizonte e os cruzeiros gigantescos atracados em frente à
bienal. Sinto-me como se nos tivessem enfiado numa máquina do tempo e
esta se tivesse avariado.
E no meio dos canais, dos canalettos, dos gellatti di mocha, das
pequenas pontes, das piazzas, dos turistas orientais, dos jovens comendo
pizza na Piazza Margherita, dos espectadores de arte com olhares
sofisticados consultando o mapa da bienal, por entre dias passados a
atravessar o Rialto a ler as inscrições dos cadeados que os amantes
prendem à ponte dell’Accademia, a contemplar os artistas de rua fazendo
girar bolas, a consultar livros que dizem que Henry James dormiu aqui, que
Proust almoçou ali, que Byron nadou acolá, por entre as conversas sobre
estética, banhada na luz do pôr-do-sol mais retratado na história da arte,
por entre as multidões aguardando a sua vez de entrar na Basílica de São
Marcos ou para subir ao campanário, envolta na brisa da lagoa durante as
viagens de vaporetto, comendo fruta fresca no mercado do Rialto, ouvindo
os gemidos amorosos na nossa pensão de paredes finas, bebericando
cerveja enquanto as luzes nocturnas deslizam pelas águas escuras, não te
esqueço e lamento não viver tudo isto contigo, e sei que talvez nunca nos
veremos outra vez.
Amo-te.
Esta palavra pode parecer exagero, o efeito de Itália numa americana do
Sul, que cresceu rodeada de demasiados livros e de poucos rapazes. Mas
não posso dizer outra coisa senão: amo-te.
Tenho vivido momentos tão tristes que não deve haver um quadro no
mundo capaz de os retratar. Nunca fui tão feliz e tão infeliz como agora.
Rodeada de todos estes tesouros seria capaz de os trocar por ti. Talvez seja
a ideia de que nunca nos voltaremos a ver que torna o meu amor tão
incandescente. E, contudo, eu espero por ti, alimento a esperança de
receber uma carta tua, um bilhete, um sinal. Quando me autorizo a sonhar
de forma mais violenta, imagino-me sentada à sombra, numa das tardes
vaporosas de Veneza, e vejo, vinda na minha direcção, uma figura a descer
uma das pequenas pontes que ligam os canais. E essa figura, aos poucos,
passo a passo, perde o seu carácter indistinto e ganha os teus contornos, as
tuas feições, a tua alma. Minutos depois, o mundo poderia acabar que eu já
saberia qual era a intenção de Deus quando imaginou a felicidade.

With love,
Stella
III

Ex.mo director do canal de Televisão…

Devo, logo à partida, confessar que não sou neste momento um


espectador do seu canal. Por favor não se ofenda. Não é apenas do seu
canal, mas de qualquer canal. A verdade é que não vejo televisão já há
alguns meses. Peço que não interprete a minha ausência de conhecimento
sobre os programas pelos quais V.Ex.ª é o principal responsável como uma
crítica. Não duvido da qualidade do seu canal. Acredito que a sua chegada
a um cargo de tamanha importância não se deve ao acaso, mas às suas
qualidades pessoais, nas quais por certo se poderá incluir a sensatez, a
cultura e a humanidade, no sentido que esta tem quando utilizada como
característica pessoal (não sei se o mesmo acontece com V.Ex.ª, mas eu
adoro ouvir alguém dizer que «X é um homem cheio de humanidade»). Já
que o senhor (senhora?) director é possuidor destas qualidades e está
consciente do papel civilizador da televisão, não duvido de que o seu canal
emitirá horas e horas de programas que informam, entretêm e educam, e
que nestes se contará por certo uma telenovela com adúlteros, concursos
com electrodomésticos como prémio e programas de opinião com
luminárias mais ou menos obstipadas.
Admitida a minha condição de não espectador, acrescento que lhe venho
fazer um pedido. Antes de o apresentar, deixe-me dizer-lhe que sinto já em
si pouca vontade de continuar a ler. Um homem como V.Ex.ª tem muitos
assuntos para tratar, pessoas com que se reunir para, contrariando a sua
vontade real, lhes sorrir, e pessoas com quem tem de se reunir para,
expressando a sua vontade real, lhes falar de forma ríspida e mostrar a sua
desilusão. Deixe-me, pois, garantir-lhe que se atender ao meu pedido não
só será mínimo o esforço que terá de dispensar como ainda terá uma
contrapartida que, creio, achará muito interessante.
O pedido é o seguinte: Há alguns anos, ao visionar um telejornal, num
dia que de alguma forma se relaciona com o poeta Fernando Pessoa
(provavelmente no aniversário do nascimento ou da morte), passaram uma
reportagem com algumas pessoas do Bairro de Campo de Ourique que o
conheceram em vida. Os entrevistados eram todos crianças na altura em
que o corpo físico do Álvaro de Campos vivia na Rua Coelho da Rocha.
Uma das entrevistadas descreve-o de manhã, a tomar um pequeno-almoço
composto por um copo de vinho tinto e um queque, refeição perfeita na
minha opinião. Mas o que me interessa é a história contada por outro
entrevistado. Nada mais nada menos do que o filho do barbeiro de
Fernando Pessoa. Pelo que ainda me lembro da história, o barbeiro ia
muitas vezes a casa do poeta cortar-lhe o cabelo e o filho acompanhava-o
com regularidade nessas expedições. Pessoa falava com prazer com ambos.
Certo dia o miúdo estava mais silencioso e ensimesmado e Pessoa notou (e
que poeta poderia deixar de notar essa tragédia que é um miúdo,
habitualmente vivo, estar ensimesmado?). Quando o cabide carnal de
Alberto Caeiro perguntou ao miúdo o que se passava, este respondeu que
uns rapazes lá da rua o tinham chateado, ou uma coisa deste tipo. Que fez
então Pessoa? Vou-lhe dizer já, Ex.mo director. É uma cena que, desde essa
reportagem, reproduzo vezes sem conta no cineteatro technicolor da minha
mente. Pessoa, que por certo estava sentado daquela forma muito direita
em que os homens se sentam quando cortam o cabelo, estendeu o braço,
poisou a mão na cabeça do miúdo e, com a solenidade de um rei fazendo
de um bravo guerreiro um cavaleiro da Coroa, com a concentração de um
mago lançando um feitiço, disse:

«Não te deixes vencer por incompetentes.


Não te deixes vencer por incompetentes.
Não te deixes vencer por incompetentes.»

E depois retirou a mão e sorriu, como se soubesse que, a partir daquele


dia, o miúdo estaria abençoado e nem um só dos seus cabelos seria tocado
pelo mal.

Dei-lhe estas duas linhas para recuperar da história. Mesmo que a sua
reacção tenha sido infinitesimal quando comparada com a minha quando vi
esta reportagem, não duvido de que tenha sorrido e se sentido um pouco
mais em paz com o mundo. Perceba por favor que, como a maior parte das
pessoas, eu passei milhares de horas em frente ao pequeno ecrã. Da guerra
em directo ao toque de bola do Bergkamp, da nudez de certas actrizes às
entrevistas com políticos em desgraça, das imagens de motins às de
astronautas transmitidas do espaço, esta história foi a coisa mais bela, direi
mesmo, mais sublime que tive oportunidade de testemunhar olhando para
uma televisão.
O que eu lhe peço, caro director, é que V.Ex.ª, ou alguém por si
ordenado, procure esta reportagem nos arquivos do seu canal, embora eu
deva admitir que não tenho a certeza de que tenha sido neste canal que eu a
visionei (escreverei uma carta semelhante, mas sem os elogios à sua
pessoa, aos directores dos outros canais).
Se encontrar a reportagem, e me enviar uma cópia para a morada em
anexo, eu escreverei ao filho do barbeiro do Fernando Pessoa para lhe
agradecer ter contado tal história. E aqui reside a contrapartida. Não
duvido de que os jornalistas responsáveis tenham agradecido ao homem
que o Pessoa abençoou. Mas duvido que o tenham feito de forma
adequada. Explico-me melhor. O que aconteceu foi que os jornalistas
expressaram a sua gratidão pela narração de uma história curiosa. No
entanto, existe aqui uma desproporção. É como se alguém a quem foi
oferecida uma caixa cheia de moedas de ouro agradecesse pela caixa, e não
pelo ouro.
Aquilo que os jornalistas e, depois, os espectadores receberam, não foi
uma historieta curiosa sobre o Fernando Pessoa. Foi um poema. E não um
poema qualquer, mas um poema encarnado, um poema feito gesto. Se eu
revivesse a minha vida de novo e tivesse de escolher entre nunca ter
conhecido a obra completa de muitos poetas ou nunca ter ouvido esta
história, não abdicaria da segunda.
Não me alongo mais sobre o tema da poesia porque sei que V.Ex.ª é um
homem com uma agenda carregada e inúmeras decisões difíceis para
tomar. O que me proponho fazer é agradecer, na devida proporção, o
poema que o filho do barbeiro do Fernando Pessoa iluminou. Ao fazê-lo
não duvido de que alguma justiça será reposta no Cosmos. E aí está a
contrapartida. Ao colaborar comigo neste projecto (palavra que utilizo para
me aproximar do mundo que V.Ex.ª habita), o senhor director participará,
de certa forma, num poema. Não sei se V.Ex.ª é religioso. Se o for
compreenderá de imediato como este pequeno gesto pode constituir um
grande empurrão em direcção ao paraíso ou a uma reencarnação muito
bem-sucedida. Mesmo não o sendo, não duvido de que o seu
comportamento é orientado pelos mais elevados princípios morais, nos
quais se inclui que o beneficiário da generosidade de outrem expresse a sua
gratidão de forma proporcional à magnitude da bênção recebida.
Aguardarei a sua resposta com alguma expectativa. Se se deparar com
dificuldades na recuperação desta reportagem, pois imagine que Fernando
Pessoa colocou a sua mão na cabeça de V.Ex.ª e lhe disse:

«Não te deixes vencer por incompetentes.


Não te deixes vencer por incompetentes.
Não te deixes vencer por incompetentes.»

Agradeço a atenção dispensada, coloco-me à sua disposição para


qualquer esclarecimento adicional e desejo-lhe boa sorte para os seus
projectos.

Um ex-telespectador
IV

Querido amigo,

Para que possas perceber que o meu dia-a-dia não é tão desolado ou
enlouquecido como julgas, vou-te fazer o relato desta passada semana.

Segunda-feira

Dei por mim a passear por um pequeno centro comercial perto da


marginal. Alguma coisa me consolou na existência daquelas lojas iguais a
tantas outras, onde se vai comprar jornais, camisolas e sandes de frango
com alface. Talvez tenha sido, mais do que as lojas em si, a ideia de um
mundo onde as pessoas ainda sentem vontade de trocar de camisa, ler as
notícias ou provar um panini de mozarela. Acabei por fazer o mesmo:
comprei roupa, o que só havia feito uma vez desde que aqui cheguei (acho
que já mencionei as minhas camisolas largas). Não te tenho falado disso,
mas emagreci bastante. A roupa que trouxe para cá já me estava a ficar
muito larga. Por vezes sentia que quem me observasse com atenção
suspeitaria que eu era um presidiário acabado de se evadir, envergando
com desconforto as roupas do primeiro infeliz que encontrara fora dos
muros da prisão. Admito que obtive um ligeiro prazer quando vesti, ainda
no corredor do centro comercial, uma das camisolas novas. Comecei a
sentir que era como as pessoas que andavam por ali, que os meus
infortúnios não lhes seriam estranhos, nem os seus triunfos me pareceriam
incompreensíveis. Quis prolongar essa sensação. Comprei um jornal e fui
para a zona da restauração. Escolhi um menu num restaurante chinês e
sentei-me a comer e a ler perto das outras pessoas. Custou-me um pouco
ter interesse pelas notícias do jornal. Não tenho facilidade em interessar-me
pelos pormenores de uma guerra longínqua, de um caso de corrupção ou
das propostas para legislar o sistema financeiro. Rapidamente a minha
atenção passou do jornal e do prato de galinha à não sei quê (do qual
apenas comi algumas garfadas) para a gente que me rodeava. Notei que
havia muitas crianças espalhadas por aquelas mesas, comendo
hambúrgueres, sandes ou gelados. O episódio da praia, onde ofereci
gelados para que os miúdos me chutassem a bola à cara, despertou a minha
vontade de conviver com crianças. Apeteceu-me ir falar com elas.
Imaginei-me a abordar os pais e a pedir se podia brincar um pouco com os
seus filhos. Seria curioso observar a reacção dos miúdos, bem como a dos
pais, o horror com que me olhariam… e, contudo, não fez sempre parte da
vida dos adultos o convívio com crianças? Tem de ser uma característica
dos adultos o desinteresse pelo mundo interior de todas as crianças que não
sejam seus descendentes?

Terça-feira

Após o jogging matinal passei por casa dos Viana. Ao contrário do que
sempre tinha acontecido, quando toquei à campainha ninguém respondeu.
Como sabia que eles se encontravam em casa – o carro estava estacionado
a três metros de mim –, voltei a tocar. Devem ter passado quase uns cinco
minutos até que o médico, meio ofegante e muito irritado, me abriu a porta,
olhando-me com alguma antipatia. Não só não me convidou para entrar
como me perguntou o que eu pretendia num tom distante da cortesia.
Surpreendido pela recepção, disse-lhe que gostaria de falar com a mulher
dele. Ele informou-me que ela estava doente e que era uma má altura.
Apercebi-me de que devia ter interrompido uma discussão. De imediato
mostrei a minha preocupação para com a mulher dele e expressei o desejo
de melhoras rápidas. Para justificar a minha visita («vim cá para tentar
saber mais sobre o vosso filho» não ia servir) disse que viera pedir a receita
do bolo de laranja.
– Tenho a certeza de que, quando a Teresa estiver melhor, terá todo o
gosto em passar por sua casa com a receita – disse, despachando-me sem
cerimónias.
A frustração deste encontro deixou-me um pouco irritado. Há qualquer
coisa de muito estranho com este casal, sem dúvida. Regressei a casa e
tentei escrever, mas não saiu nada. Continuava a pensar nos Viana e queria
discutir o seu comportamento com alguém. Meti-me no jipe e fui a casa do
alemão. Bati com o nariz na porta, a segunda visita falhada do dia. A
frustração acumulava-se e aumentava a minha necessidade de falar. Dirigi-
me à cidade. Estava determinado. Antes do dia acabar, eu haveria de ter
uma conversa.
Não foi fácil. As conversas talvez sejam como o amor: só se encontram
quando não se está à procura delas. Comecei no supermercado. Abordei
com a máxima delicadeza as mães que faziam compras. Fiz piadas sobre
iogurtes, pedi ajuda para escolher detergente da loiça, disse várias vezes
«não sou daqui» com um ar de cachorro abandonado, pedi receitas e
sugestões. Ninguém foi indelicado comigo. Todas as pessoas me
responderam de forma cordial, naquele sotaque sinuoso que percorre as
palavras portuguesas com os mesmos ziguezagues das estradas desta ilha.
Algumas despacharam-me com a cortesia que se pode esperar das pessoas
civilizadas enquanto compram manteiga e papel higiénico, outras
esticaram essa cortesia, respondendo com paciência às minhas várias, e
tolas, questões.
– Bom dia. Desculpe, eu não costumo fazer compras… acha que esta é
uma boa marca? – começava eu, segurando uma embalagem de plástico
cheia de um líquido cor de limão radioactivo e sorrindo como um turista
atrapalhado numa grande cidade.
– Sim, serve muito bem – sorria-me de volta a dona de casa.
– E já agora, desculpe lá, mudei-me há pouco para aqui… e gostava de
cozinhar peixe… – e aqui começava a notar logo alguma impaciência na
minha interlocutora –, mas não sei qual será o mais fresco...
– Aqui é tudo fresco…
– Ah, óptimo. Mas qual será o mais saboroso?
– Mmmm – e por esta altura as mulheres já mostravam todos os sinais de
querer terminar a conversa: – Isso depende do seu gosto… – e o sorriso
esbatia-se, as rodas do carrinho iniciavam a sua marcha e, sem subtileza,
elas desviavam os olhos de mim para as prateleiras.
– A senhora, o que recomendaria? – insistia eu ainda.
– Talvez o robalo. Bem… tenho compras para fazer… bons
cozinhados…
– Obrigado – respondia eu à figura que se afastava de mim naqueles
corredores cheios de embalagens e números.
Mais frase banal, menos frase banal, foram estes os diálogos. Tentei falar
com os poucos homens que andavam pelo supermercado, mas também não
pegou. Recomendaram-me um vinho ou outro e foi isso. A sequência de
falhanços aumentava ainda mais a minha necessidade de conversar.
Pus-me a andar pelas ruas. Acho que devo ter parecido um pouco louco.
Olhava para as pessoas olhos nos olhos e sorria-lhes. Senti-me pronto a
agarrar alguém e a pedir-lhe, suplicar-lhe para conversar um pouco
comigo. Abordei várias pessoas com perguntas sobre direcções,
recomendações para restaurantes, locais a visitar. Até que alguém me disse
«Oh amigo, mas se quer saber essas coisas, o melhor é ir ao posto de
turismo». Claro! Óbvio! Quase beijei o senhor apressado que me fez essa
sugestão. Iniciei a curta caminhada para o meu destino e, na certeza de que
poderia ter uma conversa de mais do que cinco minutos, as ruas
pareceram-me mais belas, as pessoas mais felizes e o céu menos cinzento.
O posto de turismo era uma sala com algumas cadeiras, dois balcões e
muitos posters. Atendeu-me uma rapariga de uns vinte anos.
– Hello! – disse-me ela.
– Olá! – sorri-lhe.
– Ah, desculpe – e logo nesta palavra vibrava todo o sotaque açoriano,
com o u a enrolar-se como uma onda. O sorriso dela era sincero, acho que
até corou um pouco.
A nossa conversa foi longa. Ela abriu um mapa da ilha e começou a fazer
sinais e a escrever sugestões. Eu fiz tantas perguntas que foi necessário
recorrer a um segundo, e mesmo a um terceiro mapa. Várias vezes fomos
interrompidos por idosos de outras partes do mundo. Eu deixava-os falar
com a Maria – o nome da rapariga – e aguardava, fingindo que estudava os
sinais que ela fizera nos meus mapas. A rotina era sempre a mesma: abria
um mapa legendado na língua dos seus interlocutores, fazia meia dúzia de
círculos, entregava-lhes folhetos sobre as expedições para ver as baleias ou
os passeios às furnas, respondia a uma ou duas questões e desejava-lhes
uma boa estadia. Senti, com alegria, que Maria os despachava para voltar a
falar comigo. Depois sorria-me e tornava a falar do melhor local para
comer cozido, das horas em que era mais interessante visitar as fábricas de
chá, de onde se podia comprar boas hortênsias. E entre estes temas eu ia
perguntando por ela, se estudava, o que pretendia do futuro, se já visitara
Lisboa, onde é que as pessoas da idade dela iam à noite, que praias
preferia, de que sítios gostava tanto que nunca os recomendava aos turistas.
A conversa durou duas a três horas. No fim agradeci-lhe a paciência que
tinha demonstrado para um chato como eu. Maria sorriu, coquete, e disse-
me que, se todas as pessoas que lá entrassem fossem como eu, o seu
trabalho não seria tão aborrecido.
– Volte sempre que quiser! – foi como se despediu. Na altura, senti uma
ligeira picada numa parte de mim adormecida há muito. Interpretei aquele
comentário, que pode muito bem ter sido inocente, como uma abertura a
outro tipo de conversa, onde as palavras não têm o significado normal ou
até são mesmo desnecessárias. Foi uma sensação muito rápida, durou nem
um segundo, mas fez-me olhar para Maria e ver não uma miúda muito
mais nova do que eu, mas uma mulher que me desafiava. Senti que devia
andar resoluto na sua direcção e beijá-la, ou mesmo tomá-la ali, sobre a
secretária ou contra a parede. O momento passou, felizmente. Sorri-lhe,
desejei-lhe um bom dia e saí.
Andei devagar de volta ao jipe. Sentia-me culpado por ter sido
surpreendido pelo desejo. E sentia-me cansado do dia. Voltei para casa.
Uma chuva miúda começou a cair. Quando me sentei na sala e espalhei os
mapas na mesa, a chuva já era forte e o ar vibrava com o seu som ritmado.
Num dos mapas, em que ela havia assinalado o seu jardim preferido,
notei que o marcara com o símbolo de uma cara sorridente. Não percebo
bem porquê, mas isso fez-me sentir uma pontada de ternura, a que se
seguiu uma melancolia líquida. Peguei numa caneta e desenhei uma cara
triste ao lado do sorriso. Olhei para a janela e para a chuva que caía. Uma
das coisas boas dos Açores é que o tempo parece acompanhar o meu
estado de espírito.

Quarta-feira

Choveu todo o dia. Fui correr, mesmo assim. Li, escrevi, cozinhei, comi.
Ao fim da tarde, quando a chuva amainou, desci até ao mar. Estavam lá os
dois barcos. Perguntei-me por Hector, onde estaria e o que andaria a fazer.
Acho que vi uma alforreca ao longe, mas pode ter sido ilusão de óptica. O
que faria uma alforreca aqui nesta esta altura? Também lhe aconteceu
alguma coisa e saiu de onde estava para vir escrever cartas para os Açores?
Serei eu uma alforreca? Serei venenoso ao toque? Gelatinoso de aparência?
Estarei ao sabor das marés?

