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FINA D’ARMADA
INTRODUÇÃO
Não sei se as heroínas selecionadas para esta obra serão heroínas para
toda a gente. Mas são as “minhas” heroínas, aquelas que considero
valorosas em nosso tempo.
Heroínas são, para mim, mulheres que fizeram algo fora do comum,
novo, digno de registo, que provocou transformações sociais e mudanças
de mentalidade. Estão ligadas à vida, à mudança, nunca à morte. São
aquelas que superaram a tragédia ou estigma de terem nascido do sexo
feminino. As que vieram ao mundo para pôr em causa esse mesmo mundo.
As que romperam o próprio conceito de sagrado que até esse tem sido
masculino. Assim, uma moça de Coimbra foi morta pela Inquisição, porque
não era filha amada de Deus como sempre lhe disseram. Ela atreveu-se a
ser representante Dele na terra e ser padre jesuíta durante 18 anos.
Também houve mulheres que descobriram que, afinal, não eram filhas
dos homens. Estes, os que tinham poder, em vez de as tomarem felizes,
como filhas amadas, serviram-se delas, roubando-lhes os filhos e bens, e
nas leis destinaram-lhes apenas proibições. Rompendo essas proibições,
não cumprindo o determinado pelos senhores, o que exigiu sempre
coragem e sofrimento, eis as novas heroínas!
E vai ser esta morte, por ironia do destino, que irá tornar a filha D.
Leonor de Menezes uma das mulheres com poder na nossa História.
Leonor não obedece a cânone nenhum do seu tempo. Tudo era contra
ela. Nasceu mulher numa época em que isso era um estigma. Não era a
primogénita. Não foi mãe. Não tinha dote para casar com um grande do
reino. Em contrapartida, não precisou nem de casamento nem de convento
para sobreviver e ter poder. Era inteligente, culta, sabia governar, admirava
as letras e as artes, era ela que preparava as galeotas na doença do pai
(mandou preparar duas e escreveu ao irmão Duarte que estava na conquista
de Tânger para vir assistir aos últimos momentos do governador), as suas
capacidades eram admiradas por todos. Acabou por casar com cerca de 40
anos — pasme-se — com um jovem de dezassete. Até nisto foi contra
todos os cânones. E não foi com um jovem aventureiro qualquer — casou
com o futuro Duque de Bragança, um dos homens mais poderosos do reino,
a quem D. João II mandará cortar a cabeça.
A sua ação deve ter começado por volta de 1430. Nesse ano faleceu a
sua madrasta Beatriz Coutinho e o pai ficou sem cabeça para governar. A
filha tomou conta do governo, sobretudo da parte financeira. Em 1432, D.
Pedro veio ao reino, ficando o filho Duarte «por capitão em seu lugar», e
«deixando por Governador da Fazenda Dona Leonor sua filha, de cujo siso
e descrição ele muito se fiava»1. D. Pedro por cá ficou dois anos, assistindo
à tomada de posse do rei D. Duarte, regressando já casado com Genebra.
Na ausência do pai, a filha não só governara bem a praça como lhe ofertara
ainda um lindo navio. Diz Zurara:
Achou seu pai toda sua fazenda mui bem aproveitada, sem escândalo de
nenhuma pessoa, nem carrego de consciência, e sobretudo achou uma
galeota feita de dezasseis bancos muito nobremente obrada; e assim das
cavalarias do filho, como da boa descrição da filha, o conde era muito
alegre e folgava muito quando lhe nisso falavam as gentes, as quais coisas
não podia ouvir sem lágrimas.
D. Genebra foi uma capitoa de Ceuta sem história e deve ter vivido
amargurada. Por um lado, o marido não esquecia a outra esposa, pedindo à
filha que o enterrasse com ela, qual Pedro e Inês. Por outro, essa filha
Leonor continuou com «a fazenda do padre em poder e tudo passava por
sua mão».
Esse Judeu era médico e fora a filha Beatriz que lho mandara de Lisboa.
O pai estava decaído e doente, porque segundo Zurara, «era homem cheio
de carne e um pouco destemperado no auto das mulheres». Uma vez em
Ceuta, o médico judeu, ao presenciar as capacidades de Leonor, mudou de
ideias e passou a defender que a capitania devia passar para ela. Zurara
aproveita para dar a sua opinião, fala da «mesquinhada inveja» de D.
Leonor e quanto ao Mestre José «já vedes como Judeus se sabem meter».
Acrescenta que a governadora da Fazenda «ora fosse por conselho do
Judeu, ou doutro, ou de si mesma, trabalhava quanto podia para abater seu
irmão e assim em Ceuta como em Portugal».
Acabaram por convencer o Conde, que mais uma vez muda de ideias,
pedindo agora a capitania para a filha Leonor. Zurara classifica a natureza
de D. Pedro de «mudáveis propósitos», porque «nascera em signo de dois
corpos na triplicidade do fogo». A astrologia era ciência reconhecida, nesse
tempo.
Quase seiscentos anos depois, foi a minha vez de fazer uma viagem.
Enfrentei o vento não de barco, mas de carro. Não até Ceuta, mas até
Santarém. Procurei a linda Igreja da Graça, um inspirado poema em pedra.
E eis-me perante os rostos de duas das nossas primeiras viajantes.
Ela foi desenhada de mãos postas, como era tradição. Mas à madrasta,
quando era ela a determinar, colocou-lhe um livro na mão.
Dado em Roma, junto de São Pedro, sob o Anel de Pescador, no dia XIX
de Junho da Era de CCCCLXXV, quarto ano do nosso pontificado (Papa
Sixto IV)
Pensei que tinha visto mal e deu-me para folhear, página sobre página,
ler e reler os nomes. Talvez na palavra Isabel viesse a irmã do Infante que
custeou a vinda de dois mil flamengos para colonizar os Açores, ou Isabel a
Católica (só vinha reis católicos)... Talvez nos assuntos... Talvez houvesse
a entrada «Misericórdias» e aí se falasse da rainha Leonor, mas não
aparecia a palavra «Misericórdias». Procurei ainda o nome de mulheres que
tinham sido mães de homens importantes... mas até o rei D. Manuel I era só
filho do Infante D. Fernando.
1 — À MÃO DE SEMEAR
2 — A BULA DO PAPA
Propus-me então buscar a tradução, dado que o meu latim é muito fraco.
Nunca encontrei. Acabei por entregar essa tradução a Henrique Ferreira, da
vila de Fânzeres, Gondomar. Henrique entregou-me esta tradução:
E que, logo em seguida, o Rei fez-Nos saber, pelo dileto filho João de
Sousa, soldado da Ordem de São Tiago, a Nós enviado como seu Porta-
voz, que, estando impedido por muitos outros árduos e legítimos negócios,
não podia aceitar tal cargo, nem receber para si, como havíamos confiado,
o governo do referido Mestrado. Por isso, pelo mencionado Porta-voz, tudo
ele repunha nas Nossas mãos, suplicando que Nos dignássemos confiar
inteiramente a ti este governo, com todas as suas faculdades.
A Infanta Beatriz era filha do Infante João, por sua vez filho de D. João I
e de D. Filipa de Lencastre. Pelo lado da mãe, Beatriz era neta do Io Duque
de Bragança e bisneta de D. Nuno Alvares Pereira.
Beatriz não gostava de coisas dúbias. O mais certo era D. Afonso V nem
fazer, devido a outros compromissos, nem deixar fazer. E em 1474, quando
D. Afonso V se começou a interessar pelo trono de Castela, após a morte
do rei desse reino, e quis casar com a herdeira, a Excelente Senhora ou a
Beltraneja, ela pede-lhe que passe a tutoria do governo da Ordem de Cristo
para dois homens — para o Vigário de Tomar e para o alcaide-mor do seu
castelo. D. Afonso V faz isso a 24 de Abril de 1475.
Entretanto, algo se deve ter passado. Ou eles não aceitaram ou o rei não
tinha esse poder, pois pertencia ao papa, ou, o que é mais provável, D.
Beatriz fez diplomacia paralela. O certo é que D. Afonso V, ao ver que não
podia atender a tudo e talvez cansado das insistências dela, também pediu
ao papa que o governo passasse para a Infanta Beatriz. E isso que diz a
“bula” que dá a Beatriz o governo do Mestrado de Cristo. De fins de Abril
a Junho, vai pouco tempo para negociações entre Portugal e Roma, porque
as viagens eram longas e os papas não atendiam logo, também demoravam
a tomar decisões. As negociações deviam ter começado antes de Abril.
Ela não governa em nome dos filhos, como se pensaria, mas aparece nos
documentos: «me praz que ele a reparta...», «eu lhe não dar mais espaço
algum». Ela não estava como os governadores anteriores preocupada em
matar Mouros, conquistar praças africanas, em privilegiar gente bem-
nascida, em pagar favores... mas em administrar devidamente as terras
descobertas. Foi uma administradora moderna, preocupada com os povos.
No Livro dos Místicos, aparecem muitos documentos em que ela consegue
dos reis privilégios para os seus lavradores, os seus carniceiros, os seus
capelães, os seus artesãos, e até para Mouros de Anafé, praça conquistada
pelo marido.
Mas o seu grande feito terá sido mandar os seus marinheiros para
Ocidente. O historiador Gaspar Frutuoso diz que chegaram à Terra Nova. O
certo é que recompensou João Vaz Corte Real, que era um homem de sua
casa, mais o seu companheiro Álvaro Martins Homem, por viagens que
eles fizeram para Ocidente. Em 1474, dividiu a ilha Terceira em duas
capitanias, dando a da Praia a Álvaro Martins e a de Angra a João Vaz
Corte Real.
