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LIBERDADE DE RISO

ÍNDICE

A MORTE DO TIRANO

VIDAS PERPENDICULARES

O ASSOMBROSO PESADELO

UM ASSALTO GENIAL

NAO É FÁCIL MORRER

A BOA-SORTE DA MINHA FAMÍLIA

O TRUQUE DE CORNÉLIUS
PREFÁCIO DA EDIÇÃO ESPANHOLA

Agora que as canetas começam a correr com maior agilidade sobre o

papel, sem ter que censurar e corrigir tantos conceitos, suspeito que todas

as pessoas suscetíveis vão passar uns maus bocados. E penso que nas mesas

de muitos editores vão aparecer verdadeiras montanhas de correspondência,

porque a suscetibilidade é, provavelmente, a epidemia que nos últimos anos

mais afetou a saúde da maioria dos habitantes do país.

A pouco e pouco, o leitor foi perdendo o hábito de encontrar nos jornais

e nos livros, o saudável exercício da crítica; e leva as mãos aos olhos, para

tapá-los, cheio de incredulidade, quando lê qualquer pancada dada em

alguém. Ainda que a crítica seja justa e que o seu autor tenha encharcado o

papel com litros e litros de puríssima razão.

— Leste o que hoje dizem de fulano? contentam os leitores

escandalizados.

Aparte os autores de comédias e algumas companhias que monopolizam

certos serviços públicos, são poucas as pessoas que resistem a uma crítica e

muitíssimas as que nem sequer resistem a uma criticazinha, nem que seja

apenas dada com um leve arranhar do aparo da caneta.


Houve uma época em que se o jornalista acusava de pouca competência

um simples terceiro escriturário de qualquer departamento ministerial,

sentia-se ofendido o Ministério completo. A isso Se deve que muitos dos

atuais funcionários sejam lentos como tartarugas, pois foram poucos os

jornalistas que correram o risco de ofender, em Conjunto, tanta gente

importante.

Ainda desses tempos, não muito longínquos, me recordo de receber

cartas em que vários cavalheiros me injuriavam por ter dado o seu apelido a

um dos meus personagens imaginários.

Mas naquele tempo, a suscetibilidade nacional atravessara o seu período

crítico.

E para não a ferirmos, tínhamos que usar um calçado especial: os pés de

chumbo. Parecia-se com os chinelos que pomos ao entrar rio quarto de um

enfermo gravíssimo.

Os pés de chumbo, tal como os chinelos, serviam para amortecer todos

os ruídos, todos os escândalos. Com eles, devido ao seu peso, avançava-se

lentamente no mundo das ideias, mas sem magoar ninguém, que era o que

se pretendia.
E quando um pés-de-chumbo amalucado tirava o chumbo dos pés — um

momento só, para desentorpecer os dedos —, ouviam-se imediatamente os

gritos lançados pelas suscetibilidades feridas.

Julgo que a gritaria se ouve agora com mais intensidade que

anteriormente. Porque agora, todos os que usam canetas, esferográficas ou

lápis nesta bela Espanha, vão passar a andar com mais leveza. |Sem tirar os

sapatos, claro, mas tirando para bem longe os bocados de chumbo que não

os deixavam caminhar livremente.

E durante algum tempo, até que toda a gente se habitue às piruetas que

permitirá a agilidade recobrada, muitos suscetíveis coacharão. Como as rãs

que nunca consentiram a queda de um grão de areia, capaz de agitar o lodo

do seu charco.

As montanhas de cartas de que falei, serão formadas por montes e

montes de protestos injustos.

Não faltarão pessoas a ver alusões onde não as houve e a sua

desconhecida caricatura em fotografias onde ninguém as retratou.

Abundarão os funcionários queixosos, porque se emitem opiniões sobre

o trabalho nas suas seções e subseções.

Haverá, finalmente, queixas suficientes para fundar vários hospitais para

suscetibilidades feridas.
Mas terá que passar muito tempo para que se curem de todas as

arranhadelas. Então, os suscetíveis, com a sua respetiva suscetibilidade1

completamente cicatrizada, converter-se-ão em cavalheiros com opinião,

como todo o Mundo.

Do robustecido direito de ter opinião, sairá um jornalismo mais útil e

uma literatura mais suculenta.

E o escritor sentirá, por fim, que serve para qualquer coisa.

Poderá dar rédea solta à sua fantasia por planícies mais amplas, sem

medo de travar o galope, em virtude de um insignificante rabanete que se

ocultava entre a erva.

Poderá também atirar as suas ideias diretamente ao alvo, sem usar a

fastidiosa parábola da insinuação e do duplo sentido.

Poderá ainda entrar em terrenos que nunca estiveram fechados, mas nos

quais ninguém entrava, não só por causa das moscas, mas também por

causa das multas.

Eu, que sou meio louco e impaciente como todos os humoristas, quero

antecipar-me a esta primavera que se aproxima do jardim das nossas letras.

E solto desde já, a rédea do meu humor, para que seja o primeiro a galopar

pelos campos virgens que se abrem ao saudável desporto do riso.


E ao suscetível que se sentir picado pela minha caneta, só posso

oferecer-lhe este remédio tão vulgar como eficaz: passar, repetidas vezes,

as unhas das mãos sobre a zona onde sentir a picadela, até que se acalme a

comichão. (Maneira delicada de lhe dizer simplesmente que se lixe.)


A MORTE DO TIRANO

Embora tentasse disfarçar, percebia-se que aquele homem de barbas

estava nervoso.

Por várias vezes, quando o criado do restaurante passou a seu lado, tirara

os olhos do prato, como para dizer-lhe qualquer coisa. Mas logo, temendo

sem dúvida ser ouvido pelos comensais das mesas vizinhas, se arrependera

e pusera de novo toda a atenção no filete que comia.

Quand0 acabou de mastigar o último pedaço, não pôde conter-se por

mais tempo e, depois de olhar à direita e à esquerda para se certificar de

que os seus vizinhos se achavam absortos com; os respetivos filetes, fez

sinal ao criado.

Logo que este chegou junto de si, o homem da barba disse um pouco

misteriosamente:

— Posso entrar na cozinha e fritar uma batata?

Ao contrário do que poderia supor-se, a estranha pergunta do cliente

barbudo não produziu nenhuma surpresa no criado. Ouviu-a impassível,

como se fora hábito que indivíduos com barbas lhe manifestassem tal

desejo. Os senhores, que parecem pessoas sensatas a julgar pelo bom gosto

que demonstram ao escolher as leituras, com certeza estarão de acordo


comigo em que a reação do criado não foi normal. Admito que a

imaginação humana não tem limites e que caibam nela os mais estranhos

caprichos. Mas a qualquer pessoa surpreenderia um pouco que um sujeito

muito elegante, de barba, lhe pedisse para fritar uma batata. Contudo,

repito, o criado ficou impassível, apressando-se a responder amavelmente:

— Com certeza, cavalheiro. Por favor passe à cozinha por aquela porta

ao fundo da sala de jantar.

— Muito obrigado — disse o homem de barbas.

E levantando-se da mesa com precipitação, como se tivesse urgência em

satisfazer aquele curioso desejo, desapareceu pela porta que lhe tinham

indicado.

Se tudo aqui acabasse, nã0 teria merecido a honra de ser relatado por

caneta tão ilustre. Que um individuo extravagante se divirta em fritar uma

batata, não é motivo suficiente para distrair o leitor das suas ocupações.

Nem mesmo supondo que a tantas vezes mencionada batata fosse um

tubérculo fora da série, quer pela forma excecional quer pelas exageradas

dimensões.

Se me permito relatar este caso, é porque ele foi o prólogo de uma série

de desconcertantes acontecimentos que começaram a produzir-se quando o

homem atravessou a porta que o conduzia à cozinha.


O primeiro desta série foi a entrada no restaurante de um indivíduo

muito alto. Trazia um impermeável tão sujo e gorduroso que fazia pensar

que a chuva não é formada por gotas de água mas de azeite. O portador de

tão imunda veste, que ocultava os olhos sob umas sobrancelhas hirsutas em

forma de pala, aproximou-se do criado e disse-lhe ao ouvido:

— Posso entrar na cozinha e fritar uma batata?

A reação daquele foi idêntica à que teve ao ouvir a mesma pergunta nos

lábios do homem de barbas: nenhuma estranheza,

Apontando a porta que ficava ao fundo da sala disse cortesmente:

— Sim, com certeza. Por ali.

O indivíduo de impermeável, depois de inclinar-se em sinal de

agradecimento, dirigiu-se também para a saída que lhe tinham indicado.

Foi isto que me impulsionou a relatar os acontecimentos que ocorreram

naquele restaurante. Porque, como já disse, pode tolerar-se que um sujeito

tenha o estranho desejo de fritar uma batata sem que isso seja digno de

ficar em letra de forma. O que começa a sair da lógica e a transformar-se

em material digno de ser tomado em conta por um escritor, é o facto de um

novo personagem aparecer no mesmo cenário com idêntica pretensão.

E o que resulta francamente assombroso, tornando-se quase

inacreditável, é que este raro facto se repita ainda por três vezes! Porque,
com intervalos de poucos minutos, foram chegando três novos indivíduos

que fizeram a mesma pergunta:

— Posso ir à cozinha e fritar uma batata?

De igual modo, este trio de maníacos, orientado pelo criado desapareceu

pela porta que se abria ao fundo da sala de jantar.

Mas o mais curioso é que, embora fossem cinco os aspirantes a tal

capricho culinário1, na cozinha nã0 se ouvia o característico crepitar do

azeite na sertã que acompanha a operação de fritar uma batata. Do que

pode deduzir-se que a pergunta feita ao criado do> restaurante tinha um

duplo sentido.

Esta dedução, que sem dúvida terá surgido na astuta inteligência do

leitor, corresponde plenamente à realidade. Porque a frase «Posso entrar na

cozinha e fritar uma batata?»... era afinal uma contra senha. E aqueles

cinco indivíduos que a pronunciaram não eram meros amadores de cozinha

mas sim autênticos e perigosos conspiradores. Ao desaparecerem pela porta

que lhes indicara o criado, não se dirigiam à cozinha mas desciam antes por

uma escadinha até uma adega onde celebravam as suas reuniões secretas.

A adega era sombria, naturalmente, como todas as adegas, E, naquele

recinto, sem mais iluminação que a de uma lâmpada fraca e de luz

avermelhada, metida num carucho de papel como um tomate comprado no


hortaliceiro, conspiravam há já muito tempo. Não é necessário dizer que

todos aqueles sujeitos, membros de um partido extremista, formavam uma

célula de choque.

O cumprimento que trocavam, à medida que se iam juntando na adega,

consistia em levar o dedo polegar da mão esquerda à ponta do nariz.

Esta forma de cumprimentar tinha um duplo significado simbólico: que o

partido era esquerdista e que se estava descaradamente nas tintas para os

preconceitos burgueses.

Notava-se, depois, que o núcleo daquela célula era o homem de barbas,

sendo os outros mero protoplasma. Quando o barbudo abria a boca, os

demais calavam logo o que estavam a dizer.

— Companheiros — começou o nácle0 da célula —>, podemos estar

satisfeitos com o nosso trabalho. Um a um temos resolvido todos os

problemas que nos impediam a realização deste atentado. Trabalhando com

perfeita sincronização, conseguimos poder dizer: tudo está pronto.

— E o pormenor da hora? — perguntou um magricela de cabelo preto e

cor pálida.

— Já a temos — informou o da barba baixando a voz. Ouçam: na

próxima quinta-feira, às sete e dez da manhã, o tirano sairá da sua fortaleza.

— Para a pesca? — quis saber o do impermeável.


— Para a pesca — confirmou o chefe. Já sabem, portanto, o dia e a hora

exatas em que realizaremos o nosso plano. O resto estão fartos de saber e

ensaiar. Quarta-feira à noite todos ocuparemos os nossos postos. Cada um

conhece a sua missão e o modo como cumpri-la. Conseguiremos o nosso

propósito, e no fim, o país ver-se-á livre dum tirano.

— No fim! repetiram em coro os conjurados, com os olhos brilhantes de

fanatismo.

— Se alguém tiver alguma dúvida, — juntou o da barba, — que a ponha,

para se aclarar.

— Eu queria saber — disse um calvo baixito e corpulento — de quantos

membros se compõe a escolta.

— Só dois. Quando o tirano vai à pesca, não quer que um grande

acompanhamento o importune. À parte o chauffeur do automóvel, que terá

as mãos ocupadas com o volante, irá um perito em pesca que prepara as

canas e as iscas.

— Tens a certeza que pescará no local previsto? disse o do impermeável.

—’Absoluta — afirmou o chefe. Há já uma semana que temos vindo a

concentrar ali um grande número de trutas para que o tirano pesque com

abundância. Umas redes submersas impedem que os peixes escapem.

