Você está na página 1de 207

HEROÍNAS PORTUGUESAS ESQUECIDAS

(Mulheres que Enganaram o Poder e a História)

FINA D’ARMADA
INTRODUÇÃO

Heroínas! O que são Heroínas?

Tal como a Terra gira e se renova, na marcha do tempo e da vida,


também as heroínas mudam com os ventos da História.

Disse Robert Charroux que, se um homem matava outro, ia parar à


cadeia como criminoso. Se matava dez, metiam-no num hospital
psiquiátrico, era tolo. Mas, se matava milhares numa batalha, virava herói e
erigiam-lhe uma estátua em praça pública.

Outrora, as heroínas eram as mulheres “virago”, as que imitavam os


homens nas suas lutas guerreiras. Se alguma mulher pusesse esse mundo
em causa, era mal vista e desprezada pela sociedade.

Houve tempos em que as heroínas eram as que morriam em defesa da


sua fé. Nasceram assim as santas.

As “minhas” heroínas não estão em paralelo com os heróis. São outras.

Não sei se as heroínas selecionadas para esta obra serão heroínas para
toda a gente. Mas são as “minhas” heroínas, aquelas que considero
valorosas em nosso tempo.

Heroínas são, para mim, mulheres que fizeram algo fora do comum,
novo, digno de registo, que provocou transformações sociais e mudanças
de mentalidade. Estão ligadas à vida, à mudança, nunca à morte. São
aquelas que superaram a tragédia ou estigma de terem nascido do sexo
feminino. As que vieram ao mundo para pôr em causa esse mesmo mundo.
As que romperam o próprio conceito de sagrado que até esse tem sido
masculino. Assim, uma moça de Coimbra foi morta pela Inquisição, porque
não era filha amada de Deus como sempre lhe disseram. Ela atreveu-se a
ser representante Dele na terra e ser padre jesuíta durante 18 anos.

Também houve mulheres que descobriram que, afinal, não eram filhas
dos homens. Estes, os que tinham poder, em vez de as tomarem felizes,
como filhas amadas, serviram-se delas, roubando-lhes os filhos e bens, e
nas leis destinaram-lhes apenas proibições. Rompendo essas proibições,
não cumprindo o determinado pelos senhores, o que exigiu sempre
coragem e sofrimento, eis as novas heroínas!

Heroínas, para mim, foram as que abriram caminhos. As que derrubaram


portas fechadas. As que enganaram o poder e as normas para sobreviver.
As que suportaram a morte, o desprezo, a crítica, o abandono para que um
novo mundo nascesse. Para que na vida houvesse mais felicidade e as
mulheres, meia humanidade deste planeta, também pudessem saborear o
conceito de liberdade.

As heroínas deste livro, na medida em que são desconhecidas, ou quase,


demonstram que o próprio tempo as aprisionou e foi enganado por elas.
Este livro tenta libertá-las da prisão da história e de mentalidades de
tempos idos. Esta é uma maneira de as cantar e de lhes agradecer.

As heroínas perpetuadas nesta obra são mulheres de quem me orgulho,


como vindoura.

Fina d'Armada Rio

Tinto Junho de 2012


I PARTE

DIRIGENTES PODEROSAS DO SÉC. XV


CAPÍTULO 1

LEONOR DE MENEZES: A GOVERNADORA DE CEUTA E O SEU


RETRATO NA PEDRA

Em 1432, D. Pedro de Menezes, governador de Ceuta, veio ao reino «deixando por


governador da Fazenda Dona Leonor, de cujo siso e descrição ele muito se fiava».

Gomes Eanes de Zurara

A História esqueceu-se dela. Nenhum Dicionário de Mulheres Notáveis,


nenhuma Enciclopédia, nenhuma biografia a refere. E, no entanto, foi
talvez a mulher mais importante e inteligente do século XV, fora da família
real, pelo menos não se encontra quem a superasse.

Chamava-se Leonor de Menezes e governou Ceuta de 1430 a 1437, na


ausência do pai e mesmo depois de ele ter regressado casado e amargurado,
pois, segundo Zurara, continuou com «a fazenda do padre em poder e tudo
passava por sua mão».

D. Pedro de Menezes foi nomeado governador de Ceuta após a praça ser


conquistada, em 1415. Cinco anos depois, em 1420, a sua esposa D.
Margarida, dama da corte, faleceu. Então D. Pedro pediu ao rei que lhe
mandasse para Ceuta as suas filhas e filho. Eram duas legítimas — Leonor
e Beatriz — mais três filhos que ele fizera numa dama da sua casa (a quem
chamavam a Pessegueira), duas raparigas e um rapaz. O rapaz, que ele
tomou herdeiro em 1424, chamava-se D. Duarte de Menezes. Na altura
tinha 5 anos.
Quando estas filhas e filho embarcaram para Ceuta, foi juntamente uma
noiva para o pai. Essa noiva morreu no mar.

Em 1426, o governador continuava viúvo. Arranjaram-lhe então uma


noiva, D. Beatriz Coutinha. Era filha de Fernão Martins Coutinho, senhor
de Mafra.

Desta vez conhece-se como o casamento se realizou. Aconteceu em


Sintra, nos Paços do rei, em 1426, e foi D. João I que dotou a noiva. O
noivo foi representado por um procurador e assistiram os três infantes —
D. Duarte, D. Henrique e D. Fernando. A noiva irá durar pouco, faleceu já
em 1430.

E vai ser esta morte, por ironia do destino, que irá tornar a filha D.
Leonor de Menezes uma das mulheres com poder na nossa História.

Embora os casamentos nesse tempo fossem arranjados, determinou o


destino que o velho D. Pedro de Menezes se apaixonasse a sério pela
esposa. Quando ela faleceu, deixou de se arranjar, de fazer a barba, a ponto
do rei D. Duarte intervir e o obrigar a seguir em frente. O rei arranjou-lhe
mais uma noiva, Genebra Pessanha, com quem casou no reino, mais uma
navegante dos mares que chegou a Ceuta em 1434. Mas D. Pedro nunca
mais esqueceu a esposa Beatriz e pediu à filha D. Leonor que o enterrasse
junto dela.

O filho Duarte ia crescendo, único varão. Devido aos contactos do pai,


foi legitimado em 1424 e destinado a herdeiro. Seria o futuro governador
de Ceuta, senhor dos bens da Coroa, pela Lei Mental, vontade do pai e do
rei. Mas não era essa a vontade das filhas legítimas Leonor e Beatriz, ou
não tivessem sangue de Leonor Teles. E vão dar uma mãozinha ao destino
contra todas as leis e costumes.
Leonor, como o pai com o desgosto da morte da sua apaixonada não
tinha cabeça, passou a governar a praça. Beatriz, casada com Fernando de
Noronha, que ainda era primo afastado do monarca, veio ao reino e pediu a
ajuda da futura rainha, esposa de D. Duarte, que era também mais astuciosa
do que reza a história. Quando Beatriz casou, o pai dera-lhe um dote
elevado que depois se arrependeu, porque Leonor ficava assim sem dote.
Mas quando viu o genro em Ceuta, D. Pedro não teve coragem de retirar o
dote que dera à filha e assim Leonor ficou mesmo sem dote atrativo que os
interesseiros do tempo cobiçassem.

1 — A GOVERNADORA DA FAZENDA DE CEUTA

Leonor de Menezes foi a mulher sobre a qual Zurara mais escreveu,


embora nem sempre bem. Sendo pago para descrever os factos guerreiros
de heróis masculinos, perdeu algum tempo com ela, fornecendo
pormenores do único movimento que se saiba, nesse século e no período da
expansão, que lutou para que uma mulher governasse uma praça. Ela
deixava-o confuso, ele só encontrava as palavras inveja e mesquinhice para
entender a ação de Leonor. Na verdade, uma mulher a lutar por direitos no
século XV era vista como «invejosa» dos direitos que tinham os homens.

Leonor não obedece a cânone nenhum do seu tempo. Tudo era contra
ela. Nasceu mulher numa época em que isso era um estigma. Não era a
primogénita. Não foi mãe. Não tinha dote para casar com um grande do
reino. Em contrapartida, não precisou nem de casamento nem de convento
para sobreviver e ter poder. Era inteligente, culta, sabia governar, admirava
as letras e as artes, era ela que preparava as galeotas na doença do pai
(mandou preparar duas e escreveu ao irmão Duarte que estava na conquista
de Tânger para vir assistir aos últimos momentos do governador), as suas
capacidades eram admiradas por todos. Acabou por casar com cerca de 40
anos — pasme-se — com um jovem de dezassete. Até nisto foi contra
todos os cânones. E não foi com um jovem aventureiro qualquer — casou
com o futuro Duque de Bragança, um dos homens mais poderosos do reino,
a quem D. João II mandará cortar a cabeça.

A sua ação deve ter começado por volta de 1430. Nesse ano faleceu a
sua madrasta Beatriz Coutinho e o pai ficou sem cabeça para governar. A
filha tomou conta do governo, sobretudo da parte financeira. Em 1432, D.
Pedro veio ao reino, ficando o filho Duarte «por capitão em seu lugar», e
«deixando por Governador da Fazenda Dona Leonor sua filha, de cujo siso
e descrição ele muito se fiava»1. D. Pedro por cá ficou dois anos, assistindo
à tomada de posse do rei D. Duarte, regressando já casado com Genebra.
Na ausência do pai, a filha não só governara bem a praça como lhe ofertara
ainda um lindo navio. Diz Zurara:

Achou seu pai toda sua fazenda mui bem aproveitada, sem escândalo de
nenhuma pessoa, nem carrego de consciência, e sobretudo achou uma
galeota feita de dezasseis bancos muito nobremente obrada; e assim das
cavalarias do filho, como da boa descrição da filha, o conde era muito
alegre e folgava muito quando lhe nisso falavam as gentes, as quais coisas
não podia ouvir sem lágrimas.

D. Genebra foi uma capitoa de Ceuta sem história e deve ter vivido
amargurada. Por um lado, o marido não esquecia a outra esposa, pedindo à
filha que o enterrasse com ela, qual Pedro e Inês. Por outro, essa filha
Leonor continuou com «a fazenda do padre em poder e tudo passava por
sua mão».

O pai pedira ao rei a capitania para o filho D. Duarte e o rei prometera-


lha. Todavia, quando esteve no reino, entre 1432-34, a filha Beatriz (que
após estar um ano casada em Ceuta, veio viver para Lisboa) pedira-lha. O
conde que «era cera na mão dos filhos», comenta Elaine Sanceau, cedia a
tudo.

Segundo Zurara, em 1432, a filha Beatriz começou com astúcia a


pretender Ceuta, «teve modo com seu padre que desse aquela Vila a seu
marido», tendo conseguido nessa altura que o título do pai, Conde de Vila
Real, passasse para ela e marido (e não para o legitimado Duarte de
Menezes) quando chegasse a hora da herança. D. Pedro, fez então um
contrato com o genro, «sob pena de maldição» — o filho herdeiro deles,
seu neto, teria de se chamar Menezes e não Noronha. E assim aconteceu.
Esta Beatriz será também a mãe do Io Marquês de Vila Real, D. Pedro de
Menezes como seu avô, de onde descendem os ilustres dessa casa que
chegou a ter a importância da casa de Bragança.

2 — O MOVIMENTO A FAVOR DE UMA MULHER GOVERNAR

Foi então que Leonor tentou «modificar» a história. Passar a perna à


irmã “condessa” e ao meio-irmão legitimado. Era ela quem pagava a todos.
E, vista a grande crença que lhe o padre dava, a maior parte dos criados e
servidores a seguiam, especialmente um Judeu que se chamava Mestre
José Zarco, que era bom filósofo".

Esse Judeu era médico e fora a filha Beatriz que lho mandara de Lisboa.
O pai estava decaído e doente, porque segundo Zurara, «era homem cheio
de carne e um pouco destemperado no auto das mulheres». Uma vez em
Ceuta, o médico judeu, ao presenciar as capacidades de Leonor, mudou de
ideias e passou a defender que a capitania devia passar para ela. Zurara
aproveita para dar a sua opinião, fala da «mesquinhada inveja» de D.
Leonor e quanto ao Mestre José «já vedes como Judeus se sabem meter».
Acrescenta que a governadora da Fazenda «ora fosse por conselho do
Judeu, ou doutro, ou de si mesma, trabalhava quanto podia para abater seu
irmão e assim em Ceuta como em Portugal».

Acabaram por convencer o Conde, que mais uma vez muda de ideias,
pedindo agora a capitania para a filha Leonor. Zurara classifica a natureza
de D. Pedro de «mudáveis propósitos», porque «nascera em signo de dois
corpos na triplicidade do fogo». A astrologia era ciência reconhecida, nesse
tempo.

Veio então uma embaixada a Lisboa chefiada por um cavaleiro, Vasco


Domingues, «que a criara nos braços». Zurara cita o grande discurso desse
embaixador ao rei D. Duarte, falando em nome de D. Pedro de Menezes.
Elogia os feitos de Leonor, que a principal parte da herança ficaria para a
filha Beatriz e marido e o que ficou era muito pouco para ele a poder casar
sem a ajuda do rei. E a ajuda era «dardes aquela capitania a quem quer que
casar com aquela sua filha».

O rei ficou surpreendido, pois sabia da vontade do governador de passar


a capitania para o seu filho Duarte, já lha tinha prometido, dado que era
homem e grande guerreiro. Aí Vasco Domingues diz que não era tanto
assim, eles como seus servidores, para agradar a D. Pedro, é que
exageravam os feitos do filho, mas ele não era homem para governar uma
cidade, quando muito uma aldeia pequena. O rei ficou confuso ao ver que
havia três fações em Ceuta. Pediu então que D. Pedro lhe enviasse o filho.
D. Vasco regressou desanimado e dá o recado. Só que a filha Leonor
«trabalhou de o desviar» e «aqueles que a amavam» começaram a dizer a
D. Pedro que se mandasse Duarte para o reino podiam vir os Mouros e não
haveria quem defendesse a cidade. «O pobre bonacheirão do D. Pedro,
enfermiço e obeso, e o jovem Duarte, calado e de poucas falas, soldado
simples acima de tudo, não se podiam medir com as mulheres» — conclui
Sanceau.

O epílogo da história é que Beatriz e seu marido ficaram com a


capitania. Leonor ficou testamenteira e herdeira do resto. E, quando em
meados de 1438 os irmãos Duarte e Leonor regressaram a Lisboa, o rei D.
Duarte sentiu-se ludibriado. Ao ver Duarte de Menezes: «Ficou muito
espantado em si mesmo e não se pode ter que o não dissesse... Deus perdoe
a quem de vós disse muito ao contrário do que eu em vós vejo... se não fora
acerca de vós enganado como fui...».

O rei quis remediar o engano. Nomeou Duarte seu alferes-mor e casou-o


com uma viúva rica, D. Isabel de Melo, acrescentando-lhe um dos maiores
dotes de que há memória — 8 000 coroas. E deu-lhe a posse das terras
henriquinas de Gulfar e Penalva, penhoradas a seu pai pelas dívidas do
Infante D. Henrique, obrigando as filhas a concordar: «E, porque a nós
aprouve ele haver logo pagamento das ditas três mil dobras, falamos com a
condessa de Vila Real e dona Leonor de Menezes, suas irmãs, que
encaminhassem como lhe logo fossem pagas».

Mais tarde, em 1459, D. Afonso V beneficia Duarte, fá-lo capitão de


Alcácer-Ceguer e dá-lhe o título de Conde de Viana, em 1460. Mas Duarte
de Menezes não nascera com sorte. D. Afonso V esqueceu-se do poderio
dos mareantes de Viana (do Castelo) que não queriam conde algum. Um
procurador às cortes de 1460, João Velho, vai conseguir que D. Afonso V
acabe com esse título aquando da morte de D. Duarte de Menezes. Como
faleceu em 1464, só foi conde 4 anos. Quanto a João Velho (cuja casa
ainda existe a norte da Matriz de Viana, memorável por nela ter pernoitado
D. Manuel I, em 1502), consta que gravaram em seu túmulo o feito de ter
obtido «uma provisão por onde esta vila passou a ser d’el rei...». Viana
conseguiu manter-se sem conde até ao séc. XIX.
Quanto a D. Leonor, após abandonar Ceuta, como herdeira e
testamenteira do pai, vai solicitar ao regente D. Pedro certas dívidas do
Infante D. Henrique ao seu progenitor. O regente deu-lhe certa tença na
portagem de Lisboa que ela passou à meia irmã Isabel, filha de Beatriz
Coutinha.

Em 1444, é a vez de fazer contas com a irmã, casada com o Noronha,


governador de Ceuta, o qual passou uma procuração à esposa para ela ter
poder de decisão da herança do progenitor. Elas fazem umas partilhas
famosas, que não há outras na história, que iam contra as leis. Leonor,
solteira, negou à irmã a posse de bens que Beatriz dizia que eram da coroa,
e já possuía, portanto o herdeiro seria seu filho. Leonor chamou parte
desses bens ao património familiar e penhorou-lhos enquanto Beatriz não
lhe pagasse determinada quantia. Acabaram por fazer esse acordo «por
evitarem preitas e demandas prolongadas e graves ódios e muitas
despesas». O Infante D. Pedro, regente do reino, deu validade ao contrato,
mas foi dizendo «sem embargo de qualquer lei ou decreto ou opiniões de
doutor ou de ordenação de nosso reino que especialmente em tal caso fale o
contrário». E falava. Leonor, que era um cérebro, descobria maneira de dar
volta ao sistema.

Este contrato de partilhas entre mulheres poderosas é uma delícia para


estudo de como se podia contornar a Lei Mental. Foi próprio de uma época
que enfrentava muitas mudanças, certamente impossível noutros tempos.

Com cerca de 40 anos, Leonor casa com um jovem de 17, filho do


Duque de Bragança, que faz dela condessa. A biografia desse noivo diz que
casou em 1447, dez anos depois de deixar de ser governadora da fazenda
de Ceuta. Leonor esteve casada quase cinco anos, tendo falecido a 7 de
Maio de 1452, conforme consta do seu túmulo, em Santarém. Não tiveram
filhos e ele voltou a casar com uma filha da Infanta D. Beatriz, irmã da
rainha Leonor, ficando a ser cunhado de D. João II.

É curioso constatar que Zurara termina a crónica de D. Pedro de


Menezes, rogando pela alma do biografado, do filho Duarte, pelo Infante
D. Henrique e por «Dona Leonor cujo requerimento foi azo de se isto
melhor escrever». Também incentivava afinal as crónicas.

3 — O RETRATO EM PEDRA DA GOVERNADORA

Quase seiscentos anos depois, foi a minha vez de fazer uma viagem.
Enfrentei o vento não de barco, mas de carro. Não até Ceuta, mas até
Santarém. Procurei a linda Igreja da Graça, um inspirado poema em pedra.
E eis-me perante os rostos de duas das nossas primeiras viajantes.

Esta Igreja de Santarém é muito visitada por nacionais e estrangeiros. O


interesse vem do facto de, no seu interior, se encontrar o túmulo de Pedro
Alvares Cabral. Infelizmente, o descobridor do Brasil, embora tenha casado
com uma dama da corte, não desposou uma mulher que reconhecesse a
importância da sua descoberta — o túmulo do navegador é uma pedra rasa
com uma inscrição que fala mais nela que nele.

Os olhos dos visitantes acabam por ser atraídos para um monumento


sumptuoso da nossa arte tumular. Desta vez é uma obra feminina, pois foi
uma viajante que o mandou construir e o custeou. Rendilhado, com texto
gravado, brasões esculpidos, é demasiado alto, só de escada se podem
observar as estátuas jacentes.

As estátuas estão de mãos dadas. Perpetuam pelos séculos um amor que


foi enternecedor. A dama, esculpida em calcário, é Beatriz Coutinho, que
viajou para Ceuta em 1426. No chão, ao pé do belo túmulo, uma raridade
— o retrato traçado na pedra de Leonor de Menezes que partiu em 1420 e
foi a autora da construção da obra.

Ao vê-la, a emoção sentida é a de despertar uma bela adormecida, o


encontro com alguém que parecia estar à nossa espera há 550 anos.

Ela foi desenhada de mãos postas, como era tradição. Mas à madrasta,
quando era ela a determinar, colocou-lhe um livro na mão.

Zurara perpetuou feitos masculinos, a morte, o saque. Leonor de


Menezes perpetuou mulheres, as origens nobres delas, o amor e a arte.

No decurso da sua vida, Leonor de Menezes foi sempre original. Para


além de mandar erigir um túmulo sumptuoso, que ombreia com os da
Batalha, instituiu em testamento, na mesma Igreja da Graça, cinco
mercearias bem dotadas para se darem a homens ou mulheres pobres. E
estes merceeiros ou merceeiras não eram obrigados a irem a esta Igreja,
«mas em qualquer outra, ou ainda em suas casas podem cumprir com a sua
obrigação, que na verdade é privilégio tão amplo que não sei se neste Reino
o terão outros merceeiros», conclui o P.e Ignácio de Vasconcelos.

Gomes Eanes de Zurara descreve Leonor de Menezes como mulher «de


grande saber». E realmente, diante do seu retrato, nós apercebemo-nos que
ela tinha uma ideia de futuro que não era comum no seu tempo —
perpetuar em pedra retratos e textos. O túmulo perpetua seu pai, D. Pedro
de Menezes, e a sua madrasta. Mas como boa filha, transladou também os
ossos de sua mãe para esse túmulo e foi ela certamente que redigiu os
textos que chegaram até nós e que qualquer um hoje pode reler, nos dois
túmulos, relatando os feitos de seu pai e a sua própria identidade.

Perpetuou ainda armas femininas, pois no túmulo rendilhado mandou


esculpir os brasões de sua mãe e de sua madrasta.
De qualquer modo, Leonor de Menezes poderia ter sido a primeira capitã
de uma praça do Ultramar exercendo o cargo com competência. Afinal, nos
anos em que foi governadora da Fazenda, a cidade prosperou. Portugal só
teria lucrado com isso, pois há imensos testemunhos de maus governos e de
corrupção na índia e noutras partes. O movimento gerado à sua volta, para
que ela ficasse com a capitania de Ceuta (sob o pretexto de dote para um
marido), prova que havia mentes abertas à mudança dos tempos e que
Portugal perdeu a oportunidade de ser pioneiro na esfera das mulheres.

Legou-nos, no entanto, algo único, que nem os reis se lembraram — de


mandar desenhar o seu retrato em pedra para que chegasse ao futuro.
CAPÍTULO II

A INFANTA D. BEATRIZ: GOVERNADORA DA ORDEM DE


CRISTO POR BULA PAPAL

Confiados que tu sobressais na prudência, na honra e em muitas outras virtudes...


Nós te concedemos o governo e a administração das coisas temporais do dito
Mestrado, governando com o Duque de ti nascido, até que atinja a idade legal, e até
mesmo depois disso...

Dado em Roma, junto de São Pedro, sob o Anel de Pescador, no dia XIX
de Junho da Era de CCCCLXXV, quarto ano do nosso pontificado (Papa
Sixto IV)

A primeira ferramenta para o estudo da História é o documento; a


segunda é o raciocínio.

Por vezes, a segunda ferramenta, o raciocínio, não consegue encaixar na


lógica a ausência de documentos para determinada época. Nasce assim um
enigma que se transforma num facto — a ausência de documentos ou o seu
encobrimento tem uma razão a qual também faz parte da história.

Começou há muito tempo. Quando eu entrei na roda do mundo, fui


apanhada pela mesma engrenagem. E assim ensinavam-me e eu aprendia
— os Descobrimentos, o maior feito histórico português, tinham sido
levados a cabo por heróis do mar. Todos homens. Mais tarde, era eu que
ensinava e alunos e alunas aprendiam — os Descobrimentos tinham sido
realizados por... E lá vinham ao pódio o Infante D. Henrique, D. João II,
Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama... Eles, os homens do meu
País, de quem muito me orgulhava, tinham feito tudo — os barcos, os
instrumentos, as viagens, a descoberta, a colonização, a evangelização, a
conquista pela espada, a guerra e a paz, os tratados... Ninguém me ensinava
e eu também não ensinei quem tecia as velas que faziam mover os barcos,
como se colonizavam terras desabitadas sem mulheres a navegar em
caravelas, quem fazia o «pão do mar» e compotas para sustentar durante
meses os heroicos marinheiros sobre as ondas, quem trabalhava e pagava
impostos para essa realização... Eu achava natural tudo o que me
ensinavam. E achava também natural e lógico tudo o que eu ensinava.

Novos livros se iam publicando, novos documentos vinham a lume. Veio


a preparação da Expo 98 e tudo se voltou para as descobertas tendo como
estrada os oceanos. As mulheres da CIDM (Comissão para a Igualdade e
Defesa das Mulheres), organismo estatal, fizeram um esforço, em 1994,
organizando um Congresso Internacional sobre «A Face Feminina da
Expansão Portuguesa». Mas, nesse mesmo ano, a fina flor das
universidades, professores com currículos do tamanho de dicionários, 135
personalidades — 97 homens e 35 mulheres — expuseram as mais
modernas investigações. Chamaram-lhe Dicionário da História dos
Descobrimentos Portugueses, dirigido por Luís de Albuquerque, dois
volumes, 1120 páginas em duas colunas. Parti logo em busca do que de
mais moderno havia sobre os Descobrimentos mas... nem queria acreditar:
não havia uma única entrada com o nome de mulher.

Pensei que tinha visto mal e deu-me para folhear, página sobre página,
ler e reler os nomes. Talvez na palavra Isabel viesse a irmã do Infante que
custeou a vinda de dois mil flamengos para colonizar os Açores, ou Isabel a
Católica (só vinha reis católicos)... Talvez nos assuntos... Talvez houvesse
a entrada «Misericórdias» e aí se falasse da rainha Leonor, mas não
aparecia a palavra «Misericórdias». Procurei ainda o nome de mulheres que
tinham sido mães de homens importantes... mas até o rei D. Manuel I era só
filho do Infante D. Fernando.

1 — À MÃO DE SEMEAR

Talvez tudo acontecesse porque não existia o documento — a primeira


ferramenta da História. Mas a segunda ferramenta — o raciocínio — dizia-
me que era impossível. As mulheres deviam ter feito alguma coisa. Não
podiam ter passado séculos a fio sentadas a ver os homens construir o
mundo.

Foi então que parti eu à descoberta das minhas antepassadas. Primeiro


procurei nos livros de história, nas Crónicas... Nas Crónicas de autores
antigos ainda se encontrava uma ou outra. Depois icei velas e resolvi partir
à descoberta — não de barco mas de alfa pendular até à capital, onde mora
a Torre do Tombo. Não é fácil a pesquisa para quem não vive em Lisboa. E
preciso transportes, hospedagem...

Enfim, aspirei o ar dos eucaliptos da Alameda da Universidade, cheiro


meu conhecido por ter crescido entre eles, e eis-me a subir as escadas da
Torre do Tombo. Após as formalidades de acesso, dei comigo a subir 17
escadas, patamar, outros 17 degraus. Respirava-se um ar de saber, com
árvores através de vidros, como se houvesse no ar uma mensagem que os
livros vêm das árvores e o verde. Natureza e saber estão entrelaçados no
mundo. Mas também na Torre do Tombo se respirava silêncio e solidão,
talvez por o saber não atrair multidões.

Comecei nos índices das Chancelarias a procurar nomes de mulheres de


A a Z. Abreviando para o que interessa, ia eu na letra B, quando verifiquei
que à frente do nome Infanta D. Beatriz havia imensos documentos. No
índice de um deles, podia ler-se «Carta do Governo Temporal da Ordem de
Cristo». Devia ser engano. Podia lá ser uma mulher governar a Ordem de
Cristo, ter acesso ao saber secreto dos Templários e administrar os seus
dinheiros!... Mas remetia para o Livro 30 da Chancelaria de D. Afonso V e
para o Livro dos Mestrados. Muitos dos índices de documentos, com
funções importantes passados a esta Infanta, remetiam para o Livro dos
Místicos. Procurei então na Chancelaria dos Comuns, de D. Afonso V, e na
Ordem de Cristo. Havia ao todo 15 documentos passados a essa Ordem ex-
Templária e lá estava um passado à Infanta D. Beatriz. Não era engano,
portanto.

O que me surpreendeu é que essas localizações estavam à mão de


semear. Ali, na sala de livre acesso. Logo três indicações que remetiam
para o facto de uma mulher ter dirigido a Ordem de Cristo no tempo em
que a Ordem de Cristo encabeçava os Descobrimentos.

2 — A BULA DO PAPA

Pedi então o livro n° 30 da Chancelaria de D. Afonso V. Lá estava


lavrado a tinta amarela. Pedi o Livro dos Mestrados e meus olhos
mergulharam no documento intitulado: «À Infanta dona Beatriz bula do
Papa Sisto quarto perque lhe concedeo e cometeo o Regimento da
governança do mestrado de Cristo nas cousas temporais». O texto estava
em latim (ver acima).

Propus-me então buscar a tradução, dado que o meu latim é muito fraco.
Nunca encontrei. Acabei por entregar essa tradução a Henrique Ferreira, da
vila de Fânzeres, Gondomar. Henrique entregou-me esta tradução:

Dileta filha em Cristo: saúde e bênção apostólica.


O Nosso caríssimo filho em Cristo Afonso, ilustre rei de Portugal e dos
Algarves, — a quem confiámos, pelo Nosso Breve, a faculdade do governo
e da administração das coisas temporais do Mestrado da Ordem de Nosso
Senhor Jesus Cristo dos ditos reinos, e a quem conferimos o cargo de
Precetor, durante o tempo vago, até que alcance a idade legítima, do seu
dileto filho Diogo, Duque de Viseu e de Beja, Administrador daquele
Mestrado, e de ti nascido, — recentemente Nos pediu que, não obstante
isto, antes concedêssemos a ti tal governo.

E que, logo em seguida, o Rei fez-Nos saber, pelo dileto filho João de
Sousa, soldado da Ordem de São Tiago, a Nós enviado como seu Porta-
voz, que, estando impedido por muitos outros árduos e legítimos negócios,
não podia aceitar tal cargo, nem receber para si, como havíamos confiado,
o governo do referido Mestrado. Por isso, pelo mencionado Porta-voz, tudo
ele repunha nas Nossas mãos, suplicando que Nos dignássemos confiar
inteiramente a ti este governo, com todas as suas faculdades.

Pelo que Nós, inclinados às tuas súplicas e às do próprio Rei, e confiados


de que, além da maternidade carnal e da tutoria do Duque, tu sobressais na
prudência, na honra e em muitas outras virtudes, por estas letras e pelas
disposições e ordenações estabelecidas pelo Apóstolo sobre todos e cada
um, Nós te concedemos o governo e a administração das coisas temporais
do dito Mestrado, governando com o Duque de ti nascido, até que atinja a
idade legal, e até mesmo depois disso, se for do seu acordo e vontade; e
permitimos que possas confiar livremente a outrem, se o entenderes, a
precetoria do Duque, durante o tempo da vagatura do Mestrado, desde que
vejas ser pessoa idónea.

Dado em Roma, junto de São Pedro, sob o Anel do Pescador, no dia 19


de Junho da Era de 475, quarto ano do nosso pontificado.
Ora aqui está. O Papa, a pedido do rei de Portugal, e a pedido duma
mulher («Nós, inclinados às tuas súplicas») concede «o governo e
administração das coisas temporais» do Mestrado da Ordem de Cristo à
Infanta D. Beatriz, para todos os efeitos uma mulher. E concede-lho porque
«tu sobressais na prudência, na honra e em muitas outras virtudes». E podia
governar e administrar essa Ordem de Cristo até o filho Diogo ter idade
legal «e até mesmo depois disso...», o que terá acontecido, pois ela irá
governar pelo menos até 1483, durante oito anos. Sem contar que ela deve
ter tido alguma ação nessa Ordem desde 1471, porque era tutora legal dos
filhos. Este filho Diogo será aquele que D. João II irá apunhalar em 1484.

3 — COMO CHEGA A GOVERNADORA DA ORDEM DE CRISTO?

Tudo começou com o Infante D. Henrique. Ele foi nomeado Governador


e Administrador da Ordem em 1420, cargo que exerceu até falecer em
1460.

Mas, em 1436, o Infante D. Henrique andava com a ideia pouco sensata


de ir conquistar Tânger. Todos os influentes da corte desaconselhavam tal
empresa e o rei D. Duarte também era contra. Como o Infante D. Henrique
não conseguia demover o irmão real, teve a ideia de ir falar com a rainha,
esposa de D. Duarte: «tomou por invenção servi-la mais continuadamente e
com mostranças de maior amor do que antes fazia» para ela demover o
monarca. A rainha também era contra, pois temia que o rei partisse na
expedição e morresse por lá. Mas o Infante argumentava e argumentava....
Até que a rainha lhe fez uma proposta — já que era solteiro, que adotasse
como filho e herdeiro o filho segundo da rainha, que teria uns dois anos —
o Infante D. Fernando.
Lavra-se então um documento de perfilhação acrescentando-se um
testamento em que o Navegador deixa a esse miúdo «todos os meus bens,
raízes e móveis». E pediu ao rei que lhe confirmasse a doação ainda para
D. Fernando «de todas as terras que tenho da coroa do reino». Talvez por
exigência da rainha, o Infante Santo, que morrerá em Fez, também fez
testamento a esse filho.

Oliveira Martins diz que a rainha só demoveu o rei a concordar com a


expedição a Tânger quando se encontrava em trabalho de parto. Ora, a
perfilhação e testamento a seu filho Fernando foi feito em Março e a rainha
entrou em trabalho de parto a 18 de Setembro. Nesse dia, «nasceu a Infanta
Catarina, e da crise do parto nasceu também a condenação do rei ao
sacrifício cruel de Tânger».

Fica sempre bem aos historiadores condenarem as mulheres, sobretudo


quando as coisas correm mal, é assim desde Eva. O certo é que em Abril,
meses antes desse parto, D. Duarte reúne cortes em Évora para discutir a
expedição.

A empresa a Tânger correu mal, como se sabe, mas a perfilhação feita


por D. Henrique manteve-se.

Em 1447, em Alcáçovas, o Infante D. Fernando, que devia ter uns 13,


quase 14 anos (porque ele nasceu em Novembro de 1433) casou com a
prima e talentosa Infanta D. Beatriz, então com 17 anos.

A Infanta Beatriz era filha do Infante João, por sua vez filho de D. João I
e de D. Filipa de Lencastre. Pelo lado da mãe, Beatriz era neta do Io Duque
de Bragança e bisneta de D. Nuno Alvares Pereira.

Em 1460, o rei D. Afonso V doara Gouveia a seu irmão D. Fernando, a 6


de Maio. Mas entre Maio e Outubro algo se deve ter passado entre os
irmãos, ou D. Afonso V (que era gastador e dava muito património da
Coroa) apercebe-se que podia ir buscar recursos aos bens do tio Navegador.
Precisava de verbas para o expansionismo norte-africano e para o seu
governo. Em lado algum aparece que ele gastara (ou pedira verba) com os
Descobrimentos.

E então, a 13 de Outubro, um mês antes de falecer, D. Henrique muda o


seu testamento. E deixa D. Afonso V «herdeiro de todo o que a mim
pertencer à hora da minha morte, assim de raiz como de móvel e outras
cousas que lhe prouve de querer que ficassem para sua Coroa e de seus
sucessores». Nomeia «o meu assentamento e as saboarias e as ilhas da
Madeira e Porto Santo e a Deserta e Guiné com suas ilhas e toda sua renda
e o quinto das enxavegas e as curvinas e Lagos e Alvor».

Percebe-se que era a vontade de D. Afonso V tomar conta do quinto da


pescaria do Algarve e da ilha da Madeira, grande fonte de receitas, e não do
Navegador que estava a morrer. Legava ao “pobre” D. Fernando apenas o
que o rei «de mim quiser dar».

D. Henrique faleceu a 13 de Novembro. Quando D. Fernando descobriu,


que tinha sido deserdado, deve ter havido tal barulho entre os irmãos que
logo dias depois, a 3 de Dezembro, ainda com o Infante quente no túmulo,
D. Afonso V restitui ao irmão D. Fernando praticamente o que constava do
Io testamento!

O rei tenta então salvar o governo da Ordem de Cristo. E pede ao Papa o


Mestrado para si ou seu filho herdeiro, o futuro rei D. João II.

Entretanto, talvez temendo uma guerra fratricida, D. Afonso V pede


conselho a seu primo arcebispo de Braga. Este dá-lhe uma resposta evasiva,
mas percebe-se que aconselha o rei a não entrar em guerra com o irmão
para não se repetir outra Alfarrobeira.
O Papa, entretanto, com data de 25 de Janeiro de 1461, portanto, dois
meses depois da morte do Navegador, concede o governo da Ordem de
Cristo a D. Afonso V. Mas este acaba por recusar. E então o governo da
Ordem de Cristo passa para D. Fernando, marido de Beatriz, com data 11
de Julho de 1461.

Este documento passado a D. Fernando descreve o que era a Ordem de


Cristo:

Sobre o [mestrado] de Cristo, cujo rendimento anual se diz computado


em 8000florins de ouro da câmara, ficava o infante [D. Fernando] com
plena jurisdição sobre móveis e imóveis da Ordem, como sobre os freires
(...) Recomenda-se-lhe que, de maneira alguma, deve ser diminuído o
habitual número de freires nem faltar-se com a devida hospitalidade.
Observa-se que lhe incumbem os encargos costumados do Mestrado e dos
freires, após o que D. Fernando pode dispor dos saldos, livre e
licitamente, como fizeram seus predecessores..., não alienando, porém,
quaisquer bens imóveis ou móveis preciosos.

O Papa incumbe os bispos de Camerino, de Évora e da Guarda, coletiva


ou singularmente, por si ou por outrem, de lhe darem ou a procurador seu
posse do Mestrado, isto é, das ilhas, terras, cidades, vilas, castelos,
lugares, direitos e jurisdições e de todos os haveres da Ordem e de o
manterem nessa posse, como de lhe assegurarem plena reverência e
obediência dos súbditos e vassalos da Milícia de Jesus Cristo, a saber,
comendadores, militares, freires e demais pessoas, devendo todos eles
prestar-lhe os costumados serviços e cumprir ordens; dispensa-o, enfim,
Pio II, como casado que era, da profissão religiosa, do uso do hábito
regular e do distintivo [que devia ser a cruz vermelha de Cristo].
D. Fernando andou muito pelo mar, nas conquistas do norte de África
(conquistou Anafé) e era também o governador da Ordem de Santiago, que
passara do sogro, pai de Beatriz, para ele. Certa vez até tugiu do reino,
abandonando a família (coincidência ou não foi no ano em que Cristóvão
Colombo nasceu e dizem que ele era o pai).

A história tradicional ensina-nos que os homens tinham o dom da


ubiquidade, estavam em dois ou mais lugares ao mesmo tempo a fazer
coisas e as mulheres apenas a ver. Foi o que aconteceu a este D. Fernando
— também governou duas Ordens, toda a fortuna que herdou do Infante D.
Henrique, dirigiu descobrimentos, administrou as ilhas atlânticas, comprou
terras, recebeu outras e até o irmão rei o fez Duque de Viseu e de Beja.
Como era guerreiro, conquistou Anafé, no Norte de África, em 1459. Após
regressar adoeceu e tratou do casamento da sua filha Leonor com o
Príncipe Perfeito e da sua filha Isabel com o filho do duque de Bragança.

Naturalmente, como os maridos é que governavam também os bens das


esposas, D. Fernando também governaria a enorme fortuna pessoal de D.
Beatriz. Por circunstâncias várias, ela tomar-se-á a única herdeira do
Infante D. João, seu pai, dos bens do dote da mãe (que incluía Colares e
Serpa) e da maioria dos bens de D. Nuno Álvares Pereira. Além de muito
rica, ainda tinha o sangue irreverente do Duque de Bragança. Mas
imaginam-na conformada.

D. Fernando faleceu a 18 de Setembro de 1470, com 36 anos. Nesse


tempo, as mães não ficavam tutoras dos filhos, nem herdavam dos maridos.
As crianças e os bens eram entregues a um homem da família. É isso que se
poderia pensar deste casal, até os cronistas e historiadores pensam isso.
Mas Beatriz sabia em que mundo vivia e, enquanto estava “sentada” a ver
os homens construir o mundo, ela teve uma ideia. Levou o marido ainda
jovem a lavrar um documento em que a faz tutora dos filhos com poderes
de gerir toda a herança, mesmo que isso fosse contra as leis do reino.

O marido morreu a 18 de Setembro e a 10 de Outubro já D. Afonso V


lhe reconhece o documento e o governo da fortuna do casal. Os filhos eram
menores, embora tivessem estado casados 23 anos. O que constitui outro
enigma,

Voltando à Ordem de Cristo, era a vez de D. Afonso V tomar a pedir ao


Papa o governo desse mestrado para si ou seu filho. Mas não o faz. A
Ordem de Santiago passa para o filho de Beatriz chamado João, que irá
falecer dois anos depois, em 1472, e a Ordem de Cristo vai para o filho
Diogo. O papa, no entanto, por documento assinado a 1 de Fevereiro de
1471, diz que enquanto Diogo não tiver idade legal, o mestrado «estivesse
confiado a D. Afonso V e aos demais seus tutores e curadores». Ora, como
D. Beatriz era tutora, logo deve ter tido participação no governo deste
mestrado desde essa data.

Entretanto o Papa Paulo II morre e sucede-lhe Sisto IV. D. Afonso V


aproveita para pedir confirmação do documento e ficar ele sozinho como
tutor de Diogo em relação ao Mestrado. O documento do Papa realmente
não diz «demais tutores».

