1) Fortunato é atraído para as catacumbas sob o pretexto de provar um barril de amontillado
2) À medida que descem mais fundo, Fortunato fica cada vez mais embriagado e doente
3) Montresor prende Fortunato em um nicho nas catacumbas com correntes, deixando-o para morrer
1) Fortunato é atraído para as catacumbas sob o pretexto de provar um barril de amontillado
2) À medida que descem mais fundo, Fortunato fica cada vez mais embriagado e doente
3) Montresor prende Fortunato em um nicho nas catacumbas com correntes, deixando-o para morrer
1) Fortunato é atraído para as catacumbas sob o pretexto de provar um barril de amontillado
2) À medida que descem mais fundo, Fortunato fica cada vez mais embriagado e doente
3) Montresor prende Fortunato em um nicho nas catacumbas com correntes, deixando-o para morrer
Suportei o melhor que pude as incontáveis injúrias de Fortunato, mas
quando ele se pôs a me insultar, jurei vingança. Você, que tão bem co- nhece a natureza de minha alma, decerto não vai supor que anunciei a ameaça em voz alta. Haveria de me vingar um dia; era uma decisão certa e definida — mas a própria certeza que a alicerçava excluía a hi- pótese de riscos. Não haveria apenas de puni-lo, mas iria puni-lo com impunidade. Um mal não pode ser reparado quando a revanche des- trói o agente reparador. O mesmo ocorre quando o vingador fracassa em se apresentar como tal àquele que o maltratou. Quero deixar claro que, nem por palavras ou atos, dei motivos para Fortunato duvidar de minha boa vontade. Continuei, como de costu- me, a sorrir para ele, que jamais percebeu que agora eu sorria imagi- nando sua destruição. Ele tinha um ponto fraco, o Fortunato, embora, sob os demais aspectos, fosse um homem a ser respeitado e até mesmo temido. Orgulhava-se por ser um connoisseur de vinhos. Poucos italianos possuem o espírito legítimo de um especialista. Na maioria das ve- zes, adotam um entusiasmo para atender as demandas de tempo ou de oportunidade a fim de tapear milionários britânicos e austríacos. Em matéria de pinturas e joias, Fortunato, assim como seus compa- triotas, era um engodo; mas, em se tratando de vinhos antigos, pos- suía um conhecimento autêntico. Nesse sentido, não éramos muito diferentes — eu também era versado nas antigas safras italianas e as adquiria em generosa quantidade sempre que possível. Devia ser por volta do crepúsculo, em uma tarde de suprema lou- cura durante o carnaval, que encontrei meu amigo. Abordou-me com excessiva efusividade, pois já tinha bebido em demasia. Estava fanta- siado de arlequim. Usava um traje justo e listrado e trazia, em sua ca- beça, um chapéu cônico com guizos. Fiquei tão contente em vê-lo que pensei que nunca mais pararia de apertar sua mão. — Meu caro Fortunato, que sorte encontrá-lo. E que aparência ex- traordinária tem hoje. Acontece que recebi um barril do que dizem ser amontillado, mas tenho lá minhas dúvidas — falei. — Como? — perguntou ele. — Um barril de amontillado? Impossí- vel! E em plena época de carnaval! — Estava desconfiado, mas fui tolo o bastante para pagar o preço de um amontillado autêntico sem ter consultado o senhor antes sobre o assunto. Não consegui encontrar-lhe e tive medo de perder o que me pareceu um bom negócio. — Amontillado! — Tenho lá as minhas dúvidas. — Amontillado! — E quero esclarecê-las. — Amontillado! — Como você está ocupado, estou indo ver Luchesi. Ele tem um discernimento ímpar sobre essas coisas. Vai me dizer... — Luchesi não sabe distinguir um amontillado de um xerez. — E, mesmo assim, alguns imbecis insistem que o conhecimento dele só rivaliza com o seu. — Está bem, vamos juntos. — Para onde? — Até sua adega. — Meu amigo, de modo algum. Não posso me aproveitar de sua ge- nerosidade. Vejo que tem um compromisso. Luchesi... — Não tenho compromisso algum, vamos. — Meu caro, não. Não é nem pelo compromisso em si, mas pelo resfriado grave que percebo que lhe aflige. Minha adega é de uma umi- dade insuportável. Está toda impregnada de salitre. — Vamos assim mesmo. O resfriado não é grave. Amontillado! Você foi vítima de uma fraude. E quanto a Luchesi, ele não consegue distinguir xerez de amontillado. Assim dizendo, Fortunato tomou meu braço; colocando uma más- cara de seda negra e puxando-me para junto de sua capa, apressou-nos em direção à minha residência. Não havia criado algum em casa; todos debandaram em busca da diversão que tal época festiva oferecia. Eu lhes havia dito que não re- gressaria até a manhã seguinte e dera ordens expressas para não sa- írem de casa. As ordens foram suficientes, como eu bem sabia, para