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VIII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental Rio de Janeiro, 19 a 22 de Julho de 2015

Naturezas e infâncias: as diferentes experiências culturais

Luana Santos da Silva – FURG

Resumo: o objetivo deste texto é refletir sobre as múltiplas infâncias relacionadas à


natureza. Perceber essa última a partir do processo histórico, sendo uma representação
social que varia conforme os tempos. Assim também ocorre com a concepção sobre a
infância, que se modifica na história da humanidade. Afastando-se da ideia de que a
criança é um ser universal e seres que virão a ser, o texto busca problematizar através
dos estudos sobre crianças indígenas desatrelar a concepção de criança/aluno e mostrar
que nas diferentes culturas há formas variadas de se perceber a criança assim como
também o seu papel na comunidade.

Palavras-chaves: naturezas; infâncias; crianças indígenas.

Abstract: The purpose of this paper is to reflect on the many childhoods related to
nature. Realize the latter linked from the historical process, being a social representation
that varies with time. So is the concept of childhood, that changes in human history.
Away from the idea that the child is a universal beings and to come to be, the text raises
questions through the study of indigenous children unleash the design of child / student
and show that in different cultures there are different ways of perceiving the child as
well as their role in the community.

Keywords: nature; childhood; indigenous children.

1 - Introdução

A temática central desse texto está relacionada com estudos na área de


antropologia e educação, no âmbito da linha de pesquisa em Educação Ambiental com
foco na concepção de múltiplas infâncias, mais especificamente com a noção da criança
indígena inter-relacionada com a natureza.
Sabe-se que até a década de 1980 as pesquisas referentes à criança
apresentavam-se escassas. A mirada antropológica sobre as infâncias ainda tem pouco
difusão devido ao fato de que, segundo hipóteses de Margaret Mead (antropóloga que
durante décadas incluiu as crianças e adolescentes em seus estudos) a cultura ocidental
dos Antropólogos é influenciada pela cultura europeia, em que a criança não é
considerada um ser social. Somente a partir da década de 1980 que as questões
relacionadas à infância passam a ser discutidas e problematizadas (Silva et al., 2002).
Desta forma, esse texto pretende ser relevante para os estudos relacionados à
infância. Pretende através de problematizações referentes às crianças indígenas,
desatrelar a concepção de criança/aluno e de seres sociais que virão a ser (processo de
aprendizado e formação dessas crianças/alunos em seres sociais).

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Realização: Unirio, UFRRJ e UFRJ
2 - Historicidade da natureza

A noção da natureza e de ambiente surge a partir de um solo histórico, formado


por experiências de valorização e também de temor. O conceito de meio ambiente é
uma representação social, que segundo Reigota (1998) pode ser classificado como
naturalista, antropocêntrico e globalizante.
Para se compreender a noção de natureza contemporânea é importante se
conhecer os percursos que ela percorreu na história. Carvalho (2009, p.138) traz em seu
texto essa trajetória:
Muitos dos valores e sensibilidades que constituem o ideário ambiental
contemporâneo poderiam ser compreendidos como herdeiros de uma tradição
que passa pela compreensão iluminista de uma natureza controlada pela
razão, pela visão pastoral idílica do naturalismo inglês do século XVII e pelas
novas sensibilidades burguesas do século XVIII; pelo romantismo europeu
dos séculos. XVIII-XIX; e pelo imaginário edênico sobre a América. Ao
percorrer estas diversas sensibilidades e paisagens produzidas historicamente
é que podemos encontrar as várias naturezas da natureza.

Para que se possa pesquisar sobre infância e natureza é importante não se


compartimentar, desatrelar os dois temas dos seus percursos históricos, e sim perceber
as inter-relações existentes. Adentrar nas interconexões e perceber a forma com que as
diferentes infâncias se relacionam com o ambiente, a partir de uma trajetória
inventariada socialmente.
As concepções relacionadas às formas de se perceber a natureza estão atreladas
às culturas dos sujeitos. As epistemologias ecológicas se apresentam como novos
horizontes de compreensão que visam superar as dualidades modernas, tais como
natureza e cultura, mente e corpo e conhecimento e experiência (CARVALHO, 2014).
Essa complexidade de interconexões é relevante para se estudar os sujeitos e
suas relações com a natureza e a cultura. Trazendo as contribuições de Carvalho (2014,
p. 66) “Não se trata aqui de apenas reconhecer a diversidade cultural e levar em conta o
ponto de vista do “outro” humano, mas de considerar o ponto de vista das coisas e dos
organismos não humanos que habitam o mundo”.