Beatriz não gostava de coisas dúbias. O mais certo era D. Afonso V nem
fazer, devido a outros compromissos, nem deixar fazer. E em 1474, quando
D. Afonso V se começou a interessar pelo trono de Castela, após a morte
do rei desse reino, e quis casar com a herdeira, a Excelente Senhora ou a
Beltraneja, ela pede-lhe que passe a tutoria do governo da Ordem de Cristo
para dois homens — para o Vigário de Tomar e para o alcaide-mor do seu
castelo. D. Afonso V faz isso a 24 de Abril de 1475.
Entretanto, algo se deve ter passado. Ou eles não aceitaram ou o rei não
tinha esse poder, pois pertencia ao papa, ou, o que é mais provável, D.
Beatriz fez diplomacia paralela. O certo é que D. Afonso V, ao ver que não
podia atender a tudo e talvez cansado das insistências dela, também pediu
ao papa que o governo passasse para a Infanta Beatriz. E isso que diz a
“bula” que dá a Beatriz o governo do Mestrado de Cristo. De fins de Abril
a Junho, vai pouco tempo para negociações entre Portugal e Roma, porque
as viagens eram longas e os papas não atendiam logo, também demoravam
a tomar decisões. As negociações deviam ter começado antes de Abril.

E assim, com data de 19 de Junho de 1475, o papa Sisto IV concede o


governo temporal da Ordem de Cristo a uma mulher portuguesa. Para ela
governar enquanto seu filho fosse menor ou mesmo depois disso. O que
deve ter acontecido, pois ela governou até 1483. Talvez esse filho não fosse
escorreito.

4 — O QUE FEZ COMO GOVERNADORA?

Pelo que se conhece, a sua ação foi extraordinária. Não propriamente


como governadora (ainda não se encontraram documentos), mas como
herdeira do Infante D. Henrique, o que pode estar relacionado. O Infante D.
Henrique possuía «um vastíssimo senhorio que se alargou do Ducado de
Viseu à Serra Leoa, tocando o Norte de África, os Açores, as Canárias e o
Arquipélago da Madeira».

O Livro dos Místicos tem dezenas de documentos passados a esta


mulher, mas nada aparece sobre a Ordem de Cristo.
Mas, pela documentação dos arquivos dos Açores, ela governou o
império atlântico melhor que o marido, até que o Infante D. Henrique. Não
sou eu que o digo, mas a documentação estudada por Manuel Arruda:

A colonização açoriana iniciou-se em 1439, mas:

— «A organização das capitanias só foi realmente uniformizada em


1474, no governo da Infanta D. Beatriz».

— «A administração desta Infanta foi de resultados práticos e


imediatos».

— Durante o seu governo, as ilhas açorianas «mais povoadas revivem do


estado de semi-abandono, ou melhor de inação, em que estiveram nos
governos anteriores».

— «As capitanias das ilhas mais povoadas e adiantadas — Santa Maria,


São Miguel, Terceira — tomam um caráter novo e são organizadas debaixo
do mesmo plano que fora adotado nas suas congéneres do Arquipélago da
Madeira».

— «Na colonização açoriana desenvolve, com a sua energia e espírito de


organização e disciplina, a regularização administrativa das capitanias
destas ilhas... as dadas das sesmarias, os forais, e almoxarifados e as
organizações eclesiásticas uniformizam-se durante o seu governo».

Ela não governa em nome dos filhos, como se pensaria, mas aparece nos
documentos: «me praz que ele a reparta...», «eu lhe não dar mais espaço
algum». Ela não estava como os governadores anteriores preocupada em
matar Mouros, conquistar praças africanas, em privilegiar gente bem-
nascida, em pagar favores... mas em administrar devidamente as terras
descobertas. Foi uma administradora moderna, preocupada com os povos.
No Livro dos Místicos, aparecem muitos documentos em que ela consegue
dos reis privilégios para os seus lavradores, os seus carniceiros, os seus
capelães, os seus artesãos, e até para Mouros de Anafé, praça conquistada
pelo marido.

Na Madeira, sabe-se que fundou as alfândegas de Funchal e Machico,


em 1477. Será que só por isto não merecia ser incluída na História dos
Descobrimentos?

Mas o seu grande feito terá sido mandar os seus marinheiros para
Ocidente. O historiador Gaspar Frutuoso diz que chegaram à Terra Nova. O
certo é que recompensou João Vaz Corte Real, que era um homem de sua
casa, mais o seu companheiro Álvaro Martins Homem, por viagens que
eles fizeram para Ocidente. Em 1474, dividiu a ilha Terceira em duas
capitanias, dando a da Praia a Álvaro Martins e a de Angra a João Vaz
Corte Real.

Todavia, intui-se pela documentação escassa que os seus marinheiros, a


seu mando, descobriram as Antilhas, a futura América, 19 anos antes de
Colombo. Em 1473, consegue que o rei lhe conceda a ela e filhos «uma
ilha que através da ilha de Santiago aparecera». Essa ilha tinha sido
avistada por Gonçalo Fernandes, morador em Tavira, vindo das pescarias
do Rio do Ouro. Em tempos do marido, já se tinha mandado buscar, parece
que o próprio marido foi, mas regressaram porque ficaram presos no mar
dos sargaços. Agora «ela tinha tenção de a outra vez mandar buscar». E
mandou.

E conclui Manuel Arruda: «esta ilha que se viu através de Cabo Verde,
poderá dizer-se, em linguagem atual, que era uma ilha que estava no
mesmo paralelo da de Santiago e só as poderia haver na América Central,
nas Antilhas».
Mas a sua maior inovação e pioneirismo será ter co-elaborado, como
governadora da Ordem de Cristo, o primeiro tratado de globalização do
mundo.

5 — O PRIMEIRO TRATADO DE GLOBALIZAÇÃO DO MUNDO

Como o nosso rei D. Afonso V, pai de D. João II, estava viúvo, casou
com a Excelente Senhora, verdadeira herdeira de Castela. Só que se
puseram à espera da dispensa do Papa, porque era tio e sobrinha.

Os embaixadores não deram conta do recado e a via pacífica foi posta de


lado. E assim os dois reinos entram em guerra. Batalha aqui, batalha ali,
demora uns tempos. Na batalha decisiva, a do Toro, as tropas comandadas
pelo Príncipe Perfeito ganharam. As de D. Afonso V perderam. Desta
forma, nada estava resolvido. Os castelhanos apregoavam vitória, porque
ganharam a Afonso V, os portugueses festejavam vitória porque o Príncipe
vencera a batalha dele.

D. Afonso V foi procurar ajuda a França. O Príncipe ia governando e


bem, tomando conta dos Descobrimentos. A Ordem de Cristo estava a ser
governada pela Infanta D. Beatriz, oficialmente desde 19 de Junho de 1475.

Temos de reconhecer embora não agrade a muitos — mas o período


áureo dos Descobrimentos portugueses foi na época em que D. João II
dirigia os Descobrimentos e a Infanta D. Beatriz dirigia a Ordem de Cristo
e a herança do Infante D. Henrique.

A falsária Isabel a Católica, que enganara o marido e o Papa, muito mais


depressa queria ludibriar os Portugueses e, por isso, mandava ou fechava os
olhos aos marinheiros que iam comerciar nas terras descobertas por
Portugal nas costas da Guiné. O Príncipe Perfeito dava ordens de deitarem
os barcos ao fundo e condenava à morte estrangeiros que navegassem no
mare nostrum.

Ali compareceram os comissários do rei para se inteirarem das novas


anunciadas: o que trazíamos da Mina, o que era a semente do paraíso — e
também para decidir o que seria feito de nós [uma vez que] portugueses
não éramos. Finalmente fomos postos a ferros (...) Ao cabo de todas estas
coisas, decidiram condenar-nos à forca, todos, e tal decisão se ficou
devendo por termos estado na Mina de Ouro sem autorização do Rei.

Este relato do flamengo Eustache de la Fosse prova como era evidente a


politica de sigilo. Ele viajara num barco espanhol até à Mina e fora
aprisionado e trazido para Portugal por Diogo Cão. Escreveu este relato,
porque conseguiu fugir, subornando o padre capelão da prisão.

Por isso, era preciso encontrar uma solução, não podiam andar em guerra
permanente em terra e no mar.

Foi aí que os dois cérebros mais qualificados do séc. XV se uniram. E


quando o feminino e o masculino se juntam nasce algo de completo. E
assim foi traçado um plano arrojado — o primeiro tratado de globalização
— a divisão do mundo. Aconteceu no início de 1479.

Devem ter estendido um mapa sobre uma mesa. Devem ter trocado os
maiores saberes, os mais secretos. Os segredos antigos dos Templários
devem ter saído da boca da governadora, sussurrados para nenhum cronista
nem as paredes ouvirem. Era o auge do sigilo. Ela deve ter dito que os seus
marinheiros tinham descoberto ilhas a ocidente, que Cristóvão Colombo
descobrirá 20 anos depois. Era inevitável, porque as correntes do Atlântico
Norte moviam-se como os ponteiros dum relógio, em círculo da direita
para a esquerda.
Talvez o continente do Brasil tivesse vindo à baila. A Terra Nova
também, pois dois anos antes o próprio Cristóvão Colon por lá andara...
«Eu naveguei no ano de 1477, no mês de Fevereiro, ultra Tile, ilha, cem
léguas... e não está dentro da linha que inclui o Ocidente, como diz
Ptolomeu, mas muito mais a ocidente. E esta ilha é tão grande como a
Inglaterra...» — escreve Cristóvão Colon. Devem ter demorado dias,
consultado o travesseiro. Nada podiam esquecer. Ficara decidido que o
mundo seria dividido por uma linha horizontal, a sul das Canárias, mais ou
menos pelo paralelo 27. A Norte ficaria para Castela. A Sul para Portugal.

De quem seria a ideia de dividir o mundo por essa linha? É escusado


dizer que todos pensarão que foi de D. João II. De dividir o mundo talvez,
mas a sul das Canárias, horizontalmente, só podia ser de D. Beatriz. Por
três razões:

1. Esta divisão interessaria a quem quisesse tomar posse da secreta


América. E este Tratado sugere que os marinheiros de Beatriz já tinham
chegado às Antilhas.

2. As Canárias e as secretas Antilhas eram propriedade de D. Beatriz, por


documentos reconhecidos por D. Afonso V, era ela que podia dispor delas.
Não eram do reino, não eram de D. João II.

3. Esta divisão não salvaguardava bem a índia, que não se sabia se ficava
a norte ou sul do paralelo 27, a tal ponto que D. João II mudará o tratado
para o de Tordesilhas.

A Infanta D. Beatriz não aparece aqui nesta divisão do mundo por acaso.
Ela encabeçará a delegação portuguesa porque era a Governadora da
Ordem de Cristo. Também era administradora de ilhas nos Açores e na
Madeira.
Nesta divisão, a perspetiva que sobressai é a que considera as Antilhas
importantes, a de Tordesilhas considera o caminho da índia. E pelo tratado
de Tordesilhas todos aceitam que D. João II sabia da existência do Brasil, é
lógico que, pelo Tratado de Alcáçovas, Portugal sabia da existência das
Antilhas.

E a Madeira e os Açores? Ficariam para Portugal, claro. Beatriz não iria


abdicar do seu património. Quanto às conquistas aos Mouros, Portugal
ficava com liberdade para conquistar o reino de Fez e Espanha com o
direito absoluto de conquistar Granada, um dos grandes objetivos de Isabel
a Católica, para formar a Espanha.

E então não se dava mais nada em troca?

As Canárias. Ela daria as Canárias. Mesmo assim tentaria trazê-las para


Portugal no dote da filha de Isabel. Sim, tinha de se combinar o casamento
entre o filho de D. João II e a filha dos reis católicos.

Era pouco para Isabel, a Católica.

Foi então que a ideia brilhante surgiu. Certamente na cabeça de D.


Beatriz, pois D. João II foi sempre contra. Alguém teria de ser sacrificado
para servir de moeda de troca. E a “moeda” escolhida foi... a Excelente
Senhora.

Era uma moça de 17 anos, neta do nosso rei D. Duarte. E foi assim que o
velho D. Afonso V, que apesar de rei já pouco riscava, perdido em sonhos
de união ibérica, ficou sem mulher no leito e sem trono em Castela.

6 — A VIAGEM ATÉ ALCÂNTARA


Devem ter andado emissários de cá para lá e de lá para cá. Até que se
marcou o encontro. Seria em Alcântara, terra de fronteira, mas do lado de
Castela. Era bom agradar a Isabel, proporcionar-lhe a sensação que pisava
o seu próprio chão.

O marido de Isabel foi afastado, dizem que ficou em Toledo. O Príncipe


Perfeito ficou certamente a rezar para tudo dar certo. E assim aconteceu o
inaudito — o primeiro tratado de globalização do mundo foi elaborado
entre duas mulheres.

Pela parte portuguesa, D. Beatriz, com a esperteza dos seus quase 50


anos, conhecedora dos segredos dos Templários e com a chave dos seus
cofres. Do outro a sobrinha Isabel, pouco escrupulosa e sanguinária, mas
pondo o seu reino acima do parentesco. Eram duas leoas a defender os seus
povos.

Se fosse possível contemplar este ato do Além, o Infante D. João, filho


de D. João I, explodiria em prantos. Oh cruel ironia do destino! Ele, que
sublevou Lisboa contra a rainha regente D. Leonor de Aragão, viúva do rei
D. Duarte, porque era “vergonha e abatimento” o reino ser governado por
uma mulher, agora as mulheres do seu próprio sangue, uma sua filha e uma
sua neta, estavam politicamente à frente das suas nações a dividir o mundo!
Parecia castigo! Elas eram grandes estadistas do séc. XV, mais influentes
que ele no universo da História!

Aconteceu em Março. A portuguesa deixou o conforto dos seus palácios


e meteu-se à estrada. Com comitiva, escrivães, cavalos, mantimentos... e
certamente com mapas para que se visse bem onde ficavam as Canárias.

Terá apreciado a ponte magnífica iniciada no tempo de Trajano e


executada pelo arquiteto romano Caio Júlio Lacer, sobre o rio Tejo. Olhou
a paisagem e as águas, as casas e as gentes, e assentou arraiais em
Alcântara. Isabel estava lá à sua espera.

Um dia, quando andei no rasto desta poderosa mulher, também eu fiz


esta viagem até Alcântara. Soube que Al-Kantara significa ponte. Essa
ponte é realmente uma grande obra de engenharia com 8 metros de largura
e 194 de comprimento. Ainda hoje nos encanta. Eu dormi em Castelo
Branco. Onde teria Beatriz pernoitado?

Não descobri onde as duas grandes mulheres se reuniram. Não foi no


convento de São Benito, como pensei. Os prospetos turísticos dizem que a
sua construção se iniciou em 1505 e o Tratado foi em 1479. Mas existem
em São Benito vestígios romanos, um anfiteatro. Haveria ali uma
construção anterior?

7 — O TRATADO DE ALCÁÇOVAS

Esse Tratado chamou-se de Alcáçovas, porque foi assinado nessa vila


alentejana, a 4 de Setembro de 1479. Em Espanha chama-se Tratado de
Toledo porque foi assinado no ano seguinte, nessa cidade.

Conhece-se hoje o Tratado de Alcáçovas pela versão espanhola, a


portuguesa foi lançada ao lixo.

É assaz simbólico que esse Tratado se chame Alcáçovas, pois foi em


Alcáçovas, e no mesmo Paço, que Beatriz casou. E foi pelo casamento que
ela conseguiu ser governadora da Ordem de Cristo e, como tal, lavrar as
cláusulas deste Tratado.

Certa vez fiz de propósito uma viagem até Alcáçovas, planura de


horizontes distantes, para poder entender bem esta estranha mulher e lhe
seguir o rasto. Ainda lá encontrei esse antigo e arruinado paço, uma porta
medieval... Hoje chama-se Paço dos Henriques e passa uma rua pelo meio.
Na igreja havia um relógio de sol. Seria rendoso se a autarquia explorasse
este Paço como ponto turístico e histórico.

O Tratado de Alcáçovas compõe-se de várias partes. Há a parte da


divisão do mundo pelo sul das Canárias. Há a parte em que se estabelece o
contrato de casamento futuro entre a filha de Isabel a Católica e o filho de
D. João II. Há o tratado de paz entre os dois reinos depois da batalha de
Toro. Há a parte em que Portugal desiste de governar Castela e Castela de
governar Portugal. Combinam-se restituição de terras tomadas pela guerra.
Troca de prisioneiros de um lado e outro. A Espanha fica com a obrigação
de nos pagar uma indemnização de Guerra que virá no dote da pequena
princesa castelhana. As Canárias ficam para Espanha: «as ilhas Canárias a
saber, Lançarote, Palma, Forteventura, a Gomeira, o Ferro, a Graciosa, a
Grã-Canária, Tenerife e todas as ilhas Canárias ganhas ou por ganhar, as
quais ficam aos reinos de Castela». O comércio da Guiné fica para Portugal
assim como as ilhas atlânticas.

O rei e rainha de Castela, de Aragão e de Sicília, etc.... Prometeram de


agora para em todo o tempo... não turvarão, molestarão nem inquietarão...
nem os reis que por tempo forem de Portugal, nem seus reinos e possessão
e quase possessão em que estão em todos os tratos, terras, resgates da
Guiné com suas minas de ouro, e quaisquer outras ilhas, terras, costas
descobertas e por descobrir, achadas e por achar, ilhas da Madeira, Porto
Santo e Deserta, e todas as ilhas dos Açores e ilhas das Flores, e assim as
ilhas de Cabo Verde, e todas as ilhas que agora têm descobertas, e
quaisquer outras ilhas que acharem e conquistarem das ilhas Canárias
para baixo contra Guiné....

Ao se ler as cláusulas complicadas deste tratado, fica-se com a ideia que


Isabel tinha o rabo preso senão nunca concordaria, ela ficava prejudicada.
*

8 — A HERDEIRA IMOLADA

Ora, foi aí que Beatriz lhe ofereceu o trono e o trono de Castela valia
tudo que Castela eventualmente perdia. Quem diria! Uma mulher, uma
mulher de Portugal é que segurou o trono de Isabel a Católica!

E como? Retirando de cena a verdadeira herdeira de Castela — a


Excelente Senhora. Não poderia ser morta, senão o Papa e povo
transformariam Isabel em usurpadora sem legalidade. Não, a verdadeira
rainha será metida num convento, dizendo-se que ela quis seguir a vocação
de esposa do Senhor e assim renunciava ao trono para a sua tia Isabel.

É uma página pungente a imolação desta jovem, como donzela de


antanho sacrificada aos deuses, desta vez sacrificada à política de dois
Estados:

... estando em Santarém, quando se cumpriram os seis meses de sua


liberdade, ela forçada e com muitas lágrimas, e grandes lamentações suas,
e de todos os seus, deixou o título de Rainha, e despindo-se as vestes reais
que trazia, lhe vestiram um hábito de pano pardo, e despojando-a da
Coroa Real de Portugal e de Castela e de Leão, de que ela já se vira em
posse, e lhe pertenciam, lhe cortaram os cabelos, e lhe cobriram a cabeça
de um pobre véu.

Joana, a Excelente Senhora, nunca aceitou a sua imolação. Até à morte, a


neta do rei D. Duarte assinava sempre suas cartas como «La Reyna». Quem
não gostou deste «sacrifício» foi o rei D. João II, uma prova que o tratado
de Alcáçovas não é obra dele. Aliás, apesar do que diz Rui de Pina, D. João
II não assinou esse tratado, pois não consta a sua presença e assinatura. Só
esteve em Alcáçovas D. Beatriz. E como não confiava nem no genro nem
na sobrinha A Católica, combinou ainda as Terçarias de Moura. Levou o
único filho de D.

João II e a filha de Isabel para Moura e proibiu os pais de vê-los para que
se cumprisse o tratado. Durante 2 anos, quatro meses e cinco dias, a Infanta
D. Beatriz mandou em reis, aprisionando-lhes os filhos. Curiosamente deu
certo. A paz acabou por imperar.

E foi assim que, em 1479, a nossa Beatriz conseguiu o melhor para


Portugal. Como grande estratega, a governadora da Ordem de Cristo
premeditou que a famosa “América” passasse a pertencer a Portugal
quando legalmente a fôssemos descobrir. Ela ficava a sul das Canárias, a
sul do paralelo divisório.

O Tratado de Alcáçovas tomou-se internacional após o reconhecimento


do Papa Sixto IV, pela bula Aeterni Regis, outorgada a 21 de Junho de
1481. Fora o mesmo Papa que havia concedido à Infanta D. Beatriz o
governo do Mestrado da Ordem de Cristo, seis anos antes.
CAPÍTULO III

A CAPITA MÉCIA DE PAIVA

O que o mundo pode dar deu-me com seu interesse, emprestado.

O que dele alcancei achei tudo que era nada,

Joana da Gama, 1555

Após S. Jorge da Mina, navegando pelo Atlântico Sul, a caminho da


índia, sob um sol escaldante e por vezes sem vento, os descobridores
encontraram as ilhas de S. Tomé e Príncipe.

Após a descoberta, era necessário povoar e colonizar as ilhas. Ora, certa


vez, D. João II doara metade da ilha de S. Tomé a Mécia de Paiva e a outra
metade a seu pai, João de Paiva, um escudeiro da sua casa. Corria o ano de
1486.

As condições desta doação a uma mulher são caso único na História da


Expansão Portuguesa. E se a compararmos com outra feita por D. Manuel,
onze anos depois, a Branca de Aguiar, percebemos que a ideia sobre a
capacidade das mulheres retrocedeu e não evoluiu, como seria normal.

No caso de Mécia de Paiva, nem sequer traz uma expressão habitual de


exceção «sem embargo da Lei Mental», como acontece com a doação das
ilhas da Terra Nova à Fagunda de Viana, em 1521.

O título do documento, que se encontra na Torre do Tombo, é o seguinte:


«Mécia de Paiva, filha de João de Paiva, doação da metade da Ilha de S.
Tomé para ela e qualquer pessoa que com ela casar...».
Lê-se que D. João II já havia feito “mercê de metade da ilha de S. Tomé
a João de Paiva e repete essa doação. A seguir o documento traz a doação a
Mécia de Paiva, filha do anterior, com condições iguais às de seu pai, sem
as repetir.

Por isso, ao ler os direitos e obrigações do capitão da metade da ilha,


sabemos aquelas que recebeu por mercê a filha Mécia. A doação fora feita
em 14 de Março de 1486.

E interessante verificar que, quando especifica essas condições, surgem à


cabeça as moendas de pão:

Outrossim lhe damos e outorgamos todalas moendas de pão da metade


da dita ilha donde ele assim for capitão assim de água como de atafonas e
outros engenhos; que pessoa alguma as não possa fazer salvo para isso
sua autoridade e licença, pero [mas/ cada um poderá fazer mó de braço
para moer para si em sua casa e não para outrem e o dito capitão lho não
tolherá.

O rei ainda outorgou ao capitão e capita direitos sobre as serras de água


«ou de qualquer outro engenho que se na dita ilha fizer». Deviam cobrar
um marco de prata cada ano «ou duas tábuas cada semana do tabuado que
se fizer e assim de qualquer outra cousa que se fizerem nos outros
engenhos». Por esse respeito, pagariam os proprietários dos engenhos o
dízimo à Ordem de Cristo. Os capitães tinham direito a receber o dízimo
das rendas que pertenciam ao rei.

A capitania de metade da lllia de S. Tomé fora, assim, doada para Mécia


e para quem com ela casasse. Mas tinha liberdade de escolha, o rei apenas
refere que fosse pessoa «de quem nós sejamos contentes». D. João II, que
em diferentes situações demonstrou acreditar na capacidade feminina,
também aqui não diz que metade da ilha seria para um eventual marido,
mas que ambos a «hajam e tenham a capitania da dita metade da dita ilha
de S. Tomé pela guisa e conta dos poderes e graças e liberdades e
condições na dita carta conteúdas».

Com D. Manuel I, as mulheres perderam importância. Basta comparar a


doação de uma capitania a D. Branca de Aguiar com a que D. João II fez a
Mécia de Paiva.

Havendo nós informação que o dito mice António foi o primeiro que a
dita lha achou e começou de povoar nos prouve de fazer mercê da dita
capitania a dona Branca de Aguiar, sua filha, para ser capitão quem com
ela casai, o qual casamento ela há de fazer com aquela pessoa que lhe nós
para isso escolhermos.

D. Manuel arranjou a Branca de Aguiar um fidalgo da sua casa, chamado


Jorge Correia. E nada deixou em branco, ela nunca governaria, como uma
incapaz. Se ficasse viúva, o rei escolher-lhe-ia outro noivo.

Ao entregar uma grande ilha a um homem e a uma mulher, D. João II


não deixava as mulheres de fora da gesta da expansão. Para D. Manuel as
mulheres eram figuras decorativas e promovia que os maridos se
apoderassem dos bens delas.

Não se sabe se Mécia de Paiva casou e foi administrar a sua metade. O


clima era insalubre para os europeus e não deviam ter surgido muitos
povoadores voluntários. A colonização santomense só teve sucesso quando
D. João II enviou duas mil meninas e meninos raptados violentamente aos
pais e mães judias, degredados e suas famílias, entregues a D. Álvaro de
Caminha, em 1493. Ele testemunha que encontrou lá negras forras
estabelecidas, o que leva a presumir que Mécia e o pai devem ter iniciado a
colonização.
Contudo, com esta doação a uma mulher e a um homem e com o envio
das meninas e meninos de raça branca, subjaz um espírito em D. João II de
envolver as mulheres nas descobertas e colonização. Ele era um rei de
novos tempos.

O retrocesso de D. Manuel I será talvez uma das razões porque há menos


dirigentes femininas poderosas no séc. XVI do que no século XV.
II PARTE

AS PRIMEIRAS NAVEGANTES
CAPÍTULO I

FILIPA COUTINHO: A PRIMEIRA NOIVA QUE FICOU POR


CASAR

Não hão de estar as mulheres uma só hora desarmadas de arreceios.


Pela franqueza das mulheres, são pouco aparelhadas para sofrer as
adversidades.

Joana da Gama, 1555

O conhecido poema de Fernando Pessoa perpetuou esta ideia:

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Naturalmente que Fernando Pessoa se refere às noivas mudas, virgens


Penélopes esperando um noivo prometido, trazido numa bandeja pelos pais
sem elas serem consultadas, e que o mar lhes levara. Mas a primeira noiva
que ficou por casar, e de quem aqui se fala, foi uma portuguesa que o mar
levou. Foi, portanto, uma navegante que não aguentou a dureza das ondas.

Chamava-se Filipa Coutinho. O pai da noiva, Gonçalo Vaz Coutinho,


fora copeiro-mor da rainha D. Filipa. A mãe (desta vez sabe-se seu nome)
era Leonor Gonçalves de Azevedo, filha do 10 Marechal do Reino,
Gonçalo Vasques de Azevedo, senhor da Lourinhã. Como tantas vezes
aconteceu, foi por linha feminina que se transmitiu o cargo e assim o pai da
noiva herdou do sogro o título de Marechal do Reino.

Esse Marechal participou na conquista de Ceuta, sendo o capitão da


quarta galé que partiu do Porto. Era alcaide de Trancoso, senhor de muitas
terras.

Todavia, os primeiros tempos do reinado de D. João I deram força a


reivindicações dos povos, por isso, o pai da noiva teve uma questão judicial
com o concelho de Cemancelhe, do qual era donatário. Cemancelhe
apresentou queixa dizendo que ele não guardava alguns capítulos do seu
foral.

Segundo Damião de Góis, o Marechal ficou viúvo e voltou a casar com


D. Joana, filha herdeira do Mestre de Santiago. Filipa teve quatro irmãos
varões e uma tia, Mécia Coutinho, irmã do pai, que consta do Dicionário
Mundial de Mulheres Notáveis.

Casaram Filipa Coutinho com um homem bastante mais velho, D. Pedro


de Menezes. Mas era importante, na altura era governador da praça de
Ceuta.

Talvez Filipa tivesse casado por procuração, tal como acontecerá com
sua prima e noiva sucessora. A seguir partiu ao encontro do esposo que
estava em Ceuta. Ele era viúvo, mas não teria sido inconsolável, pois tinha
três filhos de uma moça da sua casa.

A noiva não partiu sozinha. Após a morte da esposa de D. Pedro, o rei D.


João I, que tinha fama de casamenteiro, logo arranjou uma noiva para o
governador que estava há 5 anos longe da esposa. O governador de Ceuta
pediu ao rei que lhe enviasse juntamente com a noiva os cinco filhos que
tinha — duas filhas legítimas (Beatriz e Leonor), duas ilegítimas (Isabel e
Aldonça), mais o filho ilegítimo Duarte, irmão das anteriores, que teria uns
cinco anos.

Gomes Eanes de Zurara não devia atribuir nenhuma importância às


mães, pois tendo escrito a «Crónica do Conde D. Duarte de Menezes» diz-
nos: «Nem escrevemos aqui a geração da madre do Conde Dom Duarte,
porquanto ele era filho natural, o qual seu padre fizera numa moça nobre de
sua casa». E com a maior naturalidade refere que esse filho, com a idade de
nove meses, foi retirado à mãe e entregue em casa de João Álvares Pereira
«onde o moço esteve até depois do segundo cerco» de Ceuta.

Embora Zurara não nos indique o nome da mãe, os três eram filhos de
Isabel Domingues, a Pessegueira. Possivelmente devem ter embarcado
servidoras com estas meninas nobres. Aconteceu a seguir ao segundo cerco
de Ceuta que dizem ter acontecido em 1419. Todavia no túmulo de D.
Margarida, esposa de D. Pedro de Menezes, na Igreja da Graça de
Santarém, aparece a data de 1420, como tendo morrido nesse ano. É
importante esta data, porque só após essa morte é que partiram as primeiras
navegantes que irão fazer “modificações” históricas no novo espaço
português.

Elaine Sanceau escreveu que «talvez fosse perspetiva desalentadora para


uma jovem noiva ir ao encontro do marido com tal rancho de enteados». As
perspetivas da noiva não deviam ser idílicas, pois teria a mesma idade das
filhas. A desafortunada noiva não aguentou. Morreu no mar, ainda no mar
português, «afastada pouco espaço da costa do Algarve».

Ninguém nos diz o que aconteceu ao corpo da noiva. Deve ter sido
lançado ao mar. O certo é que a viagem prosseguiu e as filhas é filho do
governador chegaram bem a Ceuta. E a infeliz noiva ficou enterrada no mar
salgado... por casar e esquecida.
CAPÍTULO II

IRIA PEREIRA: A PRIMEIRA EUROPEIA NA ROTA DO CABO

Sujeições estão guardas para as mulheres, antes que elas as saibam sentir, e depois
sofrem os trabalhos, ao porem os olhos nas obrigações com que nasceram, e não
acoimam a crueza que com elas usou o mundo, que é de muitos anos feito, não o podem
emendar.

Joana da Gama, 1555

Os primeiros olhos femininos europeus a deslumbrar-se com o exotismo


do Oriente parecem ter sido os de Iria Pereira. Ela chegou à índia sete anos
depois de Vasco da Gama. Desembarcou em Cochim em 1505, após uma
viagem em que os portugueses manifestaram dureza com outros povos,
incluindo com mulheres da costa oriental africana.

Julga-se que foi a primeira portuguesa a navegar nas naus da índia. Mas
podia não ter sido. Tal como diversas mulheres do mundo (incluindo Maria
de Nazaré), só foi referenciada por ter sido mãe de um homem importante.
Se antes partiram mulheres anónimas, aventureiras, não relacionadas com
nobres ou audazes marinheiros, desvaneceram-se como os fumos da índia,
não mereceram a tinta nos escritos.

Iria Pereira viajou na armada de D. Francisco de Almeida, o primeiro


vicerei da índia. Foi a embarcação «mais solene que até então neste Reino
se fez, não sendo de pessoa real» — escreveu João de Barros". Na verdade,
nesta armada nada faltava: «Mantimentos em muita abundância e em cada
nau uma botica bem provida, com barbeiro sangrador e mestre para curar e
dois capelães para confessar» — conta-nos Gaspar Correia. E acrescenta
que partiram 1500 homens de armas, 200 bombardeiros e 400 homens do
mar. E ainda carpinteiros, calafates, ferreiros, cordoeiros... linho, lonas,
panos de Vila do Conde, âncoras, remos, artilharia, munições... tudo o que
Vasco da Gama indicava, «que tudo regia e ordenava, por ser já feito
Almirante do Mar da índia e sempre estava com o vice-rei despachando as
cousas».

Também foram degredados e acerca deles Gaspar Correia afirma que o


rei mandou provisão por «todalas vilas e cidades» e mandaram-lhe
degredados que se alegraram por poderem partir para a índia. Não fala em
degredadas, mas sabe-se, por outras fontes, que partiram dois meses depois
para Sofala.

Entre os homens de armas iam quatrocentos moradores que constavam


dos livros de D. Manuel I «com três cruzados de soldo e três quintais de
pimenta cada ano».

Um desses moradores era António Real. Foi com este homem que
embarcou Iria Pereira que será o pai de seu filho. Possivelmente embarcou
com familiares, pois um Gaspar Pereira era secretário do vice-rei e ia na
nau capitânia. Além disso, também ia na armada Diogo Pereira, clérigo,
que depois será o primeiro vigário geral do Oriente.

A partida foi muito solene. Na véspera houve missa na Sé de Lisboa a


que assistiram o rei e a rainha. Depois das cerimónias, dirigiram-se para o
cais da Ribeira. O vice-rei e capitães iam a cavalo, os restantes passageiros
caminhavam a pé. Mas esse percurso foi um acontecimento em Lisboa: «EI
rei e a Rainha e todas as damas estiveram às janelas até que o Vice-Rei
acabou de passar descendo pela costa abaixo...».

Naturalmente que as mulheres dos marinheiros estariam no cais. Quando


relata a partida de Álvares Cabral, Gaspar Correia não se esqueceu de
referir: «EI rei com eles foi até à praia, onde era todo o povo de Lisboa,
cada um a ver os maridos e filhos».

D. Manuel I foi no dia seguinte, de barco, visitar as naus e assistir à sua


partida. As embarcações estavam engalanadas de bandeiras e zarparam
com tiros de artilharia. Estava um lindo dia de céu azul esse distante 25 de
Março de 1505!

Nessa viagem, quando iam pelo Tejo abaixo, começaram os pilotos a


ordenar aos homens do leme que virassem a bombordo ou a estibordo.
Como os marinheiros desconheciam os vocábulos, foi tanta a confusão que
viravam à esquerda quando era para o lado oposto ou vice-versa. Na
caravela de João Homem, este sugeriu ao piloto que substituísse o termo
estibordo por alhos e de bombordo por cebolas. «E a cada banda mandou
pendurar uma reste destas cousas». E assim já governaram direito.

A nau em que viajou Iria Pereira chamava-se «S. Jerónimo». Talvez


fosse a mesma que Gama capitaneou, em 1502, quando levou mulheres
quiloenses para a índia.

Na sua viagem, Iria viu a Ilha da Madeira, a ilha de Palma nas Canárias e
Porto Dale, abaixo de Cabo Verde. Aqui estiveram 9 dias, onde tomaram
água e lenha. O rei local veio recebê-los a cavalo, dizendo ao capitão-mor
que sua gente podia ir a terra. Iria talvez tivesse saído como todos. Um
velho que ia na nau fez amizade com o rei local. Pensando certamente que
a política de entendimento entre povos era a de D. João II, deu-lhe a sua
espada e um barrete vermelho e o rei presenteou-o com «seu terçado e sua
carapuça». Mas D. Francisco mostrou-lhe que os tempos eram outros, não
de amizades mas de domínio, e obrigou o velho a estar «com um baraço ao
pescoço na nau um domingo presente todos enquanto pregaram».
Causa espanto como pôde uma mulher viajar no meio de militares,
frades franciscanos, marinheiros e degredados. «O seu lar flutuante podia
medir uns trinta metros da popa à proa e mais ou menos nove metros na
parte mais larga», alvitra Elaine Sanceau sobre as naus em geral. Nenhum
dos companheiros de bordo, que deixaram escritos, se refere a Iria. Ou foi
bem escondida ou talvez tivesse embarcado vestida de homem, noutros
anos foram referenciadas portuguesas assim vestidas nas naus da índia.
Mas também podia navegar sob proteção familiar, com o consentimento do
vice-rei, pois a sua esposa chamava-se D. Joana Pereira, o mesmo apelido
da viajante.

Na «S. Jerónimo», viajou também Pero Fernandes Tinoco. Já no Oriente,


a 18 de Novembro, escreveu ao monarca a contar-lhe a viagem. É por esta
carta que sabemos que António Real (e portanto Iria Pereira) viajava na nau
do vice-rei. Ele diz que naquela viagem, de cerca de seis meses, os
navegantes suportaram dois Invernos e dois Verãos: «A saber, o Inverno
em que partimos de Portugal até ao Cabo Verde, e o Verão que logo aí
achamos até à linha e da linha para avante, e o Inverno do cabo da Boa
Esperança e o Verão de Melinde onde tomamos outra vez a passar a linha
até à índia».

Junto ao Cabo da Boa Esperança, o piloto, para o poder atravessar


melhor, desceu demasiado. «De maneira, senhor, que quando veio pelo S.
João nevou nas naus e foi o frio tamanho que quando queríamos comer
ficávamos todos convertidos em rocins mancos, porque tínhamos boca e
não tínhamos mãos para comermos com elas». Mesmo assim festejaram a
véspera do S. João «correndo temporal com alantemas acesas na gávea e
pela cordoalha». Com esse frio, adoeceram muitos marinheiros, o piloto-
mor e António Real. Como não fala em Iria, não se sabe se aguentou. Na
altura das neves, D. Francisco estava na sua câmara «armada de tapeçaria e
em sapatos altos de feltro...e estava-se assando num braseiro». Acrescenta,
no entanto, que D. Francisco «nunca deu regra na sua nau de beber» e no
Inverno «acrescentou a regra do azeite» aos marinheiros e isso «deu vida à
gente toda». Os doentes sararam e não morreu ninguém nessa nau.

Todos os cronistas referem, nessa viagem, as neves a Sul do Cabo da


Boa Esperança. Fernão Lopes de Castanheda diz que chegaram à latitude
de 40°. «E ali acharam que era ao meio-dia o Sol ao noroeste e a quarta do
norte, que foi coisa que nunca aconteceu a outra frota: e era a neve tanta
que continuamente andavam homens a lançá-la fora das naus». O dia tinha
seis horas. E a tudo isto assistiu Iria Pereira.

E a 2 de Julho certamente pensou no fim quando um temporal rompeu as


velas da nau, tendo caído dois homens ao mar. Mas, por fim, lá avistou
Quiloa, a 22 desse mês.

1 — PERCURSOS DA VIAGEM DE IRIA PEREIRA

Não se conhece outra portuguesa nessa frota. Mesmo que viajasse a


mulher java, esposa ou apenas mãe dos filhos do veneziano Miser
Bonadjuto de Albão, ela era a única europeia, que se saiba. Contudo,
depois de Quiloa, não foi a única figura feminina a conhecer o balançar do
índico — meninas e mulheres brancas, de bom parecer, foram embarcadas
para a índia. Só que desta vez não foram por sua própria iniciativa, como
em 1502, mas à força como cativas, entre lágrimas e gritos. A europeia
enfrentou tempestades, sentiu a neve do hemisfério sul, mas assistiu
também à conquista de duas cidades e à construção de três fortalezas.

Quando chegaram a Quiloa, o rei local não quis pagar os tributos. Ainda
lhes enviou «cinco cabras, uma vaquinha, muitos cocos e fruta» — lê-se no
Manuscrito «Valentim Fernandes», depoimento de Flans Mayr. Esse
viajante descreve a arquitetura das casas («de três sobrados, todas coteadas
de argamassa») e das mesquitas abobadadas («uma que é como a de
Córdova»), enumera as suas riquezas agrícolas e industriais («vidro muito e
de todas as feições, panos de algodão muitos e de muitas sortes», «Aqui
fazem cal desta maneira...»). Mas o vice-rei levava espírito de
conquistador, tinha pólvora enquanto os locais só armas brancas e pedras.
Por isso, «toda a gente se meteu a roubar a cidade de muita mercadoria e
mantimentos». O rei aterrado acabou por fugir e os portugueses puseram lá
um outro da sua confiança.

Gaspar Correia suaviza a atitude portuguesa ao dizer que Habraemo era


um usurpador, matara o monarca anterior e quisera assassinar «um menino
de mama, filho do rei que matara, mas sua mãe fugira com ele para uma
ilha, onde se criava, que era já de cinco anos, pelo que o povo lhe queria
mal». Contudo, não deixa de acrescentar que se recolheu muita mercadoria
«e se tomaram muitos cativos e mulheres».

Esse comportamento não partiu da iniciativa do vice-rei. O regimento


que levava de D. Manuel era de conquista e de fazer tributários. Ao
passarmos os olhos por esse regimento extensíssimo, encontramos: «E
tomando por força ou deixando-o os Mouros, trabalhareis de cativar e
tomar os mais que puderdes e dos mais principais»; «e tomado assim o dito
lugar e todo o despojo dele aproveitado...». A justificação era: «Sempre
direis que nós mandamos que o dito lugar tomásseis, porque estando o rei
nosso tributário e vassalo, e obrigado como tal em tudo nos servir, não
recebeu nossas naus e navios e gente... com aquele bom trato e acolhimento
que nos devia».

