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Revisão geral:
Jamil Abdalla Fayad
Designer gráfico:
André Jaime Lopes
Agradecimentos:
Camila Winiarski
Tarik Fayad
Samira Jamil Fayad
Jean Claúdio Guadagnin
Paulo Maurício Cavalheiro França
Gilmar de Oliveira
Ivanda Masson
Arnoldo Ramos Cândido e Sindaspi
ISBN:978-65-00-21833-6 .
Título: Nosso verbo é lutar: somos todos palestinos
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Palestina livre
A todos os que lutam contra
a opressão e exploração
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................... 7
ELUCIDANDO A CAUSA
Quem é você, Israel?....................................................14
SÓ A LUTA LIBERTA
Meu verbo é lutar.........................................................50
Meu amor por ti...........................................................52
Perguntas e respostas...................................................54
O quinhão de terra.......................................................58
O que construíram?.....................................................62
Crianças do meu país...................................................66
Pobres formigas............................................................69
Oliveira..........................................................................73
Razões............................................................................76
Territórios “autônomos”..............................................79
O único sofredor..........................................................82
Eu todo povo.................................................................85
Tudo em cinquenta anos.............................................87
A face que revela...........................................................90
Nossos mortos..............................................................93
O fim do ódio que você plantou.................................98
Mulher palestina.........................................................103
Adorador do umbigo.................................................108
Formas e linguagens...................................................111
Identidade....................................................................118
Intifada.........................................................................121
As oliveiras..................................................................121
Muro das lamentações...............................................121
Seu Deus......................................................................122
Seus muros..................................................................122
Seu travesseiro............................................................122
7
O atual palestino tem na sua formação étnica bá-
sica a secular miscigenação dos povos que nasceram,
viveram e morreram na região conhecida hoje como
Palestina desde tempos imemoriais. Desses diversos
povos alguns adquiriram relevância na história e outros
apenas na mitologia. Entre os historicamente significa-
tivos estão aqueles que construíram e integraram im-
portantes civilizações da humanidade como Egípcia,
Babilônica, Assíria, Fenícia, Persa e Árabe. No pro-
cesso antropológico em que povos se desfazem e se
refazem, transfigurando suas características culturais,
adquirindo nova feição comum, a islamização e a ara-
bização da Palestina, iniciada no século VII, foi a última
grande transformação étnica e cultural da região.
No campo religioso, os palestinos viram nascer,
participaram e conviveram com o judaísmo, cristianis-
mo e islamismo num ambiente de cumplicidade e pro-
teção eternizado no famoso Pacto de Omar, o Segundo
Califa Ortodoxo do Islã, que derrotou os bizantinos da
Palestina e foi pessoalmente junto aos seus soldados
limpar as profanações bizantinas à Cúpula dos Roche-
dos, inclusive o Muro das Lamentações.
O Pacto forjou as bases de convívio religioso –
comparativamente muito mais respeitadas as diferen-
ças do que em outras civilizações da época – não só
na Palestina, mas para todo o Islão, incluindo o res-
tabelecimento de santuários religiosos das três religi-
ões abraâmicas em igualdade na Sagrada Cidade de
Jerusalém – após 300 anos de proibição bizantina do
judaísmo na mesma.
A colonização da Palestina por europeus que
professavam o judaísmo (sionistas) é um fenômeno
recente e está ligado ao movimento do capitalismo
mundial e, em particular, o europeu. Esse reestruturou
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a sociedade europeia criando um amplo êxodo rural,
indústrias modernas, formação de grandes e modernos
conglomerados urbanos com enormes contingentes
humanos miseráveis sem acesso a condições normais
de reprodução de sua própria existência física tratando
de transferi-los para outros continentes.
A operação regional de “limpeza”, orquestrada
pela burguesia central, estava ligada também ao pro-
cesso de neocolonialismo que fez dessa massa huma-
na pilar físico do processo de acumulação capitalista
que dividiu Ásia, África e América em novas áreas de
exploração. Nesse mesmo tempo, para “resolver” a
dívida europeia com anos de antijudaísmo, conhecida
como a “questão judaica”, aliado ao interesse dos sio-
nistas em querer um lar na Palestina e à necessidade
de expansão e dominação do Imperialismo europeu,
se estabeleceu a colonização sionista da Palestina. A
“questão da palestina” é assim criada pela síntese de
uma necessidade de acumulação do capitalismo cen-
tral, transferindo uma população genuinamente euro-
peia para Palestina com a função social de ser o posto
avançado colonial a serviço do Imperialismo no Oriente
Médio, em especial, objetivando o controle das fontes
energéticas e a desestabilização política da região.
A recepção palestina a essa ofensiva apresentou
várias fases que correspondem ao grau de consciên-
cia coletiva frente ao processo exógeno de colonização
sob a proteção e incentivo do Mandato Britânico. As-
sim, é possível compreender a generosidade inocente
da população local palestina que recebeu muito bem
todos os primeiros colonos europeus que professavam
o judaísmo, ou mesmo, as primeiras “reclamações” e
apelos ao “senso de justiça” do Mandatário. Os pales-
tinos na construção de sua luta também perderam as
ilusões quanto às elites árabes regionais como interlo-
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cutoras fundamentais da causa palestina, pois essas
em dimensão maior ou menor fizeram uso dela em pro-
veito próprio.
A resistência palestina à agressão colonizadora
aparece desde cedo, ainda que pontual e depois ad-
quire intensidade e dimensões maiores, sob a forma de
greves, rebeliões populares, defesa armada, etc.
Na década de 60, surge uma nova etapa desse
movimento, onde definitivamente os palestinos assu-
miam para si mesmos a luta de libertação; diversas
organizações, grupos e intelectuais com amplo leque
político vão integrar em 1964 a Organização de Liber-
tação da Palestina (OLP), que unificou e conduziu um
dos maiores processos de mobilização anticolonialista
e desencadeou incrível luta de libertação nacional. A
causa palestina agora pensada e organizada a partir
dos próprios interesses do conjunto dos palestinos não
deixou de ter suas perspectivas distintas de classe,
nem a excluiu da questão árabe e regional, mas possi-
bilitou o avanço de uma unidade comum em forma de
frente de libertação nacional.
Em todas as expressões desse movimento pa-
lestino anticolonialista esteve sempre presente a forma
artística da poesia. Isso porque ela possui uma brilhan-
te, longa e sólida posição na cultura árabe, tradicio-
nalmente oral, mas também escrita e por ser uma das
formas privilegiadas de reflexão e apropriação popular
da cultura de resistência e combate. Por isso é comum
vermos pessoas do povo declamando poesias de luta e
resistência. Não é menos significativo o registro que um
dos traços marcantes e comuns das políticas de coloni-
zação sempre foi a destruição da cultura do colonizado;
nesse aspecto o assassinato e prisão de poetas pales-
tinos traduzem a relevância desses para a resistência e
a cultura palestina e árabe.
10
Os poemas desse livro fazem justiça ao longo
percurso de lutas do povo palestino e à tradição lite-
rária de combate da poesia desse heroico povo. Mais
do que isso, assumem integralmente o posicionamento
em favor e como parte atuante desta mesma luta, que
articula vários substratos temáticos:
I. A luta contra os imperialismos.
II. A luta contra os colonialismos.
III. A luta contra o racismo e a segregação étnica.
IV. A luta pela terra e seus recursos.
V. A luta pela autodeterminação de uma identida-
de étnica própria.
VI. A luta contras as elites locais subservientes
(burguesias locais árabes).
VII. A luta pelos direitos humanos.
VIII. A luta por um novo modelo societário para
Palestina.
A decisão pelo formato de poemas, mesmo com
as limitações que essa forma literária impõe à redação,
é de abrir a possibilidade atrativa do diálogo entre lite-
ratura e política fazendo com que a forma literária da
poesia torne-se mais convidativa a esse conteúdo tão
sério como é a causa palestina. Para tanto separamos
o livro em cinco capítulos:
I. Elucidando a causa: contém um poema extenso
com o objetivo de explicar os principais movimen-
tos e a essência do fenômeno de colonização
sionista, assim como, dar apontamentos de sua
antítese à luta de libertação palestina.
II. Só a luta liberta: contém um conjunto de poemas
curtos com o objetivo de exporem o extenso pa-
norama da luta de libertação palestina.
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III. Um povo que luta: fotos que incluem imagens da
Nakba; movimentos e lideranças palestinas de
resistência à colonização; lideranças anticolonia-
listas em apoio à causa palestina; primeira Intifa-
da 1987; todos na luta contra a colonização; arte
e luta.
IV. Cenas da luta palestina: poemas que condensam
cenas da vida palestina.
V. Voz que não se cala: homenagem que contém
foto, nota biográfica e textos de Ghassan Kanafa-
ni, que sintetizam a tomada de posição e luta da
geração pós-67.
12
Elucidando a
causa
13
Quem é você, Israel?
I.
Quem é você,
Israel?
Chegou à Europa
Foi recebido com
Séculos de negação de suas crenças religiosas
Sua humanidade
Guetos,
Pogroms,
Perseguições.
Sofreu – é verdade!
Descobriu que enfrentá-los
Frente a frente
Levaria à amarga fogueira das inquisições.
Encontrando-se
Quase sempre
Escondido,
Aos sussurros,
Caminhando nas pontas dos pés,
Nos porões,
Sótãos.
Matou lentamente
A pouca identidade étnica
Que lhe restava
Herança
Daqueles longínquos
Pequeninos grupos originais
Chegados à Europa.
Conseguiu assim
Sua função social
Desde tempos medievais
Em alguns lugares
Foi parcela pequena,
Em outros – significativa.
Por vezes até monopolizou
Comércios, empréstimos
– Odiado, mas necessário.
Associou-se
Com seus antigos assassinos
Descobriu que podia
Sempre
Servi-los... Até mesmo em outras terras
Em troca de moedas.
Introjetou
Profundamente
Seu opressor
17
Tornou-se mera cópia dele
Cheio de superioridade
Racial,
Religiosa,
Moral,
Civilizatória.
Teve nojo
Como toda “boa elite” europeia da época
Dos negros de África
Por isso ajudou traficá-los no passado
Financiando navios negreiros.
Teve nojo
Como toda “boa elite” europeia da época
Dos indígenas de América
Por isso ajudou exterminá-los
Financiando exploração deles
E das terras
Que lhes pertenciam.
Teve nojo
Da mestiçagem
Branca, indígena, negra.
18
Nas colônias –
Não se misturou
Com os “debaixo”.
II.
Quem é você,
Israel?
Suas organizações,
Mesa de negócios comuns,
Outrora isoladas
19
Articulavam-se agora
Em torno de projeto comum
Nascia seu sionismo moderno
Fruto do casamento
Da visão ideológica de superioridade racial,
Do voraz expansionismo
E dos efeitos em você do antijudaísmo secular.
– Mais um
Filho tardio da Era colonialista.
Herdeiro da podridão
Daqueles que pisaram
Nos ossos
Trituram
Carnes
Dos trabalhadores nas colônias e metrópoles
Numa imensa acumulação primitiva
De ouro e dentes,
Diamantes e órgãos humanos,
Matérias-primas e corações –
Tudo para
Colher dividendos.
Manteve máscara
Amigável com os
Soviéticos
Quanto pôde
Junto
Ao dedo acusatório
Do continuum antijudaísmo eslavo.
Insinuou-se
Ao seu maior amor
Sorriu feliz quando esse
Abriu Europa
Para aquilo que
Tinha de mais podre...
Aquilo que você aprendeu finalmente a ser o melhor
reflexo.