3 - História social da infância

A concepção de infância que possuímos hoje faz parte de toda uma trajetória, de
todo um processo histórico social. Esse olhar é importante para que se possa
desconstruir a ideia de que a criança é um ser atemporal e universal, permitindo,
segundo Loureiro (2009, p.39) “[...] a apreensão do movimento da vida, transformando
as relações existentes sem recair em generalizações atemporais e em modelos de mundo
que diluem a complexa dialética natural/social”.
Por exemplo, nas pesquisas de Ariès (2011) que estudou a arte medieval, por
volta do século XII, a infância não era representada. No final do século XIII a criança
não era caracterizada, por expressão particular e sim homens em miniatura. A infância
era considerada uma fase sem importância e a quantidade de óbitos extremamente alta.
Ariès (idem, p.21-22) problematizou dizendo que “o sentimento de que se faziam várias
crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito
forte”. No século XVII, os temas da primeira infância começam a se expandir e
aparecem crianças em diversos retratos, demonstrando na arte, um foco nesses pequenos

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seres. Na sociedade medieval, o sentimento de infância não estava presente, ou seja, a
consciência da particularidade infantil, que distingue a criança do adulto, não existia.

4 - Crianças indígenas: novos caminhos trilhados pelas pesquisas em Antropologia

Existem outras infâncias em nosso próprio tempo, como pode ser considerada,
por exemplo, a infância indígena. Tal fato vem a corroborar com a desconstrução da
noção de infância universal e atemporal.
No campo da etnologia indígena, as pesquisas sobre a infância vêm crescendo e
levando em consideração o que essas crianças têm para dizer das suas vivências.
Conforme Tassinari (2009) e Cohn (2013), a “Mirada Antropológica” em relação à
infância indígena no Brasil é algo recente. Somente a partir de 1990 a etnologia
indígena passou a observar e se atentar na criança ameríndia. Os materiais etnográficos
referentes aos estudos sobre as crianças indígenas ainda são escassos, sendo a produção
antropológica sobre as questões relacionadas à escolarização das sociedades indígenas
no Brasil, algo recente tendo como alavanca a conquista no campo dos direitos
indígenas. Com tal fato, se tentava criar situações como métodos, técnicas, contextos
para que os pesquisadores conseguissem ouvi-las no que elas tinham para falar.
Nesse contexto etnográfico é importante se evitar o pressuposto de que existe
uma infância universal, pois se tem que levar em consideração o que é ser criança
naquele determinado local. As concepções de infância para os indígenas são variadas
conforme cada sociedade e diversa da nossa ideia de criança ocidental.

5 - Concepções de infâncias indígenas e processos de aprendizagem

Conforme Nunes (2005) a falta de dados sobre crianças tem a ver com a visão de
“adultocentrismo” característico do pensamento ocidental. A visão do
“adultocentrismo” citada por Nunes (2005) não é compartilhada nas comunidades
indígenas, que reconhecem a criança como um ser autônomo e suas falas são levadas
em consideração. Segundo a mesma autora, desde os anos 1990 nas pesquisas de
antropologia da infância, os estudos sobre criança indígena tem sido relevantes para se
afastar da tendência de se falar sobre o meio urbano e o contexto escolar. Essas
pesquisas estão se atentando nas crianças como sujeitos sociais. As crianças indígenas
tem liberdade na aldeia e não são consideradas seres que irão vir a ser, ou seja, seres
passivos na educação. Para que se possa compreender a noção de infância indígena, é
necessário um afastamento da concepção urbana que se tem de criança, é importante se
aproximar das formas indígenas de perceber a infância. A criança ameríndia Guarani,
por exemplo, é considerada como um ser de fato que, deve ser cativada para que seu
espírito queira ficar na Terra.
No exemplo das pesquisas de Cohn (2013), com os Xikrin, pode ser percebido
que a concepção de infância estava intimamente relacionada com os sentidos e as
percepções, com as aprendizagens e formas de ver o mundo, e com a corporeidade.
Após realizar diversas vezes, para os povos e para si mesma, a pergunta o que é uma
criança, e receber respostas vagas em um dado momento, recebeu uma resposta
antagônica que lhe fez refletir e seguir um caminho metodológico. O velho Bep-Djoti
respondeu para Cohn (2013, p.225) que “As crianças tudo sabem porque tudo veem e
nada sabem porque são crianças”. Com tal explicação, a autora passou a focar suas
pesquisas atentando na corporeidade das crianças, como elas tratam os olhos e ouvidos e