Iria assistiu em Quiloa à construção da fortaleza. Nessa edificação, que


demorou 17 dias, ironiza D. Francisco de Almeida que os fidalgos e gente
vulgar traziam os braços mais compridos pelo uso da padiola. João de
Barros exprime a ideia do prazer na construção, pois o trabalho fora
efetuado por todos com graças, motes e cantigas.

A seguir, Iria conheceu Mombaça. O vice-rei levara dois mouros pilotos


de Quiloa e um deles foi enviado ao monarca, perguntando-lhe se queria
ser vassalo do rei de Portugal ou então lhe fariam guerra. No percurso, os
habitantes chamaram ao piloto «cão, perro, que comia porco e que era mais
cristão que os cristãos pois os trouxera ali». E que dissesse «aos perros dos
cristãos que Mombaça não era Quiloa nem tinha galinhas para eles».

Como nesse tempo havia portugueses por todo o lado, também ali
encontraram um, natural de Lisboa, que se tomará mouro, tendo ficado da
nau de António do Campo. Correia coloca na sua boca que fosse o vice-rei
a terra que ali acharia 20 000 homens que «lhe não hão de torcer o
focinho».

Devido ao facto do não querer ser tributário, os portugueses portaram-se


como «serpentes», na expressão de Gonçalo Fernandes, matando mouros e
muitas mulheres e acabaram por incendiar a cidade. Como em todas as
conquistas e guerras, as mulheres foram as grandes vítimas. Conta Gaspar
Correia»:

Os nossos começaram a correr pelos terrados após as mulheres, que


por serem muitas, e não caberem por suas portas dos terrados, foram
muitas mortas deitadas dos terrados abaixo. Os que andavam a roubar
matavam muitos mouros que estavam escondidos pelas casas em que
tomaram muitas mulheres formosas, e moças e moços, e roubaram toda a
noite.

Também desta vez Correia suaviza a atitude do vice-rei, ao afirmar que a


gente da cidade, mulheres e filhos com suas joias, queria sair para a terra
firme. O rei não os deixou para que cada um melhor guardasse a sua casa.
Eles souberam defender-se, além de deitarem «peçonha» nos poços de água
que matou alguns dos nossos, mataram 14 à pedrada. D. Francisco, antes da
cidade estar reduzida a cinzas, deu segurança aos moradores para virem
apagar o incêndio. Com uma cerimónia chefiada pelo seu filho D.
Lourenço, levou o rei local à nau capitânia e depois reconduziu-o ao trono.
Ficou a pagar 10 000 xerafins de tributo anual, «ao grão Rei de Portugal
seu senhor para sempre e aos que dele descendessem enquanto durasse o
sol e a lua». E não permitiu que se roubasse mais, controlando o saque, não
escapando a vigilância sobre os nobres: «Na barguilha dum fidalgo se
achou um fio de pérolas, que ele negava». Os despojos também eram
repartidos pelo rei.

D. Francisco, no dia seguinte, ordenou que «ninguém embarcasse nada e


que não embarcassem nenhuns cativos; senão moços ou moças de doze
anos para baixo, porque sendo assim de pouca idade podiam vir a ser bons
cristãos». Embarcou alguns mouros de 20 anos para remarem nas galés,
perdoando esse trabalho aos degredados lusos. Os restantes, que eram mais
de 500, mandou-os soltar.

O Manuscrito Valentim Fernandes diz: «Muita gente se cativou,


mulheres e delas brancas e meninos e certos mercadores de Cambaia».
Castanheda pormenoriza que foram cativas perto de duzentas almas «das
quais foram muitas mulheres brancas de bom parecer e muitas moças de
quinze anos para baixo».

Quem ficou com duas dessas moças foi António Real. Tomou-as com
sua lança, como declarou ao rei, quando Afonso de Albuquerque as quis
casar e as tomou forras.
Em Mombaça, distinguiram-se duas mulheres cafras que defenderam
como os homens a sua cidade. Desta vez é Castanheda quem conta que
elas, de cima do terrado duma casa, tentavam impedir a passagem dos
portugueses, dado que as mas eram estreitas. Faziam-no atirando com
«cantos muito grandes e atirando outras muitas pedras mais pequenas». De
maneira que elas: «Atormentavam mui rijo os nossos que se viram tão
afogados que alguns a que não soube os nomes, puseram os ombros às
portas desta casa em que estavam as cafras...». A uma atiraram-lhe uma
seta «e quis Deus que deu a uma das cafras pela garganta e derribou-a
morta». A outra fugiu.

O Manuscrito «Valentim Fernandes» reproduz uma carta do rei de


Mombaça para o de Melinde. Conta-lhe o se passara na sua cidade,
previne-o e espanta-se com a artilharia lusa:

Deus te salve Cide Ale. Faço-te saber que por aqui passou um grande
Senhor o qual veio ardendo em fogo. Entrou nesta cidade com tanta força
e crueldade que a nenhum dava vida homem nem mulher, moço nem velho
nem menino por pequeno que fosse. Não escaparam, só aqueles que
fugiram da sua fúria. Não tão somente os homens matavam e queimavam
mas as aves do céu derrubavam em terra. E tamanho o fedor dos mortos
nesta cidade que eu não ouso entrar nela, não te poderiam certificar nem
lançar conta a grandíssima riqueza que desta cidade levam.

Sobre esta mortandade (o Manuscrito diz que foram 1500 pessoas,


Castanheda 700), D. Francisco não fala na sua carta ao Venturoso. Apenas
lhe refere as tomadas de Quiloa e Mombaça e que lhe manda panos que
foram tomados na casa deste rei «para ver o que naquela terra se
costumava», uma sela para o príncipe e um pedaço de âmbar para a rainha.
Aliás, o regimento de D. Manuel aconselhava a respeitar as mulheres
distantes: «E em especial vos encomendamos que vedes e vigies o
ajuntamento dos homens com as mulheres da terra, porque além de ser
muito de serviço de Nosso Senhor» era coisa que provocava grande
escândalo aos naturais. Este passo do regimento que levava D. Francisco
não se devia aplicar entre os povos vencidos, pelo menos não fazia sentido.

Iria Pereira prosseguiu viagem, com as jovens e meninas brancas e de


cor espalhadas pelas naus, sabe Deus suportando o quê dos marinheiros há
meses sem mulheres. Talvez tivesse ouvido os seus gemidos, pela
separação e morte de familiares e desterro de suas casas. Sem poder de
decisão num mundo de homens, navegavam sofridas, sem destino e sem
futuro.

Iria assistiu ainda à construção das fortalezas de Angediva e Cananor.


Chegou a 1 de novembro a Cochim, que era na altura a capital do nosso
império, pois ainda não se havia conquistado Goa.

2 — O HOMEM QUE IRIA AMOU

Diogo do Couto escreveu que havia em Cochim um fidalgo chamado


Diogo Botelho Pereira, filho bastardo de António Real «e de uma mulher
que trouxera do reino, que se chamava Iria Pereira».

António Real, no livro das Moradias da Casa Real aparece como


«escudeiro fidalgo», no tempo de D. Manuel I. Aí vê-se que recebeu, certa
vez «de todo a mil por mês haverá com cevada — 4.080 reais». A cevada
destinava-se ao seu cavalo.

Partiu como alcaide de Cochim, assim constando na Ementa da Casa da


índia. Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, esse cargo
punha-o «em contacto com os dirigentes indígenas, o rajá de Cochim, a sua
corte, e o alto comércio maometano, e lhe facilitava a aquisição de
avultados presentes e peitas». Quando em 1510 se tomou capitão da cidade,
então ficou «senhor poderoso do ponto mais central e movimentado» do
Império.

D. Manuel dava-lhe muita confiança e pedia-lhe informações: «E porque


Vossa Alteza não diga que me escuso de vos avisar de todalas cousas,
como passam, como me mandais sempre que faça». Nessa carta, tece uma
série de intrigas contra Albuquerque, acusando-o de desonesto e
incompetente. Era contra a conquista de Goa, de Malaca e os casamentos
que o governador efetuara. Como capitão de Cochim, defende que essa
cidade devia concentrar todo o poder português no Oriente. E aproveita
para se gabar: «O capitão-mor, que me quer mal mortalmente, e me tivera
já destruído se não fora a necessidade de meu serviço que não pode fazer
nenhuma cousa sem mim, assim nas armadas como nas fortalezas».

Nesta circunstância, o Venturoso não pareceu muito sagaz. Segundo a


citada Enciclopédia, «À correspondência de António Real com o rei D.
Manuel se pode atribuir, em grande parte, a brusca destituição de Afonso
de Albuquerque, com todos os vexames que a acompanharam e foram uma
das causas da morte deste governador». E considera essa correspondência
«a página indecorosa da história dos Portugueses na índia». Infelizmente
não foi só devido a esta correspondência, mas à pouca visão do rei sobre o
estabelecimento dum império.

Contudo, não era Real que notava as cartas, não tinha conhecimentos
para tal. Segundo contou a Albuquerque um tal António Madeira, quem as
escrevia era Diogo Pereira, o que casará com uma navegante da Hungria.
António Real não sabia notar, somente dizia a Diogo Pereira os casos
sobre que queria escrever, e ele escrevia com aquela cor que lhe parecia
necessária. E as notas destas cartas ficavam na mão de António Real e dali
as terladava em boa letra um Garcia Gonçalves que viera de Portugal com
Gaspar Pereira.

O lobo-do-mar sabia, portanto, dessas cartas e justificava-se: «Vossa


Alteza me culpa, me culpa, me culpa...». Esses que lhe escreviam como
«haveis de governar a índia», faziam-no por interesse próprio e após
consultarem feiticeiras que lhes diziam «o que está por vir». Era devido à
sua vida ociosa que tinham tempo de lhe escrever «cartas cheias de poesia,
fingindo mil cousas e mil enganos». Ele desmonta as cartas, dizendo que
começavam por «falar-vos em vossa fazenda, mostrando-se muito cheios
de dor dela, doendo-se dos vossos gastos e despesas, e por esse caminho
começam de entrar». Depois, «com esta dissimulação se ajudam muito bem
de vossa fazenda e a comem e a roubam e tratam com ela e são feitos
grandes ricos, e vossos tratos danificados... e tornais-me a mim a culpa».
Nesse grupo, inclui Gaspar Pereira, «que agora veio com trinta ofícios e
não quis servir nenhum»; Diogo Pereira (havia dois, um feitor, outro
vigário); Lourenço Moreno «que tanto crédito e autoridade .trouxe de V.
A., tanta confiança e tanta isenção em vossa feitoria, fazenda e trato», e
António Real.

O companheiro de Iria Pereira seria um mau gestor:

Perguntai senhor a António Real pelo “Cirne ”, “Santesprito ” e “Rei


Grande”, que derrubou por eu não estar na terra; perguntai-lhe pela galé
de Simão Martins e pela “Ajuda Grande”, que sem mar e vento, corrigidas
daquela hora, da sua mão se foram ao fundo; perguntai, senhor a António
Real porque não foi a Malaca.
Segundo o governador, apesar de lhe ter oferecido a capitania de dois
navios, «disse-me que era quebrado e que não era já homem para servir».
Talvez não fosse novo.

As inimizades entre o companheiro de Iria e Albuquerque


intensificaram-se quando Real acreditou nas feiticeiras e pensou que
Albuquerque tinha morrido em Malaca. Ai pegou na pedra e cal para fazer
a Igreja de Cochim e pôs-se a fazer umas casas para si «para as vender
antes que se vá». Segundo Gaspar Correia, o Governador mandou desfazer
o sobrado, «ficou casa térrea em que fez hospital para os doentes onde ora
está», mandou-lhe «pagar o resto que tinha feito e que ele pagasse duzentos
cruzados para as obras da Igreja e lhe tirou um ano de ordenado da
capitania».

Em 1512, António Real foi mandado regressar ao Reino, mas nos fins de
1513 ainda estava em Cochim. Lourenço Moreno diz que «lá vai ele» na
próxima armada.

Iria não veio com ele. Ficou com o filho de 7 anos. Os cronistas dizem
que ela depois enriqueceu. Talvez tivesse ficado com os contactos
comerciais de António Real. Dados os tempos que eram, não se
compreende bem porque não casaram.

3 — O NAVEGADOR QUE SAIU À MÃE;

Iria Pereira deve ter dado à luz em meados de 1506, a não ser que tivesse
engravidado na nau. João de Barros (e os outros cronistas) diz que ele
nasceu na índia. A ser verdade, era um piloto competente com 17 anos, já
que Vasco da Gama levou-o consigo em 1524, antes de completar 18, pois
partiram em Fevereiro e Iria chegou à índia em Novembro de 1505.
Talvez Gama conhecesse a família. Iria poderia ser natural de Évora,
onde Vasco da Gama casou e viveu, ou doutra terra alentejana. Não
encontrei Iria Pereira em nenhuma Enciclopédia ou Nobiliário impresso ou
manuscrito. E não parece ser uma mulher do povo. O seu filho tomou o seu
apelido (Pereira) e D. João III trata-o como «fidalgo da minha casa», não se
encontrando nenhum documento de legitimação. Nos Índices da
Chancelaria de D. João III, existentes na Torre do Tombo, só há três
documentos que se referem a Diogo Botelho Pereira — carta de capitão de
uma nau da índia, em 1531, e duas cartas que o nomeiam capitão: da Ilha
de S. Tome, em 1541, e de Cananor em 1554.

António Real fala ao rei no «vedor meu primo e procurador» e talvez


fosse um dos Pereiras estabelecidos em Cochim. Quem sabe se não seriam
primos, sendo ela irmã dos Pereiras que embarcaram nesse ano, talvez
parentes da esposa de D. Francisco. São apenas hipóteses, mas isso
justificaria porque o rei lhes dava tanta aceitação e porque não casaram.
Como primos precisariam de dispensa e com as andanças pela índia e
sendo ambos aventureiros, não se teriam esforçado por obtê-la. Se um
irmão dela fosse o procurador de Real, isso também justificaria porque Iria
enriqueceu.

O certo é que Diogo Botelho Pereira foi uma celebridade na pena dos
cronistas da índia do séc. XVI. João de Barros, Castanheda, Diogo do
Couto, Gaspar Correia e o cronista do reino Francisco de Andrade
dedicam-lhe capítulos inteiros. Sobre ele se escreveram vários livros em
castelhano, português e até em latim.

Este navegador representa, no imaginário português, o melhor dos


nossos descobridores — era piloto, cosmógrafo, cartógrafo, dominava os
oceanos, o saber da Terra e dos céus. Não era guerreiro nem conquistador
não andando pela índia a matar gente, mas relacionava-se bem com os
naturais. Um chatim mouro deixou-lhe bens e o homem da sua confiança, o
seu braço direito, era um ex-escravo que ele forrou. E tudo isso, embora
não seja valorizado, se deve ao contributo de uma mulher na sua educação.

Nesses tempos, como é sabido, não se atribuía importância à mãe.


Quando não eram filhos legítimos e os pais os reconheciam, tiravam-nos
com frequência às progenitoras, dando-os a criar a outras pessoas. Assim
fez D. Pedro de Menezes, governador de Ceuta, que colocou seu filho
Duarte ainda de mama, com 9 meses de idade, na casa dum amigo. E
Afonso de Albuquerque, antes de partir para a índia em 1506, entregou seu
filho Brás a sua irmã Isabel, então com 5 anos.

Por isso, é extraordinária a importância que os cronistas da índia


atribuem a Iria Pereira na preparação do audaz Diogo Botelho.
Exemplifiquemos:

— Foi ela que «o criou e bem tratou» e a «mãe com ele muito gastava»
(Gaspar Correia); «...ficando rica foi criando o filho em muita vaidade»
(Diogo do Couto).

— Foi ela que o relacionou com os grandes «sendo em idade para isso o
meteu a andar com os governadores no serviço d’Elrei» — Correia. E diz
Couto: «Sendo mancebo foi levado a Portugal onde Elrei folgava de falar
com ele...».

— Foi ela que lhe arranjou um professor — o dominicano espanhol Juan


Caro.

— O filho saiu à mãe «era mui fantasiosa de que o filho tomou a


condição» — Gaspar Correia.
A educação era considerada importante, nesse tempo: «As cousas
aprendidas na meninice ficam depois muito complantadas» — escreveu
Filipa de Lencastre, filha do Infante D. Pedro.

Iria viajou atrás do homem que amava e acabou por se tornar uma mãe
solteira de sucesso. Tendo enriquecido, deu a seu filho a melhor educação
desse tempo, tornando-o num piloto e cartógrafo admirado na Europa e
pelos monarcas peninsulares. Ele ficou com seu apelido e não com o
«Real» de seu pai. E se ela o meteu a andar com governadores e a falar com
o rei é porque era bem relacionada na corte.

A educação deste rapaz tem algo de feminino. Como produto do trabalho


duma mãe, revela uma nova mentalidade, que devia ser própria das
mulheres aventureiras que viviam no tal mundo «emprestado», na
expressão de Joana da Gama. Assim, as principais caraterísticas do caráter
de Diogo eram a astúcia, a ameaça velada, a imaginação, o incumprimento
de normas. Ela arranjou-lhe um professor de nomeada e não se faz
referência que lhe tivesse arranjado um mestre no manejo da espada.
Encaminhou-o para a arte de navegar, geografia, matemática, cartografia,
sem esquecer a amizade com os grandes. Ela compreendeu o valor da
instrução e das relações humanas, numa época de mudança.

Nas cartas que escreveu, o seu mestre intitulava-se «Matemático das


Estrelas, artista, e na arte do Astrolábio mui inteiro, na altura por o Norte e
Sol e Cruzeiro do Sul». Este dominicano era amado e odiado em Cochim.
Por defender interesses espanhóis em relação à posse das ilhas Molucas, foi
mandado para o seu mosteiro no Reino. Aqui foi preso, julgado e, embora
com uma certa proteção do rei, foi desterrado para Sofala, em 1534“.

Mas antes, no tempo de Iria, o frade ensinou bem o rapaz. Segundo


Correia, «Da ensinança deste frade Diogo Botelho aprendeu, e com sua
pilotagem, que sabia, fazia cartas de marear, e emendava muitos erros nas
cartas do Reino; com que os pilotos o muito gabavam».

Couto refere que ele era «muito hábil e tinha grande inclinação à
Matemática, deu-se a sabê-la e à arte de navegar e à Esfera, em que foi
douto, e aproveitou muito nela, e fazia mui bem cartas de marear».
Acrescentando Barros que fizera uma carta muito grande «em que
descreveu tudo o que do Mundo era descoberto e a apresentou a el Rei D.
João».

Gaspar Correia, que provavelmente conheceu os dois, afirma que Diogo


saiu à mãe. Ora, conhecendo a sua maneira de ser, podemos ter uma ideia
do caráter de Iria. «E andando assim nesta vaidade se foi a Portugal dar a
conhecer a Elrei quem era e serviços que tinha feitos. Com que Elrei lhe fez
mercê e deu sua fidalguia e andava mui bem tratado».

Diogo tinha um sonho que o iria perseguir até à morte — ser capitão
duma fortaleza, como seu pai. Pediu então a D. João III a de Chaul. O rei
respondeu-lhe que os pilotos não eram capitães de fortalezas. Ele zangou-se
e, como era fanfarrão, disse umas inconveniências na antecâmara. Andrade,
que o considera «vivo de engenho e de grandes espíritos», conta que
«soltou algumas palavras de que se tornou suspeita que se poderia ir para
outro reino»”, especificando Couto que o rei «arreceou que se fosse para
Castela e lá desse de si outro Magalhães» e por isso o mandou prender”.

É surpreendente como, sendo tão jovem, pediu a capitania duma


fortaleza e D. João III considerava-o capaz de igualar Fernão de
Magalhães.

Entretanto, no início de 1524, Vasco da Gama é nomeado vice-rei da


índia. E nesta viagem que vão as três portuguesas que serão depois
açoitadas em Goa. O grande navegador vai pedi-lo ao rei «por lho rogarem
alguns fidalgos» e leva-o como piloto. Contudo, segundo Couto, o rei
permitiu que partisse na condição de não voltar a Portugal «sem seu
expresso mandado». Correia atribui a Gama estas palavras acerca do filho
de Iria: «Todos os homens que são muito pilotos têm fantasias de doidos; e
vós, Diogo Botelho, por isso perdestes. E portanto emendai com bons
serviços, porque Elrei vos fará mercê e eu vo-la farei».

E Iria Pereira? Nunca mais se acharam relatos sobre ela. Ou veio com o
filho para o Reino, para aqui o bem relacionar na Corte, ou morreu algures.
Em Cochim não ficou, porque lá Diogo era sustentado por um amigo, antes
de um «chatim» lhe deixar uma herança.

Ele foi sempre irreverente e aventureiro. A sua vida era de altos e baixos.
Em 1528, está no reino e vai na nau “S. Maria da Luz” até às costas
orientais da África procurar barcos que se perderam. Tinha 23, 24 anos e é
encarregado duma missão própria de quem dominava o tempestuoso
Oceano índico. O governador D. Nuno da Cunha encontrou-o em
Mombaça e reenviou-o ao reino. Em 1531, é designado «morador da casa
real», «moço fidalgo» e parte como capitão da “Vera Cruz”, após o
terramoto e terem surgido no céu extraordinários sinais. Estava destinado ir
três anos para a China, mas Nuno da Cunha «tomou a mandar para o reino
os navios da armação da rainha porque a China estava alevantada». Em
parêntesis saliente-se a política de D. Catarina, rainha comerciante
independente do rei, que tinha três navios «feitorizando» pela China e por
todas as partes da índia.

Em 1533, por uma carta de D. João III, sabe-se que acabara de chegar ao
reino.

Uma vez em Lisboa, pediu de novo uma fortaleza e mais uma vez o rei
não lha deu. Então ameaçou ir servir o rei de França. Como houve
mexeriqueiros que contaram ao rei, este não suportou a ameaça. Reenviou-
o para a índia, mas desta vez não comandando naus, mas como degredado.
Assim, na frota de 1534, navegavam alguns nossos conhecidos — o
dominicano Juan Caro, Diogo (curiosamente mestre e aluno na mesma
situação de degredo), Marfim Afonso de Sousa, capitão-mor da armada, e
ainda Garcia de Orta. Martim Afonso, que ia na nau Rainha, numa carta ao
rei, ignora Orta, mas fala em Diogo: «Vai tão manso e tão desejoso o que
eu nele conheço de servir Vossa Alteza na índia ... e aqui trabalha tão bem
em tudo ... ele lá em terra me aborrecia, mas agora acho diligente».
Desculpa-o ainda dizendo que se ele «entornou», não foi por nenhuma má
intenção, «senão pequice».

Como nesta terra sempre houve boa novidade de homens invejosos e


maldizentes que a todos bons espíritos e úteis à República procuram
acanhar e estorvar-lhe o bem e melhoramento, aos quais parece doer mais
o bem alheio que o mal próprio, houve quem dissesse a Elrei que Diogo
Botelho...

Na índia, não continuou «manso», pois não se conformava com o


degredo. O seu velho sonho de ser um capitão de fortaleza não se tinha
extinguido. Mas como, sendo degredado? É então que vai traçar um plano,
profundamente imaginativo e genial. Irá realizar o feito «façanhoso»
(expressão de Castanheda) que o celebrizou na Europa e no mundo
conhecido.

4 — O «FAÇANHOSO» FEITO DO FILHO DE IRIA

Fez um barco, tipo fusta, para vir em segredo ao reino. Construiu-o num
«lugar escuso onde não passava gente e lhe fez cerca fechada de porta».
Mesmo assim, acusaram-no ao Vedor da Fazenda, mas conseguiu
convencê-lo que ia a Diu. Nesta altura, o rei de Cambaia autorizara a
construção duma fortaleza nessa cidade. Fez um buraco na fusta para entrar
água, «tapado com um tomo de pau, de que ninguém sabia senão um seu
escravo forro que levara da índia que tratava como filho» (Correia) e foi a
Baçaim, onde estavam Garcia de Sá e Catarina Pires. Pediu um barco novo,
deixando aquele a «consertar». Em Diu, desenhou tudo o que interessava.
Depois veio a Baçaim buscar o barco consertado, pregou uma mentira a
Garcia de Sá e veio para o reino. Para conseguir dinheiro, trazia a fusta
carregada de cravo-da-índia, 40 quintais, «todo escolhido de cabeça». No
percurso, passou por diversas peripécias que Gaspar Correia descreve em
dez longas páginas, por vezes hilariantes, porque Diogo era «fantasioso»
como a mãe. Inventava sempre uma história.

João de Barros informa que, para marear a fusta, levou seus escravos e
cinco portugueses, três deles criados seus e o comitre da fusta, além de
Manuel Moreno. Encheu o barco de mantimentos e «se partiu de Dabul o
primeiro dia de Setembro de 1535, dizendo a todos que se ia juntar com
nossa armada que andava na costa de Cambaia». Como imaginou que os
companheiros mais dia menos dia davam pelo engano, colocou à cinta uma
espada e vestiu por baixo uma saia de malha. Naturalmente que
descobriram, mas valeu-lhe a sua extraordinária sabedoria de «herói do
mar», pois se aquietaram ao verem que chegou às costas da Arábia ao
tempo que disse «sendo cousa em que os Pilotos que por ali navegam não
atinam, por causa das grandes correntes» — acrescenta Barros.

Mais tarde, os companheiros perderam a cabeça, atacaram-no e perdeu a


fala 14 dias, mesmo assim mandava «por acenos». Nos Açores, temeu ser
preso, mas sem água nem alimentos, teve de parar no Faial. Aqui, ao
desembarcar, segundo Barros, foi recebido pelo corregedor e gente da terra
«como cousa estranha e milagrosa sabendo que vinha da índia em uma tão
pequena embarcação e assim lhe fizeram festa e correram touros».

Como o diabo as tece, o corregedor olhou melhor para ele e conheceu-o.


Sabendo que ele tinha ido degredado para a índia, pensou que vinha fugido
e queria prendê-lo. Mas Diogo tinha na manga um plano B, e mostrou ao
corregedor um «maço de cartas feitiço» (Barros), dizendo que eram do
governador da índia, de grande importância. Como prova da verdade que
dizia, deixou-lhe uma carta do governador, obrigando-o a jurar por sua fé
que só a abriria oito dias depois de sua partida. Com uma série de
estratagemas, conseguiu mantimentos e partiu.

Entretanto, o governador da índia tinha mesmo enviado um secretário


dar a nova da fortaleza de Diu. Primeiro andara à procura de Diogo, para
lhe desenhar a fortaleza, desconhecendo que ele tomara secretamente
apontamento de tudo. Testemunha Correia:

Tomou todas as medidas da fortaleza, de longo e de través, e alturas dos


muros, torres e cubelos, e largura das paredes e assim da cava e os vãos
por dentro, e quantas bombardeiros havia em toda, e que peças tinha
assentadas, e a que parte estava a casa da feitoria e almazém, e igreja; e
tomando de tudo informação, que nada lhe ficou de que não soubesse dar
razão a El’Rei, se lho perguntasse.

D. Nuno da Cunha só descobriu quando recebeu uma carta de Garcia de


Sá. O governador ficou tão zangado que preparou uma nau para vir ao
Reino, comandada por Simão Ferreira, secretário da índia, com ordens de
«se o topasse o queimasse na fusta, sem dar vida a nenhum» (Correia).
Chegou ao Faial 8 dias depois, na altura em que o corregedor abriu a carta
falsa. Mandaram uma caravela atrás dele, como se adiantasse. Além de ser
tarde, não havia um piloto nesse tempo mais hábil, por isso chegou glorioso
ao Tejo em Maio de 1536.

D. João III não estava em Lisboa, disseram-lhe que permanecia em


Évora. Alugou um cavalo e ei-lo pelas estradas ruins do tempo.

O rei e a rainha já estavam a dormir e levantaram-se para o receber. D.


João III nem queria acreditar, ficou espantado ao vê-lo. Tinha-o desterrado
para a índia e ali estava ele, com a notícia da construção da fortaleza de
Diu, com desenhos e todos os pormenores e medidas. Depois pernoitou na
casa dum tio, que era anadel dos espingardeiros. Como era filho natural e
criado pela mãe, esse tio talvez fosse materno, sugerindo que Iria poderia
ser natural de Évora.

No dia seguinte, foi com o tio ao palácio, mas já não foi tão bem
recebido. As tais invejas, além da hostilidade da rainha. Ele astuciou logo
outra: pediu ao rei para ir à romaria de N. Sra. de Guadalupe, em Castela.
Uma vez em Espanha, conseguiu não só ser recebido pela Imperatriz
Isabel, irmã de D. João III, como a sua intercessão. Assim foi, o que prova
que ou era atrevido ou importante, por ser atendido pelos reis da Península.
Quando chegou o informador oficial da índia, 20 dias depois, já ele estava
perdoado e já se tinha enviado um mensageiro ao Papa.

Em Portugal e em Roma, fizeram-se procissões de louvor pelos sucessos


de Diu e festas. Todavia, segundo Barros, não se festejou «com a satisfação
que aquela façanha merecia (ao costume da terra na qual raras vezes se
pagaram bem serviços assinalados)». Muita gente de Portugal e
estrangeiros vieram ver a fusta, que esteve em Salvaterra e depois foi
levada para Sacavém, onde o rei a mandou queimar para que não se
divulgasse «pelo Mundo que em tão pequeno navio se podia navegar à
índia».
Este feito foi narrado em várias línguas. Segundo Castanheda, se fosse
no tempo dos Romanos, lhe fariam «uma estátua por memória de façanha
tão grande, como não se acha em nenhuma escritura que algum homem
fizesse». Vê-se que os cronistas o admiravam. Nenhum outro português
mereceu mais a expressão de «herói do mar».

A sua fama atravessou os séculos. Com efeito, segundo Frazão de


Vasconcelos, nos fins do séc. XVIII ou inícios do XIX, pintaram doze
armadas, a têmpora «numa pequena sala que atualmente é dependência da
Repartição do Gabinete do Ministério da Marinha e em tempos pertenceu
ao Estado Maior Naval». Ao lado das armadas de Gama e Cabral, lá está a
viagem de Diogo Botelho Pereira! Uma entre as doze maiores! E tudo isto
devido à educação que uma mãe solteira deu a seu filho.

Os documentos da índia relatam muitas viagens capitaneadas por Diogo


Botelho Pereira. Em 1558, Lisuarte de Abreu desenhou uma nau com o seu
nome, como sendo da frota de 1547. Quando finalmente viu o seu sonho
realizado — ser capitão duma fortaleza da índia, Cananor —, o destino foi
cruel com ele: «Embarcou assim enfermo e grosso e afirmava-se que bebia
dois almudes de água cada dia. Entrou logo na sua capitania que não
logrou, porque morreu no primeiro ano». Foi em 1554.

Pode ser que surjam novos documentos que acrescentem dados sobre Iria
Pereira. Uma portuguesa que interferiu na história das Descobertas,
viajando e preparando um filho para extraordinárias viagens. Seu nome
ultrapassou a bruma do tempo. Mas ainda não chegou aos programas
escolares de História.
CAPÍTULO III

AS TRÊS CLANDESTINAS LISBOETAS NAS NAUS DE VASCO


DA GAMA

O que vos o mundo nega... Não sei porque vos matais! Deveis vos de crer de mim:
Lembre-vos que há de ter fim O mal de que vos queixais.

Joana da Gama

Os anos foram passando. O mar ficou mais salgado com muitas das
nossas lágrimas. Perscrutando o horizonte, mulheres de tranças gastaram os
olhos, em dias intermináveis, sem nada divisar na linha azul. Algumas
deram certamente novos rumos à sua vida, aprenderam a trabalhar com as
mãos, assumiram novas responsabilidades. Outras aventuraram-se,
rasgaram costumes e proibições, e quiseram conhecer os mares que Gama
abriu.

Morto D. Manuel I, em 1521, D. João III convidou Vasco da Gama para


ir pela terceira vez à índia. Desta vez partirá como Vice-Rei e Conde de
Vidigueira.

Curiosamente, o cansado marinheiro, em vez de se preocupar com a


trabalhosa preparação duma viagem da carreira da índia, de mais de seis
meses, vai canalizar toda a sua energia contra a partida de mulheres. E
lícito perguntar-se porquê.

Ele não gostava mesmo de ver elementos femininos nas naus. Achava
que isso era um «inconveniente» para «as consciências dos homens, que
serão esquecidos de suas almas com a conversação das mulheres, e
esquecidos que cada hora andamos com a morte».
Mas a morte estava sempre presente na vida das populações da época da
expansão. «Está tão perto que dorme e come connosco» — escreveu Joana
da Gama. De tal modo que conhecemos a data da partida de muitas
individualidades, mas não a do seu nascimento. Do mesmo modo, o dia de
veneração dos santos corresponde, regra geral, ao do seu fim.

Ora, estando Gama ainda em Belém, segundo o cronista Francisco de


Andrade, «entendendo quão abominável cousa é embarcarem os homens
consigo mulheres nas naus pelo grande e evidente perigo de suas almas e
pelas diferenças e brigas que sobre isso podem suceder», mandou apregoar
em terra e nas naus e por escritos nos pés dos mastros, assinados por ele, as
seguintes leis que transcrevo agora de Gaspar Correia:

— qualquer mulher que fosse achada nas naus fora de Belém, seria
publicamente açoitada, ainda que fosse casada

— seu marido tornaria a Portugal carregado de ferros

— se fosse escrava cativa seria perdida para a rendição dos cativos

— o capitão que em sua nau achasse mulher e a não entregasse, por isso
perderia seu ordenado.

Dos quais pregões mandou o ouvidor fazer auto.

Estas leis repressivas dão que pensar. Ninguém decreta para o vazio,
legisla-se para estabelecer regras após a existência de realidades. Era
costume as mulheres viajarem nas naus da índia? Só se conhecem «duas
dúzias» de portuguesas que desembarcaram nas cidades indianas antes de
1524. Elas justificam leis tão severas, atingindo maridos e capitães? Ou
foram mais mulheres e viajaram «invisíveis» como muitas vezes aconteceu
na pena dos cronistas? O mais provável é não existirem fontes, pois não se
entende a preocupação do famoso descobridor, com o embarque de
mulheres, se isso não fosse uma prática com alguma regularidade. Mesmo
que o facto das Quiloenses, que ocuparam as suas naus, o tenha aborrecido,
agora ele faz leis para as suas conterrâneas e partida de Lisboa. As
mulheres de Quiloa eram de outra nação, ele não podia fazer leis contra o
seu embarque nem contra os maridos delas. Estas medidas de Gama
merecem, por isso, muita reflexão.

Com leis tão severas contra a partida de mulheres, Gama abandonou


Lisboa descansado. Segundo Castanheda, comandava uma grande armada,
constituída por 14 velas — 7 naus grossas, 3 galeões e 4 caravelas. «E
fornecida esta armada de muita e boa gente, armas e mantimentos, partiu-se
o vice-rei com ela a 9 de Abril do ano de 1524».

Entre essa «mui luzida gente, em que entravam muitos fidalgos e muitos
outros moradores da casa del Rei em muito bom foro e outra gente muito
limpa», ia Diogo Botelho Pereira, de quem já se falou por ser o único filho
da Iria Pereira, primeira portuguesa a navegar para a índia.

Vasco da Gama olhou Lisboa, o Tejo e a serra de Sintra pela última vez.
Não mais regressaria vivo.

Ei-los pelo Atlântico já sem mistérios. E tudo correu com ventos, sol,
mar, sempre mar, dias intermináveis sem nada para ver e pouco para
comer. Houve tormentas e navios desgarrados. O capitão de uma caravela
foi morto pela tripulação. Passaram-se dias, semanas e meses. Até que...

Vieram dizer a Gama, em Moçambique, que, apesar das severas leis de


proibições e açoites, havia três mulheres nas naus. Vasco da Gama ficou
muito zangado. E se tinha canalizado muita energia na elaboração de leis
contra eventuais marinheiras, agora irá canalizar toda a sua ira contra elas.
Estas três raparigas levam-nos a pensar que nem só o casamento, nem só
o convento eram um destino definitivo para as mulheres. E que nem todas
eram pacatas, mansas e obedientes, também existiam as rebeldes, as
aventureiras. Elas expressam a coragem de um povo, que enfrenta tudo,
perigos internos e da natureza, para viver num novo mundo.

Quem eram estas raparigas?

Para Castanheda eram duas e atrevidas mulheres solteiras. Este termo


significava prostitutas. Este cronista compara-as com outras que viajaram
com ele, em 1528. Para ele, as leis que Vasco da Gama mandou apregoar
em Belém eram «que nenhuma mulher solteira fosse na armada sob pena
de açoites, por evitar muitos pecados que se seguem de as levarem nas
naus, como eu vi».

Mas Gaspar Correia descreve todo este episódio da viagem de Gama


com pormenor e com respeito pelas mulheres. E lendo as suas palavras,
percebe-se que não eram prostitutas. Abrange as casadas, os maridos, que
tomariam a Portugal carregados de ferros, e as escravas.

Portanto, estas mulheres que embarcaram, em 1524, também não eram


nobres nem freiras. Nem filhas nem esposas nem mães dos marinheiros
embarcados. Eram simplesmente raparigas solteiras propriamente ditas
[não casadas], raparigas sem homem, que viajavam por sua própria conta,
moças aventureiras de Portugal.

1 — A SOLIDARIEDADE DE GOA COM AS MAREAN TES

Desta vez Vasco da Gama não estava disposto a perdoar, a condoer-se, a


compreender. Mandou-as «arrecadar», possivelmente na sua nau, que se
chamava «Santa Catarina do Monte Sinai».
Devem ter tido uma vida negra até Goa. Ainda por cima, na costa da
índia, sentiram um tremor de terra, a 4 de Setembro, e mais tarde uma
chuvada tipo «dilúvio». É da altura deste tremor de terra a famosa frase de
Vasco da Gama: «Não receeis, portugueses! É o mar que treme de nós».

Cheias de medo deviam estar as moças que iam «arrecadadas», sem


poderem fugir.

Em Goa, palavra de vice-rei não volta atrás. E tudo se prepara para


açoitar as raparigas, em praça pública, como se fossem criminosas de baixa
condição social. Pelas ruas correu o pregão: «Justiça d’El-Rey nosso
senhor! Manda açoitar estas mulheres, porque não tiveram temor de sua
justiça, passando à índia contra sua defesa».

Se não fosse triste e trágico, diria que se passou em Goa uma das páginas
mais belas da face feminina da Expansão Portuguesa. E que raramente
aconteceu o que se viu nesse distante Setembro de 1524 — um movimento
de solidariedade para com as mareantes. Continua Correia:

Por estas mulheres foram rogadores todolos fidalgos, e bispo, e frades,


e os da Misericórdia, e davam homens bons três mil pardaos para a
rendição dos cativos; o que nada o Vice-Rei quis ouvir. Ao outro dia que
as haviam de tirar a açoitar, vieram os da Misericórdia e frades de São
Francisco com um crucifixo a lhas pedir.

Portanto, o movimento durou mais que um dia. O cronista mor,


Francisco de Andrade, sintetiza dizendo que «acudiram em favor delas ao
vice-rei todo o género de homens que parecia que podiam ter com ele
alguma valia e a quem ele podia ter respeito», mas a todos «não deu
orelhas».
Neste mesmo século, alguns anos depois, religiosos que iam para a índia,
sobretudo Jesuítas, expulsaram as nossas conterrâneas das naus e
abandonaram-nas em terras estranhas. Como é bonito saber-se que, em
1524, os franciscanos enfrentaram a ira de Vasco da Gama em defesa, não
do «irmão lobo», mas das «irmãs mulheres»!

Gama mandou dizer aos frades que só os ouviria se voltassem a colocar


o crucifixo no altar.

O que eles assim fizeram. Então lhes falou dizendo que mais lhes não
acontecesse fazer outra tal, porque vir com crucifixo a sua casa, pelas
ruas onde estava tanto povo, era modo de união, mostrar ao povo que ele
era cruel e sem piedade; o que com ele mais não fizessem....

E Vasco da Gama não ficou pela reprimenda aos frades. Vai fazer algo
que não estava à altura do descobridor do caminho marítimo e de que se irá
arrepender — vai usar as mulheres para fazer tremer os homens. Como não
se atreveu com eles, descarrega nelas. E diz aos frades:

se ele não fazia execução nestas mulheres, que desprezaram sua justiça,
muito melhor fariam os homens confiando que os perdoaria de seus
malefícios. O que ele não havia de fazer por nenhuma cousa do mundo;
pelo que assim o jurava e prometia que havia de fazer direita justiça, sem
nenhum perdão.

E teceu uma série de ameaças contra todos. Segundo Castanheda, nesse


movimento de solidariedade, surgiram homens que se propuseram casar
com as navegantes, mas só o fariam se elas não fossem açoitadas em praça
pública.

Vasco da Gama não quis saber de noivos, nem do dinheiro que davam
para o resgate das raparigas, nem do futuro delas e açoitou-as mesmo.
Gaspar Correia testemunha: «E mandou açoitar as mulheres, dizendo que
ele havia de punir com direita justiça neste mundo, que Nosso Senhor no
outro teria misericórdia com quem a merecesse».

Por sua vez, Castanheda diz que as mandou açoitar metidas numa canga,
à moda medieval.

A gente de Goa não compreendeu a severidade de Gama. «O povo muito


se escandalizou do feito destas mulheres, julgando o Vice-Rei por cruel,
mas vendo tanta firmeza de execução lhe houveram grande temor...».

Aliás, a administração de Vasco da Gama como vice-rei foi controversa.


