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Autoras:
Bruna Serena Casciano. Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo (2017), e especialista em História, Sociedade e Cultura
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2021). Atualmente é mestranda no
programa de Pós-Graduação em Educação UFSCar (2023). Contato:
bruna.serena@yahoo.com
Sylvia Caiuby Novaes. Docente titular na área de Antropologia da Imagem na
Universidade de São Paulo. Fundadora e coordenadora do LISA – Laboratório de
Imagem e Som em Antropologia entre 1991 e 2014, desde 2017 coordena o GRAVI -
Grupo de Antropologia Visual e é pesquisadora do CEstA - Centro de Estudos
Ameríndios da Universidade de São Paulo. Contato: scaiuby@usp.br
Andrea Braga Moruzzi.
Ementa:
O contexto urbano trabalhado nesta pesquisa está inserido na área central da cidade
de São Paulo, cujo processo de revitalização e gentrifcação está em andamento. Na
Avenida Ipiranga, por exemplo, há edifícios importantes, como o Copan e o Itália,
grande número de moradores de classe média e comércios requintados como, por
exemplo, o Café Floresta. Ainda compondo essa paisagem urbana, há figuras
chamadas de outsiders (nota de rodapé Para Howard Becker, autor de Outsiders –
estudos de sociologia do desvio (2012), quando uma regra é imposta e uma pessoa a
infringe, essa pessoa passa a ser um tipo especial, um outsider): jovens “descolados”,
travestis, pedintes e pessoas em situação de vulnerabilidade que estão fazendo da rua
a sua moradia. Pode-se dizer que esta área contem fronteiras identitárias diferenciadas
que põem em jogo diferenças de gosto, estilos de vida, de comportamentos, aparência,
etc. (AGIER, 2011, pp.70-72).
Um modo fácil de encontrar crianças é procurá-las em seus locais de moradia, desta
forma, buscarei, ao longo desta pesquisa em andamento, dentro do Edifício Copan,
crianças moradoras nos blocos A e F, cuja probabilidade é maior de encontrar famílias,
dada a maior metragem dos apartamentos, embora não seja improvável também
acharmos muitas em apartamentos menores, como no bloco B. O Copan foi projetado
na década de 1950 pelo arquiteto Oscar Niemeyer e hoje o edifício conta com 1.160
apartamentos que são distribuídos em seis blocos contendo 2.038 moradores na área
residencial. Há apartamentos mais caros e com metragem maior, e kitchenettes com
um preço mais reduzido.
A presente pesquisa em desenvolvimento compreende que é preciso estar atento às
formas que ocorrem os processos de revitalização e gentrificação, e como a presença
destas figuras chamadas de outsiders tornam-se significativas no contexto sociocultural
em que as crianças estão inseridas, e busca captar, ao longo de seu desenvolvimento,
qual é a influência destes fatores nas práticas cotidianas infantis.
O cotidiano das crianças está sendo apreendido por mim através da observação
participante, ao acompanhá-las em seu dia a dia dentro e fora de suas casas. Ele
também será apreendido através de relatos contados pelas mesmas e através da
representação fotográfica que as crianças farão sobre as suas práticas cotidianas. Aqui
a imagem será utilizada como uma narrativa visual que informa o relato etnográfico
com a mesma autoridade que o texto escrito baseado na etnografia, pois as fotografias
ajudam na elucidação da comunicação verbal com a expressão corporal, documentam
estilos de vida e atores sociais, além de aprofundar a compreensão do universo
simbólico que exprime sistemas de atitudes relacionados como, por exemplo, ao status
social (BITTENCOURT, 1998, p.199-200).
De acordo com os resultados de minha pesquisa Edifício Copan: Imagem e
Representação (nota de rodapé Pesquisa de iniciação científica realizada sob
orientação da professora Dra. Sylvia Caiuby Novaes (2015-2016), com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o Edifício
Copan abriga pessoas de várias classes sociais, desde aquelas com alto poder
aquisitivo que compõe famílias, até estudantes desempregados que vivem de aluguel.