Felicitou-se quando
Esse decretou
As leis de Nuremberg
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Porta aberta para
Verdadeira
Diáspora judaica.
Massa humana
Que você tanto precisava
Para realizar seu até então
Não muito promissor
Projeto sionista.
Pôde vender
A essa gente desesperada
Falso sonho de terra sem males
Inocência essa perdida
Ao invadirem à Palestina.
“De vítimas
a assassinos
E
De religião
À etnia /raça –
Que é dona por decreto divino,
Da Palestina”.
Eis sua sórdida fórmula.
Grande,
Perfeita,
Solução cínica
Do secular ódio, das perseguições
Europeias a tudo que não lhe era espelho
Europa narcisista que criou a “questão judaica”...
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Moldou-lhe... Você gostou de suas feições:
“Deixar morrer no holocausto ou
Invadir a Palestina”.
Soube esconder
Suas ligações íntimas amorosas
Sempre fiel – como uma boa esposa.
Na cama
Do nazismo,
Fascismo.
Tentou ocultar
Suas lideranças “religiosas” saindo
Pela porta da frente
Com amigáveis sorrisos
Tapinhas nas costas
Daquele Terceiro Reich
Enquanto pobres queimavam nos fornos de
Auschwitz-Birkenau.
Inventou sentimento
De unidade
Que explora a exaustão patética e cínica –
“Dos únicos sofredores da Terra.”
Por fim,
Blindou-se com aura do antijudaísmo secular
europeu –
Sob o rótulo pseudo-racial de
“antissemitismo”
Licença para matar árabes,
Título preferido para defesa
E ataque
De qualquer de seus críticos
– Seu melhor escudo.
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Você que
Esperou secularmente pelo
Messias
Queria a Terra Santa...
Sionismo lhe deu alguém digno de seu nome...
O Führer,
O verdadeiro messias de sua criação,
Israel.
III.
Quem é você,
Israel?
Debaixo
Da falsa
Construída
Aparência de arco-íris
Você usou tão bem
Todo terror
Deu vida aos piores pesadelos humanos
Aprendeu muito bem
Com forças de colonização inglesas
Depois com o nazismo.
No menu
Em seu cardápio diário
Bombas,
Incêndios,
25
Assassinatos a sangue frio,
Rapinagem, genocídios, racismos
Estupros, linchamentos, limpeza étnica,
Tudo no melhor de seu estilo.
Assim
Num piscar de olhos
Numa jogada
Armada
Ensaiada
Com a Inglaterra
Assumiu o controle.
Numa partilha
Cinematográfica
Um mundo inescrupuloso
Votava sobre direito alheio
Sentenciava os palestinos pela
Segunda Guerra
Condenava-os ao exílio e a aceitar você
... Sim, você!
Imaginou que
Os palestinos
Após os primeiros anos
De derrotas em cima de derrotas
Assassinatos sistemáticos,
Prisões,
Penúria permanente,
Fugiriam todos.
Desmanchariam-se
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Em retalhos humanos
Na miséria comum
De um mar de árabes.
“O velho morrerá
E o jovem esquecerá” –
Essa era sua esperança...
Lembra?
Errou profundamente
Você
Criou para os palestinos
Aquele momento ímpar
Imensamente trágico
Que a morte e a dissolução
Só podem ser contrapostos
Por uma resposta unitária
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De todos.
Os palestinos
Acharam essa resposta
Esse denominador comum
Na luta contra você –
Isso não estava em seus sujos planos.
São eles
Sua maior pedra no sapato
Não cessam de criar e recriar
Formas de resistência.
Não temem
Sua imensa superioridade militar
Povo que
Não abjura,
Não quebra,
Não se dilui...
E se reproduzem...
Filhos e mais filhos,
Longe de seus parâmetros europeus
De natalidade
E como você tem medo
Por dentro,
Por fora,
De ser engolido por eles!
Também sabe
Que são
Seu maior prelúdio...
Os outros árabes agora sabem
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Como resistir
A sua invasão.
Sua essência
Israel
Aquilo que sua bem construída
Aparência tenta esconder
Aos olhos desatentos de quem passa
Ao longe
Traduz seu propósito nesse mundo
Seu serviço moderno.
Provocar
Guerra de conquista,
Fontes de energia,
Para os impérios
Criar mais e mais instabilidades,
Mortes,
Entre os fragilizados árabes –
Amaldiçoados pelo petróleo!
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Seu pagamento
Lucro
Está nos gordos orçamentos
Repassados pela maldita Águia,
Partilha compartilhada dos espólios de guerras,
Arrecadações de suas organizações
Mundo à fora,
Indenizações europeias da Segunda Guerra.
Israel,
Quantas toneladas de carne humana
Você devorou por dinheiro?
IV.
Quem é você,
Israel?
Faz de tudo
Para transfigurar
Vítimas em algozes.
Cuspiu ao vento
Imagem dos árabes
Como bestas irracionais
Sedentas de sangue.
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Usou todo vocabulário
Baixo para designá-los
Todo eufemismo
Para seu permanente
Modus operandi
De massacre e dominação –
Você, falsificador da história,
Israel.
Como
Inventou centenas
De mentiras bem contadas
Para florir sua suja face.
33
Contos de fada
Escritos com a varinha midiática:
Como de praxe
Também mentiu
Judeus negros, judeus árabes, judeus indianos...
Pobres,
Trabalhadores,
Não valem tanto quanto
Brancos e ricos –
Aqueles que lhe inventaram
Além do mais... Fora a religião
Nada tem em comum culturalmente
Com você,
Europeu sionista.
Israel,
Quantos milhões de crânios humanos
Você pisoteou
Até hoje?
Escondeu conversões,
Escondeu dissolução dos Hebreus
Como muitos outros povos,
Naquele caldeirão palestino e do Oriente Próximo
De diversas raízes que se mesclaram
Até a grande transfiguração étnica que
os arabizou/ islamizou
Nesse sentido,
Os palestinos modernos são
mais hebreus que você,
Falsário europeu.
Você
Usou toneladas de maquiagem
Base,
Blush,
Batom nos lábios,
Cílios postiços –
Não lhe cobrem a imensa feiura
Colonizadora e segregacionista,
Israel.
V.
Quem é você,
Israel?
Terra Santa
Que incontáveis milagres
Presenciou
Você produziu a mais
Horrenda peste
– Meio século tentando apagar
Um povo
De verdade.
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Quanta podridão
Você gerou ao mundo?
Quanto exalou de seu imundo veneno?
De pólvora?
De nitroglicerina?
De falsidades?
De calamidades?
De catástrofes?
Roubou-lhes
As oliveiras,
As águas do Jordão,
As casas,
As vilas...
E insiste em não ser chamado
Por aquilo que fez e faz –
Ladrão!
Nem original
Você é
Cópia sem sabor
De todo
Expansionismo europeu:
Matar indígenas
(banquete de limpeza étnica e genocídio),
Transformá-los em seres inferiores,
Usando sempre um discurso
De benfeitor,
Casca fina de civilidade,
Etiquetas,
Que dissimulam
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O monstro que és
– Israel.
Monstro
De ruas, esquinas, avenidas de frio asfalto
Cheirando a enxofre
Conduzem todas
A cemitérios
De árabes.
Chacina lá,
Carnificina acolá,
Massacre ali,
39
Não existe
Israel
Em você
Um único canto livre
De vísceras,
Lágrimas,
Sangue coagulado,
De milhares de palestinos.
Quanto
Aos sobreviventes
Lançou-lhes na dor do exílio
Seis milhões
Sufocante vida dos campos de refugiados
Outros milhões que ficaram
Transformou-os
Reféns de sua fome
Por bifes,
Costelas,
Miúdos,
De seres humanos.
Contudo
Não consegue
Controlá-los
Queimou também os dedos
Nessa jogada.
Recriou cuidadosamente
No íntimo
Novo apartheid
Transformou palestinos
Seres de segunda classe
Em sua própria terra.
42
Nada demais
Para quem foi único
Apoiar até
O fim aquele regime irmão
Em África do Sul.
Você se esforça
Agora
Para vender-se
Desesperadamente
Para outros seguimentos.
Eu sei
Quem você é, Israel...
44
Fruto podre do mundo!
Quem sabe
Quando seu tutor
Não ver em você
Utilidade?
Ou talvez
Quando o petróleo acabar?
Com certeza
Quando os árabes chutarem
Para longe aquelas elites podres
Tão amigas de você
... Restará – não há dúvidas – seu nome na lista.
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Só a luta liberta
47
48
“Sim
levarei minhas correntes
farei com que os prisioneiros ouçam os poemas
que eu bradava nas praças e nas ruas.
As correntes oprimem minhas mãos (...)”.
Salim Jabran (1947), poeta palestino.
49
Meu verbo é lutar
Correr
Dançar
Chorar
Abraçar
Amar
Sofrer
Ajudar
Gritar
Na vida
Cabem muitos e muitos verbos.
Eu
Sou
Simplesmente
palestino –
Meu verbo é lutar!
50
“(...) Dessa vez pude ver claramente, com
meus próprios olhos, o que ocorria. O soldado
a empurrou com o pé e ela se deitou de costas.
Tinha a face vermelha. O soldado colocou a
ponta do fuzil sobre seu peito e disparou uma
única bala (...).”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor
palestino, em “Visão de Ramallah”.
51
Meu amor por ti
Torturado de madrugada
Na alvorada também.
Torturado sob o sol
Do meio dia,
À tarde torturado também.
No crepúsculo,
Torturado
Outra vez.
Ao anoitecer,
Durmo,
Sonho livremente,
Intervalo das torturas.
Nunca
Conseguirão
Que desista
De meu amor por ti,
Palestina.
52
“(...) Meu pai morreu ontem
E o enterramos no exílio
Deixou-me uma foto
E uma história sobre a dignidade da juventude
Viveu em ti e morreu no exílio
Ele me infundiu teu amor
E esta saudade poderosa.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.
53
Perguntas e respostas
Quem é você?
Esta é sua primeira pergunta.
Respondo:
Sou o nono filho –
O que chegou depois do verão –
Daqueles pais
De cabelos negros,
Olhos castanhos,
Com o kufiyyah na cabeça
Que Darwish
Escreveu.
56
“Eu morro de esperança
De ardor morro
Morro enforcado
Degolado morro
Mas não digo nunca
Nosso amor terminou e morreu
Nosso amor não morrerá.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta
palestino.
57
O quinhão de terra
Nas portas
Do antigo castelo mameluco
Em Khan Younis,
Damasco,
Tâmara,
Za’atar,
Pimenta síria,
Já não são
Mais vendidos
Como outrora.
O forte cheiro
Do café arábica
Não traz hoje
as ternas recordações
Da nossa infância
Dos encontros
Entre amigos
Ou das conversas
Francas com nossos
Anciões.
58
Hoje
Cheiros
Das especiarias
De um tempo
Distante
Os muros do castelo
Já não refletem
O esplendor de antigamente.
Eu
Ainda
Sinto o cheiro
De sangue
Daqueles
Cem corpos
Enfileirados
Aqui assassinados.
Vala comum
Foi o quinhão de terra
59
Que sobrou para
Aqueles palestinos.
60
“(...) vou continuar gravando seu nome
enquanto luto
na terra, nas paredes, nas portas (...).”
Fadwa Tuqan (1917-2003), poetisa palestina.
61
O que construíram?
Construíram
Trincheiras de guerra,
Dizem que para se defender.
Por isso têm mísseis de longo alcance,
Tropas de assalto,
Aviões não tripulados
Para bombardear ao longe.
