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Tradução

MARCIA HELOISA

Ilustrações
RAMON RODRIGUES

Volume 1
O BARRIL
de
AMONTILLADO

1846

Suportei o melhor que pude as incontáveis injúrias de Fortunato, mas


quando ele se pôs a me insultar, jurei vingança. Você, que tão bem co-
nhece a natureza de minha alma, decerto não vai supor que anunciei
a ameaça em voz alta. Haveria de me vingar um dia; era uma decisão
certa e definida — mas a própria certeza que a alicerçava excluía a hi-
pótese de riscos. Não haveria apenas de puni-lo, mas iria puni-lo com
impunidade. Um mal não pode ser reparado quando a revanche des-
trói o agente reparador. O mesmo ocorre quando o vingador fracassa
em se apresentar como tal àquele que o maltratou.
Quero deixar claro que, nem por palavras ou atos, dei motivos para
Fortunato duvidar de minha boa vontade. Continuei, como de costu-
me, a sorrir para ele, que jamais percebeu que agora eu sorria imagi-
nando sua destruição.
Ele tinha um ponto fraco, o Fortunato, embora, sob os demais
aspectos, fosse um homem a ser respeitado e até mesmo temido.
Orgulhava-se por ser um connoisseur de vinhos. Poucos italianos
possuem o espírito legítimo de um especialista. Na maioria das ve-
zes, adotam um entusiasmo para atender as demandas de tempo ou
de oportunidade a fim de tapear milionários britânicos e austríacos.
Em matéria de pinturas e joias, Fortunato, assim como seus compa-
triotas, era um engodo; mas, em se tratando de vinhos antigos, pos-
suía um conhecimento autêntico. Nesse sentido, não éramos muito
diferentes — eu também era versado nas antigas safras italianas e as
adquiria em generosa quantidade sempre que possível.
Devia ser por volta do crepúsculo, em uma tarde de suprema lou-
cura durante o carnaval, que encontrei meu amigo. Abordou-me com
excessiva efusividade, pois já tinha bebido em demasia. Estava fanta-
siado de arlequim. Usava um traje justo e listrado e trazia, em sua ca-
beça, um chapéu cônico com guizos. Fiquei tão contente em vê-lo que
pensei que nunca mais pararia de apertar sua mão.
— Meu caro Fortunato, que sorte encontrá-lo. E que aparência ex-
traordinária tem hoje. Acontece que recebi um barril do que dizem ser
amontillado, mas tenho lá minhas dúvidas — falei.
— Como? — perguntou ele. — Um barril de amontillado? Impossí-
vel! E em plena época de carnaval!
— Estava desconfiado, mas fui tolo o bastante para pagar o preço
de um amontillado autêntico sem ter consultado o senhor antes sobre
o assunto. Não consegui encontrar-lhe e tive medo de perder o que me
pareceu um bom negócio.
— Amontillado!
— Tenho lá as minhas dúvidas.
— Amontillado!
— E quero esclarecê-las.
— Amontillado!
— Como você está ocupado, estou indo ver Luchesi. Ele tem um
discernimento ímpar sobre essas coisas. Vai me dizer...
— Luchesi não sabe distinguir um amontillado de um xerez.
— E, mesmo assim, alguns imbecis insistem que o conhecimento
dele só rivaliza com o seu.
— Está bem, vamos juntos.
— Para onde?
— Até sua adega.
— Meu amigo, de modo algum. Não posso me aproveitar de sua ge-
nerosidade. Vejo que tem um compromisso. Luchesi...
— Não tenho compromisso algum, vamos.
— Meu caro, não. Não é nem pelo compromisso em si, mas pelo
resfriado grave que percebo que lhe aflige. Minha adega é de uma umi-
dade insuportável. Está toda impregnada de salitre.
— Vamos assim mesmo. O resfriado não é grave. Amontillado!
Você foi vítima de uma fraude. E quanto a Luchesi, ele não consegue
distinguir xerez de amontillado.
Assim dizendo, Fortunato tomou meu braço; colocando uma más-
cara de seda negra e puxando-me para junto de sua capa, apressou-nos
em direção à minha residência.
Não havia criado algum em casa; todos debandaram em busca da
diversão que tal época festiva oferecia. Eu lhes havia dito que não re-
gressaria até a manhã seguinte e dera ordens expressas para não sa-
írem de casa. As ordens foram suficientes, como eu bem sabia, para
garantir que todos desaparecessem de imediato, assim que eu viras-
se as costas.
Peguei dos candeeiros duas tochas e, entregando uma para Fortu-
nato, conduzi-o por uma sucessão de aposentos até o arco que dava
acesso à adega. Desci por uma escadaria longa e sinuosa, rogando que
ele me seguisse com cautela. Chegamos, por fim, aos pés da escada
e estacamos juntos no solo úmido das catacumbas de minha família,
os Montresor.
O andar de meu amigo era cambaleante, e os guizos em seu chapéu
tilintavam a cada passo.
— O barril — disse ele.
— Está logo ali em frente — respondi. — Mas observe como relu-
zem as teias de aranha nas paredes da caverna.
Ele se voltou para mim e fitou-me com olhos embaçados que traí-
am, em líquida opacidade, sua embriaguez.
— Salitre? — indagou ele, por fim.
— Salitre — assenti. — Há quanto tempo você está com essa tosse?
— Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof! Cof! — Cof! Cof!
Cof! — Cof! Cof! Cof!
Meu pobre amigo não conseguiu me responder por vários minutos.
— Não é nada — falou, enfim.
— Venha — disse eu, decidido. —Vamos voltar; sua saúde é precio-
sa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como um
dia já fui. Um homem que fará falta. Por mim, está tudo bem. Vamos
voltar; você vai adoecer e não posso ser responsável por isso. Além do
mais, tem Luchesi...
— Basta — retrucou ele. — Essa tosse não é nada, não vai me matar.
Não vou morrer por causa de uma tosse.
— Certo, certo — respondi — e, de fato, não tinha a intenção de
alarmá-lo à toa. Mas você deve se valer de todos os cuidados. Um gole
desse medoc vai nos proteger da umidade.
Eu abri então o medoc, que ali descansava em uma longa fileira
de garrafas.
— Beba — ofereci, estendendo-lhe o vinho.
Ele levou a bebida aos lábios com uma expressão lasciva de deleite.
Pausou e fez um gesto amigável em minha direção, fazendo tilintar os
guizos em sua cabeça.
— Um brinde aos mortos que repousam à nossa volta.
— Um brinde à sua vida, que há de ser longa.
Ele tomou meu braço mais uma vez e seguimos.
— Sua adega é enorme.
— Os Montresor eram uma família grande e numerosa.
— Esqueci-me de seu brasão.
— Um pé dourado em um campo azul-celeste; o pé está esmagando
uma serpente erguida que crava as presas no calcanhar.
— E o lema?
— Nemo me impune lacessit.1