Alguns moradores entrevistados por mim, trouxeram como percepção o fato de "Quase
não há crianças, e os casais costumam morar em blocos maiores.", ou "o bloco B é
bastante heterogêneo: há muito jovem descolado, muito jovem coxinha, travestis,
aposentados e mães com filhos." O prédio está diretamente ligado à rua privativa que é
considerada sua área de lazer, local cuja intensa observação já deixou revelar, de
maneira tímida, que é um local de interação entre crianças, cachorros e adultos. É
neste espaço que as crianças podem jogar bola, brincar com seus animais e andar de
patinete, pois trata-se de uma rua cujo acesso é controlado, e apenas pedestres podem
circular, assim o controle por parte dos adultos torna-se mais fácil. Nos arredores do
Edifício, as crianças não brincam livremente, há alto fluxo de movimento de carros e
pessoas.
Texto: Sequencia:
Introduçao
Apresentaçao de resultados
Análise
Considerações finais
Referencias.
Balanço Bibliográfico
1. A Infância, as Crianças e os Contextos Socioculturais
Como é possível trabalhar em conjunto com as crianças buscando
compreender o ponto de vista delas sobre as suas próprias práticas cotidianas sem
compreender o que é, de fato, a infância? A infância será estudada aqui como uma
construção social. Até o Renascimento, a infância e a adolescência não eram
distinguidas como etapa própria do desenvolvimento do ser humano, pois as crianças
eram consideradas como adultos “em miniatura”. Foi no início do século XIX que a
ideia de que a criança é um indivíduo diferente do adulto consagrou-se, assim ela
passou a ser compreendida como um adulto em potencial (SALLES, 2000, p.132). A
visão ocidental da infância foi baseada durante muito tempo na ideia da ingenuidade,
subdesenvolvimento intelectual e incapacidade cognitiva das crianças. Elas eram
compreendidas como um ser incompleto, deste modo o adulto deveria ajudá-las a se
2 Descobrir que sentido as crianças estão dando ao mundo é importante para a análise
etnográfica não simplesmente porque
possibilita um relato mais completo e sutil de como a vida é vivida em qualquer esfera,
mas porque nos possibilita tornar
analíticas as categorias das pessoas cujas vidas estamos tentando analisar, seja em
nossos próprios lares, ou em outro lugar do
mundo. Cada criança nasce em um mundo em construção cujas características locais
variam em função da historia de um
ambiente povoado específico. Cada criança encontra um mundo cuja história particular
é concretizada não apenas em um
ambiente físico, mas nas relações sociais específicas onde a criança é envolvida. E
cada criança não tem escolha a não ser dar
sentido àquilo que ela encontra. As ideias de uma criança não saem do nada, elas têm
tudo a ver com o envolvimento
intersubjetivo dessa mesma criança no mundo (TOREN, 2010, p.40).
4
desenvolver como um ser humano completo. Apenas no século XX houve o
reconhecimento da criança como indivíduo dotado de inteligência (FERREIRO, 2001,
p.21). A infância é um modo particular, e não universal de pensar a criança. Phillipe
Ariés também nos mostra que a infância é uma construção social e histórica do
ocidente, pois para ele o sentimento de infância é como uma particularidade da
infância em relação ao mundo dos adultos, havendo cisão entre estas experiências. O
que é ser criança é pensado de maneira diversa em diferentes contextos culturais3,
assim experiências e vivências são diferentes de uma infância para outra, por isso
precisamos compreender o contexto sociocultural em que os indivíduos se encontram
e buscar desvendar “infâncias” no plural. As crianças estão em toda a parte, e o
conhecimento sobre elas é como se tudo fosse sabido (COHN, 2005, pp. 22-26).
Talvez seja interessante complementar esta afirmação. De início é essencial
afirmar que a criança não é um ser incompleto, mas um ser social, que é legítimo
estudar. Através da cisão entre o mundo adulto e o mundo infantil, é preciso
compreender a criança e o seu mundo através de seu próprio ponto de vista, como fez
Bronislaw Malinowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1997), ao buscar
compreender o ponto de vista dos nativos através da compreensão dos mesmos sobre
o seu universo cultural “(...) há ainda a registrar-se-lhe o espírito – os pontos de vista,
as opiniões, as palavras dos nativos...” (MALINOWSKI, 1997, p.32). A antropologia,
como diz Clarice Cohn em Antropologia da Criança (2005), busca entender o ponto
de vista daquele sobre com quem dialoga, então fazer antropologia é buscar entender
um fenômeno em seu contexto social e cultural. Qualquer evento deve ser estudado e
compreendido por seu valor dentro do sistema, no contexto social em que é gerado
(COHN, 2005, pp.8-11).