Quinta-feira

O sol voltou. Deixei-me ficar na cama a observar a forma como a luz ia


habitando o meu quarto. Imaginei que a luz era feita de partículas
individuais que se pareciam com bonecos brancos irradiando luz do seu
peito. Só me levantei quando já tinha o quarto cheio de bonecos luminosos.
Almocei no restaurante da praia onde também almoçou um grupo de
pescadores especialmente ruidoso e divertido. A seguir, fui até casa de
Hector mas ele não estava lá, nem o seu carro. Pode ter tido que regressar à
Alemanha. Não percebo porque não me avisou.
Voltei para casa e, pouco tempo depois de ter entrado, apareceu-me o Dr.
Viana à porta com um ar cansado e a receita do bolo de laranja nas mãos.
Convidei-o para tomar chá. Iniciámos a nossa conversa, que mais pareceu
uma batalha. Eu procurei perceber o que se passava com a mulher dele e
descobrir tudo o que podia sobre o seu filho. Ele esquivou-se às questões
de forma subtil, ziguezagueando por entre as minhas abordagens. Além de
querer compensar a antipatia do nosso último encontro, ele vinha, cedo o
percebi, falar da Croácia. Trouxe o tema quase por acaso e, se não tivesse
sido a insistência durante o jantar, eu não teria achado tão estranho o seu
interesse pelo assunto. Dei-lhe o que ele queria. Falei da minha viagem,
das praias cheias de pedra e de italianos, dos restaurantes em Dubrovnik
com pizzas do tamanho de discos voadores, dos ferrys entre as ilhas, dos
sinais de proibição de armas à entrada dos cafés, e de uma série de outras
coisas. Falei com o prazer da nostalgia, embora com pequenas picadas de
dor, por motivos que podes facilmente compreender. Não sei como ele o
faz, que talento tem, se frequentou algum curso de psicoterapia ou ouviu
confissões numa qualquer religião, mas a certa altura senti que contava a
minha vida ao mais interessado dos biógrafos. Parecia não haver nenhum
detalhe na narrativa que fosse demasiado insignificante, nenhuma
descrição excessivamente pormenorizada ou aborrecida, nenhum
acontecimento a mais. Durante o relato tentei várias vezes mudar de
assunto, mas, sem grande alarde, de forma quase gentil, ele manteve-me a
falar da minha viagem até que, talvez por já saber tudo o que pretendia, se
pôs a falar dos Açores e, desta vez já sem subtileza, a averiguar sobre o
meu exílio. E eu respondi-lhe, mas fi-lo da mesma forma que ele falou do
filho ou da mulher, proferindo frases que, apesar da sua estrutura correcta,
apesar de utilizarem as palavras pretendidas pelo interlocutor, não lhe
diziam nada do que ele queria ouvir.
Estávamos envolvidos nesta conversa absurda quando ele me perguntou
se me sentia triste. Fui surpreendido pela pergunta, tão pessoal e directa,
depois de uma longa conversa onde se falou muito e disse pouco. Sorri um
daqueles sorrisos de embaraço. Quis responder mas percebi que havia sido
desmascarado, como se ele tivesse reconhecido sem dificuldade um
sotaque que eu me esforçara por esconder e que acreditara ser
imperceptível. O meu rosto traíra-me. Desviei o olhar, pois ele agora
observava-me com um ar quase de piedade, e pus-me a contemplar o mar
em silêncio. Ficámos assim algum tempo, se segundos ou minutos, não sei,
mas o tempo suficiente para o silêncio deixar de poder ser percebido como
uma pausa na conversa e se tornar na conversa em si.
Voltei a olhar para o médico que, como eu havia feito, se pusera a
contemplar o Atlântico. Havia nele um cansaço tremendo, aquele tipo de
cansaço que impele não ao sono mas ao movimento perpétuo. Imaginei que
ele era o único detentor das chaves de todos os quartos de um gigantesco
hotel, percorrendo os corredores infinitos de olhos baixos, abrindo e
fechando portas, sem saber se era manhã ou noite. Comovi-me e pensei em
contar-lhe. Pensei em aproveitar esta melancolia morna em que nos
afundáramos os dois e contar-lhe aquilo-que-me-aconteceu. Contar tudo,
com o detalhe com que contei a minha viagem à Croácia. Comecei a
pensar por onde começaria e bastou isso para que me assolasse uma
tristeza violenta. Pigarreei para não chorar. Nunca percebi porque é que
isso resulta, mas resultou. Levantei-me de imediato e levei as chávenas
para a cozinha. Ele também se levantou e vi de novo no seu rosto o
cansaço do funcionário de hotel destinado a trabalhar sem fim abrindo
portas para os outros. Agradeceu o chá e estendeu-me a mão. Apertei-a
com força procurando expressar nem sei bem o quê, qualquer coisa entre o
agradecimento, o sinal de alerta e o pedido de ajuda. Já com a porta aberta,
não resisti:
– Sente muito a falta do seu filho?
Ao contrário de mim, ele não se surpreendeu pela pergunta directa e
íntima. Olhou-me nos olhos como um professor que quer assegurar-se de
que o aluno compreende a sua explicação:
– Mais do que do meu filho, sinto a falta da vida com ele.
Vi-o a andar devagar em direcção à sua casa. Era fim de tarde, todas as
nuvens haviam abandonado o céu que agora ganhava cores de fogo e de
magma, a brisa que soprava do mar era amena, as flores explodiam no
auge da Primavera e as ondas rebentavam numa valsa lenta. Aquele bocado
do mundo estava perfeito e eu fechei-lhe a porta, corri as cortinas e deixei-
me levar numa enxurrada de choro.
Isto foi ontem. Hoje acordei um pouco mais leve e até fui capaz de
apreciar a Primavera durante a minha corrida matutina. Depois passei o dia
em casa a escrever-te esta carta. Só parei para fazer o bolo de laranja. Está
agora no forno. Espero que fique bom.

Abraço-te

P.S.: O bolo ficou maravilhoso.


V

Queridos pais,

Quem como eu faz da sua vida uma viagem cedo percebe que o tempo se
divide em dois: a permanência e a deslocação. Tenho-vos escrito sobre a
permanência, o período em que um viajante descobre um novo local, em
que procura conhecer as singularidades das ruas e gentes que o rodeiam,
em que imagina o espaço que ocupa como um destino final. Em Paris tenta
ser parisiense, em Londres, londrino e em Nápoles, napolitano. Com a
ajuda da imaginação, o viajante percorre as ruas da cidade destino e tenta
imaginar que estas são as suas ruas. A sua atenção prende-se em tudo o que
é singular, na língua, nas letras, nos candeeiros, nos rostos, na comida, no
clima, em suma, em tudo aquilo que seja particular deste lugar, porque só
chove daquela forma em Londres, porque as flores nunca são tão
primaveris como em Amsterdão, porque uma pizza em Nápoles é uma
experiência teológica.
Se a permanência é feita de características únicas, a deslocação procura a
universalidade, a repetição, ser Tróia e Atenas ao mesmo tempo.
Raramente recebe mais do que umas poucas linhas dos escritores de
viagens, excepto para a ocasional aventura de voos perdidos e barcos
avariados. Mas não merece esse mundo de bombas de gasolina, aeroportos,
fronteiras, salas de espera, estações de comboio e afins, uma descrição?
Não é este mundo quase um país em si mesmo, também ele com as suas
singularidades, os seus encantos, os seus mitos e histórias?
Estou no aeroporto de Amesterdão. Perdi o meu voo. Das vinte horas que
terei de esperar, doze já passaram. Alguém numa das minhas viagens
comparou os aeroportos aos purgatórios. Não é uma comparação
descabida. Se bem que, para mim, pelo menos no dia de hoje, o aeroporto
aproxima-se bem mais ao paraíso do que ao purgatório. É possível que
esteja a exagerar, mas acho que nenhum lugar reúne de forma tão perfeita o
espírito humano, com todas as suas qualidades e defeitos.
Estou sentado num dos muitos cafés que existem espalhados pelo
aeroporto. São zonas de passagem, criadas para que o tempo passe de
forma mais indolor e olvidável possível. Mas, por isso mesmo, é um
espaço onde as pessoas podem pensar, onde podem suspirar, onde as
circunstâncias as obrigam a ficar horas sentadas. Para muitos é a primeira
vez em largos anos que se vêem com horas de sobra nas mãos e sem uma
lista de coisas para fazer.
Gosto de aeroportos. Gosto de me saber num edifício rodeado de aviões.
Gosto de imaginar, mesmo que por breves segundos, cada destino que
surge nos ecrãs. Gosto dos avisos nos altifalantes: «Passengers boarding
the flight 345 for Madrid, Spain, should proceed to gate 82» ou «Mr
Janpuri, you are delaying the flight!». Gosto do contraste entre as pessoas
suspirando, sem saber mais o que fazer enquanto aguardam o seu voo, e as
outras correndo como nunca correram na vida, todas urgência e ansiedade,
tentando chegar a horas ao embarque. Gosto da mistura de línguas, de
raças, de roupas. Gosto do ritmo cacofónico das rodas das malas, como
minúsculas carruagens puxadas em todas as direcções. Gosto da multidão
subindo e descendo escadas rolantes, deixando-se levar pelas passadeiras,
olhando para anúncios em línguas desconhecidas. Gosto dos cafés e
papelarias com jornais em diferentes alfabetos. Gosto das lojas de roupas,
de malas, de presentes, com chocolates enormes e bonecos de plástico
retratando um aspecto do país onde o aeroporto reside. Gosto de ver passar
os pilotos e as hospedeiras, de ver os seus uniformes, o seu ar levemente
importante e os sorrisos de quem faz da coisa mais extraordinária do
mundo (voar, voar!) um gesto quotidiano, não muito mais difícil do que
lavar o cabelo ou fazer a barba. Gosto da arquitectura, da sensação de
espaço, dos quilómetros quadrados de vidro entre os passageiros e o
mundo exterior. Gosto dos ecrãs gigantes com os nomes das cidades de
todo o mundo, e a panóplia de letras e números. Gosto dos viajantes
habitués para quem tudo isto é rotina, mais uma das coisas a fazer para
fechar outro negócio, e o seu ar levemente aborrecido e muito profissional,
já sem saber quantas vezes estiveram naquele aeroporto em particular.
Gosto dos posters acolhendo os passageiros em nome de uma cidade que
muitos não chegarão sequer a visitar, já que usam aquele aeroporto apenas
como uma sala de espera entre um acto milagroso e outro. Gosto daqueles
a quem o aeroporto assusta, olhando preocupados para os bilhetes e para os
monitores, com medo de se perderem, de perderem o voo, de que o avião
caia, de que as malas se extraviem, talvez mesmo de que apanhem o voo
errado e aterrem numa terra longínqua da qual não saberão como voltar.
Gosto das filas para depositar malas, filas para comprar um café servido
em copo descartável, filas para passar pelos detectores de metais. Gosto de
ver que meias as pessoas levam quando se descalçam, e o seu ar meio
desagradado quando tiram os cintos. Gosto do tilintar metálico de quando
os guardas inclinam os tabuleiros de plástico que passaram pelo aparelho
de raios X, onde um funcionário aborrecido procura vislumbrar bombas
entre carteiras, pacotes de pastilhas elásticas, revistas enroladas, pulseiras,
caixas de óculos, carregadores de telemóveis e toda a infinita parafernália
do mundano. Gosto dos cafés solitários entre o check-in e a zona de
embarque, com meia dúzia de bolos e sanduíches feitos para agradar a
todos os paladares. Gosto das mangas para entrar nos aviões com o seu ar
de peça gigante de Mecanno, que para mim são como pontes entre o
mundo da terra e o mundo dos ares. Gosto de ver aqueles carros pequenos
passarem com as malas, gosto da ideia de trânsito, de deslocação, de
objectos e pessoas com destino definido, com o seu futuro escrito num
papel. Gosto das casas de banho enormes, com homens a esfregar a cara
com água ou a fazer a barba, com gente a olhar-se ao espelho, a verificar as
rugas e as olheiras antes do encontro com a pessoa querida. Gosto dos
aeroportos como bolsa da saudade, onde em minutos se reencontram
pessoas que não se viam há anos, e onde, após beijos emocionados, se
despedem casais que nunca mais se encontrarão. Gosto da expressão
melancólica dos que ficam, depois da despedida. Gosto da sensação de
que, enquanto aqui estou, estou um pouco à deriva, sem âncora, mas certo
de que daqui a mais algum tempo me encontrarei num avião e em breve
estarei num lugar distante. Gosto do metal reluzente por todo o lado, das
estruturas que abrigam escadas, guichets, passadeiras, anúncios, jaulas para
fumadores, bebedouros. Gosto da ideia de que tudo isto foi feito por
homens, do esforço que foi necessário, do conhecimento acumulado, da
coordenação de milhões de gestos para este espectáculo. E gosto quando
surge no ecrã, ao lado do meu destino, com o nome do meu voo, a palavra
boarding, e por mais voos que tenha feito, por mais viagens que tenha
experienciado, por mais destinos que já conheça, sinto sempre um acelerar
do pulso, uma libertação de energia, como se uma roda dentada dentro de
mim tivesse encaixado noutra e iniciado a sua revolução. Creio que, nestas
alturas, enquanto dou os primeiros passos na direcção do meu avião, sorrio
sempre, sorrio como no meu primeiro voo, quando tu, pai, me olhaste nos
olhos e me disseste que daí a nada estaríamos no céu e tinhas a certeza de
que eu não teria medo, porque eu tinha olhos de pássaro. Lembras-te, pai?
E tu, mãe, procurando esconder o teu medo, tu que não gostas de voar,
sentada junto ao corredor tentando não me revelar o quanto te angustiava
estar num avião. Só soube desse teu medo anos depois. Nesse dia não só
era novo demais para ter reparado nele, como o meu lugar à janela me
oferecia demasiadas fontes de entusiasmo para que as subtilezas da
expressão humana fossem dignas da minha atenção, mesmo as da minha
mãe. Ainda me lembro de como, apesar de as ter visto em filmes e
fotografias, as nuvens, vistas de cima, me pareceram um país de algodão,
onde se poderiam construir palácios, lojas de relógios ou estádios de
futebol.
E com estas recordações e esta carta, o tempo continuou a passar e já
estou bem mais perto do meu voo, de voltar a sentir as rodas a encaixar-se
dentro de mim e começarem a rodar.
Despeço-me rapidamente. Saibam que sinto a vossa falta, quer seja em
permanência ou em deslocação. Espero que andem felizes pela vossa ilha.

O vosso filho em trânsito


VI

Querido amigo,

Li a tua carta com preocupação. Pela primeira vez desde que vim para
aqui vou ter de te criticar: demoraste linhas demasiadas para me dizeres
que o teu filho está bem, que o acidente não lhe causou qualquer dano. E
gastaste essas linhas expressando o teu sentimento de culpa paterna,
pedindo-me desculpas (vê lá, tu pedindo-me desculpas a mim, que
absurdo!) porque o teu filho destruiu o meu carro. Tudo o que tens feito
por mim vale mais do que qualquer carro, vale mais do que todos os carros
que já foram construídos, vale mais do que uma garagem do tamanho da
Gronelândia onde caibam todos os veículos, com uma, duas ou mais rodas,
que alguma vez circularam. O importante, como bem o disseste, é que o
João está bem, e que mais ninguém se magoou. Peço-te que trates do
seguro e de todas essas chatices. Como sempre, a papelada que for para
assinar, envia-me e colocarei o meu nome onde me disseres para o fazer.
Só tenho pena de não te poder ceder a minha assinatura, de não poderes ser
tu a assinar sempre com o meu nome, que o gesto com que coloco o meu
nome no papel não se transfira por magia para o teu generoso cérebro.
Fiquei também preocupado pelo sentimento de culpa que o teu filho
mostrou. Confessaste o teu orgulho na rectidão moral do João quando se
propôs pagar todos os danos. Ora, primeiro, a maior parte será coberta pelo
seguro. Segundo, terceiro, quarto e quinto, nunca aceitaria tal coisa. Dizes-
me que ele anda com um peso na consciência, que tem dificuldade em
dormir, que deixou de sair à noite para poupar dinheiro e que insiste em me
telefonar para pedir desculpas in viva voce. Custa-me saber que o João está
em sofrimento e que eu sou, mesmo que indirectamente, a sua causa. Claro
que ele me pode telefonar, é só uma questão de agendarmos. Isto se ele
ainda sentir essa necessidade depois de ler a minha carta. É que, para tentar
resolver tudo isso, escrevi-lhe uma carta. Segue em anexo a esta. Espero
que ele a leia.
Falaste pouco do teu susto com o acidente. Imagino que também tu
estejas abalado. Não precisas de evitar esses assuntos comigo. Podes
partilhar os teus medos e anseios, podes descrever-me com o maior detalhe
os teus mais terríveis pesadelos, podes fazer comparações, desabafar,
exagerar, sem qualquer receio sobre o que vou sentir quando te ler. Gostava
muito que assim fizesses.
Por vezes penso com tristeza que há pessoas nos Himalaias que não
sabem da existência de alguém tão gentil, generoso e paciente como tu. Se
tivesse as suas moradas, escreveria a cada uma delas para eliminar essa
lacuna…

Um forte abraço
VII

Querido João,

O teu pai informou-me do teu desejo de penitência. Sei muito bem que
certas culpas não desaparecem por mera indicação exterior de que são
desnecessárias. A culpa pode ser como um grilhão que nos prende os pés e
que mais ninguém vê. Quando alguém nos insta a ser livres e partir,
procuramos mostrar-lhe as nossas correntes, só que estas, apesar do seu
peso para nós, são invisíveis para os outros. É por isso que as religiões
possuem rituais de expiação, palavras, gestos e actos mágicos que nos
podem libertar. Sei que não basta eu dizer que não te deves sentir culpado
para que tal aconteça. Sei que sentes uma necessidade de ser redimido. Na
confissão católica, o padre ouve os pecados e determina a penitência.
Desconheço se existem tabelas que fazem corresponder a mentira o roubo
ou o adultério a um número determinado de pais-nossos ou ave-marias.
Mas de certeza que não foi determinada a penitência para o pecado de se
estar a conduzir o carro de outra pessoa no momento em que ocorre um
acidente. Assim, se não te importares, e porque te sentes em falta para
comigo (sentimento demasiado errado para que eu o comente),
estabelecerei eu a tua penitência. Será uma penitência dupla. A primeira
parte é simples. Terás de ler esta carta até ao fim. A segunda parte será
explicada mais à frente.
Agora que tenho a tua atenção, fico quase incapaz de escrever pela
imensidão de coisas que gostava de te dizer. Contudo, ia parecer a
repetição da ancestral história do homem velho desgastado com a vida,
consumido em arrependimento e tatuado por decisões erradas, a urgir o
jovem para que não siga o seu caminho, a dizer-lhe que viva. Conheço a
tua inteligência e sei que isso não é preciso. Não duvido de que navegues
de forma fluída entre prazer e dever, de que acumules alegria e amigos, de
que saibas procurar o júbilo sem te perderes na busca. Com o sangue do
teu pai nas veias e as suas palavras nos teus ouvidos, outra coisa não é
possível. Além disso, eu não sou um homem desgastado com a vida. Não
cometi o pecado de não ter vivido. Cometi outros, mas esse não.
Vou pedir-te que tenhas paciência comigo. O teu pai é um óptimo
correspondente, mas preciso de ser lido por alguém que ainda viveu pouco,
alguém na posse de todas as possibilidades e da vitalidade da juventude.
Não porque eu seja daqueles adultos que inveje a juventude, porque a vida
adulta lhe sabe a pouco. A vida a mim nunca soube a pouco. Nem eu
invejo a juventude, a tua ou a de outro qualquer. Mas preciso de dizer umas
coisas. Lê-as como conselhos, como disparates, como desabafos, como
crise de meia-idade, como expressões de desespero, lê-as como quiseres,
mas sempre sabendo que elas foram escritas por alguém que não tem medo
de olhar para os seus ossos, por alguém que tentou não esconder
imperfeições, passar uma imagem melhorada ou, de qualquer outra forma,
desviar-se da verdade, da sua verdade.
Aos dezasseis anos descobri o amor e o mundo, e talvez estas duas
descobertas nunca se façam senão em simultâneo. Descobri que o mundo
era vasto e infinito de possibilidades, que, ao contrário do que me
acontecera até aí, nenhum dia poderia passar sem que nele encontrasse um
alvo de espanto, uma marca funda feita pela beleza na superfície das
coisas. E descobri que um sorriso menos generoso de uma rapariga de
olhos castanhos era suficiente para me fazer sentir que todas as infinitas
possibilidades do cosmos não chegariam para a minha felicidade.
Aperceber-me da infinitude do mundo e da finitude do amor, ir
percebendo que existiam demasiadas coisas imperdíveis à face da terra,
que existiam demasiadas possibilidades de amar para que alguns amores
ficassem por viver, fez nascer em mim, como um cancro no pulmão,
retirando-me cada vez mais ar, e levando-me quase ao sufoco, a ideia de
que o tempo passa. De que passa e nunca pára, que é como uma
locomotiva sem travões. Tal fez-me viver a minha juventude em urgência,
consciente, demasiado consciente da passagem do tempo, como se um
relógio enorme pairasse sobre a minha cabeça fazendo ribombar cada
segundo como um trovão mitológico. Vivi esses anos batalhando
diariamente contra a passagem dos dias, batalhando contra o tic-tac, contra
as páginas esvoaçantes dos calendários. Sedento de vida, procurei-a por
todo o lado. Por vezes fui estúpido, outras ousado, preferi cair no ridículo a
sucumbir a uma vida que não fosse tudo o que podia ser, que não
contivesse tudo o que pudesse conter, que não fosse incandescente,
expansiva, incrível, feérica. Mas toda esta irrequietude, toda esta procura
afastou-me muitas vezes do agora, de viver o momento no momento. Só
com o passar dos anos é que fui aprendendo a não estar em urgência, a não
olhar para o minuto seguinte como mais uma batalha. Mas consegui. Até
certo ponto, claro…
Já adulto, apercebi-me de quanta sorte tinha, de todas as coisas que
conhecera e amara, da generosidade dos que me rodeavam, do universo
vasto que se criara dentro de mim. Não deixei de querer engolir a vida com
casca e sementes, mas passei a sentir-me saciado. Se enquanto jovem eu
andava como quem se lança numa carga marcial, já adulto passei a andar
devagar – por vezes demasiado devagar, testando a paciência daqueles que
passeavam comigo (pergunta ao teu pai!). Aprendi a andar com o passo de
quem já está satisfeito de todas as formas e consegue estar no mundo,
numa rua, numa praça, mesmo que por breves momentos, sem objectivos,
sem propósito e sem destino. Essa sensação, de ser apenas um espectador
do cosmos sem qualquer intenção que não seja a de se maravilhar com o
espectáculo das coisas, essa sensação tive-a algumas vezes. E,
curiosamente, foi nesses poucos momentos que senti que vencera a batalha
contra o tempo. Que desaparecia o tic-tac sobre mim.
Por agora já deves ter reparado que, ao invés de uma carta de um velho
invejoso da juventude, querendo gritar aos ouvidos dos jovens para se
lançarem à vida, com urgência, com os dentes de fora, sem perder um
segundo, recebes a carta de um velho que quer sussurrar aos ouvidos dos
jovens para terem calma, para olharem ao seu redor, para cheirarem as
flores e apreciarem as pequenas coisas. Sim, admito a minha culpa, vê tu
os meus grilhões. Sim, podes confirmar com o teu pai, eu sou uma
montanha de sentimentalismo e chavões, como dizia Salinger (e sim,
também sou dos velhos que citam escritores do seu tempo): ponho por
vezes nas coisas mais ternura do que Deus poria. Mas sabes que mais? Não
me importo. Os chavões aceitam-se quando são proferidos em inocência,
quando o seu emissor acredita que foi o primeiro a pensar aquilo, o
primeiro a dar àquela ideia aquelas palavras.
Obrigado por teres lido estas divagações bafientas. A primeira parte da
tua penitência está cumprida, vamos à segunda.
Terás de adquirir uma bengala. Se queres usar o dinheiro que tens
poupado para me pagar na sua aquisição, ou se queres arranjar um ramo de
árvore ou a perna de uma mesa e, apelando ao artista em ti, construir uma
bengala, a escolha é tua. O fundamental é arranjares uma bengala que seja
imediatamente percebida como tal, que uma criança de cinco anos e um
velho de noventa, quando questionados sobre o nome do objecto,
respondam sem hesitar: É uma bengala!
Adquirida a bengala, deves dirigir-te com ela à redacção do jornal A
Semana. Pede para falar com o editor ou com o crítico Ermenegildo
Esteves, idealmente com os dois ao mesmo tempo. Se conseguires falar
com um deles, ou com os dois (seria maravilhoso!), após um primeiro
cumprimento, simula que lhes vais dar com a bengala. Depois do susto,
explica que eles foram avisados e que da próxima vez é a sério. Se não
conseguires falar com nenhum deles, diz que vieste entregar a bengala e
deixa-lhes um envelope com o seguinte texto:

«Fica o aviso. Da próxima vez é a sério!»