1 Em latim no original: “Ninguém me insulta impunemente”.


— Ótimo! — exclamou ele.
O vinho faiscou em seus olhos e os guizos tilintaram. Minha pró-
pria imaginação abrandou-se com o medoc. Cruzamos longas passa-
gens cobertas com esqueletos empilhados, barris e pipas misturados
nos mais recônditos confins das catacumbas. Fizemos nova parada e,
desta vez, tive a ousadia de segurar Fortunato pelo braço, logo acima
do cotovelo.
— O salitre! Veja, está mais forte. Paira como musgo aqui na adega.
Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem pelos ossos.
Venha, vamos voltar antes que seja tarde. Sua tosse…
— Não é nada, vamos em frente. Mas, antes, outro gole do medoc.
Abri um garrafão de De Grave e o ofereci. Ele o esvaziou de uma só
vez. Seus olhos ardiam em um intenso fulgor. Então, gargalhou e jo-
gou a garrafa para cima, com um gesto que não compreendi.
Fitei-o surpreso. Ele repetiu o movimento grotesco.
— Não compreende? — indagou.
— Não — respondi.
— Então não é da irmandade.
— Como?
— Não é da maçonaria.
— Sou, sou — declarei. — Sou, sim.
— Você? Maçom? Impossível!
— Maçom — insisti.
— Um sinal — pediu ele. — Um sinal.
— Aqui está — respondi, retirando das dobras de minha capa uma
espátula de aço.
— Você está brincando! — exclamou, recuando alguns passos. —
Vamos ao amontillado.
— Vamos — concordei, guardando a ferramenta dentro da capa
e oferecendo-lhe o braço. Ele se apoiou com todo o peso em mim.
Continuamos o percurso em busca do vinho. Passamos por uma série
de arcos baixos, descemos, prosseguimos caminhando, descemos mais
um pouco e chegamos, por fim, a uma cripta profunda, onde a podri-
dão do ar fez com que nossas tochas brilhassem sem queimar.
Na extremidade mais longínqua da cripta, havia outra, menos es-
paçosa. Em suas paredes perfilavam-se restos humanos, empilhados
até o teto, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três faces des-
sa cripta interior ainda estavam ornamentadas dessa forma. Na quar-
ta, os ossos haviam sido arrancados e jaziam espalhados no chão, for-
mando uma pilha considerável. Na parede exposta pela remoção dos
ossos, encontramos uma cripta ainda mais recôndita, com aproxi-
madamente um metro e vinte de profundidade, um metro de largura
e quase dois de altura. Não parecia ter sido construída com utilidade
alguma, apenas para compor um intervalo entre os dois pilares colos-
sais que sustentavam o teto das catacumbas, e era vedada por uma de
suas paredes circundantes de granito sólido.
Foi vã a tentativa de Fortunato, erguendo sua tocha quase apagada,
de tentar vasculhar a profundidade do nicho. A chama débil não nos
permitia enxergar seu fim.
— Vamos seguir adiante — falei. — O amontillado está aí dentro.
Quanto a Luchesi...
— Ele é um ignorante — interrompeu meu amigo, avançando em
passos trôpegos enquanto eu o seguia logo atrás. Fortunato, tendo
percebido que alcançara a extremidade do nicho e notando que uma
rocha o impedia de continuar, estacou em beócia estupefação. Bas-
tou-me um instante para acorrentá-lo à parede de granito. Em sua
superfície, havia duas alças de ferro em posição horizontal, distantes
aproximadamente sessenta centímetros uma da outra. De uma delas,
pendia uma corrente curta; da outra, um cadeado. Em questão de se-
gundos, passei a corrente pela cintura dele e prendi o cadeado. Ele fi-
cou muito surpreso para resistir. Recolhendo a chave, saí do nicho.
— Passe a mão na parede — disse eu. — É impossível não sentir
o salitre. De fato, é muito úmido. Mais uma vez, suplico para que retor-