Construíram
O Kibutz – colônia em espécie de forte.
Dizem que lá dentro era bom de viver
Por isso, quem fugiu da Europa em chamas,
Veio para cá.
62
Custos altos
– Não se preocupe –
São pagos pelos outros
Os despojados,
Condenados da Terra.
Espoliações,
Opressões,
Muito... muito mesmo
Sangue alheio.
Construíram
Armas,
Tanques,
Bombas,
Inclusive atômicas,
por essas, a ONU não se interessa.
63
É a eterna necessidade do gueto
Da segregação
– mais uma intersecção -
Do sionismo com antijudaísmo
Secular europeu.
Tudo
Dizem
Pois foram eleitos
No tempo das cavernas
Por um estranho Deus
Inventado por eles mesmos.
64
“Basta-me morrer em meu país
Aí ser enterrada
Dissolver-me e aí reduzir-me a nada
Ressuscitar erva em minha terra
Renascer flor
Que alguma criança crescida
em meu país arrancará (...).”
Fadwa Tuqan (1917-2003), poetisa palestina.
65
Crianças do meu país
Em seu país
As crianças
Brincam do quê?
Correm livres
Pelas ruas,
Campos e
parques
de seu país?
No meu país
Tudo é diferente.
Crescem rápido.
Não há tempo,
Nem espaço para brincar.
66
No meu país
Integram-se
Os destinos de meu povo.
Desde muito cedo
Correm de bombas,
escondem-se de tanques,
Brincam com cartuchos vazios de armas,
Jogam bola entre escombros
De bombardeios.
Reúnem-se
Aos garotos mais velhos nas ruas
Pedras nas mãos...
Enfrentam fuzis...
Soldados...
Bombas...
Sempre acreditando que vencerão.
67
“(...) Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.
68
Pobres formigas
Vindas todas
De diferentes
Lugares.
Norte ou sul,
Leste ou oeste.
Procuravam no deserto,
Cansadas,
Lugar de sombra.
Se Deus
Quisesse
Água e comida
Também.
Você já viu
Formigas rogarem por descanso?
Pois foi o que fizeram naquele dia...
69
Carregavam
Consigo tudo o que podiam:
Folhas,
Comidas,
Pequenos galhos,
Futuras gerações.
Rapidamente constroem
Abrigos
Com o pouco
Em mãos
– Folhas de palmeiras, pedras...
E muita areia.
Não conseguem
Esconder o desalento
A saudade
do antigo lar
perdido.
Você já ouviu
Formigas chorarem de tristeza?
Pois foi o que fizeram naquele dia...
70
Sobrou
Um pequeno
Espaço
Para uma nova casa –
Não um lar.
Hoje
Em faixa tão estreita
De terra árida
Tão perto do mar
Sem poder acessá-lo
Cercadas por muros
Sem direito
ao próprio céu.
Pobres
Formigas!
Elas não mereciam.
71
“Nos exilaram à força
nossa aldeia ficou em ruínas vieram
cavaram uma tumba no passado
arrancaram as oliveiras raiz por raiz
lançaram-nas às ribanceiras de
dez em dez para que morram e ressoem
ao sol e sejam a tristeza do transeunte.”
Hanna Ibrahim.
72
Oliveira
Raízes seculares
Entrelaçam etnias
Que por aqui passaram
profundas raízes
densas de histórias.
Caules tortuosos
Curvam-se para Meca
A todas as orações do dia.
Pele grossa,
Folhas contidas
Negro fruto
como teus olhos e cabelos.
Nunca um povo
Teve tantas feições
Similares a ti
- minha irmã e amiga.
73
Carregas, no lugar da seiva
sangue dos mártires.
És,
Por isso,
Minha irmã e amiga,
Que à força te retiram
De tua própria terra
Como nós,
também és palestina.
74
“Talvez apagues todas as luzes de minha noite
Talvez me prives da ternura de minha mãe
Talvez falsifiques minha história
Talvez ponhas máscaras para enganar meus amigos
Talvez levantes muralhas e muralhas ao meu redor
Talvez me crucifiques um dia diante de
espetáculos indignos
Mas não me venderei (...).”
Samih Al Qasim (1939 - 2014),poeta palestino.
75
Razões
76
Pelos milhões de obrigados a partirem
Que ainda cultivam
Desejo sincero
De para casa retornarem.
77
“(...) sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira;
tenho oito filhos
arranco das pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
78
Territórios “autônomos”
Invadiram
Minha casa
À força bruta.
Não respeitaram
Os jardins...
Pisaram nas flores
Mataram o cão
Arrombaram a porta da frente
Sujaram os tapetes da sala
Com suas botinas militares
Não as tiraram como fazem de costume as visitas.
Prenderam-nos
Num pequeno e apertado cômodo
Nos fundos da casa
Destruíram velhos retratos
79
Pendurados nas paredes
Trocaram todas as mobílias
Hoje fazem festa
Em minha antiga sala e cozinha.
Dizem-nos
Quando pela porta podemos passar
– Posto de controle -
Em direção
A um banheiro afastado.
Decidem
Quando as luzes
Devem ser apagadas
Ordenam toque de silêncio
Ora deixam passar água,
Alimentos,
Remédios,
Ora não
Vigiam-nos constantemente.
A ONU
Chama esse lugar em
Que estamos
De “territórios autônomos palestinos”.
80
“Ensinem nossa história sombria
Aos filhos
A fim de que nosso sangue
Permaneça na bandeira dos criminosos
Como sinal de catástrofe.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
81
O único sofredor
Massacres,
Longas guerras,
De toda antiguidade.
Monstruoso genocídio
Das nações indígenas americanas.
Horrenda escravidão,
Martírio secular
Negro de África.
Para quem é
Só umbigo
Sofrimento é patrimônio
Somente seu.
83
“Palestinos teus olhos, tua tatuagem,
Palestino teu nome
Palestino teus sonhos, teus desvelos
Palestinos teu lenço, teu tornozelo e tua estatura
Palestinos tuas palavras e teu silêncio
Palestina tua voz
Palestinos teu nascimento e tua morte
Te levei nos meus velhos cadernos
No fogo de meus poemas.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
84
Eu todo povo
Naquela noite
Sem lua
Sequestrado
Amarrado
Vendado os olhos
Espancado
Torturado
Jogado nu ao frio
De uma cela
Solitária.
85
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
Tawfik Zayyad (1929-1994), poeta palestino.
86
Tudo em cinquenta anos
Aquela colina
De onde Jerusalém se avista
com seu rebanho de ovelhas meu tataravô cruzava
Como já o faziam seus seculares antepassados.
- Dizem-me que era bom pastor.
Naquele vale
De onde parte a estrada para Haifa
Meu bisavô plantou oliveiras, trigo e figueiras
- Dizem-me que era bom camponês.
87
Dizem que lá vive agora
Um russo casado com uma austríaca
Ao cair da tarde
Mentem a si mesmos
A seus filhos
De como eles próprios
Pastorearam a colina,
Plantaram trigo, oliveira e figueiras,
Construíram a casa
Sozinhos
Tudo em cinquenta anos.
88
“(...) eu estou aqui
Sem raízes
Um teto suspenso no vazio
Sou uma geração que cresce
E se multiplica sob as tendas
Escutem bem
Que cresce
E se multiplica sob as tendas
Deixem as migalhas sobre suas mesas
E me deixem dormir com fome e sede
Mas que a história se ponha em guarda
Ante a geração dos acampamentos.”
Salim Jabran (1947), poeta palestino.
89
A face que revela
Jornais não
Dizem seus nomes
Agentes secretos
Terroristas oficiais.
Contudo
Os conhecemos bem.
Sabemos como agem,
E dissimulam.
Para encobrir
Seus atos
Recorrem a tudo
Sem escrúpulos
Explosões que matam dezenas de outros.
90
Além do alvo
Desaparecem com corpos.
Agentes provocadores,
Assassinos,
Mercenários.
91
“(...) que erro cometeu meu povo
para que viva hoje
numa terra em ruínas
que erro cometeu o pássaro
para que o joguem de um bosque a outro
que erro cometeu meu coração
para que derramem sobre ele
a catástrofe e tanta dor.”
Hayil’ Assaqilah, poeta palestino.
92
Nossos mortos
Lembra
Do terrível massacre
Extermínio em massa de
Deir Yassin?
Naquele 9 de abril de 1948?
Ou o de Ein Al Zeitune?
Ou o de Al Dawayima?
Ou o de Bait Daras?
Ou o de Burayr?
Lembra
Da pilhagem e
Do pavor dos expulsos
de Lydda-Rameleh em 1948?
Ou os de Hulla?
Ou os de Salyia?
Ou os de Bassa?
Lembra
Da rapinagem e
Do infame
Massacre de Qibia
Em 1953?
Lembra
Do cruento massacre
93
De Khan Younis?
E da
Limpeza étnica
De Rafah?
Naquele novembro de 1956?
E aquele de 1959?
1964? 1967?
Lembra?
Será que
São fatos muito antigos
Para você?
Então...
Quem sabe você...
Lembra
Do covarde e
94
desprezível massacre
De Haram Al Khalil
Em Al Khalil?
Naquele 1994?
Ou
Do genocídio
De Jenin,
Em 2002?
Lembra
Do sangrento massacre
De Gaza?
Quando usaram
Bombas de fósforo branco
Contra civis em 2008?
E o de 2014?
Não lembra?
Tem certeza?
De todos aqueles cadáveres?
Alguns pais outros filhos...
Alguns tios outros sobrinhos...
Alguns avós outros netos...
Não lembra?
Para você
Nossos mortos
Nada são.
96
“Um milhão de pássaros
Sobre os ramos de meu coração
Inventam o hino combatente”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
97
O fim do ódio que você plantou
Foi você!
Eu sei que foi você!
Impediu-me
De nascer na casa
De meus antepassados
De robustas pedras
Com parreiral ao fundo.
Ao invés daquela
Tenda da Cruz Vermelha.
Roubou-me a infância
Eu sei...
Brincadeiras inocentes
Nos jardins da casa de meus
Avós paternos em Haifa.
Em vez da fome
Que nos fazia ver sol e lua
Como pratos de comida.
98
Foi você!
Eu sei que foi você!
Você
me tirou
O direito de viver
Livre em meu país.
Foi você!
99
Ao invés disso,
Você... Sim você!
Nos incontáveis
Endereços do exílio me jogou
de país em país,
de casa em casa,
negou-me o lar.
Foi você!
Eu sei que foi você.
Assassinou
Meus irmãos que não nasceram
Pela miséria dos campos de refugiados
Matou os que nasceram e lutaram contra você.
100
Apesar de tudo,
Quero que saiba...
101
“A história nos mostrou isso:
nenhum povo alcançou a sua liberdade sem luta.
Onde há ocupação, há resistência.”
Leila Khaled (1944 - ), militante histórica
da Frente Popular pela Libertação da Palestina
(FPLP).
102
Mulher palestina
Um dia sequer
Em que não erguesse
Em seus ombros
Montanhas, pedras e fuzis.
Não houve...
Medo de armas
De tanques,
De cães fardados,
Nem de toda a escuridão,
Que eles causaram.
Compartilhou
Cada momento
Da nossa história...
103
Na Nakba,
como todos nós,
Chorou a imensa tristeza
Dos Condenados da Terra.
Carregou,
Estrada afora,
com pés descalços,
Nossas memórias,
E malas.
Alimentou-se
Do gosto áspero
Da derrota
Para gestar em seu ventre
Uma geração que
Não abaixaria
A cabeça.
Foi você
Que assim a educou.
