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ARTIGO TEOLÓGICO
1
Q 3.1-15 e a Tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio
por
RESUMO
RESUMEN
ABSTRACT
This article aims to analyze the biblical passage of Q 3.1-15 (Ecclesiastes 3.1-
15) from the dialectical relationship between the theological and philosophical concepts of
determinism and free will. And in order to achieve this goal, we will give three basic steps.
First, we shall give our own translation of the original Hebrew text, which will be
accompanied by some brief lexical and semantics observations. Secondly, we will provide
four views on the relationship between determinism and free will. And thirdly, we will read
the passage studied through the lens of determinism and free will. In this third item, we will
use especially the views and comments made by Jewish sources.
Keywords: Q , Ecclesiastes, Determinism, Free Will, Interpretation.
1
Este artigo foi apresentado originalmente como trabalho em 06/2011 para a Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo (USP).
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INTRODUÇÃO
2
FRIEDMAN, Richard Elliott. O Desaparecimento de Deus: um mistério divino. Rio de Janeiro, Imago,
1997, p.284.
3
CERESKO, Anthony R. Introdução ao Antigo Testamento numa Perspectiva Libertadora. São Paulo,
Paulus, 1996, p.299. Para maiores informações sobre a data em que Q foi escrito, veja: ARCHER,
Gleason L. The Linguistic Evidence For the Date of “Ecclesiastes”. [Journal of the Evangelical
Theological Society].Vol.12, nº3, Louisville, Evangelical Theological Society Press,1969, pp.167-181.
4
CAMPOS, Haroldo de. Qohélet = O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial. São Paulo, Editora
Perspectiva, 1991, p.17.
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SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes. Vol. 18. [The Anchor Bible]. New York, Doubleday,
1965, pp.191,192.
6
Ceresko, comentando sobre o conteúdo de Q , afirma: “a obra quase soa moderna em suas
inquisitivas reflexões”. (Cf. CERESKO, Anthony R. A Sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade
libertadora. São Paulo, Paulus, 2004, p.100).
7
JONG, Stephan de. “Quítate de Mi Sol!”: Eclesiastés y La Tecnocracia Helenística. Quito, Ribla
[Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], Nº 11, 1992, p.1.
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REIMER, Haroldo. “Y ver la parte buena de todo su trabajo” (Eclesiastés 3,12) – Anotaciones Sobre
Economia y Bienestar en la vida del Eclesiastés. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-
Americana], Nº51, 2005, p.1.
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Tempo para buscar 0<A7 " #2 6
E tempo para perder %?)3 " #$
Tempo para guardar ,- B<" 5 #
E tempo para lançar
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13 0 %3 1*P$ 13
E também todo homem
Que coma e beba )<$ !3GF<
E veja (o) bem 7-( 3,$
Em todo seu trabalho - #/ !?"
Há algumas observações que devem ser feitas aqui sobre alguns vocábulos
em hebraico que aparecem em Q 3.1-15 e os significados correspondentes
que escolhemos lhes atribuir.
10
HOLLADAY, William L. (Ed.). A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Grand
Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company / Leiden, E. J. Brill, 1988, p.89.
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“deleite, prazer, desejo, a boa vontade, vontade, propósito, negócio (em época
tardia), questão (em época muito tardia)”.23 A Septuaginta traz no lugar de
o substantivo neutro (prágmati), o qual, por sua vez, é derivado do
termo (prâgma), cujos significados básicos, dentre outros, são: “o que
tem sido feito, uma ação, ato, uma coisa, questão, negócio”.24 É da mesma raiz
dessa palavra que vem a nossa palavra moderna “pragmatismo”. Em nossa
tradução, preferimos adotar o termo “propósito” como tradução para .
Em Q 3.2, os vocábulos %& ( )e #*'(+ ,- .#/ (
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dos mais intensos debates no que diz respeito ao seu significado no citado verso.
Vejamos o que Schökel tem a nos dizer sobre o significado de :
O mesmo autor ainda irá dizer mais adiante que também pode ser
traduzido como “mundo”, em uma concepção mais tardia. Aliás, esta é a
tradução que Schökel propõe para em Q 3.11.28 A LXX, por sua
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
vez, verte por (aiōna), substantivo no acusativo que é derivado de
(aiōn), cujos significados básicos são: “tempo, duração da vida, vida,
eternidade, idade, geração, século”.29 Por fim, a Vulgata traduz por
mundum, “mundo”. Curiosamente, a Bíblia Hebraica (BH) publicada pela Sêfer
26
LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.215.
27
SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo, Paulus, 1997, p.483.
28
Idem, Ibidem, p.484.
29
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Porto, Livraria Apostolado da
Imprensa, 1976, p.19.
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30
Cf. GORODOVITS, David & FRIDLIN, Jairo. Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer
Ltda., 2006.
31
Cf. A Bíblia Sagrada. (Tradução na Linguagem de Hoje). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil,
1988.
