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INFÂNCIAS NO CENTRO DE SÃO PAULO: IMAGENS SOBRE PRÁTICAS

COTIDIANAS NO EDIFICIO COPAN

Autoras:
Bruna Serena Casciano. Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo (2017), e especialista em História, Sociedade e Cultura
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2021). Atualmente é mestranda no
programa de Pós-Graduação em Educação UFSCar (2023). Contato:
bruna.serena@yahoo.com
Sylvia Caiuby Novaes. Docente titular na área de Antropologia da Imagem na
Universidade de São Paulo. Fundadora e coordenadora do LISA – Laboratório de
Imagem e Som em Antropologia entre 1991 e 2014, desde 2017 coordena o GRAVI -
Grupo de Antropologia Visual e é pesquisadora do CEstA - Centro de Estudos
Ameríndios da Universidade de São Paulo. Contato: scaiuby@usp.br
Andrea Braga Moruzzi.

Ementa:

O presente texto se deriva de uma pesquisa em andamento cuja proposta é buscar


compreender, através da relação entre relatos escritos e fotográficos, a maneira pela
qual crianças de dez a onze anos de idade, moradoras do Edifício Copan, localizado no
distrito da República, mais detidamente na área da Avenida Ipiranga, criam e atuam na
vida cotidiana, participando ativamente dela, e também de que forma relacionam-se
com o contexto sociocultural em que estão inseridas, possibilitando desvendar modos
distintos de ser criança e de apropriação do espaço em que vivem. Vale ressaltar que o
que é ser criança é pensado de maneira diversa em diferentes contextos culturais,
assim experiências e vivências são diferentes de uma infância para outra, por isso
precisamos compreender o contexto sociocultural em que os indivíduos se encontram e
buscar desvendar “infâncias” no plural. As crianças estão em toda a parte, e o
conhecimento sobre elas é como se tudo fosse sabido (COHN, 2005, pp. 22-26).
Esta pesquisa tem buscado captar de que forma as crianças reproduzem e produzem
ativamente os modos de vida no qual estão inseridas, verificar se existe a possibilidade
de criação, por parte delas de um outro espaço urbano para além do que já está
estabelecido.
(...) quem perde tempo ganha espaço. Se, de fato, se quer ganhar “outros”
espaços, é preciso saber brincar, sair deliberadamente de um sistema funcional-
produtivo e entrar em um sistema não funcional e improdutivo. É preciso
aprender a perder tempo, a não buscar o caminho mais curto, a deixar-se
conduzir pelos eventos (CARERI, 2016, P.171)

O contexto urbano trabalhado nesta pesquisa está inserido na área central da cidade
de São Paulo, cujo processo de revitalização e gentrifcação está em andamento. Na
Avenida Ipiranga, por exemplo, há edifícios importantes, como o Copan e o Itália,
grande número de moradores de classe média e comércios requintados como, por
exemplo, o Café Floresta. Ainda compondo essa paisagem urbana, há figuras
chamadas de outsiders (nota de rodapé Para Howard Becker, autor de Outsiders –
estudos de sociologia do desvio (2012), quando uma regra é imposta e uma pessoa a
infringe, essa pessoa passa a ser um tipo especial, um outsider): jovens “descolados”,
travestis, pedintes e pessoas em situação de vulnerabilidade que estão fazendo da rua
a sua moradia. Pode-se dizer que esta área contem fronteiras identitárias diferenciadas
que põem em jogo diferenças de gosto, estilos de vida, de comportamentos, aparência,
etc. (AGIER, 2011, pp.70-72).
Um modo fácil de encontrar crianças é procurá-las em seus locais de moradia, desta
forma, buscarei, ao longo desta pesquisa em andamento, dentro do Edifício Copan,
crianças moradoras nos blocos A e F, cuja probabilidade é maior de encontrar famílias,
dada a maior metragem dos apartamentos, embora não seja improvável também
acharmos muitas em apartamentos menores, como no bloco B. O Copan foi projetado
na década de 1950 pelo arquiteto Oscar Niemeyer e hoje o edifício conta com 1.160
apartamentos que são distribuídos em seis blocos contendo 2.038 moradores na área
residencial. Há apartamentos mais caros e com metragem maior, e kitchenettes com
um preço mais reduzido.
A presente pesquisa em desenvolvimento compreende que é preciso estar atento às
formas que ocorrem os processos de revitalização e gentrificação, e como a presença
destas figuras chamadas de outsiders tornam-se significativas no contexto sociocultural
em que as crianças estão inseridas, e busca captar, ao longo de seu desenvolvimento,
qual é a influência destes fatores nas práticas cotidianas infantis.

Descobrir que sentido as crianças estão dando ao mundo é importante


para a análise etnográfica não simplesmente porque possibilita um relato
mais completo e sutil de como a vida é vivida em qualquer esfera, mas
porque nos possibilita tornar analíticas as categorias das pessoas cujas
vidas estamos tentando analisar, seja em nossos próprios lares, ou em
outro lugar do mundo. Cada criança nasce em um mundo em construção
cujas características locais variam em função da historia de um
ambiente povoado específico. Cada criança encontra um mundo cuja
história particular é concretizada não apenas em um ambiente físico,
mas nas relações sociais específicas onde a criança é envolvida. E cada
criança não tem escolha a não ser dar sentido àquilo que ela encontra.
As ideias de uma criança não saem do nada, elas têm tudo a ver com o
envolvimento intersubjetivo dessa mesma criança no mundo (TOREN,
2010, p.40).