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que relação os mesmos tem com o aprender, assim como também a mobilidade desses
pequenos seres. Os brinquedos que fazem constituem seus corpos e seus seres, onde o
processo de crescimento é mediado por objetos que adornam seus corpos, que servem
para brincar e intervir no mundo. As contribuições das pesquisas realizadas por Silva
(2002), com os povos indígenas Xavante e Xerente demonstraram que para as crianças
indígenas a corporalidade deve ser considerada como: “[...] um dos mecanismos centrais
dos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos, habilidades, técnicas e
concepções próprias à educação das crianças índias” (SILVA, 2002, p.40).
Com o exemplo das comunidades Xikrin, Cohn (2000) argumenta que as
crianças não são vistas como um “adulto em miniatura” que se prepara treinando para a
vida adulta. A pintura corporal serve como uma “pele social”, que expressa valores e
significados. A “pele mole”, característica dos bebês, significa para os Xikrin, que com
elementos constitutivos pouco integrados, o recém-nascido corre grandes riscos de
perder seu Karon (alma). Por tal situação, os indígenas cuidam para que as crianças não
chorem muito.
Durante os rituais de iniciação xamãnica Maxakali, as crianças são fundamentais
na troca entre as mulheres e os espíritos, sem as crianças os rituais não acontecem, pois
são os meninos (Taxtakox) que possibilitam essa troca. Através de máscaras
cerimoniais e pinturas no corpo (corpos transformados em yãmiy - espírito), as crianças
viram os espíritos presentes na terra. Com seus cantos e danças para os humanos elas
realizam a união entre humanos e espíritos. As mulheres entregam seus filhos vivos
para a iniciação na casa cerimonial dos homens, e recebem em troca seus filhos mortos
quando crianças, que poderão voltar para dançar e cantar. Esse ritual de iniciação
simbolicamente marca a divisão entre a dimensão de rito masculino e a dimensão
doméstica feminina.
As crianças são consideradas seres em maturação que devem ser cuidadas,
instruídas, e que tem um papel fundamental no cotidiano dessas tribos. Conforme
Tassinari (2013), as crianças indígenas são mediadoras como, por exemplo, levar e
trazer recados de diferentes grupos domésticos ou também na relação ou no contato com
os não-índios. As mesmas são as peças chaves na socialização e na interação, e os
adultos ameríndios “[...] reconhecem nelas potencialidades que as permitem ocupar
espaços de sujeitos plenos e produtores de sociabilidade” (TASSINARI, 2013, p. 23).
As crianças indígenas possuem uma autonomia diferente das concepções da infância
que presenciamos, elas podem tomar decisões que irão afetar suas famílias ou
comunidade em geral. A aprendizagem ocorre não separando a criança do mundo, pois
o todo é que proporciona o conhecimento. Os indígenas acreditam que os órgãos
sensoriais de aprendizagem são os ouvidos e o coração.
Codonho (2007), nas pesquisas com o povo Galibi-Marworno observou que as
crianças aprendem entre si, onde os mais velhos ensinam os mais novos, ocorrendo o
que ela denominou de “transmissão horizontal dos saberes”, em que crianças aprendem
com outras, sem a presença dos adultos. Além de serem sujeitos sociais, também são
considerados sujeitos educadores. Mesmo com essa característica, os adultos são
importantes no processo de ensino e aprendizagem, e se responsabilizam por educar as
crianças. Produzem objetos em miniatura (cestas, arcos, etc.), para que seus filhos
possam auxiliar nos afazeres diários.
Meadts (2011) faz referência à população que vive no baixo curso do rio
Tapejós. Esta autora dá destaque para a infância, em um ambiente de produção familiar,
as crianças começam a trabalhar desde pequenas e ajudam seus familiares conforme