E conclui Manuel Arruda: «esta ilha que se viu através de Cabo Verde,
poderá dizer-se, em linguagem atual, que era uma ilha que estava no
mesmo paralelo da de Santiago e só as poderia haver na América Central,
nas Antilhas».
Mas a sua maior inovação e pioneirismo será ter co-elaborado, como
governadora da Ordem de Cristo, o primeiro tratado de globalização do
mundo.
Como o nosso rei D. Afonso V, pai de D. João II, estava viúvo, casou
com a Excelente Senhora, verdadeira herdeira de Castela. Só que se
puseram à espera da dispensa do Papa, porque era tio e sobrinha.
Por isso, era preciso encontrar uma solução, não podiam andar em guerra
permanente em terra e no mar.
Devem ter estendido um mapa sobre uma mesa. Devem ter trocado os
maiores saberes, os mais secretos. Os segredos antigos dos Templários
devem ter saído da boca da governadora, sussurrados para nenhum cronista
nem as paredes ouvirem. Era o auge do sigilo. Ela deve ter dito que os seus
marinheiros tinham descoberto ilhas a ocidente, que Cristóvão Colombo
descobrirá 20 anos depois. Era inevitável, porque as correntes do Atlântico
Norte moviam-se como os ponteiros dum relógio, em círculo da direita
para a esquerda.
Talvez o continente do Brasil tivesse vindo à baila. A Terra Nova
também, pois dois anos antes o próprio Cristóvão Colon por lá andara...
«Eu naveguei no ano de 1477, no mês de Fevereiro, ultra Tile, ilha, cem
léguas... e não está dentro da linha que inclui o Ocidente, como diz
Ptolomeu, mas muito mais a ocidente. E esta ilha é tão grande como a
Inglaterra...» — escreve Cristóvão Colon. Devem ter demorado dias,
consultado o travesseiro. Nada podiam esquecer. Ficara decidido que o
mundo seria dividido por uma linha horizontal, a sul das Canárias, mais ou
menos pelo paralelo 27. A Norte ficaria para Castela. A Sul para Portugal.
3. Esta divisão não salvaguardava bem a índia, que não se sabia se ficava
a norte ou sul do paralelo 27, a tal ponto que D. João II mudará o tratado
para o de Tordesilhas.
A Infanta D. Beatriz não aparece aqui nesta divisão do mundo por acaso.
Ela encabeçará a delegação portuguesa porque era a Governadora da
Ordem de Cristo. Também era administradora de ilhas nos Açores e na
Madeira.
Nesta divisão, a perspetiva que sobressai é a que considera as Antilhas
importantes, a de Tordesilhas considera o caminho da índia. E pelo tratado
de Tordesilhas todos aceitam que D. João II sabia da existência do Brasil, é
lógico que, pelo Tratado de Alcáçovas, Portugal sabia da existência das
Antilhas.
Era uma moça de 17 anos, neta do nosso rei D. Duarte. E foi assim que o
velho D. Afonso V, que apesar de rei já pouco riscava, perdido em sonhos
de união ibérica, ficou sem mulher no leito e sem trono em Castela.
7 — O TRATADO DE ALCÁÇOVAS
8 — A HERDEIRA IMOLADA
Ora, foi aí que Beatriz lhe ofereceu o trono e o trono de Castela valia
tudo que Castela eventualmente perdia. Quem diria! Uma mulher, uma
mulher de Portugal é que segurou o trono de Isabel a Católica!
João II e a filha de Isabel para Moura e proibiu os pais de vê-los para que
se cumprisse o tratado. Durante 2 anos, quatro meses e cinco dias, a Infanta
D. Beatriz mandou em reis, aprisionando-lhes os filhos. Curiosamente deu
certo. A paz acabou por imperar.
Havendo nós informação que o dito mice António foi o primeiro que a
dita lha achou e começou de povoar nos prouve de fazer mercê da dita
capitania a dona Branca de Aguiar, sua filha, para ser capitão quem com
ela casai, o qual casamento ela há de fazer com aquela pessoa que lhe nós
para isso escolhermos.
AS PRIMEIRAS NAVEGANTES
CAPÍTULO I
Talvez Filipa tivesse casado por procuração, tal como acontecerá com
sua prima e noiva sucessora. A seguir partiu ao encontro do esposo que
estava em Ceuta. Ele era viúvo, mas não teria sido inconsolável, pois tinha
três filhos de uma moça da sua casa.
Embora Zurara não nos indique o nome da mãe, os três eram filhos de
Isabel Domingues, a Pessegueira. Possivelmente devem ter embarcado
servidoras com estas meninas nobres. Aconteceu a seguir ao segundo cerco
de Ceuta que dizem ter acontecido em 1419. Todavia no túmulo de D.
Margarida, esposa de D. Pedro de Menezes, na Igreja da Graça de
Santarém, aparece a data de 1420, como tendo morrido nesse ano. É
importante esta data, porque só após essa morte é que partiram as primeiras
navegantes que irão fazer “modificações” históricas no novo espaço
português.
Ninguém nos diz o que aconteceu ao corpo da noiva. Deve ter sido
lançado ao mar. O certo é que a viagem prosseguiu e as filhas é filho do
governador chegaram bem a Ceuta. E a infeliz noiva ficou enterrada no mar
salgado... por casar e esquecida.
CAPÍTULO II
Sujeições estão guardas para as mulheres, antes que elas as saibam sentir, e depois
sofrem os trabalhos, ao porem os olhos nas obrigações com que nasceram, e não
acoimam a crueza que com elas usou o mundo, que é de muitos anos feito, não o podem
emendar.
Julga-se que foi a primeira portuguesa a navegar nas naus da índia. Mas
podia não ter sido. Tal como diversas mulheres do mundo (incluindo Maria
de Nazaré), só foi referenciada por ter sido mãe de um homem importante.
Se antes partiram mulheres anónimas, aventureiras, não relacionadas com
nobres ou audazes marinheiros, desvaneceram-se como os fumos da índia,
não mereceram a tinta nos escritos.
Um desses moradores era António Real. Foi com este homem que
embarcou Iria Pereira que será o pai de seu filho. Possivelmente embarcou
com familiares, pois um Gaspar Pereira era secretário do vice-rei e ia na
nau capitânia. Além disso, também ia na armada Diogo Pereira, clérigo,
que depois será o primeiro vigário geral do Oriente.
Na sua viagem, Iria viu a Ilha da Madeira, a ilha de Palma nas Canárias e
Porto Dale, abaixo de Cabo Verde. Aqui estiveram 9 dias, onde tomaram
água e lenha. O rei local veio recebê-los a cavalo, dizendo ao capitão-mor
que sua gente podia ir a terra. Iria talvez tivesse saído como todos. Um
velho que ia na nau fez amizade com o rei local. Pensando certamente que
a política de entendimento entre povos era a de D. João II, deu-lhe a sua
espada e um barrete vermelho e o rei presenteou-o com «seu terçado e sua
carapuça». Mas D. Francisco mostrou-lhe que os tempos eram outros, não
de amizades mas de domínio, e obrigou o velho a estar «com um baraço ao
pescoço na nau um domingo presente todos enquanto pregaram».
Causa espanto como pôde uma mulher viajar no meio de militares,
frades franciscanos, marinheiros e degredados. «O seu lar flutuante podia
medir uns trinta metros da popa à proa e mais ou menos nove metros na
parte mais larga», alvitra Elaine Sanceau sobre as naus em geral. Nenhum
dos companheiros de bordo, que deixaram escritos, se refere a Iria. Ou foi
bem escondida ou talvez tivesse embarcado vestida de homem, noutros
anos foram referenciadas portuguesas assim vestidas nas naus da índia.
Mas também podia navegar sob proteção familiar, com o consentimento do
vice-rei, pois a sua esposa chamava-se D. Joana Pereira, o mesmo apelido
da viajante.
Quando chegaram a Quiloa, o rei local não quis pagar os tributos. Ainda
lhes enviou «cinco cabras, uma vaquinha, muitos cocos e fruta» — lê-se no
Manuscrito «Valentim Fernandes», depoimento de Flans Mayr. Esse
viajante descreve a arquitetura das casas («de três sobrados, todas coteadas
de argamassa») e das mesquitas abobadadas («uma que é como a de
Córdova»), enumera as suas riquezas agrícolas e industriais («vidro muito e
de todas as feições, panos de algodão muitos e de muitas sortes», «Aqui
fazem cal desta maneira...»). Mas o vice-rei levava espírito de
conquistador, tinha pólvora enquanto os locais só armas brancas e pedras.
Por isso, «toda a gente se meteu a roubar a cidade de muita mercadoria e
mantimentos». O rei aterrado acabou por fugir e os portugueses puseram lá
um outro da sua confiança.
Como nesse tempo havia portugueses por todo o lado, também ali
encontraram um, natural de Lisboa, que se tomará mouro, tendo ficado da
nau de António do Campo. Correia coloca na sua boca que fosse o vice-rei
a terra que ali acharia 20 000 homens que «lhe não hão de torcer o
focinho».
Quem ficou com duas dessas moças foi António Real. Tomou-as com
sua lança, como declarou ao rei, quando Afonso de Albuquerque as quis
casar e as tomou forras.
Em Mombaça, distinguiram-se duas mulheres cafras que defenderam
como os homens a sua cidade. Desta vez é Castanheda quem conta que
elas, de cima do terrado duma casa, tentavam impedir a passagem dos
portugueses, dado que as mas eram estreitas. Faziam-no atirando com
«cantos muito grandes e atirando outras muitas pedras mais pequenas». De
maneira que elas: «Atormentavam mui rijo os nossos que se viram tão
afogados que alguns a que não soube os nomes, puseram os ombros às
portas desta casa em que estavam as cafras...». A uma atiraram-lhe uma
seta «e quis Deus que deu a uma das cafras pela garganta e derribou-a
morta». A outra fugiu.