O cotidiano das crianças está sendo apreendido por mim através da observação
participante, ao acompanhá-las em seu dia a dia dentro e fora de suas casas. Ele
também será apreendido através de relatos contados pelas mesmas e através da
representação fotográfica que as crianças farão sobre as suas práticas cotidianas. Aqui
a imagem será utilizada como uma narrativa visual que informa o relato etnográfico
com a mesma autoridade que o texto escrito baseado na etnografia, pois as fotografias
ajudam na elucidação da comunicação verbal com a expressão corporal, documentam
estilos de vida e atores sociais, além de aprofundar a compreensão do universo
simbólico que exprime sistemas de atitudes relacionados como, por exemplo, ao status
social (BITTENCOURT, 1998, p.199-200).
De acordo com os resultados de minha pesquisa Edifício Copan: Imagem e
Representação (nota de rodapé Pesquisa de iniciação científica realizada sob
orientação da professora Dra. Sylvia Caiuby Novaes (2015-2016), com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o Edifício
Copan abriga pessoas de várias classes sociais, desde aquelas com alto poder
aquisitivo que compõe famílias, até estudantes desempregados que vivem de aluguel.
Alguns moradores entrevistados por mim, trouxeram como percepção o fato de "Quase
não há crianças, e os casais costumam morar em blocos maiores.", ou "o bloco B é
bastante heterogêneo: há muito jovem descolado, muito jovem coxinha, travestis,
aposentados e mães com filhos." O prédio está diretamente ligado à rua privativa que é
considerada sua área de lazer, local cuja intensa observação já deixou revelar, de
maneira tímida, que é um local de interação entre crianças, cachorros e adultos. É
neste espaço que as crianças podem jogar bola, brincar com seus animais e andar de
patinete, pois trata-se de uma rua cujo acesso é controlado, e apenas pedestres podem
circular, assim o controle por parte dos adultos torna-se mais fácil. Nos arredores do
Edifício, as crianças não brincam livremente, há alto fluxo de movimento de carros e
pessoas.

Texto: Sequencia:
Introduçao
Apresentaçao de resultados
Análise
Considerações finais
Referencias.

Apresentação, Tema e Objetivo da Pesquisa

O presente texto é resultado de uma pesquisa em andamento cujo objetivo é


compreender de que forma crianças de
dez a onze anos de idade, de duas áreas distintas do Centro de São Paulo, a saber, o
distrito da República, mais detidamente na área da Avenida Ipiranga, e o distrito da
Liberdade, mais detidamente a Baixada do Glicério, relacionam-se com o contexto
sociocultural em que vivem, apresentando suas práticas cotidianas através de relatos e
fotografias feitas por elas mesmas. Objetiva-se descobrir elementos que caracterizam
as infâncias dessas crianças, além de captar de que forma elas reproduzem e
produzem ativamente os modos de vida no qual estão inseridas, visando compreender
também quais são as diferenças mais significativas entre as práticas cotidianas infantis
nas duas áreas que serão estudadas, além de verificar se existe a possibilidade de
criação, por parte das crianças, de um outro espaço urbano para além do que já está
estabelecido.1 As circunstâncias que motivam essa discussão vão ao encontro da
perspectiva de que as crianças são sujeitos de direitos, criativos, potentes e
agenciadores em suas vidas cotidianas, tal como vem sendo proposto pelo campo da
sociologia da infância.
compreender e acreditar na potencia das
crianças e dos diferentes modos de exercer a infância, pois acredito que as elas são
capazes de reconfigurar e refletir ativamente sobre os espaços que as circundam,
tornando-se protagonistas de sua vida cotidiana. Observo a capacidade criativa e de
resolução de problemas por parte das crianças no meu dia a dia, pois trabalho em uma
ONG que atende jovens e crianças em situação de vulnerabilidade social, propondo
atividades educativas no contraturno escolar. A busca pela compreensão das diversas
formas de ser criança e o uso das imagens pelas mesmas, vão ao encontro da escolha
da linha de pesquisa ‘’Educação Cultura e Subjetividade’’, pois estaremos pensando a
cultura infantil através de fotografias e análise das mesmas.
As duas áreas de pesquisa foram escolhidas pelo fato de ambas estarem
inseridas na área central da cidade de São Paulo e por ambas estarem sofrendo
1 (...) quem perde tempo ganha espaço. Se, de fato, se quer ganhar “outros” espaços,
é preciso saber brincar, sair deliberadamente
de um sistema funcional produtivo e entrar em um sistema não funcional e improdutivo.
É preciso aprender a perder tempo, a não
buscar o caminho mais curto, a deixar-se conduzir pelos eventos (CARERI, 2016,
P.171).
2
processo de revitalização e gentrificação. Na Avenida Ipiranga, por exemplo, há
edifícios importantes, como o Copan e o Itália, grande número de moradores de
classe média e comércios requintados como, por exemplo, o Café Floresta, ainda que
também existam moradores em situação de rua e pedintes. Na Baixada do Glicério,
boa parte da população pertence às classes baixas, há grande número de cortiços e
habitações informais e um elevado número de pessoas em situação de rua. Ambas as
áreas contam com figuras chamadas de outsiders: se de um lado, na área da
República,
temos muitos jovens “descolados”, travestis e pedintes, de outro, no Glicério, temos
grande parte de moradores em situação de rua, coletores de materiais recicláveis e
usuários de drogas. Pode-se dizer que as duas áreas contêm fronteiras identitárias
diferenciadas que põem em jogo diferenças de gosto, estilos de vida, de
comportamentos, aparência, etc. (AGIER, 2011, pp.70-72).
Um modo fácil de encontrar crianças é procurá-las em seus locais de moradia.
No Distrito da República, realizarei a busca pelas crianças mais especificamente
dentro do Edifício Copan nos blocos A e F, cuja probabilidade é maior de encontrar
famílias, dada a maior metragem dos apartamentos, embora não seja improvável
também acharmos muitas em apartamentos menores, mas a ideia é poder encontrar
crianças que pertençam a uma classe média. No Distrito da Liberdade, mais
especificamente na baixada do Glicério, os prédios muitas vezes estão sendo
ocupados de maneira indevida aos olhos dos órgãos públicos, então é preciso cautela.
Uma construção regularizada é o Conjunto Habitacional Várzea do Carmo (1938-
1942), realizado pelo arquiteto Attilio Correa Lima, na Rua Leopoldo Miguez. Este
conjunto contém blocos de quatro andares e foi considerado como expressão de
conceitos importantes do movimento modernista na área da arquitetura. Assim como
o Copan, é um edifício grandioso, dividido em blocos, contendo 480 apartamentos
com 2 ou 3 dormitórios separados por jardins, praças e áreas de lazer. O Várzea do
Carmo, atualmente, seguiu um movimento de fechamento e cercamento em volta de
seus blocos, ainda que as áreas verdes e abertas continuem sendo marcadas na
paisagem em relação ao bairro. A escolha de ambos os edifícios pode ser
compreendida por suas semelhanças e diferenças: ambos estão em áreas centrais da
cidade que têm sofrido processos de gentrificação, embora em graus diferentes, como
justificarei a seguir, ambos são compostos por muitos apartamentos e moradores,
além de serem obras arquitetônicas importantes para a cidade. Ainda assim, o Copan
conta com uma maior diversidade socioeconômica em relação aos seus moradores, há
blocos do edifício que têm valores elevadíssimos, enquanto as kitchenettes têm
valores mais baixos, e por esse motivo lá moram desde grandes famílias de altas
3
classes sociais até jovens solteiros. O Copan, por sua vez, está diretamente ligado à
rua privativa que é considerada sua área de lazer, enquanto o Várzea do Carmo conta
com apartamentos relativamente iguais entre si, o que possivelmente não permite uma
grande diferenciação socioeconômica entre seus moradores, e atualmente conta com
uma forma de fechamento e cercamento em volta de seus blocos, isolando-se mais de
seu entorno, mas também podendo contar com uma área de lazer mais estruturada do
que a do Copan. Como, ao analisar e compreender o cotidiano das crianças também
em suas áreas de habitação, essas apropriam-se dos espaços em que estão inseridas
também é uma problemática deste projeto.
Assim, ao detectar que há modos de vida particulares nas duas áreas, é
possível criar a hipótese de que as práticas cotidianas e o modo pelo qual as crianças
vão situar-se nestes ambientes será distinto, havendo supostas diferenças entre a
infância em um local e a infância em outro. É preciso também estar atento para
compreender de que forma os processos de revitalização e gentrificação, e a presença
destas figuras chamadas de outsiders tornam-se significativas no contexto
sociocultural em que as crianças estão inseridas, e buscar captar qual é a influência
destes fatores nas práticas cotidianas infantis2.