garantir que todos desaparecessem de imediato, assim que eu viras- se as costas. Peguei dos candeeiros duas tochas e, entregando uma para Fortu- nato, conduzi-o por uma sucessão de aposentos até o arco que dava acesso à adega. Desci por uma escadaria longa e sinuosa, rogando que ele me seguisse com cautela. Chegamos, por fim, aos pés da escada e estacamos juntos no solo úmido das catacumbas de minha família, os Montresor. O andar de meu amigo era cambaleante, e os guizos em seu chapéu tilintavam a cada passo. — O barril — disse ele. — Está logo ali em frente — respondi. — Mas observe como relu- zem as teias de aranha nas paredes da caverna. Ele se voltou para mim e fitou-me com olhos embaçados que traí- am, em líquida opacidade, sua embriaguez. — Salitre? — indagou ele, por fim. — Salitre — assenti. — Há quanto tempo você está com essa tosse? — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! Meu pobre amigo não conseguiu me responder por vários minutos. — Não é nada — falou, enfim. — Venha — disse eu, decidido. —Vamos voltar; sua saúde é precio- sa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como um dia já fui. Um homem que fará falta. Por mim, está tudo bem. Vamos voltar; você vai adoecer e não posso ser responsável por isso. Além do mais, tem Luchesi... — Basta — retrucou ele. — Essa tosse não é nada, não vai me matar. Não vou morrer por causa de uma tosse. — Certo, certo — respondi — e, de fato, não tinha a intenção de alarmá-lo à toa. Mas você deve se valer de todos os cuidados. Um gole desse medoc vai nos proteger da umidade. Eu abri então o medoc, que ali descansava em uma longa fileira de garrafas. — Beba — ofereci, estendendo-lhe o vinho. Ele levou a bebida aos lábios com uma expressão lasciva de deleite. Pausou e fez um gesto amigável em minha direção, fazendo tilintar os guizos em sua cabeça. — Um brinde aos mortos que repousam à nossa volta. — Um brinde à sua vida, que há de ser longa. Ele tomou meu braço mais uma vez e seguimos. — Sua adega é enorme. — Os Montresor eram uma família grande e numerosa. — Esqueci-me de seu brasão. — Um pé dourado em um campo azul-celeste; o pé está esmagando uma serpente erguida que crava as presas no calcanhar. — E o lema? — Nemo me impune lacessit.1
1 Em latim no original: “Ninguém me insulta impunemente”.
— Ótimo! — exclamou ele. O vinho faiscou em seus olhos e os guizos tilintaram. Minha pró- pria imaginação abrandou-se com o medoc. Cruzamos longas passa- gens cobertas com esqueletos empilhados, barris e pipas misturados nos mais recônditos confins das catacumbas. Fizemos nova parada e, desta vez, tive a ousadia de segurar Fortunato pelo braço, logo acima do cotovelo. — O salitre! Veja, está mais forte. Paira como musgo aqui na adega. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem pelos ossos. Venha, vamos voltar antes que seja tarde. Sua tosse… — Não é nada, vamos em frente. Mas, antes, outro gole do medoc. Abri um garrafão de De Grave e o ofereci. Ele o esvaziou de uma só vez. Seus olhos ardiam em um intenso fulgor. Então, gargalhou e jo- gou a garrafa para cima, com um gesto que não compreendi. Fitei-o surpreso. Ele repetiu o movimento grotesco. — Não compreende? — indagou. — Não — respondi. — Então não é da irmandade. — Como? — Não é da maçonaria. — Sou, sou — declarei. — Sou, sim. — Você? Maçom? Impossível! — Maçom — insisti. — Um sinal — pediu ele. — Um sinal. — Aqui está — respondi, retirando das dobras de minha capa uma espátula de aço. — Você está brincando! — exclamou, recuando alguns passos. — Vamos ao amontillado. — Vamos — concordei, guardando a ferramenta dentro da capa e oferecendo-lhe o braço. Ele se apoiou com todo o peso em mim. Continuamos o percurso em busca do vinho. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, prosseguimos caminhando, descemos mais um pouco e chegamos, por fim, a uma cripta profunda, onde a podri- dão do ar fez com que nossas tochas brilhassem sem queimar. Na extremidade mais longínqua da cripta, havia outra, menos es- paçosa. Em suas paredes perfilavam-se restos humanos, empilhados até o teto, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três faces des- sa cripta interior ainda estavam ornamentadas dessa forma. Na quar- ta, os ossos haviam sido arrancados e jaziam espalhados no chão, for- mando uma pilha considerável. Na parede exposta pela remoção dos ossos, encontramos uma cripta ainda mais recôndita, com aproxi- madamente um metro e vinte de profundidade, um metro de largura e quase dois de altura. Não parecia ter sido construída com utilidade alguma, apenas para