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O barril de Amontillado

Não é minha culpa se Montresor se incomodou com um comentário tão fútil, já que se trata de
alguém tão orgulhoso, deixou-se ferir seu ego facilmente. Os senhores, que conhecem tão bem
a natureza de minha alma, não hão de supor que eu tenha pronunciado qualquer insulto. Mal
sabia eu que tal coisa me custaria a vida.

Claro que nunca duvidaria da boa disposição de Montresor, sendo assim, não imaginaria que
ele seria capaz de tal injúria. Sua confiança era perceptível até então através de seu sorriso.

Eu era um homem a ser respeitado e mesmo temido, me gabava por ser um conhecedor de
vinhos, já que poucos tinham o espírito do virtuose. Montresor não diferia muito de mim,
também era mérito conhecedor das vindimas italianas.

Era um entardecer, no auge da loucura carnavalesca, estava eu a beber copiosamente com um


traje de palhaço, com listras e um chapéu cônico, cheio de guizos. Só depois da minha morte
percebi que a fantasia me caia bem em todos os sentidos.

-Meu caro amigo Fortunato, que sorte encontrá-lo! - disse Montresor apertando fortemente
minha mão - Você parece estar admiravelmente bem. Mas recebi um barril de vinho que passa
por Amontillado e tenho minhas dúvidas.

-Como? Amontillado? Um barril? - questionei - Impossível! Em pleno carnaval?

-Tenho minhas dúvidas, e fui tolo a ponto de pagar por ele sem o consultar primeiro. Mas é
que não consegui encontrá-lo e fiquei com medo de perder um bom negócio.

-Amontillado!

-Tenho minhas dúvidas.

-Amontillado!

-E quero esclarecê-las.

-Amontillado!

-Caso você tenha algum compromisso, vou procurar Luchesi. Se existe alguém de senso crítico,
é ele.

Todos sabiam que Luchesi é incapaz de distinguir um Amontillado de um Sherry, mas


Montresor me provocava propositalmente.

-E, no entanto, alguns tolos diriam que o paladar dele se compara ao seu.

-Não tem necessidade, não há compromisso algum, vamos lá. - repliquei.

-Para onde?

-Para sua adega.

-Não, meu amigo. Não quero abusar da sua boa vontade. Vejo que você está severamente
resfriado. A adega é insuportavelmente úmida. Está cheia de incrustações de salitre.

-Eu insisto. Quando se trata de Amontillado, o resfriado não é nada. Aproveitaram-se de você.
E quanto a Luchesi, ele é incapaz de distinguir um Sherry de um Amontillado.
Montresor apossou-se de meu braço, enquanto coloco uma máscara de seda preta sobre meu
rosto e o envolvo numa roquelaure, me guiando rapidamente ao seu palácio. Lá não haviam
criados, deveriam estar se divertindo.

Tirou duas tochas de seu suporte e me entregou uma delas, me guiando através de várias
séries de quartos até o arco que levava à adega subterrânea. Descemos uma longa e sinuosa
escada, com muito cuidado ao acompanhá-lo. Chegamos ao fim e paramos por um instante,
sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresor.

Os guizos de meu chapéu tilintavam a cada passo.

-O barril.

-Está logo adiante. - disse-me ele. - Mas observe o fino rendilhado que brilha nas paredes dessa
cava.

Virei-me para Montresor com as pupilas dilatadas, que deixaram claro minha embriaguez.

-Salitre? - perguntei.

-Salitre. - replicou. - Há quanto tempo você está com essa tosse?

Impossibilitado de responder, a tosse falou por mim mesmo.

-Cof! Cof! Cof! - Cof! Cof! Cof! - Cof! Cof! Cof! - Cof! Cof! Cof! - Cof! Cof! Cof!

-Não é nada. - não queria parecer vulnerável.

-Venha, vamos voltar; sua saúde é preciosa. Você é rico e respeitado, admirado, amado; é feliz,
como um dia também fui. Sua falta será sentida; a minha, não. Vamos voltar; você ficará
doente e eu não quero responsabilizar-me por isso. Ademais, há Luchesi…

Vindo de Montresor, essas palavras me soaram irônicas.

-Chega - redargui - a tosse não tem importância, não me matará. Não morrerei de uma simples
tosse. - Não imaginaria que me restavam poucos minutos.

-Claro, claro. E na verdade não tive a intenção de alarmá-lo desnecessariamente, mas você
deve tomar todo cuidado. Um trago desse Médoc nos defenderá da umidade.

Retirou uma garrafa de uma longa fileira de outras, semelhantes empilhadas no chão e
quebrou seu gargalo.

-Beba - disse ele oferecendo-me o vinho.

Levei a garrafa aos lábios com o pressentimento de que algo estaria por vir, mas assenti para
ele amigavelmente, enquanto os guizos tilintavam.

-Bebo. Aos mortos que repousam à nossa volta.

-E eu, à sua longa vida.

Desgraçado.

Ele de novo me tomou pelo braço e continuamos.

-Essas cavas são amplas - observei.


-Os Montresor eram uma família grande e numerosa.

-Não me lembro de seu brasão.