Deus te salve Cide Ale. Faço-te saber que por aqui passou um grande
Senhor o qual veio ardendo em fogo. Entrou nesta cidade com tanta força
e crueldade que a nenhum dava vida homem nem mulher, moço nem velho
nem menino por pequeno que fosse. Não escaparam, só aqueles que
fugiram da sua fúria. Não tão somente os homens matavam e queimavam
mas as aves do céu derrubavam em terra. E tamanho o fedor dos mortos
nesta cidade que eu não ouso entrar nela, não te poderiam certificar nem
lançar conta a grandíssima riqueza que desta cidade levam.
Contudo, não era Real que notava as cartas, não tinha conhecimentos
para tal. Segundo contou a Albuquerque um tal António Madeira, quem as
escrevia era Diogo Pereira, o que casará com uma navegante da Hungria.
António Real não sabia notar, somente dizia a Diogo Pereira os casos
sobre que queria escrever, e ele escrevia com aquela cor que lhe parecia
necessária. E as notas destas cartas ficavam na mão de António Real e dali
as terladava em boa letra um Garcia Gonçalves que viera de Portugal com
Gaspar Pereira.
Em 1512, António Real foi mandado regressar ao Reino, mas nos fins de
1513 ainda estava em Cochim. Lourenço Moreno diz que «lá vai ele» na
próxima armada.
Iria não veio com ele. Ficou com o filho de 7 anos. Os cronistas dizem
que ela depois enriqueceu. Talvez tivesse ficado com os contactos
comerciais de António Real. Dados os tempos que eram, não se
compreende bem porque não casaram.
Iria Pereira deve ter dado à luz em meados de 1506, a não ser que tivesse
engravidado na nau. João de Barros (e os outros cronistas) diz que ele
nasceu na índia. A ser verdade, era um piloto competente com 17 anos, já
que Vasco da Gama levou-o consigo em 1524, antes de completar 18, pois
partiram em Fevereiro e Iria chegou à índia em Novembro de 1505.
Talvez Gama conhecesse a família. Iria poderia ser natural de Évora,
onde Vasco da Gama casou e viveu, ou doutra terra alentejana. Não
encontrei Iria Pereira em nenhuma Enciclopédia ou Nobiliário impresso ou
manuscrito. E não parece ser uma mulher do povo. O seu filho tomou o seu
apelido (Pereira) e D. João III trata-o como «fidalgo da minha casa», não se
encontrando nenhum documento de legitimação. Nos Índices da
Chancelaria de D. João III, existentes na Torre do Tombo, só há três
documentos que se referem a Diogo Botelho Pereira — carta de capitão de
uma nau da índia, em 1531, e duas cartas que o nomeiam capitão: da Ilha
de S. Tome, em 1541, e de Cananor em 1554.
O certo é que Diogo Botelho Pereira foi uma celebridade na pena dos
cronistas da índia do séc. XVI. João de Barros, Castanheda, Diogo do
Couto, Gaspar Correia e o cronista do reino Francisco de Andrade
dedicam-lhe capítulos inteiros. Sobre ele se escreveram vários livros em
castelhano, português e até em latim.
— Foi ela que «o criou e bem tratou» e a «mãe com ele muito gastava»
(Gaspar Correia); «...ficando rica foi criando o filho em muita vaidade»
(Diogo do Couto).
— Foi ela que o relacionou com os grandes «sendo em idade para isso o
meteu a andar com os governadores no serviço d’Elrei» — Correia. E diz
Couto: «Sendo mancebo foi levado a Portugal onde Elrei folgava de falar
com ele...».
Iria viajou atrás do homem que amava e acabou por se tornar uma mãe
solteira de sucesso. Tendo enriquecido, deu a seu filho a melhor educação
desse tempo, tornando-o num piloto e cartógrafo admirado na Europa e
pelos monarcas peninsulares. Ele ficou com seu apelido e não com o
«Real» de seu pai. E se ela o meteu a andar com governadores e a falar com
o rei é porque era bem relacionada na corte.
Couto refere que ele era «muito hábil e tinha grande inclinação à
Matemática, deu-se a sabê-la e à arte de navegar e à Esfera, em que foi
douto, e aproveitou muito nela, e fazia mui bem cartas de marear».
Acrescentando Barros que fizera uma carta muito grande «em que
descreveu tudo o que do Mundo era descoberto e a apresentou a el Rei D.
João».
Diogo tinha um sonho que o iria perseguir até à morte — ser capitão
duma fortaleza, como seu pai. Pediu então a D. João III a de Chaul. O rei
respondeu-lhe que os pilotos não eram capitães de fortalezas. Ele zangou-se
e, como era fanfarrão, disse umas inconveniências na antecâmara. Andrade,
que o considera «vivo de engenho e de grandes espíritos», conta que
«soltou algumas palavras de que se tornou suspeita que se poderia ir para
outro reino»”, especificando Couto que o rei «arreceou que se fosse para
Castela e lá desse de si outro Magalhães» e por isso o mandou prender”.
E Iria Pereira? Nunca mais se acharam relatos sobre ela. Ou veio com o
filho para o Reino, para aqui o bem relacionar na Corte, ou morreu algures.
Em Cochim não ficou, porque lá Diogo era sustentado por um amigo, antes
de um «chatim» lhe deixar uma herança.
Ele foi sempre irreverente e aventureiro. A sua vida era de altos e baixos.
Em 1528, está no reino e vai na nau “S. Maria da Luz” até às costas
orientais da África procurar barcos que se perderam. Tinha 23, 24 anos e é
encarregado duma missão própria de quem dominava o tempestuoso
Oceano índico. O governador D. Nuno da Cunha encontrou-o em
Mombaça e reenviou-o ao reino. Em 1531, é designado «morador da casa
real», «moço fidalgo» e parte como capitão da “Vera Cruz”, após o
terramoto e terem surgido no céu extraordinários sinais. Estava destinado ir
três anos para a China, mas Nuno da Cunha «tomou a mandar para o reino
os navios da armação da rainha porque a China estava alevantada». Em
parêntesis saliente-se a política de D. Catarina, rainha comerciante
independente do rei, que tinha três navios «feitorizando» pela China e por
todas as partes da índia.
Em 1533, por uma carta de D. João III, sabe-se que acabara de chegar ao
reino.
Uma vez em Lisboa, pediu de novo uma fortaleza e mais uma vez o rei
não lha deu. Então ameaçou ir servir o rei de França. Como houve
mexeriqueiros que contaram ao rei, este não suportou a ameaça. Reenviou-
o para a índia, mas desta vez não comandando naus, mas como degredado.
Assim, na frota de 1534, navegavam alguns nossos conhecidos — o
dominicano Juan Caro, Diogo (curiosamente mestre e aluno na mesma
situação de degredo), Marfim Afonso de Sousa, capitão-mor da armada, e
ainda Garcia de Orta. Martim Afonso, que ia na nau Rainha, numa carta ao
rei, ignora Orta, mas fala em Diogo: «Vai tão manso e tão desejoso o que
eu nele conheço de servir Vossa Alteza na índia ... e aqui trabalha tão bem
em tudo ... ele lá em terra me aborrecia, mas agora acho diligente».
Desculpa-o ainda dizendo que se ele «entornou», não foi por nenhuma má
intenção, «senão pequice».
Fez um barco, tipo fusta, para vir em segredo ao reino. Construiu-o num
«lugar escuso onde não passava gente e lhe fez cerca fechada de porta».
Mesmo assim, acusaram-no ao Vedor da Fazenda, mas conseguiu
convencê-lo que ia a Diu. Nesta altura, o rei de Cambaia autorizara a
construção duma fortaleza nessa cidade. Fez um buraco na fusta para entrar
água, «tapado com um tomo de pau, de que ninguém sabia senão um seu
escravo forro que levara da índia que tratava como filho» (Correia) e foi a
Baçaim, onde estavam Garcia de Sá e Catarina Pires. Pediu um barco novo,
deixando aquele a «consertar». Em Diu, desenhou tudo o que interessava.
Depois veio a Baçaim buscar o barco consertado, pregou uma mentira a
Garcia de Sá e veio para o reino. Para conseguir dinheiro, trazia a fusta
carregada de cravo-da-índia, 40 quintais, «todo escolhido de cabeça». No
percurso, passou por diversas peripécias que Gaspar Correia descreve em
dez longas páginas, por vezes hilariantes, porque Diogo era «fantasioso»
como a mãe. Inventava sempre uma história.
João de Barros informa que, para marear a fusta, levou seus escravos e
cinco portugueses, três deles criados seus e o comitre da fusta, além de
Manuel Moreno. Encheu o barco de mantimentos e «se partiu de Dabul o
primeiro dia de Setembro de 1535, dizendo a todos que se ia juntar com
nossa armada que andava na costa de Cambaia». Como imaginou que os
companheiros mais dia menos dia davam pelo engano, colocou à cinta uma
espada e vestiu por baixo uma saia de malha. Naturalmente que
descobriram, mas valeu-lhe a sua extraordinária sabedoria de «herói do
mar», pois se aquietaram ao verem que chegou às costas da Arábia ao
tempo que disse «sendo cousa em que os Pilotos que por ali navegam não
atinam, por causa das grandes correntes» — acrescenta Barros.
No dia seguinte, foi com o tio ao palácio, mas já não foi tão bem
recebido. As tais invejas, além da hostilidade da rainha. Ele astuciou logo
outra: pediu ao rei para ir à romaria de N. Sra. de Guadalupe, em Castela.
Uma vez em Espanha, conseguiu não só ser recebido pela Imperatriz
Isabel, irmã de D. João III, como a sua intercessão. Assim foi, o que prova
que ou era atrevido ou importante, por ser atendido pelos reis da Península.