32
Cf. GIRAUDO, Tiago & BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Sociedade Bíblica
Católica Internacional e Paulus, 1985.
33
Cf. Bíblia –Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo, Edições Loyola, 1994.
34
Cf. Santa Biblia (Versión Española Reina-Valera). Miami, United Bible Societies, 1995.
35
Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo,
Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
36
Cf. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro,
Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.
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O homem, ser passageiro, não pode ser ponto de referência do tempo que foge e
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
se escapa; Deus, porém, [que] não está sujeito ao processo do tempo, supera-o e
alcança-o em toda sua extensão mesmo de passado e de futuro, por isso não é
estranho que se possa dizer que Deus vai em busca do passado. Segundo a
mentalidade de Qohélet, Deus o encontra e o alcança, o homem não.40
37
O Midrash Qohélet Rabá também traduz a construção verbal $ % , que aparece no Nif‘al, como
“perseguido”. (Cf. GIRAUDO, Tiago & BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1170, nota z).
38
LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.236.
39
Bíblia Sagrada (Nova Versão Internacional). Colorado Springs, International Bible Society, 2000.
40
LÍNDEZ, José Vílchez. Op.Cit., p.236. O acréscimo entre colchetes é meu. Os itálicos são do autor.
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Para obter maiores informações sobre o determinismo e o livre-arbítrio sobre o ponto de vista
filosófico-teológico cristão, veja: GEISLER, Norman & FEINBERG, Paul D. Introdução à Filosofia:
uma perspectiva cristã. São Paulo, Edições Vida Nova, 1996, pp.153-162; FEINBERG, John et al.
Predestinação e Livre-Arbítrio: quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. © Carlos Augusto Vailatti ● Q
São Paulo, Mundo Cristão, 1996; HUNNEX, Milton. Filósofos e Correntes Filosóficas em Gráficos e
Diagramas. São Paulo, Editora Vida, 2003, pp.50-52; CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia,
Teologia e Filosofia. [Vol.2 | D – G]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, pp.91-96. Já para obter maiores
informações sobre este mesmo assunto, mas a partir da perspectiva judaica, confira: MAIMONIDES,
Rabi Moshe ben. Guia de Descarriados. Madrid, Editorial Barath, 1988, pp.226-232; REHFELD, Walter
I. Nas Sendas do Judaísmo. São Paulo, Perspectiva; Associação Universitária de Cultura Judaica;
Tecnisa, 2003, p.63-65.
42
RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth. [The Jewish Bible
Quarterly]. Vol.XXX, Nº 2. Jerusalem, Jewish Bible Association Press, 2002, p.1. Shimon Bakon faz
questão de distinguir o conceito de Providência Divina do conceito de Predestinação. Segundo ele: “Há
uma considerável diferença entre estes dois conceitos, o primeiro significando participação divina, ou
mesmo interferência, em assuntos humanos, o outro sugerindo uma força cósmica, predeterminando os
destinos dos homens e até mesmo dos deuses. Em ambos, resta pouco espaço para a liberdade humana”.
(Cf. BAKON, Shimon. Koheleth. [The Jewish Bible Quarterly]. Vol.XXVI, nº3. Jerusalem, The Jewish
Bible Association Press, 1998, p.172).
43
Cf. o verbete: Liberdade Humana, in: ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã.
Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.99.
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GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-
arbítrio. São Paulo, Editora Vida, 2001, p.53.
45
Idem, Ibidem, p.62.
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escolhas que fazemos deles, mas são, ao mesmo tempo, determinados, a partir da
perspectiva da presciência que Deus tem deles como Ser atemporal.46
1) Deus não somente criou esse mundo, ex nihilo, mas pode (e às vezes
faz) intervir unilateralmente nos acontecimentos na terra;
2) Deus escolheu criar-nos com liberdade incompatibilista (libertária) –
uma liberdade sobre a qual ele não pode exercer controle total;
3) Deus valoriza tanto a liberdade – a integridade moral das criaturas
livres e de um mundo no qual tal integridade é possível – que não
atropela essa liberdade, mesmo que a veja produzindo resultados
indesejáveis;
4) Deus sempre deseja o nosso mais alto bem, tanto individual como
corporativamente, e assim é afetado pelo que acontece em nossas
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
vidas;
5) Deus não possui um conhecimento exaustivo de como exatamente
utilizaremos a liberdade, embora possa muito bem, às vezes, ser capaz
de predizer com grande exatidão as escolhas que livremente faremos.48
46
GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.51.
47
Ware assim define o Teísmo Aberto: “Esse movimento é assim denominado pelo fato de seus adeptos
verem grande parte do futuro como algo que está ‘em aberto’, e não fechado, mesmo para Deus. Boa
parte do futuro está ainda indefinida e, conseqüentemente, Deus o desconhece. Deus conhece tudo o que
pode ser conhecido, asseguram-nos os teístas abertos. Mas livres escolhas e ações futuras, por não terem
ocorrido ainda, não existem e, desse modo, Deus (até mesmo Deus) não pode conhecê-las”. (Cf. WARE,
Bruce A. Teísmo Aberto: a teologia de um Deus limitado. São Paulo, Vida Nova, 2010, p.14).