Balanço Bibliográfico
1. A Infância, as Crianças e os Contextos Socioculturais
Como é possível trabalhar em conjunto com as crianças buscando
compreender o ponto de vista delas sobre as suas próprias práticas cotidianas sem
compreender o que é, de fato, a infância? A infância será estudada aqui como uma
construção social. Até o Renascimento, a infância e a adolescência não eram
distinguidas como etapa própria do desenvolvimento do ser humano, pois as crianças
eram consideradas como adultos “em miniatura”. Foi no início do século XIX que a
ideia de que a criança é um indivíduo diferente do adulto consagrou-se, assim ela
passou a ser compreendida como um adulto em potencial (SALLES, 2000, p.132). A
visão ocidental da infância foi baseada durante muito tempo na ideia da ingenuidade,
subdesenvolvimento intelectual e incapacidade cognitiva das crianças. Elas eram
compreendidas como um ser incompleto, deste modo o adulto deveria ajudá-las a se
2 Descobrir que sentido as crianças estão dando ao mundo é importante para a análise
etnográfica não simplesmente porque
possibilita um relato mais completo e sutil de como a vida é vivida em qualquer esfera,
mas porque nos possibilita tornar
analíticas as categorias das pessoas cujas vidas estamos tentando analisar, seja em
nossos próprios lares, ou em outro lugar do
mundo. Cada criança nasce em um mundo em construção cujas características locais
variam em função da historia de um
ambiente povoado específico. Cada criança encontra um mundo cuja história particular
é concretizada não apenas em um
ambiente físico, mas nas relações sociais específicas onde a criança é envolvida. E
cada criança não tem escolha a não ser dar
sentido àquilo que ela encontra. As ideias de uma criança não saem do nada, elas têm
tudo a ver com o envolvimento
intersubjetivo dessa mesma criança no mundo (TOREN, 2010, p.40).
4
desenvolver como um ser humano completo. Apenas no século XX houve o
reconhecimento da criança como indivíduo dotado de inteligência (FERREIRO, 2001,
p.21). A infância é um modo particular, e não universal de pensar a criança. Phillipe
Ariés também nos mostra que a infância é uma construção social e histórica do
ocidente, pois para ele o sentimento de infância é como uma particularidade da
infância em relação ao mundo dos adultos, havendo cisão entre estas experiências. O
que é ser criança é pensado de maneira diversa em diferentes contextos culturais3,
assim experiências e vivências são diferentes de uma infância para outra, por isso
precisamos compreender o contexto sociocultural em que os indivíduos se encontram
e buscar desvendar “infâncias” no plural. As crianças estão em toda a parte, e o
conhecimento sobre elas é como se tudo fosse sabido (COHN, 2005, pp. 22-26).
Talvez seja interessante complementar esta afirmação. De início é essencial
afirmar que a criança não é um ser incompleto, mas um ser social, que é legítimo
estudar. Através da cisão entre o mundo adulto e o mundo infantil, é preciso
compreender a criança e o seu mundo através de seu próprio ponto de vista, como fez
Bronislaw Malinowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1997), ao buscar
compreender o ponto de vista dos nativos através da compreensão dos mesmos sobre
o seu universo cultural “(...) há ainda a registrar-se-lhe o espírito – os pontos de vista,
as opiniões, as palavras dos nativos...” (MALINOWSKI, 1997, p.32). A antropologia,
como diz Clarice Cohn em Antropologia da Criança (2005), busca entender o ponto
de vista daquele sobre com quem dialoga, então fazer antropologia é buscar entender
um fenômeno em seu contexto social e cultural. Qualquer evento deve ser estudado e
compreendido por seu valor dentro do sistema, no contexto social em que é gerado
(COHN, 2005, pp.8-11).
Por exemplo, a ideia de que cabe à criança brincar e aprender é uma
construção histórica e social, pois não há imagem que seja construída pela e sobre a
criança que não seja produto de um contexto sociocultural e histórico. As crianças são
produzidas pela cultural e produtoras de cultura, pois elaboram sentidos para o
mundo, compartilhando de uma cultura, assim os sentidos que elaboram partem de um
sistema simbólico compartilhado com os adultos. É importante pensar como a criança
formula um sentido ao mundo que a rodeia, já que ela não sabe menos que o adulto,
ela sabe outra coisa. As crianças criam para si uma rede de relações que não estão
3 Sem dúvida, a criança não é um adulto. Não é tal nem em nossa sociedade e nem
em nenhuma outra, e em todas está igualmente
afastada do nível de pensamento do adulto, de tal modo que a distinção entre
pensamento adulto e pensamento infantil recorta, se
é possível dizer, na mesma linha, todas as culturas e todas as formas de organização
social. A cultura primitiva é sempre uma
cultura adulta, e por isso incompatível com as manifestações infantis que se pode
observar na mais evoluída civilização... (LÉVISTRAUSS,
2012,p.131)
5
apenas dadas, mas que devem ser colocadas em prática e cultivadas, atuando sobre a
criação das relações sociais (CONH, 2005, pp.30-50).
Devemos livrar-nos da ideia de que já conhecemos as crianças, reaprendendo
aquilo que nos parece tão natural. Mariza Peirano em Antropologia No Brasil
(Alteridade Contextualizada) (1999) apresenta o modelo típico-ideal de alteridade -
aspecto fundante da antropologia - que será utilizado em minha pesquisa: a alteridade
próxima. De acordo com a autora, a antropologia nos dias de hoje também está sendo
feita perto de casa, assim, a alteridade próxima é uma alternativa aos estudos de
temas
urbanos. (PEIRANO, 1999, pp.240-242). É possível compreender melhor a alteridade
próxima como sendo aquela relativa à pesquisa de campo urbana na qual há contato
com grupos que são de certa forma “familiares” ao pesquisador. Aqui há o exercício
de estranhar o conhecido, ou seja, afastar-se do conhecimento prévio que o
observador tem sobre o seu objeto de estudo, no caso as crianças, para observá-lo de
outro modo, e finalmente compreendê-lo mais a fundo.
Em síntese, as crianças têm experiências e vivem situações que ocorrem em
contextos coletivos específicos, e a partir de relações estabelecidas em um tempo e
espaço, elas fazem desse terreno um campo de representações e interpretações sobre
os pensamentos, os signos, as ações e as linguagens que estão presentes em seu
cotidiano (GOMES, 2008, p.175). Cabe então, nesta pesquisa, realizar o que Clifford
Geertz propõe ao dizer que a etnografia deve valer-se de uma descrição densa (aquela
que vai ao coração dos significados, e não uma descrição detalhista), ou seja, não
basta apenas coletar as questões visíveis em campo. Não basta apenas observar o dia
a
dia das crianças ou ouvir os seus relatos, deve-se interpretar estes dados e buscar a
sua
significação a luz do contexto cultural a qual estão inseridos (GEERTZ, 1989, pp.5-7).