Quando chegou o informador oficial da índia, 20 dias depois, já ele estava
perdoado e já se tinha enviado um mensageiro ao Papa.
Pode ser que surjam novos documentos que acrescentem dados sobre Iria
Pereira. Uma portuguesa que interferiu na história das Descobertas,
viajando e preparando um filho para extraordinárias viagens. Seu nome
ultrapassou a bruma do tempo. Mas ainda não chegou aos programas
escolares de História.
CAPÍTULO III
O que vos o mundo nega... Não sei porque vos matais! Deveis vos de crer de mim:
Lembre-vos que há de ter fim O mal de que vos queixais.
Joana da Gama
Os anos foram passando. O mar ficou mais salgado com muitas das
nossas lágrimas. Perscrutando o horizonte, mulheres de tranças gastaram os
olhos, em dias intermináveis, sem nada divisar na linha azul. Algumas
deram certamente novos rumos à sua vida, aprenderam a trabalhar com as
mãos, assumiram novas responsabilidades. Outras aventuraram-se,
rasgaram costumes e proibições, e quiseram conhecer os mares que Gama
abriu.
Ele não gostava mesmo de ver elementos femininos nas naus. Achava
que isso era um «inconveniente» para «as consciências dos homens, que
serão esquecidos de suas almas com a conversação das mulheres, e
esquecidos que cada hora andamos com a morte».
Mas a morte estava sempre presente na vida das populações da época da
expansão. «Está tão perto que dorme e come connosco» — escreveu Joana
da Gama. De tal modo que conhecemos a data da partida de muitas
individualidades, mas não a do seu nascimento. Do mesmo modo, o dia de
veneração dos santos corresponde, regra geral, ao do seu fim.
— qualquer mulher que fosse achada nas naus fora de Belém, seria
publicamente açoitada, ainda que fosse casada
— o capitão que em sua nau achasse mulher e a não entregasse, por isso
perderia seu ordenado.
Estas leis repressivas dão que pensar. Ninguém decreta para o vazio,
legisla-se para estabelecer regras após a existência de realidades. Era
costume as mulheres viajarem nas naus da índia? Só se conhecem «duas
dúzias» de portuguesas que desembarcaram nas cidades indianas antes de
1524. Elas justificam leis tão severas, atingindo maridos e capitães? Ou
foram mais mulheres e viajaram «invisíveis» como muitas vezes aconteceu
na pena dos cronistas? O mais provável é não existirem fontes, pois não se
entende a preocupação do famoso descobridor, com o embarque de
mulheres, se isso não fosse uma prática com alguma regularidade. Mesmo
que o facto das Quiloenses, que ocuparam as suas naus, o tenha aborrecido,
agora ele faz leis para as suas conterrâneas e partida de Lisboa. As
mulheres de Quiloa eram de outra nação, ele não podia fazer leis contra o
seu embarque nem contra os maridos delas. Estas medidas de Gama
merecem, por isso, muita reflexão.
Entre essa «mui luzida gente, em que entravam muitos fidalgos e muitos
outros moradores da casa del Rei em muito bom foro e outra gente muito
limpa», ia Diogo Botelho Pereira, de quem já se falou por ser o único filho
da Iria Pereira, primeira portuguesa a navegar para a índia.
Vasco da Gama olhou Lisboa, o Tejo e a serra de Sintra pela última vez.
Não mais regressaria vivo.
Ei-los pelo Atlântico já sem mistérios. E tudo correu com ventos, sol,
mar, sempre mar, dias intermináveis sem nada para ver e pouco para
comer. Houve tormentas e navios desgarrados. O capitão de uma caravela
foi morto pela tripulação. Passaram-se dias, semanas e meses. Até que...
Se não fosse triste e trágico, diria que se passou em Goa uma das páginas
mais belas da face feminina da Expansão Portuguesa. E que raramente
aconteceu o que se viu nesse distante Setembro de 1524 — um movimento
de solidariedade para com as mareantes. Continua Correia:
O que eles assim fizeram. Então lhes falou dizendo que mais lhes não
acontecesse fazer outra tal, porque vir com crucifixo a sua casa, pelas
ruas onde estava tanto povo, era modo de união, mostrar ao povo que ele
era cruel e sem piedade; o que com ele mais não fizessem....
E Vasco da Gama não ficou pela reprimenda aos frades. Vai fazer algo
que não estava à altura do descobridor do caminho marítimo e de que se irá
arrepender — vai usar as mulheres para fazer tremer os homens. Como não
se atreveu com eles, descarrega nelas. E diz aos frades:
se ele não fazia execução nestas mulheres, que desprezaram sua justiça,
muito melhor fariam os homens confiando que os perdoaria de seus
malefícios. O que ele não havia de fazer por nenhuma cousa do mundo;
pelo que assim o jurava e prometia que havia de fazer direita justiça, sem
nenhum perdão.
Vasco da Gama não quis saber de noivos, nem do dinheiro que davam
para o resgate das raparigas, nem do futuro delas e açoitou-as mesmo.
Gaspar Correia testemunha: «E mandou açoitar as mulheres, dizendo que
ele havia de punir com direita justiça neste mundo, que Nosso Senhor no
outro teria misericórdia com quem a merecesse».
Por sua vez, Castanheda diz que as mandou açoitar metidas numa canga,
à moda medieval.
Mas o importante deste trabalho, e por isso se traz aqui, é que além duma
perfeita reconstituição histórica, apoiada em Gaspar Correia, Lopes
Mendonça integrou o conto, que intitulou de «Justiça do vice-rei», na obra
Sangue Português. Na verdade, era português o sangue que escorreu das
costas açoitadas das navegantes de 1524.
Gama está irado porque as raparigas não confessaram quem eram esses
marinheiros. Nas suas leis, os homens, que levassem mulheres, seriam
reconduzidos ao Reino carregados de ferros. Mas as navegantes foram
duplamente corajosas: «Não conseguistes arrancar-lhes essa confissão,
porque foi mais forte nelas o pudor do que o temor da vossa cólera».
Ela soube que Gama e Gil Galo tinham partido para Cochim e resolve ir
também para essa cidade, e só podia ir de barco. O frade tenta demovê-la,
mas ela diz: «Por que o acompanhei eu até tão longe, sem ter em conta nem
perigos do mar, nem tiranias de homens, curtindo meses de agonia no
porão húmido e sem ar, senão para que ele me restituísse a honra que me
tirou?»
Joana da Gama
Foi realmente a «sobeja afeição» que fez com que uma pobre rapariga do
Porto se tornasse navegante de oceanos sem fim. Do Porto foi a Lisboa, de
Lisboa zarpou para Goa, de Goa partiu para Malaca, de Malaca voltou a
Goa. Mais tarde, de novo zarpou para Malaca, voltou a Goa e daí foi para
Baçaim, novamente regressa à capital da índia, foi quase a primeira-dama e
por lá deixou as cinzas. Se considerarmos que ela acompanhou sempre o
seu amado, como é lógico, e se partiu em 1518, então ela viajou duas vezes
para o Oriente (a segunda em 1528) e foi a primeira europeia de toma-
viagem, por 1522, ainda em tempo de Vasco da Gama. Subiu assim ao
pódio das grandes viajantes da História da Expansão Portuguesa.
Ela nasceu pobre, mas a natureza premiou-a com uma qualidade que tem
dado muito jeito às mulheres de todas as épocas — uma grande beleza. E,
um dia, o olhar de Catarina cruzou-se com o de Garcia de Sá, futuro
governador da índia. Ele já tinha trinta e muitos anos, pois deve ter nascido
por volta de 1479, se acreditarmos em Diogo do Couto. Nesses tempos, em
que contavam os privilégios de nascimento, Garcia era um homem
inatingível, um amor impossível para ela — além de fidalgo e rico, era
filho do alcaide da cidade.
Esse alcaide do Porto casou três vezes. E foi um dos muitos maridos
assassinos desse tempo, como se verifica ao folhear as páginas dos
genealogistas, pois matou a primeira esposa. Garcia é filho da terceira, que
se chamava Joana de Albuquerque, e era filha do Mestre Sala do Rei D.
Afonso V.
1 — A FLOR DE MIRAGAIA
Esta capitania é confirmada por ele mesmo, quando foi chamado a depor
sobre a questão das Molucas: «Ela, testemunha, foi por mandado de el-rei,
que Deus haja, por capitão a Malaca e esteve lá dois ou três anos».
Deve ter sido difícil para Catarina deixar a sua terra, a sua família, os
lugares da sua infância. Partiu com o homem que amava. Mas partiu sem
futuro. Garcia de Sá nunca lhe prometeu casamento, devido às diferenças
sociais.
Com ele disse adeus ao Porto, com ele percorreu os caminhos, talvez
águas salgadas, até à capital do Reino, onde vivia D. Manuel I. Daí partiam
as armadas, aí se sentia o cheiro da pimenta. Vasco da Gama ainda era
vivo.
Mas fala Camilo: «No ano 1518 saiu (Garcia de Sá) para o governo da
sua fortaleza e levou consigo a flor de Miragaia, a Piró, que devia ser muito
bonita, se as duas filhas que teve, tão celebradas na índia por beleza, se
pareceram com sua mãe».
Chegaram a 7 de Setembro a Goa. Foi das viagens mais curtas, pois nem
seis meses demorou.
A vida por lá foi dura, cheia de guerras. A cidade de Malaca era doentia
e as casas eram ainda cobertas a madeira.
...um homem casado que na nau ia com sua mulher e três filhas moças,
que vendo a nau aberta, abraçando-se todos cinco, com um pranto
piedosíssimo e gritos que penetravam os ares, assim ligados todos se
foram com a nau ao fundo, espetáculo que fez arrebentar a todos em
lágrimas...