48
PINNOCK, Clark. The Openess of God, p. 156. Apud: GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, p.117.
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CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol.3. [H-L]. São Paulo, Editora
Hagnos, 2001, pp.866,867. Aliás, a esse respeito, Rudman declara que “o homem não é de todo o mestre
de sua própria vida”. (Cf. RUDMAN, Dominic. Determinism in the Book of Ecclesiastes. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 2001, p.33). Seow chama essa liberdade parcial do homem de “determinismo
de circunstâncias”. (Cf. SEOW, C.L. Ecclesiastes. New York, Doubleday, 1997, pp.171-172)
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De acordo com a Escritura, cada pessoa é capaz de escolher entre o bem e o mal.
O conceito de punição e recompensa está baseado neste pressuposto. O Talmude © Carlos Augusto Vailatti ● Q
50
COHN-SHERBOK, Dan. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998,
p.77.
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(...) o monoteísmo afirma que Deus transcende a natureza e que não é idêntico a
ela nem a nenhuma parte dela (...). No monoteísmo, Deus está sujeito às
variações da vida mortal.51
51
AGUS, Jacob B. La Evolucion del Pensamiento Judio: desde la época bíblica hasta los comienzos de
la era moderna. Buenos Aires, Editorial Paidós, 1969, pp.16,17.
52
PINK, A. W. Deus é Soberano. São José dos Campos, Editora Fiel, 1997, p.5. Os acréscimos entre
colchetes são meus.
53
Confissão de Fé de Westminster. (Comentada por A. A. Hodge). São Paulo, Editora Os Puritanos,
1999, p.95.
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(...) nós sabemos que os seres humanos têm liberdade de escolha e livre-arbítrio,
Sendo assim, por mais paradoxal que possa parecer, proponho uma
posição de meio-termo, que leve em consideração tanto o determinismo
moderado quanto o livre-arbítrio moderado, isto é, uma posição que leve em
conta tanto o determinismo divino quanto a liberdade humana como os dois
lados de uma mesma moeda. Aliás, sendo mais explícito ainda, defendo que
embora a relação entre o determinismo divino e a liberdade humana seja um
mistério, tal relação não implica necessariamente contradição. A finitude da
nossa existência humana e a limitação da nossa razão não podem servir como
argumentos infalíveis para comprovar a suposta contradição existente entre essas
duas verdades. Nas palavras de Norman Geisler, “ninguém jamais demonstrou
uma contradição entre predestinação e livre-escolha. Não há conflito insolúvel
entre um acontecimento predeterminado por um Deus onisciente e um evento que
é livremente escolhido por nós”.56
Ora, uma vez que nós definimos e justificamos a posição que, a nosso ver,
corresponde melhor às verdades do determinismo divino e da liberdade humana, © Carlos Augusto Vailatti ● Q
partamos então para o exame de Q 3.1-15.
54
Aiatolá é o título pelo qual são conhecidos os principais líderes islâmicos xiitas. O aiatolá é inferior
apenas ao Imã. (Cf. LOVISOLO, Elena et al. Dicionário da Língua Portuguesa. (Larousse Cultural). São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.33).
55
SHIRAZI, Nasir Makarim. Principios Basicos del Pensamiento Islamico. (Vol. IV: Justicia Divina).
Tehran, Bonyad Be‘zat, 1987, p.43.
56
GEISLER, Norman. Eleitos, Mas Livres, pp.47,48.
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(...) como todos têm o pleno direito de pensar com liberdade, inclusive em
matérias de religião, e não é concebível que se renuncie a este direito, cada um
dispõe de uma autoridade suma de sumo direito para decidir em questões
religiosas e, portanto, para lhes dar uma explicação e interpretação. Assim como
o direito de interpretar as leis e a decisão soberana dos negócios públicos
correspondem ao magistrado, por serem assuntos de direito político, da mesma
forma cada um tem sua autoridade absoluta para julgar e explicar a religião,
porque esta pertence ao direito de cada um.58 © Carlos Augusto Vailatti ● Q
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3.1. Q 3.1-8
1
Para tudo (há) um tempo determinado, e um tempo para todo propósito
2
debaixo dos céus. Tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para
plantar, e tempo para colher; 3 tempo para matar, e tempo para curar; tempo
para destruir, e tempo para construir; 4 tempo para chorar, e tempo para rir;
tempo de se lamentar, e tempo de dançar; 5 tempo para lançar pedras, e tempo
de amontoar pedras; tempo para abraçar, e tempo para afastar-se de abraçar; 6
tempo para buscar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para
lançar; 7 tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo
para falar; 8 tempo para amar, e tempo para odiar; tempo de guerra, e tempo de
paz.