2. O Cotidiano e o Espaço
Buscarei compreender de que forma as crianças das duas localidades aqui
propostas vivem, criam e recriam o seu dia a dia e de que modo ele pode ser
representado fotograficamente por seus olhares. Deste modo, será possível evidenciar
como o universo sociocultural em que estão inseridas as crianças é apropriado,
representado e reinventado por elas. O recorte sociocultural é interessante justamente
para que possamos observar de que modo as crianças vivem ao se relacionarem e
agirem em contextos diferentes, no que tange às normas, aos valores, ao espaço e ao
nível socioeconômico onde estão inseridas. É importante compreender de que modo o
cotidiano será utilizado nesta pesquisa, pois será através da representação dele por
meio de imagens, relatos e vivências que se poderá analisar a construção de ideias de
6
infâncias relacionadas ao contexto em que os atores estão inseridos, e mais do que
isso, será através deste movimento que o papel ativo das crianças como atores sociais
poderão ser evidenciados.
O cotidiano, como diz Lisandra Ogg Gomes (2008), é o dia a dia que passa,
sem que as coisas pareçam passar. Ele manifesta-se como um campo de rituais que
preservam a continuidade do vivido, que acomodam as contradições entre passado e
presente e que fixam eventos, transformando-os de estruturas diacrônicas para
sincrônicas. Através da rotina e na convivência com os outros o indivíduo
experimenta e aprende os costumes e os valores do seu espaço e do seu tempo. Cada
indivíduo elabora uma maneira própria de decidir sobre o seu cotidiano, mas ele
também tem em si os costumes, as normas, as relações de interdependência com as
outras gerações e as condições dadas pelo coletivo. Na medida em que a criança
precisa entrar na vida cotidiana, aprender a usar os artefatos culturais, compreender
as regras, os valores, os costumes, as linguagens, e os contextos, ela passa a atuar
sobre a cultura, a natureza e a história. As crianças agem na vida cotidiana muito além
do que foi determinado, participam ativamente e são agentes de seus atos, portanto
são atores. Elas percebem, interpretam e dão significados diversos às relações que
percorrem as maneiras de fazer a vida diária. São olhares distintos dos olhares dos
adultos que resultam em pensamentos diversos (GOMES, 2008, pp.176- 182).
O olhar para o cotidiano é potente ao modificar leituras recorrentes de que
crianças são incapazes de agir socialmente no espaço urbano, abrindo a possibilidade
de entender a vida da cidade através do ponto de vista das crianças sobre o seu dia a
dia e a sua relação com o espaço onde estão inseridas. É importante frisar que é
possível relacionar a vida cotidiana como âmbito privilegiado para a ação criativa e
criadora de moradores de uma cidade e a existência de brechas na produção espacial:
nas rupturas do cotidiano há um força criadora irredutível à homogeneização do
cotidiano. As crianças valem-se destas brechas? Elas criam produzem novos espaços
na cidade? Como seriam eles? Tais indagações quanto ao espaço também motivam
esta proposta de pesquisa.
Júlio Cortázar (2014) traz à tona a tarefa diária de produção do espaço que
contém em si a reprodução de relações estagnadas, a ação passiva e previsível, mas
aponta também que o espaço urbano é resultante de criação ativa, ele é palco de toda
a situação de vida que podemos inventar na cidade.
Henri Lefebvre (2006) em A Produção do Espaço pensa o espaço como um
produto social que contém relações sociais de reprodução e de produção. Engendrado
na lógica capitalista, esse espaço é o local onde hábitos e costumes do cotidiano
7
buscam o consumo e a produção, sendo espaços marcados pela padronização e
racionalidade. O autor se refere a esse espaço com o nome de “espaço abstrato”. Na
vida das pessoas há algo além desta racionalidade, também há experiências, relações
sonhos e transgressões em nossa vida cotidiana, sendo assim: o espaço abstrato não
domina a vida na cidade, ainda há realidade sensível e criadora.