A política que seguiu foi a de causar medo em todos. Proibia, destituía,
ameaçava. Proibiu os doentes da armada de serem transportados para o
hospital de Goa. Para ele, não havia necessidade de hospitais, porque
existindo, os homens faziam-se doentes. Gaspar Correia acrescenta que
Gama declarou que sabia duma mezinha que os curava a todos. E mandou
distribuir os despojos de uma nau rica que tomou vinda de Meca «que tudo
venderam e tudo foi partido às partes». Na verdade, saíram doentes do
hospital e logo Gama os proibiu de lá voltarem, dizendo que os recolhiam
«por amizades». E como desde Eva a origem da culpa se atribuía à mulher,
proibiu também a entrada no hospital dos feridos por brigas, considerando
que essas contendas apenas aconteciam por causa das Evas do tempo.

Proibia tudo. Proibiu os navegantes de retirarem das naus o que levavam


em Goa «no que deu muita perda aos armadores» (Correia). Proibiu
refeições, «do que se seguiu haver fome entre os soldados» (Castanheda).
Proibiu a gente das naus de ir a terra. E obrigou-os todos a ir para Cochim
senão ficavam sem vencimentos. Proibiu os marinheiros de embarcarem
baús maiores do que o tamanho de espadas. Fez ameaças terríveis: «O
homem que mal fizesse toda sua fazenda lhe havia de tomar» ou ainda
«dentro no Balagate os havia de mandar matar» (Correia). Por sua vez,
João de Barros encontra estas expressivas palavras para o definir: temiam-
no «por ser homem que não perdoava os pecados do pensamento quanto
mais os da obra». Era «de sua condição muito justiçoso», escreve
Castanheda e, por isso, «muitos para se verem livres dele se iam para
Coramandel e outras partes em que andavam fora do serviço del rei e até os
Mouros haviam tamanho medo dele que tremiam quando o nomeavam».

Os açoites às três portuguesas mareantes inseriram-se nesse ódio ao


mundo, talvez porque se sentia doente.

Contudo, a Câmara de Goa escreveu ao monarca a louvar a justiça do


Conde de Vidigueira. Dizia que ele era estimado de todos pela retidão com
que aplicava a justiça. Não referindo as três raparigas, queixa-se do capitão
anterior, Francisco Pereira, que Gama depôs. Segundo a Câmara, esse
capitão era acusado de «tomar a alguns moradores suas casas, expulsando
delas mulheres e filhos, prendendo os cidadãos e juízes ordinários, tirando
as varas aos almotacés e as quebrar...». Até dera ofícios a homens solteiros,
quando as determinações reais, para promover a colonização, exigiam o
casamento dos funcionários, desde 1517: «Que todos os ofícios da dita
cidade assim da governança dela como da justiça e nossa Fazenda ande nos
casados... e não sejam neles providos outras pessoas». Neste aspeto,
indiretamente, Gama, na sua sede de justiça e pôr cobro a desmandos,
acabou por tomar uma medida que favoreceu algumas mulheres goenses,
casadas com portugueses.

O vice-rei deixou Goa e foi para Cochim. Nesta cidade, a doença


progrediu, começou a ficar com o corpo coberto de furúnculos. Estava na
índia há três meses quando sentiu que o seu fim estava próximo. A sua vida
tinha sido das mais gloriosas neste recanto nascidas, ela originará a
personagem principal do maior livro escrito em português — «Os
Lusíadas». Mas o grande homem, ao sentir a chegada da morte (que
ocorreu na véspera de Natal), sentiu remorsos pelo que tinha feito às três
conterrâneas. E ditou o seu testamento:

E mandou às mulheres que em Goa mandou açoitar, a cada uma cem


mil reais, que lhos dessem em muito segredo, e se os não quisessem tomar,
dobrados os dessem à Casa da Santa Misericórdia, as quais com este
dinheiro acharam bons maridos e foram casadas e honradas.

Neste ponto, teremos de acreditar em Gaspar Correia. Ele estava lá, em


Cochim. Segundo Sanjay Subrahmanyam: «Em 1524-25, Correia esteve
em Cochim, como almoxarife do almazem da Ribeira, e, provavelmente,
testemunhou as últimas semanas da estada de Vasco da Gama nessa
cidade».

Só podia ter assistido a todo o desenvolvimento desta trama, sabendo do


futuro das três raparigas. Uma história que acabou bem. Elas conseguiram.

É interessante constatar que Germano Correia, um historiador do nosso


tempo, atribui a morte de Gama a uma espécie de castigo divino pelo que
ele fez às viajantes das naus da índia: «O velho almirante, porém, pagou
bem pesado tributo à justiça de Deus. Morreu em Cochim, minado de
remorsos e com o corpo repleto de furúnculos e antrazes que se
ulceraram...». Na verdade, Gaspar Correia testemunhou que o vice-rei
sofria de grandes dores no pescoço, «vieram apontando uns leicenços pelo
toutiço, mui duros, sem quererem amadurecer com grandes remédios que
lhe faziam, que nada prestava, que davam tão grande tormento que lhe não
deixavam bulir o rosto para nenhuma parte».

3 - Cecília - O «Sangue Português»


Cumpre perguntar como conseguiram três raparigas, no meio de homens
e proibições, subir a bordo de naus acanhadas. Viajar para tão longe,
resistir com vida a tempestades e calmarias, atravessar climas de quatro
estações climáticas em seis meses! Como se alimentavam, como se
escondiam, se trocavam ou não de roupa, como enfrentavam a natureza
biológica de cada mês, como satisfaziam as necessidades higiénicas. Qual
seria a atitude dos marinheiros perante a sua presença, solidários ou hostis.
E ainda que força as movia para arriscar a vida pelo azul salgado.

Idênticas interrogações têm sido formuladas pelos interessados na


epopeia das descobertas. Elas fascinam os investigadores de todos os
tempos, porque contrariam ideias estabelecidas.

Um dos fascinados foi Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931). Este


português foi presidente da Academia das Ciências de Lisboa, capitão de
mar e guerra e especialista de história naval. Apesar de ter escrito vários
livros, nós conhecemo-lo sobretudo como o autor da letra do Hino
Nacional. Aí cantou os «heróis do mar». Certo dia, constatou que tinham
existido heroínas dos mares e também quis cantá-las. Escolheu as três
companheiras de bordo de Vasco da Gama, tratando-as com muita
dignidade.

Mas o importante deste trabalho, e por isso se traz aqui, é que além duma
perfeita reconstituição histórica, apoiada em Gaspar Correia, Lopes
Mendonça integrou o conto, que intitulou de «Justiça do vice-rei», na obra
Sangue Português. Na verdade, era português o sangue que escorreu das
costas açoitadas das navegantes de 1524.

O conto Justiça do Vice-Rei começa com um frade dominicano, Fr.


António, a tentar usar o tremor de terra como «um aviso do céu» que «vos
incita à clemência». Gama justifica-se: «Quis atalhar brigas, uniões e
escândalos que a presença das mulheres sempre traz a bordo». Mas o frade
ripostou: «Longos meses estiveram a bordo, num recanto escuro do porão,
sem ar, sem luz, alimentadas nem sei bem como, e nem brigas nem
escândalos elas vos forçaram a atalhar».

O frade apresenta o motivo da sua partida: «Aquelas mesquinhas


criaturas foi o muito amor que as arrastou a extremos de desobediência.
Nada mais queriam senão seguir a longes terras os homens a quem
amavam.»

Gama está irado porque as raparigas não confessaram quem eram esses
marinheiros. Nas suas leis, os homens, que levassem mulheres, seriam
reconduzidos ao Reino carregados de ferros. Mas as navegantes foram
duplamente corajosas: «Não conseguistes arrancar-lhes essa confissão,
porque foi mais forte nelas o pudor do que o temor da vossa cólera».

No conto, a personagem principal chama-se Cecilia, as outras são


secundárias e não têm nome. Cecília foi atrás do marinheiro Gil Galo. Mas
ele desprezou-a e nunca a ajudou. Confessou até a Fr. António: «E vós,
meu padre, julgais que possa um marinheiro honrado do senhor Rei de
Portugal, desposar uma mulher açoitada na praça pública, entre as vaias do
povoléu?»

Segue-se a chegada a Goa e o belo movimento de solidariedade idêntico


ao narrado por Gaspar Correia. Fidalgos, franciscanos, um requerimento
dos homens bons da cidade dando dinheiro, até a intercessão do Bispo D.
Martinho, que estava enfermo.

Mas o insigne Almirante viu passar com indiferença o cortejo para o


local dos açoites.
Após o meirinho, que erguia a vara com ar solene, seguia-se um grupo
de oficiais de justiça, trajando de negro. O corpo do préstito era formado
pelas três infelizes, cruzando atrás das costas as mãos algemadas.
Descaía-lhes de vergonha a cabeça sobre o peito... Cercava-as um troço
de soldados que lhes lançavam olhares de esguelha.

Depois de descrever o caminho do cortejo sinistro, Mendonça imagina


Cecília com «belos olhos de um castanho tirante a dourado, límpidos e
doces» a poisarem nos olhos de Vasco da Gama. «Num relance casual,
esses olhos fitaram o Vice-Rei. E o velho fidalgo leu neles uma chama
súbita de maldição e de ódio, tão intensa e dardejante, que a sua energia
vacilou um momento...».

Após os açoites, foram recolhidas na Misericórdia de Goa. Mendonça


esquece as outras duas e descreve a dor de Cecília: «Parecia ter estampada
no rosto, branco de cera, a vergonha do suplício infamante; a angústia
moral quase nem a deixava sentir as cruciantes dores, que lhe arrepelavam
as cames ensanguentadas do pobre dorso».

Ela soube que Gama e Gil Galo tinham partido para Cochim e resolve ir
também para essa cidade, e só podia ir de barco. O frade tenta demovê-la,
mas ela diz: «Por que o acompanhei eu até tão longe, sem ter em conta nem
perigos do mar, nem tiranias de homens, curtindo meses de agonia no
porão húmido e sem ar, senão para que ele me restituísse a honra que me
tirou?»

Fr. António lembra-lhe outro marinheiro que gosta dela — Bastião


Tamanino. Mas Cecília pensa que mais ninguém quererá casar com uma
mulher «afogada de vergonha» que «tem de deixar espalhada a sua mim
fama pela índia inteira...».
Em Cochim, tenta de novo falar com o homem que seguiu. Ele rejeita-a
outra vez. «Não foste tu que teimaste em vir comigo para a índia? Agora aí
tens!».

Chega-se o Natal e a morte de Gama. Cecília vai ao velório e fica


surpreendida quando lhe aparece Gil Galo, carinhoso, a querer casar com
ela. A moça procura o frade para entender a mudança. Este informa-a que
Gama lhe deixara cem mil reais de dote. Ela então procura Bastião
Tamanino e pergunta-lhe se ainda quer casar com ela. Ele responde que
sim. Cecília aceita o dote de Vasco da Gama para iniciar vida nova, mas
com Bastião.

E um drama histórico belíssimo sobre as mareantes companheiras de


Gama. Uma história que inclui o sangue feminino no sangue português
derramado nas descobertas. Na verdade, também tinha a cor vermelha,
também foi vertido na índia. Sangue que denota tempos de dupla repressão
contra as mulheres — negação de marear e de oportunidades.

Gaspar Correia, que certamente as conheceu, testemunha que essas três


raparigas casaram e foram honradas. O seu texto perpetuou-as, mesmo sem
nome, como as primeiras viajantes que saíram do Restelo com um
propósito — o de chegarem à índia por mar e lá traçar novo rumo a suas
vidas. Se tivessem escrito um motivo da sua viagem, talvez apontassem a
mesma razão de Silvestre de Bachão: «A mim parecendo-me que em
Portugal não podia alcançar honra nem menos comer, quis vir à índia».

A solidariedade para com as viajantes, em Goa, revela que afinal muita


gente era a favor da partida de mulheres e apoiava-as longe da Pátria.

Gaspar Correia perpetuou a ironia do destino do navegador que não


queria mulheres nas naus e morreu a lembrar-se delas no seu testamento. E
ao dedicar páginas ao arrojo feminino, da época das descobertas, legou
raízes históricas às portuguesas, que podia ter intitulado de «As Lusíadas».

Vasco da Gama repousa nos Jerónimos, num túmulo manuelino. Mas as


suas companheiras de viagem, a quem os tempos não permitiram que
fossem marinheiras, onde jazerão, onde teriam deixado suas cinzas?
CAPÍTULO IV

CATARINA PIRES E LEONOR SEPÚLVEDA: A MÃE E FILHA


QUE MAIS NORMAS ROMPERAM

A afeição e o desejo acrescentam o engenho; enquanto o engano dura, faz obrar


coisas que parecem impossíveis. A sobeja afeição, se está inserida na vontade, afoga a
razão, põe em ferros a liberdade e dana a fama.

Joana da Gama

Foi realmente a «sobeja afeição» que fez com que uma pobre rapariga do
Porto se tornasse navegante de oceanos sem fim. Do Porto foi a Lisboa, de
Lisboa zarpou para Goa, de Goa partiu para Malaca, de Malaca voltou a
Goa. Mais tarde, de novo zarpou para Malaca, voltou a Goa e daí foi para
Baçaim, novamente regressa à capital da índia, foi quase a primeira-dama e
por lá deixou as cinzas. Se considerarmos que ela acompanhou sempre o
seu amado, como é lógico, e se partiu em 1518, então ela viajou duas vezes
para o Oriente (a segunda em 1528) e foi a primeira europeia de toma-
viagem, por 1522, ainda em tempo de Vasco da Gama. Subiu assim ao
pódio das grandes viajantes da História da Expansão Portuguesa.

Chamava-se Catarina Pires. Nasceu em Miragaia, perto do local onde o


Infante D. Henrique entrou na vida. O seu nome nada nos dirá, na nossa
memória coletiva permanece mais o nome de sua filha, Leonor de Sá
(Sepúlveda), a bela dama celebrada por Camões. Não foi imortalizada
como sua filha, mas deve ter sido tão bonita como ela e certamente foi bem
mais corajosa, mais navegante e teve mais poder.
Catarina Pires era uma moça do povo, «de baixa geração», como diz o
seu contemporâneo Damião de Góis (1502-1574). Mas a época das
descobertas proporcionava oportunidades inesperadas, os horizontes não
conheciam âncoras. Era como hoje uma época de tempo novo, em que tudo
acontecia depressa. E o destino fê-la navegar por mares nunca navegados e
tomou-a senhora de cidades portuguesas do Oriente.

Catarina brincou certamente nas margens do Douro, imaginando as


novas terras para além do horizonte azul do Atlântico. Os ventos traziam
noticias inesperadas, mas, nesse tempo, estava destinado às portuguesas
ficar à espera, vultos sem rosto, corpos sem nome, consumidos pela
saudade em intermináveis entardeceres. «O homem barca, a mulher arca»
— dizia um ditado do tempo. O oceano trazia-lhes lágrimas, não aventura.

Ela nasceu pobre, mas a natureza premiou-a com uma qualidade que tem
dado muito jeito às mulheres de todas as épocas — uma grande beleza. E,
um dia, o olhar de Catarina cruzou-se com o de Garcia de Sá, futuro
governador da índia. Ele já tinha trinta e muitos anos, pois deve ter nascido
por volta de 1479, se acreditarmos em Diogo do Couto. Nesses tempos, em
que contavam os privilégios de nascimento, Garcia era um homem
inatingível, um amor impossível para ela — além de fidalgo e rico, era
filho do alcaide da cidade.

O pai de Garcia era João Rodrigues de Sá. Segundo o humanista Damião


de Góis, era «Alcaide-mor do Porto e senhor de Sever». Diogo do Couto
diz também ser o Io alcaide do Porto e acrescenta «senhor de Matosinhos e
das terras de Baltar e Paiva».

Esse alcaide do Porto casou três vezes. E foi um dos muitos maridos
assassinos desse tempo, como se verifica ao folhear as páginas dos
genealogistas, pois matou a primeira esposa. Garcia é filho da terceira, que
se chamava Joana de Albuquerque, e era filha do Mestre Sala do Rei D.
Afonso V.

Quanto a Catarina, os Nobiliários não perdiam tempo com gente do


povo. Nenhum dos cronistas e historiadores consultados traz o nome dela.

Camilo Castelo Branco, a quem cabe o mérito de ter descoberto esta


navegante, publicou um estudo, em 1880, intitulado «História e
Sentimentalismo», com o subtítulo Tragédias da Indiam. Aí revela seu
nome — Catarina Piró.

E é como Catarina Piró que consta da Grande Enciclopédia Portuguesa e


Brasileira e do Dicionário Mundial das Mulheres Notáveis. Aí supõe-se que
o verdadeiro apelido dela seria Albuquerque, porque uma filha tinha esse
apelido. Ora, Albuquerque era o apelido da sogra. Garcia quis homenagear
a mãe, pondo a uma filha o nome dela, exatamente igual — Joana de
Albuquerque.

A fraca vista, infelizmente, de Camilo Castelo Branco traiu-o. A leitura


de rabiscos manuscritos é difícil mesmo para quem tem boa visão. Assim,
leu Piró quando devia ter lido Pires. Quem nos diz que o seu apelido era
Pires é o genealogista da minha preferência, pois não esquece os nomes
femininos, Abade de Purozello, no seu Nobiliário manuscrito.

1 — A FLOR DE MIRAGAIA

Segundo Camilo, Catarina «não se prestou à mancebia na sua terra, nem


o pai de Garcia concederia que o filho se abandalhasse em amores tão
reles». Garcia não podia casar, mas também não queria perder «a flor de
Miragaia». «Tinha o fidalgo amoroso o grande recurso do império índico e
o talismã dos seus apelidos — continua Camilo. — Foi à corte, requereu
uma capitania. D. Manuel deu-lhe a de Malaca...».

Esta capitania é confirmada por ele mesmo, quando foi chamado a depor
sobre a questão das Molucas: «Ela, testemunha, foi por mandado de el-rei,
que Deus haja, por capitão a Malaca e esteve lá dois ou três anos».

A cidade de Malaca tinha sido conquistada por Afonso de Albuquerque,


em 1511. Por lá passavam as porcelanas e sedas da China, o cravo das
Molucas, a canela do Ceilão, a noz-moscada de Sunda... Enfim, era o local
onde se encontrava o comércio do Indico com o Pacífico. Aí desaguavam
os sonhos de enriquecer depressa. Todavia, refere Camilo, que Malaca era
uma capitania «das somenos rendosas que, ainda assim, orçava por cem mil
pardaus no triénio, ou aproximadamente trinta contos de réis, que hoje em
dia (1880) valeriam cento e cinquenta contos da nossa moeda».

Deve ter sido difícil para Catarina deixar a sua terra, a sua família, os
lugares da sua infância. Partiu com o homem que amava. Mas partiu sem
futuro. Garcia de Sá nunca lhe prometeu casamento, devido às diferenças
sociais.

Com ele disse adeus ao Porto, com ele percorreu os caminhos, talvez
águas salgadas, até à capital do Reino, onde vivia D. Manuel I. Daí partiam
as armadas, aí se sentia o cheiro da pimenta. Vasco da Gama ainda era
vivo.

Como os marinheiros desse tempo, vivendo um espírito de aventura, de


fascínio pelo mar e pelo desconhecido, ansiou certamente pela partida.
Chegou o dia 27 de Março de 1518 e ei-los que zarpam do Tejo!

João de Barros diz que partiram nove navios, no dia 27 de Março.


Castanheda escreveu dez. E a Ementa da Casa da índia diz terem sido doze
e que partiram no dia 6 de Março. Todavia, dizem que partiram mil e
quinhentos homens de armas e que Garcia de Sá ia como capitão duma nau.
Nenhum fala em Catarina.

Mas fala Camilo: «No ano 1518 saiu (Garcia de Sá) para o governo da
sua fortaleza e levou consigo a flor de Miragaia, a Piró, que devia ser muito
bonita, se as duas filhas que teve, tão celebradas na índia por beleza, se
pareceram com sua mãe».

Chegaram a 7 de Setembro a Goa. Foi das viagens mais curtas, pois nem
seis meses demorou.

Segundo João de Barros, Garcia de Sá foi para Malaca e «levava consigo


passante de sessenta homens de armas além da gente que amarinhava a
nau».

Quando chegou, Afonso Lopes da Costa, que dirigia a cidade, ficou


admirado ao ver chegar para o cargo «pessoa tão principal». Não refere a
Catarina.

A vida por lá foi dura, cheia de guerras. A cidade de Malaca era doentia
e as casas eram ainda cobertas a madeira.

Em 1523, ele encontra-se no reino, pois testemunhou em Tomar, a 25 de


Agosto, sobre o problema que existiu entre Portugal e Espanha sobre a
posse das Molucas. Aí é identificado como «fidalgo da casa del rei Nosso
Senhor».

Depois perde-se o rasto de Garcia e volta a encontrar-se, no ano de 1528,


quando parte de novo para a índia.

Cumpre perguntar: onde estaria Catarina nesses anos? Se ela o


acompanhou em 1518, por que não no regresso ao reino e na nova partida?
Presume-se que sim, pois que ficava ela a fazer sozinha na índia? Ele podia
até nem voltar... Já lhes teriam nascido as filhas? Elas irão casar 21 anos
depois, em 1549, podem perfeitamente ter nascido após o regresso a Goa.
Todavia, a acreditar em Felgueiras Gayo, eles puseram no mundo filhos
além das filhas.

Certo é que, em 1528, Garcia de Sá parte como capitão da nau «Vitória»


e com o posto de capitão de Malaca. É incorporado na annada de D. Nuno
da Cunha que ia como Governador.

Vasco da Gama tinha morrido há quatro anos. E, desta vez, D. Nuno da


Cunha e os navegantes portugueses vão levar muitas mulheres. Foram
prostitutas, segundo Castanheda, e até famílias, pois, perto das Canárias,
uma nau abalroou outra e morreram 150 pessoas afogadas. Entre essas
estava uma família composta por pai, mãe e três filhas. Registou Diogo do
Couto:

...um homem casado que na nau ia com sua mulher e três filhas moças,
que vendo a nau aberta, abraçando-se todos cinco, com um pranto
piedosíssimo e gritos que penetravam os ares, assim ligados todos se
foram com a nau ao fundo, espetáculo que fez arrebentar a todos em
lágrimas...

Portanto, iam quatro mulheres que nunca chegaram à índia.

Nessa armada de 1528, em que ia Garcia de Sá, foi também um


dominicano espanhol. O frade ficou escandalizado com tantas mulheres nas
naus da índia que resolveu acusar os nossos marinheiros ao rei. Escreveu
ele, Vicente de Laguna, numa carta a D. João III, em 1530:

V. Alteza nestas partes recebe mui grandes perdas, e assim também nas
naus que vêm do reino e parece-me que é a causa dos grandes pecados e
pouco temor que os homens têm, porque os capitães, pilotos, mestres e
marinheiros todos trazem mulheres nas naus e navios de Vossa Alteza,
pelo qual se levantam grandes contendas e acham-se a dormir. Há má
vigilância.

Como um dos capitães era Garcia de Sá, presume-se que ele era um dos
tais, ao levar Catarina consigo.

Noutra parte da carta, o dominicano escreveu: «Senhor, os mais dos


fidalgos que cá há, são amancebados publicamente, nem mais nem menos
como se fossem casados com elas». Ora, um dos fidalgos amancebados era
Garcia de Sá.

Quem embarcara também, na armada de 1528, foi Manuel de Sousa


Sepúlveda. Vinte e um anos depois será genro de Garcia de Sá e, em 1552,
viverá com a bela Leonor as agruras do mais famoso naufrágio da nossa
história Trágico-Maritima. Todavia, apesar de Camões, em «Os Lusíadas»,
lhe chamar «liberal, cavaleiro, enamorado», era mau caráter e um
mulherengo. Nesta viagem, parece que também viajava acompanhado com
uma namorada. A acreditar em Camilo, leia-se o que nos conta no seu jeito
de romancista:

Tinha estudado para clérigo e chegara a investir-se em uma conezia em


Évora. Na flor dos anos seduziu uma senhora de mediana linhagem. Não
era Sousa nem Tàvora como o sedutor, mas tinha irmãos briosos que lhe
impunham a ele o casamento à ponta da espada. O cónego honorário
despiu a murça e fugiu para a Índia. Dizem os genealógicos que a dama
traída o foi seguindo... Se a desditosa por lá se finou, se afinaram, se
regressou ao reino, é coisa tão somenos que nem os linhajudos, obscuros
analistas de escândalos, lavraram ata dessa augusta paixão duma mulher
desvairada, sozinha, em cata do seu amado nas remotas regiões do
Levante.
A ser verdade, talvez tivesse ido parar a Diu. D. Nuno da Cunha levou
muita gente para colonizar essa praça. Em 1538, distinguem-se ai, num
cerco, muitas portuguesas e, entre elas, havia uma alentejana. Além disso,
Sepúlveda tinha um filho ilegítimo duma mulher de Diu. Em 1552, tinha
nove ou dez anos e também morreu no famoso naufrágio.

2 — A AÇÃO DE CATARINA PIRES NA ÍNDIA

Os cronistas da índia dão relevância ao facto de Garcia, ao contrário dos


outros capitães e governadores, nunca ter enriquecido. Todavia, em 1534 e
1536, Garcia de Sá foi preso. Era acusado de cunhar moeda em Malaca
ilegalmente. Ele provou que apenas tinha cunhado algumas moedas de
pouca monta para não paralisar o comércio.

Diz Elaine Sanceau, que dedica um capítulo às filhas de Garcia de Sá na


sua obra:

Tudo o que o inventário dos seus bens mostrou foram objetos


domésticos dos mais vulgares, principalmente utensílios de cozinha e
mesas para as refeições públicas que ele oferecia aos seus soldados. Para
o serviço da casa não havia mais de quatro escravos, o que naqueles
tempos de ostentação parecia totalmente inadequado para a casa de um
fidalgo.

Foi inocentado e premiado com a capitania de Baçaim. Mais uma vez


Catarina o acompanhou como primeira-dama dessa praça.

Camilo também refere que ele era «esmoler com os soldados que em
tempos avessos à navegação, mendigavam rotos e famintos». O que os
cronistas confirmam.
Aqui deve ter entrado a ação de Catarina Pires. Talvez fosse ela quem
orientasse as refeições para os lusos esfomeados das cidades onde habitou.

Contudo, ele tinha um problema. Como as filhas eram ilegítimas, não


conseguia casá-las a gosto. A certa altura, um marinheiro, na hora dum
naufrágio, fez uma promessa que, se se salvasse, casaria com Leonor, sua
filha. Ora, Garcia, que segundo Diogo do Couto era «tão alegre que
alegrava a todos», quando soube da promessa, fartou-se de rir. Chamou o
soldado e, como lhe achou tanta graça, «deu-lhe um baú cheio de roupa e
ofereceu-lhe cama e mesa na sua própria casa». — Elaine Sanceau.

Estas e outras levaram Garcia a casar com Catarina, «na hora do seu
falecimento porque estas filhas ficassem legítimas». Isto ao fim de quase
trinta anos de companheirismo nas horas boas e más. Ironiza Camilo: «Era
necessário o sacrifício da fidalga prosápia, não à moral do oriente
português, mas ao casamento bem prosperado das duas filhas».

Mesmo assim, não a acompanhou nos últimos momentos da sua vida.


Em 1546, Diu foi cercado. Foi o famoso 2º cerco de Diu. Era governador
D. João de Castro que pediu a Garcia e a outros fidalgos que fossem com
ele defender a famosa praça.

Partiram a 28 de Setembro. Catarina ficou moribunda. Numa carta ao rei,


D. João de Castro escreveu:

Quando vim a descercar esta fortaleza estava sua mulher muito doente,
e sem embargo disso a deixou e veio comigo a servir Vossa Alteza. Depois
de Deus nos haver concedido a vitória [a 11 de Novembro] vieram dizer-
lhe que a esposa era morta, da qual lhe ficam duas filhas muito formosas e
muito virtuosas.
Portanto, Catarina Pires faleceu nos fins de Outubro ou princípios de
Novembro de 1546.

Garcia fez-lhe um túmulo de mármore, em Goa, na Igreja de Nossa


Senhora do Rosário.

Cunha Rivara, no séc. XIX, deu-se ao trabalho de copiar os epitáfios dos


túmulos dos portugueses e também copiou o de Catarina. Dizem que foi ela
que o preparou antes de falecer: «Aqui jaz D. Caterina/ molher de Garcia
de Sa/ a qual pede a quem/ isto ler que peça misericórdia a Deus para/ sua
alma».

3 — O GRANDE ACONTECIMENTO DE GOA

As filhas de Catarina eram muito bonitas. De Leonor, a famosa Leonor


de Sá, conhecida como Leonor Sepúlveda, os poetas diziam ser a mulher
mais linda do Império. Mas Garcia de Sá continuava com dificuldade em
casá-las. Ainda pensou em regressar a Portugal. Pediu até a D. João de
Castro «permissão para comprar um navio no qual pudesse partir para
Portugal com um carregamento de pimenta». E na citada carta de D. João
de Castro, esse vice-rei pede ao rei para o favorecer no contrato que fizera
com ele do gengibre para que, com os lucros, possa casar suas filhas.

Mas o destino tem os seus caprichos. Após o falecimento de D. João de


Castro, procedeu-se à abertura da ordem de sucessão. O alvará régio estava
num saco de lona, selado. Tirou-se um primeiro e leu-se o nome de um
fidalgo que tinha regressado ao reino. Abriu-se o segundo e o nome era
Garcia de Sá. Dizem que se ajoelhou, levantou as mãos, orou e chorou.
Chegara ao mais alto posto da índia, ao cimo do poder a seguir ao rei.
Catarina não o viu governador. Não viveu o suficiente para ser a
primeira dama do império português do Oriente. Mas agora os cronistas
falam nela como esposa dum governador. Tal como Inês de Castro depois
de morta foi rainha, também Catarina Pires foi, depois de falecer,
«governadora» da índia.

Como dirigente da índia, Garcia já pôde casar as filhas com quem achou
melhor. Para Leonor escolheu Luís Falcão, rico na índia e no Reino,
capitão de Diu. Para a Joana escolheu um filho dum antigo vice-rei —
António de Noronha. Esta casou bem, pois, segundo Diogo do Couto, na 6ª
Década da Ásia, «era o maior e mais formoso homem que na índia havia».

E o Sepúlveda? Esse, Garcia não o queria para genro. Além do filho da


mulher de Diu tinha mais dois filhos de uma mulher casada, «com um
homem muito nobre e fidalgo nos livros d’El rei», de Goa. Curiosamente,
as mães dos filhos entregavam-nos a Sepúlveda para que ele os criasse.
Mas depois do marido falecer, a mãe reclamou os filhos. A rapariga veio
para o Reino e foi freira. O rapaz morreu na índia.

Todavia, apesar das filhas nesse tempo não escolherem o noivo, Leonor
era bem filha da «flor de Miragaia». Disse ao pai e constou-se que casara
em segredo com Manuel Sepúlveda. Luís Falcão era um estorvo, o pai não
podia voltar atrás com a sua palavra.

Foi então que, segundo se constou, o «liberal» deu uma ajudinha: Luís
Falcão foi morto quando estava sentado à porta de sua casa. Quem foi,
quem não foi, culparam o Sepúlveda, mas ninguém conseguiu provar.
Simão Botelho, numa carta ao rei, diz que se têm más suspeitas
relacionando-as com Garcia de Sá: «Querem dizer que se azou sua morte,
porque, em saindo o Inverno, mandou Luís Falcão cinco mil pardaus ao
governador Garcia de Sá, tanto que soube que era governador, do dinheiro
de Vossa Alteza e que por isso se deixou de acabar de pagar aos soldados e
casados, de que se tem mais suspeita». Por isso Garcia de Sá lutava por este
casamento.

Após o naufrágio que vitimou depois Leonor, marido e filhos, houve


quem dissesse que foi castigo divino por esse crime.

Garcia casou no mesmo dia as filhas e deu-lhes tudo o que tinha — 20


mil cruzados a cada uma. O pai acompanhou as filhas a pé, saiu do palácio
dos vicereis a caminho da Sé. Antes a sua casa (onde viveu com Catarina)
ficava fora da cidade.

O cortejo foi recebido pelo bispo. Diogo do Couto diz que: «Dom
António de Noronha ia muito galante e custosamente vestido: Manuel de
Sousa não levava mais que os trajos ordinários que costumava a trazer».

Nem respeitou a cerimónia! Gaspar Correia acrescenta que «os


moradores de Goa lhes fizeram festa de touros e canas». Depois, num
cortejo a pé, o governador com toda a gente «as levou à porta da Sé onde o
Bispo as recebeu com seus maridos e dali as levou e entregou a seus genros
em suas casas».

A entrega das filhas não foi portanto apenas na Igreja, como hoje, mas
posteriormente também nas novas moradas.

Foi o acontecimento social mais importante de Goa em 1549.

Garcia de Sá governou treze meses com humanidade e honestidade. E


talvez com solidão.

Todos dizem bem dele. Diogo do Couto descreve-o como um homem de


boa estatura, alegre, gentil e com «uma alva e veneranda barba que lhe
dava pelos peitos». Todavia, relativamente ao seu caráter, diz ter sido «um
homem de muita verdade, grande conselho e muito zeloso do serviço d’El-
Rey: foi de muito boas respostas e nunca deu escândalo público enquanto
andou na índia senão aquele da mãe de suas filhas, antes que a recebesse
por mulher».

Acrescenta que era um fidalgo muito brando, afável, humano e tão


desinteressado que, embora tivesse sido duas vezes capitão de Malaca e
uma de Baçaim e governador da índia durante um ano, um mês e 7 dias,
«não tinha de seu mais que o dote que deu a suas filhas».

Fez de novo cinco ou seis galeões e caravelas e muitas fustas, mandou


reformar as fortalezas de Ormuz, Diu e Cananor. Deixou nos armazéns
duas mil espingardas... Fez de novo a casa da pólvora onde hoje está
provida de novos engenhos e encheu os armazéns de mantimentos,
cotonias, cifas, remos e de tudo o mais. Não fez dívidas no Estado e pagou
algumas velhas.

Quanto ao seu governo, de poucos o cronista terá dito tão bem. Catarina
Pires amou um «homem muito honrado», na opinião de D. João de Castro,
na carta citada dirigida ao rei.

4 — FIM TRÁGICO DE TODA A FAMÍLIA

Teve razão Camilo ao intitular a sua investigação como «Tragédias da


índia». Toda a família teve um fim triste. Antes de morrer, em 13 Julho de
1549, Garcia, que governou tão pouco tempo, deixou no seu testamento
que seu corpo fosse enterrado, com o hábito de S. Francisco, na capela-mor
de N. Sra. do Rosário, no chão, aos pés da sepultura de sua esposa Catarina.
Juntos na vida como na morte! Através dos séculos, até hoje...

O seu genro António Noronha faleceu em Outubro de 1550, «à porta de


um pagode de malabares que incendiara». Seguindo Diogo do Couto, a sua
filha Joana faleceu em 1551, dois anos depois de ter casado, mas deixou
um filho. Chamava-se Garcia de Noronha. Veio ao reino em menino e
depois voltou à índia. Aí casou com Filipa, filha de Tintino Martins,
procurador dos feitos da fazenda de Elrey, homem nobre, cristão velho.
Este teve uma filha «chamada dona Joana como sua avó que sua mãe levou
para o reino e se foi apresentar em Aveiro, em companhia de uma sua irmã,
mulher de Francisco de Sousa Tavares, o manco».

Noutro ponto da 6ª Década, diz que o neto de Catarina, meteu a filha no


mosteiro de Aveiro por não ter sua mãe dote para lhe dar.

Por sua vez, Rivara afirma que a filha Joana está enterrada no mesmo
túmulo do pai. E os dizeres são os seguintes: «Aqui jaz Garcia de Saa/
Governador que foi/ da índia. Faleceo nesta/ cidade a XIII de julho/ de
1549. E assi jaz/ Dona Joana Dalbuquer/que sua filha molher/ que foi de
Dõ Antonio/ de Noronha. Faleceo/ a XXX de março de 1551»

Em 1552, Sepúlveda resolveu regressar ao reino com Leonor, «a


formosa dama/ Que Amor por grão mercê lhe terá dado» (Camões).
Acompanhavam-nos dois filhos pequenos. Carregou excessivamente o
Galeão e já saiu tarde da índia. Nas costas do Natal, naufragou com cerca
de 500 pessoas. Andaram sem destino durante meses, com fome, sede e
toda a espécie de martírios. D. Leonor «tão formosa, tão mimosa e
dedicada, caminhava a pé descalça, ajudando a levar os filhos, hora ela,
hora algumas escravas que ainda lhe ficaram, com tanto sofrimento e com
tanta prudência, que ela era a que consolava e animava a todos».

Os habitantes negros obrigaram-nos a despir-se. Leonor lutou, mas


Sepúlveda que tinha entregue as armas (dizem que devia ter enlouquecido)
disse-lhe que o fizesse porque tinham nascido nus.

Verão morrer com fome os filhos caros,


Em tanto amor gerados e nascidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos...

Leonor, vendo-se despida, «lançou-se logo no chão e cobriu-se toda com


os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia,
onde se meteu até à cintura sem mais se erguer dali».

Uma velha aia, não se sabe se portuguesa se indiana ou negra,


conservava ainda uma mantilha rota e deu-lha para se cobrir. Então a filha
de Catarina Pires disse a André Vaz, o piloto, que se fossem embora e que
se algum dia chegasse a Portugal ou à índia que contasse o estado em que
ela, o marido e os filhos tinham ficado naquela terra estranha.

Sepúlveda foi procurar ajuda. Quando voltou, encontrou-a morta. «Com


lágrimas de dor, de mágoa pura», enterrou-a na mesma campa dum filho,
com a ajuda de 5 escravas em prantos. Depois embrenhou-se pelo mato «e
sempre se presumiu que os tigres o comeram».

Salvaram-se oito portugueses (não indica se portuguesas, Couto fornece-


nos o nome de cinco homens e 14 escravos. Um deles era Pantaleão de Sá,
natural do Porto, que possuía grande capacidade de sobrevivência. Fingiu-
se «chocarreiro» e chegava às portas dos cafres «fazendo momos e todos
lhe davam por isso algum milho». A dada altura, até se fez passar por
médico. Urinou em lodo e pôs a lama numa ferida dum dirigente local. O
«medicamento» resultou, passou a ser tratado como um rei.

Como às vezes o destino dá voltas inesperadas, este naufrágio deu futuro


venturoso a Pantaleão de Sá. A notícia de portugueses perdidos pelo sertão
chegou aos ouvidos de parentes do capitão de Moçambique que andavam
junto do rio Inhambane a resgatar marfim. Estes procuraram-nos e o
coração foi pequeno para conter a emoção do reencontro. Foram resgatados
a troco de contas. Depois de alimentados e vestidos, chegaram a
Moçambique a 25 de Maio de 1553.

O capitão era Diogo de Mesquita, casado com D. Luísa, filha de Isabel


da Veiga, a corajosa chefe das mulheres que em 1538 ajudaram na defesa
da praça de Diu, na altura do primeiro cerco. Seu pai, Manuel de
Vasconcelos, foi capitão de Cananor. Luísa tratou Pantaleão de Sá e Tristão
de Sousa (os outros portugueses foram repartidos por casas de casados
ricos). Depois da morte de Diogo de Mesquita, Luísa casou com Pantaleão
e, assim, conclui Couto: «Esteve duas vezes por capitoa de Moçambique».
Este casal teve uma filha, Bárbara de Menezes, que casará com Lourenço
de Melo. Pantaleão de Sá, que foi capitão de Sofala e Moçambique, entre
1560-1564, regressou ao Porto, donde era natural, e voltou a casar. Na
altura da crise dinástica é um dos vereadores da Câmara contra a
candidatura do Prior do Crato.

Não se sabe se Luísa navegou até Lisboa ou morreu antes. A filha deve
ter casado no reino.

Das cinco escravas sobreviventes, duas, mortas ou vivas, ficaram em


África. Mas três regressaram a Goa onde «contaram como viram morrer D.
Leonor». Este naufrágio, além das três estâncias de Camões, foi contado
por escritores de todas as épocas, até por Lope de Vega.

Catarina Pires é uma verdadeira mulher da Expansão Marítima. Mais do


que a filha, derrubou muros, rompendo convenções e escolhendo o seu
destino. Quando tudo era negado, enfrentou o Atlântico, o índico, esteve às
portas do Pacífico, soube o que era navegar por mares nunca navegados.

Filha do povo, seu destino cruzou-se com o dos marinheiros no século


que alguém designou como «o século português».
Os seus restos continuam na índia. Permanecem lá há 450 anos. Não
merecem os Jerónimos, mas esperam novos olhares. Deixou a sua terra
para correr atrás de um capitão dos mares que não lhe dava futuro. Afinal
inscreveu-a numa página da Expansão Portuguesa.

As mulheres, na época das descobertas, pelos mares deixaram vidas,


pelas terras distantes deixaram cinzas. Essas cinzas, essas memórias,
carregadas de invisibilidade, são os padrões femininos. Se não têm as
armas de Portugal, têm sangue português. São o testemunho que não foram
só homens, mas um povo, que levou a cabo a gesta dos Descobrimentos.
Elaine Sanceau: «Sentimos-lhes por vezes a personalidade, mas nunca lhes
vemos o rosto. Apenas sabemos que estiveram lá».
CAPÍTULO V

LUCRÉCIA FIALHO: A PRIMEIRA DAMA DO IMPÉRIO

Não diga ninguém a Vossa Alteza que casam cá [na índia] as mulheres sem nada,
porque é o mor erro do mundo, é vê-lo pelas que trouxe [órfãs del Rei] que ainda as
mais estão por casar.