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suas habilidades, como por exemplo, na caça, atividades de casa e etc. Em seu estudo
relata um dia de trabalho em que as crianças participam ativamente, e em alguns
momentos, tem atividades livres onde o lúdico aparece naturalmente. O trabalho que
cada criança desenvolve é escolhido pelos adultos, conforme por já estarem
“acostumados”, com o “hábito” de o realizarem. Embora a intenção educativa não seja
explicitada em nenhum momento, se percebe claramente a presença de uma dimensão
de aprendizagem.
A aprendizagem nessa população que habita o Baixo-Tapejós ocorre “sozinha”,
ou seja, o aprendiz observa atentamente e silenciosamente seu mestre, que realiza as
atividades. Através da experiência continuada, como observador ativo, o conhecimento
vai sendo desenvolvido. A criança faz parte do processo de transmissão/aprendizagem
na cultura na qual se insere.
Uma expressão usualmente utilizada nessa região é: “Tu garante?”. A mesma
significa se o indivíduo sabe fazer algo bem feito. Para essa população não se aprende
na tentativa/erro ou na verbalização de determinadas atividades através de um mestre,
mas sim na observação ativa e silenciosa.
Deve ser considerado também que para os povos ameríndios, a fabricação de
corpos saudáveis é fundamental. Para os povos indígenas da América do Sul há uma
relação entre os valores morais e éticos com a formação de corpos saudáveis. Cuidados
com uma alimentação saudável, conjuntamente com exercícios físicos fazem parte do
cotidiano dessas populações.
Alvares (2004), a partir de sua pesquisa com as crianças Maxakali que habitam o
nordeste de Minas Gerais refletiu sobre os processos de produção de ensino e de
conhecimento na educação escolar indígena. Como foco, essa autora faz a análise da
inserção da escola diferenciada na comunidade pesquisada. Nessa sociedade ocorreu
uma recusa da introdução do português para as crianças indígenas, ou seja, foram
somente alfabetizadas na língua materna e também no ensino do xamanismo.
Para os Maxakali a criança é considerada o “fio que tece” as diferentes
dimensões da sociabilidade, as mesmas iniciam a relação com o outro. Um exemplo de
mediação das crianças é quando há separação entre casais e famílias, pois os
“pequenos” são a conexão que repara as relações rompidas. A livre circulação de
crianças entre diferentes aldeias tem como significado a harmonia, entretanto, se
acontece algum conflito entre as mesmas, o fluxo de crianças imediatamente é
interrompido. Durante as realizações de rituais, os meninos são os mensageiros entre as
casas domésticas e a Casa dos Homens (kuxex). Desde pequenas, as crianças Maxakali
recebem a lição de sociabilidade sobre o consumo partilhado dos alimentos entre todos.
Com tais exemplos, se pode perceber a permeabilidade à introdução das crianças no
tecido social, onde Alvares (2004, p. 55) reflete que “ao permitir o trânsito entre as
diversas categorias sociais, as crianças, ao mesmo tempo em que aprendem, constroem,
junto aos adultos, as relações sociais e a dinâmica da vida social e política do grupo”.
Para os Maxakali o conhecimento é propriedade dos espíritos. Somente as
crianças e os jovens são o amparo para a manifestação dos espíritos. Através de cantos e
danças os rituais de iniciação se realizam. Alvares (2004) analisa em suas pesquisas que
“Mas, mais do que uma experiência intelectual, o conhecimento precisa ser
transformado em experiência ritual que possui o poder de construir a pessoa e torná-la
um ser humano completo” (ALVARES, 2004, p.62).
Na escolarização dos Maxakali, os professores são indígenas, e selecionados por
suas próprias comunidades. Segundo os princípios dessa comunidade acreditam que as

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crianças devem ser formadas a partir dos valores e conhecimentos da sua própria
cultura. As famílias consideram que estão emprestando seus “pequenos” aos
professores, pois consideram as crianças seu maior bem. Os alunos Maxakali são
agentes ativos no processo de aprendizagem, sendo o desejo das crianças determinante
na orientação das interações entre professor e alunos.

[...] aprendemos com as crianças indígenas sobre as capacidades infantis de


discernimento, avaliação objetiva das situações, escolhas responsáveis,
resoluções criativas dos problemas práticos, que desabrocham quando se lhes
permite vivenciar situações não escolarizadas de aprendizagem, muitas vezes
na posição de mestres (TASSINARI, 2009, p.21)

Tassinari (2009) inicia seu estudo levando o leitor a refletir sobre a dificuldade
dos pesquisadores no tema infância. Existe uma dificuldade de separar a fase da
concepção de “criança-aluna” e também de perceber diferentes relações das crianças
com o seu meio social, dissociando da relação entre as mesmas e seus professores. A
autora convida o leitor a pensar

[...] se lugar de criança é na escola, os demais lugares não são para crianças?
Nesses outros lugares não há aprendizagem? Enfim, que noção de “infância”
se produz nesse vínculo exclusivo com a escola? (p. 1).