59
ALTER, Robert & KERMODE, Frank. (Orgs.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo, Unesp,1997,
p.299. Auzou diz que o autor de Q “escreve em prosa ritmada entrecortada de sentenças e versos”.
(Cf. AUZOU, Georges. A Tradição Bíblica. São Paulo, Livraria Duas Cidades Ltda., 1971, p.213).
60
Assim pensa também Loader, segundo quem, “a reflexão sobre as séries de eventos mutuamente
exclusivos não é prescritiva, mas descritiva”. (Cf. LOADER, J. A. Polar Structures in the Book of
Qohelet. Berlin / New York, De Gruyter, 1979, p.29).
61
Todavia, Lilia Veras possui opinião diferente da minha. Para a autora, 3.1-8 é uma reflexão sobre a
incapacidade do homem de interferir na obra de Deus e 3.9-15 é uma revisão de alguns temas que o
Qohélet tratou nos capítulos anteriores. (Cf. VERAS, Lilia Ladeira. Un Primer Contacto Con El Libro del
Eclesiastés o Libro de Qohélet. Quito, Ribla [Revista de Interpretacion Bíblica Latino-Americana], nº 52,
2005, pp.8,9). Já Zenger afirma que o trecho de Q 3.1-15 está dentro da estrutura maior de Q
1.3-3.22, a qual trata do desdobramento e resposta à pergunta pelo conteúdo e pelas condições da
felicidade humana. (Cf. ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. [Coleção Bíblica
Loyola | Nº 36]. São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.334).
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Este primeiro versículo funciona como uma introdução para todo o trecho
de Q 3.1-8. Ele nos faz pensar, por exemplo, em um provérbio atribuído ao
lendário autor grego, Esopo (VI Séc. a.C.), que teria dito que “é uma grande
coisa fazer a coisa certa na época certa”.62
Contudo, dentro do contexto judaico, muitas opiniões têm surgido a fim de
62
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes, p.221.
63
V. D’Alario faz o seguinte comentário sobre o conceito de determinismo encontrado no livro de
Q : “O emprego da palavra ,& " 5 [“acontecimento, evento, destino”] no livro de Qohélet [p.ex., em
3.19] é uma confirmação posterior da singularidade do nosso texto em comparação com outros livros do
Antigo Testamento; ,& " 5 na verdade poderia evocar uma força misteriosa que determina os eventos,
considerando que na Bíblia o princípio da soberania absoluta de Deus está colocado de forma
incontestável”. (Cf. D’ALARIO, V. Liberté de Dieu ou Destin? Un autre dilemme dans l’interprétation
du Qohélet. In: SCHOORS, A. (Ed.). Qohelet in the Context of Wisdom. Leuven, Leuven University
Press, 1998, p.457). Os acréscimos entre colchetes são meus.
64
Segundo Christianson, o uso que o Talmude faz de Eclesiastes geralmente se concentra na aplicação
prática, muitas vezes, em apoio à observação mais banal. (Cf. CHRISTIANSON, Eric S. Ecclesiastes
Through the Centuries. Oxford, Blackwell Publishing Ltd., 2007, p29).
65
Seu nome é Rabi Abba Ben Joseph Bar Hama.
66
RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.4.
67
Idem, Ibidem, p.4.
68
Idem, Ibidem, p.4.
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astrológico, o que é evidenciado pelo fato de que esse Targum lê todo o livro de
Q a partir da perspectiva determinista. A esse respeito, o filósofo francês
judeu Emmanuel Levinas (1906-1995) escreveu o seguinte:
Em quinze ocasiões, o Targum utiliza o termo MAZAL que eu, com sérias
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GINSBERG, Harold Louis. Supplementary Studies in Koheleth, 1952. Apud: EATON, Michael A. &
CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário. [Série Cultura Bíblica]. São Paulo,
Vida Nova / Mundo Cristão, 1989, p.84.
73
RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.3.
74
Seu nome é Moshe Ben Maimom.
75
Maimônides, in: WASSERMAN, Adolpho. [Tradutor e compilador dos comentários]. Eclesiastes. São
Paulo, Maayanot, 1998, p.20.
76
Maimônides, in: Idem, Ibidem, p.20. Os itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus.
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a ordem do zodíaco, Ele conhece o futuro em toda sua inteireza. Ele sabe como
cada pessoa agirá e se ela merecerá recompensa ou punição por suas ações”.77
Porém, em outro momento, este sábio declara que a palavra #( ), “tempo”,
em Q 3.1, faz referência aos “sinais que são repartidos para todo propósito
e coisa sob os céus. Cada objeto tem seu futuro contido nas estrelas”.78
77
Alshich, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
78
Idem, Ibidem, p.20.
79
LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.216. Cf. também: ANDERSON, William H. U.