Maria Pinheira, carta a D. João III, 1547

Ela foi uma mulher de um tempo novo. Não foi rainha nem sequer
pertenceu à grande nobreza. Mas, durante um ano e quatro meses, ela foi a
primeira dama do Império Português do Oriente.

Goa, nesse tempo tão importante como Lisboa, engalanou-se para a


receber, honra nunca repetida para outra portuguesa. Representando o
império português, recebeu no palácio dos vice-reis um monarca indiano. E
dizem os cronistas que não foi por mero acaso que conheceu tal sucesso,
pois lutou pela posição que ocupou. Chamava-se Lucrécia Borges Fialho e
era natural de Lisboa.

Lucrécia foi, para mim, a mulher mais importante das nossas


descobertas, no séc. XVI. Navegante, admirada, senhora de cidades,
conheceu a glória, mas também provou o fel da desgraça, sendo muito
infeliz. Infelicidade que se estende à própria memória, pois permanece
ignorada pelas atuais enciclopédias e obras da História da Expansão.

1 — A FAMÍLIA DE LUCRÉCIA BORGES FIALHO


Lucrécia era filha de João Fialho. Damião de Góis diz que era “contador
dos contos del Rey D.João III”. Felgueiras Gayo chama-lhe João Fialho
Corte Real e diz ser “um homem honrado de Lisboa”. É ainda referido
como “cavaleiro da casa real”, mas não tinha armas de nobreza.

A mãe chamava-se Mécia Froes Borges e provinha de melhor estirpe. O


avô de Mécia era João Borges, fidalgo de Basto. O genealogista Manuel de
Sousa e Silva, séc. XVII, perpetuou esta família nestes versos:

Em Bastos de Cabeceiras

Tiveram sua guarida

Os da família sabida

Dos Bastos em tetras primeiras

Algum tempo conhecidas.

Ou ainda:

...Em Basto foram senhores

Os altos progenitores

Dos Borges que muito ledo

Alcançaram outros maiores.

Lucrécia teve vários irmãos, conhecem-se o nome de quatro. Dois deles


foram com ela para a índia, talvez na mesma nau. O Cristóvão casou lá e
um filho dele será mais tarde genro de Lucrécia. O Gaspar foi durante
algum tempo capitão da cidade de Baçaim.

Todavia, mais importantes (socialmente, não em feitos) foram os irmãos


Filipe e Manuel. Por descenderem dos Borges, conseguiram que D. João III
lhes desse cartas de brasão, respetivamente em 1533 e em 1540. O
Visconde Sanches de Baena, acerca de Filipe Fialho, transcreve o seguinte
brasão: «Escudo de campo vermelho e um leão de oiro com uma bordadura
de azul semeada de flores de liz de oiro, e por diferença uma brica de prata
e nela uma merleta de preto; elmo de prata aberto guarnecido de oiro,
paquife de oiro e vermelho e por timbre o mesmo leão das armas; com
todas as honras e privilégios de fidalgo por descender de nobre geração e
linhagem dos Borges. Dada em Évora a 20 de Outubro de 1533». A carta
de brasão de Manuel tinha a mais um “M” e encontra-se na Chancelaria de
D. João III.

Como se vê, Lucrécia não pertencia à alta nobreza, mas circulava pela
corte.

2 — ELE NÃO QUERIA CASAR

Lucrécia apaixonou-se por Jorge Cabral, sobrinho do descobridor do


Brasil, Pedro Álvares Cabral. Jorge era filho de João Fernandes Cabral,
alcaide de Belmonte, irmão mais velho do descobridor. A mãe de Jorge era
D. Joana de Castro, senhora de alta nobreza, escolhida para camareira-mor
da terceira esposa do rei D. Manuel. Nesses tempos em que herdava o filho
mais velho, Jorge, como filho segundo, teve de procurar ofício. O destino
deu-lhe a rudeza do mar e o mundo deslumbrante das descobertas.

Desde 1525 que é referido pelos cronistas como andando a pelejar pela
índia. Em 1527, é capitão de Malaca. Comanda muitas vezes esquadras nas
costas indianas. E em 1536 aparece a comandar a armada que parte de
Lisboa para a índia, viajando na nau “Grifo”. Essa armada foi pintada pelo
contemporâneo Lisuarte de Abreu.
Jorge Cabral é descrito por Manuel Faria y Sousa assim: «Era de
agradável proporção, de aprazível rosto e incendido de cor, de barba
castanho-escuro». Diogo do Couto acrescenta: «homem bem feito, de boa
estatura, muito bom cavaleiro, de muita verdade, de bom conselho, liberal,
e sobretudo bom cristão». Por sua vez, Elaine Sanceau define-o como «um
homem atraente — alto como todos os Cabrais... feitio alegre e
pomposamente vestido. (...) Uma tal figura, emergindo de um fundo de
aventura no Oriente, era de molde a fazer palpitar o coração das donzelas».

Existem três retratos de Jorge Cabral. Um deles foi executado pelo


cronista Gaspar Correia que o conheceu.

Já devia andar pelos quarenta anos quando o seu destino se cruzou com o
de Lucrécia. Dizem que era muito formosa. Devia ser determinada,
arrojada, viva.

Embora nesse tempo não fosse usual os namorados terem intimidades


antes de casar, Lucrécia era uma mulher de novas vontades. Segundo
Diogo do Couto, «parece que houve entre ambos alguns penhores, por onde
Elrey dom João depois o obrigou a casar com ela: porque parece que se
arrependia».

Como se não lhe bastasse um império para governar, o rei ainda tinha de
se meter nas questões amorosas dos súbditos! Esta obrigação, ditada pelo
monarca, deve ter originado uma relação difícil entre o casal, pela vida
fora.

3 — A VIAGEM PARA A ÍNDIA

Talvez tivessem casado por volta de 1540. Em 1545, tinham pelo menos
um filho de três anos que vai com eles para a índia. A armada é composta
de seis navios, comandada por D. João de Castro, o vice-rei conhecido por
ter empenhado as barbas. De um dos barcos, o “Urca S. Mateus”, era
capitão Jorge Cabral. Foi nesta embarcação que partiu Lucrécia Borges
Fialho.

Nesta armada foram várias mulheres. Embarcou Maria Pinheira que ia


grávida e levava três filhas solteiras. Também foi nesta armada que
embarcaram as primeiras órfãs del rei, raparigas nobres e pobres mandadas
pelo rei ao Oriente para irem procurar marido. Viajaram todas na nau
Burgaleza. Partiram a 28 de Março, domingo de Ramos.

Pelas cartas dos missionários, a viagem correu bem. Mas pelas cartas de
D.João de Castro, verificamos que as naus se separaram. Escreveu ele ao
rei: «Cheguei com D. Jerónimo ao porto de Moçambique a vinte e oito dias
de Julho e achei aí Jorge Cabral que havia treze dias que era chegado».
Portanto, Lucrécia chegou a Moçambique a 15 de Julho. Como morria
sempre gente na viagem, mandou saber as baixas nas naus de D. Jerónimo
e de Jorge Cabral, «achei que nenhuma pessoa lhes era falecida de doença,
somente dois homens que caíram ao mar». A 7 de Agosto essas três naus
partiram juntas para a índia.

No percurso, embateram num baixio e iam morrendo: «como se


salvaram estas naus não saberei dizer a V.A., porque não estava em razão
de marinharia nem trabalho e suficiência dos homens: mas creio que foi um
tamanho milagre como nosso senhor fez em ressuscitar Lázaro».

Chegaram a Goa a 2 de Setembro «no meio da azáfama e da excitação


que a sua chegada provocava todos os anos: soldados que se apinhavam nas
ruas, alegres encontros de velhos camaradas, despedidas lacrimosas...» —
Elaine Sanceau. Continua:
Havia as malas do correio a descarregar e a distribuir, outras a selar e
a despachar; cumprimentos formais e troca de frias saudações entre os
governadores que chegam e os que partem. De três em três anos a índia
tem um novo governante; havia então mudança geral de lugares,
lançamento de contas e inspeção de livros.

Esta autora diz que abundavam em Goa europeias e indígenas. «D.


Lucrécia não encontraria lá falta de sociedade feminina, mas, apesar disso,
os seus primeiros tempos na índia devem ter sido de ansiedade e
preocupações». É que grassava em Goa a epidemia da varíola, fatal
sobretudo para as crianças.

4 — AMIGO DAS MULHERES

D. João de Castro fora substituir Martim Afonso de Sousa, que


comandara, em 1541, a armada que levou Brianda de Solis, esposa de
Garcia de Orla. Martim regressou ao reino e trouxe todo o dinheiro, um
ganho outro roubado, deixando D. João de Castro com os cofres vazios.

Ainda por cima, em 1546, os Cambaios atacaram a fortaleza de Diu. Para


lá partiu D. João de Castro com outros fidalgos. Foi Garcia de Sá, que
deixou a esposa moribunda (a portuense Catarina Pires), Manuel de Sousa
Sepúlveda (que morrerá com Leonor de Sá no mais famoso naufrágio) e
também Jorge Cabral.

D. João de Castro foi, a meu ver, o governador da índia mais amigo das
mulheres (a seguir a D. Afonso de Albuquerque) e de quem elas foram
mais amigas. As mulheres de Diu vão ajudá-lo no 2º cerco, lutando. E as
mulheres de Goa e Chaul oferecem-lhe as joias para ele arranjar dinheiro.
Ele não se esquecia delas. As suas cartas são essenciais para o estudo das
portuguesas na índia. Após a vitória de Diu, a 11 de novembro, vai-se
preocupar com as viúvas dos guerreiros e distribui-lhes dinheiro.

Também se lembra de Lucrécia. Após a vitória e de arranjar verbas (por


empenhar as barbas à Câmara de Goa que, aliás, lhas devolveu,
concedendo-lhe o empréstimo para a reconstrução de Diu), envia-lhe para
Goa 200 pardaus, a 24 de dez. «por seu marido ter servido em Diu, com
muita fidalguia e não se querer retirar», Livro das Mercês. Ele devia ter
Lucrécia em alta conta, porque dá a muitas viúvas 30 pardaus e a ela
manda-lhe duzentos.

É possível que Cabral não gostasse da companhia dela. Havia em Goa


um bisbilhoteiro, Rui Gonçalves Caminha, casado também com uma
portuguesa, que “diz mal de todos e todos dizem mal dele” (D. João de
Castro). Escreveu ele numa carta a 6 de Agosto de 1547: “O senhor Jorge
Cabral parte para lá com poderes para fazer e desfazer tudo o que se lá faz
e ele mente porque tudo faz por fugir de Dona Lucrécia”. Elaine Sanceau
comenta: «Pelo que se conhece da formosa D. Lucrécia, era mulher de
têmpera rija — um pouco demais talvez para a felicidade do marido».

Não era realmente apagada, como a sociedade do tempo programava as


esposas. Mas ele nada fazia para a tomar feliz. A 11 de dezembro de 1546,
Jorge escreveu uma carta ao filho do vice-rei, D. Álvaro de Castro,
padrinho dum filho, em que lhe pedia um físico pois «minha mulher por
suas más disposições tem dele muita necessidade». Lucrécia estava
grávida, tendo nascido o tal afilhado a 18 de Fev. de 47. «Lá escrevo,
senhor, a Dona Lucrécia que lhe faça mil serviços. Se ela disso for
descuidada mande lhe Vossa Mercê afogar o afilhado que eu lhe perdoarei
o quinhão que nele tenho por me vingar dela». Deve ter escrito isto a
brincar, mas afinal quem se vingou dele foi Deus, porque esse filho só
durou dois dias, tendo morrido de cólera. É o que ele próprio conta numa
carta, a 21 de Fev. 1547. Por aqui se vê que ele era abrutalhado.

5 — A CONVERSA NA CAMA

Jorge Cabral partira como capitão de Baçaim. Não tomou logo posse,
porque o mandato do anterior capitão ainda vigorava. Mas em 1549
Lucrécia era a primeira dama de Baçaim, por ser a esposa do dirigente da
cidade.

Quando estavam lá a viver como grandes senhores, eis que morre o


governador Garcia de Sá que sucedera a D. João de Castro. Quebram, como
de costume, os selos das cartas que continham os nomes da sucessão e eis
que surge... Jorge Cabral.

Quando ele soube que atingira o mais alto posto da índia, «não se
alvoroçou com a governança, antes esteve para a não aceitar» (Diogo do
Couto). É que Baçaim era uma capitania rendosa e o cargo de governador
(idêntico a vice-rei) era incerto. Foi então que entrou na história Lucrécia
Borges Fialho, referindo os cronistas que ele aceitou porque ela lhe moeu o
juízo.

Faria y Sousa dedica dez longas páginas a uma conversa, na cama, entre
o casal. E muito interessante essa conversa, percebe-se que Faria a
admirava. Diz que “era moça e mui formosa, se pode haver formosura sem
mocidade”. Jorge dava voltas na cama há 6, 7 horas. Ela pergunta-lhe o que
o aflige, se receia uma invasão ou tem alguma dama no pensamento «oiço
dizer que tanto milita quem ama como quem peleja». Ele responde que
nunca viu um governador sair sem desaires, que está no princípio «desta
capitania cujo remate de quatro anos que hei de lograr, há de ser de
duzentos mil escudos». Que ganha «num ofício de que hei de sair sem
caudal, perdendo logo de contado este que tenho aqui seguro? Quando não
os cateis, entrará amanhã um Vice-Rei a varrer-nos daquelas salas».

Ele tinha razão, mas Lucrécia queria ser “governadora” da índia. Por
isso, após ouvi-lo, ela

buscava agora, ansiosíssima, com os olhos os resquícios das janelas,


para ver se entrava alguma luz que os deixasse pôr nele; sabendo bem que
para o que intentava responder-lhe haviam eles de obrar outro tanto como
a língua. Porque as mulheres não ignoram que as suas melhores
elegâncias para persuadir em algumas ocasiões são seus olhos; e mais
sendo de tal rosto como se diz ela tinha.

Ela vai argumentar duma maneira inteligente, com uma série de razões:
«pecais contra vosso Deus e contra vosso Príncipe em não aceitar». Ela,
como parte interessada no dinheiro, abdica dele, pede-lhe que lhe dê esse
gosto e antecipa cem anos Luísa de Gusmão ao dizer:

Vale mais ser Governador da índia quatro dias que ser capitão de Baçaim
quatro anos.

Faria diz que ele ficou admirado da sua maneira de discorrer. «Quem há
que não haja obedecido a uma beldade resoluta?» Como todos gabaram
depois o governo de Cabral, Faria termina: «a própria índia deveu a sua
mulher o tempo que o teve».

Diogo do Couto diz também que foi ela que o convenceu. Escreveu
assim:

Mas sua mulher que era vã, como o são todas [pelos vistos a mãe do
cronista também era], lhe disse que melhor era ser quinze dias governador
da índia que dez anos capitão de Baçaim: e que já El’rey lhe ficava em
mais obrigação e lhe havia de fazer diferentes honras e mercês.

Jorge partiu para Goa. Entregou Baçaim ao irmão de Lucrécia, Gaspar, e


ela ficou à espera que o marido a chamasse. A capital recebeu-o com todas
as honras, pois houve contentamento com a sua nomeação: «o povo miúdo
folgou...e assim folgaram os fidalgos...» — descreve Gaspar Correia.

6 — GOA ENFEITA-SE PARA LUCRÉCIA

Quando chegou a Baçaim novo capitão, Lucrécia embarcou “em fustas”


para Goa. Conta Gaspar Correia que «os cidadãos de Goa se ordenaram
com festas para lhe fazerem recebimento; o que o governador dissimulou,
que sabendo que sua mulher era chegada a Pangim a mandou vir às casas
de António Pessoa, e de noite foi por ela e a meteu em sua casa».

Ele era mesmo um desmancha-prazeres. Desta vez não foi apenas ela
que ficou furiosa por não assistir às representações, jogos e danças das boas
vindas, mas também «os cidadãos se muito agravaram pelo gasto que
tinham feito». O governador teve de justificar-se: «lhes deu seus
agradecimentos, dizendo que o gasto que tinham feito era necessário para o
recebimento delRey de Tanor, que tinha certeza que havia de vir a Goa, e
não queria que fizessem tantos gastos».

O que ele temia era a popularidade de Lucrécia, que fosse maior que a
dele!

O rei de Tanor chegou na noite de 22 de Outubro de 1549. Tinha-se


convertido ao cristianismo. Ficou hospedado na casa de António Pessoa, tal
como dias antes ficara Lucrécia. Este Pessoa deve ter casado tarde, porque
o maldizente Rui Caminha escreveu em 6 de Agosto de 1547: «António
Pessoa emparvoeceu desde que casou (...) a senhora sua mulher faz-se
doente e dizem que a revesa e jaz sempre antre os lençóis».

Dois anos depois, em 1549, já não podiam jazer “antre os lençóis”,


porque a casa deles, pelos vistos, tinha muito movimento!

7 — LUCRÉCIA E O REI DE TANOR

A receção a este rei, no dia 23, foi coisa nunca vista em Goa. É descrita
em pormenor pelo Bispo, numa carta à rainha D. Catarina, escrita a 25:
«Desembarcou el-rey; levaram-no debaixo de pálio, que era de veludo
carmesim... muitas danças, momos, ciganas e outros bailos à mourisca pela
Rua Direita varrida e aguada e juncada, toda a riqueza que havia na rua
Direita posta pelas janelas».

Repicaram os sinos, tocaram instrumentos. Todo o clero estava presente,


«...era tanta a gente de portugueses e cristãos pelos telhados e janelas e
esquadras que el-rey e o Governador iam quase no ar sem poder bulir-se».

Após descrever tudo, o Bispo acrescenta: «Acabada a missa, que era já


tarde, com a mesma sumptuosidade o levamos a casa do Governador.
Esteve descansando obra de meia hora ali, e não quis comer ali, levaram-no
à mesma casa de António Pessoa, o Governador e fidalguia a cavalo e ele
num palanquim».

Gaspar Correia diz que o vestuário do rei era português e vermelho, e


relata assim o encontro com Lucrécia: «o Governador levou Elrey a suas
casas honradamente, onde à sala desceu sua mulher, e criadas formosas,
que recebeu a El’Rey, que muito El’Rey folgou de ver, e fez muitas honras,
e estiveram um pouco assentados falando cousas de prazer, e se
despediu...».
Mas é Elaine Sanceau que verdadeiramente nos descreve o apogeu de
Lucrécia como primeira dama do Império Português do Oriente:

Desta vez, a esposa do governador desempenhou o seu papel no palácio.


Desceu ao átrio com o seu melhor vestido, acompanhada das suas mais
lindas donzelas. O rajá mostrou-se jubiloso perante aquele grupo de
beldades cuja vista nenhuma cortina ocultava. D. Lucrécia fez as honras
da casa com modos encantadores e todos se sentaram “a conversar sobre
coisas agradáveis ”.

Ora, Gaspar Correia diz que ela “desceu à sala”, Sanceau que “desceu ao
átrio”. Eles viviam no palácio dos vice-reis, junto ao mar. Jorge Cabral
mandara pintar no palácio os retratos de todos os governadores e todas as
armadas que foram à índia. Embora em 1554 os vice-reis tivessem mudado
de residência, as construções deviam ser idênticas pelo que diz Pyrard,
viajante francês, c. 1606:

Tem dois grandes pátios muito belos e de um se passa ao outro. No


primeiro pátio, à mão esquerda há uma grande escadaria... que conduz a
uma sala mui espaçosa, na qual estão pintadas todas as armadas e navios
que têm passado à índia... Mais dentro há outra sala maior, que é a
verdadeira sala do vice-rei... Ali estão pintados ao natural todos os vice-
reis...».

Portanto, ela “desceu” ao átrio e daí passou à sala.

Desta vez, o marido deixou-a brilhar. No dia seguinte, trouxeram o rei «a


casa do governador, onde no terreiro correram touros, e jogaram canas
homens louçãos, que El’Rey muito folgou de ver». É possível que Lucrécia
estivesse presente.

*
8 — OS FILHOS DO CASAL.

Damião de Góis (Livro das Gerações) diz que Lucrécia teve 4 filhos —
três rapazes e uma rapariga. Os rapazes chamavam-se Manuel, António e
Fernão, “que faleceram todos meninos”. A filha chamava-se Joana de
Castro, como a avó paterna.

António deve ter sido o que durou dois dias, o afilhado de Álvaro de
Castro. Fernão morreu tragicamente na índia, destroçando o resto do
casamento.

Como Jorge previa, chegou um vice-rei nomeado. Em meados de


novembro de 1550, após um ano e 4 meses (tomou posse a 12.09.1549),
passou poderes a D. Afonso de Noronha. Nessa altura, ele estava em
Cochim e Lucrécia com os filhos (ou só um filho, porque não se sabe onde
Joana nasceu, se na índia se depois em Portugal) continuava em Goa. Após
preparar a nau de regresso ao reino, que se chamava S. Pedro, mandou
buscar Lucrécia à capital do Império.

Desta vez é Diogo do Couto que nos conta:

E na entrada de Janeiro chegou sua mulher, que tinha mandado buscar


a Goa, que vinha muito anojada, porque à sua embarcação lhe falecera
um filho macho, que não tinha outro, de idade de nove anos, de beber
desatentadamente de uma pouca de água de Solimão de um frasco que as
mulheres costumam curar para o rosto, o que Jorge Cabral sentiu tanto
que esteve para morrer de paixão.

Correia diz que o filho tinha 8 anos, “era todo seu bem” e acrescenta:
«Chegando a Cochim, a mulher do governador, que ele com seus amigos a
foi buscar à praia, o Vice -Rei [era o Noronha] foi à praia e a recebeu com
muitas cortesias e a levou a sua casa, e quando veio nova da morte do filho
o vice-rei foi visitar o governador,..».

Todos dizem bem do seu governo. Não tinha porteiro, não deu cargos a
amigos, não roubou, «e antes de jantar despachava toda a pessoa, e com sua
mão escrevia os despachos... acabado o jantar fazia outro tanto antes que se
erguesse da mesa, e outro tanto fazia à ceia, inda que fosse muito tarde».
Gaspar Correia, que conheceu todos os governadores, menos D. Francisco
de Almeida, diz que nunca houve na índia “melhor despachador”.

Embarcaram em meados de Fevereiro “e teve tão ruim viagem por partir


tarde, que pôs oito meses no caminho, porque chegou a Lisboa em
Outubro” (Couto). Todavia, um manuscrito do séc. XVIII, de Francisco
Ameno, diz que a nau S. Pedro chegou a 5 de Setembro.

Eles regressaram pobres, destroçados. Correia diz que «gastou o seu que
de Baçaim trouxe, remendando os grandes buracos das muitas
necessidades», mas depois o rei deu-lhes 400 mil réis “de juro”. Como se
vê, o termo “buracos” já se usava há 450 anos!

9 — ASSASSINADA PELO MARIDO

A filha de Lucrécia, Joana de Castro, casou com o primo Fernão Cabral.


Como era o filho mais velho, foi alcaide-mor de Belmonte, distrito de
Castelo Branco. Ela foi a primeira dama dessa localidade. Teve três filhos
— Nuno Fernandes Cabral, Jorge Cabral e Maria de Noronha. Enviuvou e
voltou a casar com outro primo, desta vez do lado materno, e nasceram três
raparigas.

Certamente Lucrécia não conheceu nenhum dos seus netos. Em Lisboa,


infeliz, amargurada, procurou apoio e compreensão noutro homem, que
decerto frequentava a sua casa, pois era primo do marido. Camilo Castelo
Branco, na obra História e Sentimentalismo, II vol., diz que ele se chamava
«D. Francisco de Castro, filho do Bispo da Guarda D. Cristovão de
Castro». Com razão ou sem ela, Jorge matou-a às facadas.

Damião de Góis diz que “por ter más suspeitas dela”. Mas Camilo
escreveu que ele a encontrou em adultério. E não o desculpa: «Jorge Cabral
foi ladrão quanto se infere das cartas de Simão Botelho; e pelo que respeita
a piedade cristã não a revelou com sua esposa D. Lucrécia Fialho quando a
matou a facadas».

Foi um triste fim para aquela que foi a bela primeira dama do Império.

Incrivelmente, em Portugal, permitia-se que os maridos assassinassem as


esposas. As portuguesas jovens talvez se espantem ao saber que só
caducou, após a revolução de Abril, o artigo 372° do Código Penal que
condenava o marido assassino da esposa adultera apenas a ser “desterrado
para fora da comarca por seis meses”. Nos nossos dias, todos ouvimos falar
nos sucessivos assassínios de mulheres perante a nossa indiferença.

A respeito de violência, pouco mudaram os tempos para as mulheres,


mesmo depois de se poisar na Lua!
III PARTE

AS ENGANADORAS DA INQUISIÇÃO E DA CENSURA


CAPÍTULO I

A COIMBRA QUE FOI 18 ANOS PADRE

Eles vieram primeiro ao mundo, fizeram as leis e tomaram para si as regalias.

Teresa Margarida S. e Orta, 1752

Um padre capuchinho, francês, de Terus, decidiu visitar Portugal e


Espanha. Foi no final do séc. XVII, em 1698, e ainda se encontrava na
cidade de Coimbra no ano seguinte. Pôde, por isso, assistir a um auto de fé
que nessa cidade aconteceu em 14 de Junho de 1699. Nessa madrugada,
levantou-se à uma hora da noite para ir dizer missa «porque as começavam
a dizer desde então». Depois dirigiu-se ao terreiro de S. Miguel para onde
dava o edifício e masmorras da inquisição. Era uma praça principal e aí
montaram um “teatro” fechado.

Esse padre descreveu pormenorizadamente essa tenebrosa cerimónia


religiosa. Essa narração de viagem encontra-se hoje na Biblioteca de Ruão.

O Dr. Teixeira de Carvalho publicou esse relato no jornal de Coimbra


Resistência, em 21 de Abril de 1907 e números seguintes. António Baião
transcreveu-o por inteiro nos Episódios Dramáticos da Inquisição
Portuguesa de onde extraímos algo que se desconhece — houve uma moça
de Coimbra que estudou entre os Jesuítas, certamente vestida de homem e
enganou todos celebrando 18 anos como padre. Só ao fim desse longo
tempo foi apanhada pela Inquisição.

O relato publicado por António Baião tem por título “Impressões dum
Auto-de-fé celebrado em Coimbra, nos fins do século XVII”.
«Estávamos nesse teatro desde as cinco horas. À entrada da escada havia
guardas para impedir o acesso, e não deixavam subir senão os padres e
religiosos, e pessoas de distinção, porque havia uma multidão
esmagadora».

«A plateia do teatro era cheia por toda a espécie de honrada gente, não
havendo porém mulher alguma».

As mulheres estavam fora, no terreiro entre a multidão. Havia mulheres


inglesas nas janelas, de onde ouviam e viam tudo, e riam-se e zombavam
daquela pantomina, o que desagradou ao padre francês.

A gente veio de todo o lado para Coimbra. Só estrangeiros, entre a


multidão, encontravam-se doze mil. E porque vieram assistir doze mil
estrangeiros?

Diz-se mesmo que havia mais de doze mil estrangeiros, porque se


julgava se veria uma rapariga que tinha sido jesuíta dezoito anos e que
tinha tomado ordens de presbítero. E, como se aparece nos autos com o
hábito com que se foi preso...

O espetáculo do auto de fé começou às 6 horas da manhã do dia 14 de


Junho de 1699. A essa hora, o padre capuchinho viu «sair da inquisição a
cruz dos reverendos padres de Santiago, atrás do qual seguiam 86
prisioneiros, com a estátua em relevo dum que tinha morrido impenitente
na prisão e com um cofre pintado de chamas infernais. A maior parte destes
prisioneiros eram judeus». Iam uns atrás dos outros, acompanhados por
dois irmãos da Misericórdia. Seguravam uma vela amarela na mão e
levavam um rosário que quase arrastava pelo chão.
Dos 86 prisioneiros, 80 iam atrás da primeira cruz. Atrás da segunda
seguiam três homens e três mulheres «que haviam de ser queimados por
não terem querido retratar-se e gritar misericórdia».

E onde estava a mulher que enganara os jesuítas e se atrevera a ser


padre? Entre os 86 prisioneiros havia três padres. Seria algum desses a
rapariga de Coimbra? Puseram-se a ouvir os processos, que eram pessoas
convidadas e treinadas para ler bem.

«Havia também três desgraçados padres que ensinavam o quietismo e


cometeram muitas más ações». Um deles quis fazer-se passar por santo
«fingindo ressuscitar mortos que estavam cheios de vida e se gabava de
fazer muitos milagres». O 2º era um cura que tinha sido expulso de certa
congregação, «que tinha certo número de devotos a quem ensinava coisas
perniciosas e com os quais cometia abominações tão grandes que o pudor
me não permite pintá-las neste papel». Levaram três horas a ler os
“pecados” desse cura. Faziam parte dessas abominações, «muitas curas sem
remédios, como soldar braços e pernas partidos e outras curas
semelhantes», o que provava que ele tinha “comércio com o demónio”. A
ignorância levou a que muitas mulheres fossem condenadas por idêntico
motivo — de curarem com ervas, serem endireitas...

E a mulher jesuíta não aparecia.

Os 6 condenados a morrer queimados voltaram a aparecer à noite. Pelas


21 horas, passearam com eles pelas ruas, tocando matracas, aquilo era
espetáculo para o povo e os inquisidores tinham de mostrar trabalho, para
justificar os ganhos. Vestiram-nos de branco. Como é algo inédito,
transcrevemos esse pormenor para que não se esqueça que esta
monstruosidade existiu neste país à beira mar plantado e que queimava
igualmente mulheres.
Todos os irmãos da misericórdia em número de 40, tinham na mão uma
grande tocha de cera branca acesa e assim processionalmente levaram-
nos ao areal no meio da ponte, onde havia 7 pequenas barrocas de
madeira, que eu tinha ido ver de dia.

Meteram-nos em cada uma delas, ficando sentados num pequeno banco.

O cofre, em que estavam os ossos do homem impenitente na prisão, foi


posto numa dessas barracas para ser queimado. A meia-noite puseram
fogo às 7 barracas e depois de queimados os corpos, deitaram ao vento as
cinzas dos que haviam sido queimados. Eram pai, mãe, filha e genro.

O que o padre capuchinho não diz é que de certeza esta família seria rica.
Como confiscavam os bens aos condenados, não perdiam tempo com os
judeus pobres. Sob a capa de defender um cristianismo que de cristianismo
pouco tinha, os inquisidores e sequazes não passavam de descarados
ladrões.

O auto de fé era um negócio. Eram os condenados que pagavam, com


seus bens, o trabalho das pessoas envolvidas. Nesse auto de fé de 14 de
Junho de 1699, as custas dos processos custaram 1: 150$969 (um milhão e
150 mil réis). Os inquisidores receberam cada um 11 mil reis. Cada um dos
deputados 3:500 reis (três mil e quinhentos reis). O Promotor 6:500 rs.
Cada notário 4000 rs. O porteiro — 2:000 reis. O meirinho — 500 reis. O
alcaide — 500 reis. Cada um dos solicitadores 500 reis. Cada um dos
guardas 500 reis. O despenseiro — 500 reis. O homem da vara — 400 reis.
Os padres que leram alto as sentenças, «clérigos da Sé, da Universidade ou
das freguesias», receberam cada um 1: 920 reis. Ainda foi preciso pagar e
dar de comer ao pintor que foi retratar os condenados para levarem seu
retrato na roupa. Ao homem que transportou os ossos de quem morreu nos
cárceres. Ao carpinteiro que fez o cadafalso, o “teatro” e as barracas junto
ao Mondego. Aos irmãos de misericórdia, etc. Portanto, um auto de fé dava
trabalho e ganha pão a muita gente. Diz Alexandre Herculano: «Sem
dinheiro não se abriam as portas para os advogados e solicitadores falarem
aos presos, e nem sequer para entrarem nas lôbregas masmorras as cousas
mais necessárias à vida». E acrescenta que um guarda chaveiro abusou
sexualmente duma donzela na presença da mãe.

Nesses tempos em que as mulheres não tinham direitos, nem eram


consideradas cidadãs, a Inquisição condenava mais mulheres que homens.
Segundo António Joaquim Moreira, entre 1682 e 1691 (em nove anos)
foram julgados 1.329 cristãos novos, sendo 659 homens e 670 mulheres.
Relativamente a Coimbra, de 1567 a 1605, foram julgados 1.010 homens e
1.184 mulheres, como verificou Elvira Mea in A Inquisição do Porto.

Em regra, o povo gostava muito de ver, vingava-se assim das suas


frustrações. Gostava de ver em quase todo o lado menos no Porto, em que
tanta gente ficou horrorizada logo no primeiro auto de fé, uma mulher da
assistência até morreu ao ver colocar um garrote. Há quem diga que só
houve um, há quem diga dois, mas não houve mais, acabaram com os autos
de fé e mandaram embora o bispo. «Ao facto não será, por certo, alheio o
caráter liberal dos portuenses, o seu proverbial apego à democracia, à
liberdade».

Mas então onde estava a mulher que fora padre?

Os jesuítas tiveram medo da multidão ou não quiseram dar publicidade à


nossa “papisa Joana”. Talvez sentissem vergonha, perante 12 000
estrangeiros, de se deixarem enganar por uma rapariga que tantos anos se
fez passar por homem. E
como há três reverendos padres jesuítas que são do conselho de sua
majestade, conseguiram que não aparecesse, mas que ficasse o resto dos
seus dias presa.

Meteram uma cunha ao rei e este concordou com a ocultação da


rapariga.

Cumpre-nos perguntar: Quantas mais mulheres se teriam vestido de


homem e fingido serem padres? Sabe-se que esta foi apanhada. E sabe-se
por um relato de um padre estrangeiro.

Morreu nas masmorras, talvez vítima de todos os desmandos e


violências que se faziam contra as mulheres. Ela foi morta pelo crime de
ser mulher e querer mudar a sua sina.

Não sabemos seu nome. E pouco sabemos sobre ela. Quem investigar a
lista dos condenados desse auto de fé talvez descubra. Se o seu nome não
foi apagado, como aconteceu com a papisa Joana!...

A igreja até hoje nega a existência da papisa. Naturalmente também


negará a existência desta corajosa mulher portuguesa, padre durante 18
anos, na cidade mais culta do reino. Isto demonstra o que nós, mulheres,
passamos perante uma religião que nunca nos aceitou como irmãs. Na
História das Mulheres Portuguesas, há heroínas que arriscaram a própria
vida furando leis e normas religiosas. Nós, vindouras, sentimos orgulho
delas.
CAPÍTULO II

AS PORTUGUESAS QUE SE VESTIRAM DE HOMEM E


ENTRARAM NA UNIVERSIDADE

Segundo refere a tradição, pretendendo obter um diploma oficial, e como, naquele


tempo, estava vedado às mulheres frequentar estabelecimentos de ensino público,
vestiu-se de estudante e partiu para Coimbra, na companhia de seu irmão.

“Dicionário de Mulheres Célebres” (Públia Hortênsia de Castro)

Só passaram ao futuro alguns nomes dessas corajosas aventureiras.


Consta que já na Grécia e Roma mulheres se vestiam de homem para
frequentar escolas. O facto de portuguesas o fazerem significa que não
fomos sempre mansas, conformadas e obedientes à ditadura político-
religiosa masculina.

Os casos que conhecemos são do séc. XVI. É a época das descobertas e


da renascença. Como o mundo muda, as mulheres sonham com um tempo
novo.

Pela primeira vez, portuguesas se apercebem que o que diziam os


“sábios” não eram verdades absolutas. E atreveram-se a enganar as leis e a
ultrapassar proibições. E há até aquelas que sonham com o fim longínquo
da própria opressão:

O que vos o mundo nega...

Não sei porque vos matais!


Deveis vos de crer de mim:

Lembre-vos que há de ter fim

O mal de que vos queixais.

Joana da Gama (prima de Vasco da Gama), 1555

Antónia Trindade — Era natural de Cantanhede. Frequentou a


Universidade de Coimbra vestida de trajes masculinos. Distinguiu-se na
Universidade, em 1549, de tal forma, «que superou, em saber e
inteligência, os seus condiscípulos mais estudiosos». Naturalmente, só
havia dois futuros para estas mulheres cultas — o casamento, o que não era
fácil por serem demasiado inteligentes, ou o convento. Por isso Antónia só
encontrou aberta a porta do Mosteiro, que foi de Nossa Senhora de Figueiró
dos Vinhos, onde professou e viveu como Soror Beatriz da Cruz. Referem-
se a esta heroína o Teatro Heroino, de Damião Froes de Perim, 1736, e o
Hagiológio Lusitano de Jorge Cardoso (1612).

Auta da Madre de Deus — faleceu em 1588. No seu tempo, a


universidade estava em Lisboa. Era filha de um professor da universidade,
lente de Cânones. Frequentou a mesma universidade vestida de homem.
Tomou-se uma sumidade nalgumas matérias como em teologia e direito
canónico. A sua história podia ter acabado bem, pois quiseram nomeá-la
para a cátedra de seu pai, após a morte dele. Como era única, acovardou-se,
recusou tal distinção e voltou a usar trajes femininos que abandonara até
então. Tal como Antónia Trindade, também ela ingressou num convento,
na ordem de S. Francisco, professando no convento das Madre de Deus em
Lisboa. Deixou escritos em latim. A esposa de D. João II, a rainha D.
Leonor, como mulher inteligente que era, apreciava muito esta erudita
portuguesa.

Públia Hortênsia de Castro (1548-1595) — Esta erudita teve mais sorte e


mais notoriedade, chegou ao século XXI. O século XX ressuscitou-a. Em
11 de dezembro de 1987, publiquei no jornal “O Comércio do Porto”, um
artigo intitulado “A primeira Oradora”. Terminava dizendo que o seu feito
heroico seria um dia salientado na história feminina «quando um dia for
escrita». Está a sê-lo. Públia Hortênsia é das tais heroínas que saiu do pó
onde jazia e veio para a luz dar nome a ruas.

Hoje, 2012, é nome de Escola Secundária em Vila Viçosa, tem um busto


nessa cidade, é nome de coral em Eivas e o país perpetua-a como
toponímia em ruas, travessas e pracetas.

Encontramos Públia Hortênsia de Castro (em dois casos apenas Públia


Hortênsia) na toponímia em 7 localidades:

— Almada (Cova da Piedade)

— Amadora (Brandoa)

— Lisboa (Camide)

— Porto (Cedofeita)

— Seixal (Fernão Ferro)

— Vila Nova de Gaia (Mafamude)

— Vila Viçosa (S. Bartolomeu)


Quem foi e o que fez esta irreverente?

Foi a primeira portuguesa a falar em público e podemos dizer que foi a


primeira licenciada.

Seus pais foram Branca Alves e Tomé de Castro. Nasceu em Vila


Viçosa, em 1548, nove anos depois da instauração da Inquisição. Não veio
ao mundo na corte nem pertencia à alta nobreza e nunca morou em Lisboa.
Mas a sua família era instruída e não pôs obstáculos à sua instrução.
Contudo, ela viveu sobretudo em Évora onde predominavam as ciências
sacras. A sua inteligência, os seus dotes literários, os seus voos tiveram de
ser desviados para a cultura do tempo. As obras e versos que escreveu eram
de cariz filosófico e religioso. Ela foi uma humanista do nosso
Renascimento.

Excetuando uma carta de poucas linhas, as suas obras perderam-se.


Carolina Michaélis, in “A Infanta D. Maria de Portugal e suas Damas”, diz
que essa perda é uma «consequência fatal da proverbial desleixo desta
nação fidalga, que considera como indigna mesquinhez arrecadar e contar
valores tão miúdos». E as obras femininas sempre foram consideradas
“valores miúdos”.

Mas o feito de Públia não reside nos seus dotes literários. Aos 17 anos,
numa sala pública, perante os homens mais eruditos do seu tempo, ela
defendeu as suas teses, sujeitando-se a todas as críticas e interrogações.

No auditório, que incluiria tudo quanto a cidade de Sertório tinha de


mais seleto em letras e ciências, achava-se o venerando Mestre André de
Resende que, apesar dos seus setenta anos, distribuía palmas
entusiasticamente, jubiloso porque a sua muito amada terra natal, cuja
história continuava a elucidar, possuía afinal a sua glória feminina, uma
oradora erudita, que podia rivalizar não só com as damas da corte, mas
até com as notabilidades de Salamanca e Alcalá, Paris, Bolonha e Roma,
mesmo a Roma de Cícero.

André de Resende, depois de felicitar o pai, irmão e professores da


Hortênsia lusitana, recolheu-se ao seu gabinete e foi escrever a um
jurisconsulto espanhol, Bartolomeu Albemotio, seu amigo, que dias antes
fora proibido de entrar em Évora.

Pena foi realmente que não entrasses nesta cidade... porque, ainda que
mais nada tivesses encontrado de que te regozijasses... poderias ter
assistido... a um espetáculo único. Ouvias a Públia Hortênsia de Castro,
uma menina de dezassete anos, instruída além do vulgar nos estudos
aristotélicos, disputar publicamente, desfazendo com suma perícia e graça
os arguciosos argumentos que lhe opunham muitos homens doutos,
esforçando-se por combater as teses dela. E mesmo tu, ó sábio
jurisconsulto, terias confessado que nunca presenciaste um torneio mais
formoso, nem poderias ter negado que uma cidade que produz tal donzela
(de mais a mais de figura muito agradável), era digna de ser visitada e
fosse somente por causa dela.

