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Yasser Jamil Fayad

NOSSO VERBO É LUTAR:


SOMOS TODOS PALESTINOS
FICHA TÉCNICA

Revisão geral:
Jamil Abdalla Fayad

Corretora de língua portuguesa:


Rosa Helena dos Santos

Corretor de língua árabe:


Ayman Abdalla Salem Mady

Designer gráfico:
André Jaime Lopes

Agradecimentos:
Camila Winiarski
Tarik Fayad
Samira Jamil Fayad
Jean Claúdio Guadagnin
Paulo Maurício Cavalheiro França
Gilmar de Oliveira
Ivanda Masson
Arnoldo Ramos Cândido e Sindaspi

Fayad, Yasser Jamil (1982-)


Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos – Yasser Jamil Fayad.
1. ed. - Florianópolis: Fedayin, 2015.

ISBN:978-65-00-21833-6 .
Título: Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos

I. Poesia palestina de combate.


II. Luta de libertação do povo palestino.

2ª edição: outubro de 2021.


Fedayin Editora

2
Palestina livre
A todos os que lutam contra
a opressão e exploração

4
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................... 7

ELUCIDANDO A CAUSA
Quem é você, Israel?....................................................14

SÓ A LUTA LIBERTA
Meu verbo é lutar.........................................................50
Meu amor por ti...........................................................52
Perguntas e respostas...................................................54
O quinhão de terra.......................................................58
O que construíram?.....................................................62
Crianças do meu país...................................................66
Pobres formigas............................................................69
Oliveira..........................................................................73
Razões............................................................................76
Territórios “autônomos”..............................................79
O único sofredor..........................................................82
Eu todo povo.................................................................85
Tudo em cinquenta anos.............................................87
A face que revela...........................................................90
Nossos mortos..............................................................93
O fim do ódio que você plantou.................................98
Mulher palestina.........................................................103
Adorador do umbigo.................................................108
Formas e linguagens...................................................111
Identidade....................................................................118
Intifada.........................................................................121
As oliveiras..................................................................121
Muro das lamentações...............................................121
Seu Deus......................................................................122
Seus muros..................................................................122
Seu travesseiro............................................................122

UM POVO QUE LUTA........................................................123

CENAS DE LUTA PALESTINA


(POEMAS - CENAS)
Bombas em Gaza........................................................147
O símbolo que assombra...........................................152
Com toda a pólvora...................................................161
Pedras que carregam saudades.................................167
Chave da nossa existência.........................................176
Nas mãos de Deus......................................................187
As dores do novo........................................................193
Entre nós......................................................................202
Os que não se curvam nem se quebram..................210
A casa...........................................................................219

VOZ QUE NÃO SE CALA


(Homenagem e apresentação do escritor palestino Ghassan
Kanafani)
Nota biográfica....................................................... ...228
Visão de Ramallah..................................................... 241
Visão de Gaza..............................................................245
Introdução

7
O atual palestino tem na sua formação étnica bá-
sica a secular miscigenação dos povos que nasceram,
viveram e morreram na região conhecida hoje como
Palestina desde tempos imemoriais. Desses diversos
povos alguns adquiriram relevância na história e outros
apenas na mitologia. Entre os historicamente significa-
tivos estão aqueles que construíram e integraram im-
portantes civilizações da humanidade como Egípcia,
Babilônica, Assíria, Fenícia, Persa e Árabe. No pro-
cesso antropológico em que povos se desfazem e se
refazem, transfigurando suas características culturais,
adquirindo nova feição comum, a islamização e a ara-
bização da Palestina, iniciada no século VII, foi a última
grande transformação étnica e cultural da região.
No campo religioso, os palestinos viram nascer,
participaram e conviveram com o judaísmo, cristianis-
mo e islamismo num ambiente de cumplicidade e pro-
teção eternizado no famoso Pacto de Omar, o Segundo
Califa Ortodoxo do Islã, que derrotou os bizantinos da
Palestina e foi pessoalmente junto aos seus soldados
limpar as profanações bizantinas à Cúpula dos Roche-
dos, inclusive o Muro das Lamentações.
O Pacto forjou as bases de convívio religioso –
comparativamente muito mais respeitadas as diferen-
ças do que em outras civilizações da época – não só
na Palestina, mas para todo o Islão, incluindo o res-
tabelecimento de santuários religiosos das três religi-
ões abraâmicas em igualdade na Sagrada Cidade de
Jerusalém – após 300 anos de proibição bizantina do
judaísmo na mesma.
A colonização da Palestina por europeus que
professavam o judaísmo (sionistas) é um fenômeno
recente e está ligado ao movimento do capitalismo
mundial e, em particular, o europeu. Esse reestruturou

8
a sociedade europeia criando um amplo êxodo rural,
indústrias modernas, formação de grandes e modernos
conglomerados urbanos com enormes contingentes
humanos miseráveis sem acesso a condições normais
de reprodução de sua própria existência física tratando
de transferi-los para outros continentes.
A operação regional de “limpeza”, orquestrada
pela burguesia central, estava ligada também ao pro-
cesso de neocolonialismo que fez dessa massa huma-
na pilar físico do processo de acumulação capitalista
que dividiu Ásia, África e América em novas áreas de
exploração. Nesse mesmo tempo, para “resolver” a
dívida europeia com anos de antijudaísmo, conhecida
como a “questão judaica”, aliado ao interesse dos sio-
nistas em querer um lar na Palestina e à necessidade
de expansão e dominação do Imperialismo europeu,
se estabeleceu a colonização sionista da Palestina. A
“questão da palestina” é assim criada pela síntese de
uma necessidade de acumulação do capitalismo cen-
tral, transferindo uma população genuinamente euro-
peia para Palestina com a função social de ser o posto
avançado colonial a serviço do Imperialismo no Oriente
Médio, em especial, objetivando o controle das fontes
energéticas e a desestabilização política da região.
A recepção palestina a essa ofensiva apresentou
várias fases que correspondem ao grau de consciên-
cia coletiva frente ao processo exógeno de colonização
sob a proteção e incentivo do Mandato Britânico. As-
sim, é possível compreender a generosidade inocente
da população local palestina que recebeu muito bem
todos os primeiros colonos europeus que professavam
o judaísmo, ou mesmo, as primeiras “reclamações” e
apelos ao “senso de justiça” do Mandatário. Os pales-
tinos na construção de sua luta também perderam as
ilusões quanto às elites árabes regionais como interlo-
9
cutoras fundamentais da causa palestina, pois essas
em dimensão maior ou menor fizeram uso dela em pro-
veito próprio.
A resistência palestina à agressão colonizadora
aparece desde cedo, ainda que pontual e depois ad-
quire intensidade e dimensões maiores, sob a forma de
greves, rebeliões populares, defesa armada, etc.
Na década de 60, surge uma nova etapa desse
movimento, onde definitivamente os palestinos assu-
miam para si mesmos a luta de libertação; diversas
organizações, grupos e intelectuais com amplo leque
político vão integrar em 1964 a Organização de Liber-
tação da Palestina (OLP), que unificou e conduziu um
dos maiores processos de mobilização anticolonialista
e desencadeou incrível luta de libertação nacional. A
causa palestina agora pensada e organizada a partir
dos próprios interesses do conjunto dos palestinos não
deixou de ter suas perspectivas distintas de classe,
nem a excluiu da questão árabe e regional, mas possi-
bilitou o avanço de uma unidade comum em forma de
frente de libertação nacional.
Em todas as expressões desse movimento pa-
lestino anticolonialista esteve sempre presente a forma
artística da poesia. Isso porque ela possui uma brilhan-
te, longa e sólida posição na cultura árabe, tradicio-
nalmente oral, mas também escrita e por ser uma das
formas privilegiadas de reflexão e apropriação popular
da cultura de resistência e combate. Por isso é comum
vermos pessoas do povo declamando poesias de luta e
resistência. Não é menos significativo o registro que um
dos traços marcantes e comuns das políticas de coloni-
zação sempre foi a destruição da cultura do colonizado;
nesse aspecto o assassinato e prisão de poetas pales-
tinos traduzem a relevância desses para a resistência e
a cultura palestina e árabe.
10
Os poemas desse livro fazem justiça ao longo
percurso de lutas do povo palestino e à tradição lite-
rária de combate da poesia desse heroico povo. Mais
do que isso, assumem integralmente o posicionamento
em favor e como parte atuante desta mesma luta, que
articula vários substratos temáticos:
I. A luta contra os imperialismos.
II. A luta contra os colonialismos.
III. A luta contra o racismo e a segregação étnica.
IV. A luta pela terra e seus recursos.
V. A luta pela autodeterminação de uma identida-
de étnica própria.
VI. A luta contras as elites locais subservientes
(burguesias locais árabes).
VII. A luta pelos direitos humanos.
VIII. A luta por um novo modelo societário para
Palestina.
A decisão pelo formato de poemas, mesmo com
as limitações que essa forma literária impõe à redação,
é de abrir a possibilidade atrativa do diálogo entre lite-
ratura e política fazendo com que a forma literária da
poesia torne-se mais convidativa a esse conteúdo tão
sério como é a causa palestina. Para tanto separamos
o livro em cinco capítulos:
I. Elucidando a causa: contém um poema extenso
com o objetivo de explicar os principais movimen-
tos e a essência do fenômeno de colonização
sionista, assim como, dar apontamentos de sua
antítese à luta de libertação palestina.
II. Só a luta liberta: contém um conjunto de poemas
curtos com o objetivo de exporem o extenso pa-
norama da luta de libertação palestina.
11
III. Um povo que luta: fotos que incluem imagens da
Nakba; movimentos e lideranças palestinas de
resistência à colonização; lideranças anticolonia-
listas em apoio à causa palestina; primeira Intifa-
da 1987; todos na luta contra a colonização; arte
e luta.
IV. Cenas da luta palestina: poemas que condensam
cenas da vida palestina.
V. Voz que não se cala: homenagem que contém
foto, nota biográfica e textos de Ghassan Kanafa-
ni, que sintetizam a tomada de posição e luta da
geração pós-67.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Florianópolis, Safar de 1436 (ano da Hégira).

12
Elucidando a
causa

13
Quem é você, Israel?

I.

Quem é você,
Israel?

Chegou à Europa
Foi recebido com
Séculos de negação de suas crenças religiosas
Sua humanidade
Guetos,
Pogroms,
Perseguições.

Para não morrer no passado


Inventou própria forma de resistir
Aprendeu a ser ardiloso
Quase sempre
Dissimular
Fez da necessidade de seus algozes
Sua profissão
Já sabia muito sobre dinheiro
Cobrou usuras
Que as cruzes não lhes permitiam
Mais do que tiras de couro humano,
Suor,
Sangue alheio,
14
Explorou-os cada gota que pôde.

Sofreu – é verdade!
Descobriu que enfrentá-los
Frente a frente
Levaria à amarga fogueira das inquisições.

Preferiu por vezes


Camuflar-se
Na multidão
Aprendeu cuidadosamente com o tempo
Mimetizá-la.

Encontrando-se
Quase sempre
Escondido,
Aos sussurros,
Caminhando nas pontas dos pés,
Nos porões,
Sótãos.

Encobriu tanto... tanto


Sua religiosidade
Nas entranhas da vida privada
Fundos da casa
Esconderijos da intimidade
Para não ser pego
Acabou por transformá-la
Numa pálida caricatura
15
De seu passado em outras terras.

Fez tudo a seu alcance


Para parecer igual a eles
Cortou tranças, raspou barba,
Escondeu trajes típicos
Autêntico mímico
Por tanto... tanto tempo
Deixou de ter qualquer diferença
Por fim,
Esqueceu-se de quem fora.

Matou lentamente
A pouca identidade étnica
Que lhe restava
Herança
Daqueles longínquos
Pequeninos grupos originais
Chegados à Europa.

Não foi fácil,


Contudo
Foi assim que abasteceu
Suas fileiras por séculos
Centenas e milhares de conversões
A esse seu novo judaísmo que nascia
Moldado
Na forma e conteúdo
Pelas mãos da velha Europa
Avessa a tudo que não é ela.
16
Foram muitas partidas
Vários tabuleiros
Jogou
Incontáveis vezes os dados
Tirou lições
Aprendeu o que queria
Dominou a arte
De sempre tirar proveito de tudo
De todos.

Conseguiu assim
Sua função social
Desde tempos medievais
Em alguns lugares
Foi parcela pequena,
Em outros – significativa.
Por vezes até monopolizou
Comércios, empréstimos
– Odiado, mas necessário.

Associou-se
Com seus antigos assassinos
Descobriu que podia
Sempre
Servi-los... Até mesmo em outras terras
Em troca de moedas.

Introjetou
Profundamente
Seu opressor
17
Tornou-se mera cópia dele
Cheio de superioridade
Racial,
Religiosa,
Moral,
Civilizatória.

Distanciou-se tanto... tanto


De seus irmãos de religião
Em África, Oriente Médio, Índia...
Já não os reconhecia como iguais.

Teve nojo
Como toda “boa elite” europeia da época
Dos negros de África
Por isso ajudou traficá-los no passado
Financiando navios negreiros.

Teve nojo
Como toda “boa elite” europeia da época
Dos indígenas de América
Por isso ajudou exterminá-los
Financiando exploração deles
E das terras
Que lhes pertenciam.

Teve nojo
Da mestiçagem
Branca, indígena, negra.
18
Nas colônias –
Não se misturou
Com os “debaixo”.

II.

Quem é você,
Israel?

No século da expansão burguesa


Domínio do capital industrial
Impérios modernos que dividiram
Mundo em fatias de bolo
Rasgando povos
Apagando gentes
Você finalmente
Achou sua vocação.

Seu sujo quinhão nessa partilha


De morte e exploração
Enfim moldou com acabamentos refinados
Sua identidade moderna
Coroou sua longa evolução
Genuinamente europeia.

Suas organizações,
Mesa de negócios comuns,
Outrora isoladas
19
Articulavam-se agora
Em torno de projeto comum
Nascia seu sionismo moderno
Fruto do casamento
Da visão ideológica de superioridade racial,
Do voraz expansionismo
E dos efeitos em você do antijudaísmo secular.
– Mais um
Filho tardio da Era colonialista.

Herdeiro da podridão
Daqueles que pisaram
Nos ossos
Trituram
Carnes
Dos trabalhadores nas colônias e metrópoles
Numa imensa acumulação primitiva
De ouro e dentes,
Diamantes e órgãos humanos,
Matérias-primas e corações –
Tudo para
Colher dividendos.

Aliou-se à Grã- Bretanha


Mais forte de então
Ofereceu serviços
Coloniais
Na Palestina...
“Para a Europa,
Fortaleza contra a Ásia,
Sentinela avançada da civilização contra a barbárie.”
20
Quanta barbárie fez
Em nome desta “civilização”
Que de joelhos deixou povos milenares da Terra.

Sabia que um novo mestre


Estava surgindo em América do Norte
Tratou de render-lhe
Novos amores.

Manteve máscara
Amigável com os
Soviéticos
Quanto pôde
Junto
Ao dedo acusatório
Do continuum antijudaísmo eslavo.

Insinuou-se
Ao seu maior amor
Sorriu feliz quando esse
Abriu Europa
Para aquilo que
Tinha de mais podre...
Aquilo que você aprendeu finalmente a ser o melhor
reflexo.

Felicitou-se quando
Esse decretou
As leis de Nuremberg
21
Porta aberta para
Verdadeira
Diáspora judaica.

Massa humana
Que você tanto precisava
Para realizar seu até então
Não muito promissor
Projeto sionista.

Pôde vender
A essa gente desesperada
Falso sonho de terra sem males
Inocência essa perdida
Ao invadirem à Palestina.
“De vítimas
a assassinos
E
De religião
À etnia /raça –
Que é dona por decreto divino,
Da Palestina”.
Eis sua sórdida fórmula.

Grande,
Perfeita,
Solução cínica
Do secular ódio, das perseguições
Europeias a tudo que não lhe era espelho
Europa narcisista que criou a “questão judaica”...
22
Moldou-lhe... Você gostou de suas feições:
“Deixar morrer no holocausto ou
Invadir a Palestina”.

Fez de tudo para os outros


Fecharem as portas –
As famosas Leis anti-imigratórias na
Europa e América inglesas.

Soube esconder
Suas ligações íntimas amorosas
Sempre fiel – como uma boa esposa.
Na cama
Do nazismo,
Fascismo.

Tentou ocultar
Suas lideranças “religiosas” saindo
Pela porta da frente
Com amigáveis sorrisos
Tapinhas nas costas
Daquele Terceiro Reich
Enquanto pobres queimavam nos fornos de
Auschwitz-Birkenau.

Escondeu sua polícia judaica do gueto


Assassina de judeus pobres,
Trabalhadores,
Cúmplices e servidores
23
Da Schutzstaffel –
Como você é complemento necessário
De tudo aquilo,
Israel!

Como serviu a você


Aqueles milhares de cadáveres
Fez indústria deles
Processos judiciais,
Filmes em Hollywood,
Livros,
Séries de TV,
Best sellers,
Imenso comércio.

Inventou sentimento
De unidade
Que explora a exaustão patética e cínica –
“Dos únicos sofredores da Terra.”

Por fim,
Blindou-se com aura do antijudaísmo secular
europeu –
Sob o rótulo pseudo-racial de
“antissemitismo”
Licença para matar árabes,
Título preferido para defesa
E ataque
De qualquer de seus críticos
– Seu melhor escudo.
24
Você que
Esperou secularmente pelo
Messias
Queria a Terra Santa...
Sionismo lhe deu alguém digno de seu nome...
O Führer,
O verdadeiro messias de sua criação,
Israel.

III.

Quem é você,
Israel?

Debaixo
Da falsa
Construída
Aparência de arco-íris
Você usou tão bem
Todo terror
Deu vida aos piores pesadelos humanos
Aprendeu muito bem
Com forças de colonização inglesas
Depois com o nazismo.

No menu
Em seu cardápio diário
Bombas,
Incêndios,
25
Assassinatos a sangue frio,
Rapinagem, genocídios, racismos
Estupros, linchamentos, limpeza étnica,
Tudo no melhor de seu estilo.

Recheado por grupos militares e paramilitares


Todos oficiais a serviço do Estado sionista –
Escória do mundo de onde saiu
Suas principais lideranças políticas
Primeiros-ministros, diplomatas,
Ministros,
Homens de governo.

Assim
Num piscar de olhos
Numa jogada
Armada
Ensaiada
Com a Inglaterra
Assumiu o controle.