— Haverá muita vigilância nesse lugar? quis saber o magricela.


— No total, uma meia dúzia de guardas florestais, que são velhos e têm

má pontaria. Além disso, estão armados com carabinas tão velhas como

eles.

— Não parece um pouco estranho que adote tão poucas precauções?,

insinuou o calvo, pensativo.

— Não, disse o da barba. Há tanto tempo que faz o que quer sem lhe

acontecer nada que está cheio de confiança: E bem sabeis que na confiança

está o perigo.

— Sim, claro, — tranquilizou-se o calvo.

— Mais alguma pergunta? — convidou o chefe.

— Sim —disse o quinto conspirador que tinha cabelos brancos e ainda

não dissera nada. — Gostaria de saber o que acontecerá depois.

— Depois de quê? concretizou o barbudo.

— Do atentado.

— Depois dirigimo-nos para a fronteira cada um por seu lado, como está

previsto. Todos o sabeis de sobra. Porquê agora essa pergunta?

— Não pergunto o que faremos nós, — aclarou o de cabelos brancos, —

mas sim o que acontecerá no país.


— No país? — repetiu o da barba surpreendido. — Depois de morrer o

tirano, o povo ficará novamente livre.

— Pois claro — apoiou o do impermeável. — Viva a liberdade!

— E quem tomará conta do governo? — insistiu o outro.

— Isso não nos cabe a nós — disse o barbudo encolhendo os ombros. —

O importante é acabar com a tirania. Quando o tirano morrer, o povo

elegerá o governo que mais lhe convier.

— Mas o povo não tem um critério unânime — interveio o calvo, —

Está fracionado em muitas tendências opostas.

— Prevalecerá a mais forte.

— Isso significa que haverá luta? — quis saber o magricela.

— Suponho que sim, — disse o dia barba. — Há sempre lula quando há

uma mudança política de importância. Porém, tudo tem um preço.

— Naturalmente — concordou o do impermeável. — Lembram-se de

França.

— Que se passou em França? — perguntou o magricela que era fraco em

cultura histórica.

— Quando o povo se libertou do despotismo monárquico sobreveio a

Revolução Francesa.
— E achas que haverá aqui uma revolução assim? — perguntou o calvo

preocupado.

— Não sei, mas é possível. Tens medo, porventura?

— Não, Mas tenho de reconhecer que uma revolução nunca é agradável.

Sobretudo quando se tem família.

— Tens família? disse o do impermeável.

— Tenho. Reconheço que é um empecilho, mas já a tinha quando entrei

para o partido e não a posso abandonar. Os miúdos precisam de mim.

— Também tens filhos?

— Três, confessou o calvo, um pouco envergonhado.

— As crianças são os que mais sofrem com as revoluções, — disse o

magricela, que também era pai de dois garotos.

— Claro — disse o calvo. — Como tudo se desorganiza não se pode

comprar pão nem leite...

— Também os velhos sofrem — juntou o de cabelos brancos pensando

em sua mãe, que por aqueles dias completaria os oitenta anos.

— A mim os sofrimentos não me importam, — disse o da barba, —

desde que recupere a liberdade.


— A ti, não, claro, — replicou o calvo. — Como além: de órfão és

solteiro,..

— Nem que tivesse dez filhos recém nascidos e oito velhos pais,

pensaria de igual maneira —assegurou o barbudo decidido.

— Isso ver-se-ia — insinuou o de cabelos brancos.

— Achas que sou um cobarde?

— Ninguém falou em cobardia, — interveio c magricela. — Uma prova

disso é que estamos todos aqui prontos a. assassinar o tirano.

— Não fales em assassinar — desgostou-se o do impermeável que

sentira um arrepio ao ouvir tal palavra — Isto não é um assassinato mas

sim: um atentado político.

— Claro, — disse o magricela. — Uma prova de que somos valente-, é

que todos colaboramos na elaboração do plano para nos livrarmos dele.

— Desde o princípio — admitiu o de cabelos brancos. — E não serei eu

quem vai voltar atrás. Mas não gostaria que em vez de conseguirmos a

liberdade caíssemos na anarquia.

— Nem eu, olha a graça, — disse o calvo. — Não sou jovem e o que

quero é viver em paz.

— Em paz e em liberdade — juntou o chefe.


Mas sobretudo em paz.

— Também eu, — replicou o chefe. — Pensas 27 que desejo a anarquia?

Mas estou convencido que não se produzirá.

— Deus te ouça — deixou-se dizer o de cabelos brancos, que se

prontificou a retificar:—bom, quero dizer, oxalá tenhas razão, Porque seria

uma triste sorte que, como dizem os: espanhóis, saíssemos de Málaga para

entrar em Malagon.

— Que queres dar a entender? quis aclarar o da barba.

— Que seria muito desagradável mudarmo-nos de uma situação para

outra ainda pior.

— Mas tu acreditas que pode haver uma situação pior do que a que nos

impõe este tirano?

— Pior não, — reconheceu o de cabelos brancos, — mas mais sangrenta.

Temos de reconhecer que agora, pelo menos, há ordem pública. E se todos

os partidos vão para a rua conquistar o Poder...

— Em todo o caso, — tranquilizou o da barba, — essa etapa anárquica

será transitória. Logo voltará a água ao seu caudal e disfrutaremos todos de

liberdade.

— E de paz, — juntou o do impermeável.


— Todos, menos aqueles que foram arrastados por essa água, lembrou o

calvo.

— Se fosse só água... — insinuou o de cabelos brancos, — O mal é que

a inundação pode ser de sangue.

— De sangue, Jesus! — exclamou o magricela com um estremecimento.

Que barbaridade!

— Não digas tolices, — cortou o chefe. — Não estamos no século

dezoito. Agora, no século vinte, não acontecem dessas coisas.

— Como não? — interveio o do impermeável. — Parece que não lês os

jornais. Não digo que aqui vá acontecer o mesmo, mas todos: os dias estala

uma revolução em qualquer parte do mundo.

— Bah! Em países de negros, — disse o chefe.

— E de brancos, — juntou o calvo.

— Pois não há outro remédio senão correr o risco, — cortou o da barba.

Porque estamos todos de acordo em que o tirano terá de morrer, não é

verdade?

— Claro! — exclamaram em coro os conspiradores.

— Será que temos o trabalho e que não vai servir para nada? — juntou o

de cabelos brancos.
— Porque não há de servir? — estranhou o chefe.

— Porque se para sufocar a algazarra que se seguir o exército se

apoderar do Poder, adeus liberdade!

— Homem, se pensas no pior...

— Temos que pensar em tudo, — insistiu o de cabelos brancos. — E nas

mãos de uma junta militar estaremos muito pior do que agora.

— O barbudo calou-se um pouco, pensativo. Quando falou fê-lo com

certa preocupação:

— Acreditas realmente que isso possa acontecer?

— Temos de contar comi essa possibilidade.

— O nosso companheiro tem razão — apoiou o do impermeável. — Se

isso acontecesse faríamos um péssimo negócio, porque trocaríamos um só

tirano civil por vinte de uniforme.

— Uma junta dessas séria provisória, discordou o chefe.

— Teoricamente sim, — disse o magricela. — Mas sabes bem como são

os militares: quando tomam o gosto ao Poder não o largam mais.

— Não podemos ser pessimistas, — tomou o do impermeável. — Talvez

os partidos políticos se antecipem ao exército e formem um governo de

coligação.
— Pois, e nesse caso, podemos preparar as malas e instalarmo-nos

definitivamente no estrangeiro, — disse o da barba. — Porque numa

coligação dessas haveria uma maioria de direitistas e reacionários. E nós

seríamos perseguidos como «partidários do terrorismo internacional».

— Não devemos importarmo-nos, — disse o do impermeável com

firmeza. — Prometemos livrar o povo deste tirano e cumpriremos a nossa

palavra.

— Claro que sim! — disseram todos em coro. Isso não se põe1 em

dúvida!

— Mas é muito natural, — juntou o de cabelos brancos — que

queiramos analisar a questão nos seus mais pequenos detalhes.

— Claro, — apoiou o magricela. — Devemos certificar-nos que o

atentado será um êxito em todos os sentidos.

— De acordo, — disse o calvo. — Porque seria uma triste graça que

corrêssemos o risco para que outros se aproveitassem disso para levar o

país ao caos.

— Isso de nenhuma maneira — disse o magricela, pensando nos filhos.

— Para isso era melhor deixarmos as coisas como estão,

— E continuar debaixo desta tirania? — saltou o chefe ferido no seu

espírito de libertador.
— Ninguém fala em continuar assim eternamente, — interveio o calvo,

— mas em adiar o atentado até sabermos com segurança 0 que acontecerá

em seguida. Porque uma situação caótica não beneficiaria ninguém.

— Mas seriam capaz de suportar um adiamento? — perguntou o das

barbas. A impaciência de proclamar a liberdade não vos faz ferver o sangue

nas veias?

— Faz-nos ferver de aversão — confessou o dos cabelos brancos. —

Mas se fosse necessário, faríamos um esforço para dominar essa fervura.

— Pois com certeza, — apoiou o calvo. — Seria uma pena deitar tudo a

perder pela precipitação que nos impõe o nosso temperamento sanguíneo.

— Nisso estou de acordo convosco — apoiou o do impermeável. Prefiro

fazer as coisas bem feitas, mesmo que o sangue me ferva um pouco, do que

fazê-las de qualquer forma a sangue frio.

— Mas agora que tínhamos tudo já planeado na perfeição... começou a

dizer o da barba.

— Um plano pode servir tanto para agora como para daqui a cinco anos,

disse o magricela.

— Estás louco? exclamou o chefe. Achas que vamos adiar o atentado por

cinco anos?
— Quero dizer, justificou-se o magricela, que o tempo não afetará em

nada a eficácia do plano. Tão eficaz será na próxima quinta-feira como em

qualquer data futura. Só se trata de esperar que as circunstâncias sejam

todas favoráveis.

— Até certo ponto. — transigiu o da barba, compreendo o vosso ponto

de vista. Mas, supondo que adiamos o atentado, o povo não nos perdoaria

esta demora. Porque o povo pede em altos gritos a morte do tirano.

— Em altos gritos..., pôs em dúvida o calvo. Vivo num bairro popular,

onde consegui um desses andares baratos construídos pelo Estado, e

asseguro-te que ali ninguém grita. Não digo que no fundo os meus vizinhos

não detestem a tirania tanto como nós, mas aguentam-na bastante bem.

— E que outra coisa podiam eles fazer? compadeceu-se o da barba.

— Podiam pôr-se a gritar pedindo a morte do tirano* como dizes.

Contudo não o fazem, e só se preocupam em trabalhar para ir sustentando

as suas famílias. Isto faz-me supor que embora lhes pese o problema da

tirania, não lhes é muito urgente resolvê-lo.

— Talvez os preocupe o que pode acontecer depois, como a nós, disse o

magricela.

— Eu estou convencido', disse o de cabelos brancos, que o povo pode

esperar. E esperarão com muito gosto que nós lhes resolvamos o problema,
desde que lhes demos certas garantias de que não sei produzirá uma

confusão fenomenal.

— Foi o que aguentou o tirano, grunhiu o chefe — acobardar o povo. E a

muitos de nós também,.

— Não dizes isso por mim,, pois não?, ofendeu-se o do impermeável,

erguendo-se em toda a sua estatura.

— Nem por mim, suponho — disse o calvo, alargando-se na sua

corpulência.

— Nem por nós — ajuntaram o magricela e o de cabelos brancos

unindo-se num protesto, por serem os dois de maior insignificância física,

— Estás farto de saber que, se fosse preciso, daríamos a vida para

cumprir as tuas ordens, concluiu o do impermeável, pondo na voz um,

enfâse solene. Manda-nos lançar já pela janela, que nos lançaremos sem

vacilar.

— Estas palavras comoveram tanto o chefe, que a emoção o impediu de

notar um pequeno detalhe: na adega não havia janela de espécie nenhuma.

Mas o do impermeável pôs tanta sinceridade na sua declaração que o

barbudo lhe foi batendo nas costas enquanto dizia:


— Bem sei, e agradeço a vossa lealdade. Mas têm que me perdoar. O

meu desejo' de salvar o país é tão grande que me encho de impaciência. Se

adiarmos o atentado, como poderei esperar tranquilamente o dia decisivo?

— Eu aconselhava-te a ires passar uma temporada à praia, — sugeriu o

calvo.

— À praia? — repetiu o barbudo, espantado. — E que diabo farei numa

praia?

— Precisas de descansar, — juntou o magricela. — Trabalhaste imenso

no plano deste assassinato!...

— Não lhe chames assassinato! — ofendeu-se o chefe.

— Vês como estás nervoso! — disse o de cabelos brancos. Estes

companheiros têm razão: o clima da praia é calmante e far-te-á muito bem

aos nervos.