V. Alteza nestas partes recebe mui grandes perdas, e assim também nas
naus que vêm do reino e parece-me que é a causa dos grandes pecados e
pouco temor que os homens têm, porque os capitães, pilotos, mestres e
marinheiros todos trazem mulheres nas naus e navios de Vossa Alteza,
pelo qual se levantam grandes contendas e acham-se a dormir. Há má
vigilância.
Como um dos capitães era Garcia de Sá, presume-se que ele era um dos
tais, ao levar Catarina consigo.
Camilo também refere que ele era «esmoler com os soldados que em
tempos avessos à navegação, mendigavam rotos e famintos». O que os
cronistas confirmam.
Aqui deve ter entrado a ação de Catarina Pires. Talvez fosse ela quem
orientasse as refeições para os lusos esfomeados das cidades onde habitou.
Estas e outras levaram Garcia a casar com Catarina, «na hora do seu
falecimento porque estas filhas ficassem legítimas». Isto ao fim de quase
trinta anos de companheirismo nas horas boas e más. Ironiza Camilo: «Era
necessário o sacrifício da fidalga prosápia, não à moral do oriente
português, mas ao casamento bem prosperado das duas filhas».
Quando vim a descercar esta fortaleza estava sua mulher muito doente,
e sem embargo disso a deixou e veio comigo a servir Vossa Alteza. Depois
de Deus nos haver concedido a vitória [a 11 de Novembro] vieram dizer-
lhe que a esposa era morta, da qual lhe ficam duas filhas muito formosas e
muito virtuosas.
Portanto, Catarina Pires faleceu nos fins de Outubro ou princípios de
Novembro de 1546.
Como dirigente da índia, Garcia já pôde casar as filhas com quem achou
melhor. Para Leonor escolheu Luís Falcão, rico na índia e no Reino,
capitão de Diu. Para a Joana escolheu um filho dum antigo vice-rei —
António de Noronha. Esta casou bem, pois, segundo Diogo do Couto, na 6ª
Década da Ásia, «era o maior e mais formoso homem que na índia havia».
Todavia, apesar das filhas nesse tempo não escolherem o noivo, Leonor
era bem filha da «flor de Miragaia». Disse ao pai e constou-se que casara
em segredo com Manuel Sepúlveda. Luís Falcão era um estorvo, o pai não
podia voltar atrás com a sua palavra.
Foi então que, segundo se constou, o «liberal» deu uma ajudinha: Luís
Falcão foi morto quando estava sentado à porta de sua casa. Quem foi,
quem não foi, culparam o Sepúlveda, mas ninguém conseguiu provar.
Simão Botelho, numa carta ao rei, diz que se têm más suspeitas
relacionando-as com Garcia de Sá: «Querem dizer que se azou sua morte,
porque, em saindo o Inverno, mandou Luís Falcão cinco mil pardaus ao
governador Garcia de Sá, tanto que soube que era governador, do dinheiro
de Vossa Alteza e que por isso se deixou de acabar de pagar aos soldados e
casados, de que se tem mais suspeita». Por isso Garcia de Sá lutava por este
casamento.
O cortejo foi recebido pelo bispo. Diogo do Couto diz que: «Dom
António de Noronha ia muito galante e custosamente vestido: Manuel de
Sousa não levava mais que os trajos ordinários que costumava a trazer».
A entrega das filhas não foi portanto apenas na Igreja, como hoje, mas
posteriormente também nas novas moradas.
Quanto ao seu governo, de poucos o cronista terá dito tão bem. Catarina
Pires amou um «homem muito honrado», na opinião de D. João de Castro,
na carta citada dirigida ao rei.
Por sua vez, Rivara afirma que a filha Joana está enterrada no mesmo
túmulo do pai. E os dizeres são os seguintes: «Aqui jaz Garcia de Saa/
Governador que foi/ da índia. Faleceo nesta/ cidade a XIII de julho/ de
1549. E assi jaz/ Dona Joana Dalbuquer/que sua filha molher/ que foi de
Dõ Antonio/ de Noronha. Faleceo/ a XXX de março de 1551»
Não se sabe se Luísa navegou até Lisboa ou morreu antes. A filha deve
ter casado no reino.
Não diga ninguém a Vossa Alteza que casam cá [na índia] as mulheres sem nada,
porque é o mor erro do mundo, é vê-lo pelas que trouxe [órfãs del Rei] que ainda as
mais estão por casar.
Ela foi uma mulher de um tempo novo. Não foi rainha nem sequer
pertenceu à grande nobreza. Mas, durante um ano e quatro meses, ela foi a
primeira dama do Império Português do Oriente.
Em Bastos de Cabeceiras
Os da família sabida
Ou ainda:
Os altos progenitores
Como se vê, Lucrécia não pertencia à alta nobreza, mas circulava pela
corte.
Desde 1525 que é referido pelos cronistas como andando a pelejar pela
índia. Em 1527, é capitão de Malaca. Comanda muitas vezes esquadras nas
costas indianas. E em 1536 aparece a comandar a armada que parte de
Lisboa para a índia, viajando na nau “Grifo”. Essa armada foi pintada pelo
contemporâneo Lisuarte de Abreu.
Jorge Cabral é descrito por Manuel Faria y Sousa assim: «Era de
agradável proporção, de aprazível rosto e incendido de cor, de barba
castanho-escuro». Diogo do Couto acrescenta: «homem bem feito, de boa
estatura, muito bom cavaleiro, de muita verdade, de bom conselho, liberal,
e sobretudo bom cristão». Por sua vez, Elaine Sanceau define-o como «um
homem atraente — alto como todos os Cabrais... feitio alegre e
pomposamente vestido. (...) Uma tal figura, emergindo de um fundo de
aventura no Oriente, era de molde a fazer palpitar o coração das donzelas».
Já devia andar pelos quarenta anos quando o seu destino se cruzou com o
de Lucrécia. Dizem que era muito formosa. Devia ser determinada,
arrojada, viva.
Como se não lhe bastasse um império para governar, o rei ainda tinha de
se meter nas questões amorosas dos súbditos! Esta obrigação, ditada pelo
monarca, deve ter originado uma relação difícil entre o casal, pela vida
fora.
Talvez tivessem casado por volta de 1540. Em 1545, tinham pelo menos
um filho de três anos que vai com eles para a índia. A armada é composta
de seis navios, comandada por D. João de Castro, o vice-rei conhecido por
ter empenhado as barbas. De um dos barcos, o “Urca S. Mateus”, era
capitão Jorge Cabral. Foi nesta embarcação que partiu Lucrécia Borges
Fialho.
Pelas cartas dos missionários, a viagem correu bem. Mas pelas cartas de
D.João de Castro, verificamos que as naus se separaram. Escreveu ele ao
rei: «Cheguei com D. Jerónimo ao porto de Moçambique a vinte e oito dias
de Julho e achei aí Jorge Cabral que havia treze dias que era chegado».
Portanto, Lucrécia chegou a Moçambique a 15 de Julho. Como morria
sempre gente na viagem, mandou saber as baixas nas naus de D. Jerónimo
e de Jorge Cabral, «achei que nenhuma pessoa lhes era falecida de doença,
somente dois homens que caíram ao mar». A 7 de Agosto essas três naus
partiram juntas para a índia.
D. João de Castro foi, a meu ver, o governador da índia mais amigo das
mulheres (a seguir a D. Afonso de Albuquerque) e de quem elas foram
mais amigas. As mulheres de Diu vão ajudá-lo no 2º cerco, lutando. E as
mulheres de Goa e Chaul oferecem-lhe as joias para ele arranjar dinheiro.
Ele não se esquecia delas. As suas cartas são essenciais para o estudo das
portuguesas na índia. Após a vitória de Diu, a 11 de novembro, vai-se
preocupar com as viúvas dos guerreiros e distribui-lhes dinheiro.
5 — A CONVERSA NA CAMA
Jorge Cabral partira como capitão de Baçaim. Não tomou logo posse,
porque o mandato do anterior capitão ainda vigorava. Mas em 1549
Lucrécia era a primeira dama de Baçaim, por ser a esposa do dirigente da
cidade.
Quando ele soube que atingira o mais alto posto da índia, «não se
alvoroçou com a governança, antes esteve para a não aceitar» (Diogo do
Couto). É que Baçaim era uma capitania rendosa e o cargo de governador
(idêntico a vice-rei) era incerto. Foi então que entrou na história Lucrécia
Borges Fialho, referindo os cronistas que ele aceitou porque ela lhe moeu o
juízo.
Faria y Sousa dedica dez longas páginas a uma conversa, na cama, entre
o casal. E muito interessante essa conversa, percebe-se que Faria a
admirava. Diz que “era moça e mui formosa, se pode haver formosura sem
mocidade”. Jorge dava voltas na cama há 6, 7 horas. Ela pergunta-lhe o que
o aflige, se receia uma invasão ou tem alguma dama no pensamento «oiço
dizer que tanto milita quem ama como quem peleja». Ele responde que
nunca viu um governador sair sem desaires, que está no princípio «desta
capitania cujo remate de quatro anos que hei de lograr, há de ser de
duzentos mil escudos». Que ganha «num ofício de que hei de sair sem
caudal, perdendo logo de contado este que tenho aqui seguro? Quando não
os cateis, entrará amanhã um Vice-Rei a varrer-nos daquelas salas».
Ele tinha razão, mas Lucrécia queria ser “governadora” da índia. Por
isso, após ouvi-lo, ela
Ela vai argumentar duma maneira inteligente, com uma série de razões:
«pecais contra vosso Deus e contra vosso Príncipe em não aceitar». Ela,
como parte interessada no dinheiro, abdica dele, pede-lhe que lhe dê esse
gosto e antecipa cem anos Luísa de Gusmão ao dizer:
Vale mais ser Governador da índia quatro dias que ser capitão de Baçaim
quatro anos.