Seu poder bélico


Made in Ocidente
Soldados treinados
Pelos exércitos europeus
Nas guerras colonialistas
Modernas
Davam-lhe
Ampla vantagem ante
Aos árabes
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Dominados,
Obsoletos.

Numa partilha
Cinematográfica
Um mundo inescrupuloso
Votava sobre direito alheio
Sentenciava os palestinos pela
Segunda Guerra
Condenava-os ao exílio e a aceitar você
... Sim, você!

Que para a elite europeia


Não passava de
Subproduto,
Resto,
Último vômito,
Daquilo que não queriam em suas terras.

Imaginou que
Os palestinos
Após os primeiros anos
De derrotas em cima de derrotas
Assassinatos sistemáticos,
Prisões,
Penúria permanente,
Fugiriam todos.

Desmanchariam-se
27
Em retalhos humanos
Na miséria comum
De um mar de árabes.

Como pôde desprezar


Uma das mais
belas e ricas culturas
construídas pelo gênero humano?

“Todos iguais e inferiores,


Comedores de carne crua e trigo
Vestindo turbantes”
– Com desdém pensou.

“O velho morrerá
E o jovem esquecerá” –
Essa era sua esperança...
Lembra?

Errou profundamente

Você
Criou para os palestinos
Aquele momento ímpar
Imensamente trágico
Que a morte e a dissolução
Só podem ser contrapostos
Por uma resposta unitária
28
De todos.

Os palestinos
Acharam essa resposta
Esse denominador comum
Na luta contra você –
Isso não estava em seus sujos planos.

São eles
Sua maior pedra no sapato
Não cessam de criar e recriar
Formas de resistência.

Não temem
Sua imensa superioridade militar
Povo que
Não abjura,
Não quebra,
Não se dilui...

Desde a batalha de Karameh


Sentiu gosto amargo da derrota
Desde então teme
Os fedayns
O chão
E o corpo a corpo
em condições de igualdade –
prefere as alturas,
mísseis,
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segurança dos blindados
... enfim
Onde não tem páreo
Nem guerra.

Como podem resistir naquela


Horrível Faixa de Gaza
Que você criou?

Como podem viver


Naquele campo de concentração
Gigantesca prisão
Reproduzir-se
Naquele ambiente insalubre
Sem direito ao mar e céu?

E se reproduzem...
Filhos e mais filhos,
Longe de seus parâmetros europeus
De natalidade
E como você tem medo
Por dentro,
Por fora,
De ser engolido por eles!

Também sabe
Que são
Seu maior prelúdio...
Os outros árabes agora sabem
30
Como resistir
A sua invasão.

Sua essência
Israel
Aquilo que sua bem construída
Aparência tenta esconder
Aos olhos desatentos de quem passa
Ao longe
Traduz seu propósito nesse mundo
Seu serviço moderno.

Provocar
Guerra de conquista,
Fontes de energia,
Para os impérios
Criar mais e mais instabilidades,
Mortes,
Entre os fragilizados árabes –
Amaldiçoados pelo petróleo!

Acabar com sonhos


De unidade entre eles
Sob qualquer bandeira
Não deixar que
Consigam criar nenhum tipo de resistência
Aos projetos
Das potências ocidentais.

31
Seu pagamento
Lucro
Está nos gordos orçamentos
Repassados pela maldita Águia,
Partilha compartilhada dos espólios de guerras,
Arrecadações de suas organizações
Mundo à fora,
Indenizações europeias da Segunda Guerra.

Israel,
Quantas toneladas de carne humana
Você devorou por dinheiro?

IV.

Quem é você,
Israel?

Faz de tudo
Para transfigurar
Vítimas em algozes.

Cuspiu ao vento
Imagem dos árabes
Como bestas irracionais
Sedentas de sangue.

32
Usou todo vocabulário
Baixo para designá-los
Todo eufemismo
Para seu permanente
Modus operandi
De massacre e dominação –
Você, falsificador da história,
Israel.

Fez malabarismo aos montes


Ressuscitou um idioma morto,
Destruiu sítios arqueológicos
Da vida dos palestinos –
Genuínos descendentes modernos de povos
Imemoriais –
Falsificou outros
Para dar consistência
À mirabolante fantasia religiosa
Do “reino de Israel”
– Prova cabal para
O delírio coletivo –
De que uma religião
É dona por certidão lavrada
No cartório dos céus
De uma terra
Com suas latitudes e longitudes.

Como
Inventou centenas
De mentiras bem contadas
Para florir sua suja face.
33
Contos de fada
Escritos com a varinha midiática:

... Terra sem povo –


Propaganda obscena
Riscava do mapa os palestinos.

... Kibutz socialista –


Atrair todos os gostos
Encobrir papel de invasão e colonização.

... Conflito milenar entre muçulmanos e judeus –


Esconde a coexistência respeitosa e secular na
palestina
de judeus, cristãos e muçulmanos
Desde o Pacto de Omar.
Assim como séculos vivendo sob a proteção
árabe-islâmica.

... Ridícula “lei do retorno” –


O retorno de quem nunca esteve aqui.

A lenda da compra de todas as terras.

Espalhou ser fortaleza democrática


Falso leque
De esquerda à direita
34
Tudo somente para irmandade judaica
- excluiu e agride,
Interna e externa,
Todos “os outros” –
Os “não-judeus”.

Como de praxe
Também mentiu
Judeus negros, judeus árabes, judeus indianos...
Pobres,
Trabalhadores,
Não valem tanto quanto
Brancos e ricos –
Aqueles que lhe inventaram
Além do mais... Fora a religião
Nada tem em comum culturalmente
Com você,
Europeu sionista.

Israel,
Quantos milhões de crânios humanos
Você pisoteou
Até hoje?

Quando lhe foi dada a chance


Fez o mesmo que lhe fizeram
Resposta simétrica de sua longa história europeia
Contudo
Fez contra os árabes
Que nada tinham em oposição a você.
35
Criou muitas falácias,
Lendas...
Patética fábula
Dos Hebreus vivos e puros
(“O judeu secular”) –
Quer nos fazer acreditar que aquela
minúscula raiz étnica
Insignificante para história
Exceto pelo Judaísmo
Permanecera intacta por milênios – “raça pura” –
E que você – resíduo indesejado
da Europa transposto
ao oriente –
É essa “raça pura”
– Os “semitas” inventados pelo antijudaísmo.

Escondeu conversões,
Escondeu dissolução dos Hebreus
Como muitos outros povos,
Naquele caldeirão palestino e do Oriente Próximo
De diversas raízes que se mesclaram
Até a grande transfiguração étnica que
os arabizou/ islamizou
Nesse sentido,
Os palestinos modernos são
mais hebreus que você,
Falsário europeu.

Usou das mitologias religiosas difundidas


Pelo cristianismo
Sobre o globo
36
Para associar-se ao “povo escolhido”,
“terra prometida”, “decreto divino”,
“reino de Israel” e outras dezenas –
Tudo para confundir
Sua verdadeira face.

Você
Usou toneladas de maquiagem
Base,
Blush,
Batom nos lábios,
Cílios postiços –
Não lhe cobrem a imensa feiura
Colonizadora e segregacionista,
Israel.

V.

Quem é você,
Israel?

Terra Santa
Que incontáveis milagres
Presenciou
Você produziu a mais
Horrenda peste
– Meio século tentando apagar
Um povo
De verdade.
37
Quanta podridão
Você gerou ao mundo?
Quanto exalou de seu imundo veneno?
De pólvora?
De nitroglicerina?
De falsidades?
De calamidades?
De catástrofes?

Roubou-lhes
As oliveiras,
As águas do Jordão,
As casas,
As vilas...
E insiste em não ser chamado
Por aquilo que fez e faz –
Ladrão!

Nem original
Você é
Cópia sem sabor
De todo
Expansionismo europeu:
Matar indígenas
(banquete de limpeza étnica e genocídio),
Transformá-los em seres inferiores,
Usando sempre um discurso
De benfeitor,
Casca fina de civilidade,
Etiquetas,
Que dissimulam
38
O monstro que és
– Israel.

Dá de ombros para as resoluções da ONU


Ri copiosamente dos jogos de cena
Da União Europeia e EUA
Goza com a farsa de Oslo
Delicia-se com seus iguais.

Você, tão pequena,


Tantas armas,
Bombas,
Algumas atômicas
- Pois sabe que deve muito!

Teme a hora da cobrança


Do que plantou?

Monstro
De ruas, esquinas, avenidas de frio asfalto
Cheirando a enxofre
Conduzem todas
A cemitérios
De árabes.

Chacina lá,
Carnificina acolá,
Massacre ali,
39
Não existe
Israel
Em você
Um único canto livre
De vísceras,
Lágrimas,
Sangue coagulado,
De milhares de palestinos.

Quanto
Aos sobreviventes
Lançou-lhes na dor do exílio
Seis milhões
Sufocante vida dos campos de refugiados
Outros milhões que ficaram
Transformou-os
Reféns de sua fome
Por bifes,
Costelas,
Miúdos,
De seres humanos.

Soube jogar dados sempre a ganhar


Nesse tabuleiro maldoso
Onde é mestre:
Comprou mercenários,
Corrompeu canalhas,
Assassinou quem não se corrompia,
Aniquilou jovens lideranças,
Tenta
Atomizar pela violência
40
Destituir o povo palestino de seus intelectuais
Para barrar consciência coletiva.

Acentuou facções, frações,


Pequenas rivalidades
Entre seus inimigos –
Dividiu-os para subjugá-los.

Aprendeu tão bem


Fazer campos de concentração
Deixou os palestinos
Prisioneiros
De seus caprichos
Toques de recolher,
Ataques aéreos,
Postos de controle,
Incursões armadas,
Novas colônias,
Violência diária,
Profanação de áreas sagradas do Islã –
Tudo milimetricamente
pensado para (re)criar
Medo,
Desesperança,
Ódio religioso como resposta.

Foi assim que você criou


Grupos religiosos em todo o mundo islâmico
Sobretudo entre os palestinos
Para esvaziar a resistência política.
41
Desviar olhar do mundo
Para banalidade de uma pretensa
Guerra religiosa
De fanáticos.
Que lhe serve
Para caricaturar
A digna luta palestina.

Contudo
Não consegue
Controlá-los
Queimou também os dedos
Nessa jogada.

Como naquele dia


Segunda Intifada
Seu velho lacaio
Criminoso de palestinos
Pisou na Sagrada Esplanada das Mesquitas
Terra Santa de Jerusalém
Ato de provocação –
Quantos pais e mães perderam filhos
Pelos serviços daquele seu velho cão fiel?

Recriou cuidadosamente
No íntimo
Novo apartheid
Transformou palestinos
Seres de segunda classe
Em sua própria terra.
42
Nada demais
Para quem foi único
Apoiar até
O fim aquele regime irmão
Em África do Sul.

Mais do que retórica


Financiou, armou, treinou
Todos
Os movimentos reacionários
Em Congo, Angola, Moçambique, Zimbábue,
Vietnã do Sul e Argélia.
Para barrarem
As lutas de libertação nacional
dos povos colonizados.

Sabe que a resistência palestina


Limitou
Seus sonhos de expansão.

Sabe que seu


Discurso religioso
Não é suficientemente atrativo
Para judeus do mundo
Deixarem conforto de suas casas,
Muitas seculares.
Seus países natais
Línguas nativas
Raízes étnicas verdadeiras
Para viver
43
No seu regime espartano.

Cercado pelo ódio


Que plantou nos árabes
Numa terra árida e insossa –
Aos olhos de muitos deles.

Você se esforça
Agora
Para vender-se
Desesperadamente
Para outros seguimentos.

País maravilhoso, seguro


Científico, moderno,
Cheio de empregos,
De sol e “primeiro mundo”
Para famílias falidas do Ocidente.

Amsterdã de sexo e drogas


No exótico oriente
Para uma juventude que
Não compra
Seu enfadonho projeto
Nem reza para Jeová.

Eu sei
Quem você é, Israel...
44
Fruto podre do mundo!

Nas sagradas escrituras


Acredita-se
Num dia especial –
O do Julgamento Final.

Ele virá para você


Israel...

Quem sabe
Quando seu tutor
Não ver em você
Utilidade?

Ou talvez
Quando o petróleo acabar?

Com certeza
Quando os árabes chutarem
Para longe aquelas elites podres
Tão amigas de você
... Restará – não há dúvidas – seu nome na lista.

E toda essa escuridão


Que você
Insistiu em plantar se dissipará
45
Nesse dia.

Acha que esse imenso Muro


Que o cerca
Vai lhe esconder?

Quando esse dia chegar


O que fará
Então
Fruto
Podre do mundo?

Quando esse dia chegar


(In sha allah em breve!)
Você deixará de existir...
E seremos todos livres novamente.

46
Só a luta liberta

47
48
“Sim
levarei minhas correntes
farei com que os prisioneiros ouçam os poemas
que eu bradava nas praças e nas ruas.
As correntes oprimem minhas mãos (...)”.
Salim Jabran (1947), poeta palestino.

49
Meu verbo é lutar

Correr
Dançar
Chorar
Abraçar
Amar
Sofrer
Ajudar
Gritar
Na vida
Cabem muitos e muitos verbos.

Eu
Sou
Simplesmente
palestino –
Meu verbo é lutar!

50
“(...) Dessa vez pude ver claramente, com
meus próprios olhos, o que ocorria. O soldado
a empurrou com o pé e ela se deitou de costas.
Tinha a face vermelha. O soldado colocou a
ponta do fuzil sobre seu peito e disparou uma
única bala (...).”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor
palestino, em “Visão de Ramallah”.

51
Meu amor por ti

Torturado de madrugada
Na alvorada também.
Torturado sob o sol
Do meio dia,
À tarde torturado também.

No crepúsculo,
Torturado
Outra vez.

Ao anoitecer,
Durmo,
Sonho livremente,
Intervalo das torturas.

Engulo meu próprio sangue a quente,


Recomponho meus ossos quebrados.
Sob as gotas de orvalho,
Lavo meu rosto com lágrimas.

Nunca
Conseguirão
Que desista
De meu amor por ti,
Palestina.
52
“(...) Meu pai morreu ontem
E o enterramos no exílio
Deixou-me uma foto
E uma história sobre a dignidade da juventude
Viveu em ti e morreu no exílio
Ele me infundiu teu amor
E esta saudade poderosa.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.

53
Perguntas e respostas

Quem é você?
Esta é sua primeira pergunta.
Respondo:
Sou o nono filho –
O que chegou depois do verão –
Daqueles pais
De cabelos negros,
Olhos castanhos,
Com o kufiyyah na cabeça
Que Darwish
Escreveu.

Onde você nasceu?


Esta é sua segunda pergunta.
Respondo:
Nasci no exílio
Em algum campo de refugiados
Em algum lugar do Líbano, Síria, Egito,
Ou em outro país árabe...
Minhas ancestrais raízes são daqui
Sou palestino
Minha terra foi roubada.

Você veio sozinho?


Esta é sua terceira pergunta.
Respondo:
Não...
54
Além dos outros oito irmãos
Somos mais seis milhões
Quem sabe mais...
Todos em breve chegarão.

Por que veio até aqui?


Essa é sua quarta pergunta.
Respondo:
Vim reivindicar os sonhos –
Aqueles que não só
São meus –
Os de retornarem às nossas casas.

Retornar para onde?


Esta é sua quinta pergunta.
Respondo:
Para a terra a que pertenço
Àquela entre Ramallah
E Jerusalém
Ao pé da colina
Na margem esquerda da antiga estrada
Com pomar de figueiras
Plantadas por meu tataravô
De muros de pedra
Feitos por meu bisavô.

A Palestina não existe mais!


Esta é sua afirmação.
Respondo:
Enquanto houver palestinos
55
Em qualquer lugar do mundo,
A Palestina existirá.

56
“Eu morro de esperança
De ardor morro
Morro enforcado
Degolado morro
Mas não digo nunca
Nosso amor terminou e morreu
Nosso amor não morrerá.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta
palestino.

57
O quinhão de terra

Nas portas
Do antigo castelo mameluco
Em Khan Younis,

Damasco,
Tâmara,
Za’atar,
Pimenta síria,
Já não são
Mais vendidos
Como outrora.

O forte cheiro
Do café arábica
Não traz hoje
as ternas recordações
Da nossa infância

Dos encontros
Entre amigos
Ou das conversas
Francas com nossos
Anciões.

58
Hoje
Cheiros
Das especiarias
De um tempo
Distante

Já não são mais sentidos


Pelos que por aqui
Passam.

Os muros do castelo
Já não refletem
O esplendor de antigamente.

Eu
Ainda
Sinto o cheiro
De sangue
Daqueles
Cem corpos
Enfileirados
Aqui assassinados.

Sei que essas paredes


Foram testemunhas.

Vala comum
Foi o quinhão de terra
59
Que sobrou para
Aqueles palestinos.

60
“(...) vou continuar gravando seu nome
enquanto luto
na terra, nas paredes, nas portas (...).”
Fadwa Tuqan (1917-2003), poetisa palestina.

61
O que construíram?

Construíram
Trincheiras de guerra,
Dizem que para se defender.
Por isso têm mísseis de longo alcance,
Tropas de assalto,
Aviões não tripulados
Para bombardear ao longe.

Construíram
O Kibutz – colônia em espécie de forte.
Dizem que lá dentro era bom de viver
Por isso, quem fugiu da Europa em chamas,
Veio para cá.

Fora dos limites dele...


Fazem tudo virar um inferno:
Catástrofes, limpeza étnica,
Genocídio a céu aberto.

Houve no passado quem dizia


Que era o verdadeiro socialismo,
Outros, a verdadeira democracia.
Tudo só deles,
Para eles mesmos.

62
Custos altos
– Não se preocupe –
São pagos pelos outros
Os despojados,
Condenados da Terra.

Espoliações,
Opressões,
Muito... muito mesmo
Sangue alheio.

Construíram
Armas,
Tanques,
Bombas,
Inclusive atômicas,
por essas, a ONU não se interessa.

Também são bons


Em construírem
Muros
Adoram muros...
Muitos muros...
grandes
imensos
Que aprisionam os outros
E lhes mantém o ar de superioridade.

63
É a eterna necessidade do gueto
Da segregação
– mais uma intersecção -
Do sionismo com antijudaísmo
Secular europeu.

Para manter a fantasia racial


Não se diluírem,
Não se misturarem,
Não se assimilarem,
Precisam disso,
Ou nada são.

Tudo
Dizem
Pois foram eleitos
No tempo das cavernas
Por um estranho Deus
Inventado por eles mesmos.