Um filho no braço,
Outro na barriga,
Igualmente pegou em armas na guerrilha.
Fez passeatas,
Manifestações,
Escreveu poemas,
Teses e panfletos para as batalhas,
Incendiou centena
de vezes corações.
104
Alertou
Os perigos de negociar
Com tão vil e ardiloso
Inimigo.
Um dia sequer
Em que
Não necessitássemos intensamente
De você – mulher palestina.
106
“Se os mais humildes não nos compreendem
será melhor jogar fora os poemas
e ficarmos calados.
O poeta diz:
se meus versos são bons para meus amigos
e enfurecem os meus inimigos
então é que sou mesmo poeta
e devo continuar cantando.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
107
Adorador do umbigo
Analisei
Minuciosamente
Seus movimentos,
E o de seus precursores também.
Vi
O que
Você plantou
Pelo caminho.
108
Agora
Entendo
Porque colheu
Tanto ódio
Por onde passou...
109
“Eu me recordo muito bem. Enquanto
dormíamos, conforme a tradição nos vilarejos, no
telhado da casa... Os tiros que atingiram uma
aldeia pacífica, Al Birweh, naquela noite de
verão de 1948, não poupavam ninguém. Eu me
vi (no dia em que completava seis anos) caçado
até o olival, escalando aquela montanha íngreme,
por vezes me rastejando. Depois de uma longa
noite de sangue, terror e sede, cheguei a uma
aldeia estrangeira com crianças desconhecidas.
Inocentemente, perguntei: “Onde estou?” E
pela primeira vez ouvi a palavra “Líbano”.
Hoje sei que aquela noite pôs fim à minha
infância.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
110
Formas e linguagens
Invadiram,
Roubaram-lhe a casa,
Reduziram a tiros sua família,
Dividiram suas terras,
Diminuíram suas liberdades,
Subtraíram seu mundo.
Mesmo assim,
Manteve a compostura.
À mesa,
Civilizadamente,
Queria falar.
Disseram-lhe
Com ameaças atrozes
Para calar a boca!
Saiu contrariado
Resolveu
Aumentar o tom de voz
Ignoraram-no.
111
Então
Gritou ao mundo
Suas demandas
Reprimidas.
A ONU
Fez que não ouvira.
Desconsiderava-o
– Não era
“Membro efetivo”.
Disseram-lhe
A cruéis tapas na cara
Que não aceitavam
Gritos.
Decidira
Fazer uma passeata
Com faixas pacíficas.
Disseram-lhe
Com balas de borracha
gás lacrimogêneo
Que não aceitavam interrupção
Do trânsito
nem do vento.
112
Era um homem razoável
Mantinha-se assim...
Pensou muito
E resolvera
Promover panfletagem.
Disseram-lhe
Espancando-o a perversos cassetetes
Que não lhe era permitido usar papel.
Disseram-lhe
Que não admitiam
Este ato de violência
Pois mal fazia ao processo
De “pax sionista”.
Na prisão colocaram-no,
em solitária e implacável tortura
Para a seus moldes o reeducar.
113
Continuava um homem razoável
Nunca o deixara de ser...
Ameaçado com:
Mísseis de curta e longa distância,
Caças F-16, helicópteros Apache,
Aviões e blindados não tripulados,
Tanques Merkava,
Submarinos,
Navios de combate,
Bombas atômicas,
– “Não suportamos
Terrorismo dos “outros”!”
– Disseram-lhe.
Queria falar,
Ser ouvido,
Lutar,
Contra todos os crimes
114
Que seu povo sofrera.
Descobriu que o
Profeta Mohamed
Não aceitava opressão
Virara muçulmano.
Falava sobre a
Palestina colonizada
Com a linguagem do Islã.
Atinou
Que Nasser
Queria um mundo árabe
Unido –
Achara boa ideia.
Virara
um
Nasserista.
Depois,
soube de um tal Marx,
115
adversário da exploração
virara comunista.
Falava sobre a Palestina invadida
Com a linguagem da revolução.
Teve
Muitas e muitas
Formas de luta
Todas as que a história clamou.
Usou tantas linguagens distintas
Que lhe serviam de expressão
Para exigir
No final das contas
Sempre a mesma coisa...
116
“Talvez perca — se desejares — minha
subsistência
Talvez venda minhas roupas e meu colchão
Talvez trabalhe na pedreira... como carregador...
ou varredor
Talvez procure grãos no esterco
Talvez fique nu e faminto
Mas não me venderei
Ó inimigo do sol
E até a última pulsação de minhas veias
Resistirei (...).”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.
117
Identidade
Ou a refrescante água
que sacia a sede
do camelo e do peregrino
O cheiro forte
do café arábica em Ramallah,
os poéticos versos do Alcorão em Jerusalém,
118
a confluência de estrelas sob a noite de
Haram al-Sharif,
o sabor do chá ricamente adocicado da Cisjordânia.
O kufiyyah na cabeça,
o cominho, o za’atar, a hortelã,
o gergelim, a pimenta.
Em cada gota
do azeite da velha oliveira,
o doce figo,
a suculenta laranja,
a amada uva,
em cada nota do antigo alaúde,
em cada batida do vigoroso derbake,
pulsa meu coração árabe
minha identidade palestina.
E a cristalina certeza
de que isso nunca se apagará.
119
“Se eu morrer no meu leito,
Coloquem-me nu sobre a terra,
Numa colina do meu país,
E que o esquecimento me liberte;
Ou então lembrem-se de mim,
Nas suas festas mais bonitas.”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.
120
Intifada
Se as pedras falassem
Diriam:
“Nas mãos palestinas
Somos justiça!”
As oliveiras
Se as oliveiras falassem
Diriam:
“Resistiremos a mais esse invasor,
frutos
Continuaremos a dar”.
121
Seu Deus
Seus muros
Seu travesseiro
122
Um povo que luta
123
Nakba,
A grande catástrofe planejada de 1948
124
125
Movimentos e lideranças palestinas
de resistência à colonização
Leila Khaled
127
Yasser Arafat - George Habash - Nayef Hawatmeh
134
135
136
137
Todos na luta contra a colonização
138
139
140
141
142
Arte e luta
143
Marwan Barghouti
Leila Khaled
Handala
144
Cenas da luta
palestina
(Poemas – cenas)
145
“(...) enquanto me reste alento
gritarei de frente ao inimigo
gritarei, declaração de guerra
em nome de homens livres
operários, estudantes, poetas
gritarei... e que os parasitas
e os inimigos do sol
se fartem do pão da vergonha
enquanto me reste alento
e alento me restará
minha palavra será o pão e a alma
entre as mãos dos guerrilheiros.”
Samih Al Qasim (1939 - 2014), poeta palestino.
146
Bombas em Gaza
Conhecia ambos
Pessoas comuns
Que como todos
Só querem ser felizes.
Ela,
Fádia,
27 anos,
filha de Mohammed Hassan Abu Shalbak
(velho pedreiro),
Professora de história,
Da nossa pequena escola.
Ele,
Ahmed,
30 anos,
arquiteto,
147
com a UNRWA
trabalhava.
Ao que parecia,
era mais um dia
Um beijo de até-logo
rápido entre olhares
apenas isso.
Correu
Para o hospital
Ao saber
Muitos Cadáveres
Sangue para todos os lados
Faces angustiadas
Medo
Gritos agudos
Penetrantes de dor
De feridos,
Familiares.
148
Mesma confusão de sempre
Procura-a
Chama-a
Grita em vão seu nome
– Fádia!
Som se perde
Entre tantos outros
Chamados.
Macas amontoadas
com mortos,
alguns cobertos
outros não,
para tantos corpos
faltam lençóis no hospital.
Parado,
confuso,
149
perplexo,
ao lado dele, Ahmed,
o cadáver dela, Fádia.
Não há lágrimas
nem gritos de desespero
como você poderia pensar.
Não a reconhece!
Mutilada,
retalhada,
sem suas feições humanas,
desfigurada...
Não a reconhece!
Parado,
confuso,
perplexo,
pobre Ahmed!
Mesmo ao lado dela,
não é capaz de chorar.
150
“Finalmente! Aqui estou eu atravessando com
minha maleta a ponte, que nada mais é que alguns
metros de madeira e 30 anos de exílio. Como
pode esse pedaço escuro de madeira distanciar
uma comunidade inteira de seus sonhos? Como
pode proibir gerações inteiras de tomarem café em
casas que eram delas?
Como conseguiu nos lançar em tamanha
paciência e em toda essa morte?”
Mourid Barghouti (1944-), poeta palestino.
151
O símbolo que assombra
O pequeno
Abdu Malik Qadir Hejazi
era apenas uma criança
na Cisjordânia,
numa pequena vila
perto de Jenin.
Naquela idade,
Em que se pergunta,
Tudo.
Queria saber
Uma coleção de porquês:
Por que o céu é azul e não de outra cor?
Por que as nuvens não caem do céu?
Por que o ovo endurece quando fervido
E a batata amolece?
Finalmente,
a pergunta de seu imaginário
que não queria calar
Por que a lagarta quando dormia
Enrolada no casulo,
Ganhava asas, e ele não,
Por mais que se enrolasse
Nas cobertas para dormir?
152
Adorava correr
Pelas ruas e ruelas
Da vila.
Encontrava-se
Com os amiguinhos
Farid, Hamid, Munir, Omã, Said, Hussein,
Bassam, Adnan,
Para borboletas caçar,
Como tinha visto nas gravuras de um livro infantil.
Sua mãe,
Shadia Taufik Farahat Hejazi,
seu pai,
Malik Khalil Qadir Hejazi,
e qualquer adulto
o levavam para dentro
de casa.
Ao olhar as notícias
Na TV
Via sempre cenas de guerra
E aquele símbolo estranho
Também ficava triste,
154
aborrecido,
pois em casa todos ficavam.
Dormia como
Um urso na caverna
Nada o acordava
Na mochila,
Sua cena de paixão
Borboletas e um caçador ,
como ele próprio.
Quando entrou
Na sala
Sentou junto deles
Escutou novamente os fogos de artifício
... Mas desta vez
muito alto,
quase ensurdecedores.
Viu
a professora amedrontada
por soarem tão perto
Mandou que se deitassem no chão.
De repente,
ouviu explosões
poeira, gritos.
Naquela noite
não dormiu como urso
na caverna
Teve medo do escuro
como nunca tivera.
157
Quando
Dias depois
sua mãe o convenceu
à escola voltar.
Ao chegar
mudou de ideia
lá não mais queria ficar.
Aceitou somente
Quando a mãe disse que ficaria
No fundo da sala o tempo todo.
A professora pediu
Para que todos
Desenhassem
O que mais tinham medo.
Abdu não
Demorou a esboçar sua obra
Aquele símbolo
Que tanto o assombrara
Na televisão que entristecia a todos,
Espantava as borboletas com tanques,
Gritava
Batia
Apontava armas
E matava pessoas
Como no uniforme
daqueles soldados.
158
Entre desenhos
De monstros das outras crianças
Frutos da imaginação
A professora escolheu
O dele
Mostrou-o à mãe.
Pequeno palestino,
já havia visto o suficiente
para saber
quanta crueldade e malvadeza
aquela estrela carrega.
159
“(...) Assassinaram minhas alegrias,
Sequestraram minhas esperanças,
Algemaram meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles... mataram um terrorista!”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
160
Com toda a pólvora
Olhou o horizonte
nublado
nada viu.
Lembrou
que ao sul da Faixa de Gaza
não era só no inverno
que as coisas eram assim.
Caminhou perdido
pelas ruas
que tanto conhecia.