compor um intervalo entre os dois pilares colos- sais que sustentavam o teto das catacumbas, e era vedada por uma de suas paredes circundantes de granito sólido. Foi vã a tentativa de Fortunato, erguendo sua tocha quase apagada, de tentar vasculhar a profundidade do nicho. A chama débil não nos permitia enxergar seu fim. — Vamos seguir adiante — falei. — O amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi... — Ele é um ignorante — interrompeu meu amigo, avançando em passos trôpegos enquanto eu o seguia logo atrás. Fortunato, tendo percebido que alcançara a extremidade do nicho e notando que uma rocha o impedia de continuar, estacou em beócia estupefação. Bas- tou-me um instante para acorrentá-lo à parede de granito. Em sua superfície, havia duas alças de ferro em posição horizontal, distantes aproximadamente sessenta centímetros uma da outra. De uma delas, pendia uma corrente curta; da outra, um cadeado. Em questão de se- gundos, passei a corrente pela cintura dele e prendi o cadeado. Ele fi- cou muito surpreso para resistir. Recolhendo a chave, saí do nicho. — Passe a mão na parede — disse eu. — É impossível não sentir o salitre. De fato, é muito úmido. Mais uma vez, suplico para que retor- ne. Não quer? Então, devo deixá-lo. No entanto, antes, vou conceder- -lhe todas as cortesias que estiverem ao meu alcance. — O amontillado! — exclamou ele, que ainda não se recuperara de sua perplexidade. — De fato — respondi. — O amontillado. Com essas palavras, pus-me a revirar a pilha de ossos que mencio- nei há pouco. Deitando-as de lado, logo alcancei um suprimento de pedras e cimento. Com esses materiais e o auxílio da espátula, come- cei a emparedar a entrada do nicho. Mal completara a primeira fileira de tijolos quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O pri- meiro indício foi um grito gutural e plangente, vindo das profundezas do nicho. “Não!” era o choro do bêbado. Então, fez-se um longo e obstinado silêncio. Assentei a segunda fileira, depois a terceira e a quarta; foi então que ouvi as vibrações furiosas da corrente. O barulho prosseguiu por vá- rios minutos, durante os quais interrompi a tarefa e sentei-me sobre os ossos, a fim de ouvi-lo com mais satisfação. Quando o som, por fim, ces- sou, apanhei a espátula e terminei, sem novas paradas, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede estava quase atingindo o nível de meu peito. Fiz mais uma pausa e, erguendo a tocha por cima da parede, lancei uma claridade precária na figura lá dentro enclausurada. Uma sucessão de gritos lancinantes, brotando de repente da gar- ganta dele, pareceu empurrar-me com violência para trás. Por um mo- mento, hesitei, trêmulo. Desembainhando a espada, pus-me a desferir golpes a esmo no nicho; mas logo restabeleci a calma. Pousei a mão sobre o sólido material das catacumbas e me senti satisfeito. Aproxi- mei-me da parede mais uma vez e respondi aos gritos que de lá pro- vinham. Dupliquei-os em ecos, auxiliei-os e sobrepujei-os em volume e potência. Logo, o clamante ficou em silêncio. Já se aproximava da meia-noite, e minha tarefa chegava ao fim. Completara a oitava, a nova e a décima fileiras. Terminara uma par- te da última, a décima primeira; faltava apenas uma única pedra a ser encaixada e cimentada. Custei a erguê-la por causa de seu peso; ajus- tei-a parcialmente em sua posição. Então, uma gargalhada abafada, vinda de dentro do nicho, arrepiou-me dos pés à cabeça. Foi sucedida por uma voz de lamúria que quase não pude reconhecer como sendo do nobre Fortunato. Ela disse: — Ha! Ha! Ha! He! He! Uma ótima piada, de fato; uma excelente pilhéria. Vamos rir bastante nos lembrando disso no palazzo! He! He! He! Enquanto tomamos nosso vinho! He! He! He! — O amontillado! — exclamei. — He! He! He! He! He! He! Sim, o amontillado. Mas não está fican- do tarde? Será que não estão nos esperando, a senhora Fortunato e os demais? É melhor irmos embora. — Sim — respondi. — Vamos embora. — Pelo amor de Deus, Montresor! — Sim — repeti. — Pelo amor de Deus! Esperei em vão que ele me respondesse. Impaciente, chamei: — Fortunato! Nenhuma resposta. Voltei a chamá-lo: — Fortunato! Silêncio. Empurrei minha tocha pela abertura restante e dei- xei-a cair lá dentro. O tilintar dos guizos foi a única resposta. Senti um aperto no peito; decerto, causado pela umidade das catacumbas. Apressei-me para concluir a tarefa. Empurrei a derradeira pedra na posição definitiva e a cobri com cimento. Por cima da parede recém- -erguida, repus a muralha de ossos. Por meio século, nenhum mortal as perturbou. In pace requiescat!2