64
“Basta-me morrer em meu país
Aí ser enterrada
Dissolver-me e aí reduzir-me a nada
Ressuscitar erva em minha terra
Renascer flor
Que alguma criança crescida
em meu país arrancará (...).”
Fadwa Tuqan (1917-2003), poetisa palestina.

65
Crianças do meu país

Em seu país
As crianças
Brincam do quê?

Correm livres
Pelas ruas,
Campos e
parques
de seu país?

Imagino que se reúnam


Em seu país
Para jogar bola...
Correr...
Brincar de esconde-esconde...
Pipas ao vento...
Quem sabe
até mais...
Do que isso.

No meu país
Tudo é diferente.
Crescem rápido.
Não há tempo,
Nem espaço para brincar.

66
No meu país
Integram-se
Os destinos de meu povo.
Desde muito cedo
Correm de bombas,
escondem-se de tanques,
Brincam com cartuchos vazios de armas,
Jogam bola entre escombros
De bombardeios.

Reúnem-se
Aos garotos mais velhos nas ruas
Pedras nas mãos...
Enfrentam fuzis...
Soldados...
Bombas...
Sempre acreditando que vencerão.

67
“(...) Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.

68
Pobres formigas

Olhou para aquelas


Formigas despojadas
De suas casas.

Vindas todas
De diferentes
Lugares.

Norte ou sul,
Leste ou oeste.

Procuravam no deserto,
Cansadas,
Lugar de sombra.
Se Deus
Quisesse
Água e comida
Também.

Você já viu
Formigas rogarem por descanso?
Pois foi o que fizeram naquele dia...

69
Carregavam
Consigo tudo o que podiam:
Folhas,
Comidas,
Pequenos galhos,
Futuras gerações.

Será que imaginavam


Um porvir nessas terras secas?

Rapidamente constroem
Abrigos
Com o pouco
Em mãos
– Folhas de palmeiras, pedras...
E muita areia.

Não conseguem
Esconder o desalento
A saudade
do antigo lar
perdido.

Você já ouviu
Formigas chorarem de tristeza?
Pois foi o que fizeram naquele dia...

70
Sobrou
Um pequeno
Espaço
Para uma nova casa –
Não um lar.

Todas aquelas formigas


Milhares delas
Todas refugiadas

Hoje
Em faixa tão estreita
De terra árida
Tão perto do mar
Sem poder acessá-lo
Cercadas por muros
Sem direito
ao próprio céu.

Pobres
Formigas!
Elas não mereciam.

71
“Nos exilaram à força
nossa aldeia ficou em ruínas vieram
cavaram uma tumba no passado
arrancaram as oliveiras raiz por raiz
lançaram-nas às ribanceiras de
dez em dez para que morram e ressoem
ao sol e sejam a tristeza do transeunte.”
Hanna Ibrahim.

72
Oliveira

Raízes seculares
Entrelaçam etnias
Que por aqui passaram
profundas raízes
densas de histórias.

Caules tortuosos
Curvam-se para Meca
A todas as orações do dia.

Pele grossa,
Folhas contidas
Negro fruto
como teus olhos e cabelos.

Nunca um povo
Teve tantas feições
Similares a ti
- minha irmã e amiga.

Tu que também resistes


Ao invasor.

73
Carregas, no lugar da seiva
sangue dos mártires.

És,
Por isso,
Minha irmã e amiga,
Que à força te retiram
De tua própria terra
Como nós,
também és palestina.

74
“Talvez apagues todas as luzes de minha noite
Talvez me prives da ternura de minha mãe
Talvez falsifiques minha história
Talvez ponhas máscaras para enganar meus amigos
Talvez levantes muralhas e muralhas ao meu redor
Talvez me crucifiques um dia diante de
espetáculos indignos
Mas não me venderei (...).”
Samih Al Qasim (1939 - 2014),poeta palestino.

75
Razões

Pelo cheiro da terra nua


Molhada pelas lágrimas
Dos inocentes.

Pelo sangue de meu povo


Que por esses vales
Como rio tortuoso
Escorreu.

Pelos cadáveres dos combatentes


Carregados ombro a ombro
Por essas ruas
Até nossos cemitérios.

Pelos pássaros que voam


Por toda Palestina
Ensinam-nos
Lições de liberdade.

Pelos sonhos de verão


E de inverno também,
Que habitam as noites
Das crianças de meu país.

76
Pelos milhões de obrigados a partirem
Que ainda cultivam
Desejo sincero
De para casa retornarem.

Pelos profetas do passado


Presentes também,
Que se rebelam

Pelas pernas, mãos, braços,


Amputados pelas bombas
Que não nos deixam
Esquecer.

Por aquela pequena estrela


Que no céu
Em noites escuras
De medo e tristeza
não se apaga
Insiste brilhar em toda Palestina
Milhões de razões
Para continuar
A lutar.

77
“(...) sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira;
tenho oito filhos
arranco das pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

78
Territórios “autônomos”

Invadiram
Minha casa
À força bruta.

Não respeitaram
Os jardins...
Pisaram nas flores
Mataram o cão
Arrombaram a porta da frente
Sujaram os tapetes da sala
Com suas botinas militares
Não as tiraram como fazem de costume as visitas.

Deixaram claras suas intenções

Tiraram-me de meu sono


Acordaram aos gritos
Meus velhos pais
Bateram nas crianças
Sem piedade ou sinal de remorso

Prenderam-nos
Num pequeno e apertado cômodo
Nos fundos da casa
Destruíram velhos retratos
79
Pendurados nas paredes
Trocaram todas as mobílias
Hoje fazem festa
Em minha antiga sala e cozinha.

Dizem-nos
Quando pela porta podemos passar
– Posto de controle -
Em direção
A um banheiro afastado.

Decidem
Quando as luzes
Devem ser apagadas
Ordenam toque de silêncio
Ora deixam passar água,
Alimentos,
Remédios,
Ora não
Vigiam-nos constantemente.

A ONU
Chama esse lugar em
Que estamos
De “territórios autônomos palestinos”.

80
“Ensinem nossa história sombria
Aos filhos
A fim de que nosso sangue
Permaneça na bandeira dos criminosos
Como sinal de catástrofe.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

81
O único sofredor

Massacres,
Longas guerras,
De toda antiguidade.

Não! O holocausto é maior!

Primeira, segunda, terceira ou


Quem sabe as outras muitas
Cruzadas contra os muçulmanos.

Não! O holocausto é pior!

Monstruoso genocídio
Das nações indígenas americanas.

Não! O holocausto é absoluto!

Horrenda escravidão,
Martírio secular
Negro de África.

Não! O holocausto é o máximo!


82
Massacre covarde japonês
Sobre civis inocentes da Manchúria.

Não! O holocausto é o único!

Inúmeros massacres coloniais


Em Vietnã, Índia, África, América Latina.

Não! O holocausto é incomparável!

Terríveis bombas atômicas


Lançadas
Em Hiroshima e Nagasaki.

Não! O holocausto é muito mais!

Outras tantas vítimas


Da Segunda Guerra Mundial...

Não! Nela só existiu o holocausto!

Para quem é
Só umbigo
Sofrimento é patrimônio
Somente seu.
83
“Palestinos teus olhos, tua tatuagem,
Palestino teu nome
Palestino teus sonhos, teus desvelos
Palestinos teu lenço, teu tornozelo e tua estatura
Palestinos tuas palavras e teu silêncio
Palestina tua voz
Palestinos teu nascimento e tua morte
Te levei nos meus velhos cadernos
No fogo de meus poemas.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

84
Eu todo povo

Naquela noite
Sem lua
Sequestrado
Amarrado
Vendado os olhos
Espancado
Torturado
Jogado nu ao frio
De uma cela
Solitária.

Ao ouvir os sons da noite


Sorri...
Nunca estou só
Em mim
Todo meu povo.

85
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
Tawfik Zayyad (1929-1994), poeta palestino.

86
Tudo em cinquenta anos

Aquela colina
De onde Jerusalém se avista
com seu rebanho de ovelhas meu tataravô cruzava
Como já o faziam seus seculares antepassados.
- Dizem-me que era bom pastor.

Naquele vale
De onde parte a estrada para Haifa
Meu bisavô plantou oliveiras, trigo e figueiras
- Dizem-me que era bom camponês.

Naquela pequena planície


Como as próprias mãos
Meu avô construiu sua casa
Assentando
Pedra por pedra
- Dizem-me que era bom pedreiro.

Foi lá que nasceu meu pai.


Da casa só ficou
A lembrança
Antiga chave,
Saudades.

87
Dizem que lá vive agora
Um russo casado com uma austríaca
Ao cair da tarde
Mentem a si mesmos
A seus filhos
De como eles próprios
Pastorearam a colina,
Plantaram trigo, oliveira e figueiras,
Construíram a casa
Sozinhos
Tudo em cinquenta anos.

88
“(...) eu estou aqui
Sem raízes
Um teto suspenso no vazio
Sou uma geração que cresce
E se multiplica sob as tendas
Escutem bem
Que cresce
E se multiplica sob as tendas
Deixem as migalhas sobre suas mesas
E me deixem dormir com fome e sede
Mas que a história se ponha em guarda
Ante a geração dos acampamentos.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.
89
A face que revela

Não estão nas TVs


Não aparecem
Em noticiários
rádios.

Jornais não
Dizem seus nomes
Agentes secretos
Terroristas oficiais.

Contudo
Os conhecemos bem.
Sabemos como agem,
E dissimulam.

Matam na escuridão da noite


Ou
sob o sol do meio dia.
Tanto faz.

Para encobrir
Seus atos
Recorrem a tudo
Sem escrúpulos
Explosões que matam dezenas de outros.
90
Além do alvo
Desaparecem com corpos.

Não costumam dar


pontos sem nós
Adoram depositar suas ações
Em contas alheias
Xiitas contra sunitas
Cristãos contra muçulmanos
Ou vice-versa.

Agentes provocadores,
Assassinos,
Mercenários.

A face mais oculta


é a que mais revela
Israel.

91
“(...) que erro cometeu meu povo
para que viva hoje
numa terra em ruínas
que erro cometeu o pássaro
para que o joguem de um bosque a outro
que erro cometeu meu coração
para que derramem sobre ele
a catástrofe e tanta dor.”
Hayil’ Assaqilah, poeta palestino.

92
Nossos mortos

Lembra
Do terrível massacre
Extermínio em massa de
Deir Yassin?
Naquele 9 de abril de 1948?
Ou o de Ein Al Zeitune?
Ou o de Al Dawayima?
Ou o de Bait Daras?
Ou o de Burayr?

Lembra
Da pilhagem e
Do pavor dos expulsos
de Lydda-Rameleh em 1948?
Ou os de Hulla?
Ou os de Salyia?
Ou os de Bassa?

Lembra
Da rapinagem e
Do infame
Massacre de Qibia
Em 1953?

Lembra
Do cruento massacre
93
De Khan Younis?
E da
Limpeza étnica
De Rafah?
Naquele novembro de 1956?

E aquele de 1959?
1964? 1967?
Lembra?

De nenhum desses se lembra?

Das mais de 500 vilas


Aniquiladas e seus moradores
Assassinados ou exilados à força
Lembra
De alguma delas?

Será que
São fatos muito antigos
Para você?

Então...
Quem sabe você...

Lembra
Do covarde e
94
desprezível massacre
De Haram Al Khalil
Em Al Khalil?
Naquele 1994?

Ou
Do genocídio
De Jenin,
Em 2002?

Lembra
Do sangrento massacre
De Gaza?
Quando usaram
Bombas de fósforo branco
Contra civis em 2008?
E o de 2014?

Não lembra?
Tem certeza?
De todos aqueles cadáveres?
Alguns pais outros filhos...
Alguns tios outros sobrinhos...
Alguns avós outros netos...
Não lembra?

Da mulher grávida assassinada?


Da criança mutilada?
Da adolescente violada até a morte?
95
Você não lembra!

Para você
Nossos mortos
Nada são.

96
“Um milhão de pássaros
Sobre os ramos de meu coração
Inventam o hino combatente”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

97
O fim do ódio que você plantou

Foi você!
Eu sei que foi você!

Impediu-me
De nascer na casa
De meus antepassados
De robustas pedras
Com parreiral ao fundo.
Ao invés daquela
Tenda da Cruz Vermelha.

Roubou-me a infância
Eu sei...
Brincadeiras inocentes
Nos jardins da casa de meus
Avós paternos em Haifa.

Usurpou-me os cafés da manhã


A mesa farta de carinho
Na casa de meus avós maternos
Em Al Khalil.

Em vez da fome
Que nos fazia ver sol e lua
Como pratos de comida.
98
Foi você!
Eu sei que foi você!

Matou minha adolescência


Pelas ruas de Tulkarm.

Você
me tirou
O direito de viver
Livre em meu país.

De ir à escola como todas


as crianças,
de caminhar pelos mercados,
de conversar com meus amigos!
E quantos deles você
me impediu de conhecer!

Foi você!

Destruiu meu amor


Pela mulher que deveria
ter conhecido...
Aquela com quem me casaria...
Roubou-me a alegria
De ter na Palestina
meus filhos.

99
Ao invés disso,
Você... Sim você!

Nos incontáveis
Endereços do exílio me jogou
de país em país,
de casa em casa,
negou-me o lar.

Foi você!
Eu sei que foi você.

Confinou meus pais


A viver no eterno
Desejo de retornar ao passado
- doces memórias –
Tempo livre de sua existência em nossas terras.

Assassinou
Meus irmãos que não nasceram
Pela miséria dos campos de refugiados
Matou os que nasceram e lutaram contra você.

Tantas vezes você


Quis nos destruir
Desejou nosso fim,
Nossa diluição.

100
Apesar de tudo,
Quero que saiba...

Nossos corações vão vencer


o ódio que você plantou...
Assim,
Logo no dia seguinte
Que a Palestina estiver livre de você!

101
“A história nos mostrou isso:
nenhum povo alcançou a sua liberdade sem luta.
Onde há ocupação, há resistência.”
Leila Khaled (1944 - ), militante histórica
da Frente Popular pela Libertação da Palestina
(FPLP).

102
Mulher palestina

Não houve um dia sequer


Em que você
Não estivesse presente.

Um dia sequer
Em que não erguesse
Em seus ombros
Montanhas, pedras e fuzis.

Não houve um dia sequer


Em que a causa
Em você fraquejasse

Não houve...
Medo de armas
De tanques,
De cães fardados,
Nem de toda a escuridão,
Que eles causaram.

Compartilhou
Cada momento
Da nossa história...

103
Na Nakba,
como todos nós,
Chorou a imensa tristeza
Dos Condenados da Terra.
Carregou,
Estrada afora,
com pés descalços,
Nossas memórias,
E malas.

Alimentou-se
Do gosto áspero
Da derrota
Para gestar em seu ventre
Uma geração que
Não abaixaria
A cabeça.

Foi você
Que assim a educou.

Um filho no braço,
Outro na barriga,
Igualmente pegou em armas na guerrilha.
Fez passeatas,
Manifestações,
Escreveu poemas,
Teses e panfletos para as batalhas,
Incendiou centena
de vezes corações.
104
Alertou
Os perigos de negociar
Com tão vil e ardiloso
Inimigo.

Quando a morte fez festa


Pensando que era nosso fim,
Você também saiu
às ruas com pedras nas mãos.
Mais uma vez,
se reinventou.

Não houve um dia sequer


Em que
Não alimentasse nossas almas
Com sonhos generosos de liberdade
E nos ensinasse
Que só a luta fará vivê-los.

Seu lindo corpo


Carrega
Rugas – é verdade -
Profundas cicatrizes,
Úteros grávidos,
Feridas abertas,
Juventude,
Rebeldia,
Infância,
Resistência.
Cada pedaço dele
105
É nossa história.

Não houve um dia sequer


Em que
Não sentíssemos sua firme presença.

Um dia sequer
Em que
Não necessitássemos intensamente
De você – mulher palestina.

106
“Se os mais humildes não nos compreendem
será melhor jogar fora os poemas
e ficarmos calados.
O poeta diz:
se meus versos são bons para meus amigos
e enfurecem os meus inimigos
então é que sou mesmo poeta
e devo continuar cantando.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

107
Adorador do umbigo

Rastreei seus passos,


sionista,
Antes mesmo
De sua chegada em nossas terras.

Pegadas que você deixou


Na areia e no barro...
Até mesmo as que
Tentou encobrir.

Segui desde sua


Nascente...
As curvas de seu curto leito
Na história.

Analisei
Minuciosamente
Seus movimentos,
E o de seus precursores também.

Vi
O que
Você plantou
Pelo caminho.

108
Agora
Entendo
Porque colheu
Tanto ódio
Por onde passou...

Pisava em todos que podia


Enquanto adorava o próprio umbigo.

109
“Eu me recordo muito bem. Enquanto
dormíamos, conforme a tradição nos vilarejos, no
telhado da casa... Os tiros que atingiram uma
aldeia pacífica, Al Birweh, naquela noite de
verão de 1948, não poupavam ninguém. Eu me
vi (no dia em que completava seis anos) caçado
até o olival, escalando aquela montanha íngreme,
por vezes me rastejando. Depois de uma longa
noite de sangue, terror e sede, cheguei a uma
aldeia estrangeira com crianças desconhecidas.
Inocentemente, perguntei: “Onde estou?” E
pela primeira vez ouvi a palavra “Líbano”.
Hoje sei que aquela noite pôs fim à minha
infância.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
110
Formas e linguagens

Invadiram,
Roubaram-lhe a casa,
Reduziram a tiros sua família,
Dividiram suas terras,
Diminuíram suas liberdades,
Subtraíram seu mundo.

Mesmo assim,
Manteve a compostura.
À mesa,
Civilizadamente,
Queria falar.

Era um homem razoável!

Disseram-lhe
Com ameaças atrozes
Para calar a boca!

Saiu contrariado
Resolveu
Aumentar o tom de voz
Ignoraram-no.

111
Então
Gritou ao mundo
Suas demandas
Reprimidas.

A ONU
Fez que não ouvira.
Desconsiderava-o
– Não era
“Membro efetivo”.

Disseram-lhe
A cruéis tapas na cara
Que não aceitavam
Gritos.

Conservava-se um homem razoável!

Decidira
Fazer uma passeata
Com faixas pacíficas.

Disseram-lhe
Com balas de borracha
gás lacrimogêneo
Que não aceitavam interrupção
Do trânsito
nem do vento.
112
Era um homem razoável
Mantinha-se assim...