-Um enorme pé humano de ouro sobre um campo azul; o pé esmaga uma serpente cujo os
dentes estão encravados no calcanhar.

-E a legenda?

-Nemo me impune lacessit.

-Bom!

Havíamos passado por paredes aterrorizantes, repletas de esqueletos empilhados. Já


podíamos notar o salitre aumentando. Estávamos abaixo do leito do rio. As gotas de umidade
pingavam entre os ossos. E minha tosse só aumentava.

-Venha, voltemos antes que seja tarde demais. Sua tosse…

-Não é nada - repliquei - Continuamos. Mas, antes, outro trago do Médoc.

Estava com sede, esvaziei outra garrafa de De Grâve em um só fôlego. Meus olhos queimavam
com brilho ardente. Atirei a garrafa para cima com um gesto da irmandade. Sabia eu que
Montresor não entenderia. Repeti o movimento.

-Você não compreende?

-Não - respondeu ele.

-Então é porque não pertence à irmandade.

-Como?

-Você não é maçom - disse sem a intenção de me gabar.

-Sim, sim - disse ele. - Sim, sim.

-Você? Impossível! Um maçom?

-Um maçom.

-Dê-me um sinal - pedi.

-Ei-lo - retrucou, extraindo uma colher de pedreiro sob as pregas de sua roquelaure.

-Você graceja! - recuei alguns passos - Mas vamos ao Amontillado.

Assim seja - disse ele guardando a ferramenta sob a capa e, de novo, oferecendo-me o braço e
me apoiei sobre ele. Continuamos nosso caminho à procura do Amontillado. Passamos por
uma série de arcos baixos, descemos, prosseguimos e, descendo novamente, chegamos à uma
cripta profunda, cujo ar confinado enfraquecia a chama de nossas tochas.

Sob a cripta havia outra, menos espaçosa. Uma pilha de despojos humanos cobria suas
paredes, semelhantes às catacumbas de Paris.Três lados da cripta interior estavam assim
ornamentados. No quarto, os ossos pareciam ter sido derrubados ao chão e já haviam
promiscuamente, formando, um monte de alguma altura. Na parede, exposta pela remoção
dos ossos, percebemos ainda mais uma alcova, estava certo eu de que uma pessoa caberia ali.
Tentei esquadrinhar as profundezas da alcova erguendo a tocha de luz mortiça, mas o fraco
clarão não nos permitia ver-lhe o fundo. Deveria eu ter escutado Montresor quando sugeriu
que voltássemos.

-Continue. - disse ele - Aí dentro está o Amontillado. Quanto a Luchesi

É um ignorante - interrompi. Finalmente alcancei a extremidade do nicho, e, encontrando uma


rocha, parei surpreso. Estava atônito demais e nem o reparei algemando-me ao granito.
Haviam dois grampos de ferro distantes um do outro em sentido horizontal. Montresor retirou
a chave do cadeado e saiu do recesso.

Passe a mão nas paredes - só conseguia pensar no que estava a me esperar - não poderá deixar
de sentir o salitre, é muito úmido, na verdade. Meu amigo implorava pelas minhas súplicas,
mas como não me rendi a tal humilhação, foi forçado a me abandonar.

- O Amontillado - disse-lhe ainda não recuperado do espanto.

- Certo - replicou -, o Amontillado.

Montresor apressou-se para concluir seu bendito plano. Bebera do cálice da satisfação que a
vingança lhe proporcionara.

Com a ajuda da colher de pedreiro, começou a emparedar com vigor a entrada no nicho.

Minha embriaguez já havia se dissipado. Até Montresor percebera isso através de meu grito.
Depois permaneci em silêncio, percebendo que ali, era o início do fim da minha vida.

Montresor tinha completo rejubilo por me ver pela primeira vez, completamente inferior a ele.
Somente quando eu cessava de gritar, ele continuava o trabalho, caso ao contrário, sentava
sobre os ossos enquanto me ouvia com maior satisfação. Além de tudo, zombava-me. Seus
gritos ultrapassavam os meus em volume e intensidade. Calei-me. Foram onze camadas. Eu às
tinha contado.

À meia-noite, quando ele pusera a última pedra em seu devido lugar, soltei um riso surdo. Me
negava a acreditar no que estava acontecendo.

- Ha! ha! ha! He! he! he! Boa brincadeira, muito boa, na verdade uma piada excelente.
Daremos boas risadas no palácio, he! he! he!, quando estivermos bebendo nosso vinho, he!
he! he!

- O Amontillado! - disse ele.

- He! he! he! He! he! he! Sim, o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos
esperando no palácio lady Fortunato e os outros? Vamos embora.

- Sim - disse ele -, vamos embora.

- Pelo amor de Deus, Montresor!

- Sim, pelo amor de Deus!

Me encontrava em um beco sem saída, aquele era meu fim. Nunca imaginaria que morreria
sendo alvo de um homem com transtorno de personalidade narcisista.

Gritava meu nome duas vezes, mas eu já não tinha forças para responder.
Estava nauseado pela umidade das catacumbas. Havia ingerido muito salitre e não mais
controlava a respiração. Minha única alternativa era se entregar e me tornar mais um osso nas
catacumbas dos Montresor.

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