Por exemplo, a ideia de que cabe à criança brincar e aprender é uma
construção histórica e social, pois não há imagem que seja construída pela e sobre a
criança que não seja produto de um contexto sociocultural e histórico. As crianças são
produzidas pela cultural e produtoras de cultura, pois elaboram sentidos para o
mundo, compartilhando de uma cultura, assim os sentidos que elaboram partem de um
sistema simbólico compartilhado com os adultos. É importante pensar como a criança
formula um sentido ao mundo que a rodeia, já que ela não sabe menos que o adulto,
ela sabe outra coisa. As crianças criam para si uma rede de relações que não estão
3 Sem dúvida, a criança não é um adulto. Não é tal nem em nossa sociedade e nem
em nenhuma outra, e em todas está igualmente
afastada do nível de pensamento do adulto, de tal modo que a distinção entre
pensamento adulto e pensamento infantil recorta, se
é possível dizer, na mesma linha, todas as culturas e todas as formas de organização
social. A cultura primitiva é sempre uma
cultura adulta, e por isso incompatível com as manifestações infantis que se pode
observar na mais evoluída civilização... (LÉVISTRAUSS,
2012,p.131)
5
apenas dadas, mas que devem ser colocadas em prática e cultivadas, atuando sobre a
criação das relações sociais (CONH, 2005, pp.30-50).
Devemos livrar-nos da ideia de que já conhecemos as crianças, reaprendendo
aquilo que nos parece tão natural. Mariza Peirano em Antropologia No Brasil
(Alteridade Contextualizada) (1999) apresenta o modelo típico-ideal de alteridade -
aspecto fundante da antropologia - que será utilizado em minha pesquisa: a alteridade
próxima. De acordo com a autora, a antropologia nos dias de hoje também está sendo
feita perto de casa, assim, a alteridade próxima é uma alternativa aos estudos de
temas
urbanos. (PEIRANO, 1999, pp.240-242). É possível compreender melhor a alteridade
próxima como sendo aquela relativa à pesquisa de campo urbana na qual há contato
com grupos que são de certa forma “familiares” ao pesquisador. Aqui há o exercício
de estranhar o conhecido, ou seja, afastar-se do conhecimento prévio que o
observador tem sobre o seu objeto de estudo, no caso as crianças, para observá-lo de
outro modo, e finalmente compreendê-lo mais a fundo.
Em síntese, as crianças têm experiências e vivem situações que ocorrem em
contextos coletivos específicos, e a partir de relações estabelecidas em um tempo e
espaço, elas fazem desse terreno um campo de representações e interpretações sobre
os pensamentos, os signos, as ações e as linguagens que estão presentes em seu
cotidiano (GOMES, 2008, p.175). Cabe então, nesta pesquisa, realizar o que Clifford
Geertz propõe ao dizer que a etnografia deve valer-se de uma descrição densa (aquela
que vai ao coração dos significados, e não uma descrição detalhista), ou seja, não
basta apenas coletar as questões visíveis em campo. Não basta apenas observar o dia
a
dia das crianças ou ouvir os seus relatos, deve-se interpretar estes dados e buscar a
sua
significação a luz do contexto cultural a qual estão inseridos (GEERTZ, 1989, pp.5-7).