Pensou muito
E resolvera
Promover panfletagem.

Disseram-lhe
Espancando-o a perversos cassetetes
Que não lhe era permitido usar papel.

Prosseguia sendo um homem razoável.

Protestou pela centésima vez.


Revoltado,
Arremessou o que lhe vinha à mão:
Pedras!

Disseram-lhe
Que não admitiam
Este ato de violência
Pois mal fazia ao processo
De “pax sionista”.

Na prisão colocaram-no,
em solitária e implacável tortura
Para a seus moldes o reeducar.
113
Continuava um homem razoável
Nunca o deixara de ser...

Fecharam-lhe tantas portas


Que quando solto
Só tinha um caminho possível...
Pegou em armas
Velhas e
Obsoletas
Era o que conseguira...

Ameaçado com:
Mísseis de curta e longa distância,
Caças F-16, helicópteros Apache,
Aviões e blindados não tripulados,
Tanques Merkava,
Submarinos,
Navios de combate,
Bombas atômicas,
– “Não suportamos
Terrorismo dos “outros”!”
– Disseram-lhe.

Preserva-se como um homem razoável.

Queria falar,
Ser ouvido,
Lutar,
Contra todos os crimes
114
Que seu povo sofrera.
Descobriu que o
Profeta Mohamed
Não aceitava opressão
Virara muçulmano.

Falava sobre a
Palestina colonizada
Com a linguagem do Islã.

Atinou
Que Nasser
Queria um mundo árabe
Unido –
Achara boa ideia.

Era um homem razoável


Sempre o fora... Já dissemos aqui.

Virara
um
Nasserista.

Falava sobre a Palestina roubada


Com a linguagem do nacionalismo árabe.

Depois,
soube de um tal Marx,
115
adversário da exploração
virara comunista.
Falava sobre a Palestina invadida
Com a linguagem da revolução.

Teve
Muitas e muitas
Formas de luta
Todas as que a história clamou.
Usou tantas linguagens distintas
Que lhe serviam de expressão
Para exigir
No final das contas
Sempre a mesma coisa...

– Justiça para o povo palestino!

116
“Talvez perca — se desejares — minha
subsistência
Talvez venda minhas roupas e meu colchão
Talvez trabalhe na pedreira... como carregador...
ou varredor
Talvez procure grãos no esterco
Talvez fique nu e faminto
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei (...).”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.

117
Identidade

Quem pedirá documentos


Ao céu
Ou
À lua
Ou
Ao Sol?

Não é preciso nenhum,


tampouco
números de identidade,
registros,
certidões,
papéis oficiais.

Como o escaldante sol


que queima
a fina areia do deserto

Ou a refrescante água
que sacia a sede
do camelo e do peregrino

O cheiro forte
do café arábica em Ramallah,
os poéticos versos do Alcorão em Jerusalém,
118
a confluência de estrelas sob a noite de
Haram al-Sharif,
o sabor do chá ricamente adocicado da Cisjordânia.

O kufiyyah na cabeça,
o cominho, o za’atar, a hortelã,
o gergelim, a pimenta.

Em cada gota
do azeite da velha oliveira,
o doce figo,
a suculenta laranja,
a amada uva,
em cada nota do antigo alaúde,
em cada batida do vigoroso derbake,
pulsa meu coração árabe
minha identidade palestina.

E a cristalina certeza
de que isso nunca se apagará.

119
“Se eu morrer no meu leito,
Coloquem-me nu sobre a terra,
Numa colina do meu país,
E que o esquecimento me liberte;
Ou então lembrem-se de mim,
Nas suas festas mais bonitas.”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.

120
Intifada

Se as pedras falassem
Diriam:
“Nas mãos palestinas
Somos justiça!”

As oliveiras

Se as oliveiras falassem
Diriam:
“Resistiremos a mais esse invasor,
frutos
Continuaremos a dar”.

Muro das lamentações

Se o Muro das Lamentações falasse


Diria:
“Lamentos de assassinos
Não arrependidos
Não são ouvidos no céu”.

121
Seu Deus

Se seu Deus pudesse falar


Dir-lhe-ia Israel:
“Envergonha-me tê-lo escolhido.”

Seus muros

Se seus muros falassem, Israel,


Diriam:
“Não adianta se esconder,
todos sabem que deve muito.”

Seu travesseiro

Se seu travesseiro falasse, Israel,


Diria:
“Mantém seus olhos abertos a noite inteira...
Assim dormem os ladrões de terra”.

122
Um povo que luta

123
Nakba,
A grande catástrofe planejada de 1948

124
125
Movimentos e lideranças palestinas
de resistência à colonização

Yasser Arafat - Mahmoud Darwish - George Habash

Frente Popular de Libertação da Palestina - FPLP

Frente Popular de Libertação da Palestina - FPLP


126
Bandeira com a imagem de Ahmad Sa’adat

Leila Khaled (jovem)

Leila Khaled
127
Yasser Arafat - George Habash - Nayef Hawatmeh

Frente Democrática de Libertação da Palestina – FDLP

Frente Democrática de Libertação da Palestina - FDLP


128
Nayef Hawatmeh

Cartaz de Yasser Arafat

Movimento de Libertação Nacional da Palestina - FATAH


129
Movimento de Libertação Nacional da Palestina - FATAH

Movimento de Libertação Nacional da Palestina - FATAH

Movimento de Libertação Nacional da Palestina - FATAH


130
Movimento de Resistencia islâmica – HAMAS

Movimento de Resistencia islâmica – HAMAS

Yasser Arafat - Sheikh Ahmed Yassin


131
Lideranças anticolonialistas em apoio
a causa palestina

Yasser Arafat - Gamal Abdel Nasser

Yasser Arafat - Fidel Castro

Che Guevara em Gaza


132
Jawaharlal Nehru

Yasser Arafat - Nelson Mandela

Yasser Arafat - Nelson Mandela


133
Primeira Intifada 1987

134
135
136
137
Todos na luta contra a colonização

138
139
140
141
142
Arte e luta

143
Marwan Barghouti

Leila Khaled

Handala
144
Cenas da luta
palestina
(Poemas – cenas)

145
“(...) enquanto me reste alento
gritarei de frente ao inimigo
gritarei, declaração de guerra
em nome de homens livres
operários, estudantes, poetas
gritarei... e que os parasitas
e os inimigos do sol
se fartem do pão da vergonha
enquanto me reste alento
e alento me restará
minha palavra será o pão e a alma
entre as mãos dos guerrilheiros.”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.
146
Bombas em Gaza

Conhecia ambos
Pessoas comuns
Que como todos
Só querem ser felizes.

Não éramos íntimos


Vizinhos apenas
Do mesmo bairro.

Pelo que outros


Contavam
Amavam-se muito.

Ela,
Fádia,
27 anos,
filha de Mohammed Hassan Abu Shalbak
(velho pedreiro),
Professora de história,
Da nossa pequena escola.

Ele,
Ahmed,
30 anos,
arquiteto,
147
com a UNRWA
trabalhava.

Filho de Ibrahim Yussef Salih Kullab


- temível dentista da velha cidade –
ganhou essa fama porque na época
só arrancava dentes.
Com seus pacientes
não era delicado.

Ao que parecia,
era mais um dia
Um beijo de até-logo
rápido entre olhares
apenas isso.

Bombas em Gaza não escolhem alvos!

Correu
Para o hospital
Ao saber
Muitos Cadáveres
Sangue para todos os lados
Faces angustiadas
Medo
Gritos agudos
Penetrantes de dor
De feridos,
Familiares.
148
Mesma confusão de sempre
Procura-a
Chama-a
Grita em vão seu nome
– Fádia!

Som se perde
Entre tantos outros
Chamados.

Bombas em Gaza não escolhem alvos!

Suor frio na testa


- pálido de tanto medo -
pede angustiado
informações
ninguém sabe
ninguém viu.

Macas amontoadas
com mortos,
alguns cobertos
outros não,
para tantos corpos
faltam lençóis no hospital.

Parado,
confuso,
149
perplexo,
ao lado dele, Ahmed,
o cadáver dela, Fádia.

Não há lágrimas
nem gritos de desespero
como você poderia pensar.

Não a reconhece!

Mutilada,
retalhada,
sem suas feições humanas,
desfigurada...
Não a reconhece!

Parado,
confuso,
perplexo,
pobre Ahmed!
Mesmo ao lado dela,
não é capaz de chorar.

Bombas em Gaza não escolhem alvos!

150
“Finalmente! Aqui estou eu atravessando com
minha maleta a ponte, que nada mais é que alguns
metros de madeira e 30 anos de exílio. Como
pode esse pedaço escuro de madeira distanciar
uma comunidade inteira de seus sonhos? Como
pode proibir gerações inteiras de tomarem café em
casas que eram delas?
Como conseguiu nos lançar em tamanha
paciência e em toda essa morte?”
Mourid Barghouti (1944-), poeta palestino.

151
O símbolo que assombra

O pequeno
Abdu Malik Qadir Hejazi
era apenas uma criança
na Cisjordânia,
numa pequena vila
perto de Jenin.

Naquela idade,
Em que se pergunta,
Tudo.

Queria saber
Uma coleção de porquês:
Por que o céu é azul e não de outra cor?
Por que as nuvens não caem do céu?
Por que o ovo endurece quando fervido
E a batata amolece?

Finalmente,
a pergunta de seu imaginário
que não queria calar
Por que a lagarta quando dormia
Enrolada no casulo,
Ganhava asas, e ele não,
Por mais que se enrolasse
Nas cobertas para dormir?
152
Adorava correr
Pelas ruas e ruelas
Da vila.

Encontrava-se
Com os amiguinhos
Farid, Hamid, Munir, Omã, Said, Hussein,
Bassam, Adnan,
Para borboletas caçar,
Como tinha visto nas gravuras de um livro infantil.

Não tinha medo de pular


de qualquer altura,
escalar muros,
árvores,
para seguir seu tesouro
de asas coloridas.

Parecia não ter


Medo de nada.
De sua pequena trupe
Era o mais corajoso.

Mesmo com os constantes


avisos
de perigo,
com as duras
censuras de sua mãe,
não parava de aprontar.
153
Não sabia ao certo por que,
mas sempre que ouvia
o que pensava serem
fogos de artifício como os da festa
de casamento de seu primo
Abas Awlad Hassan El- Bawab.

Sua mãe,
Shadia Taufik Farahat Hejazi,
seu pai,
Malik Khalil Qadir Hejazi,
e qualquer adulto
o levavam para dentro
de casa.

Diziam que eram balas


de fuzis
Sabia que essas balas eram diferentes
Deixavam tristes marcas
Contudo
imaginava sempre se
não seriam doces como as que
ganhava na mercearia de seu querido tio Mohamed,
Único tio que sempre tinha balas no bolso.

Ao olhar as notícias
Na TV
Via sempre cenas de guerra
E aquele símbolo estranho
Também ficava triste,
154
aborrecido,
pois em casa todos ficavam.

Dormia como
Um urso na caverna
Nada o acordava

Naquela noite, porém não via a hora


De acordar
Seria seu primeiro dia
De escola
Seu pai sempre respondia
às suas perguntas
com a mesma frase:
“Na escola, todas as suas
perguntas serão respondidas.”

O que justificava sua ansiedade.

Na mochila,
Sua cena de paixão
Borboletas e um caçador ,
como ele próprio.

Naquele dia quando


Chegou à escola
Reconheceu vários amiguinhos
Farid, Munir, Omã e Said
155
Ficou feliz por vê-los ali.

Quando entrou
Na sala
Sentou junto deles
Escutou novamente os fogos de artifício
... Mas desta vez
muito alto,
quase ensurdecedores.

Viu
a professora amedrontada
por soarem tão perto
Mandou que se deitassem no chão.
De repente,
ouviu explosões
poeira, gritos.

Foi levado com outros


Pelas assustadas professoras
Até a rua principal
Onde havia muitos soldados
Apontando armas
Para todos os lados
Gritando muito com todos
Pela primeira vez viu mortos
E aquele símbolo.

Nos campos que outrora


156
Corria caçando borboletas
Estavam repletos de tanques e soldados
Com aquele símbolo.

Seus pais o levaram para


a casa dos avós maternos
- Taufik e Sarah -
com quem tanto gostava de ficar.

Estava assustado e com medo


Lembrava constantemente
Das mortes
Das pessoas feridas
Sangrando
Daqueles soldados gritando
Numa outra língua
Batendo em todos.

Naquela noite
não dormiu como urso
na caverna
Teve medo do escuro
como nunca tivera.

Pediu para dormir


com os pais
Não mais queria
correr pelas ruas.

157
Quando
Dias depois
sua mãe o convenceu
à escola voltar.
Ao chegar
mudou de ideia
lá não mais queria ficar.

Aceitou somente
Quando a mãe disse que ficaria
No fundo da sala o tempo todo.

A professora pediu
Para que todos
Desenhassem
O que mais tinham medo.

Abdu não
Demorou a esboçar sua obra
Aquele símbolo
Que tanto o assombrara
Na televisão que entristecia a todos,
Espantava as borboletas com tanques,
Gritava
Batia
Apontava armas
E matava pessoas
Como no uniforme
daqueles soldados.

158
Entre desenhos
De monstros das outras crianças
Frutos da imaginação
A professora escolheu
O dele

Mostrou-o à mãe.

O símbolo que desenhou –


Estrela de Davi.

Pequeno palestino,
já havia visto o suficiente
para saber
quanta crueldade e malvadeza
aquela estrela carrega.

159
“(...) Assassinaram minhas alegrias,
Sequestraram minhas esperanças,
Algemaram meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles... mataram um terrorista!”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

160
Com toda a pólvora

Olhou o horizonte
nublado
nada viu.

Lembrou
que ao sul da Faixa de Gaza
não era só no inverno
que as coisas eram assim.

Salim Rachid Abu Sitta


era apenas um jovem,
prestes a completar 23 anos.

Caminhou perdido
pelas ruas
que tanto conhecia.

Cada calçada
cada ruela lhe lembrava
histórias de outras gerações
mortas
em Khan Younis –
a dolorosa limpeza étnica de 1956.

161
Em cada esquina
encruzilhada
uma pausa fazia.

Suspirava profundamente
Recordava
Todos os seus mortos
Alguns parentes
Outros vizinhos
Muitos amigos e conhecidos.

Listou a giz
Num imenso muro de tristeza
seus nomes e sobrenomes.

Lembrou-se de um tempo
em que sonhara estudar
bombardearam
a escola
demoliram a universidade.

Depois
recordou o tempo
em que quisera trabalhar
Procurou... procurou
mas não encontrou emprego.

Descobrira não existir economia justa


162
em campos de concentração.

Queria namorar
Mas sempre
As fronteiras
Estavam fechadas
Havia quase diariamente
Toques de recolher.

Olhou para um pedaço de espelho no chão


Enquanto caminhava
Viu em seus próprios olhos
sonhos abandonados pelo caminho
um a um
cercado
cerceado
como toda a Palestina.

Pensou em abandonar
Tudo
Fugir dali
Mais de uma centena de vezes.

Seria possível
Reconstruir-se
Em outro lugar? – Pensou.

Não aguentava mais os lamentos


163
dos velhos que insistiam
em lembrar um
tempo de dignidade
há muito perdido.

Não suportava o choro


silencioso
de quem perdia
suas casas e terras
seculares.

Havia também
se rebelado
com outros jovens.
Carregavam milhões
de razões
todas semelhantes
numa revolta das pedras.

Não conseguiram
Vencer os tanques
Inimigo bem armado
Fuzil
Cinema
Televisão
Editora
Banco...
Voltou a atacar como de costume
Diariamente aos poucos.

164
Sentiu-se impotente
Fraco
Gritou ao vento
Chorou, chorou, chorou,
Lágrimas carregadas
De desespero.

Rezou
Procurou conforto
Na ideia de um Deus
Todo poderoso
Justo –
Tudo momentâneo.

Naquela noite
Decidiu
Tirar a própria vida
desesperançado
aflito
descrente
desolado
Sem presente
Pior... sem futuro.

Seu último ato


mais uma expressão de dor
foi explodir-se
com toda a pólvora
que a vida lhe deu.

165
“Todos chegam,
todos exceto os meus passos
em direção ao meu próprio país...”
Mourid Barghouti (1944-), poeta palestino.

166
Pedras que carregam saudades

Gostava de ouvir
Histórias de meu velho
Avô.

Não era um hábito


Corriqueiro
O que fazia da ocasião
Algo sempre apreciado
Por todos
Principalmente quando
Contava-as à noite após a janta
Tinham gosto de sobremesa
Histórias que saboreávamos.

Costumava
Fazer um ritual
Sempre

Rezava
A última oração do dia
Com todos
Os homens da família.

Sentávamos
Todos ao chão da sala
167
Ao redor de uma antiga estufa
Era inverno na Palestina.

Chá forte
Adocicado
Sementes salgadas
Pistache
Serviam como
Combustíveis
Para aquelas noites.

Os mais velhos sempre


Fumavam narguilé
Não me deixavam fazer o mesmo
Pela pouca idade – diziam.

Naquela noite
Lembrou-se da história
De seu querido
Tio Abdel Nasir Anwar El- Najeel,
“gigante dócil”
como era conhecido,
Lembrou que quando
Chegaram aqui em
Deir Al Balah
Eram apenas refugiados
Vivendo sob tendas improvisadas.

Fugindo de orlas
168
De mercenários
Assassinos perversos
Que usando tochas à noite
Invadiam casas
espalhavam terror
matando pessoas indefesas
nas pacatas aldeias palestinas.

Queriam que todos


Fugissem para nunca mais
Voltarem.

Rapidamente a cidade
Adquiriu
Contornos de
Um campo de refugiados
Miserável
Onde tudo faltava.

Nessa época
Meu avô era apenas
Criança.

Lembrava que as fronteiras


Ao sul da Faixa de Gaza
Não eram muradas
Não existiam tantos
Postos de controle
O que permitia ao sul adentrar o Egito
169
Ao norte e leste
Coração
Da velha Palestina.

Meu avô lembrava


Que era comum
As pessoas retornarem
Escondidas à noite
Até suas antigas terras.

Queriam trazer
Comida:
Ovelhas, galinhas, figos, uvas,
Diante da fome que se alastrava
No campo de refugiados.

Arriscavam-se
A serem capturadas
Assassinadas
Pelas rondas do exército sionista
Grupos paramilitares
Ou por mercenários pagos
Pelos Kibutzim.