3. As Imagens
O cotidiano das crianças, nas duas localidades, poderá ser apreendido por mim
através da observação participante, ao acompanhar as crianças em seu dia a dia
dentro
e fora de suas casas. Ele também poderá ser apreendido através de relatos contados
pelas mesmas e através da representação fotográfica que as crianças farão sobre as
suas práticas cotidianas. Aqui a imagem será utilizada como uma narrativa visual que
informa o relato etnográfico com a mesma autoridade que o texto escrito baseado na
etnografia, pois as fotografias ajudam na elucidação da comunicação verbal com a
expressão corporal, documentam estilos de vida e atores sociais, além de aprofundar a
compreensão do universo simbólico que exprime sistemas de atitudes relacionados
como, por exemplo, ao status social (BITTENCOURT, 1998, p.199-200). Como diz
José de Souza Martins (2008), “Ela [a fotografia] faz parte do imaginário e cumpre
funções de revelação e ocultação na vida cotidiana. Portanto as pessoas são
fotografadas representando-se na sociedade e representando-se para s sociedade”
(MARTINS, 2008,p.47). O presente projeto só tende a ganhar ao usar imagens aliadas
ao texto. Quando uma cena é registrada pela câmera fotográfica ela passa a constituir
um imaginário que está a ela associado (RECHENBERG, 2014, p.21), deste modo, o
processo criativo de construção e apropriação da cultura pelas crianças pode ser
amplamente compreendido com o auxílio fotográfico, pois ele pode acrescentar mais
uma forma de compreensão do ponto de vista infantil sobre as suas práticas em um
contexto sociocultural específico, reafirmando valores e normas, modos de ver e de
agir em sociedade. Vale ressaltar, como frisa Boris Kossoy (1999), que a fotografia
tem a motivação do fotógrafo, no caso, as crianças, que influenciará na criação de
uma foto, e essa motivação influenciará também na concepção da imagem final. Ou
seja, o autor aponta que a fotografia seria então a representação resultante do
processo de criação e construção do fotógrafo, sendo este último aquele que interfere
na imagem dramatizando ou valorizando os cenários, deformando a aparência de seus
retratos, omitindo ou introduzindo detalhes, manipulando seus temas (KOSSOY, 1999,
pp 25- 30).
Em síntese, José de Souza Martins em Sociologia da Fotografia e da Imagem
8
(2008) aponta que não apenas na sociologia, como também na antropologia, a
fotografia passou a ser considerada recurso objetivo de pesquisa, a foto passou a ser
mais do que um recurso de técnica de pesquisa, pois ela não acrescentaria à precisão
da observação sociológica, ela acrescentaria mais à indagação sociológica na medida
em que a câmera permite ver o que por outros meios não é visível (MARTINS, 2008,
pp. 33-36).