2. O Cotidiano e o Espaço
Buscarei compreender de que forma as crianças das duas localidades aqui
propostas vivem, criam e recriam o seu dia a dia e de que modo ele pode ser
representado fotograficamente por seus olhares. Deste modo, será possível evidenciar
como o universo sociocultural em que estão inseridas as crianças é apropriado,
representado e reinventado por elas. O recorte sociocultural é interessante justamente
para que possamos observar de que modo as crianças vivem ao se relacionarem e
agirem em contextos diferentes, no que tange às normas, aos valores, ao espaço e ao
nível socioeconômico onde estão inseridas. É importante compreender de que modo o
cotidiano será utilizado nesta pesquisa, pois será através da representação dele por
meio de imagens, relatos e vivências que se poderá analisar a construção de ideias de
6
infâncias relacionadas ao contexto em que os atores estão inseridos, e mais do que
isso, será através deste movimento que o papel ativo das crianças como atores sociais
poderão ser evidenciados.
O cotidiano, como diz Lisandra Ogg Gomes (2008), é o dia a dia que passa,
sem que as coisas pareçam passar. Ele manifesta-se como um campo de rituais que
preservam a continuidade do vivido, que acomodam as contradições entre passado e
presente e que fixam eventos, transformando-os de estruturas diacrônicas para
sincrônicas. Através da rotina e na convivência com os outros o indivíduo
experimenta e aprende os costumes e os valores do seu espaço e do seu tempo. Cada
indivíduo elabora uma maneira própria de decidir sobre o seu cotidiano, mas ele
também tem em si os costumes, as normas, as relações de interdependência com as
outras gerações e as condições dadas pelo coletivo. Na medida em que a criança
precisa entrar na vida cotidiana, aprender a usar os artefatos culturais, compreender
as regras, os valores, os costumes, as linguagens, e os contextos, ela passa a atuar
sobre a cultura, a natureza e a história. As crianças agem na vida cotidiana muito além
do que foi determinado, participam ativamente e são agentes de seus atos, portanto
são atores. Elas percebem, interpretam e dão significados diversos às relações que
percorrem as maneiras de fazer a vida diária. São olhares distintos dos olhares dos
adultos que resultam em pensamentos diversos (GOMES, 2008, pp.176- 182).
O olhar para o cotidiano é potente ao modificar leituras recorrentes de que
crianças são incapazes de agir socialmente no espaço urbano, abrindo a possibilidade
de entender a vida da cidade através do ponto de vista das crianças sobre o seu dia a
dia e a sua relação com o espaço onde estão inseridas. É importante frisar que é
possível relacionar a vida cotidiana como âmbito privilegiado para a ação criativa e
criadora de moradores de uma cidade e a existência de brechas na produção espacial:
nas rupturas do cotidiano há um força criadora irredutível à homogeneização do
cotidiano. As crianças valem-se destas brechas? Elas criam produzem novos espaços
na cidade? Como seriam eles? Tais indagações quanto ao espaço também motivam
esta proposta de pesquisa.
Júlio Cortázar (2014) traz à tona a tarefa diária de produção do espaço que
contém em si a reprodução de relações estagnadas, a ação passiva e previsível, mas
aponta também que o espaço urbano é resultante de criação ativa, ele é palco de toda
a situação de vida que podemos inventar na cidade.
Henri Lefebvre (2006) em A Produção do Espaço pensa o espaço como um
produto social que contém relações sociais de reprodução e de produção. Engendrado
na lógica capitalista, esse espaço é o local onde hábitos e costumes do cotidiano
7
buscam o consumo e a produção, sendo espaços marcados pela padronização e
racionalidade. O autor se refere a esse espaço com o nome de “espaço abstrato”. Na
vida das pessoas há algo além desta racionalidade, também há experiências, relações
sonhos e transgressões em nossa vida cotidiana, sendo assim: o espaço abstrato não
domina a vida na cidade, ainda há realidade sensível e criadora.