Scepticism and Ironic Correlations in the Joy Statements of Qoheleth? [Doctoral Thesis in Philosophy].
Glasgow, University of Glasgow, 1997, p.72.
80
GIRAUDO, Tiago & BORTOLINI, José. (Eds.). Bíblia de Jerusalém, p.1294.
81
Acrônimo de Rabi Shlomo ben Yitschak.
82
RUDMAN, Dominic. Determinism and Anti-Determinism in the Book of Koheleth, p.6.
83
Rashi, in: WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
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determinado também que, após o seu nascimento, tais pessoas deverão morrer
algum dia.84
Todavia, Blenkinsopp acredita que as ideias contidas no poema foram
emprestadas da filosofia estóica por um “judeu estoicizado”.85 E, para tentar
comprovar a sua tese, ele traduz equivocadamente a expressão '
84
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
Segundo Pfeiffer e Harrison, a morte que ocorre em uma guerra, em defesa própria, por exemplo, nunca
é acidental. Segundo estes autores, tal situação encontra eco na expressão moderna “era a sua hora de ir
embora”. (Cf. PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. (Eds.). The Wycliffe Bible Commentary.
Chicago, Moody Press, 1987, p.588).Rick Warren, por outro lado, enxerga a questão do nascimento e da
morte de forma acentuadamente determinista. Segundo ele: “Uma vez que Deus o fez por um motivo, ele
também decidiu o momento de seu nascimento e seu tempo de vida. Ele planejou os dias de sua vida
antecipadamente, escolhendo o momento exato de seu nascimento e de sua morte”. (Cf. WARREN, Rick.
Uma Vida Com Propósitos. São Paulo, Editora Vida, 2003, p.22).
85
O estoicismo enfatizava o controle pessoal sobre as emoções. (Cf. EVANS, C. Stephen. Dicionário de
Apologética e Filosofia da Religião. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.51).
86
BLENKINSOPP, Joseph. Ecclesiastes 3.1-15: Another Interpretation. JSOT, Nº 66. Thousand Oaks,
1995, pp.56-57.
87
Kathryn Imray observa que os conceitos de “plantar” e “desenraizar” (“colher”) também podem ser
compreendidos aqui como metáforas para o nascimento e para a morte. (Cf. IMRAY, Kathryn. Qohelet’s
Philosophies of Death. [Doctoral Thesis in Philosophy]. Perth, Murdoch University, 2009, p.70).
88
Um nome genérico que se refere normalmente a ensinamentos não legais dos rabinos da era talmúdica.
89
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
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levado para o exílio. Um tempo para matar no Egito e um tempo para a libertação
do Egito”.90
No que se refere à frase que diz que há “tempo para matar, e tempo para
curar” (v.3a), devemos dar-lhe uma explicação prévia. O Q não estava
querendo defender com estas palavras o assassinato premeditado.91 Talvez, ele
90
MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire. [Studium
Biblicum Franciscanum]. Jerusalem, Liber Annuus, Nº 42,1992, p.152.
91
LIOY, Dan T. The Divine Sabotage: An Exegetical and Theological Study of Ecclesiastes 3. [Article].
Vol.5. South Africa, South African Theological Seminary, 2008, p.118.
92
CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos –
Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2713.
93
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.20.
94
Idem, Ibidem, p.21.
95
EATON, Michael A. & CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, pp.86,87.
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frase “tempo para chorar e tempo para rir” (4a) é interpretada pelo Lekach Tov96
assim: “chorar pela destruição do Templo em Tishá BeAv [9 de Av] e rir pela
redenção de Israel”.97 Já a frase seguinte, “tempo de se lamentar e tempo de
dançar” (v.4b) é compreendida pelo Rabi David Altschuller (Séc. XVIII), em seu
Metsudat David (comentários sobre a Bíblia) como uma referência ao tempo de
(i) O Targum aramaico de Eclesiastes via, aqui, uma referência a espalhar pedras
num edifício velho, preparando-se para edificar-se um prédio novo; esta opinião
era defendida, também, por Ibn Ezra. (ii) Outros viam, aqui, uma referência ao
hábito de espalhar pedras nos campos, a fim de torná-los improdutivos (cf. 2 Rs
3.19,25; Is 5.2). (iii) Plumptre via, aqui, “uma velha prática judaica... de atirar
pedras, ou terra, no túmulo, num enterro”, na primeira frase [tempo para lançar
pedras], e a preparação para construir uma casa, na segunda [tempo de amontoar
pedras]. (iv) Eruditos mais recentes têm visto uma referência de ordem sexual
seguindo a interpretação do Midrash.100
96
Também conhecido como Pessikta Zutrata, um trabalho midráshico de Rabi Tovia (ben Eliezer) Ha
Gadol (1036-1108) sobre vários livros da Bíblia Hebraica, incluindo o livro de Qohélet, sendo este
publicado em 1908. (Cf. WASSERMAN. Eclesiastes, p.120).