Anos depois, em 1571, passou por Vila Viçosa uma embaixada do


cardeal Alexandrino, Legado do Papa. Do programa dos festejos, fazia
parte um discurso de Públia de Castro, o que demonstra que continuava a
ser considerada uma figura intelectual da vila. O secretário do cardeal, J. B.
Venturino, deixou-nos este testemunho:

Vila Viçosa tem formosas mulheres e, entre outras, uma que não o é
menos da alma que do corpo, da idade de vinte e três anos, Jilha de Tomé
de Castro, à qual, por sua muita literatura, chamam Públia Hortênsia.
Esta donzela, que frequentara Salamanca, quis defender conclusões
naturais e legais, o que não teve lugar por causa da súbita partida do
Legado.

Carolina Michaêlis escreveu que a nossa primeira oradora não deve ter
estudado em Salamanca, porque lá não consta o nome dela. Esta
observação nem parece de Carolina Michaêlis! Naturalmente que não
consta o nome dela, nem na universidade de Coimbra, onde também teria
estudado com o irmão Jerónimo e onde terá cursado Humanidades,
Teologia e Filosofia. Como o acesso às escolas públicas estava vedado às
mulheres, elas só se podiam ter matriculado com nomes masculinos e
frequentado as aulas vestidas de homem.

Também não temos a certeza que o nome de batismo da nossa oradora


fosse Públia Hortênsia, como sugere o italiano da embaixada: «... à qual
pela sua muita literatura, chamam...».

Hortênsia foi a primeira oradora romana. E muita coincidência. No ano


42 a.C., o Primeiro Triunvirato quis lançar uma taxa sobre as matronas
romanas. Embora a câmara conciliar, onde estavam reunidos, fosse vedada
às mulheres, Hortênsia forçou a entrada e discursou tão bem que conseguiu
que a ideia da taxa não fosse aprovada.

Públia fez parte da corte da Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I, a


princesa mais rica da Cristandade e que só não foi rainha porque faleceu
um ano antes de D. Sebastião. Teria sido recomendada pelo cardeal D.
Henrique.

A sua cultura também atraiu a atenção da infanta D. Isabel de Bragança,


que vivia nos paços reais de Évora, de quem teria sido “leitora”. A Infanta
pediu-lhe para ela fazer uns salmos e versos que rezassem pela vida de seu
filho que partira para África. Públia deve ter vivido então nesses paços.
Também deve ter feito parte dos humanistas que se reuniam ou viviam no
paço ducal de Vila Viçosa. Nesse paço ducal, havia debates literários,
tertúlias, saraus de poesia e música, a expressão do humanismo cristão do
tempo. Aí se recebiam «os visitantes dos demais continentes e nobres das
cortes europeias que a Portugal se deslocavam. Assim se vivia desde o
tempo de D. Jaime I à inspiração míticoclássica e à elevada recreação
humanista. Competia, desta feita, com os maiores centros de cultura: o
Escoriai, Paris, Itália.. .».

Mas veio o desastre de Alcácer-Quibir. A pátria perdeu-se. D. Isabel


morreu. Em Évora reinavam os jesuítas e a Santa Inquisição. Públia com 33
anos estava solteira e sem fortuna. Para que servia uma mulher culta
naquele tempo? A libertação nunca pode ser individual, tem de ser em
grupo e as outras mulheres mantinham-se mansas.

É então que entra na história o rei Filipe II de Espanha, o novo rei que
acabara de nos tomar Portugal. A ideia deve ter partido dela, pois, segundo
a tradição, ela defendeu teses diante dele, mostrou a “sua literatura”. O
certo é que na Torre do Tombo encontra-se um alvará desse rei, Filipe I de
Portugal, datado de 1581, concedendo-lhe «em cada ano quinze mil réis de
tença para se melhor poder sustentar e recolher».

“Quinze mil réis” foi a tença que deram a Camões, o que prova que ela
era considerada!

Os tempos do fim do império foram maus para todos. Desiludida e


sozinha, só encontrou aberta a mesma porta de mosteiros por onde
entraram as outras duas, Antónia e Auta. Mas nunca professou. Vestiu-se,
no entanto, com o traje de freira e assim se fez retratar.

Segundo Carolina Michaélis, que vimos seguindo, ter-se-ia recolhido, no


fim da vida, no Mosteiro das Agostinhas, de Évora, conhecido como o
convento do Menino Jesus, nele se encontrando sepultada.
A filha de Branca Alves e Tomé de Sousa morreu com 47 anos. Não
nasceu num berço de oiro, mas não se acanhou de falar perante reis,
embaixadores papais, nobres e clérigos, os mais eruditos do seu tempo. E o
facto de uma mulher defender opiniões em público perante quem
socialmente é mais importante, é realmente um feito heroico. Quantas
mulheres ainda hoje têm receio de falar em público!

No processo de desenterrar mulheres do passado, encontram-se outras


que se vestiram de homem. Algumas foram soldados, viveram entre os
camaradas sem estes notarem e até provocaram paixões nas meninas
casadoiras. O caso mais conhecido é o de Antónia, heroína de Aveiro, que
com o nome de António partiu como grumete num barco e se notabilizou
em Mazagão. Esta teve sorte pois casou e o rei Filipe também lhe deu uma
tença de dez mil reis.

Muitas publicaram com nomes de homem. As mulheres estavam


proibidas de publicar os seus trabalhos sem autorização de familiares
masculinos. Foi Afonso Costa, após a implantação da República, em 1910,
que acabou com esse ultraje. Quantos livros não estarão pelas nossas
bibliotecas, de autoria masculina, escondendo criações de mulheres!

As portuguesas também iam vestidas de homem para as naus da índia.


Os missionários, a certa altura, antes de embarcar, vasculhavam tudo em
busca delas. Quando eram encontradas no meio do mar, a ordem era largá-
las na primeira ilha a que aportassem.

O que sofreu meia humanidade e o atraso civilizacional que se provocou,


por causa de frustrações tolas de quem mandava!
CAPÍTULO III

BRIANDA DE SOLIS: A DEUSA DE CAMÕES QUE LUDIBRIOU A


INQUISIÇÃO

A epopeia da expansão do homem no ultramar foi decantada em crónicas e em


verso. Para a parte que coube à mulher, tivemos de rebuscar documentos e cartas
poeirentos, coisa a que poucas pessoas se sujeitarão.

Elaine Sanceau, “Mulheres Portuguesas no Ultramar”

Brianda de Solis era uma moça de Alter do Chão. Terra que ainda não a
venera, mas que, um dia, terá de retirar do pó e trazê-la para a placa de uma
rua.

Ela foi uma viajante dos mares que sobreviveu às viagens tormentosas
para a índia. Casou em Goa com o sábio naturalista Garcia da Orta que
acabou por a ensombrar, como é costume. Tem sido denegrida, até aos dias
de hoje, para mais se elevar o sábio. Contudo, ela foi uma grande heroína
portuguesa por duas razões:

— Foi a musa de Camões que se inspirou nela para compor a Deusa da


Ilha dos Amores, do seu poema épico Os Lusíadas. Ela era a senhora da
Ilha de Bombaim.

— Apesar da sua família e da família de Orta, incluindo o sábio


naturalista, terem sido apanhados pela Inquisição, ela conseguiu salvar-se e
salvar as filhas às malhas da tenebrosa Inquisição de Goa.

A Ilha dos Amores, que ocupa dois cantos de Os Lusíadas, o IX e X, é a


parte mais bonita do poema épico que brotou da criatividade de Luís de
Camões. O tema central é a viagem de Vasco da Gama à índia. Após a
descoberta, os marinheiros são encaminhados para uma ilha maravilhosa
onde encontram uma deusa e suas ninfas. Tem-se interpretado como sendo
elas o prémio dessa descoberta. A recompensa do feito dos heróis seria
assim o amor das mulheres.

Mas Camões tinha uma mente privilegiada e assim aquela deusa


proporciona aos lusos, não só o amor, mas a glória e ainda visões do futuro
e de todo o espaço da Terra, transportando-os para uma dimensão onde
ficam a saber o que mais ninguém sabe. Sem o tropeço do tempo nem da
distância espacial, veem o que os olhos humanos não conseguem ver —
acontecimentos futuros ocorridos em todo o redondo da Terra, todos os
lugares do mundo num relance, como se fosse um filme antes de ser
inventado. Quer dizer, o prémio dos heróis não foi apenas o amor das
mulheres, mas a coroa de louros da glória e sobretudo o conhecimento.

Mulheres e Honra (IX: 89):

“Que as ninfas do Oceano, tão formosas,

Tetys e a Ilha angélica pintada

outra coisa não é que as deleitosas

honras que a vida fazem sublimada”

Glória: Os triunfos, a fronte coroada

De palma e louro, a glória e maravilha:

Estes são os deleites desta Ilha.


O conhecimento do espaço, do Mundo (X: 79):

Em pequeno volume aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, para que vejas

Por onde vás e irás e o que desejas.

Já ao conhecimento do futuro dedica Camões 132 estrofes que incluem


as do Espaço. Nesse conhecimento do futuro, é interessante que Camões
saiba o que o séc XXI ainda esteja a discutir — a nacionalidade de
Cristóvão Colombo. É curioso que Camões seja claro ao dizer-nos que o
descobridor do Novo Mundo era português (X: 138). E que viajou
agravado com “seu” rei (D. João II).

Mas é também razão que no Poente

dum Lusitano um feito ainda vejais

que de seu rei mostrando-se agravado,

caminho há de fazer nunca cuidado.

Lendo os cantos IX e X, para além da criatividade genial do poeta, a


deusa da Ilha Namorada é divina pelo saber, mas humana no resto do
comportamento. Não parece, portanto, uma invenção mítica, mas uma
mulher concreta que o poeta conhecera e na qual se inspirara. É sabido
«que todos os poetas atribuem aos seus heróis factos por eles próprios
presenciados ou praticados» — escreve Cunha Gonçalves". Assim, ao
longo do tempo, diversos investigadores têm apontado várias hipóteses.
Para se tentar identificar a dama da Ilha dos Amores, teremos que seguir
três fases:

— Comparar os dados físicos fornecidos no poema com caraterísticas de


ilhas prováveis.

— Investigar a existência de donas de ilhas como a descrita.

— Analisar comparativamente o retrato da senhora dessa ilha com a


descrição do poeta.

Ou seja, descobrir a ilha, procurar a dama, compará-la com a deusa.


Tudo isso recuando ao tempo de Luís de Camões, não à época de Vasco da
Gama.

1 — A ILHA NAMORADA — BOMBAIM

Diversas ilhas têm sido sugeridas nos últimos quatro séculos —


Angediva, Zanzibar, Santa Helena, Terceira nos Açores...

A hipótese de ser a ilha de Bombaim, que pertencia a Garcia de Orta,


parece a mais provável. É certo que não ficava no percurso de Gama. Mas
Camões é claro, a ilha veio doutro lado: “Vénus pelas ondas lha levava“ e
“firme a fez e imóbil“, “qual ficou Delos, tanto que pariu Latona“. Ora, na
mitologia, Latona, grávida, foi ter a uma das Ciciadas, que então era
flutuante. Após o parto, a ilha ficou fixa e recebeu o nome de “Delos”.

Se recorrermos à vegetação, constamos que Camões refere 24 espécies


florestais de tipo tropical e português. O que nos conduz a Bombaim, e não
a outra ilha, pois além da vegetação natural, Orta plantara muitas espécies
europeias.
Outra prova que se trata de Bombaim é a referência no poema aos
“barões” que “virão lograr os gostos desta ilha”. E os varões de que fala
antes iam realmente recrear-se a um lugar a que chamavam a Ilha da Boa
Vida. D. João de Castro, no seu Primeiro Roteiro, descreve-a, falando das
águas da enseada, dos arvoredos, dos três montes pequenos. Esclarece que
“Ilha Boa Vida” foi um nome posto por Heitor da Silveira, porque andando
a sua armada nessa costa aí desembarcava para repousar.

Ora, existe uma prova irrefutável que se trata realmente da ilha de


Bombaim. Camões, no Canto X, dá-nos uma comparação da altura do sol
na ilha com “Temistitão, nos fins ocidentais". Temistitão é o
aportuguesamento de Tenochtitlan, capital dos Astecas, hoje cidade do
México. Ora, se consultarmos um Atlas, veremos que México e Bombaim
têm precisamente a mesma latitude.

Afinal o poeta foi bem explícito. E, para descrever assim a Ilha dos
Amores, teria de a conhecer, de a ter visitado. Possivelmente, terá sido ele
o bem recebido pela dona de uma ilha de sonho e suas “ninfas”, que
transpôs para o seu protagonista. Resta-nos descobrir então a quem
pertencia essa ilha que, no tempo de D. João de Castro, se chamava da Boa
Vida e que Camões batiza de Ilha Namorada.

2 — A SENHORA DA ILHA — RRIANDA DE SOLIS

Na época em que Luís de Camões esteve na índia, Bombaim pertencia ao


seu amigo Garcia de Orta. É o próprio naturalista que diz: «e melhor é a de
Mombaim, terra e ilha de que el-rei nosso Senhor me fez mercê, aforada
em fatiota».
Como é sabido, este sábio é autor de Colóquios dos Simples, obra
europeia de grande valor e de quem o seu amigo Camões dirá: «...agora em
luz saindo/ Dará na Medicina um novo lume/ E descobrindo irá segredos
certos/ A todos os antigos encobertos».

Garcia de Orta era filho de Fernão de Orta e de Leonor Gomes, cristãos-


novos, foram dos judeus espanhóis fugidos para Portugal após as
perseguições dos Reis Católicos, mas continuaram a falar um castelhano
muito cerrado. Nasceu em Castelo de Vide, por 1525 já era médico,
formado por Salamanca. Foi professor da Universidade em Lisboa, numa
vaga de Pedro Nunes e, em 1534, talvez com receio da Inquisição, foi para
a índia, na nau Rainha.

O prof. Augusto da Silva Carvalho publicou a obra Garcia d’Orta, em


1934. Quatrocentos anos depois da viagem do sábio naturalista,
apresentava uma descoberta, uma revelação: ele fora casado. Na sua obra
Colóquios dos Simples, não se refere a esse facto. Por isso pensava-se que
fora solteiro e sem descendência. Afinal a sua esposa era alentejana, de
Alter do Chão, e chamava-se Brianda de Solis. Casaram em Goa e tiveram
duas filhas. Ela foi uma das diversas portuguesas que viajaram nas naus da
índia, no séc. XVI.

Brianda de Solis era afinal a “senhora” da ilha de Bombaim quando


Camões cirandou pelo Oriente. Desconhecendo que Orta fora casado,
Cunha Gonçalves já apontara, em 1930, para uma eventual favorita do
sábio, que fizesse as vezes de dona da casa.

Silva Carvalho utilizou como fonte o processo de Inquisição de Catarina


de Orta, irmã de Garcia, que fora queimada pela Inquisição, em Goa, em
1569.
Todavia, apesar do mérito da sua investigação, interpretou o texto duma
maneira misógina, apresentando Brianda como esposa avarenta, infiel,
miserável, que transformara o casamento do médico num inferno.

Não foi, naturalmente, Silva Carvalho o primeiro a denegrir uma mulher,


é algo que se repete na história. E isso não tem beliscado a credibilidade e
rigor dos sábios (não conheço nenhum caso da história, desde Aristóteles
aos padres da Igreja, passando por Santo Agostinho e Freud, cuja visão
negativa ou dados “científicos” forjados sobre as mulheres tivesse causado
alguma beliscadura no conceito geral de que foram grandes santos e
sábios).

O problema reside no facto de diversos autores, após 1934, graças à sua


“leitura”, terem acrescentando um ponto e sempre negro. Enciclopédias,
Dicionários de História, comunicações em conferências, atribuem a
Brianda atitudes de mulher muito má. A Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira, de acesso fácil a estudantes, apresenta-a como “intratável” e que
Orta “encontrou no casamento desventura” ,s. O Dicionário de História de
Portugal diz que ela era “avara e arrogante, desprezando o marido por ser
socialmente inferior a ela». Freitas Simões, catedrático da Faculdade de
Medicina de Lisboa, num artigo publicado no Boletim da Sociedade de
Geografia de Lisboa, até se lembrou de inventar que o casal se tinha
separado (coisa que Silva Carvalho nunca disse), «indo ele viver com a
mãe e irmãs, as quais, também com frequência, tiveram fortes desavenças
com a nora e cunhada».

A hipotética “irascibilidade” de Brianda de Solis, chegou às imagens


visuais. Assim, no dia 7 de Outubro de 1995, no Canal 2, foi exibido o 3º
episódio sobre a vida de Camões: “Esta cativa que me tem cativo”. Aí foi
apresentada Brianda de Solis como uma mulher malévola, recebendo
Camões com brusquidão, nem o deixando entrar em casa, e desprestigiando
o marido. Até colocaram na sua boca, em 1557: “Olha o que aconteceu à
tua irmã”, quando essa irmã só foi presa após a morte de Garcia e queimada
12 anos depois!

A meu ver, esta portuguesa das nossas descobertas, viajante de naus, foi
a inspiradora de Camões. Por ironia da vida, foi perpetuada por extremos
— denegrida no século XX, dignificada como deusa no século XVI.

Brianda era filha de Henrique de Solis e de Ana Álvares. Segundo Costa


Carvalho, os Solis tinham origem portuguesa e espanhola. As armas deste
apelido eram de ouro, sol avermelhado e com bordadura de veiros e ouro.
Durante tempos foi considerada cristã e contou entre os seus membros
muitos religiosos e até um inquisidor. Henrique era um rico negociante,
conseguiu a licença para andar em mula, em 14 de Maio de 1532, e obteve
carta de cidadão do Porto, a 23. Outubro. 1533, morando ainda em Alter do
Chão.

A certa altura, a família deslocou-se para Lisboa, tal como os Ortas. Em


1540, foi preso porque emprestou um armazém para um amigo depositar
trigo e foram apanhados pela devassa. Da prisão pediu perdão ao rei,
dizendo que tinha sido nomeado escrivão da nau Santiago que ia partir para
a índia. O rei concedeu-lhe o perdão em 16.02.154123.

Baseado nisto, Silva Carvalho conjeturou que Brianda humilhava o


marido sentindo-se superior a ele, o que é um absurdo. Ela era só filha dum
rico comerciante, que até estivera preso, mas Garcia era comerciante
também de joias e pedras preciosas, muito mais rico e prestigiado, tinha um
navio, a ilha de Bombaim, terras em Balaim, uma rica casa em Goa com
hortas e jardins, era recebido como amigo e físico na corte dos príncipes
locais. Em vida nem a Inquisição lhe tocou e no processo da irmã é tratado
sempre por “doutor”, constando a sua carta de medicina das chancelarias. E
sê Henrique de Solis obteve licença para andar em mula, também Garcia
obteve essa licença, além de ser protegido do poderoso governador Martim
Afonso de Sousa, com quem foi para a índia e a quem dedica os Colóquios.
Já em vida, em 1559, era considerado “dos melhores letrados que cá há
nestas partes”, numa carta dum jesuíta. Como não está escrito em lado
algum que ela se sentia superior (foi consultado o processo de Inquisição
de Catarina de Orta, única fonte) esta conjetura não tem fundamento.

Brianda deve ter partido acompanhada do irmão e das irmãs. Na


documentação da Inquisição de Goa aparece o irmão Manuel, nascido em
Alter do Chão, repreendido em 1575. A irmã Beatriz, já natural de Lisboa,
abjurou de apartada em 1579. Nesse mesmo ano também foram condenadas
Brites e Catarina, naturais de Lisboa, filhas de Henrique de Solis e de outra
mulher — Clara da Silva. A ser o mesmo Henrique de Solis, isto sugere
que enviuvou e voltou a casar.

A armada que levou Garcia de Orta para a índia, em 1534, era


comandada por Martim Afonso de Sousa. Não fala em Garcia.

Curiosamente, Brianda de Solis embarcou numa armada comandada


também por Martim Afonso de Sousa, mas em 1541. Silva Carvalho diz
que foi na nau Santiago, porque o pai era escrivão dessa nau, opinião que
perfilho. É possível até que Martim Afonso lhe tenha arranjado o cargo e
conseguido a sua libertação. Dado que Garcia de Orta era seu “doméstico”,
talvez lhe tenha arranjado noiva e transportado na sua armada. Segundo
Catariana de Orta, no seu processo de Inquisição, Orta e Brianda eram
parentes afastados, mas precisaram de dispensa para casar.

Partiram no dia 7 de Abril. As outras naus eram “Flor de la mar”, “Santa


Cruz”, “Sant’sprito” e “S. Pedro”, esta comandada por Álvaro de Ataíde,
filho de Vasco da Gama.
Os cronistas Diogo do Couto e Gaspar Correia dizem que essa viagem,
em que participou Brianda, correu mal e só chegaram em Setembro (Couto)
ou Outubro (Correia) a Moçambique. Já não puderam partir, tiveram de
esperar pela Primavera.

Brianda de Solis teve por companheiro Francisco Xavier, que veneramos


por santo, embora, em duas cartas tenha pedido ao rei o estabelecimento da
Inquisição em Goa, que tanto sofrimento irá trazer às famílias Orta e Solis.

Nessa altura a índia era governada por outro filho de Vasco da Gama,
Estevão. Devido a contos e ditos, Martim de Sousa, que ia substituir
Estevão da Gama no Governo da índia, resolveu partir de Moçambique “no
navio de Luis Mendes, com seus criados e privados”, abandonando a
armada. Correia diz que só a nau “Santiago” era do rei, as outras “eram de
mercadores”. Se Brianda continuou viagem na nau “Santiago”, ia morrendo
afogada. Segundo Diogo do Couto, em Maio de 1542, na costa da índia, a
nau foi apanhada por trovoadas e um vento do Sul.

E como o vento e a tormenta era grande, e o céu estava toldado, e o


tempo escuro, não vendo o Piloto por onde ia, foi varar no rio das cabras
na ilha de Salsete de Baçaim, aonde se fez em pedaços. A gente parte dela
se afogou, por se querer lançar a nado à terra: e a outra, que se deixou
ficar na nau, toda se salvou, porque da terra lhe acudiram logo muitas
almadias.

A gente sobrevivente da nau foi recebida e alimentada em Baçaim, onde


invernou. Segundo a Verdadeira Informação das Cousas da índia, Martim
Afonso de Sousa chegou à índia nos fins de Maio de 1542, o que condiz
com os cronistas.

Portanto, o casal Brianda e Garcia só podem ter casado ou fins de 1542,


no caso de ter ido a dispensa do reino, ou após 1543. Garcia já devia ter
mais de 40 anos, pois a data de nascimento aproximada que lhe atribuem é
de 1501.

O certo é que em 1547 já tinham as duas filhas porque, numa carta à


irmã Catarina, Garcia convida-a a embarcar para a índia, com a promessa
de casar as filhas dele com os filhos dessa irmã. Catarina partiu em má hora
em 1549, na nau S. Filipe, com marido, filhos, a irmã Isabel e família,
assim como a mãe, Leonor Gomes, que devia ter perto de 70 anos. Leonor
foi viver para casa de Garcia e de Brianda, paredes meias com a casa de
Catarina. E nunca é dito em parte alguma que, até à sua morte, em 1557,
ela tivesse discussões com a nora.

3 — A MORTALHA DE GARCIA DE ORTA

A única fonte para investigar a esposa do naturalista é o processo de


Inquisição de Catarina de Orta. É um manuscrito de 134 páginas e,
curiosamente, fizeram duas cópias manuscritas. Encontram-se na Torre do
Tombo com os n°s 1282 e 1283.

O mal entendido sobre Brianda de Solis, veio da interpretação que fez


Silva Carvalho da questão da mortalha do célebre botânico, que consta do
documento.

Embora os processos de Inquisição tenham muitos dados, não


esqueçamos que muitos eram obtidos por meio de tormentos. Além disso,
Catarina sabia ler e escrever, usou diversas estratégias para se salvar e aos
seus. Tal como afirma Elvira Mea, falando das rés da Inquisição: «O
universo da psicologia feminina é duma riqueza fantástica, incomensurável,
com miríades de luzes e sombras, pelo que ao longo dos tempos continuou
incompreensível, estapafúrdio, sobretudo para o pequeno mundo dos
senhores inquisidores».

Nos processos de Goa, os tormentos deviam ser tais que as mulheres


confessavam coisas absurdas. Assim, uma Guiomar Fernandes, cristã-velha
portuguesa, fez um pacto com o diabo, dando-lhe do seu sangue, e aquele
fazia muitas irreverências a Cristo Crucificado. Violante, casta java, teve
ajuntamento com o diabo muitas vezes. E Isabel, casta pega, deu sangue ao
diabo do seu braço, tinha ajuntamento com o dito «e estando prenhe dele
lhe matou a criança na barriga».

Posto isto, não surpreende que Catarina de Orta, presa em Outubro de


1568, entregasse toda a gente — o marido, a filha, as irmãs, a mãe, os tios,
primos, o genro, as irmãs do genro, os vizinhos, outros cristãos novos. Até
familiares de Lisboa entregou. Ora, não podia faltar o irmão Garcia, logo
na primeira página, e a cunhada Brianda. Deve ter passado por um
sofrimento incomensurável, um horror de tortura, muito mais quando
verificou que nada lhe adiantara, pois acabou na fogueira, no ano seguinte.

Neste processo, ela diz e desdiz. Entregou a filha, dias depois retratou-se.
Entregou a mãe e mais à frente nega tudo. Com Brianda fez o mesmo. Diz
que ela comia carne em dias que a Igreja proibia, mas depois diz que era
por ser doente. Na questão da mortalha, ora a viu ora nega. Perto da
fogueira, confessa que «a razão das suas denúncias falsas foi por lhe
parecer que assim obteria misericórdia e salvaria a vida e o diabo a
enganar». E claro que Silva Carvalho acha que ela falou verdade antes e
mentiu à hora da morte, ao contrário do que faz qualquer pessoa religiosa:
“Via-se claramente que certa de morrer, mas perante a promessa de
dinheiro e proteção feita por Brianda de Solis e sua família, a favor das
suas filhas e do marido que saiu reconciliado, resolvera fazer aquelas falsas
declarações...».
A promessa de dinheiro e proteção nunca teve ocasião para ser feita, pois
após a prisão de Catarina nunca se encontraram. Nem isso está escrito.
Aliás, ao aceitar-se que Brianda era avarenta, a ponto de negar a mortalha
ao marido, não se entende que tomasse conta de filhos e netos que não
eram seus nem do seu sangue. Isto é um raciocínio torto.

Mas afinal o que diz o processo de Catarina sobre a mortalha de Garcia


de Orta?

No dia 11 de Maio de 1569, a Inquisição ouviu D. Álvaro de Castro, que


era de Castelo de Vide, como os Ortas. Contou o que dissera em sua casa a
escrava Joana, que teria uns 30 anos e uns sinais no pescoço:

Quando morreu o dito doutor lhe fizeram mortalha de pano novo e


camisa de pano novo, que se fora comprar para isso e que ela Joana e
outras moças da casa coseram o lençol muito à pressa e que não quisera a
dita Brianda de Solis que o amortalhassem na roupa que havia em casa...

Portanto, havia roupa em casa, Brianda é que mandou comprar pano


novo. Quem tal ouviu foi a esposa de D. Álvaro de Castro, na altura já
defunta, chamada dona Leonor, possivelmente outra viajante. A esposa
confrontou Isabel d’Orta quando esta foi a sua casa, perguntando-lhe
porque não quis a cunhada «dar um lençol a vosso irmão para o
amortalhar». Isabel respondeu que “era verdade, pois a cunhada era de tal
maneira que não quis dar para se amortalhar o marido nem lençol nem
camisa, deixando-lhe ele tanta riqueza e que depois forraram a dita negra e
a fizeram ir para Benguela ”.

Logo no dia seguinte, a 12, o inquisidor puxou por Catarina. Esta disse
que, quando morreu seu irmão o meteram numa câmara e que havia ali “um
pano novo comprido cosido alinhavadamente que lhe parece que era duas
ou três tiras de pano cosidas uma na outra, as quais tiras eram de pano
novo... mas não se lembra quem o coseu, nem quem trouxe a mortalha...”.
Perguntada de que se fez a camisa que levou, disse:

que não se fez camisa de novo para isso e que por o dito doutor ter
poucas camisas e sua mulher ser nisso avarenta com ele, mandava ela ré
muitas vezes trazer camisas de sua casa para o dito doutor vestir na dita
sua enfermidade, porque se sujava muitas vezes e que depois que o dito
doutor morreu, mandou ela ré buscar uma camisa a sua casa para nela
amortalharem o dito doutor e que fosse a melhor que se achasse...

Este depoimento é que gerou que Brianda fosse denegrida: «depois da


sua morte não teve para amortalhá-lo lençol novo e camisa em bom estado,
que tiveram de ir pedir a casa alheia».

O inquisidor sabia aquilo que parece desconhecer Silva Carvalho e


seguidores: “Perguntada se sabia ela Ré que amortalhar em roupa nova é
costume da lei judaica, disse...que não lhe lembrou isso ao tempo da
mortalha do dito doutor...

Nunca mais a largaram com a história da mortalha. E ela meteu os pés


pelas mãos. “Perguntada de como se fez a mortalha... disse que não sabe».
«Perguntada porque não mandou buscar lençol a sua casa pois mandou
buscar camisa, disse que lhe não pediram lençol, não sabia que faltava».
«Perguntada se lhe pediram camisa disse que lhe pareceu que lha pediram»
(f. 17 e 15).

A Inquisição não digeriu a contradição da declaração da escrava e das


irmãs. E resolveu tirar isso a limpo, logo no dia seguinte, à única pessoa
que podia esclarecer — ao dono da camisa, marido de Catarina.

Depois de terem prendido a irmã de Orta, o marido tentou contactar com


ela pelo telhado. E ela escreveu mais que uma vez, com tinta e papel que
lhe conseguiram esconder numa manta, enviando as mensagens até nos
“bacios do sujo”, o que significa que era instruída. Mas a história da camisa
não passou para fora. Assim, no dia 13 de Maio, Leonel Gonçalves disse
ter estado presente no velório do cunhado, mas quanto à camisa disse
ignorá-lo. Mais de um ano depois não dera por falta duma camisa nova,
nem disso soubera, num tempo em que havia menos roupa do que hoje!

Era o que a Inquisição esperava.

Toda esta insistência resultara do facto de saber que era um rito judaico
enterrar as pessoas com roupa nova. A pobre da Brianda enterrou o marido
em pano branco, novo, e camisa nova, como ele certamente lhe pediu. Para
lhe dar esse gosto, ela arriscou a vida. As cunhadas, sabedoras do rito
mosaico, foram suas amigas, desviando as atenções desse rito para a sua
sovinice. Uma esposa avarenta não afetava a religião, mas enterrar o
marido num rito condenado pela Igreja podia levá-la à fogueira. Por acaso
não a levou a ela, mas Garcia, 12 anos depois, em 1580, foi desenterrado e
os poucos ossos que restavam dele foram queimados num auto de fé. As
suas cinzas foram lançadas ao rio Mandovi. A união das suas cinzas com as
águas e o universo seria até bonita, se não fosse invenção do “pequeno
mundo dos senhores inquisidores”. E em nome duma religião que não se
sabe qual seja, a de Jesus não era, esse dava a outra face e apregoava que
não fizéssemos aos outros o que não gostávamos que nos fizessem,
desenterrarem ossos para queimar, sem conseguirem apagar do mundo a
memória do genial português.

Baseada numa leitura que ignora o rito judaico, reza a Grande


Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: «Parece que intratável, sua mulher,
rica embora, primava pelo espirito de avareza. Basta dizer que não queria
ceder roupa nova para vestir o cadáver de Garcia de Orta e nem ao menos
lhe concedeu o lençol com que descesse amortalhado à sepultura».
Uma interpretação completamente oposta ao testemunho da escrava, que
estava lá. Agora nem lençol lhe comprou para o amortalhar. E Freitas
Simões acrescenta um ponto: «Era D. Brianda pessoa de trato irascível e
por demais miserável, a ponto de, quando da morte do marido, ainda que já
separados, negar a este a roupa que seria sua mortalha». Quem ler isto sem
mais nada, há de pensar que ela o mandou enterrar nu.

Pelo testemunho de Catarina, nada indica que Brianda fosse irascível


com os familiares. A esse respeito, declarou: «Quando o dito Doutor foi
vivo, eram vizinhas e amigas e conversavam e às vezes pelejavam e logo
tomavam a ser amigas». Contudo, depois que esta mudara para as casas
junto da rua Direita, tinha com ela menos convívio. Continuavam a ver-se
na Igreja «e se foram visitar uma à outra até que ela ré foi presa» (f. 40).
Isto descreve relações normais entre familiares, incluindo “pelejas” e as
pazes depois.

Portanto, a mulher perpetuada como avarenta foi afinal magnânima com


a escrava linguareira. Deu-lhe a liberdade e pagou-lhe a viagem para voltar
à terra dela — Benguela. Podia-a ter vendido a alguém de longe ou ter-lhe
dado sumiço. Mas ela perdoou-lhe e mandou-a para junto da sua família.

E também era boa mãe. D. Álvaro de Castro testemunhou que Brianda


casara uma filha com um primo Damião de Solis, também cristão-novo, e
que andava em demanda com ele «e outra sua filha mais pequena sobre a
aldeia de Bombaim e terras de Balaim». Afinal era mãe protetora ao
defender, nas partilhas, a filha mais nova perante os interesses do seu
genro.

Durante tempo, meditei na razão que levaria Silva Carvalho a difamar


Brianda de Solis. Só podia estar no processo de Catarina.
Julgo que se encontra neste extrato: «E quando Brianda de Solis, filha
que foi de Henrique de Solis, casou com o doutor Garcia d’Orta seu irmão,
era doente de boubas...» (f.39 v.). Ora, “boubas” era uma doença venérea,
semelhante à sífilis.

Como Orta diz nos Colóquios que sofrera de boubas e que para os
naturais da terra “não são infamadas”, Silva Carvalho ora diz que podia ter
sido ele a adquirir a doença e contagiá-la, ora sugere ter sido ela, andando
com outros homens: «pelo mesmo processo pelo qual as outras damas
goenses a adquiriam, foi visitada pela doença das boubas». Não imagina
que a velhice precoce de Orta podia derivar desta doença, prefere dizer que
se devia à desventura no casamento.

Contudo, o que se lê claramente no processo inquisitorial (lê-se o mesmo


nas duas cópias), é que ela tinha a doença antes de casar. Silva Carvalho
não perdoou esse “pecado” a Brianda. Tendo escrito na década de trinta,
quando a virgindade era exigida por lei, devia repugnar-lhe a “afronta”
sofrida pelo seu ilustre biografado.

Teria ela ido para a índia a fugir dum escândalo amoroso, como tantas
outras?

Recorreu-se ao Reportório do deputado do Santo Ofício João Delgado


Figueira. É um manuscrito com perto de 1 400 páginas. Traz o nome,
filiação e naturalidade de toda a gente que passou pela Inquisição de Goa
desde o início (1561) até 1623. É por este “Reportorio” que se sabe que
Brianda e as filhas nunca foram apanhadas.

Lê-se aí no ano 1563: «Simão Jorge, cristão-novo, natural de Santarém,


filho de Fernão Jorge, boticário, e de Brianda Solis. Abjurou de apartado».
É claro que não se tem a certeza se esta Brianda Solis é a mesma.
Procurou-se, na Torre do Tombo, o processo de Simão Jorge, também no
nome de seu pai, mas nada existe. Contudo, no caso de ser a mesma,
significaria que Brianda seria viúva quando casou com Garcia. Estaria
justificado porque levou a doença para o casamento.

A doença de boubas devia incomodar muitas mulheres a ponto de uma


ou outra se especializar na sua cura, fazer exame perante o físico e
cirurgião mor do reino e obter carta de licença, passada por chancelarias
régias. Na chancelaria de D. Manuel I, constam 15 mulheres identificadas e
na Chancelaria de D. João III registam-se 29 que obtiveram carta de licença
para curar boubas e outras enfermidades e até fazer cirurgia.

Concluindo: para amortalhar o famoso Doutor, a esposa mandou


comprar pano novo, mandou fazer camisa nova, Joana e as três criadas
orientais fizeram o lençol e a camisa, se Catarina mandou buscar uma
camisa a casa ninguém lhe pediu e Brianda não a utilizou, porque Leonel
Gonçalves não deu por falta de nenhuma.

4 — A DEUSA TETIS E BRIANDA DE SOLIS

Encontrada a ilha (Bombaim), encontrada a dona dessa Ilha dos Amores


(Brianda de Solis) falta-nos comparar as duas, lendo o poema de Camões.

Há quem diga que não existia ilha alguma só povoada de mulheres, mas
Bombaim, se Orta se deslocasse à corte dos príncipes locais, ficava só com
presenças femininas. Brianda tinha duas filhas, Beatriz e outra mais nova,
pelo menos três criadas indianas — Antónia, Brianda e Leonor, que talvez
andassem semi-nuas — como são as indianas muitas vezes representadas
— e pelo menos uma escrava negra, Joana. Era um grupo, no mínimo de 7
mulheres. Sete mulheres a receber alguém longe da pátria, é o suficiente
para um poeta imaginar um coro de ninfas (IX: 85).

Uma delas, maior, a quem se humilha

Todo o coro de Ninfas e obedece (...)

o Capitão ilustre, que o merece,

recebe ali com pompa honesta e régia,

mostrando-se senhora grande e egrégia.

Isto é o retrato duma dama, rodeada de jovens. Para quê falar em “pompa
honesta” se fosse deusa mítica? «Até a referência às ninfas não constitui
excesso de fantasia, mas apenas deformação poética» — diz-nos Luís da
Cunha Gonçalves; — «convindo recordar que por “ninfas do Tejo” ou “do
Mondego” designava CAMÕES as suas amantes e as mulheres em geral do
seu país natal». E possível que Camões visse Brianda, “mulher do seu país
natal”, como uma grande senhora: «Ela, por onde passa, o ar e o vento/
sereno faz, com brando movimento» (IX:24). As jovens eram «humanas
rosas» e vestiam «lã fina e seda» (IX:68)

Nas quentes índias, mesmo as mulheres mais honestas andavam


sumariamente tapadas, escandalizando os religiosos. O P. Emanuel Cabral
escreveu de Ormuz a um superior em Lisboa: «as mais honradas mulheres
desta terra por muita honestidade andam com um vestido de beatilha, com
o qual assim se lhes aparecem as cames como lua por peneira». Acrescenta:
«escrevo isto com a mão no rosto com vergonha de o dizer, sabendo muito
bem que não pecam elas em o fazer, tão-desatinada terra de calmas é esta».

A deusa tinha um paço com metais, ouro e cristal, onde servia vinhos e
manjares. A casa de Garcia de Orta e Brianda também era um palácio, o
único edifício de estilo europeu que durante séculos ali existiu, no qual
recebia os emissários dos rajás e eruditos hindus, como o seu amigo Nizam,
que o remuneravam com presentes em dinheiro e objetos preciosos, que
constituíam o seu recheio valioso. Garcia de Orta teria aí a sua livraria, o
herbário, salas onde recolheria espécies botânicas, quem sabe se ornadas de
«metais reluzentes mandados da Rainha» (que Rainha?), com «cadeiras
ricas, cristalinas». Nessa cadeiras, «se assentam dois a dois» e noutras
cadeiras, «à cabeceira de ouro finas/ Está com a bela deusa o claro Gama»
(X: 3). E possível que Brianda mandasse sentar Camões nessas cadeiras,
lado a lado com ela.

Comparemos as datas. Camões esteve no Oriente entre 1553 e 1567.


Garcia de Orta faleceu em 1568. A irmã Catarina foi queimada em 1569. E
os ossos de Garcia foram exumados em 1580 e queimados pela Inquisição,
doze anos após a sua morte. Quer dizer, Camões não assistiu a estes factos,
daí a ideia idílica que tinha da Ilha dos Amores.

Era 1662, quando Bombaim foi entregue aos Ingleses como dote de D.
Catarina de Bragança, estes aproveitaram o “paço” de Orta e chamaram-lhe
“Casa Grande”. Curiosamente, em 1662, também era uma mulher a senhora
da ilha. Chamava-se D. Inês de Miranda, viúva, e os ingleses designavam-
na por “Lady of the Island”. Foi dramática a entrega de Bombaim. Os
ingleses despojaram-na “sem pudor”, mas D. Inês reclamou para Londres e
o marido de Catarina de Bragança indemnizou-a.

Mas talvez Camões soubesse que Brianda tinha um filho distante. No


poema é Cupido, a quem ela recorre. No meio da conversa deles, Camões
introduziu (IX: 28):

Vê que aqueles que devem à pobreza

amor divino e ao povo caridade


amam somente mandos e riqueza,

simulando justiça e integridade.

Da feia tirania e de aspereza

fazem direito e vã severidade.

Estas palavras assentam como uma luva na inquisição de Goa, pois os


padres é que fizeram a Deus votos de pobreza e caridade e simulavam
justiça com “feia tirania”. Além disso, três estrofes antes, o filho da deusa
prepara uma expedição contra “erros grandes que há dias nele estão“.
Camões esteve na índia entre 1553-1567 e a Inquisição estabeleceu-se aí
em 1561, portanto durante a sua permanência, o que explica a expressão
“há dias”. Segundo Carolina Michaèlis de Vasconcelos, no prefácio de Os
Lusíadas, 1971: XXIV, Camões

Alistado como homem de armas em Março de 1553, não voltou à


Europa depois do triénio a que se havia obrigado. Com duro génio e
ânimo obstinaz, suportou dezasseis anos de desterro, repassados de
saudades nostálgicas e cheios de trabalhos árduos, expedições bélicas,
viagens perigosas, naufrágios, prisões, hospícios, doenças. Só depois de
ter ultimado a nobre empresa é que pensou em regressar a Portugal.