Visando buscar respostas para essas indagações, a autora utiliza como


intermédio exemplos de sociedades indígenas em que as crianças são consideradas
atores plenos e suas infâncias são vividas com mais liberdade e autonomia.
Tassinari (2009) relata que em um curso de magistério indígena no Estado de
Santa Catarina um professor Guarani concluiu: “O que vocês chamam de Ministério da
Educação deveria se chamar Ministério da Escola, porque só tratam da escola e a
educação é mais que isso” (p.7).
Conforme Tassinari (2009) para se conceber a noção de liberdade indígena é
necessário desatrelar da nossa vivência de ex-alunos, em que relacionávamos liberdade
com os momentos de férias. Essa concepção de liberdade encontra-se nas etnografias ao
se caracterizar a infância indígena. A liberdade ameríndia infantil está relacionada ao
livre acesso por espaços, já para os adultos é necessário alguma forma de cerimônia e
distanciamento. Essa configuração possibilita uma participação social exclusiva e
concreta para as crianças indígenas garantindo o poder a elas. Conforme Cohn (2000) e
Nunes (1997) esse “passe livre social” é importante para a sociedade, pois as crianças
adquirem informações da aldeia como um todo, e levam esses conhecimentos para os
adultos que só podem se deslocar em espaços específicos para seu grupo familiar.
Através das crianças as informações são redistribuídas pela aldeia. Nunes (1997, p.10)
diz que “é a qualidade “abelhuda” das crianças que garante a manutenção de certa
moralidade. Elas estão em toda parte e é através delas que atitudes moralmente
inadequadas podem se tornar conhecidas por todos”.
Segundo Codonha (2007), as crianças mais velhas ensinam as mais novas, os
primeiros são como mestres e os segundos aprendizes realizando uma transmissão de
conhecimentos “transmissão horizontal de saberes”. Para Tassinari (2009), as crianças
indígenas são pessoas que ensinam coisas importantes, elas são o elo da corrente do
ensino-aprendizagem, mostrando com isso uma educação indígena desatrelada do
contexto escolarizado. Entretanto, deixa claro que quando está falando de “contextos
não escolarizados” não está ignorando a presença de escolas nas aldeias exempladas.

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Ao analisar as questões relacionadas à escola, Tassinari (2009) reflete sobre a
mesma ser a única forma de construção do conhecimento ao dizer que “Na recusa da
escola como fonte única do saber, da aprendizagem escolar como única forma de
aprendizagem, da posição de “aluno” como única possibilidade de infância” (p.17).
A educação indígena pode ser considerada como “redes abertas” de transmissão
de saberes, em que as crianças são agentes de ensino e aprendizagem. Diferente das
crianças do meio urbano em que existem na escola disciplinas e conteúdos que devem
ser cumpridos através da passagem do conhecimento do professor para os alunos, na
cultura ameríndia educadores e alunos aprendem juntos. A partir dessas reflexões é
possível criticar os contextos “escolarizados” e problematizar as limitações que surgem
quando a escola e outras instituições “escolarizadas” “[...] são os únicos lugares
permitidos às crianças como situação de aprendizagem” (CODONHA, 2007, p.21).
As representações artísticas e as visões de mundo que as crianças ameríndias
partilham podem ser analisadas através da pesquisa realizada com índios Kaingan da
Terra Indígena Carreteiro (OLEQUES, 2009). A mesma teve como intuito captar suas
representações sobre ambiente, através da análise da elaboração de desenhos feitos pelas
crianças. Um das possíveis análises foi de que a representação do ambiente cotidiano
evidencia as relações existentes entre os elementos do ambiente natural, conjuntamente
com o sócio cultural, ou seja, o entrelaçamento entre natureza e sociedade.

6 – Conclusão

Ao se estudar a cultura ameríndia e mais especificamente as crianças dessas


comunidades se percebe as diferenças do que conhecemos como criança na nossa
cultura urbana. Esses estudos são importantes visto que pesquisas sobre infância a partir
do foco nelas e não no que os pesquisadores pensam sobre elas ainda são escassos.
A natureza na cultura indígena não é vista como algo separado e sim ela faz
parte do processo de aprendizagem, nos rituais e na vida cotidiana. Para se compreender
essa cultura é necessário “dar o passo ao lado” e nos desatrelarmos das nossas visões de
mundo, pois para os indígenas os processos são diferentes dos nossos.
Através dos estudos em diferentes comunidades indígenas buscou-se
problematizar como as crianças são vistas por elas, que papéis os pequenos
desempenham na comunidade, como elas aprendem, que relações realizam com a
natureza. Perceber como as crianças indígenas se constituem são importantes para os
estudos sobre infância e os processos de aprendizagem para que não se caia no senso
comum e nas visões de infância a partir da visão adultocêntrica.

7 - Referências

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