97
WASSERMAN, Adolpho. Op.Cit., p.21. Os acréscimos entre colchetes são meus.
98
Idem, Ibidem, p.21.
99
EATON, Michael A. & CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87.
100
Idem, Ibidem, p.87. Os acréscimos entre colchetes são meus.
101
MANNS, F. Le Targum de Qohelet – Manuscrit Urbinati 1: Traduction et commentaire, p.153.
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A B
“tempo para abraçar e tempo para afastar-se de abraçar” (v.5b)
O verso seis, que diz que há “tempo para buscar, e tempo para perder;
tempo para guardar, e tempo para lançar” (v.6) é interpretado por Rashi a partir
da perspectiva da liberdade humana. Rashi lê assim esse verso: “Um tempo para
buscar os espalhados de Israel e um tempo para perdê-los no exílio. Guardar
quando Israel cumpre a vontade de D’us, e jogar fora quando Israel age contra a
vontade de D’us”.102
Então, neste verso, a capacidade que o homem tem tanto de cumprir
quanto de descumprir a vontade de Deus, evidencia a sua liberdade de vontade e
de ação em relação à vontade de Deus. Portanto, a partir da interpretação que
© Carlos Augusto Vailatti ● Q
Rashi dá ao verso seis, verificamos que na “queda de braços” entre o
determinismo e a liberdade humana, a liberdade humana se sagrou vencedora.
Logo, tendo em mente essas observações, podemos dizer que o homem é livre no
que diz respeito à livre escolha de suas ações.
Quanto ao verso sete, que diz que há um “tempo para rasgar, e tempo para
costurar; tempo para calar, e tempo para falar” (v.7), Saadia Gaon103 (892-942)
interpreta a primeira parte deste verso, “tempo para rasgar, e tempo para
102
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.21. Os itálicos são meus.
103
Esta é a forma abreviada de Rabi Saadia ben Yossef Gaon.
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costurar” (v.7a) com estas palavras: “rasgar as roupas em luto pelos mortos e
costurar as roupas para as festas de casamento”.104 Tais ações antitéticas de
“rasgar” e “costurar” as roupas pressupõem, segundo penso, ações humanas
livres, pois, nas situações de luto e de casamento, os atos de rasgar e costurar,
embora possam ser condicionados culturalmente pela sociedade na qual se vive,
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3.2. Q 3.9-15
9
Que proveito (tem) o trabalhador no que ele trabalha? 10 Eu tenho visto
11
a tarefa que deu Deus aos filhos do homem para estarem ocupados nela.
Tudo fez belo em seu tempo; Também o mundo deu no coração deles, de tal © Carlos Augusto Vailatti ● Q
modo que não descubra o homem a obra que fez Deus desde o princípio e até o
fim. 12 Eu sei que não há nada melhor para eles que se alegrarem e fazerem (o)
bem em sua vida. 13 E também todo homem, que coma e beba e veja (o) bem em
14
todo seu trabalho. Isso (é) um dom de Deus. Eu sei que tudo (o) que fez
Deus, ele (isso) será para sempre. Sobre ele (isso) nada (há) para acrescentar e
dele (disso) nada (há) para tirar, e Deus (o) fez (para) que temam em face dele.
15
O que foi, ele já (é); e (o) que será, já foi; E Deus buscará o perseguido.
109
EATON, Michael A. & CARR, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: introdução e comentário, p.87.
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[2x],15). Tal constatação nos faz concluir que esse pequeno trecho de Q
possui “uma das reflexões teológicas mais densas” de todo o livro.117
Tudo é feito de acordo com o plano perfeito de D’us. Ele estabelece que o
nascimento de cada homem se ajuste perfeitamente com o signo sob o qual ele
nasceu, de modo que cada ação de sua parte não contradiga sua vida, conforme
previsto pelas estrelas. Ele pode fazer coisas por seu livre-arbítrio, mas isso
concorrerá com seu destino conforme determinado pelos sinais nos céus.118
Esta (...) declaração reitera o Deus do autor, a Causa Única, mas ignora
completamente que outros fatores operam no mundo – as causas secundárias,
que se originam entre os homens, nas comunidades, na natureza, na lei natural e
até no caos.119
116
LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p.225.
117
Idem, Ibidem, p.226.
118
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.22.
119
CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. [Vol. 4 | Salmos –
Cantares]. São Paulo, Editora Hagnos, 2001, p.2714.
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como “mundo”.120 O verso diz: “Tudo [Deus] fez belo121 em seu tempo; Também
o mundo ( ) deu no coração deles, de tal modo que não descubra o homem a
obra que fez Deus desde o princípio e até o fim” (v.11).122 A Teodicéia
Babilônica, em sua linha 256, faz um comentário sobre a inescrutabilidade divina
que lembra muito esse verso do Q . Segundo essa teodicéia, “a mente de
deus, como o centro dos céus, é remota ... seu conhecimento é difícil”.123
De acordo com Michael Fox, o significado do verbo 8# ( &'), “fez”,
no verso onze, não se refere à Criação, o que seria irrelevante para este contexto,
120
Shank chama a atenção para a característica polissêmica do termo , o qual possui diferentes
significados em outros trechos de Eclesiastes, tais como: 1.14; 3.11,14; 9.6; 12.5. (Cf. SHANK, H. Carl.