A mim faz-me maravilhas.

— Também costumas ir para a praia? -— começou o da barba a

interessar-se.

— Todos os anos. Vou na próxima semana com a minha mãe para uma

casita que temos perto do mar.


— A minha mulher e os miúdos vão no sábado para um chalet que

aluguei junto ao mar, disse o calvo. Faz bem aos miúdos miudar de ares.

— Aos miúdos e aos chefes, animou o de cabelos brancos. Pense bem

nisso. De vez em quando convém distrairmo-nos das preocupações. E

como o calor começa a apertar...

— Há anos que sonho com um verão na praia, suspirou o do

impermeável. Mas como tenho andado a preparar umas oposições ainda

não consegui...

— A verdade é que eu, confessou o das barbas — com tanta

preocupação política nunca me lembrei de férias.

— Pois aproveita agora, continuou o de cabelos brancos animando-o.

Dado que todos estamos de acordo em que é conveniente adiar por algum;

tempo o atentado...

— Mas que dirá o partido? — balbuciou o barbudo.

— O partido que vá para o diabo, disse o calvo, apressando-se a juntar

— com todos os respeitos.

Além; disso há que séculos que andamos a conspirar à borla...

— Isso, isso, reforçou o magricela. Além disso, acima de tudo está a

saúde. Uma temporada de banhos faz bem. a qualquer pessoa.


— Sobretudo a ti, continuou o de cabelos brancos dirigindo-se ao chefe,

que como; és o cérebro do grupo não deixas de trabalhar.

— Se te decidires, disse o calvo, conheço uma pensão perto de nós que é

formidável. Não é cara e come-se muito bem. Posso reservar-te um quarto.

— Tenho que pensar, começou o barbudo.

— Não penses mais, homem, atalhou o dó impermeável. Se não fossem

essas malditas oposições, acompanhava-te com muito gosto. Como as

viagens não me custam nada porque tenho passe gratuito em todos os

caminhos de ferro do Estado...

— Quando te decidires, terminou o calvo, avisa-me que escrevo para a

pensão. E agora deixo-vos se me dão licença. Já é tarde e prometi levar a

minha mulher ao cinema.

— Também me vou, despediu-se o magricela. Tenho que chamar o

médico porque me parece que o miúdo vai ter sarampo.

— Podemos ir todos, decidiu o das barbas. Reunir-nos-emos outra vez

depois do verão.

— Qual é a contra-senha para sair? perguntou o de cabelos brancos.

— E o chefe, com voz misteriosa apropriada, replicou:


— À medida que forem saindo um a um, o criado perguntar-vos-á:

«Conseguiram fritar a batata?» E vocês devem responder: «Fritá-la-emos

mais tarde. Agora está demasiado calor».

A reunião dissolveu-se. Os terroristas subiram pela escadinha da adega,

contando os seus planos de veraneio.


VIDAS PERPENDICULARES

5,10 da tarde, em Manhattan.

Margaret pestanejou várias vezes para dissimular a sua perturbação. As

suas pestanas agitaram uma porção insignificante de ar. Depois baixou os

olhos até os poisar na relva do jardim, e disse num murmúrio:

— Sim, Ricardo: eu também te amo.

E no peito de Ricardo, o coração começou a bater de alegria como um

pássaro na gaiola. Quase sentiu vertigens ao ver-se transportado tão

bruscamente ao cume mais alto da felicidade.

Ricardo teve a repentina e agradável sensação de que o jardim não só

triplicara o número de flores como além disso todas cheiravam mais e

melhor.

— Neste momento — exclamou abraçando a rapariga, não há no mundo

nenhum homem tão feliz como eu.

***

5,10 da tarde, em Brooklyn.

O olhar que Susan lançou a seu marido foi glacial. Os seus lábios, que

sem o disfarce da pintura eram finos e cruéis«, contraíram-se num trejeito


cheio de desprezo. Afastou-lhe a mão que se pousara com doçura no

ombro, e disse, secamente:

— Não me toques, Fred. As tuas carícias causam-me repugnância.

E Fred sentiu que as pernas se lhe dobravam, como se acabasse de

receber um murro no estômago.

Durante alguns segundos, os móveis da habitação perderam os contornos

e só viu ao seu redor uma nuvem avermelhada.

Desesperado, pensou que chegara o fim do mundo. Do seu mundo. E se

bem que não fosse capaz de pronunciar uma única palavra, bastava olhá-lo

para compreender que era impossível encontrar, naquele instante, um

homem tão desgraçado corno ele.

***

5,30 da tarde, em Manhattan.

O cabelo de Margaret, com a cumplicidade de algumas seções de um

cabeleireiro da Quinta Avenida, tinha conseguido uma cor uniforme. Não

era rubra, nem castanha, nem morena, mas somente acobreada, com

tonalidades verdes. Uns raios de sol que caíam sobre ele, triturados pelos

ramos das árvores, arrancavam-lhe curiosos reflexos de caçarola carcomida

pelo verdete.
— Enamorei-me de ti antes de te conhecer, confessou a Richard,

cedendo-lhe uma das suas mãos para que a acariciasse entre as suas.

— Quando? — quis saber ele.

— No Polo Club, quando te vi jogar contra a equipe de Filadélfia.

Recordas-te?

— Como não hei de recordar-me, se lhes ganhámos por mais de dez

golos? Graças àquela vitória pudemos jogar na semifinal do campeonato.

E Ricardo, ao dizer isto, sorria com aquele orgulho um pouco estúpido e

ingénuo que só têm os desportistas e os meninos.

— Levavas um chapéu branco e um cavalo negro, continuou ela. E toda

a gente te felicitava porque tinhas jogado muito bem.

— Não fui mal, nessa altura.

— Perguntei a uma amiga quem eras e explicou-me: «Não o conheces?

É Richard Stone, o filho do rei da borracha». Mas naquela altura não me

importou que fosses o príncipe herdeiro do reino dos pneumáticos. Só me

interessava saber que te chamavas Richard, para dar um nome à maior

ilusão da minha vida.

— Também nunca esquecerei o dia em que nos apresentaram, evocou

ele, sem interromper a afetuosa sessão de massagens que estava dando na


mão da rapariga. Foi uma manhã, na piscina das Windermare. Quando

'cheguei tinhas subido ao' trampolim mais alto, disposta a saltar. Detive-me

a contemplar-te.

— Se tivesse sabido que estavas a olhar para mim, não teria saltado.

— Mas como não sabias, saltaste com uma perfeição assombrosa.

— E passei por uma grande atrapalhação, juntou ela, porque ao sair da

água começaste a aplaudir-me como um louco.

— Era a primeira vez que via executar o «salto de anjo» por uma criatura

verdadeiramente angelical.

— Quando vi que o autor dos aplausos eras tu, fiquei toda corada.

— Também eu, ao ver-te perto da mim, me perturbei como um, colegial.

A recordação daquele dia em que haviam tido a felicidade de se

conhecer, fez-lhes guardar silêncio. Os ramos das árvores, durante essa

pausa, continuaram triturando raios de sol por cima das suas cabeças.

***

5,30 da tarde em Brooklyn

Susan eslava despenteada como de costume. O seu cabelo, encrespado e

seco, revoltava-se contra a tirania que pretendia impor-lhe com o pente. E


ao fim de algumas horas de sacrifício, com força de molas, tinha

conseguido a sua forma natural arrancando os grampos que os sujeitavam.

Esta desordem no penteado, que por ser muito negro tinha reflexos

azulados como a plumagem dos corvos, dava a Susan, naquele momento,

um certo ar de bruxa.

— Na realidade, continuou magoando Fred, nunca te amei, ouviste?

Nunca!

— Então... balbuciou ele, porque te casaste comigo?

— Por despeito.

— Não entendo.

— Eu estava apaixonada de Tom Sullivan. Não sabias?

— Será possível? admirou-se Fred. Daquele tipo presumido e

avermelhado.

— Sim, loucamente apaixonada! Mas ele abandonou-me depois de

abusar de mim. Então apareceste e aceitei-te logo. Não gostava de ti mas

não podia perder mais tempo.

— Porquê, perguntou Fred estranhado.

—. Porque tinha que dar um nome ao filho que esperava de Tom.


Fred voltou a sentir o impacto de um novo e invisível murro no

estômago. Só pôde murmurar:

— Como?... Queres dizer que aquele menino?...

— Sim, confirmou Susan. Quero dizer que se aquele menino tivesse

chegado a nascer, não serias o seu verdadeiro pai. No meio de tudo isto foi

uma sorte perdê-lo ao cair da escada, porque se nascesse avermelhado

como o Tom terias compreendido.

Fred tinha empalidecido. Um tremendo nó na garganta impedia-o de

falar. Mas ela, aberta a comporta da sua crueldade, continuou soltando o

seu amontoado de atrocidades.

— Acreditas que se não estivesse grávida me teria casado contigo?

Infeliz! Quando te conheci naquele baile de caridade pareceste-me um tipo

ridículo. E continuas a parecê-lo agora, depois de todos os teus fracassos.

Porque não passas de um fracassado. Nunca conseguiste sair da tua

mediocridade, nem o conseguirás nunca,

— Mas,, reagiu debilmente Fred, voltando para a mulher uns olhos

tristes de cão espancado sem motivo. Porquê tudo isto?

— Porque já não posso mais, respondeu Susan subindo o tom de voz.

Estou farta desta vida, compreendes? Farta!


— Pela janela entrou um largo raio de sol que dissipou

momentaneamente a sordidez da habitação. Mas depressa se foi

devolvendo a inquietante penumbra que envolvia os corpos e as almas

daquele par atormentado.

***

6,05 da tarde em Manhattan

— Temos de celebrar O' começo do nosso noivado, decidiu Richard.

Não te parece uma boa ideia?

— Claro, disse Margaret.

— Passaremos esta noite a comer e a dançar, propôs. Agrada-te?

— Claro que sim,! Porei em tua honra um vestido maravilhoso. A que

horas virás buscar-me?

— Às oito. Não me faças esperar porque estarei impaciente por ver-te

depois de uma separação tão longa. Quase duas horas!

— Serei pontual, prometeu. Também me vais fazer falta.

Despediram-se com um beijo que, por ser o primeiro, teve duração de

séculos. Depois ele afastou-se pela porta do jardim, risonho e feliz

voltando-se a cada dezena de passos para repetir o seu adeus agitando uma

mão.
***

6,05 da tarde, em Brooklyn

— Agora que sabes tudo, — concluiu Susan, — que pensas fazer?

— Não sei, — disse estonteado com a crueldade daquelas revelações.

— Não vais matar-me? — desafiou ela com um olhar trocista.

— Para quê, — encolheu os ombros Fred.

— Se fosses um homem de verdade, matar-me-ias, insistiu a mulher.

Mas sempre foste um cobarde. Desprezo é o único sentimento que me

inspiras.

— Cala-te por favor, — suplicou ele.

— Se não queres ouvir-me, põe-te a andar. Ao fim e ao cabo, esta casa é

mais minha que tua. Todos os móveis foram comprados pelos meus pais

para te dar facilidades e evitar que o nosso casamento se atrasasse. E quem

pagou a renda da casa durante o primeiro ano? Eles também, porque só

ganhavas para me dar de comer...

Susan interrompeu a torrente de imprecações ao ver que o marido se

dispunha a abandonar a casa.

— Onde vais, — perguntou.


— Que te importa?

Fred afastou-se pelo corredor. Pouco depois chegava a Susan o ruído

seco da porta da rua a fechar-se com uma pancada.

***

6,35 da tarde em Manhattan

No centro de Nova York anoitece mais cedo que na periferia. A

frondosidade do bosque que formam os arranha-céus, detém o caminho da

luz até às ruas quando o sol ainda está alto.

Grandes colunas de sombras cortam as avenidas em pedaços, enquanto

as viaturas começam a acender os faróis.

Pela mais famosa destas avenidas, a Quinta, Richard dirigia-se para casa

O seu carro desportivo, de último modelo, descapotável, era uma brilhante

gota de sangue na torrente do tráfico, e a pintura vermelha e os abundantes

cromados que adornavam a carroceria reluziam. Assim como a cara do

condutor. De satisfação. Porque Richard era, naquele entardecer, o homem

mais feliz do continente americano.

Estar enamorado de uma rapariga maravilhosa e ser correspondido é,

sem dúvida, uma razão excelente para se sentir o cúmulo da felicidade.

Para além disso ficava também outra razão de alegria — o êxito amoroso.
Naquele mesmo dia, um velho tio de Richard, que sempre vivera nos

inóspitos desertos do Oeste tinha morrido.

« — Como o senhor era o seu sobrinho predileto comunicou-lhe o

notário da Califórnia pelo telefone, nomeou-o herdeiro de todos os seus

bens.»