Faria diz que ele ficou admirado da sua maneira de discorrer. «Quem há
que não haja obedecido a uma beldade resoluta?» Como todos gabaram
depois o governo de Cabral, Faria termina: «a própria índia deveu a sua
mulher o tempo que o teve».
Diogo do Couto diz também que foi ela que o convenceu. Escreveu
assim:
Mas sua mulher que era vã, como o são todas [pelos vistos a mãe do
cronista também era], lhe disse que melhor era ser quinze dias governador
da índia que dez anos capitão de Baçaim: e que já El’rey lhe ficava em
mais obrigação e lhe havia de fazer diferentes honras e mercês.
Ele era mesmo um desmancha-prazeres. Desta vez não foi apenas ela
que ficou furiosa por não assistir às representações, jogos e danças das boas
vindas, mas também «os cidadãos se muito agravaram pelo gasto que
tinham feito». O governador teve de justificar-se: «lhes deu seus
agradecimentos, dizendo que o gasto que tinham feito era necessário para o
recebimento delRey de Tanor, que tinha certeza que havia de vir a Goa, e
não queria que fizessem tantos gastos».
O que ele temia era a popularidade de Lucrécia, que fosse maior que a
dele!
A receção a este rei, no dia 23, foi coisa nunca vista em Goa. É descrita
em pormenor pelo Bispo, numa carta à rainha D. Catarina, escrita a 25:
«Desembarcou el-rey; levaram-no debaixo de pálio, que era de veludo
carmesim... muitas danças, momos, ciganas e outros bailos à mourisca pela
Rua Direita varrida e aguada e juncada, toda a riqueza que havia na rua
Direita posta pelas janelas».
Ora, Gaspar Correia diz que ela “desceu à sala”, Sanceau que “desceu ao
átrio”. Eles viviam no palácio dos vice-reis, junto ao mar. Jorge Cabral
mandara pintar no palácio os retratos de todos os governadores e todas as
armadas que foram à índia. Embora em 1554 os vice-reis tivessem mudado
de residência, as construções deviam ser idênticas pelo que diz Pyrard,
viajante francês, c. 1606:
*
8 — OS FILHOS DO CASAL.
Damião de Góis (Livro das Gerações) diz que Lucrécia teve 4 filhos —
três rapazes e uma rapariga. Os rapazes chamavam-se Manuel, António e
Fernão, “que faleceram todos meninos”. A filha chamava-se Joana de
Castro, como a avó paterna.
António deve ter sido o que durou dois dias, o afilhado de Álvaro de
Castro. Fernão morreu tragicamente na índia, destroçando o resto do
casamento.
Correia diz que o filho tinha 8 anos, “era todo seu bem” e acrescenta:
«Chegando a Cochim, a mulher do governador, que ele com seus amigos a
foi buscar à praia, o Vice -Rei [era o Noronha] foi à praia e a recebeu com
muitas cortesias e a levou a sua casa, e quando veio nova da morte do filho
o vice-rei foi visitar o governador,..».
Todos dizem bem do seu governo. Não tinha porteiro, não deu cargos a
amigos, não roubou, «e antes de jantar despachava toda a pessoa, e com sua
mão escrevia os despachos... acabado o jantar fazia outro tanto antes que se
erguesse da mesa, e outro tanto fazia à ceia, inda que fosse muito tarde».
Gaspar Correia, que conheceu todos os governadores, menos D. Francisco
de Almeida, diz que nunca houve na índia “melhor despachador”.
Eles regressaram pobres, destroçados. Correia diz que «gastou o seu que
de Baçaim trouxe, remendando os grandes buracos das muitas
necessidades», mas depois o rei deu-lhes 400 mil réis “de juro”. Como se
vê, o termo “buracos” já se usava há 450 anos!
Damião de Góis diz que “por ter más suspeitas dela”. Mas Camilo
escreveu que ele a encontrou em adultério. E não o desculpa: «Jorge Cabral
foi ladrão quanto se infere das cartas de Simão Botelho; e pelo que respeita
a piedade cristã não a revelou com sua esposa D. Lucrécia Fialho quando a
matou a facadas».
Foi um triste fim para aquela que foi a bela primeira dama do Império.
O relato publicado por António Baião tem por título “Impressões dum
Auto-de-fé celebrado em Coimbra, nos fins do século XVII”.
«Estávamos nesse teatro desde as cinco horas. À entrada da escada havia
guardas para impedir o acesso, e não deixavam subir senão os padres e
religiosos, e pessoas de distinção, porque havia uma multidão
esmagadora».
«A plateia do teatro era cheia por toda a espécie de honrada gente, não
havendo porém mulher alguma».
O que o padre capuchinho não diz é que de certeza esta família seria rica.
Como confiscavam os bens aos condenados, não perdiam tempo com os
judeus pobres. Sob a capa de defender um cristianismo que de cristianismo
pouco tinha, os inquisidores e sequazes não passavam de descarados
ladrões.
Não sabemos seu nome. E pouco sabemos sobre ela. Quem investigar a
lista dos condenados desse auto de fé talvez descubra. Se o seu nome não
foi apagado, como aconteceu com a papisa Joana!...
— Amadora (Brandoa)
— Lisboa (Camide)
— Porto (Cedofeita)
Mas o feito de Públia não reside nos seus dotes literários. Aos 17 anos,
numa sala pública, perante os homens mais eruditos do seu tempo, ela
defendeu as suas teses, sujeitando-se a todas as críticas e interrogações.
Pena foi realmente que não entrasses nesta cidade... porque, ainda que
mais nada tivesses encontrado de que te regozijasses... poderias ter
assistido... a um espetáculo único. Ouvias a Públia Hortênsia de Castro,
uma menina de dezassete anos, instruída além do vulgar nos estudos
aristotélicos, disputar publicamente, desfazendo com suma perícia e graça
os arguciosos argumentos que lhe opunham muitos homens doutos,
esforçando-se por combater as teses dela. E mesmo tu, ó sábio
jurisconsulto, terias confessado que nunca presenciaste um torneio mais
formoso, nem poderias ter negado que uma cidade que produz tal donzela
(de mais a mais de figura muito agradável), era digna de ser visitada e
fosse somente por causa dela.
Vila Viçosa tem formosas mulheres e, entre outras, uma que não o é
menos da alma que do corpo, da idade de vinte e três anos, Jilha de Tomé
de Castro, à qual, por sua muita literatura, chamam Públia Hortênsia.
Esta donzela, que frequentara Salamanca, quis defender conclusões
naturais e legais, o que não teve lugar por causa da súbita partida do
Legado.
Carolina Michaêlis escreveu que a nossa primeira oradora não deve ter
estudado em Salamanca, porque lá não consta o nome dela. Esta
observação nem parece de Carolina Michaêlis! Naturalmente que não
consta o nome dela, nem na universidade de Coimbra, onde também teria
estudado com o irmão Jerónimo e onde terá cursado Humanidades,
Teologia e Filosofia. Como o acesso às escolas públicas estava vedado às
mulheres, elas só se podiam ter matriculado com nomes masculinos e
frequentado as aulas vestidas de homem.
É então que entra na história o rei Filipe II de Espanha, o novo rei que
acabara de nos tomar Portugal. A ideia deve ter partido dela, pois, segundo
a tradição, ela defendeu teses diante dele, mostrou a “sua literatura”. O
certo é que na Torre do Tombo encontra-se um alvará desse rei, Filipe I de
Portugal, datado de 1581, concedendo-lhe «em cada ano quinze mil réis de
tença para se melhor poder sustentar e recolher».
“Quinze mil réis” foi a tença que deram a Camões, o que prova que ela
era considerada!
Brianda de Solis era uma moça de Alter do Chão. Terra que ainda não a
venera, mas que, um dia, terá de retirar do pó e trazê-la para a placa de uma
rua.
Ela foi uma viajante dos mares que sobreviveu às viagens tormentosas
para a índia. Casou em Goa com o sábio naturalista Garcia da Orta que
acabou por a ensombrar, como é costume. Tem sido denegrida, até aos dias
de hoje, para mais se elevar o sábio. Contudo, ela foi uma grande heroína
portuguesa por duas razões:
Afinal o poeta foi bem explícito. E, para descrever assim a Ilha dos
Amores, teria de a conhecer, de a ter visitado. Possivelmente, terá sido ele
o bem recebido pela dona de uma ilha de sonho e suas “ninfas”, que
transpôs para o seu protagonista. Resta-nos descobrir então a quem
pertencia essa ilha que, no tempo de D. João de Castro, se chamava da Boa
Vida e que Camões batiza de Ilha Namorada.
A meu ver, esta portuguesa das nossas descobertas, viajante de naus, foi
a inspiradora de Camões. Por ironia da vida, foi perpetuada por extremos
— denegrida no século XX, dignificada como deusa no século XVI.
Nessa altura a índia era governada por outro filho de Vasco da Gama,
Estevão. Devido a contos e ditos, Martim de Sousa, que ia substituir
Estevão da Gama no Governo da índia, resolveu partir de Moçambique “no
navio de Luis Mendes, com seus criados e privados”, abandonando a
armada. Correia diz que só a nau “Santiago” era do rei, as outras “eram de
mercadores”. Se Brianda continuou viagem na nau “Santiago”, ia morrendo
afogada. Segundo Diogo do Couto, em Maio de 1542, na costa da índia, a
nau foi apanhada por trovoadas e um vento do Sul.
Neste processo, ela diz e desdiz. Entregou a filha, dias depois retratou-se.