Qoheleth’s World and Life View As Seen In His Recurring Phrases. [Westminster Theological Journal]. © Carlos Augusto Vailatti ● Q
Philadelphia, Westminster Theological Seminary Press, 1974, p.66).
usa ! (, “belo, bonito” como sinônimo de ", “bom”. Cf.
121
Segundo Caneday, aqui o Q
CANEDAY, Ardel B. Qoheleth: Enigmatic Pessimist or Godly Sage? [Grace Theological Journal].
Winona Lake, Grace Theological Seminary Press, 1986, pp.45,46.
122
Essa incapacidade humana de perscrutar a obra divina mencionada no verso onze é muito bem
ilustrada por Davidson, ao dizer: “De nossa posição de criaturas debaixo do sol vemos (...) o avesso do
tapete com suas muitas linhas confusas e fios soltos. Procurar desemaranhar o tapete, de nosso ponto de
vista, é ficar envolvido num interminável labirinto”. (Cf. DAVIDSON, F. O Novo Comentário da Bíblia.
[Vol.I]. São Paulo, Edições Vida Nova, 1990, p.660). Kushner também utiliza essa ilustração do tapete,
mas a aplica para explicar o propósito divino que existe por trás do sofrimento humano. (Cf. KUSHNER,
Harold. Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas. São Paulo, Nobel, 1988, pp.33,34). Já
Gerhard von Rad comenta: “Qohelet não tem nada de um niilista que nega a Deus. Sabe que o mundo foi
criado por Deus e que a sua atuação soberana perpassa o mundo constantemente, mas é catastrófico para
o ser humano não poder entrar em contato com essa forma de Deus atuar, porque é profundamente
oculta”. (Cf. RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. [Vols. 1 e 2]. São Paulo, ASTE,
Targumim, 2006, p.443).
123
SCOTT, R. B. Y. [Ed.]. Proverbs, Ecclesiastes, p.221.
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mas se refere aos eventos da vida humana, tal como sumarizado pelo catálogo
dos “tempos” de Q 3.1-8.124
Além disso, muitos comentários foram feitos sobre o possível significado
de . Em um trecho, o Q Rabá interpreta como “mundo” e diz:
R. Ayawah b. R. Zeira disse que o “h-‘lm” (de Qo 3.11 deve ser entendido
como) ho‘olam (se lhes ocultou) o Nome Inefável.126
O Santo também colocou o tempo no coração dos homens para que possam
conhecer e compreender que existem tempos designados para o bem e tempos
designados para o mal. Porque o homem não consegue descobrir ou conhecer
[por si mesmo] os atos do Santo desde o início até o fim. Pois, se todos os © Carlos Augusto Vailatti ● Q
tempos fossem para o bem ou todos fossem para o mal, o homem não se
arrependeria diante do Santo, porque ele pensaria: “Uma vez que há um destino
no mundo, ou tudo é para o bem, ou tudo é para o mal, eu deveria abandonar as
124
FOX, Michael V. Qohelet and His Contradictions. [Bible and Literature Series, 18]. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 1989, p.107.
125
LÓPEZ, Carmen Motos. La Forma Exegética M en Qohélet Rabbah. [Revista de Ciencias de las
Religiones | Nº 6]. Madrid, Universidad Complutense, 2001, p.89.
126
Idem, Ibidem, p.89.
127
Mark Smith que também traduz como “eternidade”, declara: “(...) entendo que Deus constrói na
pessoa humana uma intuição sobre a natureza da eternidade, algo de Divino por si só, mas sem que a
pessoa humana seja capaz de apreender as outras dimensões super-humanas do que Deus faz no
universo”. (Cf. SMITH, Mark S. O Memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no
Antigo Israel. São Paulo, Paulus, 2006, p.115).
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minhas más ações por isso, e qual o benefício que eu receberia em meu
arrependimento?”.128
Além desses autores, vejamos também qual é o comentário que Rashi faz
sobre Q 3.11. Segundo este sábio, que interpreta como “mundo”:
Este comentário feito por Rashi também aponta, de certa forma, para o
conceito de liberdade humana em suas entrelinhas. Aliás, respeitados os seus
devidos contextos, o exemplo de Rashi é totalmente verificável em nossos dias.
Hoje, muitas pessoas de idade avançada que sabem que estão bem próximas da
morte também não se preocupam, muitas vezes, em construir uma casa ou plantar
uma semente qualquer. Diante da proximidade da morte, tais pessoas, em posse
de sua liberdade, podem simplesmente escolher não querer fazer ou produzir
mais nada até o seu último suspiro de vida.