Ao falar
daqueles tempos
minuciosamente
o efeito sobre todos
era entristecedor
170
Era como se soubéssemos
que há muito
aqui sofremos.

Uma pequena pausa


Para um gole
De café preto e forte
Meu avô
Repentinamente
Enchia os olhos
De lágrimas
Com um sorriso
Largo
Num misto
De tristeza, alegria e saudade.

Recordou
Seu querido tio Abdel
Era diferente.

Arrastava-se quase todas


As noites
Deserto adentro
Para não ser pego
Corria entre as montanhas
Na noite escura
Escondia-se
Entre arbustos
Longe das luzes dos
jipes de patrulha.
171
Entocava-se em qualquer
Lugar para não ser
Visto pelos
Assassinos.

Mesmo com toda a grande


Escassez de alimentos
Em Deir Al Balah
Tio Abdel
Não fazia
Essa jornada quase
todos os dias
(E o fez por anos a fio)
Por causa de comida.

Dizem que nunca trouxe algo


Para comer

Então
Um silêncio
Proposital
Ficava no ar
Todos esperavam
Que meu avô dissesse o que
Seu velho tio
Fazia então
Em todas aquelas
Arriscadas noites que rumava
À velha Palestina roubada.

172
Meu avô
Era um mestre
Árabe das histórias orais
Contava-as
deixando todos atentos e
Desejosos para
Saber como terminariam
Como nas Mil e Uma Noites.

Então
Olhou para todos
Sentados a sua volta
Nos olhos de cada um de nós
Disse em voz baixa:

Abdel
Voltava naquelas
Noites até sua antiga casa
Ficava horas a contemplá-la
Queria somente matar
A saudade que o atormentava
Recordar as ternas lembranças
Que ali viveu.

Sempre trazia consigo


Pequeninas pedras
Do quintal dela
Do antigo muro
Da antiga calçada.

173
No dia seguinte
Ao amanhecer
Levou-me
Ao quintal
Da casa
(Ainda me lembro do rosto de meu avô
Tahir Adib Ibrahim El- Najeel
Cada ruga de seus 74 anos).

Naquele dia
Conservava as feições da noite passada
Misto de lágrimas nos olhos
Sorriso largo
Mostrou-me um canto
Debaixo da velha oliveira
Cheio de pequeninas pedras
Amontoadas.

Olhou para meus olhos


E disse:
“São pedras do tio Abdel...
Pedras que carregam saudades”.

174
“(...) Tínhamos, atrás das grades
Um limoeiro.
Nosso.
Para fazer enfeites com seus galhos
E perfume das suas flores
O cortaram.
Ficamos
Sem o nosso limoeiro.
Nossos olhos
Nunca mais viram a primavera.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

175
Chave da nossa existência

Saí de Salfit
Para estudar na Síria
Decidi visitar
Aquele campo
De refugiados
Em Beirute.

Procurava
Parte da família
De minha mãe
Camponeses
Da Cisjordânia.

Latifah Kamil Salim Kaloob,


A irmã mais velha,
Havíamos perdido
Contato ao longo dos anos.

O campo é cercado
Convívio fora dele
É restrito ao trabalho
Estudo
De alguns
Saídas esporádicas de outros.

176
Encontro os mais velhos
Sentados tomando chá
Jogando gamão
Mascando sementes
Era o que queria.
A melhor fonte de informação
Pra quem procura alguém do passado.

Converso com eles


Logo
Informaram-me
Que minha tia e sua família
Não estavam mais em Beirute.

Contaram
Que foram embora
Após a carnificina genocida
De Sabra e Chatila.

Recordam
Daquele dia
Lembram-se dos nomes
Sobrenomes
Traços físicos
Famílias inteiras assassinadas.

Lembram
Dos corpos
Empilhados como os de animais em um abatedouro
177
Nas pequenas ruelas.

Lembram
Do tormento
Das mulheres gritando
Ao encontrarem seus filhos,
Maridos e outros familiares mortos.

Dos soldados israelenses


Rindo
Do alto dos seus tanques
Nas colinas
Assistindo a tudo de camarote
Prazer sádico.

Enquanto mantinham
Cercado
O campo inteiro
Para que ninguém conseguisse fugir
Daquela arena montada
Para a morte.

Por fim
Revelaram que entre
Os assassinados
Estava um dos filhos de minha tia.

Quem viveu
178
Aqueles dias
Nunca mais foi o mesmo
Plantaram ódio
Em seus corações.

Decidi não desistir


Segui as escassas
Pistas que
Tinha de seu paradeiro.

Já era entardecer em Zahlé


Quando toco esperançoso pelo encontro
A campainha
Da casa.

Apresentei-me
Explico minuciosamente a
Procura por minha tia
Irmã mais velha de minha mãe.

Fui recebido
Com abraços
Beijos
Disseram-me que ela
Estava na sala.

Soube que o filho mais velho Munir


Primo meu que
179
Sobrevivera a Sabra e Chatila
E que seu filho Taha – o que me recebeu à porta
Cuidavam da avó agora.

Ao ser apresentada
À velha
Pude ver semelhança
Físicas com minha mãe
Pelas fotos antigas da família
Também
Com minha avó materna
Que não conheci.

Ficamos
Noite adentro
Conversando
Botando em dia
Notícias de décadas perdidas.

Contou-me que
o marido
(Awad Mohammed)
segundo os médicos
falecera de infarto,
mas para ela fora de
tristeza pela morte do filho
dois anos depois de Sabra e Chatila.

Samir só tinha doze anos e era um garoto doce –


180
Disse - enxugando as lágrimas
Pelo filho assassinado a sangue frio.

Contou-me
tudo sobre cada membro da família
com quem casou
quantos filhos
teve...

Mesmo invadindo
noite adentro
parecia mais ativa
como se cada recordação
lhe revigorasse as forças para continuar
Sua saga.

Velha mulher,
recordava-se com minúcias ainda
da casa
que tivera que abandonar aos prantos
na antiga aldeia de Al Birweh
a mesma do grande poeta palestino.

Disse que pertencera


Ao avô de seu marido
um camponês que cultivava laranjas
Fora um presente
De casamento.

181
Era capaz ainda
de recordar
Com certa familiaridade
Alguns nomes
De vizinhos
Conhecidos
Daquele tempo
Longínquo.

Lembrou-se de todas
As desgraças
Pequenas vitórias
Que teve ao longo da vida
Mas sempre voltava
A falar da antiga
Amada casa
Vila
Que deixara na Palestina.

Às vezes,
Parava subitamente para perguntar sobre
Algum nome do passado
Que lhe vinha à mente
Repentinamente.

Não conhecia a todos


Que me perguntava...
E apenas negava com a cabeça
Para sua decepção.

182
Lembrava-me
constantemente
que dos 99 nomes conhecidos
que Deus tem no Islã
um deles é
o Justiceiro.

Para que
ele fizesse justiça rezava
por ela e pela Palestina.

Amaldiçoava aqueles
judeus que vieram de longe
Daquela Europa em chamas
“Trouxeram crueldade nas bagagens” dizia-me
Fizeram tanto mal
Às pessoas boas que
Ela tão bem conhecia
a ela própria.

Disse-me para ali esperar


Com certa dificuldade
fardo do tempo
Levantou-se
em direção a outro cômodo.

Quando voltou
entre as mãos
envelhecidas
183
calejadas
pelos anos de trabalho
trouxe um pano dobrado
de veludo vermelho.

Desenrolou-o
Na minha frente
Cuidadosamente
Como se ali
Estivesse
Objeto de valor inestimável
Ao mesmo tempo delicado e frágil.

Era uma
Antiga chave enferrujada
Disse-me com olhos serenos:
-“É da porta da frente
De minha casa”.

Fui embora
No dia seguinte
Não contei a ela
Que sua antiga casa
Nem a antiga vila
Já não existiam mais.

Aqueles que trouxeram crueldade


Destruíram-na
Para apagar toda a nossa existência...
184
A história
De um povo milenar
Feito amplamente de pessoas
Simples e boas
Como minha tia
Que não mereciam esse destino.

185
“(...) Se tivermos sede
Espremeremos as rochas.
Se tivermos fome
Comeremos a terra,
Mas nunca partiremos.
O nosso sangue é puro
Mas não o pouparemos.
Aqui temos o nosso passado
O nosso presente
E o nosso futuro.
O nosso futuro está atrás de nós.”
Tawfiq Zayyad (1929–1994), poeta palestino.

186
Nas mãos de Deus

Aysha Husni Hadi Felfel


Era uma senhora religiosa
Rezava todos os dias
Cinco orações
Em direção a Meca.

Mês sagrado do Ramadã:


sempre jejuava.

Acreditava
No profeta
Principalmente em Deus.

Viu e viveu tantos


Horrores
Da Nakba
À farsa de Oslo.

Viu famílias
Inteiras
Cair no exílio
No esquecimento.

187
Viu a morte de
Crianças, jovens,
Adultos, velhos,
Mulheres e homens
Próximos ou distantes.

Rezava todos os dias por justiça


Dizia sempre que deixava
Nas mãos de Deus.

Viu parentes
sumirem
para nunca mais
voltarem.

Foi a todos
Os enterros da
Velha Gaza
De tantos Fedayns
Inclusive de seu próprio marido.

Rezava mais por justiça


Dizia sempre que deixava
Nas mãos de Deus.

Orgulhava-se
Como todos os seus
Ancestrais de ter
188
Uma prole grande.

Tinha dado à luz


A dez filhos
Entre homens e mulheres.

Já não sabia ao certo


O número de netos que tinha
Eram muitos.

Rezava para protegê-los


Dizia sempre que deixava
Nas mãos de Deus.

Viu um a um
De seus filhos morrerem
Alguns porque não resignados
lutaram.
Orgulhava-se disso
quase como um bom consolo.

Com olhos tristonhos dizia:


-“São mártires da nossa causa”.

Outros
por
falta de medicamentos,
189
hospitais e médicos
fruto dos eternos bloqueios
a Gaza.
Outros
por profunda tristeza.

Chorou em todos
os enterros
Em todas
as despedias fúnebres
rezou
por justiça
e mais de uma vez,
como de costume,
tudo deixou
nas mãos de Deus.

Cansada
Humilhada
Roubada
Envelhecida
Aos sessenta anos.

Viu sua casa


Ser invadida
Por soldados sionistas.

Insultaram-na
Quebraram
190
As mobílias da casa
Arremessaram
Seus pertences à rua
Trataram-na com ultraje.

Pediu para ser


ouvida pelo chefe
da operação
um assassino qualquer
de língua hebraica.

Ao chegar
ao posto de comando
imensa explosão
cobriu o ar.

Havia feito
justiça
com as próprias mãos.

Cansara de esperar
Pelas de Deus.

191
“Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar.
Voltar para aprender, diante da perna amputada
de Nadia, o que vale a vida, nossa vida.”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino,
em “Visão de Gaza”.

192
As dores do novo

Saiu de casa
Sem olhar para trás.

Ayman Owda Abu Taqiyeh Kullab


Não era insensível
Ao mundo que o cercava
Tampouco um cretino.

Queria apenas fugir


da dor
dos trinta e três anos dela.

Admirava a história
de tantos lutadores
dos tantos mártires
que em épocas diferentes
dignamente haviam sabido
resistir ao colonizador europeu.

Sentia-se mal,
por vezes,
por não ter tido
como outros
essa capacidade
de resistir.
193
Atravessou a fronteira
Chegou à Jordânia,
mas não achou
que tão perto da Palestina
conseguiria
dizer-se “jordaniano”
como os medíocres
costumam fazer.

Decidiu ir
Mais longe
Buscar uma nova terra
Quem sabe
a vida recomeçar.

Chegou à Europa
À fabulosa França
Que lera nos livros
de história
De tantas revoluções.

Contudo
Os noticiários
Lembravam-no
Constantemente
Da Palestina invadida
e saqueada
De praxe
Teciam
Mentiras sobre tudo.
194
Aquilo aos poucos o matava.

Repórteres falavam
Sobre palestinos
Todos bem acomodados em Yaffa
Com suas fontes oficiais sempre muito “confiáveis”
Fontes sionistas.

Nessas televisões
todo o colonizador judeu morto
tinha nome, sobrenome, idade,
um rosto,
família, amigos e colegas de trabalho.
Era sempre linda sua história
Comovente
Digna de enredo
de novela ou romance
que a todos toca.

Já os “outros”
sempre eram vilões.

Palestinos mortos
Aqueles quarenta para cada sionista
Cento e cinquenta feridos
Destes trinta permanentemente inválidos
Apareciam todos como números apenas
“Baixas necessárias para autodefesa
de Israel” – diziam.
195
Ora contados pela ONU como quarenta
Ora trinta e quatro
Ora Israel nega autoria
Meses depois assumia ou não
as mortes.

Todos
Sem rostos, sem famílias,
sem histórias
Sem novelas e romances
Desumanizados pela indiferença.

Assim
Não conseguia
Deixar de encontrá-la
Ali ou
Acolá.

Olhava estrelado céu


Lembrava-se de
Nablus
Sentia saudades.

Ouviu centenas de
Tolices
Que até então acreditava inimagináveis
De serem ditas
Sobre a Palestina
De quem sempre se achava
196
Detentor das soluções
Simples.

Aquilo o matava aos poucos.

Contudo
Ouviu calado
Não respondeu nada.

Viu completa
insensibilidade
Ao sofrimento
Dela.

Espantou-se com a eficiência


Dos mecanismos de limpeza étnica
de baixa intensidade
Aqueles que matam silenciosamente todos os dias
Alvos escolhidos a dedo
Jornais nada falavam
Na “grandiosa democracia ocidental”.

Assistiu a vários filmes


Muitos
O vilão era mocinho
O mocinho era vilão
De praxe,
O árabe não passava
197
de pálida caricatura feia.

Aquilo aos poucos o matava.

Os suicídios de jovens
Eram vistos
Apenas como ações de ódio
Nunca ninguém perguntava de onde surgira
E o mais importante
O que alimentava constantemente esse ódio.

Nunca vira ninguém


No livre ocidente
olhar com empatia para aqueles
jovens
que ele bem conhecia
desesperados, vivendo na miséria,
cerceados em todos os sonhos
preferiam tirar a
própria vida
já que não tinham presente
nem viam futuro.

Aquilo aos poucos o matava.

Também não
Ouvira
Que todas as diferentes
198
Formas de investidas armadas
Palestinas
Não representavam nenhuma
Ameaça à superioridade militar de Israel
financiada pelo Ocidente.

Cansado
Olhou certa noite
Para o espelho
Havia fugido
Tanto do passado
Da dor
Do que era
E de onde veio.

Enfim percebera que


morria aos poucos
todas as vezes
que fugia da Palestina.

Entendera naquele
exato momento
que, como todo o seu povo,
ele também era um filho da dor.

Dor
do desterro
dor
do exílio
199
dor
da constante invasão
enfim
da colossal dor da colonização.

Para não perder


a identidade
Queria voltar
Para sua pátria-mãe.

Recordou
Da antiga casa onde nascera
De sua mãe
Imaginou por um instante
as terríveis dores do parto.

Tantas dores
E pensou
“Algo novo está para nascer”.

Sorriu sozinho
Imaginou que as dores de seu povo
São do parto
De uma nova e linda
Palestina livre
sem Israel.

200
“Crianças que haviam bebido o leite da derrota
e que se haviam acostumado à vida errante; ao
ponto de uma vida sedentária, tranquila, parecer-
lhes uma espécie de anomalia social.”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino,
em “Visão de Gaza”.

201
Entre nós

Todos por aqui


conhecem a história
do pequeno
Yunes Abdullah Aziz Othman.

Era uma criança


Como muitas outras
Que crescem
Em Rafah
Sul da Faixa de Gaza.

Gostava de brincar
Corria de um lado
para o outro
com amigos
pelo bairro inteiro
nominado pela ONU
como bloco O.

Imaginava-se
super-herói
Achava, às vezes,
que tinha superpoderes.

202
O real e o imaginário
mesclavam-se
nas brincadeiras
desse pequeno garoto
de alma valente.

Erguia um tijolo
Do chão
Imaginando-se
Todo forte
Erguendo uma casa
Ou mesmo
Um prédio inteiro.

Olhando para
pequena aranha
imaginava-se
numa luta terrível
como se um gigantesco monstro fora
de longas patas
que cobria o céu
por onde passava.

Mesmo na escola
não deixava de fantasiar
seus mágicos
poderes

Dizia que era


203
capaz de barrar
tiros
mesmo mísseis
dos sionistas
apenas com a força
de seus pensamentos.
O professor atento o ouvia
como quem se deliciava
com aquele pequeno.

Quando demonstrava
como acionava
esse imenso poder
colocando os dedos indicadores
em cada têmpora
cerrava os olhos com força
o professor fazia ares de crédulo
o que o empolgava ainda mais.

Bastava isso
Não haveria mais
Extermínios em massa e destruição
Na Palestina.

Os mais velhos
Achavam graça
Das fantasias de Yunes.

Talvez fosse melhor assim –


204
Pensava seu Pai
Abdullah Hamid Aziz Othman
Homem sábio
Respeitado
Por sua resistência
à colonização.
Trabalhava em um táxi
Caindo aos pedaços
Mesmo formado em Economia no Cairo.

O taxi lhe parecia


mais digno
do que escritórios de grandes empresas
mundo afora
enquanto a Palestina sofria.

Para fugir ao gigantesco


horror
do dia a dia
viver na imaginação
parecia
ao querido Abdullah Hamid Aziz Othman,
uma linda dádiva.

Muitas crianças da idade


Dele tinham
Terríveis pesadelos
Voltavam a fazer
Xixi na cama
Por vezes até
205
Nas roupas –
Tinham medo
Não lhes faltavam motivos.

Na segunda Intifada
mísseis e explosões
destruíam casas
quarteirões inteiros.
Naquele fatídico dia
corriam crianças e mulheres
para se salvar.

À procura de proteção
Assustadas com impacto das explosões
Mas Yunes
Correu na direção oposta.

Como um herói
De desenhos em quadrinhos
Que não foge
Ao seu dever.

Ouviu entre todos


gritos aterrorizados
De uma criança como ele.

Devido à imensa nuvem de poeira


Que cobria o ar
206
Não se via nada.

Ele usou sua


superaudição
Entre escombros
de casas
entrou num buraco escuro
Sem medo
pequena menina
resgatou.

Talvez em sua mente


Donzela em perigo
Depois fez o mesmo
com outro menino
mais velho.

Num ato
de permanente bravura
após salvar as duas crianças
retornou
para nunca mais voltar.