Cada calçada
cada ruela lhe lembrava
histórias de outras gerações
mortas
em Khan Younis –
a dolorosa limpeza étnica de 1956.
161
Em cada esquina
encruzilhada
uma pausa fazia.
Suspirava profundamente
Recordava
Todos os seus mortos
Alguns parentes
Outros vizinhos
Muitos amigos e conhecidos.
Listou a giz
Num imenso muro de tristeza
seus nomes e sobrenomes.
Lembrou-se de um tempo
em que sonhara estudar
bombardearam
a escola
demoliram a universidade.
Depois
recordou o tempo
em que quisera trabalhar
Procurou... procurou
mas não encontrou emprego.
Queria namorar
Mas sempre
As fronteiras
Estavam fechadas
Havia quase diariamente
Toques de recolher.
Pensou em abandonar
Tudo
Fugir dali
Mais de uma centena de vezes.
Seria possível
Reconstruir-se
Em outro lugar? – Pensou.
Havia também
se rebelado
com outros jovens.
Carregavam milhões
de razões
todas semelhantes
numa revolta das pedras.
Não conseguiram
Vencer os tanques
Inimigo bem armado
Fuzil
Cinema
Televisão
Editora
Banco...
Voltou a atacar como de costume
Diariamente aos poucos.
164
Sentiu-se impotente
Fraco
Gritou ao vento
Chorou, chorou, chorou,
Lágrimas carregadas
De desespero.
Rezou
Procurou conforto
Na ideia de um Deus
Todo poderoso
Justo –
Tudo momentâneo.
Naquela noite
Decidiu
Tirar a própria vida
desesperançado
aflito
descrente
desolado
Sem presente
Pior... sem futuro.
165
“Todos chegam,
todos exceto os meus passos
em direção ao meu próprio país...”
Mourid Barghouti (1944-), poeta palestino.
166
Pedras que carregam saudades
Gostava de ouvir
Histórias de meu velho
Avô.
Costumava
Fazer um ritual
Sempre
Rezava
A última oração do dia
Com todos
Os homens da família.
Sentávamos
Todos ao chão da sala
167
Ao redor de uma antiga estufa
Era inverno na Palestina.
Chá forte
Adocicado
Sementes salgadas
Pistache
Serviam como
Combustíveis
Para aquelas noites.
Naquela noite
Lembrou-se da história
De seu querido
Tio Abdel Nasir Anwar El- Najeel,
“gigante dócil”
como era conhecido,
Lembrou que quando
Chegaram aqui em
Deir Al Balah
Eram apenas refugiados
Vivendo sob tendas improvisadas.
Fugindo de orlas
168
De mercenários
Assassinos perversos
Que usando tochas à noite
Invadiam casas
espalhavam terror
matando pessoas indefesas
nas pacatas aldeias palestinas.
Rapidamente a cidade
Adquiriu
Contornos de
Um campo de refugiados
Miserável
Onde tudo faltava.
Nessa época
Meu avô era apenas
Criança.
Queriam trazer
Comida:
Ovelhas, galinhas, figos, uvas,
Diante da fome que se alastrava
No campo de refugiados.
Arriscavam-se
A serem capturadas
Assassinadas
Pelas rondas do exército sionista
Grupos paramilitares
Ou por mercenários pagos
Pelos Kibutzim.
Ao falar
daqueles tempos
minuciosamente
o efeito sobre todos
era entristecedor
170
Era como se soubéssemos
que há muito
aqui sofremos.
Recordou
Seu querido tio Abdel
Era diferente.
Então
Um silêncio
Proposital
Ficava no ar
Todos esperavam
Que meu avô dissesse o que
Seu velho tio
Fazia então
Em todas aquelas
Arriscadas noites que rumava
À velha Palestina roubada.
172
Meu avô
Era um mestre
Árabe das histórias orais
Contava-as
deixando todos atentos e
Desejosos para
Saber como terminariam
Como nas Mil e Uma Noites.
Então
Olhou para todos
Sentados a sua volta
Nos olhos de cada um de nós
Disse em voz baixa:
Abdel
Voltava naquelas
Noites até sua antiga casa
Ficava horas a contemplá-la
Queria somente matar
A saudade que o atormentava
Recordar as ternas lembranças
Que ali viveu.
173
No dia seguinte
Ao amanhecer
Levou-me
Ao quintal
Da casa
(Ainda me lembro do rosto de meu avô
Tahir Adib Ibrahim El- Najeel
Cada ruga de seus 74 anos).
Naquele dia
Conservava as feições da noite passada
Misto de lágrimas nos olhos
Sorriso largo
Mostrou-me um canto
Debaixo da velha oliveira
Cheio de pequeninas pedras
Amontoadas.
174
“(...) Tínhamos, atrás das grades
Um limoeiro.
Nosso.
Para fazer enfeites com seus galhos
E perfume das suas flores
O cortaram.
Ficamos
Sem o nosso limoeiro.
Nossos olhos
Nunca mais viram a primavera.”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
175
Chave da nossa existência
Saí de Salfit
Para estudar na Síria
Decidi visitar
Aquele campo
De refugiados
Em Beirute.
Procurava
Parte da família
De minha mãe
Camponeses
Da Cisjordânia.
O campo é cercado
Convívio fora dele
É restrito ao trabalho
Estudo
De alguns
Saídas esporádicas de outros.
176
Encontro os mais velhos
Sentados tomando chá
Jogando gamão
Mascando sementes
Era o que queria.
A melhor fonte de informação
Pra quem procura alguém do passado.
Contaram
Que foram embora
Após a carnificina genocida
De Sabra e Chatila.
Recordam
Daquele dia
Lembram-se dos nomes
Sobrenomes
Traços físicos
Famílias inteiras assassinadas.
Lembram
Dos corpos
Empilhados como os de animais em um abatedouro
177
Nas pequenas ruelas.
Lembram
Do tormento
Das mulheres gritando
Ao encontrarem seus filhos,
Maridos e outros familiares mortos.
Enquanto mantinham
Cercado
O campo inteiro
Para que ninguém conseguisse fugir
Daquela arena montada
Para a morte.
Por fim
Revelaram que entre
Os assassinados
Estava um dos filhos de minha tia.
Quem viveu
178
Aqueles dias
Nunca mais foi o mesmo
Plantaram ódio
Em seus corações.
Apresentei-me
Explico minuciosamente a
Procura por minha tia
Irmã mais velha de minha mãe.
Fui recebido
Com abraços
Beijos
Disseram-me que ela
Estava na sala.
Ao ser apresentada
À velha
Pude ver semelhança
Físicas com minha mãe
Pelas fotos antigas da família
Também
Com minha avó materna
Que não conheci.
Ficamos
Noite adentro
Conversando
Botando em dia
Notícias de décadas perdidas.
Contou-me que
o marido
(Awad Mohammed)
segundo os médicos
falecera de infarto,
mas para ela fora de
tristeza pela morte do filho
dois anos depois de Sabra e Chatila.
Contou-me
tudo sobre cada membro da família
com quem casou
quantos filhos
teve...
Mesmo invadindo
noite adentro
parecia mais ativa
como se cada recordação
lhe revigorasse as forças para continuar
Sua saga.
Velha mulher,
recordava-se com minúcias ainda
da casa
que tivera que abandonar aos prantos
na antiga aldeia de Al Birweh
a mesma do grande poeta palestino.
181
Era capaz ainda
de recordar
Com certa familiaridade
Alguns nomes
De vizinhos
Conhecidos
Daquele tempo
Longínquo.
Lembrou-se de todas
As desgraças
Pequenas vitórias
Que teve ao longo da vida
Mas sempre voltava
A falar da antiga
Amada casa
Vila
Que deixara na Palestina.
Às vezes,
Parava subitamente para perguntar sobre
Algum nome do passado
Que lhe vinha à mente
Repentinamente.
182
Lembrava-me
constantemente
que dos 99 nomes conhecidos
que Deus tem no Islã
um deles é
o Justiceiro.
Para que
ele fizesse justiça rezava
por ela e pela Palestina.
Amaldiçoava aqueles
judeus que vieram de longe
Daquela Europa em chamas
“Trouxeram crueldade nas bagagens” dizia-me
Fizeram tanto mal
Às pessoas boas que
Ela tão bem conhecia
a ela própria.
Quando voltou
entre as mãos
envelhecidas
183
calejadas
pelos anos de trabalho
trouxe um pano dobrado
de veludo vermelho.
Desenrolou-o
Na minha frente
Cuidadosamente
Como se ali
Estivesse
Objeto de valor inestimável
Ao mesmo tempo delicado e frágil.
Era uma
Antiga chave enferrujada
Disse-me com olhos serenos:
-“É da porta da frente
De minha casa”.
Fui embora
No dia seguinte
Não contei a ela
Que sua antiga casa
Nem a antiga vila
Já não existiam mais.
185
“(...) Se tivermos sede
Espremeremos as rochas.
Se tivermos fome
Comeremos a terra,
Mas nunca partiremos.
O nosso sangue é puro
Mas não o pouparemos.
Aqui temos o nosso passado
O nosso presente
E o nosso futuro.
O nosso futuro está atrás de nós.”
Tawfiq Zayyad (1929–1994), poeta palestino.
186
Nas mãos de Deus
Acreditava
No profeta
Principalmente em Deus.
Viu famílias
Inteiras
Cair no exílio
No esquecimento.
187
Viu a morte de
Crianças, jovens,
Adultos, velhos,
Mulheres e homens
Próximos ou distantes.
Viu parentes
sumirem
para nunca mais
voltarem.
Foi a todos
Os enterros da
Velha Gaza
De tantos Fedayns
Inclusive de seu próprio marido.
Orgulhava-se
Como todos os seus
Ancestrais de ter
188
Uma prole grande.
Viu um a um
De seus filhos morrerem
Alguns porque não resignados
lutaram.
Orgulhava-se disso
quase como um bom consolo.
Outros
por
falta de medicamentos,
189
hospitais e médicos
fruto dos eternos bloqueios
a Gaza.
Outros
por profunda tristeza.
Chorou em todos
os enterros
Em todas
as despedias fúnebres
rezou
por justiça
e mais de uma vez,
como de costume,
tudo deixou
nas mãos de Deus.
Cansada
Humilhada
Roubada
Envelhecida
Aos sessenta anos.
Insultaram-na
Quebraram
190
As mobílias da casa
Arremessaram
Seus pertences à rua
Trataram-na com ultraje.
Ao chegar
ao posto de comando
imensa explosão
cobriu o ar.
Havia feito
justiça
com as próprias mãos.
Cansara de esperar
Pelas de Deus.
191
“Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar.
Voltar para aprender, diante da perna amputada
de Nadia, o que vale a vida, nossa vida.”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino,
em “Visão de Gaza”.
192
As dores do novo
Saiu de casa
Sem olhar para trás.
Admirava a história
de tantos lutadores
dos tantos mártires
que em épocas diferentes
dignamente haviam sabido
resistir ao colonizador europeu.
Sentia-se mal,
por vezes,
por não ter tido
como outros
essa capacidade
de resistir.
193
Atravessou a fronteira
Chegou à Jordânia,
mas não achou
que tão perto da Palestina
conseguiria
dizer-se “jordaniano”
como os medíocres
costumam fazer.
Decidiu ir
Mais longe
Buscar uma nova terra
Quem sabe
a vida recomeçar.
Chegou à Europa
À fabulosa França
Que lera nos livros
de história
De tantas revoluções.