4. O Contexto Sociocultural Estudado: Avenida Ipiranga e o Bairro do


Glicério
É de suma importância explicitar o motivo da escolha de dois locais diferentes
localizados na zona central da cidade de São Paulo para a realização da presente
pesquisa. O Distrito da República, e mais especificamente a Avenida Ipiranga, contém
em sua extensão símbolos importantes dos cartões postais da cidade de São Paulo,
tais
como a Praça da República, o Edifício Copan, o Edifício Itália, entre outros. No
próprio entorno do Edifício Copan, considerada pelos seus moradores como área de
lazer, há grande movimentação: uma grande heterogeneidade de pessoas que
praticam
esportes, caminham de um lado para o outro em ternos e roupas sociais, reúnem-se
para conversar em frente à banca de jornal e aproveitam para utilizar-se dos serviços
alimentícios dos restaurantes do prédio. Bares e padarias com preços elevados estão
no entorno do Edifício, ao mesmo tempo em que lojas de roupas de grife encontramse
em seu interior.
O Copan foi projetado na década de 1950 pelo arquiteto Oscar Niemeyer e
hoje o edifício conta com 1.160 apartamentos que são distribuídos em seis blocos
contendo 2.038 moradores na área residencial. Há apartamentos mais caros e com
metragem maior, e kitchenettes com um preço mais reduzido. O prédio abriga pessoas
de várias classes sociais, desde aquelas com alto poder aquisitivo que compõe
famílias, até estudantes desempregados, de classe média, que vivem de aluguel.
Já o Distrito da Liberdade, mais detidamente a Baixada do Glicério também
está localizado no Centro de São Paulo, às margens do Rio Tamanduateí. A sua
população é de mais ou menos 90 mil pessoas, sendo que grande parte destas vivem
em cortiços e em edifícios de 28 andares, com até 800 kitchenettes cada um. De
acordo com a matéria do Jornal Folha de São Paulo4
4 ‘’Sob o elevado e suas adjacências, diriam os sociólogos, coabitam o lumpesinato, o
proletariado empobrecido e a classe média
baixa. Catadores de papel, moradores de rua, ambulantes, albergados, empregados do
comércio, serventes do serviço público,
pequenos comerciantes, policiais, traficantes de crack e adolescentes drogados,
prostitutas e rufiões, mães solteiras,
desempregados. E crianças sem escola. Segundo irmã Derly, criança sem escola e
desemprego são parte do mesmo problema.’’
Acessível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/ult76u311773.shtml.
Último acesso em
01/08/22.
9
A Baixada do Glicério é considerada uma das regiões mais degradadas da
cidade, sendo alvo de diversos projetos de revitalização.. Alguns de seus principais
pontos de degradação eram os edifícios São Vito e Mercúrio, já desocupados e
demolidos, além do Viaduto Diário Popular e casas e sobrados da região, em um total
de três quadras, que serão incorporadas ao Parque Dom Pedro II. Em setembro de
2016 foi construído, na Rua do Glicério, um edifício moderno chamado New Way,
considerado um “empreendimento numa região degradada e esquecida pelo mercado,
contribuindo, significativamente, para a renovação urbana da região.”
Em Centralidade em São Paulo (2000), de Heitor Frúgoli Júnior, há um bom
panorama histórico sobre o Centro de São Paulo que pode ajudar a contextualizar
historicamente as regiões pesquisadas e compreender mais a fundo a dinâmica de
mudanças e revitalizações que estão ocorrendo, entretanto em ritmos diferentes em
cada uma delas.
No início do século, o Centro de São Paulo era um local de consumo,
comércio e negócio de elites, circundado de ornamentação paisagística europeia.
Havia um projeto cujo intuito era a criação de um centro propriamente dito
(FRÚGOLI JR., 2000, pp.49-51). A concentração de atividades que estavam presentes
no Centro foi responsável pelo processo de valorização do espaço central, fazendo
com que o preço do solo urbano se tornasse caro (ALVES, 2011, p.110).
No período de 1899 até 1910 o Centro já era alvo de grandes intervenções.
Houve a reurbanização do Largo Nossa Senhora do Rosário, local de forte
concentração de negros no centro de São Paulo, significando uma sanção disciplinar e
moral por parte das autoridades municipais que visavam higienizar o local
(FRÚGOLI. JR., 2000, pp.51-52). Avançando na história, temos na década de 1960 o
Centro de São Paulo como destino de classes menos abastadas, por migrantes
nordestinos que passaram a desenvolver atividades informais para a sobrevivência.
Nos espaços públicos, diferentes grupos sociais formavam redes de relações voltadas
para a sua sobrevivência, como camelôs, engraxates, prostitutas, travestis, artistas de
rua, etc. O Centro de São Paulo então, passa a ser o local que abriga uma ampla
diversidade sociocultural complexa e conflitiva (FRÚGOLI JR., op.cit. p.59).
Juntamente com o processo de popularização do Centro, a partir dos anos 60,
houve a saída de bancos e empresas para outros subcentros (fruto de decisões do
poder público e privado), além também da deterioração dos equipamentos urbanos,
queda na qualidade dos serviços públicos e o declínio do valor imobiliário (FRÚGOLI
JR., 2000, p.61). Nesse momento, muitos prédios passam por uma mudança de
população que passa a utilizá-los; muitos fecham e têm mudanças de função, ou seja,
10
de modo geral há uma redução do preço do solo urbano (ALVES, 2011, p.110). Desde
meado dos anos 1980, o poder público, junto com a iniciativa privada, vem traçando
novos planos de requalificação da área central de São Paulo, sendo tal ato relacionado
ao processo de deterioração como um problema a ser combatido. (ALVES, 2011,
p.109). Tal ideia de requalificação no Centro de São Paulo segue uma tendência
internacional de valorização dos centros da cidade, segundo Gloria da Anunciação
Alves. Essa tendência internacional se revela através da “gentrificação”: em bairros
em que há “decadência”, as antigas casas são transformadas, e uma população com
um melhor poder aquisitivo se muda para o local, promovendo um “aburguesamento”
na área. A gentrificação vai além da questão puramente da moradia, pois pode haver
uma ocupação cultural dos locais “deteriorados” com a expulsão de populações de
menor poder aquisitivo. É tal questão que vem sendo posta e que vem, materialmente
ocorrendo no centro de São Paulo, ou seja, revitalizar o centro “violento”, “perigoso”
e “temível”, atraindo novamente as classes abastadas ao transformá-lo (ALVES,
op.cit.,p.111).
Em suma, toda a estratégia de renovação da área central está pautada pela
racionalidade técnica que toma como necessário o afastamento das populações cuja
permanência inviabiliza as ações tidas como fundamentais para a atração de novos
investimentos na área a ser requalificada (ALVES, 2011, p.116).
Acho interessante problematizar que os alvos das políticas de requalificação
do Centro de São Paulo, em sua maioria, usuários de crack, prostitutas, camelôs,
plaqueiros, travestis, artistas de rua, etc., podem ser analisados como outsiders. Para
Howard Becker, autor de Outsiders – estudos de sociologia do desvio (2012), quando
uma regra é imposta e uma pessoa a infringe, essa pessoa passa a ser um tipo
especial,
um outsider. O outsider tem uma opinião diferente daquele grupo que estipulou uma
regra, lembrando-se que há regras que são impostas por sanções informais, e regras
sedimentadas pela tradição. É interessante apontar para o fato de que diferentes
grupos consideram diferentes coisas desviantes (BECKER, 2012, pp.15-17). Os
rotulados desviantes não são uma categoria homogênea; alguns infratores podem
escapar da rotulação e outros podem entrar em tal rotulação “sem fazer nada que se
desvie das regras”. As pessoas rotuladas desviantes têm em comum o fato de partilhar
do rótulo e a experiência de serem rotuladas desviantes (BECKER, op.cit., pp. 21-22).
Um ato será ou não desviante dependendo do modo pelo qual as pessoas
reagem a ele. O grau em que um ato será tratado como desviante depende de quem o
comete e de quem se sente prejudicado por ele, pois regras podem ser aplicadas mais
a umas pessoas do que a outras (BECKER, 2012, pp.24-25). É importante reforçar a
11
ideia de que o desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas
na interação entre a pessoa que comete um ato e aquela que reage a ele, assim à
medida que as regras de vários grupos se entrechocam e se contradizem haverá
desacordo quanto ao tipo de comportamento apropriado. A diferença na capacidade de
aplicar e formular regras que serão impostas a outras pessoas são, na verdade,
diferenças de poder, ou seja, alguns indivíduos têm mais facilidade, seja por conta de
seu status social, nível de renda, etc., de aplicar regras e formulá-las em detrimento de
outros indivíduos, e é exatamente isso que é verificado no Centro de São Paulo. As
classes mais pobres, ou/e aqueles indivíduos que agem de maneira diferente da
“esperada” são estigmatizados e submetidos a um processo de higienização do espaço
onde habitam, sendo despejados por aqueles que detêm a força de aplicação de
regras,
no caso, as Operações governamentais (mas não apenas elas) (BECKER, op.cit., pp.
27-29).
Ou seja, na Avenida Ipiranga e em seus arredores o processo de gentrificação
está muito mais avançado do que na Baixada do Glicério, que ainda apresenta-se para
o poder público como um local com problemas estruturais crônicos. É de suma
importância caracterizar o contexto cultural e histórico em que se encontram os locais
de estudos para podermos compreender como os contextos sociais em que se inserem
as crianças atuam no favorecimento ou na limitação da produção das culturas de pares
pelas crianças, e observar que condições que oferecem para a ação cultural da
infância.
(ARENHART;SILVA, 2014, p.60). As crianças pensam de maneira complexa o lugar
onde moram, elas vivem dentro de um contexto que lhes possibilita criar
representações e ações dentro deles, e é isso que está em jogo aqui, é isto que move
a
minha problemática.
Michel Agier em Antropologia da Cidade: lugares, situações, movimentos
(2011) aponta para uma questão importante: nas cidades a noção de região é útil para
registrar as identidades. Essas identidades são associadas a alguma característica
específica que repercute no local, que pode ser estigmatizada ou não. A transformação
dos espaços urbanos em fronteiras identitárias é sempre fundada sobre olhares
cruzados que põem em jogo diferenças de gostos, estilos de vida, de comportamentos,
aparência, etc. (AGIER, 2011, pp.70-72). Seriam estas identidades, nas diferentes
localidades do Centro aqui explicitadas, representadas e reorganizadas de que forma
sob os olhares infantis?