Ainda penso...
Por que não fugiu para se salvar
como os outros fizeram?
Por que se arriscar
Por quem sequer conhecia?
Por que voltou?
207
Não sei
As respostas com certeza
Talvez o pequeno Yunes
Soubesse que no fundo
Não tinha superpoderes... Não para tanto.

Gosto de pensar
Que naquele dia
Ele descobriu
Que nós que resistimos
Só temos uns aos outros
E que esse é nosso verdadeiro poder.

Foi por isso que ele voltou


Não fugiu
Arriscou-se
Sabia que não existem desconhecidos
Entre nós.

208
“A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no
último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar (...).”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.

209
Os que não se curvam nem se quebram

Não sabia mais se


Era
Dia ou noite.

Procurava
Decifrar suas próprias
Inscrições na parede
Da velha cela.

Dezenas de pequenos
Riscos verticais
Cuidadosamente simétricos.

Como sempre
Fora animal
De hábitos
Dormia às 22 horas
Acordava pontualmente
Às 6 horas.

Acreditou que os riscos


Seriam suficientes
Para ajudá-lo a determinar
O tempo que escorria.

210
Contudo
Num lugar como aquele
O tempo passava
Diferente.

Já não sabia se
Podia ou não
Confiar em seu relógio interno.

Tentava ocupar sua mente


Para não enlouquecer.

Assim
Lembrou
Da juventude em
Qalqilya
Pequena cidade
Já atormentada pela presença
Contínua de invasores europeus.

Hoje
Cercada pelo Muro da Vergonha
Que a faz um novo gueto.

Lembrou
A época que aderiu
A OLP
Era tão jovem
211
Cheio de
Disposição para lutar.

Voltava
Prisão
Paredes, tetos,
Eternas luzes acesas
Não lhe davam
Nenhuma indicação
Do tempo.

Refeições lhe eram


Dadas sem nenhuma
Periodicidade rítmica
Que servisse.

Não lhe falavam nada


Não lhe respondiam
A nenhuma
Pergunta
Ou grito de agonia.

Aquele silêncio
Isolava-o do mundo
Deixava claro o total
Controle sobre prisioneiro
Nem o tempo
Simples noite e dia
Pertencia-lhe mais.
212
Não entendia o porquê
Era-lhe imposto
Aquele regime.

Dos cinquenta e quatro anos de vida


Youssef Hamid Abdel-Khaik
quase um terço passara preso,
Mas jamais nessas condições.

Não fizera
parte da resistência armada
Nunca gostou de armas
“Não me dou bem com elas” – dizia.

Sem nenhum aviso prévio


Recebera
Ordem de sair
Da solitária.

Foi conduzido
Ao enorme pátio aberto
Daquela horrível prisão conhecida como
Estabelecimento 1391.

Sob um sol lindo


De primavera
Encontrou
Seus companheiros de lutas.
213
Soube da tortura
Espancamentos
Ameaças aos familiares
aqui é comum.

Guantánamo de Israel
Sem Convenção de Genebra
Sem inspeções da ONU.

Nas brincadeiras dos prisioneiros se diz


Que só as democracias liberais
Do eixo do bem
Tem esse direito
Ou simplesmente
As abençoadas por Jeová.

Perguntou
Que dia era aquele
Assustou-se quando
Soube.

Fazia mais de um
Ano e meio
Que estava preso
Completo silêncio.

Não enlouqueceu
Porque era
214
Acostumado a se esconder
Na resistência política
Passar longos intervalos de tempo
Sozinho.

Decidira
Amarga opção de não ter filhos
Mesmo amando crianças
Tinha medo do que
Poderiam fazer a eles por sua
Posição política.

Muitas vezes
Ficava só
Por semanas inteiras.

Soube por seus companheiros


Que todos seriam
Trocados
Por um soldado sionista sequestrado.

Sua curiosidade crescia


Ao conversar
Com vários companheiros
De diferentes organizações
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP),
Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP),
Partido do Povo Palestino (PPP), Fatah,
Hamas, Jihad Islâmica.
215
Nenhum passara
Por regime semelhante ao dele.

Então
Arriscando-se a não ser trocado
Não conseguia segurar
A curiosidade
Dirigiu-se ao diretor
Da prisão.

Por que todo aquele isolamento?


Por tanto tempo?
Nunca usara armas, além das palavras,
Para resistir.

O diretor
Suíço judeu
Pequeno
De sorriso amarelo
Burocrático.

Respondeu
Confiante de si
O que assusta Israel não são
As bombas e armas
Mas pessoas que sempre resistem
De diferentes formas
Ensinam pelo exemplo
Os outros
216
A fazerem o mesmo.

A solitária era para quebrá-lo


Ao meio.

Riu
Com um sorriso largo
Verdadeiro
Respondeu:
-“Desde 1948 nunca existiu nenhum
Palestino que se
Curvasse ou quebrasse
Muito menos ao meio”.

Os que fizeram isso...


Deixaram de ser palestinos.

217
“(...) Eu tinha nove anos. Acabara de ver,
quatro horas antes, a chegada dos judeus a
Ramallah. Parado no meio do asfalto cinzento,
notei como revistaram as pessoas à procura de
joias, que eram arrancadas brutalmente. Havia
algumas mulheres soldados que agiam como os
homens, mas com maior agressividade e convicção.
Minha mãe me olhava,
chorando em silêncio (...).”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino
em “Visão de Ramallah”.

218
A casa

Há tempo
Desejava
Sair da casa dos pais
Em Al Birah.

Naquele dia
Decidira enfim
Ser um homem.

Sua própria vida viver.

Não era nada fácil


Para família
Era o preferido.

Se dependesse
De sua mãe Khadija
Não sairia nunca de casa
Para seu pai
Já era hora.

Quando chegou
aos vinte e seis anos
Habib Ibn Jamal Barghouti
219
disse as palavras que
Caíram como
Punhaladas no peito
De sua mãe
– “Vou embora”.

Seu pai
Hajj Jamal khader Jarad Barghouti
aconselhava
o caminho da retidão
Ser sempre correto
Lembrava que devia rezar
ir à mesquita
toda sexta-feira
jejuar no
mês do Ramadã.

Ouvira atentamente seu velho


Prometera
seus conselhos cumprir.

Trabalhou no comércio
Vendeu
Comprou
Juntou dinheiro que precisava
Para sua primeira casa.

Acreditou
Que a casa era o primeiro grande
220
Passo de sua independência.

Não chegara a morar nela


Bombardearam-na
Dias antes da
Inauguração.

Aos poucos
com a ajuda de amigos e parentes
conseguiu erguer outra.

Mais simples
Menor
Suficiente para acomodar seus amigos
Familiares
Para noites de sincera conversa.

Invadiram-na
Semanas depois
Fizeram dela posto de controle
Expulsaram-no dali.

Foi viver
Com parentes
Próximos.

Conseguiu meses depois


221
Alugar um pequeno
Apartamento,
mas demoliram o edifício.

Não se abalou.

Pegou uma barraca


Acampou
Na praça como muitos outros.

Deu gargalhadas aos céus


Quando a água
Do banho de caneca
Terminara.

Fazia piada da situação

Tocava a vida
Sempre
Às vezes para um lado
Às vezes pro outro
Quando podia
Pra frente.

Não temia reveses


Dizia sempre
– “Vida é vida”.
222
Não se abalava
Tomava seu chá quente na praça
Mastigava sementes
Dava risada com os amigos.

Quando podia
Juntava-se a algum protesto
Contra a invasão sionista
Jogava pedras nos tanques.

Chorou quando
Mandela saiu
Da prisão
Torceu pelos
Índios e camponeses
De Chiapas
Emocionava-se ao falar
Da coragem do povo vietnamita
Em sua luta de libertação.

Quando não tinha dinheiro


Almoçava
Jantava
Nos vizinhos e parentes.

Quando tinha
Convidava todos
Os que não tinham
Para acompanhá-lo.
223
Importante era viver
Todos os
Dias.

Aqui
Aprendera a não
Cultivar nenhum sonho
Mesquinho
Ter vários carros, casas, comer em finos restaurantes...
Descobriu que isso tudo era fútil.

O valor
De um homem
Não era dado pelo que tinha
Sim pelo
Que fazia
De bem no mundo.

Lutar
Resistir
Viver a vida
Em solidariedade
Com seus
Dava-lhe forças sempre.

Descobrira depois de muito


Tentar que
A casa
Que sonhara
224
Não eram as paredes
Belo telhado
Cômodos viçosos
Larga varanda
Florido jardim...

A casa
Sempre fora as pessoas
De valor
E que essas
Estiveram próximas
Todos os dias de sua vida.

225
Voz que não se
cala

(Homenagem e apresentação
do escritor palestino
Ghassan Kanafani)

226
227
Nota biográfica

•Nome completo: Ghassan Fayez Kanafani;


•Nome do pai: Fayez Kanafani;
•Nome da mãe: Aisha Al Salem;
•Local de nascimento: Akka (Acre) / Palestina;
•Data de nascimento: 9 de abril de 1936;
•Data do martírio: 8 de julho de 1972 / Beirute – Líbano;
•Esposa: Anni Kanafani (Anni Hover) - casados em 1961.
Ela permaneceu em Beirute após seu martírio e criou a Fundação
Cultural Ghassan Kanafani.
•Filhos: Fayez (nascido em 24 de agosto de 1962) e Laila
(nascida em 12 de outubro de 1966).
•Nacionalidade: Palestina.
•Profissão: Escritor, dramaturgo, jornalista e político
palestino.
•Organizações políticas que integrou: Movimento
Nacionalista Árabe (MNA) - adesão em 1954 e Frente Popular de
Libertação da Palestina (FPLP) - adesão em 1969.
•Prêmios recebidos: Ganhou o prêmio “Friends of Books
in Lebanon” de melhor romance, em 1966, por “O que resta
para você.” Recebeu, postumamente, o Prêmio da Organização
Mundial da Imprensa, em 1974. Em 1975, recebeu o Prêmio Lotus,
concedido pela União de Escritores da Ásia e da África. Premiado
com a Ordem de Jerusalém para Cultura e Artes, em 1990.

228
Ghassan Kanafani nasceu na cidade de Akka, em uma
família de classe média, em 9 de abril de 1936, ano que marcou
o início de uma grande revolução, que durou três anos, contra
o mandato Imperialista britânico e, seu pupilo, a colonização
sionista. Embora fossem muçulmanos, seus pais o enviaram à
Ecole des Frères, uma escola católica, em Yaffa, que lecionava
em língua francesa.
Em 1948, após a proclamação do Estado de Israel, sua
família teve de abandonar a Palestina, inicialmente em direção
ao Líbano. De acordo com Anni Kanafani, esposa de Ghassan,
a família partiu em 9 de abril de 1948, dia do massacre de Deir
Yassin, em que membros de um grupo paramilitar sionista
perpetraram o genocídio de 254 pessoas (idosos, mulheres e
crianças, em sua maioria).
Kanafani completava 12 anos naquele dia. A amarga
experiência foi relatada dez anos mais tarde, em uma mistura de
fantasia e realidade, no conto “A terra das laranjas tristes”.
Depois de permanecer por breve tempo no sul do
Líbano, a família Kanafani partiu para Damasco, onde o escritor,
ainda jovem, começou a trabalhar. Na capital síria, a família
levou uma vida difícil, em um campo de refugiados, onde
seu pai abriu um pequeno escritório de advocacia. As poucas
economias levadas de Akka logo se esgotaram. Ghassan e
seu irmão Ghazi realizaram vários trabalhos informais, para
continuar os estudos e ajudar o pai a sustentar uma família com
sete filhos. Aos 16 anos, Kanafani concluiu o curso secundário e
começou a trabalhar como professor nas escolas das Agências
das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina
(UNRWA - sigla em inglês). Lecionou na Escola Aliança, da
mesma UNRWA, por três anos e se matriculou na Faculdade de
Letras da Universidade de Damasco.
A carreira docente de Kanafani deixou marcas profundas
em sua personalidade, estilo de trabalho e aspirações políticas.
Como um de apenas dois professores em uma escola de 1.200
alunos (o outro era uma professora, Samia Haddad, futura esposa

229
de Wadie Haddad, da Frente Popular de Libertação da Palestina),
ficou sobrecarregado pelo volume de trabalho e pelos problemas
que seus alunos enfrentavam no dia a dia - relacionados a
vestuário, comida, abrigo e doenças, além das dificuldades
acadêmicas e das privações culturais e emocionais. As imagens
e as impressões que acumulou, durante esse período, aparecem
claramente em sua obra.
Em 1954, Kanafani aderiu ao Movimento Nacionalista
Árabe, grupo que recrutava, principalmente, adeptos nos meios
intelectuais e defendiam mudanças nas sociedades árabes.
Posteriormente, o MNA se tornou o núcleo das organizações de
resistência palestinas. A revista semanária “A opinião”, órgão oficial
do MNA, dirigido por Hani Al Hindi e George Habash, tornou-se a
primeira tribuna literária de Kanafani, que escreveu 18 textos em
um ano e meio. Dentre eles destaca-se a coluna “O ser humano
e os princípios”, na qual criticava duramente os políticos árabes.
Sua conscientização política é permanentemente marcada pela
divisão de classes. De um lado, encontram-se os camponeses,
que cultivam a terra palestina, que Kanafani retrata com
desvelo; do outro, os latifundiários, “parasitas”, donos tanto dos
camponeses quanto do campo, na opinião do escritor.
Em 1955, foi expulso da Universidade de Damasco,
acusado de participar de atividades políticas. Mais tarde, ele se
formou na universidade e sua tese foi intitulada “Raça e Religião
na Literatura Sionista”. No mesmo ano, aceitou uma proposta
para lecionar na Cidade do Kuwait (capital kuwaitiana), onde
permaneceu por cinco anos a partir de 1956.
Nesse país, descobriu que tinha diabetes. Necessitava de
um tratamento permanente e acreditava que não viveria muito
tempo. À época, a idéia da morte tornou-se uma obsessão -
agravada pela solidão e frustração com a situação da Palestina.
No Kuwait, reencontrou sua irmã Fayzeh e seu irmão
Ghazi. Graças aos três salários, a família Kanafani, que
permanecera em Damasco, deixou de passar necessidades. Em
1960, Habash o convenceu a deixar o Kuwait, ir para Beirute e se
dedicar à carreira de jornalista. Um ano mais tarde, casou-se com
Anni Hover, professora cujo pai havia desempenhado um papel
importante na resistência dinamarquesa contra os nazistas. Em

230
1963, tornou-se editor-chefe do “O libertador”, o principal jornal
nasserista fora do Egito. Escreveu uma coluna semanal intitulada
“O que está por detrás das notícias” e editou o suplemento
semanal “Palestina”, dirigido aos palestinos que viviam no exílio.
Pouco a pouco, tornou-se um dos mais renomados jornalistas
de Beirute. Como consequência, obteve o passaporte libanês,
o que pôs fim à sua situação de clandestinidade por não ter
documentos oficiais.
Em 1965 e 1966, visitou a China. A principal figura
política dessa época, no mundo árabe, era Gamal Abd-Nasser.
Kanafani não escondia sua admiração pelo líder egípcio e
defendeu, em seus escritos, uma amálgama de nasserismo
(essencialmente, pan-arabismo), socialismo e luta política. O
ano de 1967 foi decisivo para ele e para outros intelectuais
árabes. Uma das consequências imediatas da vitória israelense
naquele ano foi sua mudança de emprego. “O Libertador”
dependia de financiamento egípcio, e o pequeno salário era
insuficiente para manter a família.
Kanafani vinculou-se ao “As luzes”, outro jornal de Beirute,
de tendência nasserista, até 1969, quando se tornou editor
chefe de “O objetivo”, jornal semanal que expressava a opinião
da Frente Popular de Libertação da Palestina. (FPLP). Pouco
depois, Kanafani tornou-se o porta-voz oficial da FPLP até seu
assassinato, em 8 de julho de 1972, num atentado. Uma bomba
foi colocada por terroristas oficiais de Israel debaixo de seu carro,
estacionado diante de um edifício em um bairro de Beirute
próximo à estrada para Damasco. Ao ligar o motor, Kanafani
recebeu o impacto e morreu. A outra vítima foi uma sobrinha de
17 anos que o acompanhava.

A esposa

Meu caro Riad,


Você vai achar, na certa, que fiquei louco, já que esta é
a segunda carta que mando no mesmo dia. Acontece que esta
segunda carta vai servir para esclarecer umas coisas. Pensei que
era um absurdo escrever somente para dizer: procure por aí, por
onde você estiver um sujeito muito grande, alto e robusto, de
231
quem eu nem imagino o nome, e que usa velhas roupas de cor
cáqui. À primeira vista, ele parece meio agressivo.
O que você pode concluir dessas primeiras pistas com
certeza, nada. A gente cruza, andando pelas ruas, com centenas
de pessoas com essa mesma descrição.
Mas quero dizer que você pode reconhecê-lo porque se
trata de personagem bem diferente, fora do comum. Como as-
sim? Não sei dizer por que, para falar a verdade, não sei direito.
Mas acho que desde que o vi pela primeira vez tive a impressão
de que se desprendia dele um tipo de luz… Isso mesmo, uma
aura, uma poeira fluorescente. Confesso a você que, no momen-
to em que ele me parou na rua, essa poeira luminosa fez com
que eu gravasse a imagem daquele sujeito enorme. Se não foi
isso, como explicar que ainda agora me lembre dele, que sua im-
agem continue forte em minha memória, enquanto esqueço de
centenas de outras pessoas com quem dou de cara a toda hora
na rua e que logo somem no vazio?
Imagino que você está começando a me achar meio
desequilibrado, já que continuo sem esclarecer nada. Estamos
ainda no mesmo pé da primeira carta: procure um homem muito
grande, robusto, de quem não sei o nome, mas que usa velhas
roupas cáqui e que parece, à primeira vista, um pouco perturbado.
Acrescentei também o que acho uma característica
bem importante: ele está rodeado pelo que me deu a im-
pressão de ser um halo, uma poeira fluorescente. Mas sei que
não é suficiente. Se escrevo duas cartas no mesmo dia é para
colocar você a par de toda história. E você tem o direito de
saber tudo o que eu sei, já que estou pedindo para me ajudar
a encontrar esse homem.
Não me lembro mais de quando foi que o vi pela primei-
ra vez, mas me lembro nitidamente de sua aparência: o jeito de
quem perdeu alguma coisa importante. Andava com as costas
um pouco arqueadas, as mãos abertas, olhando desconfiado
para os rostos das pessoas na rua. Foi uma espécie de visão meio
estranha, mas me esqueci dele logo depois. Voltei a lembrar-me
quando o vi pela segunda vez. Seu olhar me arrancou literal-
mente do chão e me senti flutuando, como se fosse absorvido
por uma nuvem invisível.