Suponho que tudo isto te pareça um pouco bizarro. Lembro-te de que


não se chega à redenção por caminhos simples. Acredita em mim e na
importância do gesto que vais fazer.
Não te maço mais. Agradeço a tua atenção. Desejo-te dias intensos e
outros aborrecidos.

Abraço

P.S.: Não contes nada disto ao teu pai…


VIII

Querido amigo,

Espero que estejas bem e que os anjos velem a tua cama, e que o teu
filho não se tenha irritado ou exasperado demais com a carta que lhe
enviei.
Por aqui foi a semana dos regressos. Hector está de volta, e com o braço
partido. Pouco me falou do seu desaparecimento ou das causas do braço
engessado; só me disse que esteve na Alemanha a tratar de uns assuntos e
que escorregou a carregar caixotes. Almoçámos no senhor Joaquim numa
tarde que parecia já de Verão. A minha pequena praia começa a ter
banhantes durante a semana, com as suas toalhas, cestos e parafernália
variada. Por um lado, oferecem-me um espectáculo fascinante; por outro,
parecem fazer pouco do meu isolamento e tornar o meu desterro num
capricho de louco.
O almoço fez-me rir muito, o que já não acontecia há demasiado tempo.
O alemão voltou a salgar demasiado a comida, a falar aos berros e a contar
histórias incríveis com muitos gestos. O sotaque dele é tão bizarro que
parece saído daqueles filmes de Hollywood passados num país exótico, em
que os actores americanos tentam falar um inglês estranho, como se a sua
primeira língua fosse outra. O efeito cómico foi aumentado pelo braço
ligado ao peito, que o forçou a comer só com uma mão. No fim do almoço,
Hector lançou-me um desafio. Dada a sua limitação actual, ele precisa de
alguém que o ajude a conduzir o barco. Garantiu-me que me explicará tudo
e que, na verdade, só há uma ou duas coisas no barco que ele não consegue
fazer só com uma mão. Marcámos para amanhã. Estou curioso para
perceber que faz ele nestas saídas. Será que vislumbrarei o tal tesouro?
Entretanto, a Teresa Viana bateu-me à porta há dois dias. Trazia um
sorriso cansado e uma caixa com scones. Acolhi-a com agrado. Não sei o
que se passou naquela casa nas últimas semanas, mas a senhora queria
falar. Falar como só as mulheres conseguem fazer. Pouco depois de nos
sentarmos para comer os scones e beber um chá que eu preparei de forma
exímia, ela iniciou um dilúvio de palavras que não vou tentar reproduzir.
Falou sobre ter estado adoentada, que os seus problemas de saúde por
vezes atacam sem aviso, que lhe dão enxaquecas tão fortes que ela é
incapaz de fazer mais do que se deitar no escuro e contar inspirações.
Falou-me da melancolia, de uma tristeza que a assalta sem motivo, apesar
da sua vida abençoada, apesar do seu marido dedicado, apesar do seu filho
encantador e viajante que lhe escreve as cartas mais bonitas do mundo.
Aproveitei para lhe perguntar por ele, e consegui levá-la a falar-me das
discussões entre o marido e o filho. Disse-me que, apesar de se amarem,
havia vezes em que se desencontravam e discutiam, sendo que certa
ocasião, há alguns anos, a discussão foi tão crispada que só a recordação
desse conflito lhe dava arrepios. Falou-me de como o marido era um
homem generoso, que sabia tudo – foram estas as suas palavras: «ele sabe
tudo!» – e que passava os dias a ler e a escrever no seu escritório. A
escrever o quê, perguntei. «Ah, não sei, artigos médicos, essas coisas.»
Intrigado, questionei há quanto tempo ele não exercia medicina, mas ela
não me foi capaz de responder com um número certo. Aliás, notei em todo
o seu discurso alguma confusão com datas. Durante aquele monólogo, com
direito a breves interrupções para as minhas perguntas, toda ela era
irrequietude, os seus olhos piscavam e saltitavam por todo o lado, as mãos
nunca paravam quietas, agarravam-se uma à outra, e de imediato se
largavam para se segurarem ao vestido ou à cadeira, os pés nunca ficavam
completamente assentes no chão, dançando um bailado escondido,
esticando-se, fazendo pontas, sapateando. Fiquei um pouco preocupado e
tentei perceber até que ponto esta inquietude, juntamente com as
enxaquecas e a confusão, não podiam ser sintomas de alguma coisa grave.
Não tive sucesso. Apesar da emotividade excessiva e de algumas
confusões, ela quando quer é perita em mudar de assunto.
Aproveitei para lhe dizer que tinha gostado muito de ler as cartas do seu
filho e perguntei-lhe se não havia a hipótese de ler outras. Nesse momento,
ela sorriu de forma quase demencial. «Ahhh! Mas foi isso mesmo que vim
cá fazer.» Tirou então da carteira uma carta de várias páginas. Fora enviada
de Paris, por altura do Natal, o que só percebi durante a leitura já que, tal
como as outras, não tinha data nem vinha num envelope. Pediu-me para a
ler de imediato, pois tinha medo de que o marido desse pela falta das cartas
e descobrisse que ela mas mostrava. Lembrei-me do seu olhar horrorizado
quando, apenas algumas semanas para antes, me preparava para ler uma
carta do filho diante dela, e registei uma mudança. Se este nosso segredo
fosse um adultério, esta seria a fase em que fazíamos amor na cama do
marido.
Sem demoras, li a carta sob o olhar atento dela, o olhar satisfeito de uma
mãe que vê o filho fazer uma habilidade em público e que constata a
admiração das outras pessoas. Percebi que o objectivo não era apenas dar-
me a conhecer o filho, mas ver a minha reacção às palavras dele.
Felizmente, não tive dificuldades em felicitá-la pela carta, embora me
tenha parecido um pouco fantasiosa. Começo a pensar que o propósito do
filho talvez seja tornar-se um escritor de viagens, ou mesmo publicar as
cartas que escreve aos pais. Esta pareceu-me demasiado pensada, as
peripécias exageradas, os pormenores mais estudados do que observados…
mas posso estar a sofrer de falta de imaginação. É possível que todas estas
coisas literárias e mirabolantes aconteçam ao filho dos Viana. Se assim é,
estamos perante esse caso raríssimo do viajante que encontra a viagem
desejada, do homem que obtém o destino que sonhou.
Depois da leitura, ela partiu, não sem antes se esquivar a mais perguntas
minhas. Começo a ficar frustrado com estas conversas com os Viana.
Pedia-te que investigasses se ele exerceu medicina em Lisboa, e, se sim,
onde e até quando. Já te imagino a torcer o nariz ao meu pedido, e a
começares mesmo a acreditar que estou louco. Sei que não preciso de o
fazer, e que a tua gentileza se imporia sempre sobre as dúvidas, mas vou
dar-te uma pequena recompensa. O teu psiquiatra, ou melhor, o psiquiatra
que tu recomendaste, respondeu à minha carta, o que, admito, me
surpreendeu. O homem talvez não seja assim tão negligenciável enquanto
correspondente, como cheguei a pensar. Por cortesia e pela nossa amizade,
irei responder-lhe. E tu, meu caro, não queres fazer de Watson deste teu
Sherlock desterrado?

Abraços detectivescos
IX

Ex.mos Senhores do Instituto Nacional de Estatística,

No seguimento da nossa correspondência*, venho informar-vos de que


conheci alguém chamado Gaspar. O facto ocorreu no dia ____________,
num centro comercial na cidade ____________, onde o referido Gaspar
trabalha numa papelaria. Podeis agora proceder à consequente
reformulação das vossas bases de dados.

Com 99% de sinceridade


Um dos números da coluna da população total

*A verdade, meus senhores, é que estive a pensar se comentaria a


natureza da nossa relação, e se vós poderíeis considerar rude uma menção
directa desta. Acabei por me decidir a fazê-lo, pois, afinal, como é que
poderíamos estabelecer uma relação franca de correspondência, como
poderíamos juntos contribuir para o avanço da nação e da humanidade, se
eu não fosse completamente honesto com V.Ex.as, esperando,
naturalmente, honestidade e franqueza recíproca. Devo, assim, referir que a
nossa correspondência tem sido predominantemente unilateral, e por
predominantemente eu quero transmitir a ideia de em exclusivo, mas de
forma mais suave. Ou seja, sem rodeios, no fundo o que pretendo lembrar é
que ainda não tive resposta à carta, plena de informação relevante, que vos
enviei. Acredito que terão uma justificação sensata e justa para tal
ocorrência e aguardo por lê-la quando receber a vossa resposta.
Espero, da superfície do meu coração, do fundo da minha pele, do átrio
espaçoso da minha alma, que este pequeno reparo não melindre V.Ex.as,
nem seja causa de desmotivação entre o vosso pessoal. Não é de todo a
minha intenção prejudicar a vossa importante função. Temos o mesmo
propósito, o aumento do conhecimento e o progresso da Pátria.
X

Querido amigo,

Escrevo-te ainda em choque, recém-saído de um turbilhão inimaginável.


Senta-te e respira fundo. Começo pelo princípio.
Apesar do sol de ontem, o dia de hoje nasceu enevoado. Acordei muito
cedo e fui de jipe buscar Hector. Tomei café em casa dele, no meio daquela
sala que parece a arrecadação de um louco. Quando saímos, ele pediu-me
para carregar um caixote, e eu aproveitei para brincar sobre o conteúdo
destes caixotes todos e a confusão em que ele vivia.
– Como vocês portugueses dizem… – sorriu-me Hector revelando duas
covas nas suas bochechas barbudas – tralha!
– Então e vamos levar tralha para o nosso passeio? É pouco ecológico
livrarmo-nos do lixo no mar – gozei com ele, mas já levando nas mãos um
caixote banal de cartão grosso, com uns números escritos a marcador preto
num dos lados.
Hector olhou-me de forma estranha. Depois sorriu exageradamente,
como um maníaco que vê uma piada hilariante num comentário fortuito, e
deu-me uma palmada nas costas:
– Não me fales em ecologia, meu amigo!
Este pequeno episódio é capaz de me ter feito corar. Foi a primeira vez
que percebi que era possível ter encontrado um novo amigo. Que existia
uma sensação de camaradagem entre mim e o alemão, apesar das inúmeras
diferenças entre nós. Se eu e Hector nos tornássemos amigos, essa seria a
primeira relação nova desde aquilo-que-aconteceu. Enfim, o que senti na
altura foi a leve euforia da amizade, um prazer terno por me sentir próximo
de alguém que estava fisicamente presente, que me sorria de frente e me
olhava nos olhos, o prazer de ser tocado por um novo amigo.
Estacionei o jipe o mais próximo possível da areia. Em alguns minutos
estava quase tudo pronto para partirmos. O senhor Joaquim, quando nos
viu a preparar o barco, provocou o Hector:
– Então vai levar passageiros. Finalmente segue o meu conselho para não
navegar sozinho!
Hector respondeu de forma seca ao senhor Joaquim, quase com
agressividade, e o outro lá regressou ao seu restaurante. Quando transportei
o caixote do jipe para o barco, notei uma tensão em Hector que nunca tinha
sentido antes. Não pensei muito sobre isso, porque de imediato ele me deu
uma série de indicações náuticas que segui de forma eficaz – tanto tempo a
ler sobre barcos e marinheiros tinha-me preparado. Ajudei Hector a entrar
para a nossa embarcação e zarpámos. Mesmo só com um braço, ele
conduziu-nos de forma exímia para fora da enseada. Era muito cedo e a
neblina parecia não querer levantar. Perguntei a Hector se não havia perigo
de chocarmos contra outra embarcação. Ele tranquilizou-me explicando
que passavam poucos barcos por ali, e os únicos que costumavam passar
eram grandes o suficiente para que os avistássemos a tempo.
Fomo-nos afastando da ilha e o ar foi ficando mais limpo. O motor do
barco era bem mais ruidoso do que o do semi-rígido da minha inglória
incursão balear, tornando a conversa difícil. Mas, mesmo tendo isso em
conta, notei que Hector estava menos palavroso, mais circunspecto, talvez
mesmo preocupado. À medida que entrávamos pelo mar adentro, a neblina
desvanecia-se, mas o meu incómodo crescia e o semblante de Hector
tornava-se mais sombrio.
Claro que por esta altura já te ocorreram uma série de hipóteses que
deviam ter sido óbvias para mim antes de ter entrado no barco. Não sei se é
a vida no desterro, se é esta necessidade de toque humano, se foi querer
acreditar que ainda podia ter relações reais e ternas depois de aquilo-que-
aconteceu, mas só aí, quando a minha ilha diminuía no horizonte, comecei
a olhar para Hector de outra forma. Afinal, que sabia eu deste alemão, além
de que ele era especialmente extrovertido e propenso ao exagero (e talvez à
mentira)? Olhei para o caixote de cartão e, em pânico, percebi que estava
no barco de alguém que vive sozinho no recanto de uma ilha de um país
distante do seu, que possui um barco e o utiliza frequentemente mas que
ninguém sabe para quê, que tem empilhados em casa uma série de
caixotes, que partiu um braço porque «escorregou nas escadas» e que,
apesar do braço partido, insiste em sair para o mar de manhã, num dia de
neblina, com um co-piloto inexperiente e um caixote suspeito. No medo
que comecei a sentir, encontrei algum alívio por termos sido vistos pelo
senhor Joaquim. «Uma testemunha!» – pensei. Contudo, em vez de
questionar Hector sobre a nossa viagem, os caixotes e as suas saídas para o
mar, fiquei em silêncio e, num quase delírio, imaginei o que faria se o
alemão abrisse o caixote e tirasse lá de dentro uma cabeça humana.
A situação em que estava era irreal, parecia saída de um argumento de
série B: a neblina que levantava, o caixote e o seu conteúdo misterioso, o
ruído ensurdecedor do motor, e o ar tenso do alemão que o transformava
por completo. Recordei-me do que sentira na última viagem de barco,
quando olhara para as profundezas do mar e quisera cair. Esta viagem era o
oposto da outra. A fantasia que me surgiu não foi de um afogamento, mas
de estar já na barca de Caronte, levando os meus mortos para o seu destino.
E se tudo o que eu havia perdido estivesse dentro daquele caixote?
Já navegávamos em mar alto quando Hector desligou o motor e,
olhando-me como um general que vai emitir uma ordem indiscutível, fez-
me sinal para me manter em silêncio. O meu coração parecia querer sair do
corpo e, por mais que tentasse, sentia-me incapaz de encontrar uma
explicação para a nossa presença ali que não fosse terrível. Queria falar,
dizer qualquer coisa, sorrir, quebrar aquela atmosfera assustadora. Queria
abandonar as minhas recém-nascidas e sombrias suspeitas sobre Hector,
queria voltar a sentir-me próximo e em segurança junto dele, regressar ao
calor que me percorrera após a palmada nas costas que ele me dera quando
me chamou amigo.
O alemão olhava para o horizonte azul-esverdeado como Ahab à espera
de Moby Dick. O único ruído, agora que o motor se calara, era o da
flutuação do barco num mar que apesar de calmo parecia esconder coisas
aterradoras. O céu mostrava-se agora completamente azul. Eu respirava
devagar e sentia as palmas das mãos suadas. Pus-me a olhar para os pés.
Tinha calçados uns sapatos velhos, uns sapatos que ela me oferecera.
E foi então que surgiu. A primeira vez que o vi estava já tão perto de nós
que parecia ter-se materializado num só instante ao nosso lado. Era um
barco, uma lancha azulada com um nome numa língua que não conheço.
Aproximou-se devagar e, aos poucos, os seus tripulantes tornaram-se-me
nítidos. Eram três, dois enormes africanos, um deles de tronco nu, um
tronco musculado de boxeur, e um europeu loiro, com a pele vermelha do
sol, testa larga e óculos escuros de aros redondos. Engoli em seco. Senti-
me estúpido e culpei-me, angustiado por ter tomado todas as decisões
erradas que me tinham levado até àquela situação. Enquanto o barco vinha
na nossa direcção, Hector olhou-me fixamente. Parecia um aviso e uma
ordem. De quê e para quê, eu não saberia dizer.
Como estás com a minha carta na mão, sabes que as coisas não correram
mal ao ponto de eu não regressar, ou de não ter oportunidade ou condições
para te escrever. Mas, enquanto o barco se aproximava, eu não sabia disso.
Pensei no pior dos cenários. A minha língua ficou seca com a hipótese de
que a morte estivesse próxima, de que era possível, de que podia vir na sua
forma inesperada e, desta vez, para mim.
Pensei no absurdo da vida, pensei que, apesar de todas as vezes desde
aquilo-que-aconteceu em que desejara morrer, agora, quando parecia haver
a possibilidade (pelo menos na minha imaginação) de que isso acontecesse,
senti que não desejava a morte. Dentro do desespero que me assolou,
percebi com uma clareza absoluta que queria continuar a viver, que não
estava pronto para deixar o mundo dos vivos, para abandonar a terra, para
desistir do jogo da passagem dos dias. Queria viver, queria continuar vivo,
apesar da dor, apesar da falibilidade dos sonhos, apesar dos mortos, apesar
da minha história, das minhas memórias, do meu destino.
Hector e o homem loiro começaram a falar em alemão. O tom era neutro,
nem amigável, nem agressivo. A certa altura o loiro apontou para mim e
disse qualquer coisa que me soou a interrogação. Hector respondeu com
uma negação. Posso não saber falar alemão, mas sei que ele disse «Nein»,
seguido de qualquer coisa. Imaginei mil perguntas. Se não fosse a tensão
em que estava, que me crispava o corpo como a um catatónico, acho que
me teria liquefeito, acho que os meus ossos se teriam transformado em
papa e todo eu desabaria dentro de mim até me transformar numa
alforreca. Creio que vislumbrei uma arma de fogo na lancha, atrás do
africano em tronco nu, o qual parecia observar tudo com um ar
melancólico. O loiro lançou uma corda para dentro do nosso barco. Hector,
só com uma mão, agarrou-a e prendeu-a com um nó. Com os barcos
tocando-se, o loiro entrou para o nosso. Hector cumprimentou-o com um
aperto de mão. De seguida o homem dirigiu-se a mim e estendeu-me a
mão:
– Hello, I’m Stephan!
Não consegui falar, mas apertei-lhe a mão vigorosamente, o que fez com
que ele me sorrisse. Um sorriso como eu nunca tinha visto antes. Não sei
que metáfora ou comparação utilizar para te explicar. Um pouco como um
cientista sorrindo aos ratos brancos que irão ser electrocutados numa
experiência futura. Ou talvez mais o tipo de sorriso que um psicopata faz à
vítima presa na cave quando está especialmente bem-disposto. O Stephan
encaminhou-se então para o caixote, agachou-se, disse qualquer coisa em
alemão e abriu a tampa. Infelizmente, de onde eu estava era impossível
olhar lá para dentro, e Deus, Buda ou Leonardo da Vinci me livre de eu me
mexer um centímetro que fosse naquela altura. O loiro fechou a tampa e
urrou umas palavras aos dois africanos na lancha. Depois pegou no caixote
e deu-o ao que estava em tronco nu. Trocou duas frases com Hector e subiu
para a sua lancha. Hector soltou a corda que unia os dois barcos e estes
começaram a afastar-se. O loiro olhou para mim com um sorriso enorme e
pôs um dedo sobre a boca, no gesto universal de silêncio. Ribombou então
pelo ar o ruído do motor da lancha e esta afastou-se de nós a grande
velocidade.
Aos poucos, como um membro adormecido que recupera o fluxo de
sangue, a vida voltou a mim num formigueiro. O alívio começou a encher-
me como um dilúvio. Hector ligou o nosso motor, evitando olhar para
mim. O barco arrancou na direcção oposta da lancha misteriosa, na
direcção da ilha, do meu porto seguro. De repente fui acometido por um
vómito. Debrucei-me sobre o mar e vomitei com violência. Parecia que o
meu corpo se queria esvaziar, ou mesmo que se queria virar do avesso.
Vomitei de forma tão intensa que me vieram lágrimas grossas aos olhos. Vi
o vómito a afastar-se, uma mancha na superfície do oceano, uma marca na
pele do mundo, um sinal flutuante de que eu continuava vivo.
Quando o meu estômago já estava vazio, voltei a sentar-me. Hector
olhou para mim, pela primeira vez desde que me mandara estar em
silêncio, e estendeu-me uma garrafa de água.
– Obrigado – disse-me.
– Eu devia partir-te a cara! – respondi eu, mas não deixei de receber a
garrafa e beber aquela água, que, na altura, depois da tensão, do medo e do
vómito, me soube ao paraíso.
– Não ias bater num homem com o braço partido, pois não?
Estava com raiva do alemão, mas a principal sensação que me invadia, a
emoção que vibrava por todo o meu corpo era o alívio. Eu estava vivo. Isso
era o mais importante.
– O que havia no caixote? – perguntei.
– Achas mesmo que queres saber? – sorriu-me Hector. – Nada de mais.
Uns búzios especiais que eu apanhei…
– Búzios...
– Sim, búzios…
– E eles não podiam ter ido buscar esses búzios à ilha?
Hector passou a mão pela barba como quem finge pensar num complexo
problema filosófico: – Não seria bom. Lá o Stephan é persona non grata…
– És contrabandista?
– Contrabandista? Eu!? Tu achas que foi isso que aconteceu aqui,
contrabando?
– Sim, acho. Mas não acredito que seja de búzios…
– De quê, então? – sorriu Hector.
– Não sei… drogas, armas… sei lá em que merdas estás metido!
– Contrabando de drogas e armas! Então eu ia trazer-te para
testemunhares o contrabando. Para ser preso a seguir?
– Só se eu te denunciasse é que eras preso…
– Mas claro que tu denunciarias. Ou melhor, irias denunciar, se fossem
mesmo armas ou droga…
– Pois, mas não são…
– Claro que não.
– São búzios, não é?
Hector olhou-me muito agradado:
– Sim, sim! Búzios!
– Pena não ter podido ver esses búzios…
– Ah, mas querias vê-los? – Hector fez uma expressão de tristeza
exagerada. – Se eu soubesse disso… Podia ter-tos mostrado…
Cansado de ironia, já não lhe respondi. Pus-me a olhar para a ilha, cada
vez mais próxima. Tentei não o mostrar, mas sentia-me feliz. Cada salto do
barco, cada metro que percorríamos na direcção de terra era mais um ponto
de exclamação após as duas simples e maravilhosas palavras, as palavras
mais essenciais que se pode alguma vez proferir: estou vivo.
O resto desse dia, assim que deixei o alemão na praia e me meti no jipe,
foi passado num estado de euforia. Fiz o que não vim aqui para fazer:
turismo. Passei por casa e peguei num dos mapas que a miúda do posto de
turismo enchera de círculos e lancei-me em direcção aos pontos
assinalados. Passei as horas de luz que restavam desse dia em lagoas, vales
e furnas, extasiado com a beleza, com o verde fulgurante, com o relevo
sinuoso, com as texturas do solo, com os aromas que saiam da terra,
encantado com o olhar terno que os casais de turistas velhotes trocavam
entre si, maravilhado com as flores que surgiam de surpresa depois de
alguma curva, espantado com a cor do céu, como se fosse a primeira vez
que eu a visse verdadeiramente, como se só nesse dia tivesse percebido que
o céu não é como uma tela, não é um espaço uniforme, mas é denso e
profundo como um mar infinito virado do avesso. E aparecendo e
desaparecendo por entre curvas e colinas e árvores, como um deus a jogar
às escondidas, rodeando tudo e todos, o mar, o mar resplandecente, o mar
onde se afundara o meu vómito, o mar que me separava da minha vida
anterior, o mar que vi então como se fosse o tempo feito líquido, fluindo
continuamente, nunca parando, corrente puxando corrente, atravessando o
mundo, nunca exactamente igual, nunca completamente diferente, povoado
por baleias, atravessado por navios, vislumbrado pelas estrelas.
De vez em quando, nestas horas excessivas mesmo para mim, pensava
na lancha azul, pensava no olhar melancólico do africano musculado,
pensava no sorriso louco do Stephan, pensava no caixote. Imaginei-o cheio
de granadas, imaginei-o cheio de sacos de heroína, imaginei-o cheio de
búzios. Búzios mágicos que, quando encostados ao ouvido, permitiam
ouvir não o mar, mas o sussurro de Deus.