3. As Imagens
O cotidiano das crianças, nas duas localidades, poderá ser apreendido por mim
através da observação participante, ao acompanhar as crianças em seu dia a dia
dentro
e fora de suas casas. Ele também poderá ser apreendido através de relatos contados
pelas mesmas e através da representação fotográfica que as crianças farão sobre as
suas práticas cotidianas. Aqui a imagem será utilizada como uma narrativa visual que
informa o relato etnográfico com a mesma autoridade que o texto escrito baseado na
etnografia, pois as fotografias ajudam na elucidação da comunicação verbal com a
expressão corporal, documentam estilos de vida e atores sociais, além de aprofundar a
compreensão do universo simbólico que exprime sistemas de atitudes relacionados
como, por exemplo, ao status social (BITTENCOURT, 1998, p.199-200). Como diz
José de Souza Martins (2008), “Ela [a fotografia] faz parte do imaginário e cumpre
funções de revelação e ocultação na vida cotidiana. Portanto as pessoas são
fotografadas representando-se na sociedade e representando-se para s sociedade”
(MARTINS, 2008,p.47). O presente projeto só tende a ganhar ao usar imagens aliadas
ao texto. Quando uma cena é registrada pela câmera fotográfica ela passa a constituir
um imaginário que está a ela associado (RECHENBERG, 2014, p.21), deste modo, o
processo criativo de construção e apropriação da cultura pelas crianças pode ser
amplamente compreendido com o auxílio fotográfico, pois ele pode acrescentar mais
uma forma de compreensão do ponto de vista infantil sobre as suas práticas em um
contexto sociocultural específico, reafirmando valores e normas, modos de ver e de
agir em sociedade. Vale ressaltar, como frisa Boris Kossoy (1999), que a fotografia
tem a motivação do fotógrafo, no caso, as crianças, que influenciará na criação de
uma foto, e essa motivação influenciará também na concepção da imagem final. Ou
seja, o autor aponta que a fotografia seria então a representação resultante do
processo de criação e construção do fotógrafo, sendo este último aquele que interfere
na imagem dramatizando ou valorizando os cenários, deformando a aparência de seus
retratos, omitindo ou introduzindo detalhes, manipulando seus temas (KOSSOY, 1999,
pp 25- 30).
Em síntese, José de Souza Martins em Sociologia da Fotografia e da Imagem
8
(2008) aponta que não apenas na sociologia, como também na antropologia, a
fotografia passou a ser considerada recurso objetivo de pesquisa, a foto passou a ser
mais do que um recurso de técnica de pesquisa, pois ela não acrescentaria à precisão
da observação sociológica, ela acrescentaria mais à indagação sociológica na medida
em que a câmera permite ver o que por outros meios não é visível (MARTINS, 2008,
pp. 33-36).
5. Ética e Infância
Ao concebermos a infância como categoria e social e tomarmos as crianças
12
como produtoras de cultura, ou seja, autoras, devemos ter muito cuidado, pois a
pesquisa não pode abrir possibilidades para colocá-las em risco e expô-las. O relato e
as imagens produzidas pelas crianças podem acabar revelando problemas graves
vividos por elas, por suas famílias ou por conhecidos, e, nesse caso, a revelação dos
nomes pode se constituir como um risco real. A estratégia para tal problemática será
usar nomes fictícios que aparecerão no trabalho, sendo que tais nomes podem ser
escolhidos pelas próprias crianças (KRAMER, 2002, p.47).
Outro procedimento ético fundamental, que retomarei nas inspirações
metodológicas, é o consentimento das pessoas fotografadas, solicitando a sua
autorização, e indagando às pessoas que mostram seu rosto e o deixam fixar na
imagem, se essa imagem pode ser impressa, projetada e vista como texto. Quando a
resposta for negativa, cabe não utilizar a imagem em hipótese alguma. Ainda que haja
autorização para a utilização da imagem, o pesquisador pode, através de seus
comentários, dar outros sentidos às imagens, enquanto também sabemos que. as
imagens falam e, ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das que
foram ditas, aos ouvidos de quem as pronunciou. Dada tais impasses, cabe aqui o
compromisso de devolver dados àqueles que são estudados, no caso, as crianças e
suas famílias, para que possa ser discutida a natureza dos relatórios, forma de escrita
e
modo de circulação de informações e imagens, socializando os resultados (KRAMER,
2002, p.57).