Quando o notário explicou que todos os bens do tio eram meia dúzia de

poços, Richard encolheu os ombros. Mas quando o notário continuou a

explicação informando que os poços eram de petróleo, o encolher de

ombros transformou-se num salto de alegria.

O petróleo que acabava de lhe deixar o seu tio arredondava a fortuna que

um dia receberia do pai.

Não. Não faltavam motivos a Richard para estar contente, enquanto

passava naquela tarde pela Quinta Avenida. Milionário várias vezes,

enamorado uma única, e correspondido para sempre.

— É a maior felicidade que se pode ter na roleta da vida! disse em voz

alta. E correspondeu com um sorriso cheio de simpatia ao olhar de

estranheza que lhe dirigiu um: homem dum táxi ao ouvi-lo falar sozinho,

travando o seu impressionante automóvel perante um sinal de trânsito que

acabava de acender a sua luz vermelha.

***
6,35 da tarde, em Brooklyn.

O «metro» nova yorquino é rápido e barato. Por poucos centavos e

alguns minutos, transporta o viajante desde o pulmão industrial de

Brooklyn ao coração de Manhattan.

Entre as seis e as sete da tarde, os viajantes que voltam do trabalho

misturam-se com os que vão divertir-se. Há nas carruagens, a essa hora,

uma curiosa mescla de cheiro: cheiro a suor dos trabalhadores que tomarão

duche ao chegar a suas casas e o perfume que as empregadas puseram ao

sair das suas.

Fred não reparou em nenhum destes detalhes. Durante todo o trajeto de

Brooklyn a Manhattan, olhou os quadrados do casaco do indivíduo que

tinha à sua frente. Depois, por cima do ombro quadriculado, olhou através

da escuridão do túnel que o comboio cruzava. Mas não queria ver nada.

Chegou mesmo a fechar os olhos durante alguns momentos, para

contemplar melhor o seu drama íntimo.

Porque Fred era, naquele entardecer, o homem mais desgraçado do

continente americano.

Toda a sua vida, até àquele momento, fora uma sucessão ininterrupta de

fracassos. Fracassara ao vir ao mundo, pois foi o quarto filho de uma

família modesta que só podia sustentar três. Continuou fracessando nos


seus estudos, quando quis ser engenheiro e não conseguiu sequer alcançar o

título de agente técnico. E voltou a fracassar ao casar-se com Susan que

acabava de revelar-lhe com crueza as amargas verdades do seu matrimónio.

Valia a pena continuar a viver em face de um balanço tão* desfavorável?

Apeou-se do comboio numa estação do centro. Não tinha traçado

nenhum plano ao sair de casa mas necessitava de respirar ar pum E na rua

deu-se conta que tinha feito maquinalmente o mesmo trajeto que todas as

manhãs o levava ao trabalho. Embora sem nenhum fim; concreto, resolveu

subir. Era, perto num daqueles arranha-céus que projetavam largas sombras

sobre a cidade.

Foi assim que momentos depois, num ascensor que trepou velozmente

até ao vigésimo quinto andar, o desgraçado Fred chegou ao seu escritório.

Uma vez ali, abriu a janela para respirar esse ar puro que os seus

pulmões necessitavam. O panorama era magnífico. Toda a cidade,

incendiada pelo poente, era um cadinho de vermelho e laranja que a noite

ia apagando. Mas Fred, ao chegar à janela, não olhou em frente, mas para

baixo.

— Vale a pena continuar a viver? voltou a perguntar em voz alta.

Ao fundo daquele abismo, a Quinta Avenida era uma ruela de brinquedo

por onde circulavam muitos carros miniatura. A intervalos regulares,


aquele cau dal de carrinhos detinha-se perante as luzes dos sinais de

trânsito.

***

7,00 da tarde, em Manhattan.

Tão vertiginosa foi a queda daquele vulto, que ninguém a observou. Os

peões que passavam no momento perante os carros parados junto ao sinal

luminoso ouviram unicamente um som cavo.

Mas dentro do carro descapotável, que não pode arrancar ao acender-se a

luz verde, dois crânios destroçados e dois corpos jaziam numa confusão.

Foi o «claxon» acionado pelo queixo de Richard ao receber na nuca o peso

de Fred, quem lançou um prolongado grito de alarme com a sua voz

metálica.

E enquanto as pessoas iam formando um aglomerado, o sangue dos

cadáveres dava um brilho húmido à pintura vermelha do carro.


O ASSOMBROSO PESADELO

Acabo de despertar banhado em suor e tremendo de medo.

Tive o pesadelo mais horrível que pode nascer na imaginação de um

homem. Tão horrível, que o tremor de todo o meu corpo demorará, com

certeza, um bom bocado a acalmar.

Sonhei que era noite e que caminhava por uma rua muito larga, por entre

uma escuridão densa compacta.

À medida que ia avançando, tinha a estranha sensação de que aquelas

trevas eram palpáveis, pois me acariciavam a cara como teias de aranha.

Cheguei por fim ao portão da casa onde vivia com os meus pais e subi ao

piso que ocupávamos. Não mie cruzei com ninguém nem no portão nem na

escada, porque era muito tarde e todos os vizinhos dormiam. Contudo, no

sonho, subia cautelosamente, com os nervos tensos, receoso de que alguém

me pudesse ver. Porque sabia que algo da importante ia acontecer naquela

noite. Algo de decisivo e espantoso.

As mãos tremiam-me quando tirei do bolso um pano preto com o qual

cobri o rosto até aos olhos. Pela ampla espiral da escada, subia até aos

andares de cima um vento estranho e triste que soava a gemido.


Abri então a porta do andar com grandes precauções e entrei pelo

corredor que conduzia ao escritório do meu pai. No sonho, toda a casa

estava iluminada por esplendor avermelhado. Eu, na realidade, não

necessitava acender nenhuma luz, pois conhecia perfeitamente os recantos;

que formavam todas as paredes e a posição de todos os móveis.

Cheguei ao' escritório sem nunca tropeçar, e dirigi-me à mesa de meu

pai. Uma voz interior, que no pesadelo era ião audível como se eu próprio

estivesse falando aos gritos, dizia-me:

«Na terceira gaveta da esquerda está o dinheiro.,. Vais roubar todas as

economias do teu pai mas não te importes... Tu necessitas desse dinheiro

urgentemente... Que te importa que seja teu pai?... Ele para ti não significa

nada... Fixa bem... Na terceira gaveta da esquerda...»

A gaveta apareceu logo perante mim, agigantada pelo delírio onírico.

Forcei a fechadura, que cedeu com facilidade, utilizando uma grande

tesoura de cortar papel que estava em cima da mesa. E dentro da gaveta

estava o dinheiro que guardei às mãos cheias nos bolsos.

E de repente todo o pesadelo se encheu de uma luz branca e

deslumbrante. O meu pai acabara de entrar no escritório e corria para mim

gesticulando. Estava francamente ridículo, com um pijama violeta e um

grotesco gorro de dormir.


Quando me dei conta, estava junto de mim golpeando-me o rosto com os

seus punhos e gritando comi voz histérica:

— Ladrão!... Ladrão!... Ladrão!...

Os golpes enfureceram-me e respondi-lhe também. Mas meu pai era

vigoroso, e ao ver em perigo as suas economias multiplicaram-se as forças.

A briga, como em todos os sonhos, desenrolava-se num ritmo mais lento

que na vida real. Se bem que os murros que me dava não me doessem,

notava urna crescente lassitude em todos os membros e pressentia a minha

imediata derrota. Com um esforço enorme, pois os braços começavam a

pesar-me como se fossem de chumbo, consegui afastá-lo de mim dando-lhe

um forte empurrão. Mas ele, antes de cair, conseguiu agarrar na ponta do

pano que cobria o meu rosto e levá-lo na queda.

Abriu então muito os olhos enquanto os seus lábios, inchados pelos meus

golpes, se entreabriram para dizer:

— Tu, meu filho!...

E parou aniquilado, mirando-me fixamente. Eu quis aproveitar a sua

admiração para fugir; mas ele, no solo, conseguiu agarrar-me pelo

tornozelo e fazer-me tombar. Logo, com redobrada fúria, caiu sobre mim.

E enquanto me golpeava nos olhos, na boca e nas orelhas, repetia como

um autómato:
— Tu, canalha!... Tu, canalha!...

Quando estava prestes a perder o conhecimento vi, perto, duas grandes

tesouras com que fizera saltar a fechadura da gaveta. E tão cego estava

pelos golpes e pela ira que as cravei na garganta do meu pai.

As duas folhas de aço, unidas como um só punhal, penetraram na carne e

nas artérias do seu pescoço com uma facilidade que me assombrou.

Também fiquei admirado por vê-lo ficar imóvel com tanta rapidez, depois

de um breve estertor que soou como um rugido.

As imagens do pesadelo, com uma nitidez pavorosa, mostraram-me o

cadáver de meu pai estendido na carpete, envolto no ridículo sudário do seu

pijama violeta. O jorro de sangue que saía da ferida, ao escorregar desde o

pescoço até à cintura, parecia uma gravata vermelha pintada sobre a pele.

Quis soltar um grito enorme ao ver o; que havia feito, mas a minha

laringe não me obedeceu. Corri então até à porta, e encontrei-a obstruída

pela figura de minha mãe. Um esgar de terror indescritível transtornara as

suas feições. Muito pálida, coberta com a sua larga camisa branca, tinha um

alucinante aspeto de fantasma.

— Que fizeste?, disse-me, envolvendo esta palavra num grito

dilacerante.

— Tire-se!, disse-lhe; tentando afastá-la para atravessar a porta.


Mas minha mãe não quis afastar-se. Então, enlouquecido e sem dar conta

do que fazia, levantei a mão e deixei-a cair pesadamente sobre uma das

suas faces. Ela, ao receber a bofetada, cambaleou e quase caiu.

Horrorizado ao ver a marca avermelhada dos meus cinco dedos na sua

pálida face, lancei um grito penetrante.

Foi esse grito, soltado em pleno delírio que me arrancou do sonho. E

então acordei arquejante e coberto de suor.

Que alegria senti ao dar conta que tudo fora um espantoso pesadelo! Tão

contente fiquei que me deram ganas de rir e não me contive. Na

obscuridade, apalpei cheio de júbilo a parede a que a minha cama está

encostada. E senti nos dedos a agradável frescura autêntica das pedras que

formam a minha cela, onde espero a hora de ser julgado.

Porque é certo que roubei o dinheiro a meu pai e igualmente o matei

quando me surpreendeu no seu escritório. Mas não cometi a

monstruosidade de esbofetear minha mãe. Felizmente fora só um pesadelo!


UMA ASSALTO GENIAL

Vários carros de polícia parados em frente à pequena sucursal do Banco

mostravam que algo de grave sucedera. Os transeuntes, ao chegar ali,

deixavam de transitar e paravam em redor formando um grupo cada vez

mais compacto.

— Circulem por favor, repetiam os polícias que montavam guarda à

porta do estabelecimento. Vamos, circulem!

Mas os curiosos faziam-se surdos e continuavam obstinadamente nos

seus lugares, esperando que a porta se abrisse para surgir alguma notícia do

acontecimento.

No entanto, a porta continuava fechada. Nem era possível ver alguma

coisa do que acontecia por detrás dela e dos seus vidros de cristal,

translúcido. Nem sequer se abriu a um cliente do Banco que chegara de táxi

para converter um cheque.

— Sinto muito, disse o guarda quando a sua mão se aproximou do trinco

da porta. Não pode passar.

— Como não?, disse o cliente que devia ser meio «despistado» para não

se dar conta de que alguma coisa de anormal acontecera. Mas ainda faltam

vinte minutos para fechar!


Hoje fechou um pouco mais cedo, insistiu o agente.

— Porquê?

Circule e não faça perguntas.

Enquanto na rua continuava a aumentar o número e o alvoroço dos

mirones, dentro do Banco reinava uma silenciosa atividade. No pátio

central, para onde davam todas as portas, vários funcionários da polícia

trabalhavam metodicamente.

Um fotógrafo tirava fotografias a umas marcas de passos tenuemente

marcadas no chão de mármore.

Um perito em dactiloscopia, inclinava-se sobre o puxador da porta do

«Caixa» quase até roçar a madeira com o nariz, em busca de impressões

digitais.

Um detetive, de gatas e armado de lupa, guardava todas as pontas de

cigarro que encontrava.

Mas, contudo, dentro do Banco, no gabinete do diretor, desenrolava-se

uma cena dramática. Um autor de obras teatrais apresentaria o diálogo

desta cena com a seguinte nota:

(«Sentado à sua secretária, vemos o diretor. Está muito sério e um pouco

pálido. Em frente, do outro lado da secretária ocupam duas cadeiras o caixa


e o inspetor. O caixa é um homenzito branco e bastante calvo, com duas

lunetas de aro de aço acavalgadas no nariz. A sua palidez é mais intensa

que a do diretor; mas não se nota porque a pele tem o tom amarelento,

quase esverdeado, dos burocratas que ganham a vida longe do sol. Nota-se,

no entanto, que está debaixo de forte comoção pois as mãos tremem-lhe

ostensivamente quando com um lenço limpa o suor que lhe escorre do

rosto. O inspetor sentado junto dele, é um homem que impressiona pela sua

corpulência. Também a sua voz é impressionante, pois é grave e lenta

como um disco de 45 rotações posto a 33»).