Contudo
Os noticiários
Lembravam-no
Constantemente
Da Palestina invadida
e saqueada
De praxe
Teciam
Mentiras sobre tudo.
194
Aquilo aos poucos o matava.
Repórteres falavam
Sobre palestinos
Todos bem acomodados em Yaffa
Com suas fontes oficiais sempre muito “confiáveis”
Fontes sionistas.
Nessas televisões
todo o colonizador judeu morto
tinha nome, sobrenome, idade,
um rosto,
família, amigos e colegas de trabalho.
Era sempre linda sua história
Comovente
Digna de enredo
de novela ou romance
que a todos toca.
Já os “outros”
sempre eram vilões.
Palestinos mortos
Aqueles quarenta para cada sionista
Cento e cinquenta feridos
Destes trinta permanentemente inválidos
Apareciam todos como números apenas
“Baixas necessárias para autodefesa
de Israel” – diziam.
195
Ora contados pela ONU como quarenta
Ora trinta e quatro
Ora Israel nega autoria
Meses depois assumia ou não
as mortes.
Todos
Sem rostos, sem famílias,
sem histórias
Sem novelas e romances
Desumanizados pela indiferença.
Assim
Não conseguia
Deixar de encontrá-la
Ali ou
Acolá.
Ouviu centenas de
Tolices
Que até então acreditava inimagináveis
De serem ditas
Sobre a Palestina
De quem sempre se achava
196
Detentor das soluções
Simples.
Contudo
Ouviu calado
Não respondeu nada.
Viu completa
insensibilidade
Ao sofrimento
Dela.
Os suicídios de jovens
Eram vistos
Apenas como ações de ódio
Nunca ninguém perguntava de onde surgira
E o mais importante
O que alimentava constantemente esse ódio.
Também não
Ouvira
Que todas as diferentes
198
Formas de investidas armadas
Palestinas
Não representavam nenhuma
Ameaça à superioridade militar de Israel
financiada pelo Ocidente.
Cansado
Olhou certa noite
Para o espelho
Havia fugido
Tanto do passado
Da dor
Do que era
E de onde veio.
Entendera naquele
exato momento
que, como todo o seu povo,
ele também era um filho da dor.
Dor
do desterro
dor
do exílio
199
dor
da constante invasão
enfim
da colossal dor da colonização.
Recordou
Da antiga casa onde nascera
De sua mãe
Imaginou por um instante
as terríveis dores do parto.
Tantas dores
E pensou
“Algo novo está para nascer”.
Sorriu sozinho
Imaginou que as dores de seu povo
São do parto
De uma nova e linda
Palestina livre
sem Israel.
200
“Crianças que haviam bebido o leite da derrota
e que se haviam acostumado à vida errante; ao
ponto de uma vida sedentária, tranquila, parecer-
lhes uma espécie de anomalia social.”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino,
em “Visão de Gaza”.
201
Entre nós
Gostava de brincar
Corria de um lado
para o outro
com amigos
pelo bairro inteiro
nominado pela ONU
como bloco O.
Imaginava-se
super-herói
Achava, às vezes,
que tinha superpoderes.
202
O real e o imaginário
mesclavam-se
nas brincadeiras
desse pequeno garoto
de alma valente.
Erguia um tijolo
Do chão
Imaginando-se
Todo forte
Erguendo uma casa
Ou mesmo
Um prédio inteiro.
Olhando para
pequena aranha
imaginava-se
numa luta terrível
como se um gigantesco monstro fora
de longas patas
que cobria o céu
por onde passava.
Mesmo na escola
não deixava de fantasiar
seus mágicos
poderes
Quando demonstrava
como acionava
esse imenso poder
colocando os dedos indicadores
em cada têmpora
cerrava os olhos com força
o professor fazia ares de crédulo
o que o empolgava ainda mais.
Bastava isso
Não haveria mais
Extermínios em massa e destruição
Na Palestina.
Os mais velhos
Achavam graça
Das fantasias de Yunes.
Na segunda Intifada
mísseis e explosões
destruíam casas
quarteirões inteiros.
Naquele fatídico dia
corriam crianças e mulheres
para se salvar.
À procura de proteção
Assustadas com impacto das explosões
Mas Yunes
Correu na direção oposta.
Como um herói
De desenhos em quadrinhos
Que não foge
Ao seu dever.
Num ato
de permanente bravura
após salvar as duas crianças
retornou
para nunca mais voltar.
Ainda penso...
Por que não fugiu para se salvar
como os outros fizeram?
Por que se arriscar
Por quem sequer conhecia?
Por que voltou?
207
Não sei
As respostas com certeza
Talvez o pequeno Yunes
Soubesse que no fundo
Não tinha superpoderes... Não para tanto.
Gosto de pensar
Que naquele dia
Ele descobriu
Que nós que resistimos
Só temos uns aos outros
E que esse é nosso verdadeiro poder.
208
“A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no
último desfiladeiro
E nós nos despimos dos membros
Para passar (...).”
Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino.
209
Os que não se curvam nem se quebram
Procurava
Decifrar suas próprias
Inscrições na parede
Da velha cela.
Dezenas de pequenos
Riscos verticais
Cuidadosamente simétricos.
Como sempre
Fora animal
De hábitos
Dormia às 22 horas
Acordava pontualmente
Às 6 horas.
210
Contudo
Num lugar como aquele
O tempo passava
Diferente.
Já não sabia se
Podia ou não
Confiar em seu relógio interno.
Assim
Lembrou
Da juventude em
Qalqilya
Pequena cidade
Já atormentada pela presença
Contínua de invasores europeus.
Hoje
Cercada pelo Muro da Vergonha
Que a faz um novo gueto.
Lembrou
A época que aderiu
A OLP
Era tão jovem
211
Cheio de
Disposição para lutar.
Voltava
Prisão
Paredes, tetos,
Eternas luzes acesas
Não lhe davam
Nenhuma indicação
Do tempo.
Aquele silêncio
Isolava-o do mundo
Deixava claro o total
Controle sobre prisioneiro
Nem o tempo
Simples noite e dia
Pertencia-lhe mais.
212
Não entendia o porquê
Era-lhe imposto
Aquele regime.
Não fizera
parte da resistência armada
Nunca gostou de armas
“Não me dou bem com elas” – dizia.
Foi conduzido
Ao enorme pátio aberto
Daquela horrível prisão conhecida como
Estabelecimento 1391.
Guantánamo de Israel
Sem Convenção de Genebra
Sem inspeções da ONU.
Perguntou
Que dia era aquele
Assustou-se quando
Soube.
Fazia mais de um
Ano e meio
Que estava preso
Completo silêncio.
Não enlouqueceu
Porque era
214
Acostumado a se esconder
Na resistência política
Passar longos intervalos de tempo
Sozinho.
Decidira
Amarga opção de não ter filhos
Mesmo amando crianças
Tinha medo do que
Poderiam fazer a eles por sua
Posição política.
Muitas vezes
Ficava só
Por semanas inteiras.
Então
Arriscando-se a não ser trocado
Não conseguia segurar
A curiosidade
Dirigiu-se ao diretor
Da prisão.
O diretor
Suíço judeu
Pequeno
De sorriso amarelo
Burocrático.
Respondeu
Confiante de si
O que assusta Israel não são
As bombas e armas
Mas pessoas que sempre resistem
De diferentes formas
Ensinam pelo exemplo
Os outros
216
A fazerem o mesmo.
Riu
Com um sorriso largo
Verdadeiro
Respondeu:
-“Desde 1948 nunca existiu nenhum
Palestino que se
Curvasse ou quebrasse
Muito menos ao meio”.
217
“(...) Eu tinha nove anos. Acabara de ver,
quatro horas antes, a chegada dos judeus a
Ramallah. Parado no meio do asfalto cinzento,
notei como revistaram as pessoas à procura de
joias, que eram arrancadas brutalmente. Havia
algumas mulheres soldados que agiam como os
homens, mas com maior agressividade e convicção.
Minha mãe me olhava,
chorando em silêncio (...).”
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino
em “Visão de Ramallah”.
218
A casa
Há tempo
Desejava
Sair da casa dos pais
Em Al Birah.
Naquele dia
Decidira enfim
Ser um homem.
Se dependesse
De sua mãe Khadija
Não sairia nunca de casa
Para seu pai
Já era hora.
Quando chegou
aos vinte e seis anos
Habib Ibn Jamal Barghouti
219
disse as palavras que
Caíram como
Punhaladas no peito
De sua mãe
– “Vou embora”.
Seu pai
Hajj Jamal khader Jarad Barghouti
aconselhava
o caminho da retidão
Ser sempre correto
Lembrava que devia rezar
ir à mesquita
toda sexta-feira
jejuar no
mês do Ramadã.
Trabalhou no comércio
Vendeu
Comprou
Juntou dinheiro que precisava
Para sua primeira casa.
Acreditou
Que a casa era o primeiro grande
220
Passo de sua independência.
Aos poucos
com a ajuda de amigos e parentes
conseguiu erguer outra.
Mais simples
Menor
Suficiente para acomodar seus amigos
Familiares
Para noites de sincera conversa.
Invadiram-na
Semanas depois
Fizeram dela posto de controle
Expulsaram-no dali.
Foi viver
Com parentes
Próximos.
Não se abalou.
Tocava a vida
Sempre
Às vezes para um lado
Às vezes pro outro
Quando podia
Pra frente.
Quando podia
Juntava-se a algum protesto
Contra a invasão sionista
Jogava pedras nos tanques.
Chorou quando
Mandela saiu
Da prisão
Torceu pelos
Índios e camponeses
De Chiapas
Emocionava-se ao falar
Da coragem do povo vietnamita
Em sua luta de libertação.
Quando tinha
Convidava todos
Os que não tinham
Para acompanhá-lo.
223
Importante era viver
Todos os
Dias.
Aqui
Aprendera a não
Cultivar nenhum sonho
Mesquinho
Ter vários carros, casas, comer em finos restaurantes...
Descobriu que isso tudo era fútil.
O valor
De um homem
Não era dado pelo que tinha
Sim pelo
Que fazia
De bem no mundo.
Lutar
Resistir
Viver a vida
Em solidariedade
Com seus
Dava-lhe forças sempre.
A casa
Sempre fora as pessoas
De valor
E que essas
Estiveram próximas
Todos os dias de sua vida.
225
Voz que não se
cala
(Homenagem e apresentação
do escritor palestino
Ghassan Kanafani)
226
227
Nota biográfica
228
Ghassan Kanafani nasceu na cidade de Akka, em uma
família de classe média, em 9 de abril de 1936, ano que marcou
o início de uma grande revolução, que durou três anos, contra
o mandato Imperialista britânico e, seu pupilo, a colonização
sionista. Embora fossem muçulmanos, seus pais o enviaram à
Ecole des Frères, uma escola católica, em Yaffa, que lecionava
em língua francesa.
Em 1948, após a proclamação do Estado de Israel, sua
família teve de abandonar a Palestina, inicialmente em direção
ao Líbano. De acordo com Anni Kanafani, esposa de Ghassan,
a família partiu em 9 de abril de 1948, dia do massacre de Deir
Yassin, em que membros de um grupo paramilitar sionista
perpetraram o genocídio de 254 pessoas (idosos, mulheres e
crianças, em sua maioria).
Kanafani completava 12 anos naquele dia. A amarga
experiência foi relatada dez anos mais tarde, em uma mistura de
fantasia e realidade, no conto “A terra das laranjas tristes”.