Do teu amigo
Cúmplice de contrabando de búzios
XI

Ex.mo Senhor Dr. Pereira,

Como está? Como lhe corre a vida? Espero que bem. Espero que muito
bem. Não tome a minha ironia por animosidade. Não tome, aliás, a minha
ironia por ironia. Sou mais verdadeiro quanto mais exageradas e
impossíveis soam as coisas que digo. Quero agradecer-lhe a sua carta.
Mostrou-me ser um homem cortês e desenvolto, um homem que numa
visita a um circo, por pedido do anfitrião, seria capaz de sair dos seus
sapatos e colocar umas andas. Gostei de ver que apreciou a minha carta,
gostei das suas referências ao Buster Keaton e gostei, acima de tudo, da
sua persistência em contribuir para a paz de alma do nosso amigo comum.
Como eu, o senhor sem dúvida vê nele o zénite da bondade e da gentileza.
Agora, caríssimo doutor, terei de recusar a sua proposta para que eu visite
um colega seu, mesmo que este seja «uma alma literária, apreciador de
Bach, Cervantes e T. S. Eliot». Sejamos sinceros, o que se pretende, com
essa minha visita, não é que eu discuta esses ou outros nomes, que se fale
de sinfonias, ou se recite poemas, mas que se avalie o risco de eu cometer
alguma loucura, ou melhor, de cometer um tipo particular de loucura, um
tipo definitivo de loucura. Suponho, também, que pode estar escondida
uma vontade de me medicar, de tentar controlar, opor, conter essa loucura
com comprimidos misteriosos que irão mudar as inclinações químicas do
meu cérebro. Nada tenho contra essas pílulas, aventuras cerebrais ou
variantes, sendo que nem me oporia, se a situação o justificasse, a
electrochoques, vendo mesmo algo de poético na passagem de uma
corrente eléctrica adicional pelo interior do meu crânio. Porém, a situação
não justifica tais intervenções. Vou tentar explicar-lhe.
Outro dia estive num centro comercial. Veja lá, numa ilha cheia de
lugares paradisíacos e eu, num dos poucos passeios que dei, fui a um
centro comercial. A certa altura passei junto às salas de cinema. Não
duvido de que, quando o senhor falou com o nosso amigo comum sobre
mim, a importância do cinema na minha vida, não só pela questão
profissional, mas por todos os outros motivos, tenha sido abordada. Desde
pequeno que vi numa sala de cinema, mesmo nas salas mais minúsculas, o
lugar mais amplo do mundo. Nenhuma praça, nenhum porto, nenhum
cume de montanha me ofereceu tantas visões do paraíso como um ecrã de
cinema. Mais do que beleza ou transcendência, o que eu procurei no
cinema foi a multiplicação da vida. A ficção, nas suas melhores
encarnações, permite a resolução de uma das questões mais difíceis da
nossa existência. Permite-nos superar os constrangimentos da nossa
narrativa e viver outras vidas. Os teóricos falam da «suspensão da
descrença», da ideia de que, para se poder apreciar certas obras de ficção,
temos de nos permitir acreditar no mundo ficcional. Simplificando,
suspensão da descrença é ser capaz de ver o super-homem voar sem pensar
«como é que ele voa?», é acreditar que um vagabundo de bigode e chapéu
de coco é mesmo capaz de causar o caos sem sofrer penalizações mais
graves do que uns pontapés no rabo, é ver surgir um vampiro e não
questionarmos a sua dificuldade em arranjar um dentista, e é acreditar que
o amor é mesmo o destino, e que supera todos os obstáculos, especialmente
os cómicos. Ora, quando eu me sentava na sala escura, o que eu queria, o
que eu às vezes conseguia, era bem mais do que a suspensão da descrença.
Era a suspensão do eu. Nos filmes abençoados, as angústias e sonhos dos
heróis substituíam os meus, eu deixava de ser eu e tornava-me um com as
almas encarnadas naqueles rostos enormes, brilhando por detrás dos olhos
em close-up, e sofria com eles, e chorava por eles e extasiava-me com os
seus triunfos e vivia, no espaço de duas horas, uma outra vida.
Já alguém deve ter feito esta comparação, tão óbvia e clara. Sair de um
filme é um pouco como nascer. Do escuro, de um mundo uterino que nos
parece só nosso, sai-se para um caos de luz e gente, onde o sentimento de
espaço e de tempo é diferente. Se no cinema, como no útero, tudo nos é
dado, e só temos de nos deixar levar pela história, fora dele, o espectador
torna-se narrador e personagem. A passividade já não chega; é preciso
iniciativa, é preciso procurar, é preciso decidir e arriscar. Eu sentia este
contraste de forma ainda mais intensa quando saía do cinema a meio da
tarde, como fiz muitas vezes, e daquele espaço escuro onde só a tela é
iluminada, saía para as ruas encharcadas de sol. Não era raro, então, que
durante alguns minutos eu visse as coisas ao contrário, suspeitando da
ficção do mundo real e ansiando pela realidade do cinema, pelo regresso ao
mundo do filme.
Ora, na última vez que fui ao cinema este regresso ao mundo real foi
ainda mais brutal, mil vezes mais brutal, milhões de vezes mais brutal.
Espectador responsável que era, desligava sempre o telemóvel assim que
entrava na sessão. À saída, naqueles primeiros passos num mundo sem
director de fotografia, cenógrafos ou realizadores, um dos meus gestos
quotidianos era ligar o telemóvel, gesto simbólico que me ligava de novo
ao meu eu real, ao meu eu que fora abandonado durante o filme. Como o
mundo não se suspende durante os filmes, enquanto eu vivia outras vidas,
contidas numa tela, a vida mais ampla continuava a desenrolar-se lá fora. O
tic seguia-se ao tac que era seguido por um outro tic, o dominó da
existência derrubava as suas peças, acontecia a sucessão ininterrupta das
coisas, gestos que causam gestos que causam outros gestos.
Cá fora, na luz inclemente das quatro e meia da tarde, chegou então, com
aqueles ruídos electrónicos, tão ofensiva na sua banalidade, uma
mensagem. Esta mensagem era a queda da primeira peça de dominó que
faria com que tantas outras caíssem. Era o princípio de uma vida nova. De
uma vida à qual seria arrancada a principal razão de viver. De uma vida tão
diferente da vida anterior àquela sessão que não pode ser a mesma. Era
como se, enquanto eu estava a ver aquele filme, um deus infinitamente
cruel tivesse substituído o universo. Antes de entrar naquela sala escura, eu
vivia no melhor dos mundos, num universo onde as coisas faziam sentido,
a beleza servia um propósito e a felicidade era possível. O universo que
encontrei à saída, anunciado pelo som de pechisbeque da mensagem de
telemóvel, era um universo que, apesar de parecer semelhante ao outro,
apesar de conter também árvores e nuvens e pessoas, havia sido esvaziado
da hipótese de felicidade.
Desde então não voltei a entrar numa sala de cinema.
E contudo, quando outro dia passei junto às bilheteiras, o cartaz de um
filme chamou-me a atenção. Nele via-se uma fotografia de um funâmbulo
num cabo que ligava dois prédios. Na parte de baixo do cartaz estavam
algumas frases de críticos elogiando o filme. Através delas percebi que os
prédios eram as torres gémeas. E foi então que me ocorreu, foi quase
imperceptível, uma microemoção (se existe tal coisa… diga-me o doutor,
que é o especialista), um germe de pensamento, um sussurro quase
inaudível pronunciado no meu interior: «Tenho de ir ver isto!» Como
antigamente, como todas as vezes em que um cartaz ou uma apresentação
me provocava uma onda de entusiasmo e me fazia pensar «tenho de ir ver
isto». E repare no «tenho». Na necessidade da coisa.
Claro que, de imediato, me lembrei de que já não era essa pessoa que
«tinha» de ir ver filmes, e me lembrei do porquê e me afastei com pés
pesados de tristeza da zona dos cinemas e do seu cheiro a pipocas.
Por isso, como vê, não há motivos para se preocupar. Eu vejo nesse
sussurro do meu antigo eu um sinal de que vai tudo correr bem. Embora
bem no sentido reconfigurado da palavra, o bem depois de aquilo-que-
aconteceu, se me faço entender. Provavelmente, não. Desculpe.
Devo confessar-lhe que tenho ainda dias maus. Que, embora não sofra de
alucinações, me perco em mundos imaginários. Construo cosmos inteiros
na minha mente e depois custa-me regressar ao aqui e agora, ao espaço em
redor do meu corpo, ao tempo ancorado naquilo que o relógio da cozinha
afirmar. E confesso-lhe também que, nas cartas que escrevo ao nosso
amigo comum, omito certos pormenores e exagero outros, contando-lhe
uma vida um pouco diferente da que vivo aqui, massajando alguns factos
para tornar a história mais próxima do que sinto.
Termino pedindo-lhe que, caso o nosso amigo comum o contacte
preocupado comigo, o tranquilize, e lhe garanta, como eu também tenho
tentado fazer, que, apesar de eu viver num mundo incomparavelmente mais
pobre do que o mundo de antes de aquilo-que-aconteceu, não tenho
nenhum intenção de o abandonar.

Com cumprimentos de elevado calibre


XII

Queridos pais,

Estas semanas em Madrid têm-me trazido inúmeras recordações de


quando viemos os três aqui. A cidade não deve ter mudado muito, mas a
forma como eu a vivo agora é – não podia deixar de ser – muito diferente.
Há qualquer coisa nos madrilenos contra a ideia de ficar sentado. Estar em
Madrid é andar de um lado para o outro, é percorrer as ruas cheias de gente
para trás e para a frente, é passar uma noite em vinte sítios diferentes, com
tantas semelhanças e antíteses entre si como os sotaques que se ouvem, o
madrileno, claro, mas também o argentino, mexicano, paraguaio e por aí
fora. Aluguei um quarto muito pequeno em Lavapiés, uma caixa de
sapatos, como eles dizem aqui. A minha senhoria, que vive no quarto
maior da casa, é uma mulher de vinte e poucos anos, com o nome de Anna
Pollstein, que é pouco dada a grandes conversas, mas que me trata com
cortesia e que sorri vezes suficientes para que eu me sinta, não em minha
casa, mas na casa de um familiar distante. Anna está a estagiar como
advogada numa importante firma madrilena, daquelas com quatro nomes.
Além do Direito, ela pratica violino, tocando fim-de-semana sim, fim-de-
semana não, num quarteto de cordas. Mulher de hábitos, ensaia todos os
dias ao fim da tarde durante uma hora. Suponho que outros arrendatários
não suportariam a repetição incessante da versão para violino da Casta
Diva, mas para mim ela surge como uma bênção. Não sei descrever quão
maravilhoso foi certo anoitecer em que Anna não falhou demasiadas notas
e a música ecoou pelo pequeno apartamento enquanto eu observava, da
pequena varanda da sala, a multidão de pessoas passando pela nossa rua a
caminho dos restaurantes de Lavapiés.
O frio aqui é coisa séria. No primeiro dia em que nevou (e já vão quatro
desde que cá estou) fui passear, ensopado de alegria como sempre fico
quando neva, para o Parque do Retiro. Parei em frente do lago artificial
onde se podem dar passeios naqueles minúsculos e ridículos barcos de
plástico, o que eu fiz com o pai, enquanto tu, mãe, nos olhavas cheia de
orgulho, sentada nas escadas. Lembrei-me desse episódio e de outros da
nossa viagem e senti a vossa falta. Não sei se rezar é um termo justo, mas
desejei que vocês estivessem bem sem mim, que a minha deambulação
mundial não vos causasse demasiada dor ou vos levasse a questionar esse
laço entre nós que, tenho a certeza, tenho a certeza como nunca ninguém
teve de nada, é indestrutível.
Estava embrenhado na tristeza da saudade, as mãos enfiadas nos bolsos
do meu blusão, a boca escondida no cachecol, o olhar suspenso sobre o
lago, quando surgiu a Dani. O seu aspecto era único. Tinha um enorme
gorro laranja na cabeça coroado por um pompom cor-de-rosa e uma franja
entre o loiro e o castanho, abaixo da qual brilhavam os seus olhos
amendoados e verdes, rodeados de três ou quatro rugas profundas. O seu
corpo estava coberto com um comprido sobretudo cinzento, de corte
marcial, e o cachecol que lhe rodeava o pescoço parecia de um clube de
futebol. As suas mãos seguravam uma enorme máquina fotográfica como
um médico segura um recém-nascido para mostrá-lo à mãe. Dani tinha
uma boca larga mas fina e um ar que só vi antes em certas estrelas de
cinema, um ar simultaneamente melancólico e sensual, de quem se prepara
para fazer amor uma última vez e morrer de seguida. Comecei, de
imediato, a esquecer a…
Dani perguntou-me se me podia tirar uma fotografia. Duas horas e
muitas avenidas depois, ela pusera-me a par do seu projecto artístico de
fotografar uma pessoa por dia do ano, e que esse retrato contivesse a
essência do dia. Nesta conversa perguntei-lhe se eu era, então, o senhor 13
de Dezembro, ao que ela me respondeu, com todo o charme de uma prima
ballerina procurando o papel principal, que isso ainda não estava decidido.
Para jogar pelo seguro, ela fotografava várias pessoas por dia e só depois
escolhia qual representava melhor aquelas 24 horas. O projecto iniciara-se
em Outubro. Daniela, ou Dani, como ela preferia ser chamada, já que
diminuía os nomes de todas as pessoas, já tinha fotografado mais de cem
pessoas.
A partir daí passámos a encontrar-nos quase todos os dias. Tornei-me
amigo dela, mas também assistente, terapeuta, confidente e apaixonado
secreto. Nas nossas noites de tapas, croquetas & cañas, como Dani as
baptizou, fui conhecendo a sua história.
O seu pai havia sido um homem poderoso no tempo de Franco. Morrera
quando ela tinha 12 anos e, desde então, a sua mãe e os seus dois irmãos
haviam transformado um pai autoritário, desprovido de ternura, amigo da
garrafa e da estalada como método de resolução de conflitos familiares, e
de quem se suspeitava ter ordenado a tortura de várias pessoas, num santo
que tinha direito a missas, orações, e histórias enternecedoras e caricatas
das quais era protagonista. Dani recusara-se, mesmo sendo tão nova, a
participar nesta fraude post mortem e iniciara uma guerra familiar que
ainda se mantinha nos dias de hoje.
Mas, mais do que os conflitos com a família, o que perturbava Dani era a
relação ciclónica que mantinha com o seu namorado. Há já alguns anos
que namorava com Esteban Kemtrás, um médico de sangue húngaro, dez
anos mais velho do que ela, que tivera um primeiro casamento em que
produzira dois filhos e sabe-se lá quantos adultérios. A ex-senhora Kemtrás
era uma mulher da alta sociedade espanhola, que montava a cavalo com
membros da família real e deplorava Dani. Esteban, por seu lado, fazia
apenas o suficiente para manter a namorada, sem deixar de privilegiar a
sua primeira família. Dani contou-me que, no seu aniversário, Esteban
faltara à sua festa porque se sentira na obrigação de ir à abertura da nova
galeria da ex-mulher.
Todos estes altos e baixos na relação de Dani com os que lhe eram
próximos produziam nela efeitos imediatos. Assim, cada encontro com ela
tinha o seu quê de ida ao casino. Tanto podia chegar alegre e vibrante,
cheia de vontade de falar e andar, ou vir chorosa e desesperada e saudar-me
assim: «Qué guay seria morir hoy!»
Não costumo encantar-me com mulheres trágicas em relações infelizes,
mas Dani é especial. Nos seus dias bons, ela parece a encarnação do
espírito de movimento perpétuo de Madrid. E ela conhece a cidade, todas
as suas calles, passeos, plazas, vías, barrios. E com ela conheci eu também
os bares mais sofisticados e os mais decadentes, os palacetes da
aristocracia aborrecida, as galerias de artistas vaidosos, os minúsculos
apartamentos de poetas sul-americanos, discotecas gay na Chueca, tascos
clandestinos em Lavapiés onde se fuma haxixe por um cachimbo
marroquino, ateliers de design na Gran Vía, onde toda a gente pontua as
suas frases com expressões em inglês ditas com um sotaque tão serrado
que são quase incompreensíveis. Com ela fui a exposições, museus,
festivais, vernissages, aberturas, happenings, bottellons, fiestas e mesmo a
uma manifestação contra, ou a favor, de já não sei exactamente o quê. A
maior parte das vezes adaptávamos-nos os dois a esta vida boémia, ela bem
mais do que eu, aceitando oferendas em formas de comprimido ou de
linhas brancas paralelas que a deixavam ainda mais inconstante e frenética.
Eu, naturalmente, recusava. Mas, por vezes, mesmo que tudo estivesse a
correr bem e estivéssemos cobertos de alegria até ao umbigo, bastava uma
mensagem do namorado para Dani ir do céu ao inferno.
Quando eu já estava certo de estar apaixonado por esta madrilena
complicada, uns dias antes do Natal, ela convidou-me para jantar no dia 25
com a sua família. Colocou a coisa de tal forma que seria eu a fazer-lhe um
favor, o de a acompanhar à sempre dolorosa reunião familiar, e não ela a
zelar para que eu não passasse o Natal sozinho. Nesse dia, almocei com a
minha senhoria, para quem a data dizia pouco, e encontrei-me com a Dani
ao fim do dia, na Plaza Mayor. Caminhamos juntos até casa da sua mãe, os
meus passos leves e alegres. Quando chegámos estavam lá os dois irmãos
mais velhos, Xavier e Jorge, bem como a mulher deste, Sara, e o seu filho
bebé. A mãe de Dani saudou-me de forma cortês, mas fria. Já os irmãos
foram mais simpáticos. Fomos para a sala, decorada a rigor, com uma mesa
cheia e uma pequena árvore de Natal a um canto, rodeada de embrulhos.
Assim que me pôs um copo de vinho tinto na mão, Dani disse-me que
voltava já e retirou-se para a cozinha, onde estava a sua mãe e Sara.
Xavier, a quem Dani chamava Tchá, e Jorge, a quem ela chamava Jor,
puseram-se a conversar comigo sobre viagens, futebol e o tempo. Alguns
minutos depois, Sara chegou à sala e trocou um olhar irritado com Jorge.
Quando acabei o meu copo de vinho, Dani ainda estava na cozinha, de
onde se ouvia de vez em quando uma ou outra expressão agressiva.
Passado algum tempo, a mãe de Dani veio também para a sala e entrou na
conversa. Chegou a altura de nos sentarmos para o jantar e Dani ainda não
havia voltado. Xavier foi procurar por ela e regressou com um anúncio
que, mesmo estando eu já habituado às excentricidades daquela mulher, me
surpreendeu:
«Dormindo.»
Foi um jantar bizarro. Eles procuraram pôr-me à vontade, mas sempre
que alguém tentava comentar a ausência de Dani o ambiente ficava pior.
Por alturas da sobremesa, Dani regressou do mundo do sono, com a cara de
uma criança que despertou demasiado cedo. Sentou-se ao meu lado e
pediu-me desculpa com a naturalidade de quem diz «Bom-dia» à mesa do
pequeno-almoço. Veio o café. Os embrulhos permaneceram junto à árvore,
porque só no Dia de Reis é que são distribuídos. Pouco tempo depois Dani
anunciou que íamos embora. Nas despedidas, Sara, a mulher de Jor,
abraçou-me e disse-me, num meio sorriso: «Pobrecito.»
Já na rua, Dani explicou, sem se alongar, que discutira com a mãe por
causa de Esteban e que, por não aguentar a pressão e o horror (foi esta a
palavra usada) da noite de Natal, tomara uns calmantes. Em vez de me
acompanhar na viagem de regresso, despediu-se e apanhou um táxi.
Percebi que, por aquela altura, Esteban já devia ter terminado o jantar com
a ex-mulher e os filhos e Dani ia voltar para ele. Não vos consigo
descrever o que senti quando o táxi dela partiu, mas era frio e escuro e
tinha espinhos.
Para procurar algum consolo nas iluminações das ruas, e porque estava
sem pressa de regressar a casa, decidi voltar de autocarro. Na paragem um
velho de olhos tristes meteu conversa comigo, que se prolongou até meio
da viagem. Falámos de Madrid. Ele recomendou-me uma série de locais
para comer croquetas. Parecia ser a única coisa que lhe interessava, e,
ouvindo-o falar, uma pessoa julgaria que a principal actividade comercial,
o zénite turístico, o entretenimento preferido de toda a Madrid era comer
croquetas. O velho saiu a meio da viagem, provavelmente para ir comer
croquetas algures, e, poucos segundos depois de ter ficado só, senti um
toque no ombro. Virei-me para trás e Lucía sorriu-me.
Lucía era uma argentina de trinta anos que regressava de uma festa com
amigos, tinha uma boca carnuda e olhos cor de caramelo. Tocara-me no
ombro porque, não podendo deixar de ouvir a minha conversa com o
velho, me vinha recomendar uma visita ao Palácio Real onde ela
trabalhava como guia. Quis-me oferecer um folheto, mas, após uma busca
apaixonada na sua carteira enorme, reparou que não o tinha ali. A conversa
continuou. Irritado com Dani e com o jantar pantanoso que tivera de
atravessar, esta surpresa com sotaque de Buenos Aires pareceu-me uma
compensação do destino, um presente de Natal. Sem demoras, comecei a
tentar seduzi-la. E ela respondeu na mesma moeda. A certa altura
anunciou-me que iria sair na próxima paragem. Saí também. Disse-lhe que
me apetecia andar um pouco e que, se ela quisesse, podia acompanhá-la a
casa.
Chegámos à porta e Lucía convidou-me a subir, com o razoável pretexto
de que assim me podia dar o tal folheto. Era uma casa pequena mas
acolhedora, cheia de cores vivas e mobília confortável. Lucía ofereceu-me
um copo de vinho e acendeu um cigarro de marijuana.
Queridos pais, já vos disse antes que, salvo excepções óbvias, vos
escreverei sem censura, como se estivesse a escrever aos meus melhores
amigos, o que, no fundo, também é verdade. Assim, admito que pouco
tempo depois de me sentar no sofá da sala, a boca voluptuosa de Lucía
chocava contra a minha e os nossos peitos apertavam-se um contra o outro.
Após alguns minutos (se calhar, só mesmo segundos) de desejo
crescente, Lucía afastou-me com delicadeza. Parecia querer mostrar que
tinha pudor, que não era uma rapariga dessas. Disse-me que não costumava
fazer isto, mas que fora a noite de Natal mais triste que tivera. Falou-me
então do pai em Buenos Aires, e de como a relação complicada com ele a
levara, juntamente com motivos menos trágicos, a Espanha. Era o seu
primeiro Natal longe de casa e, apesar da gentileza do grupo de amigos,
todos também emigrantes, com quem passara o serão, a saudade fizera-a
sair cedo e fora assim que nos havíamos encontrado, dois órfãos em
Madrid, na noite de Natal.
Regressámos aos beijos e fomos para o quarto caminhando de frente um
para o outro, ela recuando e eu avançando. Quando nos deitámos na cama,
enquanto Lucía me puxava a camisa para fora das calças, disse-me, em tom
de gozo: «É Natal, vamos fazer um Jesus!»
E, então, parei. Ela explicou de imediato que estava a brincar e retirou
um preservativo da mesa-de-cabeceira. Mas não fora por isso que eu
parara. Alguma coisa naquele comentário me fez pensar em todas estas
famílias separadas, fez-me pensar em Dani e no fantasma do seu pai. Fez-
me pensar na família de Lucía, no Natal de Verão que estariam a passar, em
Buenos Aires, com saudades da filha. E, claro, fez-me pensar em vocês e
no vosso Natal sem mim. Porque, ao contrário das mulheres com quem
passei esta quadra, eu não estou zangado convosco, nem vocês comigo. A
distância entre nós tem outras justificações. Temo que, apesar de vocês me
dizerem o contrário, elas não vos sejam compreensíveis. Sei que a
comparação é desproporcionada, mas imagino que Maria não pôde deixar
de se perguntar se não havia outra opção além da cruz. Mas, queridos pais,
a mim não é a cruz que cabe, mas a viagem. E não é pela morte que
cumpro o meu destino, mas pela vida.
Não consegui continuar. Da forma mais terna e suave que encontrei,
afastei-me de Lucía e saí de sua casa, esperando que ela não ficasse
magoada, como certamente ficou.
Andando pelas ruas ainda se viam, através das janelas, salas iluminadas
com pessoas a rir. O frio apertava-me os ossos e, olhando para o céu,
perguntei-me se nevaria no dia seguinte.