A cena entre estas personagens, na atmosfera carregada do escritório

(carregada de fumo porque o inspetor não parava de fumar) desenrolou-se

assim:

— Vamos, acalme-se, disse o polícia ao caixa. Quer que mande vir outro

copo de água?

— Não, obrigado. Estou melhor. Mas compreendem que tão afetado...

— E o Banco também, grunhiu o diretor. Se bem que ainda não

saibamos com exatidão a quantia roubada...

— Faça o favor de não o pôr mais nervoso, cortou o polícia. Estou a

tentar tranquilizá-lo e o senhor vem estragar o meu trabalho com as suas

intervenções.
11

— Perdoe-me, desculpou-se o diretor mordendo os lábios.

— Creio que estou bem, disse o caixa guardando o lenço no bolso.

— Nesse caso, disse o inspetor, conte-me o que aconteceu com todos os

detalhes.

— Bom, começou o caixa passando a mão pela fronte para estimular as

ideias. Esta manhã na minha seção houve muito pouco movimento. Hão de

ver isso. Nas pequenas sucursais da cidade, como a nossa, a clientela tem

as suas manias. Neste bairro, por exemplo, dá-lhes para não vir às sextas-

feiras. Pelo contrário aos sábados...

— Não divague, interrompeu o chefe.

— Queria explicar ao inspetor..., desculpou-se o caixa.

— Não é necessário, disse o polícia, limite-se aos factos.

— Está bem, continuou o caixa. Ao meio dia e cinco minutos abriu-se a

porta da rua e entrou o autor da patifaria.

— Como sabe tão bem a hora exata?, disse o inspetor.

— Todos os dias, ao meio dia em ponto, começo a comer uma sanduíche

que trago de casa. Como sou um homem metódico, como todos os

empregados de Banco, dou sempre na sanduíche o mesmo número de


dentadas e demoro a comê-la o mesmo número de minutos. Sei que eram

doze e cinco porque demoro dez minutos nesta operação. Quando o homem

entrou, restava-me metade da sanduíche.

— Como era?

— Estupenda. De anchovas e ovo mexido.

— Não me refiro à sanduíche, elucidou o inspetor, mas ao homem.

— Perdão. Era alto e forte. Trazia uma gabardine escura de gola subida e

um chapéu cinzento de aba puxada sobre os olhos. Trazia também na mão

direita um estojo de violino. Isso * chamou-me a atenção porque vi

inúmeros filmes em que os gangsters escondem as metralhadoras em caixas

de violino. Mas sempre pensei que essas coisas fossem fantasias dos

realizadores...

— Que fez o homem ? cortou o polícia.

— Dirigiu-se diretamente à porta do «Caixa», olhando de viés à direita e

à esquerda para se certificar de que não estava naquele momento mais

nenhum cliente. Ao chegar à minha frente...

— Continue. Que fez ao chegar à sua frente?

— Poisou o estojo no chão. Perguntei o que queria mas não me

respondeu. Como resposta tirou o chapéu e pô-lo de copa para cima sobre o
guichet, debaixo do meu nariz. O seu comportamento pareceu-me um

pouco estranho e voltei a perguntar-lhe o que queria.

— E ele que respondeu?, disse o diretor nervoso.

— Também desta vez não obtive resposta, disse o funcionário. Comecei

a inquietar-me quando vi que se inclinava bruscamente para abrir o estojo

com assombrosa rapidez.

— Que foi?, tornou a dizer o diretor, sem poder dominar a sua

impaciência.

— Um violino, respondeu o caixa.

— Um violino?, repetiu o polícia espantado. Mais nada?

— Depois do violino tirou outra coisa.

— Uma arma?, disse o inspetor.

— Não: um arco.

— Dos que servem para atirar flechas?, quis saber o diretor.

— Não, disse o subalterno: um arco dos que se usam para tocar violino.

— Que estranho!, murmurou pensativo o polícia. E que aconteceu

depois?
— Apanhei um susto, continuou o caixa. Porque o homem de repente,

agarrou o violino. E antes de eu ter tempo de raciocinar...

— Que fez ?, interveio o diretor nervosíssimo.

— Começou a tocar, continuou o caixa. Quedei-me paralisado com a

surpresa.

— Surpresa?, voltou a intervir o diretor irritado. Nunca tinha ouvido

tocar violino?

— Tão bem como aquele homem não, confessou o subalterno. Tocava

maravilhosamente. As notas saindo do instrumento formavam uma melodia

encantadora. Senti que a minha alma voava a grande altura, transportada

pela música. 0 arco daquele violinista, em cada arpejo, formava uma ponte

mágica para um mundo de sensações indizíveis. Jamais sentira uma

emoção tão intensa. Não encontro palavras para a exprimir porque sou um

simples empregado de Banco com pouca cultura. Não sei sequer o nome do

autor daquela peça tão bonita, tão docemente melancólica. A única coisa

que posso dizer é que me quedei fascinado sem poder afastar os olhos das

mãos daquele artista excecional.

— Estúpido!, murmurou o diretor em voz tão baixa que mal se ouviu.

Porque não puxou o sinal de alarme?


— Como poderia interromper uma música tão bela com um som de

timbre tão feio e estridente?, protestou o caixa.

— Acabe de contar o que aconteceu, ordenou o inspetor.

— Emocionei-me de tal forma, continuou o caixa, que ao acabar o

concerto meti a mão na gaveta do dinheiro e meti no chapéu do violinista

vários maços de notas.

— E ele que disse?

— Disse-me obrigado, esvaziou o chapéu e foi-se depois de guardar o

violino e o arco no estojo. Então raciocinei e toquei o sinal de alarme. Mas

já era demasiado tarde...

Ao terminar a declaração do caixa, o polícia levantou-se para se ir

embora.

— Não quero esconder-lhe, disse ao diretor do Banco como despedida,

que será difícil apanhar este ladrão. A polícia costuma descobrir assaltos à

mão armada. Mas um assalto tão genial como este, à mão armada de

violino...
NÃO É FÁCIL MORRER

O ar do quarto era morno, como o de todas as casas que têm um doente

grave. Nem sequer o aroma que se escapava de alguns frascos medicinais

colocados em cima da mesinha de cabeceira — cânfora, mentol, alecrim —

conseguia purificar o ambiente.

Na cama, debaixo de uma coberta de cores demasiado alegres para

aquela ocasião, agonizava Pascoal.

A sua enfermidade, que na nota necrológica dos periódicos seria

qualificada de «prolongada e penosa» tinha-lhe devorado todas as carnes

com uma voracidade de canibal. Dele só restava neste mundo um esqueleto

coberto de pele, dentro do qual a alma fazia apressadamente as malas para

a grande viagem.

Todos os recursos da ciência, em frascos e injeções, tinham cumprido a

sua modesta obrigação de prolongar a agonia por um par de semanas. E o

médico, naquela mesma tarde, tinha anunciado:

— Não há nada a fazer: restam-lhe oito horas de vida.

Não teve outro remédio senão dizê-lo diretamente ao próprio

interessado, porque Pascoal Ramos não tinha ninguém neste mundo.

Descendente de uma família pouco numerosa e nada saudável, ficara órfão


na infância e sem parentes de espécie alguma na adolescência. A última tia

que lhe restava, por certo em bastante mau estado, fora-se na última

epidemia de gripe asiática.

Pascoal ficou assim completamente só, pois desde a mais tenra

juventude tivera a precaução de permanecer solteiro. De solteiro, com os

anos, passara a solteirão, e nesse estado civil surpreendeu-o aquela

enfermidade, que ia a caminho de converter-se em mortal.

A solidão era portanto a única companhia que o acompanhava naquele

transe amargo, e com ela passou Pascoal o último pedaço de vida que a

ciência lhe concedeu.

Noite avançada, pouco antes de expirar a oitava hora do prazo previsto, o

médico veio visitar o moribundo.

— Estou a morrer, doutor, disse com um fio de voz trémulo.

O médico tentou encontrar, durante um instante, sem conseguir, o pulso

de Pascoal. Por fim as polpas dos seus dedos captaram um ténue latejo,

longínquo e irregular, nas profundezas daquele pulso exangue.

— É evidente, disse depois de ter contado as pulsações, que acertei no

cálculo de oito horas de vida. Se fosse um doente normal, dentro de uns

minutos deixaria de existir. Mas, em vista das circunstâncias do seu caso,

vejo-me obrigado a conceder-lhe uma prorrogação.


— Como ?, perguntou Pascoal, erguendo-se com esforço e entreabrindo

uma das suas pálpebras. Que quer o senhor dizer?

—-Simplesmente, explicou o doutor, que não vai ainda morrer.

— Por que não?, replicou o moribundo, cada vez mais perplexo.

— Porque vive completamente só e não tem ninguém que o ajude a

morrer. Como é que não pensou nisso?

— Em quê?

— Em dispor de algum parente, mesmo que longínquo, que se ocupasse

de todos esses trâmites que são indispensáveis para se morrer numa

sociedade civilizada.

— Realmente não pensei, é verdade, confessou Pascoal um pouco

envergonhado. Pensei que bastava encomendar a alma a Deus...

— Eu?, disse o moribundo abrindo também o outro olho.

— Sim, sim, zombou o medico. O processo e muito mais complicado, e

terá que fazê-lo você mesmo.

— Naturalmente. Porque não quer morrer como um cão, não é verdade?

— E que requisitos?, quis saber Pascoal, escutando atentamente.

— Não, claro.
— Pois para morrer como uma pessoa, notou o doutor, deve cumprir

todos os requisitos que as leis ditam.

— Primeiro que tudo, tem de prover-se de um impresso de certidão de

óbito.

— Caramba! Não é muito agradável...

— Mas é necessário que eu o preencha e o assine quando morrer. Para

obter esse impresso tem de ir à Conservatória. Mas como a estas horas está

fechada, tem de chamar o guarda noturno da rua onde está a repartição que

lhe dará o impresso a troco de uma gratificação.

— Muito bem, disse Pascoal. Contudo, permita-me que lhe faça uma

observação.

— Diga.

— Dado que esses certificados têm que ser feitos pelos médicos, não

seria mais lógico que os impressos estivessem nas vossas mãos, para

simplificar esse trâmite.

— Seria mais cómodo para os moribundos, com efeito, admitiu o doutor,

mas mais desonroso para nós. Se os médicos viessem preparados com as

certidões de óbito, as pessoas pensariam que admitíamos como provável o

falecimento dos pacientes confiados à nossa ciência. E a classe médica


perderia prestígio. É este o motivo porque é necessário que seja o defunto

ou a pessoa que o represente a obter tal impresso.

— Compreendido, disse Pascoal. Continue.

— Uma vez na posse desse certificado deve dirigir-se a um cangalheiro.

— A qual deles ?

— Ao que quiser.

— A verdade é que todos me inspiram sempre a mesma raiva. Nunca

tive simpatia por essa espécie de negócio.

— Então dirija-se ao que trabalha para si habitualmente.

— Até a esta hora nunca me servi de nenhum, confessou o agonizante.

Como é a primeira vez que me acontece uma desgraça assim...

— Nesse caso escolha qualquer um, ao acaso. Mas é indispensável

decidir os pormenores do enterro. E como não tem nenhuma família que se

encarregue de resolver essas questões, terá o senhor que fazê-lo

pessoalmente.

— E quais são as decisões que devo tomar? informou-se Pascoal

oprimido com tanta complicação.

— O tamanho e a qualidade do caixão, a categoria do carro fúnebre, o

número de coroas de flores, a hora do enterro. Esta última não poderá dizê-
la com exatidão, mas sim aproximadamente : fixe o enterro para amanhã às

cinco da tarde.

— Está bem, suspirou o moribundo resignado É tudo?

—-Não homem, prosseguiu o doutor. Quando tiver resolvido o funeral

terá que ir à Câmara pedir uma autorização.

— O quê ?... Não vai dizer-me que para morrer é preciso uma licença

municipal.

— Para morrer, não; mas para que o seu enterro possa passar pelas ruas

centrais, é preciso uma autorização da Repartição dos Espetáculos. Embora

a porta esteja fechada, o contínuo dar-lha-á a troca de uma gratificação. A

seguir o senhor vai à paróquia...

— Â paróquia também?, soltou Pascoal começando a enfadar-se.