Depois de permanecer por breve tempo no sul do
Líbano, a família Kanafani partiu para Damasco, onde o escritor,
ainda jovem, começou a trabalhar. Na capital síria, a família
levou uma vida difícil, em um campo de refugiados, onde
seu pai abriu um pequeno escritório de advocacia. As poucas
economias levadas de Akka logo se esgotaram. Ghassan e
seu irmão Ghazi realizaram vários trabalhos informais, para
continuar os estudos e ajudar o pai a sustentar uma família com
sete filhos. Aos 16 anos, Kanafani concluiu o curso secundário e
começou a trabalhar como professor nas escolas das Agências
das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina
(UNRWA - sigla em inglês). Lecionou na Escola Aliança, da
mesma UNRWA, por três anos e se matriculou na Faculdade de
Letras da Universidade de Damasco.
A carreira docente de Kanafani deixou marcas profundas
em sua personalidade, estilo de trabalho e aspirações políticas.
Como um de apenas dois professores em uma escola de 1.200
alunos (o outro era uma professora, Samia Haddad, futura esposa
229
de Wadie Haddad, da Frente Popular de Libertação da Palestina),
ficou sobrecarregado pelo volume de trabalho e pelos problemas
que seus alunos enfrentavam no dia a dia - relacionados a
vestuário, comida, abrigo e doenças, além das dificuldades
acadêmicas e das privações culturais e emocionais. As imagens
e as impressões que acumulou, durante esse período, aparecem
claramente em sua obra.
Em 1954, Kanafani aderiu ao Movimento Nacionalista
Árabe, grupo que recrutava, principalmente, adeptos nos meios
intelectuais e defendiam mudanças nas sociedades árabes.
Posteriormente, o MNA se tornou o núcleo das organizações de
resistência palestinas. A revista semanária “A opinião”, órgão oficial
do MNA, dirigido por Hani Al Hindi e George Habash, tornou-se a
primeira tribuna literária de Kanafani, que escreveu 18 textos em
um ano e meio. Dentre eles destaca-se a coluna “O ser humano
e os princípios”, na qual criticava duramente os políticos árabes.
Sua conscientização política é permanentemente marcada pela
divisão de classes. De um lado, encontram-se os camponeses,
que cultivam a terra palestina, que Kanafani retrata com
desvelo; do outro, os latifundiários, “parasitas”, donos tanto dos
camponeses quanto do campo, na opinião do escritor.
Em 1955, foi expulso da Universidade de Damasco,
acusado de participar de atividades políticas. Mais tarde, ele se
formou na universidade e sua tese foi intitulada “Raça e Religião
na Literatura Sionista”. No mesmo ano, aceitou uma proposta
para lecionar na Cidade do Kuwait (capital kuwaitiana), onde
permaneceu por cinco anos a partir de 1956.
Nesse país, descobriu que tinha diabetes. Necessitava de
um tratamento permanente e acreditava que não viveria muito
tempo. À época, a idéia da morte tornou-se uma obsessão -
agravada pela solidão e frustração com a situação da Palestina.
No Kuwait, reencontrou sua irmã Fayzeh e seu irmão
Ghazi. Graças aos três salários, a família Kanafani, que
permanecera em Damasco, deixou de passar necessidades. Em
1960, Habash o convenceu a deixar o Kuwait, ir para Beirute e se
dedicar à carreira de jornalista. Um ano mais tarde, casou-se com
Anni Hover, professora cujo pai havia desempenhado um papel
importante na resistência dinamarquesa contra os nazistas. Em
230
1963, tornou-se editor-chefe do “O libertador”, o principal jornal
nasserista fora do Egito. Escreveu uma coluna semanal intitulada
“O que está por detrás das notícias” e editou o suplemento
semanal “Palestina”, dirigido aos palestinos que viviam no exílio.
Pouco a pouco, tornou-se um dos mais renomados jornalistas
de Beirute. Como consequência, obteve o passaporte libanês,
o que pôs fim à sua situação de clandestinidade por não ter
documentos oficiais.
Em 1965 e 1966, visitou a China. A principal figura
política dessa época, no mundo árabe, era Gamal Abd-Nasser.
Kanafani não escondia sua admiração pelo líder egípcio e
defendeu, em seus escritos, uma amálgama de nasserismo
(essencialmente, pan-arabismo), socialismo e luta política. O
ano de 1967 foi decisivo para ele e para outros intelectuais
árabes. Uma das consequências imediatas da vitória israelense
naquele ano foi sua mudança de emprego. “O Libertador”
dependia de financiamento egípcio, e o pequeno salário era
insuficiente para manter a família.
Kanafani vinculou-se ao “As luzes”, outro jornal de Beirute,
de tendência nasserista, até 1969, quando se tornou editor
chefe de “O objetivo”, jornal semanal que expressava a opinião
da Frente Popular de Libertação da Palestina. (FPLP). Pouco
depois, Kanafani tornou-se o porta-voz oficial da FPLP até seu
assassinato, em 8 de julho de 1972, num atentado. Uma bomba
foi colocada por terroristas oficiais de Israel debaixo de seu carro,
estacionado diante de um edifício em um bairro de Beirute
próximo à estrada para Damasco. Ao ligar o motor, Kanafani
recebeu o impacto e morreu. A outra vítima foi uma sobrinha de
17 anos que o acompanhava.
A esposa
232
Nunca vou saber se era eu quem havia sido atraído em
sua direção, respondendo a um apelo irresistível que vinha dos
olhos dele ou se foi ele quem veio a mim. Colocou a forte mão
sobre meu ombro e perguntou:
– Você a viu?
– Quem?
– A esposa.
233
falando disso até mesmo com gente que mal acabo de conhecer.
Preciso confessar, Riad, que até acabei indo mais longe.
Uma noite pensei: se esse homem pegou o costume,
durante dez anos, de interrogar as pessoas sobre a “esposa”,
como ele fez comigo, com certeza elas acabam sentindo o que
eu senti, um dia, a caminhar pelas ruas. Meus olhos se fixaram
nos de um sujeito que passava, um desconhecido. Antes mesmo
que eu refletisse um pouco sobre o que fazia, parei o homem.
Pus a mão sobre seu ombro e perguntei:
– Você viu a esposa?
Pode me chamar de louco. Mas isso foi exatamente o
que fiz. Ajudou-me a compreender mais coisas sobre aquele
homem e a “esposa” perdida. O pior é que agora não consigo
mais me livrar dessa vontade de parar as pessoas na rua e fazer a
mesma pergunta sobre a “esposa”.
Mas a coisa está feia. Agora preciso voltar ao ponto de
partida, a esse homem envolvido por sua poeira luminosa e cu-
jos olhos, lábios, sua mão pesada, me colocaram pela primeira
vez diante da estranha interrogação. Preciso rever esse homem,
Riad, porque consegui algumas informações sobre a “esposa”.
Riad, ele é da aldeia Shaab. Sua história começa, acho
num dia de junho de 1948. A guerra fazia o sangue correr após
seis meses de luta. Não sei todo o seu nome, mas sei que se en-
tregou ao combate como poucos. Esteve por todo lado: na van-
guarda, na retaguarda, no socorro aos feridos. Para seu trabalho,
ele precisava saber os horários das operações com pelo menos
duas horas de antecedência, o tempo necessário para fazer a
entrega do armamento. Todos os respeitavam pelo papel que
cumpria. Era tão escrupuloso que chegava ao ponto de, antes
de cada operação, encarregar um companheiro de entregar a
arma ao seu proprietário, caso caísse durante a luta. Era meticu-
loso, acertando detalhes como o funcionário de um banco res-
peitável, ainda que nunca houvesse visto um banco, respeitável
ou não. Por seis meses, não teve problemas. Nem chegou a ser
necessário que tivesse sua própria arma.
Não sei por que ele teve a ideia, num dia de junho, de se
apoderar de uma arma. Era até uma boa ideia, pois os combates
234
mais sérios se concentravam, na época, justamente naque-
la região da Cisjordânia. O inimigo havia atirado suas principais
forças nessa batalha e as levas de emigrantes começavam a
crescer dia a dia, cruzando as colinas rumo ao norte.
Ele não demorou muito para se decidir. Antes do fim da
primeira semana de junho já tinha resolvido. Durante um com-
bate cujo nome esqueci, passou a arma a um companheiro e
começou a rastejar sob as nuvens de fogo, em direção ao lado
inimigo. Ele sabia que muitos soldados deles haviam sido mortos
sobre as linhas avançadas. Se esperasse o fim dos confrontos,
poderia perder a chance, pois o inimigo levava de volta os solda-
dos mortos e suas armas, puxando-os com cordas.
Conseguiu chegar às trincheiras calcinadas. Uma espe-
ssa escuridão o envolvia. Deixou-se cair numa das trincheiras e
arrancou com os dentes o fuzil de um soldado morto, examina-
do a arma à luz das explosões. A seguir, voltou para junto dos
companheiros.
A novidade logo se espalhou pelas aldeias da região, não
porque fosse a primeira vez que isso acontecia, mas porque o tal
fuzil era de um tipo desconhecido ali.
Não quero esticar muito a história. Depois, ele foi
chamado à chefia local, instalada numa aldeia próxima. O ofi-
cial já estava sabendo do famoso fuzil. Quando o teve em suas
mãos, arregalou os olhos:
– Mas é fuzil tcheco!
Os outros se aproximaram para ver de perto a nova
arma. O aço brilhava a luz da lanterna. Tinha uma coronha escu-
ra, marrom, e uma coreia amarela, nova, feita por mãos cuidado-
sas. Seu tambor, sobre o gatilho, parecia uma coroa.
Uma voz se ouviu no outro lado da sala:
– Então podemos concluir que eles receberam um novo
carregamento de armas dos países do Leste. Precisamos passar
a informação ao quartel general.
O oficial aprovou, balançando a cabeça:
– Eu mesmo vou levar este fuzil ao quartel-general.
Deixo que você imagine Riad, o que aconteceu então.
235
Nosso amigo se agarrou ao fuzil, mas, como você sabe, ordens
são ordens. Ele lhes disse:
– Mas será que não vão acreditar se vocês derem as in-
formações sem mostrar o fuzil? Além disso, podem ganhar tem-
po… Eu mesmo posso, se quiserem, levar o fuzil…
Todos seus apelos deram em nada. O oficial tentou
tranquilizá-lo: jurou que iria devolver o fuzil dois dias depois,
com carga nova.
Os dois dias se passaram. Depois, uma semana inteira
daquele mês em que cada minuto contava, em que as pessoas
morriam, as aldeias eram arrasadas, os campos ardiam. Nosso
amigo ia de chefia local para casa e voltava de casa para a che-
fia. Diziam-lhes: “Espere um pouco…”; depois: “Volte amanhã…”.
Mas os acontecimentos daquele mês decisivo, como você deve
lembrar bem, não esperaram. E dois desses acontecimentos de-
sabaram sobre ele, de repente, num mesmo dia. Uma manha,
ele descobriu que o oficial acabara de transferir a chefia local
para o norte, para um lugar desconhecido de todos. Mais tarde
a aldeia de Shaab sofreu o primeiro ataque inimigo: os mortei-
ros atingiram as casas de barro seco e queimaram os olivais num
abrir e fechar de olhos.
Quem poderia emprestar a nosso amigo um fuzil no meio
de uma tempestade assim? De nada vale um fuzil, nessas horas,
para permitir a um homem romper as barragens de fogo e achar
abrigo seguro ou mesmo uma morte honrosa. Fazer o quê, em
meio aquele mar de chamas? Esperar a loucura? Não lhe passava
pela cabeça fugir, e a loucura não poderia lhe dar mais do que ele
já tinha em sua vida normal. Restava-lhe a morte. Mas a morte não
queria nada de quem havia estado sempre nas primeiras linhas de
combate, lutando com suas armas emprestadas.