5. Ética e Infância
Ao concebermos a infância como categoria e social e tomarmos as crianças
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como produtoras de cultura, ou seja, autoras, devemos ter muito cuidado, pois a
pesquisa não pode abrir possibilidades para colocá-las em risco e expô-las. O relato e
as imagens produzidas pelas crianças podem acabar revelando problemas graves
vividos por elas, por suas famílias ou por conhecidos, e, nesse caso, a revelação dos
nomes pode se constituir como um risco real. A estratégia para tal problemática será
usar nomes fictícios que aparecerão no trabalho, sendo que tais nomes podem ser
escolhidos pelas próprias crianças (KRAMER, 2002, p.47).
Outro procedimento ético fundamental, que retomarei nas inspirações
metodológicas, é o consentimento das pessoas fotografadas, solicitando a sua
autorização, e indagando às pessoas que mostram seu rosto e o deixam fixar na
imagem, se essa imagem pode ser impressa, projetada e vista como texto. Quando a
resposta for negativa, cabe não utilizar a imagem em hipótese alguma. Ainda que haja
autorização para a utilização da imagem, o pesquisador pode, através de seus
comentários, dar outros sentidos às imagens, enquanto também sabemos que. as
imagens falam e, ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das que
foram ditas, aos ouvidos de quem as pronunciou. Dada tais impasses, cabe aqui o
compromisso de devolver dados àqueles que são estudados, no caso, as crianças e
suas famílias, para que possa ser discutida a natureza dos relatórios, forma de escrita
e
modo de circulação de informações e imagens, socializando os resultados (KRAMER,
2002, p.57).