— Naturalmente; para contratar o clero que tomará parte no enterro. E

saiba que há várias tarifas conforme o número, os ornamentos e a atuação

dos sacerdotes; com cruz ao alto, com canto gregoriano... Também é

necessário encomendar as missas e as rezas para o eterno descanso da sua

alma.

— Bom, disse o enfermo. Espero que isso será tudo.


— Quase, tranquilizou-o o doutor: só falta avisar o Subdelegado de

saúde...

— Para quê?

— Para vir a sua casa quando falecer, e comprovar a sua morte.

— Mas não resolvemos ser o senhor a preencher a certidão?

— A certidão sim, admitiu o médico. Mas isso não tem nada que ver.

— Como não?, admirou-se Pascoal. Se o senhor certifica com a sua

assinatura que morri, porque tem que vir outro médico comprová-lo? Acaso

não fez o seu curso como o outro e existe a possibilidade de se enganar ao

diagnosticar o meu óbito?

— É um pouco absurdo, reconheceu o doutor, mas está assim

estabelecido. Suponho que a razão está no facto do Subdelegado de saúde

ser oficial. E você sabe o que acontece àqueles que ocupam cargos

públicos: crêem-se mais sabidos que os demais e não se fiam nos

particulares.

— Ê demasiado absurdo, insistiu o agonizante, complica os funerais com

mais um trâmite.

— Um trâmite, juntou o doutor, que além de não ser necessário, ofende

os médicos particulares. Qualquer pessoa pensaria que somos tão brutos


que podemos dar por morto um senhor vivo. Mas não vale a pena discutir:

se você quer que o enterrem como Deus manda, avise o Subdelegado.

— Se não há outro remédio, avisá-lo-ei, resignou-se Pascoal. Mais

alguma coisa?

— Terá que passar pelos escritórios do cemitério para pagar a

importância da sepultura perpétua. Sem esse requisito corre o risco de o

porem fora no dia que menos espera.

— Não creio que me ponham na rua, protestou Pascoal.

— Mas podem pôr-lhe os ossos na fossa comum, advertiu o doutor. Com

este trâmite ficará tudo terminado e poderá morrer tranquilamente.

— E se morro pelo caminho, antes de cumprir tudo isso?

— Não poderá morrer, esteja descansado, garantiu o médico. Na vida

civilizada só se concede a licença de falecer quando se têm todos os papéis

em ordem. E a propósito de papéis: tem também de passar pela

administração dos jornais para dizer o tamanho e o texto das notícias.

— Então se me dá licença vou vestir-me, disse o moribundo saltando da

cama com toda a agilidade que lhe permitiam as suas fracas forças, para

começar quanto antes essas andanças.


— De acordo, disse o doutor saindo do quarto. Voltarei amanhã para

dar-lhe baixa no recenseamento, quando tiver em seu poder a

documentação completa.

E enquanto Pascoal Ramos se vestia, ia repetindo mentalmente a lista de

todos os documentos que eram precisos, para não esquecer nenhum.

— Impresso para a certidão de óbito... cangalheiro... autorização para

celebrar o enterro... paróquia... médico...


A BOA SORTE DA MINHA FAMÍLIA

Hoje foi o dia mais feliz de toda a minha vida! Tanto foi o prazer que

experimentei ao longo dele que um alegre tremor sacode as minhas mãos

enquanto traço estes caracteres nas páginas do meu diário. E é natural.

Porque hoje o honorável pai de meu pai, o nosso grão avô Minoru San,

alcançou a proveta idade de oitenta anos.

Por tão alegre motivo toda a minha família se reuniu em nossa formosa

casa do Bairro Alto, para as, felicitações pertinentes e os obséquios

oportunos. Nem um só familiar faltou. Apesar das dificuldades de

transportes criadas pela guerra, todos os nossos ilustres parentes vieram

desde os pontos mais distantes, e mesmo remotos, do Japão.

Até o meu honorável tio Kazuki, que fabrica sumptuosas esteiras na

província mais setentrional do arquipélago, e com todos os seus distintos

filhos!

E também o meu primo Sakae, da remota Manchúria, onde trabalha

como sargento no Exército Imperial.

E muitos familiares mais, que irei mencionando no decurso do relato que

pretendo fazer deste dia maravilhoso.


Mas antes tenho de pôr em ordem as infindas impressões que hoje

recebi, e que se entrechocam na minha cabeça louca. Porque ao fim e ao

cabo só tenho dezanove anos, e sou a benjamim de três irmãs e um irmão já

maior. As minhas irmãs estão casadas, e também vieram à festa do grão

avô com os seus honoráveis maridos. Não faltaram tão pouco os respetivos

pequeninos, para quem o grão avô tem o tratamento de Grandíssimo

Bisavô.

Não sou, como pode ver-se, pela minha juventude e ignorância, a pessoa

mais indicada para relatar com fidelidade os pormenores do glorioso

acontecimento que a minha respeitável família celebra. Mas tentarei dar,

com a minha desprezível pena, um pálido reflexo de todos os esplendores

que os meus olhos viram.

Ao raiar da aurora, que na nossa cidade é muito cedo, todas as mulheres

que vivem na formosa casa do grande avô se levantaram das suas esteiras e

foram para a ampla cozinha. Como esperávamos a visita de todos os nossos

familiares— mais de meia centena, incluindo adolescentes e meninos de

ambos os sexos — era necessário preparar-lhes refrescos, doces e iguarias

dignos da elevada e significativa reunião que íamos celebrar.

Com boa arte servimos o aromático «Sako» em taças de fina porcelana, e

picámos saborosas algas marinhas para misturar com a carne. Também


preparámos chá em abundância, arroz em travessas grandes como bacias de

lavatórios e batatas fritas em gordura vegetal como é uso no ocidente.

Quase demorámos três meses a reunir os víveres para o banquete, pois

com a guerra as rações que recebemos por pessoa são exíguas. Por sorte,

como a minha família goza de uma posição económica desafogada,

pudemos comprar no mercado negro vários saquitos de açúcar e farinha,

com os quais nos foi fácil fazer saborosos pasteis.

Enquanto trabalhávamos na cozinha fritando peixes, preparando ovos e

cozinhando arroz, podíamos observar com satisfação que se avizinhava um

excelente dia. O céu mostrava-se de um azul puríssimo, sulcado por

pequenas nuvens que serviam de esporádicas sombrias para atenuar os

raios abrasadores do sol de verão.

O jardim que rodeia a nossa formosa casa, luzia em todo o esplendor das

suas verduras. Nos lagos e riachos artificiais nadavam preguiçosamente os

peixes multicores, enquanto à superfície as libélulas e moscas douradas

faziam piruetas. As flores, embora escassas pelo avançado da estação

estival, embelezavam alguns maciços com os seus tons azuis e escarlates.

— Que lindo aniversário vai ter o grande avô!, profetizou mamã, que

também viera à cozinha para dirigir a preparação do banquete.


— E merece-o, disse respeitosamente Otaka, a velha cozinheira que me

viu nascer. Porque graças à sua perseverança e sabedoria, conseguiu

alcançar esta idade avançada.

Trabalhámos com brio para honrar o nosso venerável parente, que pela

sua idade ocupava o último grau da hierarquia familiar.

— Tokuma — disse-me a mamã, que sempre usa este diminutivo

carinhoso quando está de bom humor — ajuda-me a colocar as flores e os

adornos na sala grande.

Porque eu estudei o cerimonial do chá e o arranjo de flores, segundo os

cânones da escola Kamura, tenho diploma destas bonitas habilidades da

educação japonesa, e a mamã gosta que os use quando se apresenta a

ocasião.

Ajudei-a portanto neste delicado trabalho, assim como também na

colocação de lanternas, biombos, cintas e outras vistosas bugigangas que

deram à espaçosa sala um singular encanto. Varremos em seguida as

esteiras em que se sentariam os comensais e posso assegurar que ficámos

satisfeitos com a nossa obra.

Ainda cedo ficou tudo preparado para a magna receção. Dois músicos

excelentes mestres no manejo do «samiseu» e do «Koto», instalaram-se

numa pequena tarimba junto ao posto de honra que ocuparia o grande avô.
Este duete de reputados professores tinha por missão amenizar a festa com

as suas melodias do mais tradicional nipónico.

O primeiro a chegar foi o meu prezado tio Kazuki, na companhia dos

seus cinco filhos.

— Trazemos as roupas enxovalhadas, desculparam-se depois das

saudações iniciais, porque fizemos a viagem num trem abarrotado de

soldados.

— Bem podem perdoar-se as rugas, sentenciou o avô com a sua

sabedoria habitual, quando dentro das roupas batem corações amorosos e

familiares.

Fez-me grande alegria ver os filhos do tio Kazuki, que por serem filhos

dele são meus primos, pois não tinha voltado a vê-los desde os anos

imediatos ao meu desmame. Notei que todos tinham crescido

sensivelmente desde então, o que foi para mim motivo de surpresa e

regozijo.

Enquanto o grande avô partia, com o meu tio em companhia de meu pai,

conduzi ao jardim os meus primos que elogiaram o bom aroma das nossas

plantas e o harmonioso colorido dos nossos peixes. Também elogiaram as

flores azulinhas, se bem que com menos entusiasmo.


Momentos depois a campainha da porta anunciou com alvoroço a

presença das minhas dignas tias Oman e Tana. Ambas ultrapassaram os

sessenta anos solteiras, o que me faz supor que são demasiado exigentes

quando recebem propostas matrimoniais. Mas têm ainda esperanças de

encontrar o homem ideal e enchem-se de tintas, pós de arroz, pentes e

alfinetes de diversos feitios e tamanhos. Vivem na cidade vizinha, e para

evitarem estragar nos apertos do trem os seus cuidadosos toucados, fizeram

o caminho nas suas bicicletas particulares. Ambas são ciclistas peritas, pois

se dedicam a fazer obras de caridade na sua cidade natal e empregam este

meio de transporte para repartir os donativos pelos subúrbios.

Tia Oman obsequiou o nosso venerável festejado com um caprichoso

cofrezinho de laca para guardar coisas pequenas de toda a espécie.

Tia Tana trouxe-lhe também um belo presente: uma navalha de fazer a

barba, de lâmina tão afiada e brilhante como a espada de um «samurai», e

atraentes dragões lavrados no cabo.

O avô Minoru San, cheio de gratidão, deixou-se beijar as mãos pelas

suas maduras sobrinhas.

— Quando vocês alcançarem a idade que tenho, prometeu a ambas com

voz selene, presentear-vos-ei com uma bicicleta nova para cada.


E elas, com a ilusão própria das senhoritas que com a virtude

conservaram também a candura, começaram a bater as palmas cheias de

contentamento. Serão ingénuas as tias? Um ligeiro cálculo basta para

compreender que não é fácil que se cumpra a oferta do avô, pois quando

alcançarem os oitenta anos o venerável ancião terá que estar à roda dos

cem. E vamos, com todo o meu respeito, não me parece fácil. Mas enfim:

se elas se encantam pensando que estrearão bicicletas dentro de dezoito

anos para quê privá-las da sua ilusão?

Chegaram depois os meus veneráveis cunhados, em companhia de suas

esposas e dos meus sobrinhos. Que lindos estavam os pequenitos, com os

seus quimonozinhos de seda estampada e os seus cabelos tão negros como

o azeviche! Mas logo começaram a gritar, apesar do reduzido tamanho das

suas gargantas, e a atirar pedras aos lagos com a marota intenção de acertar

nos luzidios corpos dos peixes!

Com o devido rubor, pois não é pensamento próprio para uma donzela da

minha idade, atrevo-me a dizer que sinto uma viva inclinação para

meninos. Quando os meus honoráveis pais decidirem casar-me, terei, com

permissão de meu marido, muitos filhos. Tantos pelo menos como a minha

irmã Sun, que acaba de ter o quinto e está esperando o sexto. Creio que ela

não dá tempo ao seu jovem marido para tomar um copito de «sako» com os
amigos! Peço perdão por ter escrito esta frase tão atrevida, ditada sem

dúvida pelo contentamento que sinto. Foi um dia tão feliz, que tudo é

motivo para mim de troça e malícia.

à medida que a manhã foi avançando, o calor fez-se mais intenso e

tivemos que servir refrescos a todos. Graças ao nosso peixeiro que teve a

gentil amabilidade de nos proporcionar algum gelo, as bebidas que

oferecemos estavam deliciosas.

O gelo escasseia tanto como o carvão. Assim acontece que, por causa da

guerra, encontramos sérias dificuldades para combater o frio no inverno e o

calor no verão. Mas não quero lembrar-me dessa horrível guerra em que

andamos metidos há tanto tempo. Como aliás nenhum membro da nossa

família quer lembrar-se. Por um acordo tácito, ninguém a mencionou uma

única vez no decurso da magna reunião celebrada em nossa casa. As

conversas giraram em torno dos assuntos mais diversos; mas ao aproximar-

se do tema bélico, afastavam-se com graciosa pirueta.