Inspirações Metodológicas
De início, é imprescindível dizer que reconhecer as crianças como sujeitos em
vez de objetos de pesquisa, significa aceitar que elas podem falar em seu próprio
direito e relatar visões e experiências válidas (ALDERSON, 2005, p.423). Haverá sete
dinâmicas importantes na constituição deste trabalho: 1) Recrutamento de crianças
para a pesquisa, buscando encontrá-las em seus locais de moradia (Edifício Copan e
Conjunto H. Várzea do Carmo) 2) coleta de assinaturas de consentimento informado e
conversa com as famílias sobre o andamento da pesquisa 3) produção de relatos e
histórias de vida através de conversas realizadas com as crianças a fim de conhecer a
fundo os atores desta pesquisa e também conhecer o seu dia a dia, 4)
acompanhamento do dia a dia das crianças dentro e fora de suas casas, 5) oficinas de
fotografia para possibilitar a criação de câmeras pinhole (câmeras feitas com latas e
de fácil produção, possibilitando momento de construção de vínculos e interações
entre mim e as crianças) 6) produção de fotografias feitas pelas crianças sobre as suas
13
práticas cotidianas, e por fim, 7) o feedback, socialização e discussão sobre as
fotografias, relatos e pesquisa.
É importante que haja um recorte de idade a fim de pensarmos os dados como
sendo produzidos por crianças de faixas etárias similares, pois o modo de agir no
mundo de uma criança muito pequena não é o mesmo daquele de de uma criança
maior, pois cada uma tem a sua particularidade e um modo específico de pensar e
interagir com o meio. Aqui realizarei o acompanhamento de dez crianças de dez a
onze anos na área da Avenida Ipiranga, e também acompanharei dez crianças de dez
a
onze anos na área da Baixada do Glicério. Julguei uma idade interessante pois já é
possível pensar em certa autonomia perante aos responsáveis em algumas atividades
cotidianas.
Inicialmente buscarei o consentimento informado das crianças e de seus
responsáveis, ou seja, disponibilizarei a informação acerca da investigação em causa e
pedirei o consentimento da criança e da família para participar da pesquisa, abrindo a
possibilidade para que as crianças possam solicitar a sua saída da pesquisa a qualquer
momento sem sofrer qualquer tipo de constrangimento (SOARES;TOMÁS;
SARMENTO, 2004, p.11). Logo após o consentimento, buscarei conhecer mais as
crianças e as suas práticas cotidianas através de relatos e conversas, realizando
algumas perguntas norteadoras, tais como O que você gosta de fazer em casa? E na
rua? Quando você sai, para onde vai? Com o que e onde você gosta de brincar em
casa? E na rua? Você costuma sair sozinho pela rua? Quando? Você gosta de morar
aqui? Por quê? Após a obtenção de alguns relatos através de conversas que serão
gravadas, realizarei uma oficina para que as crianças aprendam a montar e utilizar
câmeras pinhole, ou seja, câmeras que podem ser construídas através de materiais
simples, como caixas e latas. Será proposto que as oficinas sejam realizadas tanto no
térreo do Edifício Copan, considerada área de lazer dos moradores, tanto na área de
lazer mais estruturada do Várzea do Carmo, os seus jardins. O intuito é que as
crianças possam fotografar suas práticas cotidianas com as câmeras pinhole, para que
depois possamos discutir as fotografias uma a uma, em um movimento de feedback e
de investigação colaborativa, compreendendo com mais profundidade o olhar
fotográfico de cada um deles.
Luciana Bittencourt em Algumas Considerações sobre o Uso da Imagem
Fotográfica na Pesquisa Antropológica (1998) apresenta a investigação colaborativa,
que é de suma importância para a presente proposta. A investigação colaborativa é
baseada na interpretação de imagens e ideias transmitidas pelos sujeitos da imagem.
Os indivíduos estudados interpretam as imagens feitas e dão opiniões sobre o seu
14
processo de produção (BITTENCOURT, 1998, p. 203). Deste modo, pode-se dizer
que a criação de imagens é um produto social de um modo de ver e de ser visto
(BITTENCOURT, op.cit., p.209). A imagem leva o espectador a interpretar eventos
que escapam ao olhar do etnógrafo,revelando estruturas de significados presentes no
objeto estudado.
Ainda pensando na metodologia, é interessante apontar o método apresentado
por John Collier em Antropologia visual: a fotografia como método de pesquisa
(1973), chamado feedback que também será muito pertinente para o presente projeto.