Entregou a mãe e mais à frente nega tudo. Com Brianda fez o mesmo. Diz
que ela comia carne em dias que a Igreja proibia, mas depois diz que era
por ser doente. Na questão da mortalha, ora a viu ora nega. Perto da
fogueira, confessa que «a razão das suas denúncias falsas foi por lhe
parecer que assim obteria misericórdia e salvaria a vida e o diabo a
enganar». E claro que Silva Carvalho acha que ela falou verdade antes e
mentiu à hora da morte, ao contrário do que faz qualquer pessoa religiosa:
“Via-se claramente que certa de morrer, mas perante a promessa de
dinheiro e proteção feita por Brianda de Solis e sua família, a favor das
suas filhas e do marido que saiu reconciliado, resolvera fazer aquelas falsas
declarações...».
A promessa de dinheiro e proteção nunca teve ocasião para ser feita, pois
após a prisão de Catarina nunca se encontraram. Nem isso está escrito.
Aliás, ao aceitar-se que Brianda era avarenta, a ponto de negar a mortalha
ao marido, não se entende que tomasse conta de filhos e netos que não
eram seus nem do seu sangue. Isto é um raciocínio torto.
Logo no dia seguinte, a 12, o inquisidor puxou por Catarina. Esta disse
que, quando morreu seu irmão o meteram numa câmara e que havia ali “um
pano novo comprido cosido alinhavadamente que lhe parece que era duas
ou três tiras de pano cosidas uma na outra, as quais tiras eram de pano
novo... mas não se lembra quem o coseu, nem quem trouxe a mortalha...”.
Perguntada de que se fez a camisa que levou, disse:
que não se fez camisa de novo para isso e que por o dito doutor ter
poucas camisas e sua mulher ser nisso avarenta com ele, mandava ela ré
muitas vezes trazer camisas de sua casa para o dito doutor vestir na dita
sua enfermidade, porque se sujava muitas vezes e que depois que o dito
doutor morreu, mandou ela ré buscar uma camisa a sua casa para nela
amortalharem o dito doutor e que fosse a melhor que se achasse...
Toda esta insistência resultara do facto de saber que era um rito judaico
enterrar as pessoas com roupa nova. A pobre da Brianda enterrou o marido
em pano branco, novo, e camisa nova, como ele certamente lhe pediu. Para
lhe dar esse gosto, ela arriscou a vida. As cunhadas, sabedoras do rito
mosaico, foram suas amigas, desviando as atenções desse rito para a sua
sovinice. Uma esposa avarenta não afetava a religião, mas enterrar o
marido num rito condenado pela Igreja podia levá-la à fogueira. Por acaso
não a levou a ela, mas Garcia, 12 anos depois, em 1580, foi desenterrado e
os poucos ossos que restavam dele foram queimados num auto de fé. As
suas cinzas foram lançadas ao rio Mandovi. A união das suas cinzas com as
águas e o universo seria até bonita, se não fosse invenção do “pequeno
mundo dos senhores inquisidores”. E em nome duma religião que não se
sabe qual seja, a de Jesus não era, esse dava a outra face e apregoava que
não fizéssemos aos outros o que não gostávamos que nos fizessem,
desenterrarem ossos para queimar, sem conseguirem apagar do mundo a
memória do genial português.
Como Orta diz nos Colóquios que sofrera de boubas e que para os
naturais da terra “não são infamadas”, Silva Carvalho ora diz que podia ter
sido ele a adquirir a doença e contagiá-la, ora sugere ter sido ela, andando
com outros homens: «pelo mesmo processo pelo qual as outras damas
goenses a adquiriam, foi visitada pela doença das boubas». Não imagina
que a velhice precoce de Orta podia derivar desta doença, prefere dizer que
se devia à desventura no casamento.
Teria ela ido para a índia a fugir dum escândalo amoroso, como tantas
outras?
Há quem diga que não existia ilha alguma só povoada de mulheres, mas
Bombaim, se Orta se deslocasse à corte dos príncipes locais, ficava só com
presenças femininas. Brianda tinha duas filhas, Beatriz e outra mais nova,
pelo menos três criadas indianas — Antónia, Brianda e Leonor, que talvez
andassem semi-nuas — como são as indianas muitas vezes representadas
— e pelo menos uma escrava negra, Joana. Era um grupo, no mínimo de 7
mulheres. Sete mulheres a receber alguém longe da pátria, é o suficiente
para um poeta imaginar um coro de ninfas (IX: 85).
Isto é o retrato duma dama, rodeada de jovens. Para quê falar em “pompa
honesta” se fosse deusa mítica? «Até a referência às ninfas não constitui
excesso de fantasia, mas apenas deformação poética» — diz-nos Luís da
Cunha Gonçalves; — «convindo recordar que por “ninfas do Tejo” ou “do
Mondego” designava CAMÕES as suas amantes e as mulheres em geral do
seu país natal». E possível que Camões visse Brianda, “mulher do seu país
natal”, como uma grande senhora: «Ela, por onde passa, o ar e o vento/
sereno faz, com brando movimento» (IX:24). As jovens eram «humanas
rosas» e vestiam «lã fina e seda» (IX:68)
A deusa tinha um paço com metais, ouro e cristal, onde servia vinhos e
manjares. A casa de Garcia de Orta e Brianda também era um palácio, o
único edifício de estilo europeu que durante séculos ali existiu, no qual
recebia os emissários dos rajás e eruditos hindus, como o seu amigo Nizam,
que o remuneravam com presentes em dinheiro e objetos preciosos, que
constituíam o seu recheio valioso. Garcia de Orta teria aí a sua livraria, o
herbário, salas onde recolheria espécies botânicas, quem sabe se ornadas de
«metais reluzentes mandados da Rainha» (que Rainha?), com «cadeiras
ricas, cristalinas». Nessa cadeiras, «se assentam dois a dois» e noutras
cadeiras, «à cabeceira de ouro finas/ Está com a bela deusa o claro Gama»
(X: 3). E possível que Brianda mandasse sentar Camões nessas cadeiras,
lado a lado com ela.
Era 1662, quando Bombaim foi entregue aos Ingleses como dote de D.
Catarina de Bragança, estes aproveitaram o “paço” de Orta e chamaram-lhe
“Casa Grande”. Curiosamente, em 1662, também era uma mulher a senhora
da ilha. Chamava-se D. Inês de Miranda, viúva, e os ingleses designavam-
na por “Lady of the Island”. Foi dramática a entrega de Bombaim. Os
ingleses despojaram-na “sem pudor”, mas D. Inês reclamou para Londres e
o marido de Catarina de Bragança indemnizou-a.
O Simão Jorge, filho duma Brianda de Solis, era um homem que também
fazia “expedições” contra erros grandes, pois, em 1564, quando Camões
ainda estava na índia, foi açoitado no cárcere, porque intentou fugir «e abrir
a porta da sua prisão fazendo um buraco e comunicar com os presos dando
avisos a uns e a outros para que não confessassem suas culpas» — registou
Delgado Figueira.
O livro de Paula da Graça foi editado quatro vezes todas no séc. XVIII.
Para expor as suas ideias, Paula da Graça usou um poema, composto por
quintilhas. Não é novidade, é resposta, pois Malícia das Mulheres compõe-
se também de estrofes de cinco versos. O poema propriamente dito está
distribuído por seis páginas, os versos estão dispostos em duas colunas, em
regra de 33 versos cada uma. São ao todo 72 quintilhas (tantas quantas os
livros que compõem a Bíblia), num total de 359 versos. O número não é
exato (devia ser 360), porque a estrofe 33 é uma quadra em vez de uma
quintilha, talvez gralha. Verifica-se o mesmo em todas as edições, o que
significa que as três últimas se fizeram a partir da primeira.
Tanto num livro como no outro, cada verso das quintilhas tem sete
sílabas métricas. Possivelmente para economia de papel, as quintilhas estão
separadas apenas por um parágrafo. O mesmo nos dois livros.
Acha bem que ela se aconselhe, «porque dos homens, na mão/ não está
mais que o enganar/ uma moça de feição».
*
2 — A INSTRUÇÃO DA AUTORA
— num convento
Para fazer uma citação destas, não era uma mulher do povo, nem
daquelas que aprende só a ler e escrever. Hoje diríamos que é necessária
uma cultura universitária para se perceber esta citação de S. Tomás de
Aquino. Teria de frequentar um meio com biblioteca.
— E sabe algo que ainda hoje é difícil — descer da sua classe social e
conhecer o pensamento e quotidiano do povo. Este espírito de observação
faz dela uma pioneira no domínio das mentalidades.
o estado de celibato.
Eu nunca a outro achei jeito.
Como se vê, 300 anos depois, ainda não resolvemos muitos dos
problemas que Paula da Graça aborda. Não há equivalentes empregos, não
se ensina nas escolas a História das Mulheres, a Bíblia continua a culpá-las
e elas ainda não podem ser sacerdotes. O mais grave é o assassínio de
esposas. Flagelo que continua no nosso tempo.
*
António Salvado até diz que Paula da Graça fazia quintilhas com mestria
e só em Nicolau Tolentino «poderemos encontrar semelhante
desenvoltura». E António Salvado é uma voz autorizada. Licenciado em
Filologia Românica, «é um dos maiores poetas portugueses da atualidade»
e também «ensaísta das problemáticas literárias do período barroco».
Outra prova que atesta Paula da Graça pertencer à Nobreza são os seus
impressores. O primeiro era da “Religião de Malta”. O impressor das
edições de 1741 e 1743 era o próprio impressor da rainha, D. Maria Ana de
Áustria.
*
6 — QUEM ERA PAULA DA GRAÇA?
E o nome Paula?
Esta Dona Paula está registada como D. Paula Teotónia e era irmã duma
Antónia Maria. Ambas estudavam no convento de Santa Ana, em Lisboa.