ne. Não quer? Então, devo deixá-lo. No entanto, antes, vou conceder-
-lhe todas as cortesias que estiverem ao meu alcance.
— O amontillado! — exclamou ele, que ainda não se recuperara de
sua perplexidade.
— De fato — respondi. — O amontillado.
Com essas palavras, pus-me a revirar a pilha de ossos que mencio-
nei há pouco. Deitando-as de lado, logo alcancei um suprimento de
pedras e cimento. Com esses materiais e o auxílio da espátula, come-
cei a emparedar a entrada do nicho.
Mal completara a primeira fileira de tijolos quando descobri que
a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O pri-
meiro indício foi um grito gutural e plangente, vindo das profundezas do
nicho. “Não!” era o choro do bêbado. Então, fez-se um longo e obstinado
silêncio. Assentei a segunda fileira, depois a terceira e a quarta; foi então
que ouvi as vibrações furiosas da corrente. O barulho prosseguiu por vá-
rios minutos, durante os quais interrompi a tarefa e sentei-me sobre os
ossos, a fim de ouvi-lo com mais satisfação. Quando o som, por fim, ces-
sou, apanhei a espátula e terminei, sem novas paradas, a quinta, a sexta
e a sétima fileiras. A parede estava quase atingindo o nível de meu peito.
Fiz mais uma pausa e, erguendo a tocha por cima da parede, lancei uma
claridade precária na figura lá dentro enclausurada.
Uma sucessão de gritos lancinantes, brotando de repente da gar-
ganta dele, pareceu empurrar-me com violência para trás. Por um mo-
mento, hesitei, trêmulo. Desembainhando a espada, pus-me a desferir
golpes a esmo no nicho; mas logo restabeleci a calma. Pousei a mão
sobre o sólido material das catacumbas e me senti satisfeito. Aproxi-
mei-me da parede mais uma vez e respondi aos gritos que de lá pro-
vinham. Dupliquei-os em ecos, auxiliei-os e sobrepujei-os em volume
e potência. Logo, o clamante ficou em silêncio.
Já se aproximava da meia-noite, e minha tarefa chegava ao fim.
Completara a oitava, a nova e a décima fileiras. Terminara uma par-
te da última, a décima primeira; faltava apenas uma única pedra a ser
encaixada e cimentada. Custei a erguê-la por causa de seu peso; ajus-
tei-a parcialmente em sua posição. Então, uma gargalhada abafada,
vinda de dentro do nicho, arrepiou-me dos pés à cabeça. Foi sucedida
por uma voz de lamúria que quase não pude reconhecer como sendo
do nobre Fortunato. Ela disse:
— Ha! Ha! Ha! He! He! Uma ótima piada, de fato; uma excelente
pilhéria. Vamos rir bastante nos lembrando disso no palazzo! He! He!
He! Enquanto tomamos nosso vinho! He! He! He!
— O amontillado! — exclamei.
— He! He! He! He! He! He! Sim, o amontillado. Mas não está fican-
do tarde? Será que não estão nos esperando, a senhora Fortunato e os
demais? É melhor irmos embora.
— Sim — respondi. — Vamos embora.
— Pelo amor de Deus, Montresor!
— Sim — repeti. — Pelo amor de Deus!
Esperei em vão que ele me respondesse. Impaciente, chamei:
— Fortunato!
Nenhuma resposta. Voltei a chamá-lo:
— Fortunato!
Silêncio. Empurrei minha tocha pela abertura restante e dei-
xei-a cair lá dentro. O tilintar dos guizos foi a única resposta. Senti
um aperto no peito; decerto, causado pela umidade das catacumbas.
Apressei-me para concluir a tarefa. Empurrei a derradeira pedra na
posição definitiva e a cobri com cimento. Por cima da parede recém-
-erguida, repus a muralha de ossos. Por meio século, nenhum mortal
as perturbou. In pace requiescat!2

2 Em latim no original: “Descanse em paz!”.

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