O Simão Jorge, filho duma Brianda de Solis, era um homem que também
fazia “expedições” contra erros grandes, pois, em 1564, quando Camões
ainda estava na índia, foi açoitado no cárcere, porque intentou fugir «e abrir
a porta da sua prisão fazendo um buraco e comunicar com os presos dando
avisos a uns e a outros para que não confessassem suas culpas» — registou
Delgado Figueira.

Se lermos esses dois cantos pensando em Brianda, encontramos ainda


mais pequenas provas que Camões se inspirou nela. Até o nome de Ilha
Namorada, pois Brianda morava na rua dos Namorados, em Goa. Já não era
jovem “o que ela fez mil vezes quando amava” (IX: 50). “Tetys de graça
ornada e gravidade/ para que com mais alta glória dobre/ as festas deste
alegre e claro dia” (X: 75).

“Mestra esperta”, deve ter recebido o poeta com “pompa honesta e


régia”. Sem esquecer que a família Solis tinha brasão, que ainda hoje se
pode visitar na cidade espanhola de Cáceres. Por isso Camões refere:
“Depois que a corporal necessidade/ se satisfez de mantimento nobre” (X:
75), referindo-se talvez à nobreza de Brianda de Solis.

Silva Carvalho esbarrou na possibilidade de Brianda ser a deusa de


Camões. Como tal, levantou a hipótese do épico, naquela alegoria, querer
«prestar preito à mulher do seu amigo, que talvez na lua de mel, que ainda
não se convertera em fel...». Só que a ilha fora-lhe concedida 14 anos
depois do casamento e, por isso, concluiu que não podia ser. Eis a que
conduziu a sua singular interpretação minada de má fé! Escreveu Júlio
Gonçalves que à obra de Orta «outros se referiram com encómio, e citarei
com a maior admiração Silva Carvalho e o Conde de Ficalho. Mas quem os
lê verifica que, à falta de documentos, conjeturaram em demasia. E a
conjetura é por vezes o verme que corrói a história»". Neste caso, corroeu a
imagem duma mulher navegante para a índia.

Brianda possivelmente abandonou o Oriente, talvez com a filha mais


nova. Silva Carvalho sugere que foi para a Holanda. Os filhos de Catarina
Orta regressaram na nau Chagas e depois partiram para Roma e Veneza.

A “senhora grande e egrégia” de Camões foi “mestra esperta” até ao fim,


escapando ela e as filhas à terrível Inquisição de Goa. E por esse feito
extraordinário e tão difícil merece ter sido eternizada como deusa duma
ilha flutuante e pouco segura, como a glória e a vida.
CAPÍTULO IV

PAULA DA GRAÇA: A NOBRE ENCOBERTA AUTORA DO 1,°


LIVRO FEMINISTA

Quais são os equivalentes empregos que a nós nos dão... ? Nenhuns;


porque todo o gosto de um Reino se dá a um varão.

Paula da Graça, 1715

Na história geral, espalha-se, e até se ensina, que os homens construíram


o mundo sozinhos, enquanto as mulheres estiveram sentadas a ver. Depois,
graças a novos ventos, começa a dizer-se que as mulheres estrangeiras têm
estado a alterar esse mundo, mas as portuguesas permaneceram sentadas a
ver.

Em 2000, fruto da chegada desses ventos novos, o Ministério da


Igualdade, que esses ventos tinham criado e depois desvaneceram como
fumos efémeros, apoiou a edição dum livro, para a juventude portuguesa.
Intitulava-se “Os Direitos das Mulheres” e era autora Victoria Parker.
Assisti, no Palácio Foz, em Lisboa, à apresentação dessa pequena obra,
dignificada pela presença da Ministra e outras autoridades. Ao folhear esse
livro, os meus olhos leram: «O século XVIII foi um tempo de grandes
mudanças (...) Nesta nova atmosfera de mudança — em que os pobres
começaram a pensar que tinham os mesmos direitos que os ricos — duas
mulheres ousaram pensar pela primeira vez que as mulheres deviam ter os
mesmos direitos que os homens». Refere-se à francesa Olimpe de Gouges,
que escreveu A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, e
à inglesa Mary Wollstonecraft, autora da Defesa dos Direitos das Mulheres,
publicado em 1792.

Todavia, na Torre do Tombo, em Portugal, existe um livro intitulado


Bondade das Mulheres Vendicada e Malícia dos Homens Manifesta,
publicado em 1715, portanto, mais de sete décadas antes dos livros das
autoras francesa e inglesa. Assinado por Paula da Graça, todo ele foi escrito
em defesa das mulheres. Não apenas reivindicando direitos políticos, mas
reinterpretando a Bíblia, contestando a distribuição da riqueza do reino só
pelos homens, a mentalidade contra as mulheres na cultura, a não
divulgação dos feitos femininos e a violência doméstica. Enfim, problemas
que, 300 anos depois, ainda não resolvemos.

Portanto, Bondade das Mulheres Vendicada e Malícia dos Homens


Manifesta é o primeiro livro feminista que se conhece na Europa.

1 — A ESTRUTURA — POEMA EM QUINTILHAS

O livro Bondade das Mulheres Vendicada [significa reivindicada]... tem


como subtítulo «Papel métrico e apologético, em que se defende a feminina
inocência, contra outro em que injustamente se argue a sua maldade, com o
título de Malícia dos Homens». (A autora fez-se enganada e escreveu
“Malícia dos Homens” em vez de “Malícia das Mulheres”, o que foi
corrigido nas edições posteriores). Escapou aos censores. O pretexto da
obra de Paula da Graça é assim a resposta a um livro popular que insultava
as mulheres.

O livro de Paula da Graça foi editado quatro vezes todas no séc. XVIII.

A edição de 1715 encontra-se na Torre do Tombo, Lisboa.

A edição de 1741 encontra-se na Biblioteca Nacional.


A edição de 1743 encontra-se nesta mesma Biblioteca, em Lisboa.
Ambos foram publicados ainda no reinado de D. João V e por um
impressor que nos surpreende — Pedro Ferreira “impressor da
Augustíssima Rainha”. Indica que a autora tinha relações com o Paço e
cumplicidades com a alta nobreza.

A última edição localiza-se na Biblioteca Pública Municipal do Porto.


Data de 1793 e foi impressa na oficina de António Gomes.

O livro tem sete páginas, em 1715, e oito nas edições seguintes. Só a


edição da BPMP traz as páginas numeradas.

Para expor as suas ideias, Paula da Graça usou um poema, composto por
quintilhas. Não é novidade, é resposta, pois Malícia das Mulheres compõe-
se também de estrofes de cinco versos. O poema propriamente dito está
distribuído por seis páginas, os versos estão dispostos em duas colunas, em
regra de 33 versos cada uma. São ao todo 72 quintilhas (tantas quantas os
livros que compõem a Bíblia), num total de 359 versos. O número não é
exato (devia ser 360), porque a estrofe 33 é uma quadra em vez de uma
quintilha, talvez gralha. Verifica-se o mesmo em todas as edições, o que
significa que as três últimas se fizeram a partir da primeira.

O Malícia das Mulheres é ligeiramente maior, tem 92 quintilhas.

Tanto num livro como no outro, cada verso das quintilhas tem sete
sílabas métricas. Possivelmente para economia de papel, as quintilhas estão
separadas apenas por um parágrafo. O mesmo nos dois livros.

E muito mais difícil defender ideias em verso, do que em prosa. Tem de


se ter uma grande capacidade de síntese e domínio do vocabulário da
língua. As mensagens têm de estar sujeitas à métrica, à rima do Io verso
com 3º e 5º e depois o 2º com o 4º. Ela fá-lo com facilidade como se tivesse
treino.

No alto do poema, surge este título: “Quintilhas em que a Autora


expende o seu voto a uma moça que lhe consulta o seu casamento”.
Começa o poema com a palavra “Filha” e que lhe dá gosto que ela a
consulte sobre o casamento, que irá realizar em breve.

Filha: mil gostos me dais,

em vos ver com tanto assento.

A beleza, que lograis

vos oferece casamento;

sobre ele me consultais.

Acha bem que ela se aconselhe, «porque dos homens, na mão/ não está
mais que o enganar/ uma moça de feição».

Este início, sugere que a autora conhecia a Carta de Guia de Casados, de


D. Francisco Manuel de Melo. Este autor do séc. XVII dirige-se a um
amigo (e a um primo), que lhe pede conselhos antes de casar. «Diz-me
V.M.ce que se casa, e que lhe dê eu, para se governar nesse seu novo
estado, alguns bons conselhos».

O Malícia das Mulheres, embora comece por um «Senhor, o vosso


conselho... desejo de me casar...», fala sempre a mesma personagem. Não
se percebe que haja alguém a aconselhar, fala do princípio ao fim sem
nunca deixar falar o conselheiro. Talvez por isso Paula da Graça o critique
de uma maneira sarcástica. Define-o como «poeta do chão/ a trovar como
um Doutor».

*
2 — A INSTRUÇÃO DA AUTORA

Este pormenor é aquele que mais espanta, pois às mulheres estava


interdita a instrução pública. A primeira escola primária para raparigas fora
criada cem anos depois — em 1815, em Lisboa. A Universidade estava
vedada às raparigas. Portanto, Paula da Graça só podia ter ser instruída:

— num convento

— por professores particulares.

Os conventos, embora fossem locais de intelectualidade, poderiam


ensinar-lhe métrica, cultura religiosa e práticas de confeção de bolos,
bordados... Mas ela até se atreve a interpretar a Bíblia. O seu pensamento é
sobretudo político e global, abrangendo toda a sociedade, todas as classes
sociais, o que seria difícil para uma freira. Ela teria de conhecer muito
mundo.

Paula da Graça faz mais — cita S. Tomás de Aquino, no prólogo, desta


forma:

S. Thomas 2.2. quaest. 108. art. 4.

Para fazer uma citação destas, não era uma mulher do povo, nem
daquelas que aprende só a ler e escrever. Hoje diríamos que é necessária
uma cultura universitária para se perceber esta citação de S. Tomás de
Aquino. Teria de frequentar um meio com biblioteca.

Em resumo, a obra Bondade das Mulheres... demonstra que a autora:

— Usa vocabulário elaborado

— Domina a língua portuguesa e aplica corretamente as formas verbais


— Lia S. Tomás de Aquino, um autor dos meios intelectuais pela sua
complexidade

— Diz ter falado com Doutores e Juízes

— Sabe fazer poesia rimada, com métrica, quintilhas

— Conhece as fábulas (a que chama ditados) de Esopo

— Fala em Novelas (narrativas de teor diverso, de amor, cavalaria,


histórias diversas, literatura de cordel e não só)

— Cita autores latinos, clássicos

— Fala da Bíblia, referindo o livro do Génesis, Fariseus, Pilatos

— Chama “República” ao que hoje nós designamos por “Estado”, um


termo do meio intelectual. Ao tempo, vivia-se numa Monarquia e nem se
sonhava com uma República que só será implantada em Portugal quase
duzentos anos depois, mais propriamente após 195 anos.

— Refere filósofos e conhece histórias de Heroínas.

— E sabe algo que ainda hoje é difícil — descer da sua classe social e
conhecer o pensamento e quotidiano do povo. Este espírito de observação
faz dela uma pioneira no domínio das mentalidades.

— Literariamente sabe usar a sátira — «estamos perante um tipo de


poesia pouco comum na poética feminina portuguesa: a sátira» — António
Salvado.

3 — POR QUE É UM LIVRO FEMINISTA?


Não se nasce feminista. Não é feminista quem quer. Acontece, por
circunstâncias da vida, por espírito de observação do mundo, por
instrução... De repente, dá-se um clique, surge uma lâmpada no cérebro e...
o mundo surge-nos sob uma outra forma. Tudo se toma claro, apercebemo-
nos que o mundo está construído com uma certa lógica. Tudo se encaixa —
o deus que se venera, os costumes que se cumprem, a linguagem que se
fala, a roupa que se veste, as leis que se estabeleceram, o sistema político, a
ideologia dos púlpitos, o ensino das escolas, o acesso ao poder sob
qualquer forma, a casa, a rua, as ideias que se vinculam, a posse dos filhos,
os bens patrimoniais, o sexo dominante, as verdades sagradas, os salários,
os empregos, a interpretação do passado... Nada fica de fora. Tudo gira à
volta de uma ideia mestra com uma cerca difícil de transpor.

O que distingue uma feminista duma não feminista é que a primeira vê


na outra uma irmã e acha que o que acontece a uma acontece a todas. Tem
uma ideia de coletivo. Quando uma mulher se vangloria: “Eu não sou
feminista”, significa que nada tem a ver com as outras, com ela está tudo
bem e se as outras sentem constrangimentos é culpa delas. Paula da Graça
deu o salto da sua individualidade e declara-se procuradora de todas, de um
sexo inteiro “zelosa”. Entre as mulheres, ela descobriu a Mulher.

Minhas Leitoras: Muitos anos há que vejo correr um papel impresso,


que se intitula Malícia das Mulheres, sem que até ao presente houvesse
uma que se dispusesse a contradizê-lo, com uma justa apologia da nossa
notória inocência. Pareceu-me iniquidade, que se fossem multiplicando à
nossa revelia, contra nós, tantas sentenças, quantas são aprovações que
aquele famoso Libelo acha entre as pessoas do povo; e por isso agora me
resolvo a contrariá-lo e reconvi-lo. Suponho que este arbítrio vos será tão
grato, quanto aquele papel vos será molesto. E que não deixareis de convir
que eu, como pessoa tão conjunta, e igualmente interessada, me rogue o
ofício de vossa procuradora...

A denotar um grande progresso, ela aplica o uso do nós:

— “Mas se só nos destinastes...

— “se nos limitais o gosto ao enfeite”...

— “se em nossas casas falamos é que temos que dizer”

— “eis aqui os destemperas com que sempre nos tratais”.

— “depois quebram-nos as costas” — como se uma pancada dada numa


mulher fosse sentida nas costas de todas. Quantas de nós, no século XXI,
sentem que quando se bate numa mulher se está a bater em todas? Porque
não se bate na Rosa nem na Maria, bate-se em alguém por ser mulher.
Sentir isto no séc. XVIII era já feminismo puro.

Os assuntos feministas versados neste livro são a maioria sobre situações


no casamento. Mas encontram-se outros, o que prova que a autora teve um
dique e se lhe iluminou o conjunto da civilização:

1º. A igualdade entre homens e mulheres. Apoia-se em “filósofos” que


diziam que as mulheres eram iguais.

2º. A não existência de equivalentes empregos.

3º. A riqueza e “gosto” de um reino eram dadas aos varões. Se o mesmo


fosse dado às mulheres, a riqueza seria distribuída de outra forma.

4º. O casamento era um “tirano estado”. Aconselha o celibato.

Sempre foi o mais perfeito

o estado de celibato.
Eu nunca a outro achei jeito.

Procedi bem no meu trato,

sempre vivi com Respeito.

5º. A opressão. Havia mulheres “mui oprimidas”.

6º. A interpretação desvirtuada da Bíblia, valorizando a culpa feminina e


ocultando a masculina.

7º. Só se falava dos heróis e não das heroínas [portanto, a ausência da


história das mulheres].

8º. A cultura. Dava-se relevo a quem maldizia as mulheres e não aos


autores que as defendiam. Não se imprimiam “doutos pareceres”.

9º. Para entreter as mulheres, destinaram-lhes os enfeites, retirando-lhes


todo o resto. E depois culpavam-nas ainda por isso.

10°. Os direitos das mulheres foram-lhes retirados pelos homens. Tenta


transpor a vontade de Deus para a vontade do homem.

11°. Agigantavam os defeitos femininos para esconder os seus. “Para


não falarmos nas suas [malícias] puseram as das mulheres a pregão por
essas ruas”.

12°. O assassínio de esposas 13°. Violência doméstica — “partem-nos as


costas”

Como se vê, 300 anos depois, ainda não resolvemos muitos dos
problemas que Paula da Graça aborda. Não há equivalentes empregos, não
se ensina nas escolas a História das Mulheres, a Bíblia continua a culpá-las
e elas ainda não podem ser sacerdotes. O mais grave é o assassínio de
esposas. Flagelo que continua no nosso tempo.
*

4 — O PRIMEIRO GRITO REVOLUCIONÁRIO?

António Salvado, um especialista da literatura do período barroco,


definiu o livro de Paula da Graça como «talvez o primeiro grito
revolucionário feminista da nossa literatura». Fê-lo em 1972, antes do 25
de Abril, o que toma também extraordinária esta definição. Como foi
publicado mais de sete décadas antes dos assim considerados, significa que
o livro de Paula da Graça talvez seja o primeiro grito revolucionário
feminista da literatura europeia, quiçá mundial.

António Salvado até diz que Paula da Graça fazia quintilhas com mestria
e só em Nicolau Tolentino «poderemos encontrar semelhante
desenvoltura». E António Salvado é uma voz autorizada. Licenciado em
Filologia Românica, «é um dos maiores poetas portugueses da atualidade»
e também «ensaísta das problemáticas literárias do período barroco».

António Salvado reuniu criações de poetisas portuguesas desde o século


XV, numa valiosa Antologia. Também incluiu o livro de Paula da Graça
como criação poética. Mas percebeu que não era apenas poesia: «Não
hesitamos em considerar o poema de Paula da Graça como amostra
importante (e para lá do seu valor meramente literário) de uma certa
mentalidade que, apesar de tudo, procurava reagir à tradicional e tão
arreigada miopia...». E vendo o que até então ainda ninguém tinha
percebido:

Estamos talvez perante o primeiro grito revolucionário feminista da


nossa literatura. Amostra satírica interessantíssima, a composição de
Paula da Graça vale não só pelo humor e graça constantes que lhe
suportam o arrazoado, não só pela dócil agressividade da sua substância,
mas ainda pela manifesta força expressiva (e de construção) de quem a
escreveu (...) Se tivermos em mente que apenas em Nicolau Tolentino
poderemos encontrar semelhante desenvoltura (e quintilhas tão bem
traçadas!), o nosso gesto [de inclusão do poema inteiro na Antologia]
ficará plenamente justificado.

O mais interessante deste livrinho, não sei se aconteceu o mesmo às


autoras estrangeiras referidas, é que, a autora usou de estratagemas para
enganar a censura. Em Portugal, era um verdadeiro calvário publicar um
livro. E então uma mulher que precisava, para além de passar por uma
multidão de censores, da autorização do pai ou do marido!... Quantas
mulheres teriam tentado e não conseguiram?

Os estratagemas que as mulheres usavam para passar na Censura da


inquisição, do Paço e da Academia, eram a sua identificação e as desculpas
que colocavam na introdução.

5 — MULHER DA ALTA NOBREZA

A autora apresenta-se como “assistente desta corte”. Pela sua instrução,


devia pertencer à alta nobreza.

Outra prova que atesta Paula da Graça pertencer à Nobreza são os seus
impressores. O primeiro era da “Religião de Malta”. O impressor das
edições de 1741 e 1743 era o próprio impressor da rainha, D. Maria Ana de
Áustria.

De notar que o seu primeiro impressor, Bernardo da Costa Carvalho, se


identifica na capa do seu livro como “impressor da Religião de Malta”, mas
noutra obra, de 1722, apresenta-se como “impressor do sereníssimo senhor
infante”. Possivelmente este “infante” será um filho do rei D. João V e da
rainha D. Maria Ana de Áustria, quem sabe se o futuro rei D. José, nascido
em 1714. Talvez impressor de livros para a sua educação.

Deitemos uma olhadela à Ordem Religioso-Militar de Malta.

Ordem de Malta fundou-se no séc. XI e diz-se que entrou em Portugal no


fim do governo de D. Teresa que lhe concedeu Leça do Balio. Depois esta
Ordem passou a chamar-se Ordem dos Hospitalários e mais tarde do Crato.
Para se perceber como os seus membros eram da nobreza, um prior dos
Hospitalários foi o pai de D. Nuno Álvares Pereira e houve príncipes
priores do Crato. «Não consta que os hospitalários tivessem mosteiros de
fieiras, mas tinham fratisas que usavam hábito e viviam em suas casas. O
primeiro mosteiro de fieiras hospitalário foi fundado em Évora por Isabel
Fernandes, em 1519 e mais tarde transferido para Estremoz pelo Infante D.
Luís, filho de D. Manuel I, quando este foi Prior do Crato». Um prior do
Crato foi candidato a rei, em 1580, quando venceu D. Filipe II de Espanha.
«Ordem de aristocratas, nunca teve entre os seus cavaleiros pessoas que
não pertencessem à fidalguia».

Convém acrescentar, como curiosidade, que São João de Jerusalém, o


fundador da Ordem dos Hospitalários e dos Cavaleiros de Malta, é hoje o
patrono da Maçonaria. É em seu nome que se abrem as lojas maçónicas.
«Por isso todas as lojas são abertas e dedicadas à sua homenagem e até hoje
nós somos lojas de S. João, o amor dele nos contagia e em sua homenagem
é que trabalhamos para socorrer os necessitados, como ele o fez, e levar a
luz do conhecimento e da verdade a toda a Humanidade».

“Levar a luz do conhecimento e da verdade a toda a Humanidade”


poderíamos considerar um dos objetivos do livro de Paula da Graça.

*
6 — QUEM ERA PAULA DA GRAÇA?

Começa aqui o primeiro mistério. O nome “Graça” não aparece nos


livros de Nobreza consultados na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional
ou na Biblioteca Pública do Porto.

E o nome Paula?

No ano de 1715, quando a obra foi publicada a primeira vez, decorria o


reinado de D. João V. Portanto, vamos procurar na Chancelaria de D. João
V se encontramos alguma Paula da Graça. Como a autora se diz já com
algum peso na idade, então ela poderia constar do reinado anterior — D.
Pedro II. Vamos também procurar nas Chancelarias deste reinado também.

Ao consultar, na Torre do Tombo, a Chancelaria de D. João V, nos


“Próprios”, que significa dados pelos nomes das pessoas, encontramos 62
Paulas. Nenhuma é da Graça.

Abramos agora em “Paula” na chancelaria de D. Pedro II. Encontramos


26, nenhuma Paula da Graça. Das 26 Paulas, procurei mais pormenores de
uma D. Paula (sem apelido mas dona) a quem foi concedido um padroado
de 25 000 reis de tença anual. Era uma espécie de pensão vitalícia.

Esta Dona Paula está registada como D. Paula Teotónia e era irmã duma
Antónia Maria. Ambas estudavam no convento de Santa Ana, em Lisboa.
Elas receberam a tença graças aos feitos de seu avô Manuel Correia de
Sousa, cavaleiro professo da Ordem de Santiago e oficial maior da Junta de
três Estados, tendo sido secretário dessa Junta durante 25 anos. Será esta?

Outra que consultei na Chancelaria foi uma D. Paula Iria Corte Real. Era
viúva de um governador da índia em 1702. Os Corte Reais desde o reinado
de D. Duarte que viviam na corte. Eram naturais de Tavira onde fica hoje a
Vila de Cabanas, terra que Paula da Graça indica como naturalidade. Só
que a vila de Cabanas não existia no séc. XVIII...

A favor dos Corte Reais, há o facto de um Diogo de Mendonça Corte


Real ter sido «diplomata e estadista, embaixador extraordinário e secretário
das mercês de D. Pedro II e secretário de D. João V». Tanto o pai como a
mãe eram «pessoas nobres e ligadas por parentesco a casas aristocráticas de
Portugal e de Espanha». Obteve o grau de Doutor na Universidade de
Coimbra e foi um juiz «considerado pela retidão e afabilidade de génio».
Rebelo da Silva diz que «a elevação a que subiu nunca o deslumbrou». E
acrescenta que «deveu Diogo de Mendonça à paixão de D. Pedro II pela
poesia os rápidos aumentos com que se elevou no reinado desse monarca».
«Foi um dos cinquenta académicos com que se constituiu a Academia Real
da História Portuguesa, instituída por D. João V», 1720.

Um seu filho também foi embaixador e também se doutorou na


Universidade de Coimbra.

Ora, Paula da Graça podia ter sido filha ou familiar deste Corte Real.
Seria “assistente desta corte”, teria herdado a “paixão pela poesia” e teria
sido educada sem ser deslumbrada pela “elevação a que subiu” seu pai. Daí
ela se interessar pelas mulheres duma maneira geral, incluindo as do povo.
No Prólogo da obra, ela escreveu: «falando com aqueles que devemos
respeitar por senhores, por Doutores e por Juízes, a quem não
compreendemos, porque só com os do povo galhofamos...».

Se fosse filha de Pedro Mendonça Corte Real, Doutores e Juízes seriam


seu pai e irmão. E teria realmente acesso a uma biblioteca com autores
consultados pela maior intelectualidade do tempo. E instrução com
professores particulares da corte.
Paula da Graça também podia ser aia da rainha. D. Maria Ana de
Áustria, segundo o Dicionário de Mulheres Notáveis, era muito culta e
«versada nas línguas latina, italiana, alemã, francesa e espanhola.
Interessava-se por assuntos de marinharia». Esta rainha foi regente do reino
por duas vezes. Foi ela que, numa das suas regências, elevou à posição
cimeira um dos políticos mais proeminentes de Portugal — o Marquês de
Pombal. Apesar de reger uma monarquia absoluta, dizia que «os reis são os
executores e os mais ilustres vassalos das leis do reino». As leis estariam
acima dos reis, e isso politicamente só se verificará mais de cem anos
depois, com a Constituição, tendo havido para a sua implantação uma
guerra civil entre dois seus trinetos.

Filha de gente culta e convivendo com tal rainha, não admira que Paula
da Graça nos surpreenda pela sua cultura e pioneirismo.

Mas voltamos ao apelido Graça. Seria nome próprio? Nome geográfico,


por ex. da freguesia da Graça? Um anagrama, em moda no século XVIII?
Ou seria um nome simbólico com um significado oculto como na
Maçonaria?

Quando andava nesta demanda atrás de uma mulher com um nome que
eu não identificava, dei de caras com um livrinho intitulado: Graça, o poder
da unidade e de reunião. O autor viveu entre 1800-1882. E um livro
religioso, mas a leitura desse opúsculo fez-me retirar estas frases
sugestivas: “a verdade nunca foi conhecida até que a graça veio”. “Por isso,
a graça é o poder ativo da verdade e o único capaz de a revelar”.

Será que, no início do séc. XVIII, Graça significava “poder de unidade”,

“revelação”, “poder ativo de reunião”? Será que a autora usou o nome


“graça” com um significado oculto, querendo reforçar a mensagem do seu
livro que é uma mulher, independentemente da sua classe social, instrução,
etc., ser igual às demais? Todas por uma e uma por todas, ideia subversiva,
nunca conseguida na História, mesmo 300 anos depois?

«Graça é também sinónimo de discernimento», diz uma Enciclopédia.


Fernando Pessoa considerava a Graça ou Revelação a 5ª qualidade
necessária para se entender o simbolismo. As outras são Simpatia, Intuição,
Inteligência e Compreensão. Roberto Bonarik, num portal da Maçonaria,
baseado num texto de Fernando Pessoa, diz que «seu conteúdo pode ser
aplicado aos símbolos das mais diversas origens, tanto maçónicas,
religiosas ou profanas».

Fernando Pessoa nos coloca a quinta que é também a última das


qualidades ou condições fundamentais para o entendimento e a
interpretação dos símbolos. Condição ou qualidade esta que, em sua
opinião, é a que possui uma maior e mais profunda dificuldade para a sua
definição e a sua completa compreensão. A Graça, que é esta quinta
condição, acaba possuindo uma das mais dispersas possibilidades
concretas de entendimento e assimilação imediata: «Direi talvez, falando a
uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito,
falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo
da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da
maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou
escrevendo».

“Graça” será realmente uma palavra simbólica, terá a ver com a


maçonaria, com qualquer significado que espera ser desvendado?

7 — NATURALIDADE — QUE SIGNIFICA?

No frontispício da obra, pode ler-se “natural da Villa de Cabanas”.


Ora viajemos em busca de tal Vila no séc. XVIII.

Mais uma vez, na Torre do Tombo, procurei nas Chancelarias de D.


Pedro II e de D. João V, mas nos “Comuns”, onde constam cargos e
localidades. Nada encontrei referente à Vila de Cabanas.

Procurei então nas enciclopédias, na Internet, nos Dicionários


Corográficos. Nada. A vila de Cabanas não existia no séc. XVIII. Hoje
existe uma vila de Cabanas, do concelho de Tavira, Algarve. Foi instituída
freguesia em 1997 e vila em 2001. Mas em 1715 era uma praia deserta. As
primeiras cabanas começaram a construir-se em 1732.

Com o nome “Cabanas”, existem algumas freguesias e lugares. Mas a


povoação que mais se aproxima de “Villa” parece ser Cabanas de Torres,
na Estremadura, comarca e concelho de Alenquer. O Diccionário
Chorográphico de Portugal Continental e Insular regista a tradição que diz
ter sido a localidade fundada no séc. XIII, por habitantes de Torres Vedras,
que fugiram de uma epidemia, levando à frente um prelado. Como
construíram cabanas, assim ficou o nome dessa povoação.

Mas o interessante é o que diz este autor: «Faz parte desta freguesia o
lugar de Paula» com serviço de correios. Fala neste lugar duas vezes e não
refere mais nenhum lugar, o que significa que devia ser o mais importante.

Pinho Leal, dizendo que a localidade dista de Lisboa 60 kms, afirma:


«No lugar da Paula, há uma capela dedicada a Nossa Senhora do Ó».

Lugar da Paula em Cabanas, concelho de Alenquer! Terá isto algum


significado?

Nenhum dos autores assinalados, nem a Grande Enciclopédia Portuguesa


e Brasileira, referem famílias importantes, nobres ou castelos, na dita
povoação de Cabanas de Torres.
“Cabanas” chamavam os membros da Carbonária às suas oficinas, em
memória dos primeiros se reunirem em cabanas de carvoeiros. Mas só
nasceu no séc. XIX. Ou será uma herdade a que os Romanos chamavam
“vila”? Seria algum solar em Lisboa?

8 — DADOS OCULTOS — S. TOMÁS DE AQUINO

Paula da Graça diz no início da obra que o livro é para divertir. E


justifica-se dizendo com S. Tomás de Aquino: «A jocosidade parece que
não excede os limites até onde a licencia S. Tomás, 2.2. quaest. 108. art.4
nem chega aos daquela, que se contem no papel, que impugnamos...
servindo para diversão do povo sem se opor à observância do honesto».

Como não encontrei jocosidade alguma na obra, desconfiei e procurei a


citação.

A obra de S. Tomás de Aquino citada é a sua grandiosa Summa


Theologica. É um livro imenso, maior que os 72 livros da Bíblia. Para
chegar ao 2.2. questão 108, artigo 4º, precisei da ajuda de colaboradores —
do Professor José Machado da UTAD, da tradução de Henrique Ferreira, de
funcionários da Biblioteca do Porto. Acabei por ver a obra nos reservados
da Biblioteca Nacional e foi uma sensação maravilhosa — era um
incumábulo de 1472. Um incumábulo data da origem da imprensa, com
algumas letras manuscritas a cores. Livro lindíssimo, até se estremece ao
tocar-lhe.

Tal como suspeitava, o art. 4º da questão 108 da 2. 2. não trata a


jocosidade.

Trata da vingança, mas de uma maneira profunda, filosófica, tipo justiça.


O pensamento de Tomás de Aquino era complexo, difícil de penetrar. O
artigo intitula-se “Quando deve ser exercida a vingança naqueles que
pecaram involuntariamente”.

O artigo verdadeiro faz pensar que Paula da Graça está a enviar ao futuro
uma mensagem codificada. Seguindo S. Tomás, ela escreveu usando um
direito de legítima defesa, uma “vingança” permitida pelo “julgamento
humano”. Diz ela no prólogo:

Também suponho que os homens não estranharão que usemos daquele


direito natural que tal lícita faz a própria defesa, quando se guarda a
moderação que a faz inculpada, porque nisto cuidei tanto que se os firo é
só com a mesma ação com que vos defendo [às mulheres].

Ao se defender, não aceita, não dá a outra face, não se justifica.


Responde na mesma moeda «se os firo é só com a mesma ação com que
vos defendo». Toma-se justiceira. S. Tomás opina que é licito a vingança
naqueles que pecaram involuntariamente. Que é o caso do autor de Malícia
das Mulheres, que não pecou voluntariamente contra Paula da Graça. No
ponto 5., S. Tomás conta o caso de um barco em apuros em que ia Pedro e
Judas. “Pedro não participava do pecado de Judas”, mas estava em apuros
juntamente. “Logo, uma pessoa pode ser punida sem o ter merecido”. No
caso do livro de Paula, embora alguns individualmente não o mereçam, ela
vinga-se de todos os homens, pois “juntamente” eles representam um bloco
da sociedade, estão “no mesmo barco”.

S. Tomás continua: «Noutro aspeto, pode-se considerar a pena como


medicina, não só sanativa dos pecados cometidos, mas preventiva do
pecado futuro e promotora do bem. E assim, uma pessoa pode ser castigada
sem culpa, mas nunca sem uma causa». O julgamento humano pode assim
castigar por uma causa, neste caso a ofensa contra as mulheres, tendo em
vista a sua defesa, «porque o bem de um depende do bem de outros».
Refere também o pecado por “imitação”, o pecado de um é transmitido a
outro que o imita. A vingança também é lícita quando existe «uma espécie
de consenso ou conivência, tal como os bons são punidos junto com os
maus por não terem corrigido esses pecados». Também justifica o castigo
nos descendentes. «Ele (Deus) não se vinga de imediato mas espera, para
que ao menos os descendentes se corrijam; se, pelo contrário, a maldade
aumentar, toma-se quase necessário infligir o castigo».

Repare-se como esta frase de S. Tomás se aplica a este livro:

Finalmente, para conservar a unidade da sociedade humana, onde um


deve ser solícito pelo outro para que não peque: então, o castigo de um
afeta todos, como se todos os homens fossem um único corpo.

Se bem entendi, neste longo artigo de S. Tomás de Aquino, Paula da


Graça retirou justificações para o seu “grito” de justiceira.

1º. Dirigiu-se aos homens no coletivo pelo pecado de um — a escrita do


livro.

2º. Ela tinha direito ao “julgamento humano” porque havia uma causa da
qual todas dependiam. As mulheres eram um corpo, ela tomou-se
procuradora de todas, porque “um deve ser solícito pelo outro”.

3º. Os homens eram culpados por serem “coniventes”, achavam bem o


pecado do antecessor.

4º. Imitavam o autor, fazendo o que ele escrevera.

5º. Não emendavam o mal, ainda aumentavam a maldade.

6º. Todos eles estavam no “mesmo barco”, beneficiando dessas ideias.

7º. A vingança justificava-se como uma “medicina” — sarava pecados


cometidos e prevenia o futuro.
8º. Por fim, para conservar a unidade da sociedade humana, a vingança
era necessária para promover a “unidade das mulheres” e o bem geral.

Por aqui se vê a profundidade do pensamento da autora. Mas também


deve estar aqui uma mensagem oculta que ela escondeu sob erros para que
o futuro a desvendasse. Fomos capazes? Não sei. Mas a verdade é que se
há coisa subversiva e perigosa é a unidade de um grupo oprimido. Nada no
mundo mete mais medo sobretudo a quem detém o poder e os privilégios.
A Inquisição durou séculos porque nunca houve uma união de todos contra
ela. As mulheres ainda não têm a igualdade, porque não seguiram o
conselho de Paula da Graça — não conseguiram unir-se num corpo, sem
distinções de coisa alguma.

Os 20 censores nunca deixariam passar explicitamente uma mensagem


tão revolucionária. Paula da Graça serviu-se de S. Tomás de Aquino para
transmitir o resto da mensagem que não podia escrever. Nisso foi genial.

Vamos supor que as mulheres do séc. XVIII se uniam e reclamavam


metade da riqueza da nação, metade dos direitos políticos e sociais,
equivalentes empregos, o fim dos dotes, exigiam a pena de morte para
quem matava as esposas, invadiam as universidades e exigiam frequentá-
las e ensino de matérias que as incluíssem, invadiam as igrejas e
reclamavam contra a culpa e sujeição da mulher na Bíblia... O mundo
virava do avesso. Não ficava pedra sobre pedra.

É tempo de voltar a Fernando Pessoa. Graça é a qualidade que desvenda


os símbolos. Para este autor esotérico, Graça é o mesmo que revelação e o
mesmo que conhecimento. Só o conhecimento levaria a S. Tomás de
Aquino. Darby intitulou um livro: “Graça, o poder de unidade e reunião”.

“O poder de unidade e de reunião” — é bem capaz de ser este o


significado do apelido Graça, a tal palavra que “desvenda os símbolos” e
que é sinónimo de discernimento. «Através da pena, a igualdade da justiça
é restaurada» — diz S. Tomás.

Em prol de uma unidade, a das mulheres, da restauração da “igualdade


da justiça”, eis a mensagem da autora, tendo em vista promover o bem no
futuro. Por acaso o feminismo é outra coisa?

Naturalmente, também poderemos ser levados a pensar que “Paula da


Graça” era pseudónimo de um homem. Mas não. Não são apenas as
palavras, há um sentir de mulher. O dizer coisas nas entrelinhas, pelo meio,
os enganos, os estratagemas, o ver no casamento um “tirano estado”, tudo
encaixa na caraterística astúcia feminina. Como só uma mente feminina
poderia comparar a defesa de meia humanidade a uma vingança justiceira.
Depois há um sentir intemporal, levando a que 300 anos depois o que ela
defende esteja atual e ainda não resolvido.

Paula da Graça soltou o seu grito revolucionário há 300 anos. Talvez


ainda hoje seja avançada demais. Por ter enganado vinte censores, será um
dia uma heroína na luta pelas liberdades.
IV PARTE

AS GLORIOSAS DAS MÁQUINAS VOADORAS


CAPÍTULO 1

A PRIMEIRA GLORIOSA VOADORA EM PORTUGAL

A primeira criatura portuguesa a voar foi um macaco. As mulheres


interessaram-se desde a primeira hora, sendo a França a pátria das
primeiras gloriosas das máquinas voadoras — a primeira aeronauta e a
primeira a morrer vítima do sonho de voar. Também foi uma francesa a
primeira a percorrer o céu azul português, mas com o apoio e na presença
da mais importante mulher portuguesa de então — a nossa rainha D. Maria
II.

Portugal está ligado à invenção da aeronáutica. O Padre Bartolomeu de


Gusmão foi o inventor da primeira máquina mundial que se elevou do solo.
Subiu em 8 de Agosto de 1709, na presença do rei D. João V. Portugal
comemorou, em 1989, os 300 anos desse feito que nos reporta ao mito de
ícaro.

O padre Bartolomeu não pôs a voar a sua famosa “passarola” que ele,
por graça, se lembrou de desenhar. O que realmente subiu foi um globo,
um balão com ar quente, feito de arame, papel grosso e madeira fina. Era
uma espécie de balão de S. João.

Anos depois, a França reinventou o aeróstato. Os primeiros seres a voar


não eram humanos, a lembrar-nos que a cadela Laica foi a primeira
astronauta — desta vez foram um gato, um pato e um carneiro, isto em 19
de Setembro de 1783. Os animais, assustadíssimos, sobreviveram,
provando que se podia respirar lá no alto (Rómulo de Carvalho, A História
dos Balões).

O primeiro humano a voar foi um francês, em 21 de Novembro de 1783.


As mulheres, embora sem direitos, e consideradas inferiores da Bíblia à
Lei, reivindicaram o direito de também voar. Em 1784, sete meses depois
do primeiro homem, antes cinco anos da Revolução Francesa, Madame
Thible demonstrou que as mulheres também gostavam de asas. Em
Portugal, nesse mesmo ano, no Palácio da Ajuda, perante o rei, o Padre
João Faustino pôs balões a voar. Num destes, subiu a primeira criatura
portuguesa — um macaco.

Foi pena Portugal não ter continuado. Quase cem anos depois é que um
português voou (1875), voando a primeira gloriosa portuguesa em 1884.

Como em todas as invenções, há quem seja sacrificado no início, quem


perca a vida, é o preço da inovação. E, tal como as descobertas marítimas
mataram mulheres, assim como em viagens à Lua, também os balões
fizeram vítimas femininas. A primeira foi Mme. Blanchard, viúva do
aeronauta que atravessou pela primeira vez o Canal da Mancha. Aconteceu
em Paris, numa festa noturna. João Maria Jalles, in Aerostação (p. 59),
descreve esse acidente ocorrido em 1888:

Mme. Blanchard costumava subir no seu balão, levando na parte


inferior da barquinha uma porção de fogo preso, que ardia no ar e
produzia um magnífico efeito; no dia 6 de Julho de 1819, tendo-se elevado
nos ares do mesmo modo, o fogo comunicou-se-lhe ao balão e a infeliz
voadora veio a cair sobre o telhado de umas casas, donde foi cuspida ao
meio da rua, morrendo ali imediatamente.

2 — A PRIMEIRA AERONAUTA EM PORTUGAL

Foi também uma francesa a elevar-se primeiro no céu português.