Inspirações Metodológicas
De início, é imprescindível dizer que reconhecer as crianças como sujeitos em
vez de objetos de pesquisa, significa aceitar que elas podem falar em seu próprio
direito e relatar visões e experiências válidas (ALDERSON, 2005, p.423). Haverá sete
dinâmicas importantes na constituição deste trabalho: 1) Recrutamento de crianças
para a pesquisa, buscando encontrá-las em seus locais de moradia (Edifício Copan e
Conjunto H. Várzea do Carmo) 2) coleta de assinaturas de consentimento informado e
conversa com as famílias sobre o andamento da pesquisa 3) produção de relatos e
histórias de vida através de conversas realizadas com as crianças a fim de conhecer a
fundo os atores desta pesquisa e também conhecer o seu dia a dia, 4)
acompanhamento do dia a dia das crianças dentro e fora de suas casas, 5) oficinas de
fotografia para possibilitar a criação de câmeras pinhole (câmeras feitas com latas e
de fácil produção, possibilitando momento de construção de vínculos e interações
entre mim e as crianças) 6) produção de fotografias feitas pelas crianças sobre as suas
13
práticas cotidianas, e por fim, 7) o feedback, socialização e discussão sobre as
fotografias, relatos e pesquisa.
É importante que haja um recorte de idade a fim de pensarmos os dados como
sendo produzidos por crianças de faixas etárias similares, pois o modo de agir no
mundo de uma criança muito pequena não é o mesmo daquele de de uma criança
maior, pois cada uma tem a sua particularidade e um modo específico de pensar e
interagir com o meio. Aqui realizarei o acompanhamento de dez crianças de dez a
onze anos na área da Avenida Ipiranga, e também acompanharei dez crianças de dez
a
onze anos na área da Baixada do Glicério. Julguei uma idade interessante pois já é
possível pensar em certa autonomia perante aos responsáveis em algumas atividades
cotidianas.
Inicialmente buscarei o consentimento informado das crianças e de seus
responsáveis, ou seja, disponibilizarei a informação acerca da investigação em causa e
pedirei o consentimento da criança e da família para participar da pesquisa, abrindo a
possibilidade para que as crianças possam solicitar a sua saída da pesquisa a qualquer
momento sem sofrer qualquer tipo de constrangimento (SOARES;TOMÁS;
SARMENTO, 2004, p.11). Logo após o consentimento, buscarei conhecer mais as
crianças e as suas práticas cotidianas através de relatos e conversas, realizando
algumas perguntas norteadoras, tais como O que você gosta de fazer em casa? E na
rua? Quando você sai, para onde vai? Com o que e onde você gosta de brincar em
casa? E na rua? Você costuma sair sozinho pela rua? Quando? Você gosta de morar
aqui? Por quê? Após a obtenção de alguns relatos através de conversas que serão
gravadas, realizarei uma oficina para que as crianças aprendam a montar e utilizar
câmeras pinhole, ou seja, câmeras que podem ser construídas através de materiais
simples, como caixas e latas. Será proposto que as oficinas sejam realizadas tanto no
térreo do Edifício Copan, considerada área de lazer dos moradores, tanto na área de
lazer mais estruturada do Várzea do Carmo, os seus jardins. O intuito é que as
crianças possam fotografar suas práticas cotidianas com as câmeras pinhole, para que
depois possamos discutir as fotografias uma a uma, em um movimento de feedback e
de investigação colaborativa, compreendendo com mais profundidade o olhar
fotográfico de cada um deles.
Luciana Bittencourt em Algumas Considerações sobre o Uso da Imagem
Fotográfica na Pesquisa Antropológica (1998) apresenta a investigação colaborativa,
que é de suma importância para a presente proposta. A investigação colaborativa é
baseada na interpretação de imagens e ideias transmitidas pelos sujeitos da imagem.
Os indivíduos estudados interpretam as imagens feitas e dão opiniões sobre o seu
14
processo de produção (BITTENCOURT, 1998, p. 203). Deste modo, pode-se dizer
que a criação de imagens é um produto social de um modo de ver e de ser visto
(BITTENCOURT, op.cit., p.209). A imagem leva o espectador a interpretar eventos
que escapam ao olhar do etnógrafo,revelando estruturas de significados presentes no
objeto estudado.
Ainda pensando na metodologia, é interessante apontar o método apresentado
por John Collier em Antropologia visual: a fotografia como método de pesquisa
(1973), chamado feedback que também será muito pertinente para o presente projeto.
Consiste em devolver as fotografias para o indivíduo pesquisado. Através desse ato é
possível levantar questões sobre as fotografias, e, consequentemente, sobre o tema
explorado, garantindo a participação do indivíduo na pesquisa, enriquecendo o estudo
como um todo (COLLIER, 1973, pp. 45-47).
Jean Rouch conhecido como “antropólogo cineasta” já havia mostrado como a
câmera tornava-se uma facilitadora da comunicação com o grupo pesquisado; para
ele, o filme seria uma possibilidade de levar a análise sobre o outro de volta para o
mesmo, proporcionando observações que poderiam garantir que o cineasta pudesse
rever sua montagem. Para Rouch, a câmera funcionaria como catalisadora de
situações, um estímulo a mais à representação de si, produzindo identidades. É
justamente na interação entre o antropólogo, a câmera e os sujeitos, que uma nova
consciência vai se formando (HIKIJI; CUNHA; FERRAZ, 2007, pp.287- 289). A
presença da câmera fotográfica pode agenciar discursos e a fala dos interlocutores,
“ao invés de tirar algo do sujeito retratado, a fotografia poderia criar um exercício de
desvendamento das possibilidades existentes dentro de nós (grifos meus)”
(RECHENBERG, 2014, p.10). Seguindo os ensinamentos de Rouch, a câmera, nesta
pesquisa, será facilitadora da comunicação das crianças em um primeiro momento nas
oficinas de câmeras pinhole, e posteriormente nas discussões sobre as imagens
realizadas pelos próprios seres pesquisados.
Em suma, a fotografia aqui não é apenas um recurso metodológico, ela faz
parte do corpo da pesquisa, pois, como aponta Sylvia Caiuby Novaes em A
Construção de Imagens na Pesquisa de Campo em Antropologia (2012), as
fotografias auxiliariam o pesquisador a introduzir questões junto aos estudados, elas
ajudam a esclarecer dúvidas, colher depoimentos, e acompanhar discussões que as
fotos suscitam. As fotos auxiliariam no registro daquilo que não necessariamente
conseguimos observar em campo, permitindo registrar aquilo que em palavras perde a
intensidade e dramaticidade (CAIUBY NOVAES, 2012, pp. 20-21). As fotos seriam,
1
para Caiuby Novaes, aquelas que disparam aspectos emocionais, subjetivos e
sensíveis que o texto por si só não consegue captar (CAIUBY NOVAES, 2008, p.5).
É preciso reforçar a ideia de que ao interrogar uma criança estamos
interrogando um criador, desta forma o adulto que interroga não é mais aquele que
tudo sabe, mas aquele que quer saber. Há aqui uma mudança de posição que não
anula as relações de poder entre adulto e criança, mas ao ter um interesse legítimo, o
diálogo pode instaurar-se entre ambos. (FERREIRO, 2001, p.29). Buscarei ouvir
atentamente às crianças, tanto no que tange aos seus relatos, às suas fotografias, e
mais do que isso, elas serão ouvidas cuidadosamente ao auxiliarem na interpretação
de todos os dados coletados na pesquisa. “A existência de outras visões e outras vozes
sobre o mundo não é sinônimo de desordem, superficialidade ou caos metodológico,
mas uma expressão da complexidade e multidimensionalidade do que nos rodeia”
(SOARES; TOMÁS; SARMENTO, 2004,p.16).
Em síntese, a presente proposta torna-se relevante na medida em que busca
ouvir atentamente o que as crianças dizem, dado que muitas vezes elas são
silenciadas
durante as pesquisas, tornando-as fonte primária de conhecimento sobre as suas
experiências e visões sobre o mundo. A relevância também está presente quando há a
possibilidade de evidenciar o potencial das imagens fotográficas nas pesquisas de
campo antropológicas, que aliadas aos relatos escritos, tornam-se um modo
interessante de desvendar a vida social. Além disso, é importante observar como as
crianças compreendem o mundo em que estão inseridas, como há apropriação e
reorganização dos valores, costumes, linguagens, espaços, etc. por estes atores
sociais,
evidenciando como a ideia de infância não deve ser compreendida de maneira
enrijecida e singular.

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