Elas receberam a tença graças aos feitos de seu avô Manuel Correia de
Sousa, cavaleiro professo da Ordem de Santiago e oficial maior da Junta de
três Estados, tendo sido secretário dessa Junta durante 25 anos. Será esta?
Outra que consultei na Chancelaria foi uma D. Paula Iria Corte Real. Era
viúva de um governador da índia em 1702. Os Corte Reais desde o reinado
de D. Duarte que viviam na corte. Eram naturais de Tavira onde fica hoje a
Vila de Cabanas, terra que Paula da Graça indica como naturalidade. Só
que a vila de Cabanas não existia no séc. XVIII...
Ora, Paula da Graça podia ter sido filha ou familiar deste Corte Real.
Seria “assistente desta corte”, teria herdado a “paixão pela poesia” e teria
sido educada sem ser deslumbrada pela “elevação a que subiu” seu pai. Daí
ela se interessar pelas mulheres duma maneira geral, incluindo as do povo.
No Prólogo da obra, ela escreveu: «falando com aqueles que devemos
respeitar por senhores, por Doutores e por Juízes, a quem não
compreendemos, porque só com os do povo galhofamos...».
Filha de gente culta e convivendo com tal rainha, não admira que Paula
da Graça nos surpreenda pela sua cultura e pioneirismo.
Quando andava nesta demanda atrás de uma mulher com um nome que
eu não identificava, dei de caras com um livrinho intitulado: Graça, o poder
da unidade e de reunião. O autor viveu entre 1800-1882. E um livro
religioso, mas a leitura desse opúsculo fez-me retirar estas frases
sugestivas: “a verdade nunca foi conhecida até que a graça veio”. “Por isso,
a graça é o poder ativo da verdade e o único capaz de a revelar”.
Mas o interessante é o que diz este autor: «Faz parte desta freguesia o
lugar de Paula» com serviço de correios. Fala neste lugar duas vezes e não
refere mais nenhum lugar, o que significa que devia ser o mais importante.
O artigo verdadeiro faz pensar que Paula da Graça está a enviar ao futuro
uma mensagem codificada. Seguindo S. Tomás, ela escreveu usando um
direito de legítima defesa, uma “vingança” permitida pelo “julgamento
humano”. Diz ela no prólogo:
2º. Ela tinha direito ao “julgamento humano” porque havia uma causa da
qual todas dependiam. As mulheres eram um corpo, ela tomou-se
procuradora de todas, porque “um deve ser solícito pelo outro”.
O padre Bartolomeu não pôs a voar a sua famosa “passarola” que ele,
por graça, se lembrou de desenhar. O que realmente subiu foi um globo,
um balão com ar quente, feito de arame, papel grosso e madeira fina. Era
uma espécie de balão de S. João.
Foi pena Portugal não ter continuado. Quase cem anos depois é que um
português voou (1875), voando a primeira gloriosa portuguesa em 1884.
Ela subiu, com o balão ainda preso por cordas, até à altura do camarote
real, cumprimentou a Rainha e lançou flores e versos. Eram 4.10 h da tarde.
Voltou a voar 16 dias depois, mas a viagem não correu tão bem. Mesmo
assim, teve uma receção verdadeiramente triunfal. E, à noite, no Teatro D.
Maria, foi também festejada e aplaudida pela coragem e arrojo. Ela
suplantou o deus ícaro, que queimou as asas ao se aproximar do Sol. Quer
dizer, ela não queimou as asas mas as amarras que prendiam as mulheres
não só ao chão, mas ao interior das casas, a leis, a costumes e à estupidez.
Vivia-se num tempo de exclusão das mulheres do espaço público, quanto
mais voar pelos ares como pássaros em liberdade!
Apoiar esta primeira voadora deve ter sido das iniciativas mais arrojadas
da rainha D. Maria II.
CAPÍTULO II
Iva Ruth Guerreiro era atriz de teatro. Só podia ser, porque na altura as
atrizes eram as mulheres que mais enfrentavam as convenções do mundo.
O Jornal O Primeiro de Janeiro, do dia 23, diz que a subida de Iva seria
«um facto digno de assinalar-se e que por longo tempo será cantado. Que
as brisas a tratem bem, minha senhora! Et bonne chance!». [Na época era
costume utilizar aqui e ali expressões em francês como hoje se usa em
inglês, manias provincianas lusas]
I — A ASCENSÃO
Quanto ao semanário A Vida Moderna, dia 29, informa que a atriz «na
ocasião da partida, saltou para a barquinha do balão com grande presença
de espírito... Logo que o balão partiu, a gentil atriz saudou a imensa
multidão que admirava o seu sangue-frio, continuando a saudar o público
até já mal se divisar o vulto, espalhando ao mesmo tempo programas».
Por sua vez, O Século, dia 25, diz que «o balão elevou-se tranquilamente
na serenidade do azul à altura talvez de 300 metros».
São diversas as informações acerca do traje que Iva Guerreiro usou nesse
dia glorioso. Mas todos referem que ela se vestiu de homem, o que só por si
era um arrojo nesse tempo. É curioso que o jornal O Século lhe chama
“traje de fantasia”.
Foi então cair em Vila Nova de Gaia. Mas em que sítio? O Comércio do
Porto diz que «o aeróstato subiu a grande altura e depois de pairar nos ares
por alguns minutos, tomou a direção de Santo Ovídio... caindo sem
acidente no sítio da Telheira, próximo da Rasa». O Primeiro de Janeiro (na
altura não existia Jornal de Notícias, porque de 1870 a 1888 fundiu-se com
o “Janeiro”) diz que o balão caiu «no campo de Campelles, sítio da
Telheira, Lugar da Serra», tendo sido os aeronautas «muito obsequiados
pelo proprietário do campo». O nome do proprietário era Manuel Joaquim.
Ao cair, Iva Ruth feriu-se num joelho. Naturalmente que ver descer um
aeróstato era algo pouco comum. Julgo, no entanto, que ninguém pensou
que eram figuras sobrenaturais, como no caso da Madame Bertrande
Senges, em 1850.
Quanto ao Primeiro de Janeiro, diz que vieram «para a cidade num trem
que acompanhara a direção do balão e o esperava precisamente no lugar em
que ele veio cair».
No Porto, Castanet estava hospedado no Hotel Águia D’Ouro. Iva Ruth
acompanhou-o a esse hotel, assomou à janela do prédio e foi saudada por
diferentes grupos.
O que é o céu? Em 1884 era o espaço azul por cima das cabeças, mas era
assim que se começava — pela poesia, pela inovação, pelo arrojo. E hoje,
cerca de 130 anos depois, quem sabe realmente o que é o céu? Ainda
estamos a descobrir o que existe realmente no espaço, na imensidão das
estrelas, nesse universo infinito a que continuamos a chamar céu.
CAPÍTULO III
AS PRIMEIRAS PARAQUEDISTAS
Mas foi em Lisboa que Louise realizou o feito que a deixou na história
da aviação portuguesa. Aí, no dia 16 de Setembro, desceu em paraquedas,
tomando-se a primeira paraquedista em céu português. O balão era pilotado
pelo marido, Eugene. E, nesse dia, deram «boleia» ao cavaleiro
tauromáquico D. João de Menezes, que foi, portanto, o primeiro português
a viajar pelo ar.
Sempre era preciso fazer o tal passo em frente. Eis-me em pleno céu, a
descer a uns 180 km por hora, até que o pára-quedas se abriu
completamente! Tudo quanto diga é pouco! O contraste extraordinário
entre a queda livre vertiginosa e a suavidade da descida com o páraquedas
aberto! A beleza sem fim das cúpulas brancas do nosso páraquedas que o
sol torna duma luminosidade admirável, projetada sobre um fundo
transparente de céu azul! Mas nem tudo é meditação.
Há que trabalhar!
Pilota é uma palavra que ainda não soa bem, pois convencionou-se que
pilotar aviões era tarefa masculina. Assim, quando Portugal viu a primeira
mulher a obter um brevet, que foi em 1928, ficou sem saber como a
designar. Uns chamaram-lhe «a primeira aviadora», outros «a primeira
mulher-piloto».
No espaço português, foi mais uma vez uma francesa, Sofíe Driancourt,
a primeira a pilotar um avião. Aconteceu em 1913, tendo efetuado quatro
voos em Estremoz. E, nessa data, não concorreu a um certame
internacional, em Lisboa, porque — pasme-se! — lhe roubaram uma das
rodas do aparelho!
*
1 — A PIONEIRA FURA LEIS
2 — O DIA GLORIOSO
Nas entrevistas que deu, Maria de Lourdes disse que devia o seu brevet à
competência e ao carinho do seu instrutor e ao ambiente simpático que
desde o início encontrara em Sintra.
No Diário de Lisboa, no dia 6, podemos ler: «Num país onde não há
Aviação Civil — à exceção das carreiras aéreas para Madrid — é de
salientar o facto de em 4 brevets civis passados pela Escola de Sintra, um
deles pertencer a uma senhora».
AVIADORAS DO ULTRAMAR
1 — AVIADORAS EM MOÇAMBIQUE
2 — PILOTAS DE ANGOLA
Há ainda a referir Cândida Ghira (1947) que irá ser também a primeira
instrutora de automóveis, tendo formado a primeira (talvez única) Escola
de Condução Feminina. Maria Carolina Cordeiro (1951) tomou-se a
primeira radiografista de aviões — Marie Claire, 1989, Abril.
3 — S. TOMÉ E PRÍNCIPE
4 — As PARAQUEDISTAS MILITARES
AS MODERNAS GLORIOSAS
2 — APÓS A DÉCADA DE 50
4 — A FORÇA AÉREA
Foram precisos 140 anos. Com as mulheres, os direitos são obtidos com
esforço, a conta-gotas.