Falar de algo tão trágico teria perturbado a felicidade que sentimos todos

ao celebrar o octagésimo aniversário do querido avô Minoru San. E a

delicadeza que traz consigo a boa educação, ajudou-nos a afastar nas

nossas excursões dialéticas esse profundo vale de lágrimas em que se

afogaram no último ano tantas alegrias.


— Estás mais deslumbrante que uma cerejeira florida, disse-me o meu

prezado primo Sakae, quando pus nas suas mãos uma taça de refresco com

água de arroz.

— Noto, repliquei-lhe enquanto as minhas faces começavam a pôr-se

púrpuras, que a rude vida militar te faz ser indulgente com as raparigas de

pouco valor que encontras durante as licenças na retaguarda.

— Permite-me que te elucide, estimada Tokuma, disse trespassando-me

com um olhar que ultrapassava o nosso simples e leve parentesco, que não

deves confundir a indulgência com o entusiasmo.

Ao ouvir aquilo, tonta de mim!, tremi de tal maneira que não pude evitar

o derramamento dos refrescos que distribuía numa bandejazinha pintada de

laca. E a água de arroz, com muito pesar meu, molhou copiosamente os

calções do meu galante primo!

Fiquei tão consternada com a minha asneira que não pude balbuciar

qualquer desculpa coerente. Mas Sakae, com um autodomínio digno do

uniforme que vestia, tirou um lenço do bolso e disse impassível, enquanto

limpava a água.

— Por sorte, no Exército Imperial aprendi que as únicas nódoas graves

são as de sangue.
Esta formosa frase fez-me compreender porque a guerra dura tanto, sem

que os nossos poderosos inimigos consigam derrotar-nos. Com homens tão

serenos e moderados como o meu primo, capazes de permanecer impávidos

nas circunstâncias mais adversas, quem poderá vencer-nos ?

Deixei o meu primo secando os seus heroicos calções e corri a ocupar-

me dos outros parentes que continuavam chegando sem cessar.

Saudei com uma profunda referência o meu tio político Fujiko, alto

funcionário do Governo, que reside em Tóquio, onde desempenha um

posto de grande responsabilidade no departamento que dirige a criação do

bicho da seda. Apesar da sua elevada posição, que lhe permite o uso de

quimonos com bolas douradas, Fujiko tratou-me com grande benevolência

e não achou inconveniente desperdiçar alguns minutos do seu valioso

tempo trocando comigo algumas frases triviais:

— É um prazer notar, disse-me, que os jovens casulos da família se vão

abrindo e convertendo em belas rosas.

— Oh querido tio político!, balbuciei pestanejando. Peço-lhe que seja

benévolo comigo.

Posso assegurar que, pouco antes do meio dia, nem um só membro da

minha família faltava na reunião. O avô Minoru San, sentado no seu rico

tamborete de laca, oferecia um aspeto sumamente majestoso. O sol, ao cair


sobre a sua redonda cabeça, lustrosa pela calvície, arrancava brilho radiante

ao seu polido couro cabeludo. Ao seu redor, alinhavam-se metodicamente

as ofertas que tinha recebido pelo seu avançado aniversário: desde a

primorosa colher lisa para gelatinas e pudins de ovos que lhe ofereceu a

minha irmã Susuki, ao gentil dragãozinho de felpa feito pela madrinha

Machiko!

O gongo, tocado com arte pelas hábeis mãos da minha mãe, anunciou

pouco depois que tinha chegado o momento de deixar os aperitivos para

dar rédea solta à comida formal.

Com grande farfalhar de sedas e fazendo barulho com os tacões das

sandálias fomos todos sentarmo-nos nas esteiras da ampla sala. Senti-me

orgulhosa ao observar o bom efeito que causavam os adornos de flores e

papeizinhos dispostos com arte por mim, e aceitei com modéstia as lisonjas

que me foram feitas por este motivo.

Qual não seria a minha surpresa ao notar 109 que o valoroso sargento

Sakae, arrastando dissimuladamente as suas nádegas sobre o solo esteirado,

vinha colocar-se junto a mim!

— Peço-te, Tokuma, que sejas indulgente comigo pela minha audácia,

desculpou-se quando chegou a meu lado.


— É uma honra que um membro tão importante do Exército Imperial,

disse bastante perturbada, deseje acompanhar-me durante a comida.

E agarrando uma garrafa de «sako», servi-lhe uma taça. Mas também

desta vez, devido à minha perturbação crescente, lhe derramei o conteúdo

nos calções!

— Suponho, balbuciei confusa, que depois disto me vais considerar a

mais torpe e inepta de todas as raparigas do arquipélago. E incluindo a

Manchúria...

— Tanto como isso, não, contradisse ele, tirando o lenço para enxugar

novamente a parte molhada. Mas não se pode negar que és um pouco

desastrada...

Desejei naquele momento que a terra se abrisse e me tragasse, porque

compreendi que tal estupidez me tinha feito incorrer na justa cólera do

jovem parente. E tão justa, valha-me Buda! Que seria do nosso potente

exército se as estúpidas como eu se dedicassem a sujar com bebidas toda a

espécie de uniforme das tropas?

— Suplico-te que recorras a toda a tua benevolência para me perdoar,

murmurei baixando os olhos para o solo.


— Perdoo-te com todo o gosto, disse-me Sakae, com a condição de,

quando estiver junto a ti, não voltares a manejar nenhum recipiente que

contenha líquidos.

E soltou uma risada fresca, dando a entender que não ficara seriamente

afetado com a nova mancha que por minha culpa luzia nos seus calções.

Este riso dissipou por completo o aborrecimento que me produziu a minha

culpabilidade, e iniciámos uma amena conversa enquanto começávamos a

comer com bom apetite.

Os manjares que tínhamos preparado com tanto esmero foram muito do

agrado da parentela, que não deixou um só instante de elogiar a sua

excelência.

— Comeria de boa vontade outro peixinho frito com gorduras vegetais

ao uso ocidental!, dizia o meu tio Kazuki com voracidade mal dissimulada.

— Excelente arroz fervido!, diziam as minhas tias servindo-se de novas

doses.

Houve necessidade de encher várias vezes as garrafas de «sako», pois as

libações dos familiares do sexo masculino foram tão frequentes como

copiosas. Devo juntar que também o chá se gastou às torrentes, assim como

as limonadas e o licor de cerejas.


Confesso sem rubor, pobre de mim!, que muito antes de chegar à

sobremesa me tinham vindo as lágrimas aos olhos repetidas vezes. Era tão

difícil evitar a emoção que produzia a grata festa familiar!

Pela primeira vez em muitíssimos anos se dava a feliz circunstância de

ter conseguido reunir debaixo do mesmo teto uma família completa!

Absolutamente completa! Desde o provecto avô de oitenta anos até ao nono

bisneto de oito meses que aguardava a sua vinda ao mundo no ventre de

minha irmã, nem um único membro faltara. Não era razão suficiente para

arrancar lágrimas de alegria ao olho mais seco?

— Com efeito, formosa Tokuma — esteve de acordo comigo Sakae

quando me desculpei por ter derramado este líquido lacrimoso. Também

eu, se não fosse sargento, me poria a chorar de felicidade como tu. Mas

como o sou tenho que dominar os meus impulsos para não pôr a ridículo o

Exército Imperial.

Como admirei então o meu marcial primo, obrigado pelo seu dever

militar a permanecer impassível enquanto o prazer humedecia todos os

olhares! Porque as minhas lágrimas não foram as únicas que se derramaram

durante a memorável comida. Que me recorde, choraram as seguintes

pessoas que enumero por ordem do respeito devido à idade:

Choraram as minhas tias, as veneráveis ciclistas.


Chorou a minha mãe.

Soltou bastantes lágrimas uma cunhada que viera de Osaka e que teve

sempre fama de ser bastante austera.

Também alguns homens que, por não serem militares podiam

exteriorizar os seus sentimentos livremente, choraram com a medida e

discrição própria do seu sexo.

Outros, pelo contrário, riam pelo mesmo motivo e davam-se fortes

palmadas nos respetivos músculos.

Pedindo desde já perdão por ser indiscreta, atrevo-me a dizer que as

taças do saboroso «sako» contribuíram também para aumentar a alegria

geral que se manifestava em risos e prantos. E o licor de cerejas. E a água

mineral colorida com mistura de uma bebida procedente da trituração de

uvas frescas. E o chá, que estando carregadito, punha também os nervos em

estado bastante eufórico.

A esta jubilosa sinfonia que reinava na vasta sala, para reforçá-la e

embelezá-la, ouviam-se as doces notas do «Koto» e do «Samiseu» que os

dois músicos manejavam.

As minhas tias Oman e Tana passaram, sem transição, do pranto ao riso

benévolo. Outros comensais fizeram o mesmo e a alegria aumentou num

ritmo crescente.
— A nossa família tem muita sorte, observou Sakae, cuja língua

começava a desatar-se em consequência do «sako». Se pensares bem,

prima Tokuma, a guerra tem sido muito benigna para connosco. Aparte

uma pequena ferida num dedo ao abrir uma lata de biscoitos, não tivemos

nenhuma baixa nos quadros familiares.

— É verdade, reconheci com prazer. Não só não temos tido baixas, como

o que é melhor, desde o princípio da conflagração, se produziram

numerosas altas. Esqueceste os novos sobrinhos que me deram as minhas

irmãs e o par de primos que produziu o respeitável tio Kazuki?

— Somos, na verdade, uma família sumamente afortunada, concluiu

Sakae.

— Provavelmente, acrescentei, a mais afortunada do Japão. E devemos

dar graças à Providência pela nossa boa sorte.

— Não deixo de dá-las todos os dias, disse com respeito o meu primo,

que apesar de sargento é muito devoto.

Isto mesmo, com palavras muito mais sábias e profundas foi o que nos

disse o grande avô Minoru San, quando acabámos de comer. A minha mãe,

com perícia, arrancou do gongo uma nota prolongada e cheia de

sentimento. Isto foi o sinal para que todos guardássemos silêncio, com o

fim de ouvir o douto discurso do venerável festejado.


A minha pena é demasiado ignóbil para repetir literalmente as sugestivas

frases pronunciadas pelo cultíssimo octogenário. Tentarei contudo, fazer

um breve resumo das ideias que exprimiu, pedindo desculpas, de antemão,

pela pobreza da minha linguagem e a pequenez do meu entendimento.

Empregando imagens que gotejavam poesia da melhor qualidade, disse

que estava muito satisfeito por ver todos os descendentes congregados à

sua volta. Fazendo alarde de uma memória prodigiosa, foi-nos citando um a

um pelos nossos nomes respetivos, sem omitir a nora mais insignificante

nem o netinho mais pequeno.

Demorou quase meia hora nesta minuciosa enumeração, que escutámos

com a devida compostura. Depois, rompendo ele mesmo o pacto tácito que

tínhamos feito de não mencionar a guerra para não perturbar a alegria da

festa, recordou-nos que o mundo estava atravessando uma catástrofe

mortal de que a nossa família tinha escapado ilesa. Enquanto o luto

manchava de dor muitos lares, em nossa casa reinava o júbilo. Toda a

família gozava de magnífica saúde, e nem um só dos seus componentes

figurava nas intermináveis listas de vítimas.

— São poucos os apelidos que tiveram esta sorte imensa, disse por fim o

ancião em voz emocionada. Devemos, por isso, agradecer este favor divino

que evitou aos nossos olhos o pranto que produz a morte dos seres

queridos.
Como lamento que a minha ignorância me impeça de transcrever

fielmente as belas coisas que disse o avô Minoru San! Com a majestade dos

seus cabelos brancos, falou-nos com a sabedoria dos autênticos sábios. E

quando terminou os seus luminosos parágrafos, muitos pensámos em bater

fortemente as palmas para exprimir o nosso entusiasmo. Mas não as

batemos por ser este um costume dos ocidentais, com quem estamos em

guerra.

Ainda ressoam aos meus ouvidos as veneráveis frases do grande avô.

Porque ao pronunciar a última palavra, que aliás foi «queridos», pedi

licença à mamã para subir ao meu quarto.

— Acaso queres arranjar o penteado, cravando com arte novos

alfinetes?, perguntou-me.

— Não, respondi com respeito.

— Acaso não te agrada a companhia de Sakae, valoroso sargento e teu

primo por afinidade?, juntou ela sorrindo com malícia, pois tinha

observado a animada conversa que tínhamos mantido durante a refeição.

— Agrada-me muito, confessei pondo-me corada como um peixe do

nosso tanque, mas gostaria de passar quanto antes para o meu diário as

impressões que senti durante este dia maravilhoso. São tão gratas e
numerosas, que receio esquecer alguma se não começo a escrevê-las quanto

antes!

— Está bem, acedeu a minha mãe com a sua condescendência habitual.