Chamava-se Bertrande Senges, era casada e tinha 22 anos. Aconteceu em 7
de Junho de 1850. O seu balão chamava-se “Zodíaco”. A Revista Popular
da época diz que levava no cimo a bandeira francesa e no cesto a
portuguesa. Ela vestiu-se de cetim preto (de saias, claro) e elevou-se ao
som de música e aplausos do público. Público que pagou bilhete, no
Campo de Santana, em Lisboa, para a ver subir. É descrita como sendo de
«pequena estatura, corpo esbelto e bem talhado, cabelo loiro dourado, olhar
penetrante e rápido».

A revista Aeronáutica, de Maio/Junho 1913, fornece pormenores dessa


viagem. Realizou-se na presença da rainha D. Maria II, do marido, corpo
diplomático, corte e... «com a assistência de 100.000 pessoas, que se viam
pelas alturas da cidade e por todas as casas». «Junto à tribuna real, fazia a
guarda de honra uma força de granadeiros».

Ela subiu, com o balão ainda preso por cordas, até à altura do camarote
real, cumprimentou a Rainha e lançou flores e versos. Eram 4.10 h da tarde.

Na obra Os Balões em Portugal, João Maria Jalles transcreve as próprias


palavras de Bertrand Senges. Deve ser esta a primeira descrição feminina
da Terra vista do ar, do “céu”:

Quando me elevei sobre a praça e retumbaram nos meus ouvidos as


palmas e aplausos, que me dirigia um povo a que estou sumamente
agradecida, apossou-se de mim um entusiasmo tão frenético que tocava o
ponto do delírio. Via a meus pés o mundo de que eu saía, sobranceiro o
espaço que ia tentar fender, e pesava-me não poder rompê-lo até ao
infinito.

O globo subia tão tranquila e sossegadamente que não fazia um único


movimento. Conservei-me todo o tempo de pé no cesto. (...) De um lado
avistava terras até as perder de vista, cortadas pelo Tejo, que à imitação
de uma fita de prata da largura de quatro dedos, serpenteava por entre um
chão de diferentes matizes, em que predominava o verde; do outro o
Oceano, com as suas águas azuladas, dava um realce majestoso a este
espetáculo.

Ela continuou a ver a terra do espaço, comendo frango e bebendo vinho.


Depois de algumas peripécias com o balão, quis descer, mas a âncora não
encontrou em que prender. Pediu ajuda, mas as pessoas ao verem, em 1850,
uma mulher no espaço, «fugiram como possuídas de terror, julgando
sobrenatural a minha aparição».

Noutra descrição, conta-se que um velho terá gritado:

— Fujam que é o Diabo que nos vem trazer a peste!

Ajudaram-na na Moita, chamaram um médico porque estava ferida e


voltou a cavalo para Lisboa. Ganhou 120 mil réis, mas gastou 80 mil com
os estragos do balão e perdeu um termómetro e um barómetro.

Voltou a voar 16 dias depois, mas a viagem não correu tão bem. Mesmo
assim, teve uma receção verdadeiramente triunfal. E, à noite, no Teatro D.
Maria, foi também festejada e aplaudida pela coragem e arrojo. Ela
suplantou o deus ícaro, que queimou as asas ao se aproximar do Sol. Quer
dizer, ela não queimou as asas mas as amarras que prendiam as mulheres
não só ao chão, mas ao interior das casas, a leis, a costumes e à estupidez.
Vivia-se num tempo de exclusão das mulheres do espaço público, quanto
mais voar pelos ares como pássaros em liberdade!

Apoiar esta primeira voadora deve ter sido das iniciativas mais arrojadas
da rainha D. Maria II.
CAPÍTULO II

IVA GUERREIRO: A PRIMEIRA PORTUGUESA VOADORA

Chamava-se Iva Ruth Guerreiro e teve a honra de ser a primeira gloriosa


portuguesa das máquinas voadoras. Curiosamente, o seu glorioso feito
ocorreu na também gloriosa cidade do Porto. Ela subiu aos céus em 23 de
março de 1884, precisamente cem anos depois da primeira voadora
mundial (M.me Thible, em 1784). Reinava então o rei D. Luís, filho de D.
Maria II, que apoiou a primeira gloriosa a voar em céu português, em 1850.

Iva Ruth Guerreiro era atriz de teatro. Só podia ser, porque na altura as
atrizes eram as mulheres que mais enfrentavam as convenções do mundo.

Iva Guerreiro subiu dentro do balão “O Portuense”, dos jardins do


Palácio de Cristal, balão que era pilotado pelo francês Émilien Castanet.

Noventa anos antes, as francesas também quiseram voar em balões


pilotados por homens, mas foram proibidas. A França, apesar de ter sido
um país de ideias inovadoras, via imoralidade nesses voos. Assim, na
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, lê-se:

Uma nota curiosa acerca das primeiras ascensões em balão é o facto da


polícia francesa ter proibido, em 1798, o aeronauta Garnerin de subir com
uma passageira, porque estando a polícia encarregada da zelar os bons
costumes, não podia autorizar a presença na barquinha de duas pessoas
de sexo diferente.

Felizmente a polícia do Porto, em 1884, não considerou que Iva Rute,


viajando com um piloto francês, pusesse em causa “os bons costumes”!...
A viagem foi anunciada nos jornais como o preço das entradas no
Palácio. Uma entrada geral custava 200 réis e as crianças, até aos dez anos,
pagavam metade — 100 réis.

Essa ascensão foi dedicada “A Real Associação Humanitária dos


intrépidos e arrojados bombeiros voluntários do Porto”.

O Jornal O Primeiro de Janeiro, do dia 23, diz que a subida de Iva seria
«um facto digno de assinalar-se e que por longo tempo será cantado. Que
as brisas a tratem bem, minha senhora! Et bonne chance!». [Na época era
costume utilizar aqui e ali expressões em francês como hoje se usa em
inglês, manias provincianas lusas]

No dia 25 de março, o mesmo jornal descreveu o dia da viagem como


um belo domingo. «A Primavera fazia a sua entrada triunfal na cidade, a
luz gladiava-se brilhantemente pelos pórticos azuis e o sol rolava pelos
espaços a sua opulentíssima equipagem de gala».

I — A ASCENSÃO

A subida do balão estava marcada para as duas horas da tarde, mas só


aconteceu às 3 horas e 45 minutos. «À alameda central do Palácio afluiu
muita gente como aos arredores do parque e a vários pontos da cidade. O
globo do aeróstato ergue-se ondulando preso à barquinha» — jornal O
Primeiro de Janeiro, dia 25. A “arrojada touriste” é descrita como sendo
«magra, alta e simpática». O balão…

desprendera-se da terra com uma certa dificuldade, por fim


intumescera-se orgulhosamente e partira rompendo o ar transparente e
azul. A intrépida viajante saudava do alto o público, enquanto a banda
executava a marcha dos Volontaires, d’Olivier Métra. Castanet arrojava
punhados de cromos e anúncios da Chapelaria Universal... e da
Cervejaria dos Srs. Santos & Azevedo, que desabavam do rebordo da
cesta, dispersando-se como asas e brilhando à luz do belo sol.

Quanto ao semanário A Vida Moderna, dia 29, informa que a atriz «na
ocasião da partida, saltou para a barquinha do balão com grande presença
de espírito... Logo que o balão partiu, a gentil atriz saudou a imensa
multidão que admirava o seu sangue-frio, continuando a saudar o público
até já mal se divisar o vulto, espalhando ao mesmo tempo programas».

Por sua vez, O Século, dia 25, diz que «o balão elevou-se tranquilamente
na serenidade do azul à altura talvez de 300 metros».

Quanto a O Comércio do Porto, dia 25 (no dia 24 não houve jornais),


informa que, tal como era habitual, enviaram para fora da barra, de
prevenção, o rebocador “Victória”, levando grande número de curiosos a
bordo. Foi um acontecimento que moveu a cidade.

2 — O VESTUÁRIO DA PRIMEIRA GLORIOSA

São diversas as informações acerca do traje que Iva Guerreiro usou nesse
dia glorioso. Mas todos referem que ela se vestiu de homem, o que só por si
era um arrojo nesse tempo. É curioso que o jornal O Século lhe chama
“traje de fantasia”.

O Comércio do Porto — «trajando um elegante vestuário masculino da


época do Diretório e ao elevar-se saudou graciosamente com o seu chapéu
de seda de abas largas, a grande multidão...»

O Primeiro de Janeiro — «Vestia calças, colete e casaco bordado, bota


alta de verniz e chapéu de seda à Désmoulins». (Désmoulins foi uma
heroína da Revolução Francesa).
A Vida Moderna — «trajando um vestuário de homem, o que lhe dava
bastante graça».

O Século — «apresentou-se com trajo de fantasia, mostrando-se muito


animada, mesmo alegre, de se deixar ir nas asas da viração».

História da Aviação, da TAP — «Usa o traje que envergava na opereta


“A filha do Tambor-Mor”, encenada pelo Teatro do Príncipe Real».

Para verem a primeira gloriosa portuguesa, numa ascensão em aeróstato,


pagaram entrada, no Palácio de Cristal, 2.919 adultos e 323 crianças.

3 — A RECEÇÃO À PRIMEIRA VOADORA

Os gloriosos foram recebidos em festa em Gaia e no Porto. «O aeróstato,


subindo, em vez de inclinar-se ao mar, como das outras vezes, seguiu para
Leste e obliquou pouco depois sobre o sul, indo cair no Lugar da Rasa, em
Vila Nova de Gaia» — Jornal A Discussão, de 25 de Março.

Neste facto, residia ura dos problemas do balão — os pilotos não


controlavam a sua direção. O vento é que mandava como no tempo das
caravelas. Por isso, nesse dia 23 de março de 1884, colocaram o rebocador
“Victória”, no Atlântico, para proteger os aeronautas. É que, nas ascensões
anteriores de Castanet, o aeróstato tomou a direção do mar.

Desta vez, o balão, tendo partido do Palácio de Cristal, preferiu dirigir-se


a Campanhã. Ainda subiu bastante. A máxima altura na ascensão foi de 1
100 metros.

E lá foi ele cair em Vila Nova de Gala, pelas quatro e um quarto da


tarde. Como levantou voo às 15h e 45 min., segundo O Primeiro de Janeiro,
significa que a primeira gloriosa portuguesa das máquinas voadoras
permaneceu nos ares meia hora.

Os jornalistas não se lembraram de a entrevistar, de colher as suas


sensações. Dizem-nos apenas que Iva Guerreiro era magra e alta, «uma
galante e arrojada loira», uma bela rapariga, «já conhecida do nosso
público, porque fez parte do elenco de uma das Companhias de Variedades
e porque também foi cantada em vários metros por um bom rapaz nosso
amigo...» — Jornal A Discussão.

Foi então cair em Vila Nova de Gaia. Mas em que sítio? O Comércio do
Porto diz que «o aeróstato subiu a grande altura e depois de pairar nos ares
por alguns minutos, tomou a direção de Santo Ovídio... caindo sem
acidente no sítio da Telheira, próximo da Rasa». O Primeiro de Janeiro (na
altura não existia Jornal de Notícias, porque de 1870 a 1888 fundiu-se com
o “Janeiro”) diz que o balão caiu «no campo de Campelles, sítio da
Telheira, Lugar da Serra», tendo sido os aeronautas «muito obsequiados
pelo proprietário do campo». O nome do proprietário era Manuel Joaquim.

Ao cair, Iva Ruth feriu-se num joelho. Naturalmente que ver descer um
aeróstato era algo pouco comum. Julgo, no entanto, que ninguém pensou
que eram figuras sobrenaturais, como no caso da Madame Bertrande
Senges, em 1850.

Vendo a direção em que ia efetuar a queda, muitos cavalheiros se


dirigiram para aquele sítio, em carros ou a cavalo, na intenção de
aguardarem a descida dos aeronautas.

Quem eram esses cavalheiros? O Comércio do Porto fornece-nos o nome


de diversos.
Na ocasião da descida, apareceram naquele local os senhores Alfredo
Lucas, Adolfo Felgueiras, António Teixeira de Sá, António Ferreira
Romariz, Manuel de Oliveira Romariz, António Pereira Russo, Manoel de
Sousa Maia, António Rodrigues, João Pinto de Querido, João Pereira
Reto, Joaquim Pereira Ataíde, Tomás Lopes e António Francisco Leite,
que todos prestaram bons serviços ao aeronauta, evitando que o muito
povo que ali se juntou causasse estragos no balão.

Após a descida, os dois navegadores aéreos foram recebidos numa casa


da localidade e ali tratados muito atenciosamente pelo proprietário, João
Nunes de Almeida, «que ofereceu aos dois excursionistas um leve mas
delicado copo de água» — jornal A Discussão.

As mulheres também não ficaram de fora. Segundo o Dez de Março, até


foram oradoras em público:

Nessa ocasião foi recitada uma poesia de congratulação aos aeronautas


por uma menina brasileira residente na localidade. Uma camponesa
daqueles sítios abeirou-se igualmente deles e proferiu algumas palavras de
entusiasmo e admiração.

Às 18 horas, regressaram ao Porto. Como? Há quem diga que vieram


acompanhados de inúmeras pessoas que davam vivas. O Comércio do
Porto diz que regressaram «em trem, acompanhados pelos Srs. Luís Viana
e Lourenço Magalhães. Na Ribeira, aguardava a passagem dos aeronautas
muito povo».

Quanto ao Primeiro de Janeiro, diz que vieram «para a cidade num trem
que acompanhara a direção do balão e o esperava precisamente no lugar em
que ele veio cair».
No Porto, Castanet estava hospedado no Hotel Águia D’Ouro. Iva Ruth
acompanhou-o a esse hotel, assomou à janela do prédio e foi saudada por
diferentes grupos.

Em seguida, ofereceram à primeira voadora e a Castanet um jantar no


restaurante Camanho.

À noite, a receção continuou. «O Janeiro» diz que «a simpática atriz


assistiu, num camarote de primeira ordem, ao espetáculo do teatro
“Príncipe Real”. Mas o jornal O Dez de Março diz que foi no “S. João”. Aí,
«onde se representará a revista. “À vol d’oiseau”, recitará a Sra. Iva
Guerreiro uma poesia intitulada “O que é o céu?” e o capitão Castanet fará
vários exercícios ginásticos».

O que é o céu? Em 1884 era o espaço azul por cima das cabeças, mas era
assim que se começava — pela poesia, pela inovação, pelo arrojo. E hoje,
cerca de 130 anos depois, quem sabe realmente o que é o céu? Ainda
estamos a descobrir o que existe realmente no espaço, na imensidão das
estrelas, nesse universo infinito a que continuamos a chamar céu.
CAPÍTULO III

AS PRIMEIRAS PARAQUEDISTAS

Na mesma altura em que um português voou, pela primeira vez, já uma


mulher (francesa) descia em paraquedas no espaço nacional. Chamava-se
Louise Poitevin e aconteceu em 1857. A primeira paraquedista portuguesa,
que é também a primeira ibérica, só «desceu» cem anos depois — Isabel
Rilvas.

No campo das máquinas voadoras, as francesas foram incontestáveis


pioneiras. Não só no seu país, mas mostrando o seu arrojo por toda a
Europa. Era a autonomia feminina que começava, era o demonstrar que as
mulheres podiam fazer coisas tão arriscadas como os homens.

No Verão de 1857, chegou a Portugal um casal francês de aeronautas


que irá espantar a pacata e conservadora gente portuguesa. Numa época em
que os «sábios» diziam que o «avião» era impossível, porque era mais
pesado que o ar, o casal Poitevin subia nos ares, não só dentro de
barquinhas de balões, mas também em cima de burros!

Em Lisboa, faziam as suas ascensões num campo de touros, o Campo de


Santana. No Porto, ascendiam do “Tivoli Portuense” e pagava-se bilhete
para os ver subir, que custava 300 réis.

Segundo Dinis Ferreira, in Aeronáutica Portuguesa, Louise Poitevin,


nesse Verão de 1857, começou as suas proezas no Porto, tendo ido depois
para Lisboa e Coimbra. No Porto, no dia 2 de Agosto, saiu do Tivoli e
desceu em Gaia. No dia «23 de Agosto, com partida do mesmo local,
montada num burro preso à barquinha», fez a sua «descensão no lugarejo
do Areinho, com grande pasmo e alvoroço dos seus habitantes».
Não era caso para menos! Imaginem há 155 anos a gente de Gaia (às
tantas sem ter ouvido falar desses aeronautas) a ver descer do céu uma
mulher montada num burro!

Mas foi em Lisboa que Louise realizou o feito que a deixou na história
da aviação portuguesa. Aí, no dia 16 de Setembro, desceu em paraquedas,
tomando-se a primeira paraquedista em céu português. O balão era pilotado
pelo marido, Eugene. E, nesse dia, deram «boleia» ao cavaleiro
tauromáquico D. João de Menezes, que foi, portanto, o primeiro português
a viajar pelo ar.

Mme. Poitevin abandonou o balão, em paraquedas, cerca de 800 m de


altura, e caiu em Cacilhas. O marido e o toureiro desceram em plena noite
na povoação de Sarilhos Pequenos.

Louise Poitevin nasceu em 1820. Em 1857 tinha, portanto, 37 anos.


Segundo Dinis Ferreira, quando desceu em Portugal, «já tinha no seu ativo
mais da meio milhar de ascensões». E não parou no nosso país: «Exerceu a
sua arriscada profissão até aos 55 anos de idade». Apesar desses voos
todos, morreu de velha, aos 88 anos.

Em 1913, a revista Aeronáutica dizia que a Madame Poitevin se devia a


descida mais lenta de que havia memória. «A experiência em que até hoje
se tem conseguido, ao que se julga, menos velocidade de descida de um
paraquedas, foi a realizada por Mme. Poitevin, que, segundo parece, gastou
43 minutos para descer 1 800 m, o que dá a velocidade aproximada de 0,7
m por segundo».

O paraquedas parece ter sido algo que amedrontou as portuguesas.


Pilotaram primeiro aviões, mas foram adiando o paraquedismo. Assim, só
em 1956, em 4 de Julho, Isabel Manuela Teixeira Bandeira de Melo, da
família Rilvas, conseguiu o diploma de paraquedista, em França, no Centro
Nacional de Biscarosse. Aconteceu tarde, mas Isabel Rilvas é realmente um
espanto na aviação, uma heroína gloriosa. A revista Marie Claire, Abril de
1989, diz que ela foi a única pessoa que em Portugal conseguiu o «brevet»
de voadora de balões, em 1981, nos EUA. Aos 19 anos (1954), tinha
«brevet» de piloto particular. Em 1955, «brevet» de planador. Em 1956,
não só era paraquedista de 1 ° grau como instrutora. Ela foi não só a
segunda mulher-piloto de planadores, a primeira pilota-acrobata da
Península, como a primeira paraquedista civil da mesma Península Ibérica.
E um currículo de invejar! Só não foi enfermeira paraquedista na guerra
colonial (apesar de ter também o curso de enfermeira militar), pelo
impedimento de ser casada!

Foi também uma lutadora pelo paraquedismo civil. A História da


Aviação, da TAP, transcreve estas suas palavras:

Sempre era preciso fazer o tal passo em frente. Eis-me em pleno céu, a
descer a uns 180 km por hora, até que o pára-quedas se abriu
completamente! Tudo quanto diga é pouco! O contraste extraordinário
entre a queda livre vertiginosa e a suavidade da descida com o páraquedas
aberto! A beleza sem fim das cúpulas brancas do nosso páraquedas que o
sol torna duma luminosidade admirável, projetada sobre um fundo
transparente de céu azul! Mas nem tudo é meditação.

Há que trabalhar!

E trabalhou. Inscreveu-se num curso de enfermagem e, juntamente com


Augusta Marques, em 1957, na sua qualidade de Instrutora Geral, na
Defesa Civil do Território, planeia o paraquedismo socorrista, cuja
atividade não se virá a concretizar, apesar das adesões de Maria José
Veloso, Maria Solange Valente e Maria Gabriela Teixeira.
Seria apenas na ocasião da Guerra do Ultramar que muitas portuguesas
se irão distinguir no paraquedismo, como enfermeiras. E também irão
morrer. Numa altura em que a tropa era só para homens, aqui ficam os
meus respeitos a Maria Celeste da Costa que pereceu em Bissalanca, em
1973.
CAPÍTULO IV

LOURDES SÁ TEIXEIRA: A PRIMEIRA PILOTA

Pilota é uma palavra que ainda não soa bem, pois convencionou-se que
pilotar aviões era tarefa masculina. Assim, quando Portugal viu a primeira
mulher a obter um brevet, que foi em 1928, ficou sem saber como a
designar. Uns chamaram-lhe «a primeira aviadora», outros «a primeira
mulher-piloto».

No estrangeiro, mal se construíram aviões, «mais pesados que o ar»,


logo as mulheres quiseram pilotá-los. Dado o pioneirismo das francesas na
aviação, não admira que Mme Peltier fosse a primeira pilota mundial.

Outras lhe seguiram as pisadas. E havia tantas aviadoras, no princípio do


século XX, em França, que até se organizou a taça Fémina, destinada a
recompensar aquelas que realizassem o maior voo em distância. Em 1910,
mademoiselle Marvingt ganhou esse troféu, percorrendo 42 km pelos ares
em 52 minutos.

Em 1911, pela primeira vez uma mulher se ofereceu para servir na


Aviação Militar. Foi a princesa mssa Glakhowska, que se ofereceu ao
governo italiano, durante a guerra da Tripolitânia. Foi recusada — Revista
do Ar, 1939, Dezembro.

No espaço português, foi mais uma vez uma francesa, Sofíe Driancourt,
a primeira a pilotar um avião. Aconteceu em 1913, tendo efetuado quatro
voos em Estremoz. E, nessa data, não concorreu a um certame
internacional, em Lisboa, porque — pasme-se! — lhe roubaram uma das
rodas do aparelho!

*
1 — A PIONEIRA FURA LEIS

Foi preciso chegar o ano de 1927 para uma portuguesa se aventurar a


voar, como as andorinhas. Chamava-se Maria de Lourdes Braga de Sá
Teixeira. Foi uma verdadeira heroína nacional. Os regulamentos para
pilotar aviões foram elaborados, naturalmente, para homens. Mas, tal como
em 1911 Carolina Beatriz Ângelo descobriu uma brecha na lei e conseguiu
votar, 22 anos antes das outras portuguesas, também Lourdes Teixeira se
inscreveu, na Escola Militar de Aeronáutica, em Sintra, «ao abrigo duma
disposição especial em vigor no 170 seu Regulamento». Não espanta que
esta brecha depois fosse retirada, tal como aconteceu muitas vezes na
história das mulheres — elas encontraram um buraco, furaram, mas logo
trataram de tapar o buraco. (Com Carolina Beatriz Ângelo também os
republicanos se apressaram a esclarecer que o voto era para o sexo
masculino, em 1913. Acabou por ser Salazar a conceder a algumas o direito
ao sufrágio em 1931, mas, como nesse ano não houve eleições, só votaram
algumas portuguesas a primeira vez em 1933. O tapume do buraco ainda
durou vinte anos!)

Graças à brecha no regulamento da Escola Militar de Aeronáutica, Maria


de Lourdes Braga Teixeira frequentou o curso durante um ano e conseguiu
o brevet em 6 de Dezembro de 1928. Contudo, fez provas durante os dias 5
e 6, tendo os jornais noticiado nos dois dias.

Os jornalistas e autores que escreveram sobre a nossa primeira pilota


consideravam-na muito bonita. Descrevem-na «jovem, elegante, arrojada,
mas sempre essencialmente feminina» — Dinis Ferreira.

Tinha 20 anos. «Era de estonteante beleza. Tão célebre se tomou, que um


“one step” foi composto em sua honra, com o título Milu» — Revista
Marie Claire, Abril, 1989.
Um pormenor curioso: nas fotografias, vê-se que usava sempre, por
baixo do uniforme ou, do casaco, uma gravata «à sufragista» e uma camisa
«à homem». Todavia, nunca perdia «a sua graciosa feminilidade», repete o
Diário de Lisboa. E acrescenta que ela tinha «a energia e o vigor que dão as
alturas e o ar puro que se respira longe do pântano da terra».

Já para O Século, Lourdes Teixeira era uma

figurinha gentil, parece duma fragilidade tal que um sopro abaterá.


Franzina, uns olhos imensos num rosto moreno, dourado pelo sol — é bem
uma mulher portuguesa, com certa ancestralidade e realce, no gosto pelas
aventuras heroicas e uma firmeza romana em saber querer e vencer.

A primeira pilota descendia de Teófilo Braga, pelo lado materno e o pai


era o tenente-coronel médico Afonso Henriques Botelho de Sá Teixeira,
subinspetor de saúde do Governo Militar de Lisboa. No dia em que lhe
deram o diploma, a mãe esperava-a na pista, entusiasmada e receosa.

2 — O DIA GLORIOSO

Para conseguir o diploma, Maria de Lourdes fez provas nos dias 5 e 6 de


Dezembro. O seu instrutor também foi um português importante. Na altura,
era apenas o capitão aviador Craveiro Lopes. Mais tarde, de 1951 a 1958,
como se sabe, foi Presidente da República. O jornal O Século diz que «na
preparação técnica da sua aluna pôs o melhor da sua inteligência e das suas
excecionais qualidades de piloto» e que «a preparação da jovem aluna
ficara sendo um belo triunfo para a sua carreira».

Nas entrevistas que deu, Maria de Lourdes disse que devia o seu brevet à
competência e ao carinho do seu instrutor e ao ambiente simpático que
desde o início encontrara em Sintra.
No Diário de Lisboa, no dia 6, podemos ler: «Num país onde não há
Aviação Civil — à exceção das carreiras aéreas para Madrid — é de
salientar o facto de em 4 brevets civis passados pela Escola de Sintra, um
deles pertencer a uma senhora».

Nesses dois dias gloriosos, assistiram às suas provas o Governador Civil


de Lisboa, o delegado do Aero-Club de Portugal, além de Craveiro Lopes e
muitos aviadores. Depois da parte prática, fez exame teórico. Os colegas
aviadores ofereceram-lhe um ramo de flores, assim como a esposa do
aviador Oliva Teles. O Diário de Lisboa diz que a entrevista fora
interrompida pelo barulho de um motor. «Era um homem-pássaro que
vinha doutro ninho — da Amadora — saudar, em caprichosas evoluções, a
linda andorinha que hoje batizara as asas...»

Só que a «linda andorinha», nesse dia, tinha grandes projetos. De voar de


Portugal ao Brasil, de voar até às capitais europeias, de ter uma profissão
aérea... E avião? Não tinha dinheiro para um. Ia fazer o quê com o seu
diploma? Só havia carreiras para Madrid, a Aviação Militar estava-lhe
vedada...

Maria de Lurdes Sá Teixeira ficou na História como a primeira pilota,


mas também como exemplo de uma andorinha a quem não deram espaço
para voar. Nunca lhe criaram condições para se tomar uma profissional.

O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, liderado por Adelaide


Cabete, que reunia as feministas sufragistas do tempo, algumas provindo da
Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, organizou uma campanha a
favor da compra de um avião a oferecer à primeira pilota. A campanha
aparece nos jornais em 1929 e 1930. Conhecemos o nome de algumas
dessas portuguesas solidárias. Como a aviação estava vedada às mulheres,
falavam em avião para “desporto aeronáutico”. Contudo, vivia-se no tempo
em que as leis “ofereciam” aos maridos a administração dos bens das
esposas, além duma crise económica. Não consta, por isso, que tivessem
conseguido verba suficiente para uma simples avioneta que permitisse que
a corajosa andorinha sulcasse os céus de Portugal e do mundo, levando a
alma e sonhos da mulher portuguesa.
CAPÍTULO V

AVIADORAS DO ULTRAMAR

«Se a Mocidade Portuguesa, masculina, tem o direito a praticar aviação,


porque não há de ter também a feminina?» — perguntava a jornalista
Fernanda Reis, em 1938. Com tantos entraves na Metrópole, o Ultramar
deu mais abertura, sendo em Angola que surgiu a primeira pilota
profissional.

Depois de Maria de Lourdes Sá Teixeira, diplomada em 1928, só em


1937 outra portuguesa recebeu o brevet de pilota. Chamava-se Maria
Amélia Bastos Amaral que também não encontrou condições para voar.
Assim, em 1938, a jornalista Fernanda Reis perguntava:

Para que tiraram o diploma duas raparigas portuguesas? Nunca mais


voaram; estará ele porventura enrolado numa gaveta, de mistura com
acessórios de toucador, ou foi emoldurado, para lembrar aos possíveis
descendentes que existiu na família uma temerária... de nome?

Fernanda Reis, que também fez o curso de piloto-aviador e foi uma


jornalista de guerra no Extremo Oriente, segundo o Dicionário de Mulheres
Célebres, dizia que o brevet custava uma fortuna. «Gostaríamos de, com as
nossas mãos de mulher, pilotar um avião, mas, supondo que ganhássemos
500$00 mensais, como poderíamos gastar cinco contos no diploma de
aviadora e, depois, 200$00 cada vez que nos apetecesse... ir num voo de
meia hora de libertação? E, também, como não perder o treino, não voando
duas a três vezes por semana?»
Pelo fator económico, pelos entraves do Estado Novo, pela mentalidade
que considerava, segundo Fernanda Reis, as aviadoras como “levezinhas da
cabeça”, as portuguesas foram afastadas da aviação.

1 — AVIADORAS EM MOÇAMBIQUE

Talvez devido às distâncias, no Ultramar foram-se fundando vários


aeroclubes em diferentes cidades. Em 1937, em Lourenço Marques, um
grupo de amadores adquiriu um aparelho de voo sem motor, contratou no
Transval um instrutor e brevetaram-se três alunos. Um deles era Adriana
Costa Leydenberg, que foi, portanto, a primeira moçambicana a voar. Mas
depois também não continuou, porque tiveram de vender o aparelho a
Joanesburgo.

Chegou o ano de 1942. Desta vez, na cidade da Beira, Ester Maria


Norton Portugal toma-se pilota. Quando recebeu o diploma, receberam-no
também sete homens. «A entrega dos diplomas serviu de pretexto a uma
pequena festa, presidida pelo Governador de Manica e Sofala, dr. Sousa
Pinto» — Revista do Ar, 1942, Agosto.

Nesse mesmo ano, outras se formaram — Isabel André, Almerinda de


Morais, Ema Machado, Manuela Tavares. Algumas vieram a Portugal e
foram notícia. Almerinda de Morais, em 1942, veio a Portugal receber a
transformação em “Tiger”, sendo a primeira portuguesa a conseguir tal
feito. Nas fotos era bonita, mas gorda. Manuela Tavares também veio em
1943. A Revista do Ar apresentou-a como “a primeira voadora de
Moçambique”. Disse que aproveitou condições especiais de matrícula
oferecidas, a título de propaganda, a três senhoras. Só que lhe aconteceu o
que era costume — o casamento e a nulidade. Em Julho de 1943, a Revista
do Ar afirma que ela irá perder a licença de voo em Outubro,
pois não conta mais voar, nem mesmo para manter a validade da
categoria do seu diploma aeronáutico. O casamento arrebatou-a de um
golpe à Aviação: mais umas asas femininas que se fecham em plena
juventude e iniciação. Tal facto é de lamentar, particularmente num país
como o nosso, onde ainda são raras as senhoras que se aventuram no
domínio do ar.

É que decorria a 2ª Guerra Mundial e havia pilotas por toda a parte, na


Europa.

Outras pilotas moçambicanas se seguiram — Rosa Lobato de Faria,


Raquel Silva (Beira), Emestina Bulha (Niassa) e ainda Manuela Carvalho e
Liberdade Guerreiro. Ao todo, nessa colónia, enquanto o foi, diplomaram-
se. Maria Pilar Martins (1960) queria ser pilota comercial. Acabou por
ingressar no Serviço Médico Aéreo, onde permaneceu até 1977.

2 — PILOTAS DE ANGOLA

«Na história do nosso Império — lia-se na Revista do Ar, Agosto, 1939


— uma rapariga utiliza o seu «brevet» profissionalmente». Foi Maria
Margarida Matos dos Santos, em 1939, a primeira pilota angolana.
«Durante seis anos, voou de Luanda para Ponte Negra (Congo), fazendo
correio postal e o transporte de passageiros que daí seguiriam para Lisboa,
Voava também para o Sul, levando correio para Porto Amboim, Lobito e
Moçâmedes» — História da Aviação, da TAP.

Foi a primeira pilota do mundo a fazer correspondência postal. Em 1939,


fazia já percursos de 900 km, que duravam quatro dias, fazendo escalas.

Tal como em Moçambique, fundaram-se vários aeroclubes. Em 39,


breveteram-se Júlia Pestana (Moçâmedes) e Carolina Simões (Lubango).
Em 1941, em Malange, Maria de Freitas. Em Luanda, Alzira do
Nascimento (1956); no Congo, Alda Lourenço (61); em Cela Isaura Pereira
(66). E ainda Lena do Canno,

Adelina Lima, Helena Neves, Manuela Corujo. Ao todo, conquistaram o


brevet 15 portuguesas.

Há ainda a referir Cândida Ghira (1947) que irá ser também a primeira
instrutora de automóveis, tendo formado a primeira (talvez única) Escola
de Condução Feminina. Maria Carolina Cordeiro (1951) tomou-se a
primeira radiografista de aviões — Marie Claire, 1989, Abril.

3 — S. TOMÉ E PRÍNCIPE

Também aqui três portuguesas conseguiram o brevet. Regista-se aqui


Manuela Palanque, que era negra, talvez a primeira pilota dessa cor. Mas o
destino estava contra ela. Tendo-se diplomado em 1953, imaginem que não
morreu caindo de um avião mas, anos depois... de parto.

4 — As PARAQUEDISTAS MILITARES

A Guerra Colonial, iniciada em 1961, vai provocar o aparecimento das


primeiras «militares». Na senda das enfermeiras voluntárias da Primeira
Grande Guerra (não esquecer que partiram para França, no Corpo
Expedicionário Português, 82 enfermeiras), também partiram portuguesas
para a Guerra do Ultramar. Assim, em Agosto de 1961, depois de uma dura
preparação em Tancos, receberam o brevet militar a alferes Maria Zulmira
André, alferes Maria Ivone Reis, alferes Maria do Céu Policarpo, alferes
Maria Arminda Pereira e 1 ° sargento (sargenta?) Maria de Lourdes
Rodrigues. Elas vão operar em aviões e helicópteros em Angola,
Moçambique e Guiné. Foram heroínas silenciosas sobre as quais os
companheiros faziam apostas. Viviam entre a vida e a morte, evacuando
feridos e doentes das zonas operacionais para os hospitais de retaguarda.

Durante 15 anos, estas e outras que se lhes seguiram, acompanharam a


Guerra Colonial, estando algumas 9,10 e 11 anos em serviço ativo. Era um
trabalho duro e arriscado e sabe-se que Maria Celeste da Costa pereceu em
Bissalanca, em 10 de Dezembro de 1973.
CAPÍTULO VI

AS MODERNAS GLORIOSAS

O ano de 1990 abriu definitivamente as portas (ou melhor, as asas) às


portuguesas que queiram ser gloriosas das máquinas voadoras. Derrubar
muros femininos demora sempre muito tempo. Foram precisos 140 anos,
espaço que decorreu entre a primeira pilota de balões, em céu português, e
o ingresso feminino na Força Aérea.

Após a Segunda Guerra, as portuguesas tentaram de novo pilotar aviões.


Os tempos eram difíceis, o Estado Novo queria as mulheres em casa, o
brevet era caro. Até jornalistas se admiravam por Amélia Garcia de Lemos,
em 1947, ter amealhado o necessário para frequentar a Escola do Aero
Clube Português: «Juntar dinheiro para o “brevet”, numa época destas em
que os vestidos e os perfumes constituem a preocupação das mulheres, eis
o que nos surpreendeu» — Revista do Ar, 1947, março. Surpreendente é
que o jornalista, quando as guerras e futebol constituem preocupações dos
homens, se tenha interessado pelas voadoras!...

Mas Amélia Lemos foi a segunda. A primeira a receber o diploma (com


uma grande festa) do Aero Clube Português, fundado em 1909, foi Maria
Cândida Franco, no início de 1947. Frequentava a Faculdade de Ciências,
para ser engenheira geógrafa, e era locutora de rádio.

Na década de 40, tiraram ainda o “brevet” Ana Maria Cardoso, Elsa


VilasBoas e Carolina Simões.

1 — O Voo SEM MOTOR


O planador interessou mais tardiamente as portuguesas. A primeira a
conseguir o “brevet”, nessa modalidade, foi Françoise Deupeut (portuguesa
de origem francesa). A segunda foi Isabel Rilvas, de quem já falei no
capítulo das paraquedistas. Isabel Rilvas foi a tal enfermeira militar que
não deixaram embarcar para o Ultramar por ser casada!...

A partir de 1960 até 1978, no voo sem motor, diplomaram-se 18


portuguesas. Nesta modalidade, a mais famosa foi Anneliese Fernandes
Pinto. Foi a primeira a alcançar o “C” de prata de voo à vela (homologado
pela Federação Aérea Internacional). Em 1974, foi recordista nacional
(feminino e masculino) de distância em planador, tendo percorrido 80 km
entre Évora e Alfarrobeira de Baixo. Participou em vários festivais
internacionais. Em 1965, em Inglaterra, foi a única estrangeira a participar
numa corrida só de pilotas, a convite da seção britânica do “Club das 99”
— associação fundada em 1929, nos EUA, por 99 aviadoras.

Patrícia Olga Bensaúde foi outra pilota de planadores, tendo


permanecido no espaço 6 horas, o que prova a sua destreza.

2 — APÓS A DÉCADA DE 50

Depois de Isabel Rilvas (pilota de 1954 até 1976), também o Norte do


País gerou gloriosas aviadoras. De Coimbra era Armanda Marques, aluna
de Medicina, que fez as suas provas em 1955. Do Porto eram Maria José
Cudell (1957) e Helena Corte-Real, que participaram na Caravana da
Amizade que foi confraternizar a Lisboa. Do Aero Club de Braga, saiu
Maria Sofia Jordão, natural de Guimarães.
Enfim, cerca de 70 portuguesas pilotaram aviões antes de 1983. A
maioria ficou pelo caminho, porque qualquer brevet de avião tinha de ser
renovado anualmente e a maioria deixou caducar as licenças.

3 — PRIMEIRA PILOTA COMERCIAL

Nasceu no Porto a primeira portuguesa com licença de pilota comercial.


Seu nome — Eva Maria Moreira da Silva. Foi pilota particular em 1968.
Em 73, toma-se pilota comercial, numa escola de Angola. Regressando a
Portugal, alcançou qualificações de plurimotores e de instrumentos de voo.
Depois partiu para Moçambique, onde entrou ao serviço da Empresa de
Transportes Aéreos de Porto Amélia — ETAPA — tendo permanecido aí
durante dois anos. De novo em Portugal, trabalhou na Aero-Argarve e,
segundo a revista Marie Claire, 1989, Abril, era pilota nessa altura na LAR.

Mas outra mulher pilotava aviões em 1989 — Cristina Gonçalves (brevet


conseguido em 1984). Trabalhava na Lusitanair. Nesse ano, os órgãos de
informação referiram também que uma mulher fora admitida nos cursos de
pilota da TAP.

4 — A FORÇA AÉREA

Após o decreto de 15 de Dezembro de 1988, entre 500 candidatos à


Academia de Força Aérea, 18 eram raparigas. Só foram aprovados 27
rapazes e duas moças, tendo reprovado uma delas no primeiro semestre. A
gloriosa que ficou chamava-se Paula Costa, de 19 anos — revista Mulher
Moderna, 1989, Junho.

Esta rapariga proporcionou a abertura dos restantes cursos da Força


Aérea às outras portuguesas. Assim, em 1990, em 25 de Janeiro, a portaria
n° 60, assinada pelo meteórico Ministro da Defesa Carlos Brito (governou
pouco mas ficou na História da Aviação Feminina), derrubou os restantes
muros que impediam as mulheres de voar. Nessa portaria, «manda o
Governo» que «os cidadãos do sexo feminino podem, em situações de
igualdade com os cidadãos do sexo masculino, candidatar-se a prestar
serviço militar efetivo nos quadros permanentes da Força Aérea, com
destino às seguintes especialidades: pilotoaviador; engenheiro aeronáutico;
engenheiro de aeródromos; engenheiro eletrotécnico; intendência e
contabilidade; médico». As condições de ingresso são iguais, assim como a
carreira, mas, naturalmente, «com salvaguarda do regime jurídico de
proteção da função social da maternidade».

A história demonstra que, sempre que uma proibição é derrubada, as


mulheres irrompem em força. Aí as temos, as portuguesas, já sem se
fazerem apostas, já não sendo impedidas de cruzar os céus se forem
casadas. Demorou.

Foram precisos 140 anos. Com as mulheres, os direitos são obtidos com
esforço, a conta-gotas.

Bertrande Senges foi a primeira a pilotar um balão, em céu português


perante os olhos extasiados da rainha D. Maria II. A atriz Iva Ruth
Guerreiro, a primeira portuguesa a voar, nos céus do Porto, em 1884. A
primeira pilota brevetou-se em 1928. Isabel Relvas, a primeira paraquedista
da Península Ibérica, pilotou aviões durante 22 anos. A partir daí houve
muitas gloriosas, em diferentes modalidades, que em condições muitas
vezes adversas tentaram ter asas. Que as modernas gerações saibam
aproveitar essas asas que antecessoras corajosas abriram para elas!

Você também pode gostar