232
Nunca vou saber se era eu quem havia sido atraído em
sua direção, respondendo a um apelo irresistível que vinha dos
olhos dele ou se foi ele quem veio a mim. Colocou a forte mão
sobre meu ombro e perguntou:

– Você a viu?

– Quem?

– A esposa.

Tive certeza, naquele momento, de que se tratava de


um louco. O que senti, cruzando meu olhar com o olhar duro
desse sujeito, foi o mesmo que se experimenta quando a gente
encara alguém que perdeu a razão, que não tem mais o senso da
realidade. Escolhi, naquela hora, uma saída fácil, dizendo:

– Não, eu não vi.

Ele soltou a mão pesadamente. Virou-se de costas e es-


cutei o que falou, como se conversasse consigo mesmo:

– Você diz isso…há mais de dez anos…

Depois, quando desapareceu na multidão, me senti de


repente impressionado pelo fato de que seu imenso corpo estar
rodeado daquela coisa que eu disse parecer poeira fluorescente,
aquele halo luminoso que os pintores renascentistas colocavam
ao redor do Cristo debruçado sobre os pobres. Você se lembra
daqueles cartões de boas-festas que a gente recebia?

Eu tentei, em vão, voltar a encontrar esse homem. Mas


são coisas que acontecem num piscar de olhos. Procurei como
alucinado pelas ruas, andando varias vezes do início até o fim
daquela que havia visto. Havia centenas de homens que se pare-
ciam com ele, mas já não adiantava mais nada.
Ainda continuo a procurar, e peço que você me
ajude. Sei que você está bem longe daqui, que muitos
quilômetros nos separam. Mas o que impediria esse homem
de dirigir-se, envolvido por sua luz inexplicável, a qualquer
lugar distante quilômetros daqui?
Pedi a mesma coisa a outras pessoas antes de escrever a
você. E faço a você o mesmo apelo que fiz a todo mundo. Já estou

233
falando disso até mesmo com gente que mal acabo de conhecer.
Preciso confessar, Riad, que até acabei indo mais longe.
Uma noite pensei: se esse homem pegou o costume,
durante dez anos, de interrogar as pessoas sobre a “esposa”,
como ele fez comigo, com certeza elas acabam sentindo o que
eu senti, um dia, a caminhar pelas ruas. Meus olhos se fixaram
nos de um sujeito que passava, um desconhecido. Antes mesmo
que eu refletisse um pouco sobre o que fazia, parei o homem.
Pus a mão sobre seu ombro e perguntei:
– Você viu a esposa?
Pode me chamar de louco. Mas isso foi exatamente o
que fiz. Ajudou-me a compreender mais coisas sobre aquele
homem e a “esposa” perdida. O pior é que agora não consigo
mais me livrar dessa vontade de parar as pessoas na rua e fazer a
mesma pergunta sobre a “esposa”.
Mas a coisa está feia. Agora preciso voltar ao ponto de
partida, a esse homem envolvido por sua poeira luminosa e cu-
jos olhos, lábios, sua mão pesada, me colocaram pela primeira
vez diante da estranha interrogação. Preciso rever esse homem,
Riad, porque consegui algumas informações sobre a “esposa”.
Riad, ele é da aldeia Shaab. Sua história começa, acho
num dia de junho de 1948. A guerra fazia o sangue correr após
seis meses de luta. Não sei todo o seu nome, mas sei que se en-
tregou ao combate como poucos. Esteve por todo lado: na van-
guarda, na retaguarda, no socorro aos feridos. Para seu trabalho,
ele precisava saber os horários das operações com pelo menos
duas horas de antecedência, o tempo necessário para fazer a
entrega do armamento. Todos os respeitavam pelo papel que
cumpria. Era tão escrupuloso que chegava ao ponto de, antes
de cada operação, encarregar um companheiro de entregar a
arma ao seu proprietário, caso caísse durante a luta. Era meticu-
loso, acertando detalhes como o funcionário de um banco res-
peitável, ainda que nunca houvesse visto um banco, respeitável
ou não. Por seis meses, não teve problemas. Nem chegou a ser
necessário que tivesse sua própria arma.
Não sei por que ele teve a ideia, num dia de junho, de se
apoderar de uma arma. Era até uma boa ideia, pois os combates

234
mais sérios se concentravam, na época, justamente naque-
la região da Cisjordânia. O inimigo havia atirado suas principais
forças nessa batalha e as levas de emigrantes começavam a
crescer dia a dia, cruzando as colinas rumo ao norte.
Ele não demorou muito para se decidir. Antes do fim da
primeira semana de junho já tinha resolvido. Durante um com-
bate cujo nome esqueci, passou a arma a um companheiro e
começou a rastejar sob as nuvens de fogo, em direção ao lado
inimigo. Ele sabia que muitos soldados deles haviam sido mortos
sobre as linhas avançadas. Se esperasse o fim dos confrontos,
poderia perder a chance, pois o inimigo levava de volta os solda-
dos mortos e suas armas, puxando-os com cordas.
Conseguiu chegar às trincheiras calcinadas. Uma espe-
ssa escuridão o envolvia. Deixou-se cair numa das trincheiras e
arrancou com os dentes o fuzil de um soldado morto, examina-
do a arma à luz das explosões. A seguir, voltou para junto dos
companheiros.
A novidade logo se espalhou pelas aldeias da região, não
porque fosse a primeira vez que isso acontecia, mas porque o tal
fuzil era de um tipo desconhecido ali.
Não quero esticar muito a história. Depois, ele foi
chamado à chefia local, instalada numa aldeia próxima. O ofi-
cial já estava sabendo do famoso fuzil. Quando o teve em suas
mãos, arregalou os olhos:
– Mas é fuzil tcheco!
Os outros se aproximaram para ver de perto a nova
arma. O aço brilhava a luz da lanterna. Tinha uma coronha escu-
ra, marrom, e uma coreia amarela, nova, feita por mãos cuidado-
sas. Seu tambor, sobre o gatilho, parecia uma coroa.
Uma voz se ouviu no outro lado da sala:
– Então podemos concluir que eles receberam um novo
carregamento de armas dos países do Leste. Precisamos passar
a informação ao quartel general.
O oficial aprovou, balançando a cabeça:
– Eu mesmo vou levar este fuzil ao quartel-general.
Deixo que você imagine Riad, o que aconteceu então.
235
Nosso amigo se agarrou ao fuzil, mas, como você sabe, ordens
são ordens. Ele lhes disse:
– Mas será que não vão acreditar se vocês derem as in-
formações sem mostrar o fuzil? Além disso, podem ganhar tem-
po… Eu mesmo posso, se quiserem, levar o fuzil…
Todos seus apelos deram em nada. O oficial tentou
tranquilizá-lo: jurou que iria devolver o fuzil dois dias depois,
com carga nova.
Os dois dias se passaram. Depois, uma semana inteira
daquele mês em que cada minuto contava, em que as pessoas
morriam, as aldeias eram arrasadas, os campos ardiam. Nosso
amigo ia de chefia local para casa e voltava de casa para a che-
fia. Diziam-lhes: “Espere um pouco…”; depois: “Volte amanhã…”.
Mas os acontecimentos daquele mês decisivo, como você deve
lembrar bem, não esperaram. E dois desses acontecimentos de-
sabaram sobre ele, de repente, num mesmo dia. Uma manha,
ele descobriu que o oficial acabara de transferir a chefia local
para o norte, para um lugar desconhecido de todos. Mais tarde
a aldeia de Shaab sofreu o primeiro ataque inimigo: os mortei-
ros atingiram as casas de barro seco e queimaram os olivais num
abrir e fechar de olhos.
Quem poderia emprestar a nosso amigo um fuzil no meio
de uma tempestade assim? De nada vale um fuzil, nessas horas,
para permitir a um homem romper as barragens de fogo e achar
abrigo seguro ou mesmo uma morte honrosa. Fazer o quê, em
meio aquele mar de chamas? Esperar a loucura? Não lhe passava
pela cabeça fugir, e a loucura não poderia lhe dar mais do que ele
já tinha em sua vida normal. Restava-lhe a morte. Mas a morte não
queria nada de quem havia estado sempre nas primeiras linhas de
combate, lutando com suas armas emprestadas.
Então, ele se sentou onde estava, sobre uma pedra no
meio da praça de sua aldeia. Ficou olhando: as casas queimavam,
os homens morriam, sua família fugia amparada pela noite, em
busca de um refúgio. Quando Shaab foi ocupada, eles aparecer-
am. Vendo-o na praça, sentado, acharam que era um louco. Foi
espancando com as coronhas dos fuzis, expulso para o norte.
Andou dia e noite através do que restava da Cisjordânia,
procurando seu fuzil por onde passava, perguntando a todos os
236
combatentes que encontrava pelo caminho. Era como se escav-
asse os rostos e as coisas em busca do fuzil que havia guardado
por apenas algumas horas e com o qual nunca havia apontado
para coisa nenhuma.
Você sabe o que a aconteceu com a aldeia de Shaab?
Pouca gente sabe, e é preciso você saber par que entenda toda
a história. Nosso amigo foi empurrado pelo calor sufocante até
El Baroua, indo dali até Magd Al Kroum, Al Boana, Dir El Assad,
Kesra, Kafr Samii, sempre atrás de informações sobre seu fuz-
il. Seguia as pegadas, guiado pelas histórias que ouvia e pelos
homens que as contavam. Quando chegou a Tarshiha, teve notí-
cias recentes de Shaab. Os quarenta combatentes da aldeia, que
haviam sobrevivido ao ataque, dirigiam-se ao alto comando do
Exercito de Libertação, no norte. Solicitaram ali o alistamento,
mas quando perceberam que esse exército não pretendia lutar
pela retomada de Shaab, eles o abandonaram e voltaram sozin-
hos. Atacaram as forças que ocupavam a aldeia e conseguiram
libertá-la, após uma batalha que durou a noite inteira.
Pode até parecer incrível para você. Mas foi assim mes-
mo. Os quarenta combatentes voltaram a sua aldeia queimada,
conseguiram libertá-la e perseguiram os soldados inimigos até a
encruzilhada de Damon. Dez deles morreram durante a caçada.
Foi isso que aconteceu, Riad, no coração de uma região
toda cercada pelas forças inimigas. Os trinta homens ficaram
na aldeia destruída, repelindo noite e dia os ataques seguidos.
Enquanto isso, o nosso amigo, em Tarshiha, farejava a trilha de
seu fuzil. E já começava a senti-lo bem próximo, quase ao al-
cance da mão. Aquela altura, ele achava que com mais um dia
encontraria sua arma e voltaria a Shaab.
Mas os acontecimentos nunca esperam. Um dia, o in-
imigo retomou a Shaab. Os homens que a defendiam tiveram
que abandoná-la após terem perdido cinco dos seus. Escond-
eram-se nas colinas próximas, onde as pessoas da região costu-
mavam, até pouco tempo atrás, levar as cabras para pastar.
Nesse dia nosso amigo soube que um novo fuzil tcheco
andava em mãos de um velho numa pequena aldeia ao norte de
Tarshiha. Caminhando sem descanso, chegou ao cair da noite,
arrebentando de tanto andar. Ali, disseram-lhe que os vinte e
237
cinco sobreviventes de Shaab haviam deixando as colinas. Ap-
enas com seus fuzis e algumas facas, tinham lutado por toda a
manhã, reconquistando as ruínas. Estavam entrincheirados ali,
depois de terem sofrido mais três baixas.
Nosso amigo ainda acompanhava as notícias de seu fuzil
de porta em porta. Soube então: o velho que o possuía havia
partido pela noite para cruzar as colinas. Talvez quisesse se juntar
aos combatentes que se reuniam ao sul de Tarshiha, esperando
um ataque decisivo do inimigo. Ele, então, sem perder mais um
segundo, voltou a Tarshiha. Ficou sabendo que os homens de
Shaab, que lutavam nas ruínas de sua pequena e isolada aldeia,
o esperavam. Era sua aldeia, mas por ela não havia tido ainda a
chance de disparar uma única bala.
Quando chegou a Tarshiha, teve noticias de Shaab. Os
combatentes, extenuados, haviam sofrido um ataque-surpre-
sa realizado por grande número de soldados do inimigo. Fo-
ram obrigados a abandonar mais uma vez a aldeia, perdendo
sete homens durante a retirada. Desapareceram na colinas,
levando quatro feridos.
Nosso amigo achava que ia ficar louco, correndo de um
lado para outro, dividindo entre as notícias de Shaab e as que
falavam de seu fuzil. Os combatentes que haviam escapado ten-
taram uma nova investida, descendo das colinas somente duas
horas depois de sua retirada. Com um rápido ataque, retomaram
suas posições, conseguindo ainda provocar pesadas perdas en-
tre os homens do inimigo e apoderando-se de uma boa quanti-
dade de armas e munições.
Não sei quem foi que disse a ele em Tarshiha que os
combatentes de Shaab poderiam conseguir-lhe uma arma
como aquela que procurava, mesmo se ele voltasse a sua aldeia
de mãos vazias. Não sei também como foi que ele reagiu a essa
idéia. Nesse mesmo dia, em Tarshiha, ele reconheceu, as costas
de um homem que passava pela praça, seu fuzil.
Como havia feito no dia em que arrancou a arma do sol-
dado morto com seus dentes, ele tentou retomá-la. Mas o fuzil
continuou sobre as costas do outro. Surpreendido pela ousadia
daquele estabanado desconhecido, o homem voltou-se para
enfrentá-lo. Pressentindo a confusão que ia ter lugar, agarrou-se

238
com força ao fuzil, usando uma mão livre para proteger-se da
investidas do gigante.
Mas o pobre homem era incapaz até de falar naquele
instante. Fiquei sabendo que chorou, tremendo de febre. Seus
lábios secos murmuravam palavras incompreensíveis.
– É meu fuzil! – conseguiu por fim articular com voz apa-
gada.
Suas mãos estavam agarradas à arma e seus olhos se
fixavam no outro como que esperando uma aprovação. Ouviu
de volta:
– Seu fuzil? Desgraçado! Paguei o preço dele com meu
próprio dinheiro, não faz dois dias…
A pergunta que nosso amigo era incapaz de fazer estava
inscrita em seus próprios olhos. A resposta não demorou:
– Isso mesmo, com meu dinheiro. Comprei, na frente
de cinco testemunhas, de um oficial que ia para o norte. Custou
cem libras…
As mãos relaxaram, mas ainda sem deixarem de tocar
o fuzil. Pareceia estar a ponto de desabar, mas fez um novo es-
forço para dizer:
– Preciso dele para voltar a Shaab…
– Shaab? Os sionistas a ocuparam outra vez, há poucos
dias.
Nosso amigo então largou o fuzil lentamente e recuou
uns dois passos. Um pouco mais tranquilo, o outro perguntou:
– Era seu esse fuzil?
Em resposta, teve apenas o silêncio e um aceno de ca-
beça, que não escondiam o desespero.
- Paguei por ele com o dote de minha única filha. Há
muitos anos eu recusava dar minha filha como esposa àquele
velho estúpido. No fim fui obrigado a aceitar… Quando ele pagou
cem libras. As cem libras com que comprei, um quarto de hora
depois, este fuzil de um oficial.
Essa foi a última vez que o viram em Tarshiha. Seguiu de-
pois para o norte. Com certeza ouviu dizer, antes de atravessar a
239
fronteira, que seus dez camaradas sobreviventes de Shaab hav-
iam descido as colinas dois dias mais tarde e que conseguiram
retomar, com armas improvisadas, sua pequena aldeia destruída.
Não sei o nome da moça que foi vendida pelo preço de
um fuzil. Não sei o que foi que o outro homem fez com o fuzil,
nem como foi que acabou a história de Shaab para seus combat-
entes que sumiam como manteiga no fogo.
Nosso amigo sobreviveu como o único dos habitantes
de Shaab? É bem capaz… Eu não sei, para falar a verdade. Mas
talvez seja possível que ele continue a procurar, com seu olhar
estranhamente pesado, seu fuzil perdido, para poder se juntar
aos que o esperavam na aldeia em ruínas.
Por que você não procura esse homem comigo, meu
caro Riad? Eu repito: ele é grande, robusto… Não sei o nome,
mas usa velhas roupas cáqui e parece envolvido por uma fina
poeira fluorescente. Ele fica cara a cara com as pessoas na rua e
pergunta: “Você viu a esposa?”. À primeira vista, a gente só pode
achar que é um louco.
Procure amigo, por onde for possível. Acabei de receber
há pouco algumas novas informações a respeito da esposa…

240
Visão de Ramallah

Eles nos alinharam em duas filas nas margens da estrada


de Ramallah a Jerusalém. Mandaram todo mundo levantar os
braços. Quando um soldado judeu percebeu que minha mãe
ficou diante de mim para me proteger daquele sol quente de
julho ele me puxou violentamente pela mão até o meio da
estrada poeirenta. Ordenou que eu ficasse me equilibrando
sobre um só pé e com as mãos sobre a cabeça.
Eu tinha nove anos. Acabara de ver, quatro horas antes,
a chegada dos judeus a Ramallah. Parado no meio do asfalto
cinzento, notei como revistaram as pessoas à procura de joias,
que eram arrancadas brutalmente. Havia algumas mulheres-
soldados que agiam como os homens, mas com maior
agressividade e convicção. Minha mãe me olhava, chorando em
silêncio. Eu queria poder dizer-lhe que me sentia bem, que o sol
não me fazia nenhum mal, como ela parecia estar achando.
Eu era a única criança que lhe havia sobrado. Meu pai
morreu antes do início dos acontecimentos. Meu irmão mais
velho fora preso na tomada de Ramallah. Eu sabia, então, o
que representava para minha mãe. Hoje é possível imaginar o
que seria dela se eu não ficasse ao seu lado quando fomos a
Damasco. Ali eu ganharia a vida vendendo jornais pela manhã
nos pontos de ônibus.
O sol começava a minar a resistência dos velhos e das
mulheres. Gritos, protestos e lamentações vinham de todo
lado. Eu observava vários rostos que já me havia acostumado a
ver pelas ruas de Ramallah. Essa lembrança me inspirava uma
tristeza difícil de definir. Nunca vou poder explicar o calafrio
estranho que senti ao ver uma das moças judias puxarem, rindo,
a barba de meu tio Abou Othman.
Ele não era meu tio de verdade: era o barbeiro de
Ramallah e também cumpria as funções de médico na cidade.
Todos gostavam de Abou Othman e lhe deram o apelido de “tio”
para mostrar o respeito que tinham por ele. Agora estava parado
ali, apertando junto ao corpo sua filha mais nova, a pequena
Fátima, que olhava para a judia com seus grandes olhos negros.