Do vosso filho
XIII

Querido amigo,

Excelente trabalho de investigação da tua parte. Agora sei que o Dr.


Augusto Viana exerceu na Avenida da República em Lisboa até há três
anos e que se reformou mais cedo do que o esperado. Ainda não sei bem
como usar esta informação, mas não duvido da sua importância.
Agradeço também a tua preocupação comigo e as tuas recomendações
cautelosas para informar a Polícia. Compreende que não o farei. O que fiz
foi acumular alguma coragem e ir ter com Hector, alguns dias depois da
nossa excursão. Quando toquei à porta estava ansioso, mas sentia também
que vivia uma aventura. Se calhar aquela conversa toda do vício da
adrenalina é verdade e qualquer dia lá estou eu a saltar de parapente dos
picos açorianos. Apesar de ser uma da tarde, Hector abriu-me a porta com
o ar de quem havia acabado de acordar. O braço permanecia ligado e o seu
sorriso mantinha-se irónico. Sem dizer nada, fez-me um gesto para entrar,
demasiado exagerado, entre a vénia e a continência.
A sala continuava caótica, os misteriosos caixotes ainda por lá. Hector
notou que eu olhava para eles mas não fez comentários. Ofereceu-me café
e fomos para a cozinha, que parecia o cenário de uma luta até à morte entre
dois cozinheiros, tal o amontoado de loiça suja, utensílios de cozinha e
restos de comida.
Hector colocou uma cafeteira a ferver e, no seu sotaque usual, disse-me:
– Ou eu te devo desculpas ou tu me deves um agradecimento.
– E porque é que eu te havia de agradecer?
O alemão fez uma pausa exagerada:
– Certo. Isso significa que eu te devo um pedido de desculpas. Aqui vai:
Desculpa, entschuldigung, perdão.
– Mas porque é que achas que te havia de agradecer? – insisti.
Hector estendeu-me uma chávena de café. O seu rosto não mostrava
qualquer emoção especial, era a cara de alguém que se está a lembrar de
onde estacionou o carro:
– Admito que parte do motivo por que te trouxe comigo é egoísta. Mas
também achei que te fazia bem.
– Fazia bem?
A cara de Hector ganhou expressão e contorceu-se, irritada:
– Sim… estavas a precisar de um abanão. Ouve, não sei o que te
aconteceu, em que sarilho te meteste antes de vir para cá. Não me
interessa. Mas a vida continua. Já chega de dormir.
As palavras que o alemão me dizia já eu as havia dito a mim mesmo
muitas vezes. Apesar disso, irritaram-me. Quem era aquele tipo para fazer
juízos sobre mim, para me envolver em sabe-se lá o quê e dizer que o fazia
para me «ajudar»?
– E quem é que te elegeu meu terapeuta? E que merda é que se passou no
outro dia? Então aquilo foi tudo para me «ajudar»?
– Não, não. Calma. Eu precisei de ti, e achei que tu precisavas de uma
coisa daquelas. Uma mão lava a outra.
– E não me podias ter avisado antes? Antes de me envolveres em…
– Calma. Não te envolvi em nada. Aquilo que testemunhaste não tem
nada de ilegal. Tratou-se apenas de uma troca em águas internacionais.
– Uma troca?
– Mas tens mesmo de saber tudo? Que diferença te faz?
– Faz-me muita diferença saber que estive envolvido no tráfico de armas
ou drogas…
Hector lançou uma gargalhada.
– Armas? Outra vez… Meu amigo, não se passou nada de grave. Relaxa.
Apesar de gostar que me confundas com um misterioso traficante de
armas, não se passa nada disso. Mas… vê tu mesmo. – E dizendo isto, saiu
da cozinha. Fui atrás dele. O alemão puxou um dos caixotes para o centro
da sala e, com a única mão disponível, rasgou a tampa colada com fita
isoladora castanha.
– Olha!
Aproximei-me do caixote e olhei. O que vi não eram nem armas, nem
droga, nem medicamentos, nem nada que eu antes imaginasse que fosse
alvo de tráfico. O que era… perdoa-me, mas não te direi. Sei que as nossas
cartas são secretas, mas não quero fazer de ti um cúmplice.
A única coisa que posso fazer é assegurar-te que não corri risco de vida
naquela viagem, longe disso. Posso dizer-te que fiquei, na conversa que se
seguiu, a saber muito mais sobre o tráfico de espécies, leis internacionais,
mecanismos clandestinos que alimentam pesquisas científicas, as
profundezas dos mares e outras coisas. Quanto ao homem loiro e seus
capangas africanos, apesar de não serem os terríveis criminosos que eu
imaginei, também, acreditando em Hector, não eram os homens mais
cumpridores da lei navegando os oceanos.
No fim da conversa, percebendo que o alemão revelara bem mais do que
seria necessário, que ele me pusera a par de uma série de segredos, que
confiara em mim ao ponto de, caso eu quisesse, o poder incriminar com
facilidade, perguntei-lhe porque me contara ele tudo aquilo, porque me
levara no barco, porque confiava em mim daquela forma.
– E porque não? – comentou, tranquilo. – Perguntas-me porque confiei
em ti? Eu confio nas pessoas. Não em todas, mas na maior parte. E tu és
fácil de confiar. Claro que às vezes o excesso de confiança pode correr mal
– Hector moveu o seu braço partido num gesto ambíguo, que tanto podia
ser acidental ou uma indicação das consequências dolorosas de confiar nas
pessoas erradas. – Mas a maior parte das vezes as coisas correm bem. O
mundo pode ser maravilhoso, maravilhoso…
– Não duvido disso. Só que, mesmo que tudo corra bem a maior parte
das vezes, basta, basta que… – e aqui veio-me um nó à garganta que me
impediu de continuar. Bebi um gole de café e respirei fundo. O alemão
ouvia-me quase de costas enquanto coçava a barba com toda a força do seu
braço intacto.
– Basta que uma coisa corra mal só uma vez – disse eu, finalmente. –
Basta isso.
– Basta isso para quê? – perguntou Hector.
A primeira resposta que me veio à cabeça foi «para que não seja mais
possível a felicidade», isto porque tinha escrito qualquer frase assim ao teu
amigo psiquiatra nessa manhã. Mas não a proferi. Não sei se por ter medo
de que, dizendo-a em voz alta, a tornasse real, ou talvez o contrário: que ao
proferir tal afirmação a tornasse ridícula, o que faria o alemão rir e me faria
sentir patético.
– Para que deixemos de ser a mesma pessoa – respondi.
Hector franziu o rosto mostrando descrença. Depois levantou o queixo e
coçou o pescoço enquanto grunhia qualquer coisa em alemão.
– Não acho – respondeu-me.
Nessa altura já estávamos fora de casa. É um pormenor importante, e o
facto de eu ainda não o ter mencionado, na descrição da conversa, mostra
que daria um péssimo dramaturgo; se fosse escrever uma peça,
provavelmente ia esquecer-me de personagens a meio do palco e fazer
outras sair de cena sem qualquer motivo. Estar lá fora é importante porque
é diferente estar ao sol e cheirar o mar e ouvir bem de perto as ondas do
que estar numa cozinha em que os restos de comida nos pratos sujos
parecem já ter dado origem a espécies mutantes. Talvez nessa cozinha a
minha reacção tivesse sido diferente quando Hector, abrindo um sorriso
gentil, um sorriso verdadeiramente gentil, o sorriso que garante que o seu
portador não possui, nesse momento, qualquer má vontade, que não é em
nada diferente do que os cristãos acham de Jesus Cristo, em suma, o
sorriso de uma criança que acabou de ver um truque de magia mesmo bom,
me disse:
– Não acho que baste uma só coisa para deixarmos de ser a mesma
pessoa. A não ser que essa coisa seja uma operação de mudança de sexo!
Ri-me. Ri com a boca e com os olhos e com o corpo todo. Ri-me como
não me ria há muito muito tempo. Ri-me até ficar sem ar. Ri-me
alarvemente com ruídos animalescos. Ri-me com abandono, deixando-me
levar na gargalhada como um tronco caído num rio.
Lembras-te da expressão «arrebenta a bolha»? Quando era miúdo e
estávamos a meio de uma brincadeira, a senha para parar o jogo, para
regressar ao «mundo real» era dizer, na voz mais alta que se conseguisse:
«arrebenta a bolha.» Não é maravilhoso? Na altura eu dizia-o sem pensar
sobre o seu significado. Ter-me-ia feito tanto sentido dizer «toc lac pac»
como «arrebenta a bolha». Hoje vejo um poema inteiro no «arrebenta a
bolha». Ora, escrevendo-te sobre o riso que aquela piada, que é possível
que não tenha assim tanta graça quanto isso, me provocou, penso que o
riso é um «arrebenta a bolha» inverso. É um sinal ao mundo sério e sisudo
de que o vamos abandonar. É impossível estar a rir com prazer e ao mesmo
tempo estar preocupado. Uma coisa pode suceder-se à outra, mas não
podem existir em simultâneo. O riso é a senha mágica para sair do
desespero, para deixar de dar às coisas demasiada importância. É, e
escrevo-o com a única linguagem que vejo adequada para expressá-lo, um
divino «que se foda!». Quando ri depois da piada de Hector, não fiz mais
do que dizer: que se foda!
Se o que senti naqueles segundos pudesse ser traduzido em texto, seria
mais ou menos isto:

Que se foda a tristeza e a melancolia, que se foda a passagem do tempo,


que se fodam as memórias, que se fodam as contas por pagar, que se foda o
amor, que se foda o passado, o presente e o futuro, que se fodam as vacas,
que se fodam os barcos, que se foda o jogging, que se foda a virtude, que
se fodam todas as virtudes e todos os pecados mortais, que se foda Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino, que se foda a falésia, que se foda o
oceano, que se fodam as placas tectónicas, que se foda o Governo da
República, que se foda a ética, que se fodam todos os livros sobre estética,
que se foda a música, que se foda Johann Sebastian Bach e toda a sua
descendência, que se foda a carreira, que se fodam os sonhos, os
alcançados e os perdidos, que se foda o sono, que se foda o horizonte, que
se foda a arte e a literatura, que se foda o momento, que se foda Karl Marx,
que se foda Sigmund Freud, que se foda regar as plantas, que se foda dar
de comer ao cão, que se foda o azar, que se foda o destino, que se foda a
sorte, que se fodam os referendos, que se foda o futebol, que se foda o
cinema, que se foda a amizade, que se fodam as noites escuras e
intermináveis, que se foda querer uma vida melhor, que se foda quem
fomos, que se foda o que perdemos, que se fodam as fodas, que se foda a
alegria e a redenção, que se fodam as baleias, que se foda Moby Dick, que
se foda o cosmos, que se foda o tempo-espaço infinito, que se foda a
Primavera e as flores que desabrocham, que se foda a família, que se
fodam as bibliotecas, que se foda a inocência, que se foda Gustav Klimt,
que se foda o iogurte grego, que se foda lavar os dentes, que se foda a
perseverança, que se foda querer aprender e crescer, que se foda a paz de
espírito, que se foda o sentido da vida, que se foda a curva da estrada, que
se foda a traição, que se foda a Coca-Cola, que se foda Rainer Maria Rilke,
que se fodam os sinos das igrejas, que se fodam as ilhas dos Açores, que se
foda a poesia, que se foda Lisboa inteira, especialmente o Chiado, que se
foda o pastel de nata, e que se foda, que se foda bem fodida, que se foda
como não se fode mais nada, que se foda a morte. Porque eu, agora, estou a
rir.

E aqui estou, horas depois, ainda com um sorriso. Aos poucos vão
regressando as larvas da melancolia – já as sinto a entrarem-me pelas
unhas dos pés. Só que agora sei que ainda consigo rir. Talvez exagere na
minha boa disposição, mas sinto uma esperança de que não falte muito
para estar contigo e darmos gargalhadas juntos.
Como sabes que não deves levar demasiado a sério os meus momentos
escuros, também deves saber não acreditar demasiado nas esporádicas
explosões de luz. Se amanhã já não tiver dentro de mim a esperança do
riso, não te desiludas.

Sorrindo

P.S.: Se a minha querida avó fosse viva e lesse esta carta, e usasse o seu
método usual de correcção do meu vocabulário, sem dúvida que eu ficaria
sem orelha…
XIV

Querido amigo,

Espero que a vida te continue a soprar de feição e que tenhas sempre


pequenos-almoços tomados com tempo e que preencham a roda dos
alimentos.
Visitei os Viana, e fi-lo com um pretexto sólido e gentil. Ia convidá-los
para jantar. Estava mesmo disposto a encomendar comida, limpar a casa,
abastecer-me de bebidas espirituosas e canapés, na esperança de que algo
mais me fosse revelado. Fui a pé até casa deles fazer o convite. Quando
estava na parte final do caminho notei um vulto dentro da estufa. Espreitei
lá para dentro e vi a Teresa Viana agachada sobre a terra. Foi curioso
observá-la. Tinha umas galochas azul-eléctrico, umas luvas de borracha
amarelas e um chapéu de palha. Estava tão envolvida na sua labuta como
um monge em oração. Chamei-a. Ela olhou para cima, sorriu-me e acenou,
mas não fez qualquer movimento que indicasse que me viria
cumprimentar. Disse-me que o marido estava em casa e voltou ao seu
trabalho. Bati à porta e, desta vez, foi um Dr. Viana sorridente que me
apareceu. Afirmou-se contente por me ver e desafiou-me para um passeio.
Quando começámos a andar, fiz-lhe o convite. Ele recusou porque tinha
de ir tratar de assuntos a Lisboa.
– Vou ter de ficar sem a companhia dos meus vizinhos! – disse eu com
alguma tristeza sincera.
Ele informou-me então de que a sua mulher iria permanecer nos Açores.
De imediato percebi que teria alguns dias para tentar, sem a perturbação da
presença do marido, obter dela toda a informação que conseguisse. Assim,
deixei-me ir naquele passeio e naquela conversa sem qualquer agenda ou
intenção. Não falámos nem da Croácia, nem do filho, nem sequer da vida
nos Açores. O dia estava ameno e luminoso, o mar calmo, e até as vacas
que surgiam ao dobrar da curva da estrada pareciam mais sábias do que o
costume. Subimos a encosta e andámos pelas estradas sinuosas no topo da
falésia.
Ainda conversámos uma hora. Depois despedi-me dos Viana e voltei,
quase que leve, a casa.

De resto não há muito para te contar. Por vezes tenho tantas saudades de
Lisboa que me imagino a passear lá, por exemplo do Marquês de Pombal
até ao Chiado, ou de Algés ao Terreiro do Paço. Tanto vou sozinho, como
acompanhado de ti, do Fernando Pessoa ou, claro, da…
Entretanto, como o João não ainda não me telefonou, suponho que a
minha carta tenha surtido efeito. O acidente acabou por me proporcionar o
enorme prazer de escrever ao teu filho. Como me diziam as velhas
melancólicas da minha infância, «há males que vêm por bem».
Despeço-me com votos de que nunca te aconteça só reparar que já não
há champô a meio do duche.