Sobe ao teu quarto pois as tuas irmãs e primas me ajudarão a servir o chá.

Desce quando acabares que ainda aqui estaremos. Porque a sobremesa será

tão amena como prolongada.

E que prolongada!

Estou há muito tempo a escrever sem parar e continuo a ouvir no andar

de baixo o rumor das conversas que os meus familiares mantêm. E dá-me

satisfação saber que todos os do meu sangue, que amo verdadeiramente,

estão junto a mim neste dia tão feliz.

Somos, com efeito, uma família afortunada. Quando penso em

tantíssimas ausências definitivas que entristecem milhares de lares, sinto

um pouco de vergonha ter tão boa sorte.

Até o tempo nos tem favorecido, obsequiando o avô Minora San com um

dia de aniversário assombrosamente belo! O sol derrama o seu ouro às

mãos cheias sobre toda a cidade. No nosso jardim cantam os rouxinóis e

riem os meninos. As copas das árvores, balouçando com uma ligeira brisa,

refrescam o ambiente aliviando o calor estival. Do céu, azulíssimo, chega


até mim o canto dos pássaros que esvoaçam em redor da casa como

juntando-se ao acontecimento familiar.

Nada perturba o encanto desta música ingénua. unicamente o longínquo

zumbido de um avião que se aproxima pouco a pouco. Mas voa tão alto,

que o ruído dos seus motores não é mais intenso que o dum moscardo.

Que formoso dia! Foi, sem dúvida alguma, o mais feliz de toda a minha

vi...

(A jovem Tokuma interrompeu aqui o seu «diário». Aquele formoso dia

era o 6 de Agosto de 1945 e ela não pôde escrever mais porque um avião

americano, nesse momento, deixou cair a primeira bomba atómica sobre a

sua casa situada no Bairro Alto da cidade de Hiroshima).


O TRUQUE DE CORNÉLIUS

A prestidigitação entusiasma. Há muitos anos que assisto a todos os

espetáculos desta espécie que se celebram na terra onde vivo. E não são

poucos, porque a minha cidade é importante, e frequentemente se renovam

os programas de atrações internacionais. Os circos ambulantes, os teatros e

os cabarets têm largo material para o meu capricho.

Quando algum destes seres habilidosos anuncia a sua aparição, logo

marco o meu lugar. O melhor. Na primeira fila. E tomo-o várias vezes

consecutivas, até descobrir todos os truques do artista.

É o meu passatempo predileto. Com ele não causo prejuízo a ninguém,

porque nunca conto o que descubro. Nem mesmo à minha família. Seria

prejudicar estes simpáticos príncipes da ilusão que fazem passar momentos

tão fascinantes a todos os espetadores. Menos a mim, claro, porque o meu

divertimento não consiste em deixar-me fascinar mas sim em desmontar o

mecanismo que produz a fascinação dos demais.

E posso dizer, sem pecar por imodéstia, que até há pouco tempo

conhecia o truque dos números mais insólitos.

Os cofres mágicos donde saem montes de flores, de trapos e de raparigas

com uma bandeira na mão.


As gaiolas vazias nas quais aparecem e desaparecem aves de diversos

tamanhos e coloridas.

Os chapéus altos, que o simples toque de uma varinha transforma em

baixos repletos de coelhos.

Os bolsinhos e as mangas de inesgotável conteúdo.

Os fundos duplos de todos os recipientes e vasilhas.

Os maleáveis anõezitos capazes de permanecer imóveis no seio de um

jarrão, para surgir no momento oportuno, com a carta que um espetador

escolheu.

Os esconderijos e as argúcias mais inconcebíveis...

Até há pouco tempo, repito, este mundo de inocentes enganos não tinha

segredos para mim. Posso mesmo assegurar, que a minha diversão predileta

começava a aborrecer-me um pouco, à força de conhecer todas as suas

armadilhas.

Até que vi Cornelius.

Anunciava-se como «o Mago de Maguncia». Achei graça àquela

redundância. Reservei uma mesa, junto à pista, no cabaret onde a sua

atuação estava anunciada.


«Deve ser, pensei, um desses artistas medíocres que foi amortizando

com economias o material dos seus truques velhíssimos».

E fui vê-lo sem demasiado entusiasmo. O lugar que Cornelius ocupava

no show não era demasiado airoso. O seu número estava no princípio das

atrações, entre um punhado de garotas que se moviam a compasso de uma

música flamenga, e uma cançonetista que não sabia cantar.

Cornelius apareceu depois dos tíbios aplausos que premiaram o

espernear das raparigas. Era um homem alto, magro, de pele violácea e

fronte encanecida. Metido no seu fraque de bom corte, parecia um diretor

de orquestra sinfónica.

«Tem personalidade, disse para mim, e talvez os seus números não

sejam tão vulgares como supunha.»

Numa mesinha com um pano reluzente que um paquete deixou na pista,

estava todo o material do prestidigitador. Primeiro, com grande clareza, fez

vários exercícios de escamoteio com dois baralhos. Conseguiu assim que a

atenção do público dispersa entre os copos e as conversas, se fosse

concentrando nele. Depois fez desaparecer a água de uma jarra, bolinhas de

celuloide e outros objetos de diversas densidades e volumes.


Porém, nenhum destes jogos de mãos, apesar da destreza e da habilidade

com que foram efetuados, me impressionou. Conhecia o truque de todos,

que vos não revelo para não prejudicar esse honrado grémio que trafica

com a fantasia.

Foi o exercício final de Cornelius que me deixou perplexo. Prestem

atenção, porque vale a pena.

A orquestra que até então oferecera ao prestidigitador uma música de

fundo vulgar, calou-se repentinamente. As baquetas do tambor,

encarregadas sempre de fazer sobressair os momentos culminantes da vida

do artista, empreenderam um rápido rufar.

Todos os focos da sala se concentraram na figura de Cornelius, no meio

da pista. Enquanto a intensidade do tambor aumentava gradualmente,

Cornelius levantou as mangas do fraque até deixar os seus antebraços

completamente desnudados. Cortava assim toda a possibilidade de

esconder qualquer coisa no forro das mangas. A minha mesa, situada a

poucos metros dele, permitia-me observar os seus movimentos com todo o

detalhe.

Então, de uma pequena gaiola pousada entre os seus baralhos, bolas e

demais acessórios, tirou um passarito. Era amarelo e todos podíamos ver

que estava vivo. Esvoaçava entre as suas mãos enquanto fazia um

movimento circular para o mostrar ao público.


Depois Cornelius abriu a boca, meteu nela o animalzinho, e fechou-a. Ao

abri-la de novo, poucos segundos depois, o pássaro tinha desaparecido.

Estalou na sala uma salva de palmas estrondosa, a que uni as minhas até

sentir calor nas mãos. Pela primeira vez, desde há muitos meses, realizava-

se na minha frente um exercício inédito cujo truque fui incapaz de

descobrir!

Os aplausos duraram todo o tempo que Cornelius necessitou para fazer

várias reverências de agradecimento e abandonar a pista airosamente.

Naquela noite dormi mal. O assombroso número de Cornelius despertou

de repente o meu entusiasmo que a repetição constante de truques velhos

tinha adormecido.

Repassei mentalmente todos os procedimentos que sabia serem

empregados para a desaparição de objetos dentro da cavidade bocal. Eu

sabia por exemplo que existem falsas línguas em que se ocultam dez

lâminas de barbear atadas com um cordel. Sabia também que há muitos

objetos suscetíveis de serem escondidos debaixo da língua. Porém um

pássaro é impossível de «camuflar» num céu da boca artificial ou dentro de

um dente molar postiço. Em que momento portanto, e mediante que

velocíssima manipulação, conseguia Cornelius tirar a avezita de entre os

dentes e ocultá-la num bolsinho? Porque era esta a única solução lógica que

me ocorria para explicar tal prodígio!


(Pensei também que talvez o pássaro fosse uma imitação feita com esse

algodão de açúcar que os meninos comem espetado em pausitos. Mas tive

de afastar esta ideia, porque eu mesmo comprovei com os próprios olhos

que o pássaro era autêntico e que esvoaçava cheio de vida entre as mãos de

Cornelius.)

Decidido a descobrir aquele truque fantástico, que zombava de toda a

minha experiência em tão engenhosa matéria, fui no dia seguinte às duas

atuações do excecional prestidigitador. A fim de observar o seu número de

vários pontos sentei-me em mesas distintas e distantes da que ocupara na

noite anterior. Mas estas variações nos meus ângulos de observação não me

deram nenhum resultado: o passarito, tanto na sessão da tarde como na da

noite, desaparecia na boca de Cornelius depois de esvoaçar

inequivocamente ante os olhos de todo o público.

Em vão abri os meus quanto pude para captar alguma leve falha que me

permitisse apoderar do segredo. A manobra, se a houve, foi mais rápida que

meu olhar e continuou a ser um mistério para mim.

Cornelius realizava o trabalho com tanta destreza, que muitos

espetadores não podiam conter um ruidoso «oh» de assombro. E os

aplausos que punham ponto final à sua atuação, eram ensurdecedores.


Nos dias seguintes as pessoas foram acorrendo em doses maciças para

ver o fenómeno. Em vista disso a direção do estabelecimento resolveu

duplicar a duração do contrato em condições duplamente vantajosas.

Não quero que o leitor perca o seu tempo com o relato de todos os shows

que suportei com vontade de adivinhar o truque do maldito pássaro. Basta

saber que todos foram inúteis. Uma atrás de outra fui ocupando todas as

mesas situadas em volta da pista, com o mesmo deprimente resultado.

Poupo-os também à descrição do meu estado de ânimo, que, a cada

fracasso, ia ficando mais sombrio.

Cornelius, é fácil de imaginar, convertera-se num pesadelo para mim. Os

seus antebraços nus, levantados com aquele pássaro amarelo, obcecavam-

me. Perdi peso e confiança. Até que por fim, dando-me por vencido, decidi

visitar Cornelius para lhe suplicar que me livrasse daquela preocupação.

Ao terminar o show da noite, em que obteve o êxito costumado, enviei-

lhe um cartão de visita pelo paquete pedindo-lhe para me receber. Pouco

depois o rapaz regressou e conduziu-me por uma escada incómoda, situada

atrás da orquestra, até aos camarins dos artistas. As raparigas que

sapateavam aquela dança de reminiscências flamengas andavam pelo

corredor. Um corneteiro da orquestra suplente experimentava uma boquilha

de notas desafinadas.

— Entre, convidou-me Cornelius quando cheguei à sua porta.


«O Mago de Magúncia» estava meio despido. Para me receber vestira

um roupão impressionante, de seda carmesim com lapelas negras. Observei

que ao natural era mais calvo do que na pista, e uma peruca encanecida que

vi sobre a mesa, em frente ao espelho, deu-me a explicação. Vi também

que o tom violáceo do rosto era um ardil de maquilhagem para dissimular a

feia cor amarelenta da sua pele.

Cornelius, em resumo, como todos os artistas, perdia bastante ao sair

debaixo da luz dos focos para entrar na sombra da intimidade. Mas não dei

muita importância a esses detalhes. Estava perante um prestidigitador único

no mundo, capaz de assombrar os espetadores mais perspicazes. Assim o

reconheci ao explicar-lhe o motivo da minha visita.

— O senhor é muito amável, disse-me com aquele acento raro, misto de

sul-americano e alemão que têm os artistas internacionais à força de

arrastar as suas línguas pelo mundo.

— Ê a verdade, insisti. Nunca vi um exercício tão perfeito como esse que

o senhor faz com o passarito. E asseguro-lhe que tenho muitas horas de

«voo» ilusionista.

— Tem realmente bom efeito, não é verdade?, sorriu-me com adulação.

— Como ? bom efeito ?, rebati. É sensacional!


Durante alguns minutos mostrei o meu entusiasmo dedicando a

Cornelius as frases mais elogiosas. E ele, sensível ao elogio como noventa

e nove por cento dos artistas, escutava-me satisfeito.

Expliquei-lhe como tinha tentado inutilmente, durante muitas atuações

consecutivas, descobrir o truque mediante o qual conseguia fazer

desaparecer o pássaro. E concluí os meus elogios com estas frases que

acabaram de enternecê-lo:

— Atrevo-me a afirmar que o senhor é um verdadeiro génio. O seu

número é único, e ninguém conseguirá realizá-lo com tanta perfeição.

Cornelius, cujas defesas se desmoronaram debaixo do bombardeio de

amabilidades, teve um momento de enfraquecimento. B confessou-me com

um pouco de tristeza.

— Mas este êxito custa-me muito caro. Os médicos disseram-me que me

resta pouco tempo de vida.

— Porquê ?

— Porque tenho o estômago liquidado. O senhor sabe o que é comer

diariamente vários pássaros crus e vivos, mastigando os ossos, as penas e

tudo o mais?

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