241
- É sua filha?
Ele balançou a cabeça, meio inquieto. Seus olhos tinham
um fulgor sombrio. Com toda a simplicidade do mundo, a judia
ergueu sua metralhadora para a cabeça de Fátima. A menina
continuava a olhá-la com os olhos negros cheios de pavor.
Um soldado judeu chegou justamente nesse instante. A
cena havia-lhe chamado a atenção e ele se colocou diante de
mim, impedindo minha visão do que se seguiu. Ouvi três balas
sucessivas zunindo. O que pude ver a seguir foi o rosto de Abou
Othman crispado por um sofrimento atroz. A cabeça de Fátima
pendeu para frente. Grossas gotas de sangue escorriam de seus
cabelos, derramadas sob o sol ardente.
Alguns minutos depois, Abou Othman passou a meu
lado, carregando com seus velhos braços o corpo de Fátima.
Estava calado e olhava apenas para frente, com uma espécie de
calma metálica, assustadora. Ele passou sem me ver. Notei como
suas costas estavam arqueadas enquanto ele avançava entre as
duas filas até a primeira curva. Meu olhar se voltou e se deteve
sobre a mulher, que se tinha jogado ao chão. Vi como ela pôs as
mãos no rosto e explodia em soluços.
Um soldado judeu chegou perto dela e pediu que se
levantasse. Ela não obedeceu. Acho que havia atingido ali o
último grau de desespero.
Dessa vez pude ver claramente, com meus próprios
olhos, o que ocorria. O soldado a empurrou com o pé e ela se
deitou de costas. Tinha a face vermelha. O soldado colocou a
ponta do fuzil sobre seu peito e disparou uma única bala.
A seguir, ele veio em minha direção. Pediu com voz
tranquila que eu levantasse o pé que havia posto no chão sem
perceber. Obedeci e levei duas bofetadas. Ele limpou a mão
manchada com meu sangue em minha camisa. Senti um enorme
cansaço e fiz força para achar minha mãe ao longe, entre as outras
mulheres. Ela tinha os braços erguidos bem acima da cabeça.
Chorava em silêncio. Quando nossos olhares se cruzaram, ela
sorriu suavemente, entre as lágrimas. Uma dor terrível cortava
minha perna, que se dobrava sob meu peso. Tentei devolver
o sorriso triste, como para dizer que as bofetadas não haviam

242
doído, que tudo estava bem e que o mais importante era não se
lamentar, ou agir como Abou Othman.
Ele passou outra vez perto de mim. Ao vê-lo, abandonei
meus pensamentos. Voltava para seu lugar sem me olhar. Ao
chegar perto do cadáver de sua mulher, parou. Eu só via seu
corpo de costas, dobrado, as roupas ensopadas de suor. Podia
imaginar seu rosto: vazio, silencioso e molhado pela transpiração.
Ele se abaixou para carregar o corpo. Muitas vezes eu vira sua
mulher sentada diante da loja, esperando que ele acabasse de
almoçar para voltar com a marmita para casa. Ele passou, pela
terceira vez, diante de mim, ofegante, com o suor inundando o
rosto enrugado. Passou por mim, sempre sem me ver, e eu vi
outra vez seu dorso encurvado afastando-se entre as duas filas
de prisioneiros, que agora já não choravam mais.
O silêncio, de repente, envolveu mulheres e velhos. Foi
como se as lembranças de Abou Othman penetrassem pelos
ossos de todos. Lembranças que ele costumava contar a todos
os homens de Ramallah quando conversavam nas cadeiras da
barbearia. Lembranças que agora enchiam todos os peitos e se
infiltravam sorrateiramente nos ossos, para corroê-los como ácido.
Era uma pessoa muito querida. Confiava em tudo e em
todos e, mais ainda, nele mesmo. Começou do nada e, quando
a revolução da Montanha de Fogo o empurrou... para Ramallah,
voltou ao seu ponto de partida.
Recomeçou então a dar duro, sempre útil como uma
planta fecundada pela terra fértil de Ramallah. Conseguira a
estima e a afeição dos habitantes da cidade. Quando começou
a última guerra da Palestina, vendeu tudo o que tinha para
comprar armas, que distribuía entre os parentes, pedindo-lhes
que cumprissem seu dever. A barbearia se transformou em
depósito de armas e munições. Ele nunca pediu nada em troca
desses sacrifícios. Tudo o que desejava era ser enterrado no belo
cemitério da cidade, à sombra das árvores frondosas. Os homens
de Ramallah sabiam que Abou Othman esperava ser enterrado
ali quando chegasse o dia.
Ao meu redor, os rostos cobertos de suor refletiam
o peso das lembranças. Eu olhava para minha mãe, parada ali
com os braços levantados, o corpo ereto como se não sentisse

243
qualquer cansaço. Imóvel como uma estátua de chumbo, ela
seguiu Othman com os olhos. Eu virei um pouco a cabeça para
poder ver o “tio”, que agora estava diante de um soldado judeu.
Ele disse alguma coisa e depois apontou para sua barbearia.
Depois foi andando, sozinho, na direção dela. Voltou logo,
trazendo um lençol branco que usou para envolver o corpo de
sua mulher. Retomou então, com ela nos braços, sua marcha
rumo ao cemitério.
Voltei a vê-lo um pouco depois, vindo em nossa direção
com o andar muito pesado, o corpo ainda mais encurvado, os
braços cansados pendurados ao longo do corpo. Aproximou-se
lentamente de mim. Havia envelhecido muito. Seu rosto tinha a
cor de poeira. Ofegava. Sobre seu peito se misturavam traços de
sangue e lama.
Parou e ficou me encarando como se eu fosse um
desconhecido. Ficou um pouco ali, parado no meio da estrada,
sob aquele terrível sol de julho, coberto de poeira, encharcado
de suor, seus lábios rachados e a boca, onde o sangue secava,
entreaberta. Continuou a me olhar por um tempo. Tive a
impressão de ver em seus olhos um mundo de coisas que me
perturbavam sem que eu as pudesse chegar a compreender.
Ele retomou seu caminho, passo a passo, fôlego curto. Quando
chegou ao seu lugar, parou de avançar, virou o rosto para a
estrada e levantou os braços bem alto.
Não foi possível enterrar Abou Othman como ele sempre
havia imaginado. Ele entrou no escritório do comandante judeu
para um interrogatório. Quando colocou os pés lá dentro, todos
ouviram uma pavorosa explosão. O prédio inteiro desabou e o
corpo de Abou Othman desapareceu entre os escombros.
Mais tarde, minha mãe contou, enquanto caminhávamos
pelas montanhas rumo à Jordânia, o que houve. Abou Othman,
ao entrar na barbearia antes de enterrar sua mulher, não havia
retornado somente com o lençol branco.

244
Visão de Gaza

Meu caro Mustafa,


Acabei de receber a carta onde você diz que arranjou
tudo para mim em Sacramento. Também recebi um aviso da
Universidade da Califórnia informando sobre minha admissão
em Arquitetura. Preciso agradecer por tudo o que você fez, mas
tenho de dizer, e isso vai parecer meio estranho, que mudei
de ideia. Quero que você saiba, meu caro Mustafa, que minha
decisão havia sido tomada quando eu ainda não podia ver as
coisas muito claramente. Por isso, meu amigo, não vou fazer
companhia a você no “país do verde e dos belos rostos”, que você
me descreveu. Vou ficar por aqui mesmo. Não vou mais sair.
Lamento muito essa decisão quando penso que não
vamos mais poder continuar juntos. Quase posso ouvir você
dizendo que devemos caminhar sempre lado a lado (e aquele
nosso juramento: “Vamos ficar ricos”). Mas agora não tenho
escolha. Está certo, lembro-me bem daquele dia em que
acompanhei você até o aeroporto do Cairo. Apertamos as mãos
enquanto começavam a girar as hélices do avião. As imagens,
ali, confundiam-se num turbilhão ruidoso, acompanhando
o movimento das hélices. Até hoje vejo você parado diante
de mim, com o rosto sério e silencioso. O mesmo rosto que
você tinha em nosso bairro de Al Shagiah, em Gaza. Com
algumas rugas a mais, é verdade. Crescemos juntos e hoje não
precisamos de muitas palavras para conversar. Prometemos
ficar sempre juntos. Porém…
“Dentro de um quarto de hora o avião decola. Deixe de
empurrar a vida desse jeito. Olhe aqui: no próximo ano você vai
ao Kuwait. Economiza algum dinheiro, o suficiente para deixar
Gaza e ir para a Califórnia. Nós começamos juntos e precisamos
continuar juntos.”
Eu olhava o movimento rápido, inquieto, de seus
lábios. Era o mesmo jeito de sempre de falar, sem pon-
to nem vírgula. Mas eu sentia, ainda que de um jeito
meio confuso, que você não estava contente assim com
essa fuga. Foi incapaz de me enumerar três motivos que a
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justificassem. Eu havia sofrido muito e tinha todas as razões
para me perguntar: por que não abandonar Gaza e cair fora? Mas
você, pelo contrário, já estava melhorando de vida. O Ministério
da Educação do Kuwait havia confirmado o emprego, enquanto
eu havia recusado. Durante aqueles anos de miséria, recebi de
você algumas pequenas quantias de dinheiro, que sempre fez
questão de chamar de empréstimos, para não me humilhar. Você
conhecia bem minha situação familiar e sabia que o pequeno
salário que eu recebia na escola primária não era suficiente para
as necessidades de minha mãe, nem da viúva de meu irmão e
seus quatro filhos.
“Escute bem. Escreva todos os dias, todas as horas,
todos os minutos. O avião vai decolar… Adeus. Não, não. Melhor
até a vista... Até a vista.”
Seus lábios frios tocaram meu rosto. Você começou a
andar na direção do avião. Quando se virou, mesmo ao longe,
pude perceber seus olhos cheios de lágrimas.
Pouco tempo depois, o Ministério de Educação do
Kuwait me ofereceu um emprego. Não preciso dar detalhes
novamente de minha vida cotidiana depois disso. Tenho escrito
a você sem parar. A vida era monótona e meio vazia; vivia feito
uma ostra. Sufocado por uma terrível solidão, lutava o tempo
todo e via o futuro tão escuro quanto o coração da noite. Uma
rotina insuportável, arrastada, uma resistência sem fim contra
a força da deterioração provocada pelo passar do tempo. Tudo
ao meu redor era vicioso, asfixiante. A vida era apenas a espera
viscosa do fim de cada mês.
Por volta da metade do ano, os judeus começaram
a atirar contra a base de Al Sahha, e depois bombardearam
Gaza. Cobriram nossa Gaza de bombas e de fogo. Isso podia
ter quebrado a rotina em que eu vivia, mas àquela altura nada
mais me motivava. Estava quase abandonando Gaza para ir à
Califórnia, viver um pouco para mim mesmo depois de tantos
anos de sofrimento. Eu odiava Gaza e todo mundo que vivia
nela. Tudo o que existia nesta terra desolada me lembrava um
desagradável quadro pintado, uma vez, por um companheiro de
quarto do hospital, todo em tons de cinza. Sempre dei dinheiro
suficiente para permitir a sobrevivência de minha mãe, da viúva
de meu irmão e suas crianças. Inspiravam-me grande piedade,
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mas não podiam justificar que eu me resignasse à minha tragédia
e continuasse a vegetar, afundando mais e mais. Na Califórnia
poderia também me livrar dessa responsabilidade. Nesse verde
país, longe do cheiro da derrota que me perseguiu por sete anos…
Era preciso fugir.
Mustafa, você compreende esses sentimentos porque
também passou por isso. E do que será feito esse vínculo
misterioso que nos prende, apesar de tudo, a Gaza e que freia
nosso impulso rumo ao desconhecido? Por que não procuramos
analisar esse mistério, tentando esclarecê-lo? Por que, no fundo
de nós mesmos, não existia a certeza de querer abraçar uma nova
vida, mais alegre, sem preocupações? Por quê? A essa pergunta
nunca ousamos responder. Pelo menos até hoje…
Nas férias de junho, quando eu já estava arrumando
tudo o que precisava para partir, quando minha imaginação
mergulhava nas primeiras e pequenas coisas que dão à vida
sabor e prazer, descobri em

Gaza coisas que nunca havia visto antes, velho marisco


fechado em sua concha que o mar havia jogado por acaso, na
areia. Mais dobrado sobre si mesmo do que a alma de quem
dorme em pleno pesadelo. Nas minúsculas ruas e becos,
sempre o cheiro feito da mistura de derrota e pobreza, as casas
com seus balcões sonolentos. Era Gaza… Uma rede de rios
inextricavelmente enlaçados que nos prendia a nossas famílias,
nossas casas, nossas lembranças, como uma fonte que atrai para
ela o viajante perdido.
Não sei exatamente o que se passou comigo. Tudo o que
sei é que fui visitar minha mãe um dia, bem cedo. Ali, encontrei a
viúva de meu irmão, que me pediu, chorando, que atendesse ao
pedido de sua filha Nádia, a filha de meu irmão, tão bonita já em
seus treze anos de idade!
No fim da tarde, comprei uma libra de maçãs e fui
ao hospital. Eu sabia que minha mãe e a viúva de meu irmão
me haviam escondido alguma coisa a respeito de Nádia, algo
que não podiam dizer na minha frente. Senti, mas não pude
adivinhar. Eu gostava de Nádia, como gostava de todas as
crianças dessa geração. Crianças que haviam bebido o leite
da derrota e que se haviam acostumado à vida errante; ao
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ponto de uma vida sedentária, tranquila, parecer-lhes uma
espécie de anomalia social.
O que houve no hospital? Entrei tranquilamente
no quarto branco. Uma criança doente tem algo de santo.
Mas com o que se parece uma criança marcada por cruéis e
dolorosas feridas? Nádia estava deitada na cama, sobre um
lençol muito branco. Seus cabelos espalhados faziam o rosto
parecer uma joia numa caixa de veludo branco. Tinha um
profundo silêncio nos olhos e notei as lágrimas no fundo deles.
Mas tinha o olhar sereno, como o de um profeta atormentado.
Era ainda uma criança, mas havia crescido muito em pouco
tempo, podia-se perceber.
- Nádia…
Não sei se fui eu ou outra pessoa quem pronunciou
seu nome. Ela ergueu os olhos para mim. Quando vi
aqueles olhos negros me senti derreter como um pedaço de
açúcar jogado numa xícara de chá fervente. Vi seu sorriso
transparente e ouvi sua voz:
- Tio! Você veio do Kuwait?
Sua voz parecia quebrar-se dentro da garganta. Precisou
apoiar-se sobre as mãos para levantar o pescoço em minha direção.
Coloquei a mão em suas costas e me sentei na beira do colchão:
-Trouxe uns presentes do Kuwait. Muitos presentes,
mas vou esperar até que você se levante, que fique boa e
volta para casa. Comprei uma calça, aquela calça vermelha
que você me pediu, lembra?
Foi um erro que a tensão que vinha me crescendo
sem parar dentro de mim acabou por provocar. Nádia
tremeu, como se um arrepio percorresse seu corpo. Abaixou
a cabeça, guardando uma calma espantosa. Senti minhas
lágrimas nas costas da mão.
- Que foi, Nádia? Não quer a calça vermelha? Ela me
olhou como se fosse dizer algo, mas continuou em silêncio.
Depois de um momento, ouvi sua voz, que parecia vir de
muito longe:
- Tio…

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Retirou a colcha branca para me mostrar a perna,
amputada à altura da coxa.
Mustafa, eu nunca mais vou poder esquecer isso.
E não vou poder esquecer a tristeza que a partir de então
marca todos os traços do rosto dela. Deixei o hospital naquele
fim de tarde para sair andando pelos bairros da cidade, com as
mãos crispadas sobre o pacote de maçãs. Com a luz do sol que
caía, as ruas me pareceram lavadas de sangue. Gaza me pareceu
inteiramente diferente da cidade que você e eu conhecemos.
As pedras amontoadas à entrada do bairro de Shagiah davam
a impressão de transmitirem algo que me escapava. A Gaza em
que passamos sete anos de tristeza e frustração não estava mais
ali. Em seu lugar, havia uma espécie de início, de amostra de algo
que viria pela frente. A rua principal, que tomei para voltar para
casa, parecia o primeiro trecho de uma estrada, mais longa do
que aquela que vai até Safad. Gaza toda, e tudo o que havia nela,
estremecia ao redor da perna amputada de Nádia gritava um
apelo que era mais do que um apelo, era o desejo delirante de
dar de volta a Nádia a perna cortada.
Caminhei pelas ruas que o sol ainda banhava.
Fiquei sabendo que Nádia havia perdido a perna ao tentar
proteger os irmãos quando sua casa se incendiou durante
o bombardeio. Ela poderia ter fugido e escapado ilesa. Mas
não fez isso. Você sabe por quê?
Não, Mustafa. Eu não vou mais para Sacramento. Não
lamento isso. Não vou poder ir até o fim dos sonhos que tivemos
juntos desde a infância. É preciso que deixemos crescer este
estranho sentimento, que você certamente teve, com uma
ferida, ao deixar Gaza. Temos de fazer com que ele supere todos
os outros. Procure dentro de você mesmo até encontrar. Mas
acho que você não pode reencontrá-lo a não ser aqui, no meio
das ruínas de nossa tragédia.
Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar. Voltar
para aprender, diante da perna amputada de Nádia, o que vale a
vida, nossa vida.
Volte. Todos nós esperamos por você.

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Sobre o autor

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Yasser Jamil Fayad –

Nasceu em Campos Novos-SC (25-02-1982).


Graduado em Medicina pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC),
Residência médica em Pediatria HU-UFSC,
Residência médica em Infectologia Pediátrica na
USP-Ribeirão Preto, pós-graduação em Filosofia
Política (IFIBE) e mestrando em Geografia pela
Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS),
Militante de esquerda e coordenador do Movimento
pela Libertação da Palestina – Ghassan Kanafani.
Autor dos livros publicados pela Fedayin Editora:
Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos e
Amálgama de luta e beleza: somos todos palestinos.

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