Excepcionalmente breve
O teu amigo
XV

Querido amigo,

Não fui logo lá. Esperei dois ou três dias, a ensaiar o que diria, que
argumentos usar, que sorriso fazer para conseguir as minhas respostas.
Quando bati à porta, fi-lo devagar, como se estivesse a marcar o compasso
para uma orquestra de sussurros. A Teresa Viana abriu-me a porta e senti
que tinha estado tranquilamente à minha espera. Serviu-me bolachas
caseiras, feitas nessa manhã, e chá de camomila. No tabuleiro, dobradas
debaixo do prato das bolachas, estavam as cartas.
–Estas são maravilhosas! – anunciou a minha anfitriã, sorrindo
calorosamente, não sendo claro se estava a referir-se às bolachas ou às
cartas.
Ainda falámos um bocado antes da leitura. A conversa foi sobre Lisboa.
Ela perguntou-me onde é que eu tinha vivido e eu falei-lhe dos bairros
onde durante anos despertei, da música do amolador de facas, dos jardins,
dos miúdos a jogar à bola perto da estrada. Quando terminei o chá e as
bolachas, ela levantou o tabuleiro da mesa, mas, em vez de o levar para a
cozinha, virou-se na minha direcção e estendeu-mo. Percebi que esperava
que eu pegasse nas cartas, o que fiz de imediato. Mantive-as dobradas na
minha mão, esperando pacientemente que ela regressasse da cozinha. Só
quando ela estava sentada à minha frente, as mãos pousadas sobre o colo,
uma dentro da outra, é que comecei a ler.
Encontrei a mesma caligrafia ondulante, as mesmas folhas dobradas em
três, a mesma ausência de datas ou envelopes. O filho continuava a
descrever os variados locais por onde passava, enchendo as páginas de
detalhes curiosos e aventuras literárias. Estas cartas, contudo, falavam
também da relação com os pais, e tentavam explicar, de forma apaixonada
mas confusa, os motivos da viagem. Depois de as ler fiquei ainda mais
com a impressão de que havia sido uma terrível discussão com o pai o que
o levara a partir.
A primeira carta tinha sido escrita de Viena e falava dos palácios da
Sissi, dos quadros de Gustav Klimt e do underground artístico, onde, para
não variar, ele tinha feito amigos. A segunda fora escrita em Madrid, por
altura do Natal, e continha, como todas as outras, mirabolantes descrições
de acontecimentos e lugares, que fariam brilhar os olhos de qualquer
produtor de Hollywood. Mas foi a terceira carta que quase me fez saltar da
cadeira. Fora escrita da Croácia, de Dubrovnik, para ser mais preciso.
Lembrei-me das conversas que tive com o Dr. Viana sobre este país e de
ele ter dito, apenas uns meses antes, que o seu filho estava lá. Era, pois,
uma carta recente. Li-a duas vezes, sob o olhar observador da mãe
orgulhosa, que se mantinha sentada à minha frente sem parar de sorrir. A
carta fora escrita ao estilo das outras. Contava as aventuras do autor e
descrevia os lugares por onde passara, alguns dos quais meus conhecidos e
que eu referira a Augusto Viana.
Será que ele os visitara porque eu tinha falado deles ao seu pai, e este
lhos recomendara? Seria esta carta diferente se eu não tivesse vindo para os
Açores? Curioso como pequenos gestos nossos se podem propagar pelo
mundo e voltar, tempos depois e sob formas inimagináveis, às nossas
vidas. Um episódio em especial fez-me acreditar nessa possibilidade. O
filho descrevia um jantar animado que ele e os seus companheiros (para
quem viaja só, ele mostra uma enorme tendência para encontrar parceiros
de aventura) haviam tido num restaurante com um nome francês próximo
de um convento e mantido por freiras. Ora, quem é que também teve um
jantar animado num restaurante de freiras durante uma viagem ao Leste da
Europa? Sim, querido amigo, moi même! Foi este pormenor que me fez
achar que o Dr. Viana se mantinha num contacto mais frequente e próximo
com o filho do que demonstrava.
Quando acabei de ler as cartas, sorri e disse-lhe:
– Sim, sim, maravilhosas!
Como num adultério, parecia ser esta a altura em que, cumprida a
traição, resta aos seus participantes uma despedida brusca e o regresso às
suas vidas. Assim foi, e em poucos segundos encontrava-me no caminho
de terra, já de costas voltadas para a casa. Passei pela estufa e, não sei
explicar porquê, senti um arrepio. Não conseguia deixar de pensar nas
cartas e nas minhas conversas com o médico Augusto Viana. Em vez de
regressar a casa, virei à direita na bifurcação e pus-me a subir a encosta, o
horizonte era feito de campos verdes, pinceladas de árvores e as
omnipresentes vacas.
Alguma coisa não estava a bater certo na história dos Viana. Seria o seu
filho quem parecia ser nas cartas? Não obstante uma ou outra frase de
lamento, as cartas estavam cheias de vida e optimismo; apesar das
passagens menos felizes, procuravam mostrar alguém plenamente satisfeito
com o espectáculo do mundo, alguém que não tomava por mote ora et
labora, o reza e trabalha dos monges, mas que vivia et aplaudia. Em
essência: um sábio, um Jesus Cristo passivo, que recebia milagres em vez
de os fazer. Seria ele realmente assim, ou estaria a querer mostrar aos pais
que a sua viagem era a melhor das viagens, a tentar justificar a sua decisão
numa alegria inventada? Era pouco provável que todas aquelas aventuras
acontecessem a uma só pessoa, mas também seria pouco provável que
alguém inventasse tudo aquilo. Muitas das histórias estavam em bruto,
continham personagens inúteis ou finais abruptos, perdiam demasiado
tempo em acontecimentos sem sentido e continham pormenores supérfluos
que pioravam a história, daqueles que os narradores talentosos omitem mas
que a vida possui em abundância.
Também me intrigavam as declarações de amor aos pais associadas às
explicações sinuosas que tentavam justificar o não regresso. Porque sentia
ele tanta necessidade em se mostrar um filho agradecido? Na minha
caminhada, parecia que cada passo que eu dava trazia uma nova pergunta.
Como pagava ele todas aquelas viagens? Quanto do que escrevia era
verdade e quanto inventado? Porque não tinham data as cartas? Que
acontecera a todos aqueles amores e a todas aquelas pessoas que ele
referia? Quantas delas existiriam mesmo? E para onde lhe escrevia o pai?
Seria para um e-mail? A relação invertida, o filho sábio enviando cartas
aos pais de todo o mundo e estes respondendo por e-mail de uma ilha
perdida com sugestões de restaurantes, parecia inverosímil.
Não era só no filho que eu pensava. Tal como em relação a Hector, eu
desenvolvera com os Viana uma espécie de intimidade que, examinada
com calma, não tinha onde se sustentar. Que sabia eu daquelas pessoas?
Tínhamos tido conversas intensas, mas haviam sido poucas e cheias de
respostas esquivas e meias verdades. E como caracterizar a minha relação
com a Teresa Viana? Como explicar estes nossos encontros em que, depois
do chá, ela me via a ler as cartas do filho? Existia nisso uma violação de
pudor na qual eu tinha participado sem objecção. Seria justo estar a ler as
cartas do filho? Imagina que alguém roubava as cartas que eu te envio e as
lia…
Passeei algumas horas e voltei para casa. Fui-te escrevendo esta carta
enquanto fazia esparguete e pendurava a roupa no estendal lá fora com
vista para o mar. Nunca te tinha falado no meu estendal, pois não? Como
vês, não só daria um mau dramaturgo, como um mau romancista. O
estendal é um local tão dramático e pleno de simbologia que qualquer
narrador do meu desterro já o teria referido. Pendurar os lençóis com o mar
enorme e desperto à minha frente, ver as minhas peças de roupa a serem
chicoteadas pelo vento, sentir o cheiro do mar misturar-se com o do
detergente, acordar e ver da sala que a roupa deixada a secar está ensopada
depois de uma noite de chuva… Enfim, pedras preciosas que me teriam
ajudado a explicar-te melhor como tenho vivido aqui.
Já comi e já estendi a roupa. Não consigo deixar de pensar na
possibilidade de que o que eu disse ao Dr. Viana tenha levado o seu filho
àquele restaurante, e de que as freiras que me sorriram nessa noite, tenham
sorrido agora ao filho dos meus actuais vizinhos. A sensação que tive
quando li a primeira carta do filho era que, de certa forma, ele era o meu
duplo. Lembras-te? Agora não posso deixar de sentir que os nossos
destinos estão ligados.
Espero que o Dr. Viana volte rapidamente. Quero perguntar-lhe se ele
recomendou o restaurante ao filho. Quero perguntar-lhe qual o próximo
destino dele. Quero perguntar-lhe o que aconteceu, o que causou a viagem.
Quero perguntar-lhe como lida com as saudades.
Sei que não preciso de me justificar por em algumas cartas não perguntar
por ti. Quero que todos os teus dias sejam abençoados, e que nunca deixes
queimar as torradas. Se os envelopes fossem maiores e mais resistentes,
enviava-te sempre a mais saudável vaca que encontrasse nestas encostas
para que tivesses sempre leite fresco à mesa do teu pequeno-almoço.

Em plena vénia
XVI

Queridos pais,

Estou eufórico. O jet lag ainda não passou depois de dois dias e fez com
que acordasse às seis da manhã sem sono. Tomei banho, vesti-me depressa
e saí de casa sem acordar os meus gentis anfitriões. Atravessei uma
Brooklyn que despertava, os seus habitantes saindo dos prédios de pedra
com ares sonolentos e entrando nos cafés e delis para de lá saírem com um
inevitável latte macchiato em copo descartável e qualquer coisa para
comer na outra mão. Ao contrário da maior parte deles, eu não fui para o
metro, mas para a ponte. A ponte de Brooklyn.
Atravessei-a a pé e quase morri de felicidade. Tive de parar várias vezes,
não só para apreciar uma das visões mais irreais que já abençoaram os
meus olhos – a ilha de Manhattan acordando à minha frente – mas porque
me invadia uma sensação de triunfo e deslumbramento, uma alegria tão
violenta que não sabia o que lhe fazer. Com os pés naquela ponte senti que
pulsava debaixo de mim a aorta do mundo, que eu ocupava o epicentro do
planeta e que o que se passava bem perto de mim ecoava por todo o lado.
Talvez por ter visto tantas vezes Manhattan na televisão ou no cinema,
Nova Iorque foi sempre para mim um território fora do real, um espaço que
só existia na imaginação. Ver-me aqui é entrar na tela do cinema; passear
por esta cidade é como conversar com o Super-Homem.
Agora já subi Nova Iorque em júbilo. Duvido de que qualquer general
romano regressado de uma campanha vitoriosa tenha atravessado Roma
com metade da pompa e triunfo com que o fiz. Devo ter parecido louco aos
milhares de pessoas com quem me cruzei, a maioria felizmente demasiado
envolvida nos seus afazeres para notar os meus olhos húmidos, o meu ar
perplexo e o meu sorriso, este sorriso que não descola, que me continua a
cansar os músculos da cara mesmo enquanto vos escrevo, este sorriso que,
tenho a certeza, é o mais amplo que já experimentei.
Tirando os frutos do amor, acho que nada alguma vez me fará mais feliz
do que estou agora. Encontro-me sentado na relva em Bryant Park, a uns
metros de mim dois velhos a jogar xadrez e logo a seguir a Sexta Avenida.
Do outro lado do parque fica a Quinta, a mais famosa, que percorri tantas
vezes acompanhando as personagens dos filmes. E por todo o lado estão
estas ruas largas, estes prédios crescendo para o céu e gente, muita gente,
tanta gente, uma multidão, uma multitude de todas as raças, alturas, portes,
idades, zumbindo, sonhando, vivendo ao meu redor.
Mas a minha alegria não vem só de estar aqui. Vem da viagem que me
trouxe aqui, do caminho que desembocou neste destino. E mais do que
isso, das coisas que vi e vivi. Graças a vocês, a minha vida foi uma vida de
encanto, em que atravessei muitos dias como se fossem o primeiro depois
de um coma.
Agora encanto-me com as pessoas e encanto-me com as coisas que
fazem e encanto-me com a luz da manhã e o céu do meio-dia e a brisa do
princípio da noite. Encanto-me com as luzes a acenderem-se no fim do dia
em Nova Iorque, mas também me encantaria com as do Porto ou de
Istambul. Como, bebo e durmo com gosto. Cada acto que pratico é a sua
própria recompensa. Cada dia que vivo é um milagre.
De certa maneira, sinto que foi preciso chegar aqui, ao centro do mundo,
para perceber que o centro do mundo não é só aqui, mas é onde quer que
estejamos. E esteja onde estiver, na companhia de seja quem for, em
direcção a nenhum ou a todos os destinos, sinto que se a minha vida
terminasse agora, terminaria bem e eu teria sido a pessoa mais abençoada
da existência.
Gostava de passear nestas ruas convosco. Gostava de ver como reagirias,
mãe, aos dog walkers, os passeadores profissionais de cães que visitam
Central Park com dez canídeos à sua volta, fazendo-os parecer uma espécie
de polvo com trelas em vez de tentáculos. E adoraria estar no topo do
Empire State Building contigo, pai, para podermos apontar para a Estátua
da Liberdade e comentar como parece pequena dali. Mas, como acho que
já vos escrevi, a minha viagem, aliás, qualquer viagem, é sempre feita de
incompletude. Tal como a vida. Só que, e foi isso que senti de forma tão
intensa a meio da ponte de Brooklyn, a incompletude, a saudade, a
imperfeição são a única forma de não colocarmos um tecto à felicidade, de
permitir que, não importa quão vasto o nosso horizonte, não importa quão
grande o nosso triunfo, haja sempre mais para ver, mais para conseguir. Se
calhar é por isso que a Terra é redonda; para impedir que, mesmo
contemplada da Lua, seja vista toda de uma vez.
Não podendo estar em todo o lado ao mesmo tempo e junto de todos com
quem quero estar, aprendo a saber estar no aqui e agora. O truque é ter
dentro de mim todos os lugares e pessoas. Hoje, sinto que resulta. E
estando em Nova Iorque estou também em Berlim, Lisboa, Islamabad, nos
Açores. E escrevendo isto sozinho, escrevo-o também na vossa companhia,
e na companhia dos meus amigos e dos meus antigos amores.
Agora tenho de ir. Aqui há prédios com aldeias inteiras lá dentro, bairros
que são verdadeiras cidades e pessoas com mundos dentro. E lá vou eu,
queridos pais, pôr-me a andar, gastar as solas, ganhar horizontes, alimentar
a alma.

Despeço-me from the top of the world


XVII

Querido amigo,

Não sei como te escrever esta carta. Queria começar pelo tema principal,
gritá-lo, mas vou tentar acalmar-me e narrar-te os acontecimentos deste dia
pela sequência correcta. Na última carta que te escrevi, e que esta manhã
fui levar aos correios da cidade, contei-te sobre o restaurante gerido pelas
freiras onde quer eu, quer o filho dos Viana jantámos. Passei a noite a
pensar nas cartas que li ontem e a recordar-me da minha viagem à Europa
de Leste. Foi na fase mais escura da insónia que me ocorreu: o restaurante
das freiras não ficava em Dubrovnik. Não ficava sequer na Croácia, mas na
República Checa. Durante a noite fui-me lembrando de mais detalhes dessa
minha viagem e, aos poucos, ficando certo de que me tinha enganado e
dito ao Dr. Viana que o restaurante ficava em Dubrovnik. Mesmo assim
quis certificar-me e, quebrando uma promessa, fui à Internet. E lá surgiu, o
restaurante de nome francês, com fotografias das freiras servindo e
sorrindo, na simpática cidade de Brno, na República Checa. Levantei-me
da cadeira de plástico diante do computador como quem entra num sonho.
Feito piloto de ralis, voltei para a minha encosta a uma velocidade
criminosa e quase derrubei a estufa quando estacionei em frente à casa dos
Viana. O barulho da travagem trouxe a Teresa Viana para a rua.
Saltei do carro e andei velozmente na sua direcção. Ela percebeu que eu
estava fora de mim e assustou-se:
– Que se passa? Que se passa?
– Desculpe chegar desta maneira, mas preciso de ver as cartas de ontem!
É que, é que… – achei então melhor não dizer a verdade – é que o seu filho
falou em alguém que só hoje me apercebi de que pode ser alguém que eu
conheço… – ela ainda parecia hesitante – alguém de quem perdi o rasto,
mas que é importante para mim. Muito importante!
– Está bem, está bem! – disse ela, talvez convencida pelo meu tom
desesperado. Na entrada, ainda hesitou uns segundos, meio desorientada,
lançando-se depois para as escadas.
– Vou ali buscá-las ao gabinete do meu marido – disse-me, já uns
degraus acima de mim.
Fui atrás dela, mas a Teresa Viana virou-se para trás e levantou as duas
mãos:
– Não. Não pode vir comigo. O meu marido não quer que ninguém entre
no gabinete dele.
A forma como a sua voz soou foi muito diferente do tom habitual. Além
de alarme, continha um toque de ameaça. Desci as escadas e fingi que
esperaria na sala, mas alguns segundos depois voltei para trás sem fazer
barulho. Cheguei ao primeiro andar, onde nunca tinha estado, e a primeira
coisa que vi foi uma enorme janela com vista para o mar. À minha
esquerda estava entreaberta a porta do quarto, do qual só vislumbrei os pés
da cama. Da porta à direita, apenas encostada, ouvi os movimentos dela.
Empurrei a porta devagar. Foi então que vi.
O escritório era uma divisão rectangular com uma janela na parede
oposta à porta. Em frente à janela estava uma secretária antiga, cheia de
livros, papéis e algumas molduras. Quer a parede à esquerda, quer a parede
à direita, estavam cobertas de estantes. Demorei uns segundos a aperceber-
me do seu conteúdo. Quando aquilo que os meus olhos viram chegou à
minha mente, foi como se um mecanismo gigante e complexo, há muito
tempo à espera acumulando poeira, começasse finalmente a funcionar.
Todas aquelas estantes, com dezenas de prateleiras, estavam cobertas de
livros de viagens, guias turísticos e mapas. As lombadas, centenas delas,
continham nomes de países e cidades:

Guia de Madrid
American Express – Roma
Paris em Dois Dias
Top 10 Vienna
Lonely Planet da Europa de Leste
Índia Mágica
Let’s Go – Berlim
Londres – Passeios e Monumentos
Amesterdão Low Cost
Uma Semana em Praga
Tesouros de Budapeste
Marraquexe sem Segredos
Viagem a Moscovo…

Aproximei-me das estantes e observei com mais atenção. Acho que não
havia nenhum guia à venda que não estivesse ali. Só sobre Paris contei
dezasseis livros. A Teresa olhava-me em choque, o seu corpo feito estátua,
e nas suas mãos, nos seus dedos crispados, as cartas.
– Que é isto tudo? – perguntei.
Ela continuava imóvel.
– Para que são todos estes livros de viagens? Para quê?
– São do meu filho – respondeu.
Tirei alguns livros da estante. Nesse momento eu já tinha uma suspeita
bem formada e procurava apenas provas.
– Então, se são do seu filho, como é que este guia é do ano passado? Não
me disse que o seu filho está a viajar há anos?
Ela respondeu mais rápido do que o que eu esperava:
– Ele envia-nos os guias quando já não precisa deles. O meu marido é
que os arruma…
– Mas então porque é que estes são em português?
Ela ficou confusa:
– Português, que mal tem isso?
Senti pena dela. A sua confusão aumentava e começavam a formar-se
lágrimas nos seus olhos, mas continuava naquela posição de bicho-de-
conta prestes a fechar-se.
– Oiça, este é um guia da Roménia, publicado o ano passado. Em
português. Se o seu filho está a viajar há anos, como é que ele encontrou
um guia em português sobre a Roménia? Não fazia mais sentido que
estivesse em inglês? E como é que ele enviaria todas estas centenas de
livros e guias para aqui? Uma coisa é enviar uma carta, mas dezasseis
livros sobre Paris?
Começou a chorar.
– Não sei, não percebo… o meu marido… ele é que…
Segurei-a por um braço e com toda a gentileza que consegui, levei-a dali
para fora. Ela não largava as cartas, às quais se agarrava como certos bebés
às suas mães. Sentei-a numa das cadeiras da sala e agachei-me à sua frente.
– Não é o seu filho que escreve estas cartas, pois não?
Olhou-me por entre as lágrimas, mas não disse nada.
– É o seu marido que escreve estas cartas, não é? – perguntei no tom com
que se acalma uma criança.
– Diga-me, o que é que aconteceu ao seu filho?
Ao ouvir a pergunta, ela guinchou e mais lágrimas escorreram-lhe pelo
rosto, pingando-lhe do queixo para o colo.
– Pode contar-me. Pode dizer-me o que…
Mas não terminei a frase, porque o seu olhar mudou de repente,
tornando-se febril e cortante. A voz dela caiu sobre mim em toda a sua
loucura:
– Se não sais já daqui, ele mata-te a ti também!
Um arrepio percorreu-me a espinha, não só pelas palavras, mas pela
raiva com que ela as proferiu, por toda a loucura que emanava do seu rosto
e voz. Levantei-me. Todo eu tremia, tantas e tão pesadas tinham sido as
descobertas dos últimos minutos.
Deixei-a a olhar para mim. transformada numa bruxa mitológica, saí e
corri até ao jipe e regressei a minha casa. Quando fechei a porta da rua
desatei a berrar. Não sei porquê, mas uivei uma boa meia hora. Quando
fiquei rouco e cansado, comecei a escrever o que estás a ler. Tudo me passa
pela cabeça. Até imaginei que o filho está morto debaixo da estufa!
Apesar disso não te envio já esta carta. Iria deixar-te preocupado. Vou
esperar pela chegada do Dr. Augusto Viana e pelo desenlace desta história.
O pouco senso comum que ainda me resta diz-me que ele não matou o
filho. Apesar disso, por segurança, vou colocar esta carta num envelope e
deixá-lo debaixo da cama, caso os meus delírios mais exagerados sejam
reais e me aconteça qualquer coisa.
Espero que isto não seja uma despedida. Precisaria de uma carta de mil
páginas para o fazer.
XVIII

Querido amigo,

Como estás a ler esta carta sabes que estou vivo e que, pelo menos a esse
respeito, correu tudo bem. Terás de utilizar a imaginação para tentar
compreender como vivi os acontecimentos que te vou narrar. Terás de ter
presente que, quando o Dr. Augusto Viana me bateu à porta, eu não sabia
se não era também a morte que me chamava. Quando ele me disse, sem
simpatia no olhar, mas também sem maldade, que precisávamos de falar, e
que, apesar de serem onze da noite, como estava Lua cheia e um tempo
agradável, ele ficaria muito agradecido se eu passeasse com ele, eu não
sabia se regressaria desse passeio. Mas fui. Queria saber, não só o que se
tinha passado, o que acontecera ao seu filho, mas também se este seria um
mundo onde a morte poderia vir das mãos de um homem que fora capaz de
me perguntar se eu estava triste. Para que possas estar mais próximo do
que eu vivi, apelo à tua imaginação. Imagina como foi ir passear à noite
com um possível assassino. Imagina como foi para mim o desenrolar da
nossa conversa, como o meu medo aumentou quando nos afastámos da
casa e nos encaminhámos para a falésia. Imagina a Lua gorda e cheia
dominando o céu nocturno, e imagina-a deitada sobre o mar, e imagina
uma brisa salgada e leve, um cheiro a terra molhada e uma falésia
escarpada ao pé de mim. E imagina a minha vertigem. Por dentro e por
fora. Imagina também a voz do Dr. Viana, com um ritmo de metrónomo,
seca, sem tremer mesmo quando diz as coisas mais terríveis. Tento
reproduzi-las:

– Um médico sabe que há muitas maneiras de matar uma pessoa. Por


vezes um médico diz à família «Não há nada mais que possamos fazer». E,
de facto, o doente em causa recebeu todos os cuidados que qualquer
hospital lhe daria. Mas o médico sabe que, apesar de ter feito tudo o que a
sua profissão exige, de ter tomado as decisões sensatas, se o moribundo
fosse outro, se fosse alguém amado pelo médico, haveria mais a fazer.
Podia não ser sensato e muito possivelmente não resultaria. Mas poderia
ser feito. Desistir sem esse último esforço desesperado não é a mesma
coisa que espetar uma faca em alguém, mas também é matar. Não é falta de
zelo, mas é um assassínio por falta de esperança, por falta de ousadia. E os
assassínios acontecem mais vezes do que pensamos. Não os de faca e bala,
mas os assassínios perpetrados pelas palavras, pelos gestos, pela retirada de
amor, pelo silêncio. Oscar Wilde dizia que todos os homens matam aquilo
que amam. Foi o que eu fiz. Eu matei o meu filho. Não o quis fazer, mas
sou o responsável. Discutimos. Eu disse coisas horríveis, e disse-as não por
serem verdade mas porque achava que iam ter certo efeito, o efeito que eu
pretendia. Nós, Homens, somos coisas curiosas. Temos todas estas palavras
ao nosso dispor mas usamo-las muitas vezes como uma bola de bilhar,
esperando que façam ricochete aqui e tabela ali, enviando-as na direcção
contrária à que pretendemos ir, para ganhar mais com o seu percurso. As
coisas horríveis que eu disse ao meu filho pretendiam o que todo o pai
pretende: que ele fosse mais feliz. Que a sua vida fosse mais plena e o seu
mundo fizesse mais sentido. E, no entanto, não deixaram de ser críticas,
recriminações, insultos. A última vez que ouvi a voz do meu filho foi no
fim dessa discussão, em Lisboa. Sabe quais foram as últimas palavras que
me disse? «Eu pago a merda da multa!» Porque, no meio dessa conversa
atroz, foi uma das coisas de que o acusei, foi uma das minhas armas de
arremesso: a multa. Ele morreu aqui, nesta ilha. Como, não interessa.
Dizem que foi um acidente. A minha mulher teve outra sorte no que diz
respeito às últimas palavras. Ele ainda lhe telefonou da ilha, e quando a
Teresa lhe perguntou o que ele ia fazer para os Açores, o meu filho
respondeu, e na sua resposta está um pequeno exemplo da pessoa
maravilhosa que ele era, da pessoa maravilhosa que eu ataquei de forma
bárbara: «Vou descobrir um tesouro!» Foi isso que ele disse: «Vou
descobrir um tesouro…» Ele morreu nesta ilha. Perguntaram-nos se
queríamos que o corpo fosse enviado para Lisboa. Imaginar o caixão
rodeado de malas a sobrevoar o Atlântico causou-me uma angústia
enorme. Além disso, não achei justo que fosse ele que tivesse de regressar.
Se foi vontade dele vir para aqui, pois então viríamos nós também para esta
ilha, enterrá-lo perto do seu tesouro. Não vale a pena descrever-lhe esses
dias. No fim do funeral, quando chegámos ao hotel, a minha mulher, que
suportara as cerimónias com um estoicismo admirável, desmaiou. Os dias
seguintes foram ainda mais terríveis do que os das cerimónias fúnebres. Eu
olhava para os olhos da minha mulher e conseguia ver, de hora para hora, a
luz a extinguir-se dentro deles. Uma mãe em luto é das coisas mais
terríveis que podem existir. O que eu via era pior do que isso, era algo para
além do luto, o que via era alguém a morrer por dentro, a perder a alma.
Ela teve de ser internada no hospital, e apesar de todos os medicamentos,
apesar de todas as injecções, apesar dos barbitúricos, das benzodiazepinas,
dos relaxantes musculares, dos antidepressivos, nada parecia melhorar o
seu estado. Sentado ao lado dela, eu também morria por dentro, mas não
tinha a benesse da loucura. Tinha de viver lúcido cada segundo que
passava, cada segundo interminável de uma vida em que o meu filho tinha
morrido e a minha mulher enlouquecera. Conhece o Franz Kafka, o
escritor checo? Conhece a história da boneca? Quando Kafka viveu em
Berlim, costumava passear pelos jardins, muitas vezes na companhia de
uma mulher alemã, Dora. Num desses passeios o casal repara numa criança
que chora. Kafka vai ter com a rapariguita e pergunta-lhe porque está triste.
A criança, com a voz aos soluços, conta-lhe que perdeu a sua boneca.
Kafka pede-lhe uma descrição da desaparecida, e escuta-a com um ar
muito atento. Quando a rapariga já não se lembra de mais nenhum
pormenor, o escritor surpreende-a dizendo-lhe que, não só ele conhece
aquela boneca, como sabe que ela não está perdida. Anuncia então que o
motivo pelo qual a miúda não a encontra é por que a boneca partiu de
viagem. A rapariguita pergunta-lhe como é que ele sabe isso. «Porque ela
me escreveu uma carta!», responde Kafka. Desconfiada de tantas
coincidências, a criança pede para ver a carta, embora não saiba ler. O
escritor lamenta não a ter consigo, e, para convencer a criança da verdade
da sua história, promete trazê-la no dia seguinte. Nessa noite, Kafka redige,
com o cuidado e a arte com que escrevia os seus contos, a carta da boneca,
que devia cumprir a dupla missão de mostrar o afecto da boneca pela
miúda e justificar a sua viagem. O escritor põe a viajante a explicar que,
apesar de gostar muito da rapariguita, sentira algum enfado por viver
sempre com as mesmas pessoas, no mesmo sítio e, sendo uma boneca
cheia de curiosidade pelo mundo, decidira viajar para conhecer novos
lugares e fazer novos amigos. A boneca termina a carta voltando a
assegurar à rapariga de que gosta muito dela, e dizendo que se hão-de
reencontrar, e compromete-se a escrever uma carta por dia contando as
suas viagens. No dia seguinte, no mesmo jardim, a rapariguinha ouve
Kafka ler em voz alta a carta da boneca. Não seria a única vez. A partir daí,
Kafka escreve uma nova carta todos os dias. A boneca cresce, visita
lugares novos, vai à escola, faz amigos, vive aventuras. Ao longo das
cartas surgem sempre demonstrações do amor da boneca pela rapariga, e
explicações sobre o adiar do seu regresso. Kafka pretende ir preparando a
criança para a ideia de que a boneca nunca regressará, mas não sabe que
fim dar à história. Tem de arranjar uma forma de fazer com que a boneca
desapareça sem desaparecer, que ame a miúda mas não volte para ela, no
fundo, tem de fazer o impossível, fazer com que uma coisa que se perdeu
não tenha sido perdida. Finalmente, ocorre-lhe a solução ideal. Ele casa a
boneca. O romance e a cerimónia do casamento são descritos em várias
cartas, até que a boneca escreve à rapariga explicando-lhe que não poderá
regressar porque agora tem de viver com o marido, e descrevendo com
grande detalhe a sua nova casa. Na última carta, a boneca agradece à
rapariga os tempos felizes que passaram juntas e despede-se, com grande
carinho, da sua melhor amiga. E, assim, em três semanas de cartas diárias,
Kafka substitui na mente da rapariga uma boneca inanimada por uma
boneca viva e cheia de histórias que seguiu o seu destino, embora sem
esquecer a rapariga, e que vive agora, à distância, uma vida feliz. Quando
eu escrevi a primeira carta, a ideia não era que a minha mulher acreditasse
nela. Eu não pretendia fingir que o nosso filho continuava vivo, longe de
nós mas feliz, a viver inúmeras aventuras. Não sei dizer exactamente o que
esperava. Achei que a minha mulher perceberia que fora escrita por mim, e
esperava, talvez, mostrar-lhe que algo dele vivia ainda em mim, que a sua
voz continuava a ecoar. Foi um acto desesperado, uma das coisas que se
faz para se fazer qualquer coisa. Li-a no hospital ao lado da cama, numa
altura em que ela quase não falava. Quando acabei a leitura, a minha
mulher sorriu, pela primeira vez desde que ele morrera, e disse-me:
«Temos de lhe responder!» Nos primeiros tempos, julguei que podia fazer
o papel de Kafka, mas aconteceu o contrário. Acho que as cartas se foram
tornando mais importantes para mim do que para a minha mulher. Comecei
a perder dias inteiros em pesquisas. Já sei que entrou no meu gabinete,
portanto, sabe do que estou a falar. Tornou-se importante, tornou-se
fundamental que aquelas narrativas fossem próximas da realidade. Para
escrever uma carta de três páginas sobre um lugar eu lia centenas. Apesar
do meu cuidado, por vezes a minha mulher desconfiava e comentava
algum pormenor, e outras vezes ainda dizia qualquer coisa que me fazia
crer que ela sabia quem era o verdadeiro autor. Houve recaídas. Muitas. Às
vezes acusava-me de o ter morto, noutras dizia que tínhamos de ir ter com
ele aonde quer que fosse. A certa altura, já não sabia se ela chorava porque
o nosso filho tinha morrido, ou porque ele nunca mais regressava para nós.
A última recaída aconteceu ainda no outro dia, quando você nos visitou a
pedir a receita do bolo. Lamento se fui indelicado, mas chegou num
momento terrível. Nunca deixámos os Açores. Não lhe sei bem dizer
porquê. A minha mulher começou a fantasiar que tínhamos vindo para aqui
para viver a reforma e esperar pelo final da volta ao mundo do nosso filho.
Eu não me senti capaz de regressar para Lisboa e temi o efeito que o
regresso teria na minha mulher, por isso adiei-o. O tempo passa muito
rápido. Achei que precisava de alguns meses para resolver tudo, para fazer
o luto, para trazer a minha mulher de volta à realidade. Mas passaram-se
anos. Não sei quem precisa mais destas cartas, se ela, se eu. Há dias em
que passo mais horas a imaginar as viagens do meu filho do que a viver a
minha vida, a nossa vida. Para tornar a história o mais real possível,
comecei, a certa altura, a escrever cartas que haviam sido escritas por
companheiros de viagens dele. Não me bastava já descrever o mundo pelos
olhos do meu filho. Coloquei outros olhos a descrevê-lo, sempre
generosos, sempre apaixonados. Escrevi-as até em inglês e traduzi-as
depois para a minha mulher. Cheguei a pensar falsificar recibos de hotéis
de todo o mundo passados em nome dele, para melhor a convencer. Mas
não foi preciso. Apesar da dúvida ocasional, ela quis sempre acreditar. Eu
sei que é demais, eu sei que estou a fazer uma loucura. Kafka casou a
boneca, mas que fim posso eu dar ao meu filho? Que motivo poderia um
filho ter para não voltar a ver os seus pais? Comecei a última carta várias
vezes, mas nunca a acabei. Até arranjei um motivo para ele não voltar.
Iniciei cartas onde ele explicava que tivera de ceder o seu passaporte para
salvar uma família, e que agora não poderia regressar, mas viveria feliz.
Mas como iria explicar que ele não escrevesse mais? Que pretexto podia
existir? Talvez até se encontrasse uma razão plausível, mas para isso eu
tinha que deixar de escrever as cartas, tinha de desistir do mundo
imaginário onde acontecem as aventuras do meu filho. Quando me sento à
frente de uma folha em branco, ele pode estar em qualquer lugar do
mundo, desde que não seja aqui, e tudo lhe pode ter acontecido. Quando
ele começa uma carta, sei que está feliz e que o mundo é um lugar
maravilhoso e aguardo por saber que coisas fantásticas testemunhou, em
que lugar incrível se encontra, que mulheres belíssimas lhe deram o seu
beijo. Como posso eu substituir este mundo infinito de possibilidades por
outro em que nada lhe acontece, onde ele não está em lado nenhum e
ninguém o beija? Existem vezes em que confundo aquilo que ele realmente
viveu com invenções minhas. Se calhar há-de chegar o dia em que eu
acredito que as cartas são verdadeiras. Soube sempre que a minha mulher
lhe estava a mostrar as cartas. Não fiz nada para o impedir porque senti que
a história ficava ainda mais real, já que existia agora alguém que só
conhecia o meu filho pela vida que ele levava depois de ter morrido.
Quando me pediu para lhe escrever e eu recusei, cheguei a ponderar aceitar
a proposta, mas achei que seria demais. Eu responder-lhe em nome do meu
filho seria quase uma blasfémia. Uma coisa é deixá-lo acreditar na sua
existência, outra era responder-lhe com a voz de um morto. Tudo isto foi
longe demais. O luto de um filho é sempre uma caminhada estranha, que
cada pai faz à sua maneira. Lembro-me de visitar um amigo meu, quase
um ano depois de o seu filho adolescente ter morrido. Ele e a sua mulher
pareciam ter terminado o luto. A prova mais poderosa nesse sentido era
terem transformado o quarto do filho num escritório. Muitos pais em luto
são incapazes sequer de fazer a cama, e deixam os quartos como estavam
no último dia que o filho viveu, os posters na parede, os cadernos abertos
na secretária… Por não ter passado por essa experiência, pensei então,
quando vi o escritório, que o processo de luto, essa expressão burocrática
para o que há de mais terrível na vida, estava a correr-lhes bem. Só que,
por altura da sobremesa, num jantar que tivera bastantes gargalhadas,
tomei a iniciativa de ir à cozinha buscar açúcar. Antes que a anfitriã me
conseguisse dizer qualquer coisa, eu já tinha aberto a porta da despensa. É
possível que eu tenha sentido algo parecido com o que sentiu quando viu o
meu escritório. No chão da despensa, arrumadas como um exército no dia
de inspecção, estavam algumas dezenas de pacotes de leite de soja. De
início não percebi o significado, mas depois lembrei-me de que o filho do
meu amigo era intolerante à lactose. O horrível desta história é perceber o
quão doloroso era, para aqueles pais, sempre que iam às compras, tentar
não comprar leite de soja. Eu imagino o esforço para continuar a andar,
para não parar o carrinho. E imagino a dor quando, por fraqueza, se pega
no leite que se sabe que ninguém vai beber, e se paga o leite, e se arruma
na despensa. Conto-lhe esta história porque me acontece o mesmo. Eu
quero parar de escrever as cartas, eu quero aceitar que o meu filho morreu,
que ele já não está cá, que não está nem em Paris nem em Londres a viver
aventuras, a apaixonar-se, a ser feliz.
Mas não consigo.

Nem mais uma palavra foi dita, por mim ou por ele. O dia já nascia
quando o Dr. Augusto Viana acabou o seu monólogo. Ficámos ainda uma
meia hora a ver a luz inundar o mundo e a cor regressar às coisas. Não
consigo, agora, dizer-te muito mais. Tentar reproduzir as palavras dele
cansou-me quase tanto como ouvi-las. Despedimo-nos com um aperto de
mão na bifurcação do caminho. Eu queria dizer tanta, tanta coisa. E ao
mesmo tempo sentia que nada do que eu dissesse serviria, que por muito
cuidadas que fossem as minhas palavras não seriam capazes de expressar o
que eu pretendia. Tirei então a fotografia do bolso. Aquela fotografia. Tive
vergonha de te dizer até agora, mas ando sempre com ela. Mesmo quando
vou correr, levo-a no bolso do fato de treino.
Mostrei a fotografia ao Dr. Viana. Ele pegou nela com cuidado extremo.
Após alguns segundos de contemplação, acenou com a cabeça em sinal de
compreensão. Levantou depois o rosto e olhou-me nos olhos. O olhar que
dois vizinhos trocam quando se vêem lado a lado, à noite na rua, diante do
seu prédio que arde sem salvação possível.
XIX

Ex.mo Director da Casa Fernando Pessoa,

Começo por felicitá-lo pelo cargo que ocupa. Para mim, e creio que para
muitos, a sua posição é de maior importância, encontrando-se, na
hierarquia de cargos institucionais, um pouco abaixo do Papa, na sua
condição de anfitrião da Basílica de São Pedro, mas acima do presidente
francês.
Após a felicitação, apresento-me. O meu nome é o que assina esta carta.
A minha formação e currículo são irrelevantes, bem como a minha
descrição física. Talvez lhe interesse uma caracterização moral. Sou um
homem incapaz de não sorrir a uma criança que me sorri. Apesar disso,
tenho inúmeras falhas e peco tanto como as cidades do Antigo Testamento.
Pago os meus impostos, mas sem gosto, e já estacionei, sem remorsos, em
passadeiras, mas nunca andei de transportes públicos sem bilhete. De
momento a minha ocupação principal é a redacção de cartas com o intuito
de tornar o mundo um lugar melhor, diminuindo o sofrimento e
promovendo a felicidade. É por este motivo que lhe escrevo.
Acredito que V.Ex.ª e a sua equipa laboram num erro. A Casa Fernando
Pessoa divulga, debate e exulta a obra do homónimo, na qual inclui as
obras de, entre outros, Alberto Caeiro, do engenheiro Álvaro de Campos,
de Ricardo Reis e de Bernardo Soares. As várias instituições mundiais que
celebram a vida dos seus autores, fazem-no porque consideram que a sua
obra é única e bela, que mostra uma forma singular de encarar o mundo e a
vida transmitida numa voz inconfundível. Ora, não possui, por exemplo, o
admirável engenheiro Álvaro de Campos uma obra única e bela, que
mostra uma forma singular de encarar o mundo e a vida através de uma
voz inconfundível? Considera a Casa Fernando Pessoa que a obra de
Álvaro de Campos é a mesma que a de Fernando Pessoa?
Claro que quem viveu, oficialmente, naquela casa da Rua Coelho da
Rocha, foi o cidadão Fernando Pessoa. Só dele, aliás, se irão encontrar
registos burocráticos. Mas lá porque foi o único dos poetas que a sua
instituição celebra que pagou impostos e teve direito a lápide, significa isso
que os outros não existiram, ou até que não viveram nessa casa? Acredita
mesmo que, pelas janelas através das quais V.Ex.ª vê a rua, sempre que o
corpo do cidadão Fernando Pessoa olhava para a rua era o poeta Fernando
Pessoa que olhava para essa mesma rua? O engenheiro Álvaro de Campos
também olhou através dessa janela. E Alberto Caeiro. E o que sentiram e
pensaram foi diferente, como diferente é a sua poesia. Vou até mais longe.
Na casa de banho onde Fernando Pessoa se sentava e ficava mais leve,
também se sentou Ricardo Reis. Não sei se todos os heterónimos faziam as
suas necessidades da mesma forma, ou se algum sofria de obstipação. Mas
que se sentaram todos a olhar para os mesmos azulejos, disso não duvido.
Compreendo que seria dispendioso abrir uma casa para cada um dos
nomes que mencionei. Proponho-lhe, pois, uma de duas soluções. A
primeira, e ideal, será alterar o nome da sua instituição para Casa Fernando
Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares
e Amigos. Estou consciente da semelhança com o nome de uma firma de
advogados, mas acho que vale a pena o risco. É possível que considere esta
solução extremada. Se for esse o caso, perdoe-me por achar que está na
posição errada, já que não compreende a obra de qualquer dos poetas que
pretende celebrar. Tenho uma segunda proposta, mais modesta. Dê um
quarto a cada um deles. A casa pode ser do Fernando, mas que o Álvaro
tenha onde pôr os sapatos e o Alberto onde pendurar o capote.
Existem duas formas de viver, que só por vezes se sobrepõem. Por fora e
por dentro. Ambas são fundamentais para uma vida plena. Há quem
descure a segunda em favor da primeira e acabe incapaz de perceber que
uma flor não é um vegetal, mas um milagre. E há quem descure a primeira
em favor da segunda e acabe a tentar jantar um soneto e a proteger-se do
frio com uma recordação.
Ao manter o presente nome, mantém o equívoco de que o Fernando
Pessoa era mais do que os outros e, desse modo, a sua instituição dá
primazia à vida externa e diminui a importância da vida interior. O que é
irónico vindo de quem quer promover a poesia.
Espero pois que proceda às alterações necessárias para rectificar esta
situação.
Agradeço a sua atenção. Lamento se achou o meu tom impositivo ou
paternalista. É um risco que corro em nome da minha missão. Desejo-lhe
as maiores alegrias no cumprimento do seu cargo, e já agora, igualmente
fora dele. Aproveito também para lhe propor que a «Tabacaria» seja lida
todas as semanas em voz alta, na sua instituição, de preferência por uma
rapariga excessivamente bela que, quando chova, fume cigarros com
gestos melancólicos debaixo de toldos. Ou então por um jovem poeta com
bexigas na cara e unhas muito roídas que sonhe sem freio. Ou ainda por
um velho arrependido da vida, com papos debaixo dos olhos, mãos
calejadas e orelhas imperiais.

Em verso livre

P.S. 1: Ou, também, por uma grávida de sete meses com olhos bondosos
e que saiba tricotar. Ou uma prostituta coxa que chore sempre nos finais
felizes dos telefilmes. Ou um marinheiro de uniforme com tatuagens no
pulso.

P.S. 2: Se preferir, também não me choca que, ao invés da «Tabacaria»,


se leia a «Ode Triunfal», mas que o leitor seja então um maníaco com ar
angelical e olhos doces, ou um ex-presidiário cujo crime tenha sido rasgar
as últimas páginas de romances oitocentistas, ou uma mulher apaixonada
que saiba atirar um prato à parede…
XX

Querido amigo,

Quando te enviei a última carta decidi, num impulso, marcar outra


expedição balear. No dia seguinte lá me encontrei de novo a receber o
briefing, a vestir os impermeáveis e os coletes laranjas e a entrar para o
barco, igual ao anterior excepto no nome: Aurora.
Estava um dia de céu azul e escassas nuvens. Tivemos sorte. Poucos
minutos depois de o semi-rígido ter parado ao largo da ilha, ouviu-se uma
entusiástica comunicação via rádio a informar-nos do paradeiro próximo de
dois cachalotes. Foi possível observá-los alguns minutos. Ao contrário da
tristeza da expedição anterior, sentia-me alegre e, enquanto vislumbrava os
magníficos animais, pensei que o mundo ainda guardava algumas
maravilhas. Mais ainda do que os olhos misteriosos da baleia, ou até dos
golfinhos com quem de novo nos cruzámos, o que mais me encantou foram
os risos sonoros das crianças a bordo, especialmente dos cinco ou seis
filhos de um casal francês que parecia ter assumido a responsabilidade de
povoar o planeta. Era um pequeno exército de asterixes que ria com tal
entusiasmo e abandono que parecia difícil alguém, alguma vez, em
qualquer lugar, ter estado tão contente como estas crianças estavam.
Quando a expedição terminou e se iniciou o regresso, havia uma atmosfera
festiva no barco e parecia que todos os passageiros estavam mais leves.
Crianças e adultos trocavam histórias em várias línguas: os filhos
apontavam para o mar, faziam movimentos enérgicos e chilreavam o seu
entusiasmo; os pais respondiam com olhos exageradamente abertos e
pequenos gestos de ternura, uma mão poisada sobre uma cabeça movendo-
se para a esquerda e para a direita como um maestro dirigindo uma
orquestra, um breve beijo numa bochecha corada, o segurar de um dedo.
Quando atracámos, saí do Aurora à frente da família francesa e quis o
destino que me fosse possibilitado ajudar também as crianças a
desembarcar. Uma por uma dei-lhes a mão enquanto elas desciam do barco
para terra. Já não sentia há muito o que era ter uma mão minúscula dentro
da minha. Vais chamar-me místico ou achar que sou louco, mas descobri
que as mãos das crianças são todas a mesma mão. Senti que não dava a
mão apenas aos miúdos franceses, mas às outras crianças a quem no
passado dei a mão. Quando os pais finalmente desceram e me
agradeceram, eu sorria como um maníaco. Quis pedir-lhes para ir com eles,
oferecer-me para os seguir, convencê-los de que eles não notariam sequer
que eu estava lá, que eu só surgiria quando fosse preciso tirar uma criança
de um barco, segurá-la na rua, ajudá-la a atravessar a passadeira, a subir
umas escadas. Eu seria o adulto-a-quem-dar-a-mão. A minha vida não só
seria útil como eu sentiria, várias vezes por dia, que segurava nas mãos
uma mão pequena e viva, uma mão cheia de futuro, uma mão feliz com
todo o tempo do mundo pela frente.
A família francesa foi à sua vida, da qual eu não fazia parte, e eu fui
passear pela cidade com o meu sorriso. Cruzei-me com os Fagundes,
aquele casal do jantar em casa dos Viana. A nossa visão dos outros
depende sobretudo do que se passa dentro de nós. Desta vez, os Fagundes
não me pareceram provincianos ou neuróticos, mas pessoas como as
outras, com os seus defeitos e qualidades, e com quem até foi agradável
tomar café e falar de Lisboa.
Regressei a casa cansado da breve felicidade que me iluminara durante o
dia. Comi qualquer coisa e deitei-me com um céu limpo ainda sem estrelas.
Enquanto adormecia, e quase conseguia sentir o peso e o calor das mãos
dos miúdos franceses, um plano, pois esta é a melhor palavra que encontro,
foi-se formando no lugar apocalíptico que é a minha mente.