Consiste em devolver as fotografias para o indivíduo pesquisado. Através desse ato é
possível levantar questões sobre as fotografias, e, consequentemente, sobre o tema
explorado, garantindo a participação do indivíduo na pesquisa, enriquecendo o estudo
como um todo (COLLIER, 1973, pp. 45-47).
Jean Rouch conhecido como “antropólogo cineasta” já havia mostrado como a
câmera tornava-se uma facilitadora da comunicação com o grupo pesquisado; para
ele, o filme seria uma possibilidade de levar a análise sobre o outro de volta para o
mesmo, proporcionando observações que poderiam garantir que o cineasta pudesse
rever sua montagem. Para Rouch, a câmera funcionaria como catalisadora de
situações, um estímulo a mais à representação de si, produzindo identidades. É
justamente na interação entre o antropólogo, a câmera e os sujeitos, que uma nova
consciência vai se formando (HIKIJI; CUNHA; FERRAZ, 2007, pp.287- 289). A
presença da câmera fotográfica pode agenciar discursos e a fala dos interlocutores,
“ao invés de tirar algo do sujeito retratado, a fotografia poderia criar um exercício de
desvendamento das possibilidades existentes dentro de nós (grifos meus)”
(RECHENBERG, 2014, p.10). Seguindo os ensinamentos de Rouch, a câmera, nesta
pesquisa, será facilitadora da comunicação das crianças em um primeiro momento nas
oficinas de câmeras pinhole, e posteriormente nas discussões sobre as imagens
realizadas pelos próprios seres pesquisados.
Em suma, a fotografia aqui não é apenas um recurso metodológico, ela faz
parte do corpo da pesquisa, pois, como aponta Sylvia Caiuby Novaes em A
Construção de Imagens na Pesquisa de Campo em Antropologia (2012), as
fotografias auxiliariam o pesquisador a introduzir questões junto aos estudados, elas
ajudam a esclarecer dúvidas, colher depoimentos, e acompanhar discussões que as
fotos suscitam. As fotos auxiliariam no registro daquilo que não necessariamente
conseguimos observar em campo, permitindo registrar aquilo que em palavras perde a
intensidade e dramaticidade (CAIUBY NOVAES, 2012, pp. 20-21). As fotos seriam,
1
para Caiuby Novaes, aquelas que disparam aspectos emocionais, subjetivos e
sensíveis que o texto por si só não consegue captar (CAIUBY NOVAES, 2008, p.5).
É preciso reforçar a ideia de que ao interrogar uma criança estamos
interrogando um criador, desta forma o adulto que interroga não é mais aquele que
tudo sabe, mas aquele que quer saber. Há aqui uma mudança de posição que não
anula as relações de poder entre adulto e criança, mas ao ter um interesse legítimo, o
diálogo pode instaurar-se entre ambos. (FERREIRO, 2001, p.29). Buscarei ouvir
atentamente às crianças, tanto no que tange aos seus relatos, às suas fotografias, e
mais do que isso, elas serão ouvidas cuidadosamente ao auxiliarem na interpretação
de todos os dados coletados na pesquisa. “A existência de outras visões e outras vozes
sobre o mundo não é sinônimo de desordem, superficialidade ou caos metodológico,
mas uma expressão da complexidade e multidimensionalidade do que nos rodeia”
(SOARES; TOMÁS; SARMENTO, 2004,p.16).
Em síntese, a presente proposta torna-se relevante na medida em que busca
ouvir atentamente o que as crianças dizem, dado que muitas vezes elas são
silenciadas
durante as pesquisas, tornando-as fonte primária de conhecimento sobre as suas
experiências e visões sobre o mundo. A relevância também está presente quando há a
possibilidade de evidenciar o potencial das imagens fotográficas nas pesquisas de
campo antropológicas, que aliadas aos relatos escritos, tornam-se um modo
interessante de desvendar a vida social. Além disso, é importante observar como as
crianças compreendem o mundo em que estão inseridas, como há apropriação e
reorganização dos valores, costumes, linguagens, espaços, etc. por estes atores
sociais,
evidenciando como a ideia de infância não deve ser compreendida de maneira
enrijecida e singular.
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2
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