No verso doze, nos deparamos com a seguinte expressão: “Eu sei que não
há nada melhor para eles que se alegrarem e fazerem (o) bem em sua vida”
(v.12).130 Sobre este verso, o já citado Rabi Yaacov ben Yaacov Moshé de Lissa,
ao comentar o livro de Q em seus Taalumot Chochmá, destaca aqui o
papel da liberdade humana na prática das boas ações. Segundo este sábio: © Carlos Augusto Vailatti ● Q
Não há nada melhor nos dias da vida do homem do que a alegria que ele sente
quando praticou uma boa ação por seu livre-arbítrio, e ele percebe a recompensa
que o aguarda.131
128
JAPHET, Sara & SALTERS, Robert B. The Commentary of R. Samuel Ben Meir Rashbam on
Qoheleth. Jerusalem, The Magnes Press, 1985, p.116. Os acréscimos entre colchetes são meus.
129
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.22. O acréscimo entre colchetes é meu.
130
Segundo Bentzen, a expressão “fazerem o bem” ( & ") encontrada em Q 3.12 é um
helenismo. (Cf. BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. [Vol.2]. São Paulo, ASTE, 1968,
p.215).
131
WASSERMAN, Op.Cit., p.23.
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Segundo este comentário, as boas ações (e, por inferência, também as más
ações) são resultantes da nossa liberdade humana. Além do mais, tal pensamento
parece ser tão óbvio, que os praticantes das boas ações inclusive percebem que
há uma recompensa que lhes aguarda. Logo, se há recompensa, há justiça. E, se
há justiça, isto significa que há também agentes livres envolvidos.
Quando o homem deixa este mundo, lhe é mostrada a riqueza espiritual que
adquiriu através do estudo da Torá. Mesmo aquele que goza os prazeres deste
mundo pode merecer a riqueza espiritual no próximo mundo. Ele “verá o
sucesso de toda sua labuta” na Torá. O fato de ele ter desfrutado este mundo não
significa necessariamente que uma porção será deduzida de sua partilha no outro
mundo, pois seu sucesso neste mundo foi um “presente” de D’us.133
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Tudo quanto Deus faz perdura para sempre; coisa alguma pode ser adicionada ao
que Ele determinou; e coisa alguma pode ser tirada do que Ele estabeleceu.
Determinismo absoluto é o nome do jogo. (...) Para o autor do livro de
Eclesiastes, a vida se caracteriza por um profundo sofrimento, no qual os
homens vivem presos. Mas ele tinha a ideia distorcida de que Deus planejou as
(...) o conceito bíblico de temer a Deus tem “um caráter tanto metafísico quanto
ético”. Dito de outra forma, a noção “incorpora tanto uma teoria de vida quanto
uma direção de conduta”.135
Bem, se isto é realmente assim, então esse “caráter ético” embutido no ato
de temer a Deus que é acompanhado por uma “conduta” adequada, só pode
existir, de fato, em homens e mulheres que sejam agentes verdadeiramente livres.
Somente seres realmente livres podem optar entre praticar algo que seja
eticamente correto ou errado.
Por fim, Rashi faz o seguinte comentário sobre o verso 14:
Uma vez que a prática das mitsvót e o “temer a Deus” envolvem, ambos,
aspectos éticos (como acabamos de ver), então, novamente vemos a liberdade
humana envolvida em tais situações.
134
CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol. 4, p.2715.
135
LIOY, Dan T. The Divine Sabotage: An Exegetical and Theological Study of Ecclesiastes 3, p.126.
136
WASSERMAN, Adolpho. Eclesiastes, p.23.
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Em último lugar, vejamos o que diz o verso quinze: “O que foi, ele já (é);
e (o) que será, já foi; E Deus buscará o perseguido” (v.15).137 Sobre este verso,
vejamos o interessante comentário feito por Moshe Alshich que, novamente,
aborda os conceitos de determinismo e liberdade humana em seu pensamento:
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todos aqueles que foram perseguidos, os encontrará e lhes fará justiça contra os
seus perseguidores.
Se esse pensamento estiver correto, então, nós encontramos aqui duas
verdades simultâneas. A primeira verdade é que Deus está presente e atuante na
obra da Sua criação. Ou seja, Ele a controla através do Seu infinito poder e
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CONCLUSÃO
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resolvido pelo autor bíblico. Por esse motivo, concluí que as verdades do
determinismo e do livre-arbítrio são, ambas, necessárias, como o são também
igualmente necessários os dois trilhos sobre os quais um trem se desloca em sua
viagem. Assim como o trem precisa de dois trilhos para poder se locomover e
poder chegar ao seu destino, da mesma forma, precisamos aceitar a realidade
140
SICRE, José Luis. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis, Vozes, 1994, p.279.
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