Acordei cedo e repousado. Fui correr. O céu, as vacas, as flores, as


árvores, o aroma no ar e a luz murmuravam em uníssono que era Verão. O
suor escorria-me pelo rosto e pelas costas. Durante a corrida pensava no
meu plano e, enleado num optimismo que não sentia há muito tempo, ia
afastando os muitos e sensatos obstáculos à sua concretização.
Depois do banho, e do pequeno-almoço com um chá tão forte que quase
parecia sopa, pus-me a escrever. Só que não era eu que escrevia. O autor
das cartas era o filho dos Viana, e os destinatários eram, claro, os pais.
Não quero analisar demasiado este ímpeto, deixo isso para o teu amigo, o
Dr. Pereira, mas acho que foi a minha última revolta contra a morte. Acho
que o que eu tentei fazer foi, naquelas cartas, transformar-me no filho
deles. Se eu já não queria viver a minha vida e eles queriam o filho vivo,
porque não transformar-me nele? Porque não abandonar o mundo exterior
e viver as aventuras do filho dos Viana em Madrid ou Praga ou onde for?
Nunca escrevi tanto em tão pouco tempo. Foram cinco dias inteiros
debruçado sobre o papel.
O processo foi – como hei-de dizer – curioso. Outro dia escrevi ao teu
Dr. Pereira e falei-lhe de que, no passado, eu procurara muitas vezes no
cinema a suspensão do eu, a troca da minha vida e das minhas
preocupações pelos anseios, falhanços e triunfos das personagens. O que
senti, procurando encarnar o filho dos Viana, não foi muito diferente. Ele
chegava a uma cidade e eu procurava imaginar essa cidade não como eu a
imaginaria mas como ele o faria. Ele apaixonava-se e eu procurava
imaginar como seria para ele aquele amor. Ele comia laranjas e eu tinha de
descrever não como as laranjas me saberiam a mim, mas a ele.
O resultado, como acho que suspeitarás, foi ridículo, uma série de cartas
horríveis sem comparação com as que o Augusto Viana escrevera. Quando
as li todas seguidas surpreendeu-me a forma como, apesar do meu esforço,
elas soavam tão falsas como aqueles filmes cujo argumento passa por
dezenas de mãos e acaba numa coisa sem pés nem cabeça. O absurdo do
meu plano tornou-se então claro para mim. Como podia eu imaginar como
saberiam as laranjas ao filho dos Viana, como poderia eu saber como
ecoaria dentro dele um passeio em Barcelona, como seria eu capaz de
calcular as desventuras dos seus amores?
Percebi que é verdade aquela forma de consolo que diz que os mortos
continuam vivos dentro de quem os amou. Era por amar e conhecer o seu
filho que o Dr. Viana o conseguia ressuscitar nas cartas. Afinal, não é o
amor também a capacidade de vivermos as histórias do outro como se
fossem nossas? Pensei nos meus mortos e em como eu conseguia, sem
esforço, imaginá-los em quase todas as situações, saber como reagiriam se
o jantar estivesse frio, se tivessem um furo no pneu a meio de uma viagem
longa, se ouvissem certa música na rádio, se estivessem especialmente
maldispostos ou bem-dispostos, se a sobremesa fosse pudim, se Portugal
ganhasse, se chovesse dois dias seguidos. Pensei nas pessoas que amava e
perdi e em como elas reagiriam à visão de uma baleia, o que achariam de
Hector, ou o que diriam do meu aspecto. E era como se, na minha mente,
ou seja lá onde for, elas estivessem sentadas numa sala de cinema e fosse
possível passar qualquer história no ecrã para observar as suas reacções. Eu
saberia, então, quando é que iam sorrir, quando é que iam ter medo,
quando iam suspirar. Sei que tudo isto pode parecer ridículo, absurdo ou
desesperado, mas se, além do seu corpo físico, aquilo que faz de uma
pessoa quem é, for a forma como ela experimenta o mundo, como aprecia
ananases ou se aborrece com pedantes ou se encanta com malabaristas,
então isso significa que alguma coisa continua viva nos outros quando
alguém morre, que todos nós existimos uns nos outros, que a forma como
eu vejo o mundo é feita em parte pela forma como as pessoas que amo o
vêem, e que o olhar dos que me amam sobre as coisas é também
influenciado pelo meu.
Na primeira carta que te escrevi daqui, falei-te em dominós. Até agora a
imagem de um dominó caído era para mim um símbolo da perda. Aquele
dominó já cumprira o seu destino, nada mais lhe restava, nada mais lhe
aconteceria. O dominó caído era um dominó morto. Contudo, eu só me
conseguia sentir assim perante uma peça de dominó individual depois de
todas terem sido derrubadas. Como se, enquanto a serpente de dominós
ainda estiver em movimento, não se possa olhar para as peças já caídas
como mortas. E é essa a grande diferença entre a vida e os dominós. Na
vida, a corrente nunca termina e nenhuma peça de dominó morre realmente
porque faz parte do movimento. Muitos místicos defendem que tudo é a
mesma coisa, que o cosmos é uno. A ideia de fronteira, de separação, de
diferença é apenas isso, uma ideia, e uma ideia ilusória, uma miragem para
que se possam contar histórias. Se as pessoas fossem dominós, seriam
peças alinhadas numa fila interminável em que cada queda traria em si o
ímpeto e a história de todas as peças caídas antes.
Por esta altura suponho que já avisaste a polícia, os bombeiros e os
enfermeiros de todos os hospícios para procederem à detenção urgente da
minha pessoa. Imagino os relatórios dos psiquiatras: «Confabulação
mística com dominós», «surto budista-light com despersonalização aguda»
ou «apocalipse espiritual narrativo». Mas não te preocupes. Apesar da
minha linguagem mística, não tive uma epifania. Posso ter percebido as
coisas, mas não as sinto. Por compreender que a morte é necessária para
que possam existir histórias, já que está na natureza das histórias ter um
princípio, meio e fim, não deixo de me revoltar com a morte. Por perceber
que os meus mortos vivem ainda dentro de mim não deixo de sentir
demasiado a sua falta. Por ver um sentido, mesmo que ténue, para aquilo-
que-aconteceu, não me sinto redimido. Continuo a sentir-me vazio,
continuo a sentir que fui vítima de um golpe que nunca ficará curado. Mas
sinto também que a vida urge.
Já chega de exílio.
Anuncio-te o meu regresso. Ver a loucura poética em que o Dr. Viana e a
mulher caíram, e a forma como eu ainda a tentei superar, assustou-me. Por
muito que me encantem os mundos imaginários, não quero correr o risco
de me perder neles, não quero fechar-me por completo às surpresas da
realidade. Posso não ter encontrado aqui a redenção por que esperava,
aquela que surge por milagre com a velocidade de um trovão e cura todas
as feridas. Posso não ter tido o momento mágico no qual eu aceitaria
aquilo-que-aconteceu como se aceita o sabor das cerejas ou a cor da terra.
E, no entanto, a vida não deixou de me trazer as suas pequenas
redenções, na forma de búzios traficados, cachalotes resplandecentes ou no
sorriso generoso e imediato que uma criança nos oferece sem que lhe
tenhamos dado nada.
A única vingança que há perante a morte, como já alguém disse, é viver.
E viver com os mortos e os vivos dentro de nós. Viver num mundo que,
apesar de já não conter o que nele eu mais amava, ainda tem muito para ser
amado.
Vou comprar o meu bilhete.

Até breve
XXI

Querido amigo,

Estou muito perto de ti, mas ainda não nos vimos. Os últimos sete dias
da minha vida já se passaram na cidade que mais alegrias e tristezas me
trouxe: Lisboa. Para já, estou a morar numa pensão no Rossio. Não sei
ainda se regressarei à minha casa.
As despedidas da ilha foram rápidas. Passei por casa de Hector a
devolver-lhe os seus livros e acabámos a jantar no restaurante do senhor
Joaquim. O braço dele já estava bom e o seu humor mantinha-se. Disse que
um dia ainda me visitava em Lisboa a pedir para eu guardar um caixote
cheio de búzios.
Encaixotei todos os livros que fui acumulando aqui e, antes de entregar o
jipe, visitei o posto de turismo. Esperava que a Maria lá estivesse. Estava.
Reconheceu-me de imediato e saudou-me com um sorriso. Perguntei-lhe se
gostava de livros e quando ela, com um ar intrigado, me disse que sim,
convenci-a a acompanhar-me até ao jipe.
Devemos ter demorado uns dois, três minutos a ir do edifício até ao
estacionamento. Mas foram dois, três minutos nos quais me senti de novo
adolescente e nos quais voltei a sentir a euforia tingida de timidez que é
andar lado a lado com uma senhorita que desejamos. Abri a mala do jipe e
mostrei-lhe os quatro caixotes de livros que lhe queria oferecer. Maria
recusou sem deixar de sorrir. Achou, sem dúvida, que era um gesto
excessivo e, para tentar resolver as coisas, propôs escolher um ou dois
livros apenas. Eu insisti, e expliquei que, uma vez que ia partir ainda nesse
dia, não podia levar todos aqueles livros comigo. Não sei se sonhei ou se
ela ficou mesmo um pouco triste ao ouvir isto. Voltei a insistir que ela
ficasse com eles, mas Maria propôs-me pagar pelos livros.
– Troco-os por um beijo – lembrei-me de dizer, como um adolescente
que, por falta de experiência, procura agir como a personagem de um
filme. Ao contrário do que seria de esperar, ela não achou este comentário
ridículo, antes sorriu envergonhada, desviando depois o rosto na direcção
do mar.
Quando se virou para mim, disse-me: «Está bem.»
Quase não reagi quando ela se inclinou para a frente e me beijou na
bochecha. À velocidade a que tudo isto se passou, não sei se cheguei a ter
tempo de esperar que fosse na boca, mas fiquei um pouco desiludido com a
castidade do ósculo. Um minuto antes eu não esperara nem pretendera
obter qualquer beijo, mas o ser humano é veloz a criar ilusões e lento a
lidar com o seu fim. Desapontado, carreguei os caixotes para um pequeno
gabinete atrás do posto de turismo.
Quando olhei para Maria para me despedir ela notou, sem dúvida, que eu
estava desiludido. Que ridículo lhe devo ter parecido. Como ousava eu, um
homem bem mais velho, que falara com ela apenas uma vez e que agora
lhe oferecia uns caixotes de livros velhos, achar-me no direito de receber
um beijo de uma mulher assim? Mas, meu amigo, os milagres existem, e
não minto quando te conto que ela então me beijou. Um beijo que se sabia
primeiro e último.
–Este é de graça! – disse-me, tal e qual como num filme.
Foi o primeiro beijo a sério que recebi desde aquilo-que-aconteceu.

Não voltei a ver os Viana. Quando passei para me despedir, o carro não
estava lá e a casa encontrava-se fechada. No voo para Lisboa, assim que o
avião levantou, comecei a escrever-lhes. Depois de aterrar, só saí do
aeroporto quando terminei a carta e a enviei para os Açores.
Era uma carta tão ridícula quanto sincera, tão ambiciosa quanto
carregada de falhas, tão patética quanto genuína. Hoje de manhã, uma
semana depois, foi-me devolvida com um carimbo a informar que o
destinatário já não residia naquela morada.
Ainda não falei com ninguém desde que cheguei. Não te disse mas, nas
últimas semanas, deixei crescer a barba como se fosse formar uma banda
folk. Magro, bronzeado e barbudo como estou, com um boné na cabeça e
óculos escuros, consigo andar pelas ruas e ser confundido com um turista.
Já me cruzei com algumas pessoas que me conhecem, e notei, aliviado, que
o olhar delas nunca poisou em mim.
Em breve vou voltar a ser eu, vou voltar a falar e visitar as pessoas que
magoei, que ignorei ou de quem recusei indelicadamente a ajuda. Mas
precisava destes dias. Precisava de voltar a percorrer estas ruas sem ter de
conversar, sem ter de dar explicações, sem ter de pôr pessoas a par, sem ter
de contar o tempo que já passou desde aquilo-que-aconteceu.
O meu encanto para com a vida vai regressando. As feridas não
desaparecem, mas cicatrizam.
Nos três primeiros dias passeei só à noite, aproveitando o silêncio e a
pouca gente para me reencontrar com a minha cidade. Reencontrei as
avenidas, ruas e largos onde tiveram lugar tantos dos momentos mais
importantes da minha vida. Não há um recanto desta cidade para o qual eu
não tenha uma história ou uma esquina que eu não tenha cruzado. É-me
difícil encontrar uma árvore que não me tenha oferecido sombra, um banco
onde não tenha descansado, um bairro onde não haja um amigo. E ao
mesmo tempo, apesar de não ter sido tão extensa a minha ausência, Lisboa
já mudou um pouco, já há prédios que eu vira em obras e que agora têm
gente lá dentro, outros que ruíram, fachadas pintadas de cor diferente. Vou
reparando nos restaurantes que fecharam, nas pastelarias que agora são
bancos, em ruas onde os carros passam no sentido contrário. O tempo
também passou por aqui, também passa por aqui, como passa por todo o
lado, por toda a gente.
Ao quarto dia já ousei passear ao fim da tarde, um daqueles fins de tarde
de Verão em que cheira a maresia e em que a luz desliza pelas coisas tão
devagar que parece que o dia nunca morrerá e todas as pessoas encontrarão
a sua felicidade antes de que a primeira estrela se veja no céu.
No quinto dia, domingo, almocei perto do castelo de São Jorge, rodeado
de turistas corados da subida e do calor. Bebi cerveja, comi croquetes, e,
vá-se lá saber porquê, nunca tirei os óculos escuros nem o boné e falei em
inglês com os empregados. Desci, meio bêbado, para a minha pensão.
Cheguei a pensar em visitar-te, mas não quis que o nosso reencontro
acontecesse comigo suado, com barba de sem-abrigo e com o hálito ébrio.
Segunda-feira, apanhei o barco no Terreiro do Paço e passei o dia na
outra margem a olhar para Lisboa e a pensar que aquele seria o último dia
do meu desterro.
E assim cheguei a terça-feira – hoje. Acordei de forma espontânea e vi
que era cedo, muito cedo. Levantei-me, mesmo assim. Barbeei-me até ter o
rosto liso. Com o aftershave a arder-me na pele, senti-me fresco e pronto.
Saí para a rua. O dia estava apenas a começar.
Encaminhei-me para Alfama, subi as ruas estreitas e íngremes em transe,
tão focado estava no meu destino. Quando cheguei à Feira da Ladra ainda
havia poucas bancas e vendedores, mas já lá estavam os que eu pretendia.
Fui à banca onde se podem comprar fotografias antigas, até álbuns inteiros
de famílias desconhecidas, provavelmente herdados e depois vendidos por
uma quantia irrisória. Nunca percebi quem compra estas fotografias, quem
deseja ter consigo os registos de outras vidas. Num caixote de madeira
estavam centenas de fotografias avulso, a maior parte a preto e branco.
Havia imagens de casais muito direitos com expressões rígidas, havia
fotografias de crianças vestidas com o seu fato de domingo, havia noivas
em pé ao lado de mesas com arranjos de flores, havia retratos de família
com os pais no centro e a sua prole alinhada aos lados, havia fotografias de
rapazes fardados com rostos melancólicos. Pensei quando é que aquelas
fotografias teriam deixado de ser olhadas, quando é que passaram,
provavelmente graças a uma herança, a ser posse de alguém para quem as
pessoas retratadas pouco diziam. Mas pensei também noutra hipótese, que
talvez algumas daquelas fotografias não tivessem sido vendidas, oferecidas
ou descartadas por falta de afecto mas, sim, por excesso de afecto. Pensei
que haveria quem tivesse visto estes retratos tantas vezes que eles se
tinham tornado opressivos, que a sua contemplação causasse os malefícios
da contemplação do sol do meio-dia, cujo excesso de brilho nos cega para
observar o resto das coisas. Sem que ninguém reparasse, peguei na
fotografia que me tem acompanhado, olhei-a uma última vez e pousei-a na
banca, perdida no meio das outras.
Afastei-me sem olhar para trás, primeiro devagar, com medo de que
alguém reparasse em mim e me acusasse de fosse o que fosse, depois um
pouco mais rápido, até sentir que quase corria.
Desci em direcção à Baixa. O rio cintilava próximo de mim e as ruas
começavam a encher-se. Percebi que as cidades também têm marés, mas
marés feitas de pessoas. Que há horas em que os passeios se enchem e
horas em que se esvaziam, que a vida tem um ritmo e que esse ritmo é
imparável. E deixei-me ir.
Senti saudades de Lisboa e alegria por as poder matar. Saudades de
descer a Avenida da Liberdade, de comer pastéis de Belém, de ver o Tejo a
aparecer e desaparecer quando se desce uma colina, saudades de estar
deitado na relva dos jardins, saudades de ouvir os eléctricos deslizando
sobre o Chiado, saudades de aguardar nas passadeiras de peões no Largo
do Rato, de percorrer cansado a Avenida da República, de atravessar o
Bairro Alto, saudades da vista do miradouro da Graça, de Santa Catarina e
de todos os outros, saudades do fresco da Mãe d’Água, saudades dos
bancos do jardim do Príncipe Real, saudades da vida em Lisboa.
Quando cheguei ao Terreiro do Paço vindo de Alfama, decidi apanhar o
metro para sair na estação mais a norte e poder assim passar o meu dia a
descer a cidade, matar as minhas saudades passo a passo, rua a rua.
Já debaixo do chão, fora do alcance do sol, depois de descer as escadas
largas, virei à direita na direcção pretendida. De repente dei comigo
defronte da pequena multidão acabada de sair do metro. Por um momento
fui acometido de um terror enorme, como se a multidão me fosse engolir
ou esmagar. Mas o terror passou. Foi substituído por ternura. Enquanto as
pessoas passavam por mim, cada uma com um destino diferente, eu olhei
para elas e tentei ler nos seus olhos, rostos, gestos, maneiras de andar, que
vida levavam, donde vinham, que sonhos alimentavam, que tristezas
queriam abandonar. Uma alegria enorme abriu-se como um pára-quedas
dentro de mim. Senti que cada pessoa que comigo se cruzava tinha dentro
de si um mundo, um mundo enorme e pleno com tantos momentos de
triunfo e derrota, de anseio e júbilo, de enfado e melancolia que chegariam
para escrever uma nova história das Mil e Uma Noites.
Pus-me a pensar em todas as pessoas que, por essa hora, circulavam pela
cidade, e que apesar de trazerem em si sonhos desfeitos, amores falhados e
mortos de cuja saudade não se conseguem livrar, continuavam a percorrer
as ruas, a atravessar Lisboa, a navegar pela vida. Continuavam a cumprir
as mil tarefas da existência. A lavar-se, a comer, a fazer a cama, a pagar
impostos, a obedecer a patrões, a serenar familiares, a consolar amigos, a
questionar Deus, a cumprir leis, a pagar multas, a aguardar a mudança de
cor do semáforo, a roer as unhas em engarrafamentos, a esperar ao calor na
paragem de autocarro, a ser mal entendidos pelos que amam, a lavar loiça,
a despejar o lixo, a sorrir por gentileza de piadas sem graça, a testemunhar
no espelho a passagem do tempo, a acordar mesmo quando queriam
continuar a dormir. E dentro desta existência que lhes pede tanto, que nos
pede tanto, apesar de todos os botões que é preciso todos os dias apertar,
continuará a haver mais beleza e gozo ao nosso dispor do que caberiam a
um semideus.
Se cada um de nós traz dentro de si um cosmos, estamos destinados,
mais tarde ou mais cedo, numa conversa que até pode ter-se iniciado para
comentar o calor que faz, a vislumbrar a vida interior do outro e, assim, ter
acesso a outra narrativa, a outros sonhos, a outra forma de ver e de viver.
Cada pessoa com quem me cruzo na rua é um possível multiplicador de
mim próprio. E eu sou um possível multiplicador de qualquer pessoa.
Esta é a última carta que te escrevo. A partir daqui, as minhas palavras
para ti não serão escritas, mas faladas. Perdoa-me a grandiloquência, o
exagero e a pieguice. São apenas a minha forma de expressar alívio por ver
que não perdi nem a esperança, nem a capacidade de me sentir alegre,
mesmo que seja uma alegria menos feroz e para sempre incompleta. Faço-
o à minha maneira, porque sempre preferi um louco poético a um poeta
sem loucura.
Desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu não se passou um só
momento em que eu pensasse que não podia contar contigo, em que
suspeitasse de que já não terias mais paciência para os meus lamentos de
lavadeira, a minha irresponsabilidade infantil, o meu dramatismo de novela
da tarde. Se a amizade fosse uma competição olímpica, o júri abriria uma
excepção e dar-te-ia não só a medalha de ouro, mas também a de prata e a
de bronze.
Agora resta-me viver a vida fora do papel, feliz por saber que, perto de
mim, pode estar um pianista sonâmbulo, uma criança perguntando a um
adulto onde fica a cama de Deus, um guarda-livros apaixonado por uma
cantora lírica, um jovem a quem os médicos têm de retirar uma colher de
pus do seu lindo corpo, um adolescente que se apaixonou pela primeira vez
no dia anterior, um amigo que me abrirá sempre a porta.
Como te disse, o suicídio nunca será uma opção para mim. Agora, depois
deste dia divino, consigo até precisar as muitas razões para continuar vivo.
Dizem que há sete biliões de pessoas no mundo. São sete biliões de
motivos para não me matar.

Obrigado, muito obrigado

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