Então, ele se sentou onde estava, sobre uma pedra no
meio da praça de sua aldeia. Ficou olhando: as casas queimavam,
os homens morriam, sua família fugia amparada pela noite, em
busca de um refúgio. Quando Shaab foi ocupada, eles aparecer-
am. Vendo-o na praça, sentado, acharam que era um louco. Foi
espancando com as coronhas dos fuzis, expulso para o norte.
Andou dia e noite através do que restava da Cisjordânia,
procurando seu fuzil por onde passava, perguntando a todos os
236
combatentes que encontrava pelo caminho. Era como se escav-
asse os rostos e as coisas em busca do fuzil que havia guardado
por apenas algumas horas e com o qual nunca havia apontado
para coisa nenhuma.
Você sabe o que a aconteceu com a aldeia de Shaab?
Pouca gente sabe, e é preciso você saber par que entenda toda
a história. Nosso amigo foi empurrado pelo calor sufocante até
El Baroua, indo dali até Magd Al Kroum, Al Boana, Dir El Assad,
Kesra, Kafr Samii, sempre atrás de informações sobre seu fuz-
il. Seguia as pegadas, guiado pelas histórias que ouvia e pelos
homens que as contavam. Quando chegou a Tarshiha, teve notí-
cias recentes de Shaab. Os quarenta combatentes da aldeia, que
haviam sobrevivido ao ataque, dirigiam-se ao alto comando do
Exercito de Libertação, no norte. Solicitaram ali o alistamento,
mas quando perceberam que esse exército não pretendia lutar
pela retomada de Shaab, eles o abandonaram e voltaram sozin-
hos. Atacaram as forças que ocupavam a aldeia e conseguiram
libertá-la, após uma batalha que durou a noite inteira.
Pode até parecer incrível para você. Mas foi assim mes-
mo. Os quarenta combatentes voltaram a sua aldeia queimada,
conseguiram libertá-la e perseguiram os soldados inimigos até a
encruzilhada de Damon. Dez deles morreram durante a caçada.
Foi isso que aconteceu, Riad, no coração de uma região
toda cercada pelas forças inimigas. Os trinta homens ficaram
na aldeia destruída, repelindo noite e dia os ataques seguidos.
Enquanto isso, o nosso amigo, em Tarshiha, farejava a trilha de
seu fuzil. E já começava a senti-lo bem próximo, quase ao al-
cance da mão. Aquela altura, ele achava que com mais um dia
encontraria sua arma e voltaria a Shaab.
Mas os acontecimentos nunca esperam. Um dia, o in-
imigo retomou a Shaab. Os homens que a defendiam tiveram
que abandoná-la após terem perdido cinco dos seus. Escond-
eram-se nas colinas próximas, onde as pessoas da região costu-
mavam, até pouco tempo atrás, levar as cabras para pastar.
Nesse dia nosso amigo soube que um novo fuzil tcheco
andava em mãos de um velho numa pequena aldeia ao norte de
Tarshiha. Caminhando sem descanso, chegou ao cair da noite,
arrebentando de tanto andar. Ali, disseram-lhe que os vinte e
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cinco sobreviventes de Shaab haviam deixando as colinas. Ap-
enas com seus fuzis e algumas facas, tinham lutado por toda a
manhã, reconquistando as ruínas. Estavam entrincheirados ali,
depois de terem sofrido mais três baixas.
Nosso amigo ainda acompanhava as notícias de seu fuzil
de porta em porta. Soube então: o velho que o possuía havia
partido pela noite para cruzar as colinas. Talvez quisesse se juntar
aos combatentes que se reuniam ao sul de Tarshiha, esperando
um ataque decisivo do inimigo. Ele, então, sem perder mais um
segundo, voltou a Tarshiha. Ficou sabendo que os homens de
Shaab, que lutavam nas ruínas de sua pequena e isolada aldeia,
o esperavam. Era sua aldeia, mas por ela não havia tido ainda a
chance de disparar uma única bala.
Quando chegou a Tarshiha, teve noticias de Shaab. Os
combatentes, extenuados, haviam sofrido um ataque-surpre-
sa realizado por grande número de soldados do inimigo. Fo-
ram obrigados a abandonar mais uma vez a aldeia, perdendo
sete homens durante a retirada. Desapareceram na colinas,
levando quatro feridos.
Nosso amigo achava que ia ficar louco, correndo de um
lado para outro, dividindo entre as notícias de Shaab e as que
falavam de seu fuzil. Os combatentes que haviam escapado ten-
taram uma nova investida, descendo das colinas somente duas
horas depois de sua retirada. Com um rápido ataque, retomaram
suas posições, conseguindo ainda provocar pesadas perdas en-
tre os homens do inimigo e apoderando-se de uma boa quanti-
dade de armas e munições.
Não sei quem foi que disse a ele em Tarshiha que os
combatentes de Shaab poderiam conseguir-lhe uma arma
como aquela que procurava, mesmo se ele voltasse a sua aldeia
de mãos vazias. Não sei também como foi que ele reagiu a essa
idéia. Nesse mesmo dia, em Tarshiha, ele reconheceu, as costas
de um homem que passava pela praça, seu fuzil.
Como havia feito no dia em que arrancou a arma do sol-
dado morto com seus dentes, ele tentou retomá-la. Mas o fuzil
continuou sobre as costas do outro. Surpreendido pela ousadia
daquele estabanado desconhecido, o homem voltou-se para
enfrentá-lo. Pressentindo a confusão que ia ter lugar, agarrou-se
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com força ao fuzil, usando uma mão livre para proteger-se da
investidas do gigante.
Mas o pobre homem era incapaz até de falar naquele
instante. Fiquei sabendo que chorou, tremendo de febre. Seus
lábios secos murmuravam palavras incompreensíveis.
– É meu fuzil! – conseguiu por fim articular com voz apa-
gada.
Suas mãos estavam agarradas à arma e seus olhos se
fixavam no outro como que esperando uma aprovação. Ouviu
de volta:
– Seu fuzil? Desgraçado! Paguei o preço dele com meu
próprio dinheiro, não faz dois dias…
A pergunta que nosso amigo era incapaz de fazer estava
inscrita em seus próprios olhos. A resposta não demorou:
– Isso mesmo, com meu dinheiro. Comprei, na frente
de cinco testemunhas, de um oficial que ia para o norte. Custou
cem libras…
As mãos relaxaram, mas ainda sem deixarem de tocar
o fuzil. Pareceia estar a ponto de desabar, mas fez um novo es-
forço para dizer:
– Preciso dele para voltar a Shaab…
– Shaab? Os sionistas a ocuparam outra vez, há poucos
dias.
Nosso amigo então largou o fuzil lentamente e recuou
uns dois passos. Um pouco mais tranquilo, o outro perguntou:
– Era seu esse fuzil?
Em resposta, teve apenas o silêncio e um aceno de ca-
beça, que não escondiam o desespero.
- Paguei por ele com o dote de minha única filha. Há
muitos anos eu recusava dar minha filha como esposa àquele
velho estúpido. No fim fui obrigado a aceitar… Quando ele pagou
cem libras. As cem libras com que comprei, um quarto de hora
depois, este fuzil de um oficial.
Essa foi a última vez que o viram em Tarshiha. Seguiu de-
pois para o norte. Com certeza ouviu dizer, antes de atravessar a
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fronteira, que seus dez camaradas sobreviventes de Shaab hav-
iam descido as colinas dois dias mais tarde e que conseguiram
retomar, com armas improvisadas, sua pequena aldeia destruída.
Não sei o nome da moça que foi vendida pelo preço de
um fuzil. Não sei o que foi que o outro homem fez com o fuzil,
nem como foi que acabou a história de Shaab para seus combat-
entes que sumiam como manteiga no fogo.
Nosso amigo sobreviveu como o único dos habitantes
de Shaab? É bem capaz… Eu não sei, para falar a verdade. Mas
talvez seja possível que ele continue a procurar, com seu olhar
estranhamente pesado, seu fuzil perdido, para poder se juntar
aos que o esperavam na aldeia em ruínas.
Por que você não procura esse homem comigo, meu
caro Riad? Eu repito: ele é grande, robusto… Não sei o nome,
mas usa velhas roupas cáqui e parece envolvido por uma fina
poeira fluorescente. Ele fica cara a cara com as pessoas na rua e
pergunta: “Você viu a esposa?”. À primeira vista, a gente só pode
achar que é um louco.
Procure amigo, por onde for possível. Acabei de receber
há pouco algumas novas informações a respeito da esposa…
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Visão de Ramallah
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- É sua filha?
Ele balançou a cabeça, meio inquieto. Seus olhos tinham
um fulgor sombrio. Com toda a simplicidade do mundo, a judia
ergueu sua metralhadora para a cabeça de Fátima. A menina
continuava a olhá-la com os olhos negros cheios de pavor.
Um soldado judeu chegou justamente nesse instante. A
cena havia-lhe chamado a atenção e ele se colocou diante de
mim, impedindo minha visão do que se seguiu. Ouvi três balas
sucessivas zunindo. O que pude ver a seguir foi o rosto de Abou
Othman crispado por um sofrimento atroz. A cabeça de Fátima
pendeu para frente. Grossas gotas de sangue escorriam de seus
cabelos, derramadas sob o sol ardente.
Alguns minutos depois, Abou Othman passou a meu
lado, carregando com seus velhos braços o corpo de Fátima.
Estava calado e olhava apenas para frente, com uma espécie de
calma metálica, assustadora. Ele passou sem me ver. Notei como
suas costas estavam arqueadas enquanto ele avançava entre as
duas filas até a primeira curva. Meu olhar se voltou e se deteve
sobre a mulher, que se tinha jogado ao chão. Vi como ela pôs as
mãos no rosto e explodia em soluços.
Um soldado judeu chegou perto dela e pediu que se
levantasse. Ela não obedeceu. Acho que havia atingido ali o
último grau de desespero.
Dessa vez pude ver claramente, com meus próprios
olhos, o que ocorria. O soldado a empurrou com o pé e ela se
deitou de costas. Tinha a face vermelha. O soldado colocou a
ponta do fuzil sobre seu peito e disparou uma única bala.
A seguir, ele veio em minha direção. Pediu com voz
tranquila que eu levantasse o pé que havia posto no chão sem
perceber. Obedeci e levei duas bofetadas. Ele limpou a mão
manchada com meu sangue em minha camisa. Senti um enorme
cansaço e fiz força para achar minha mãe ao longe, entre as outras
mulheres. Ela tinha os braços erguidos bem acima da cabeça.
Chorava em silêncio. Quando nossos olhares se cruzaram, ela
sorriu suavemente, entre as lágrimas. Uma dor terrível cortava
minha perna, que se dobrava sob meu peso. Tentei devolver
o sorriso triste, como para dizer que as bofetadas não haviam
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doído, que tudo estava bem e que o mais importante era não se
lamentar, ou agir como Abou Othman.
Ele passou outra vez perto de mim. Ao vê-lo, abandonei
meus pensamentos. Voltava para seu lugar sem me olhar. Ao
chegar perto do cadáver de sua mulher, parou. Eu só via seu
corpo de costas, dobrado, as roupas ensopadas de suor. Podia
imaginar seu rosto: vazio, silencioso e molhado pela transpiração.
Ele se abaixou para carregar o corpo. Muitas vezes eu vira sua
mulher sentada diante da loja, esperando que ele acabasse de
almoçar para voltar com a marmita para casa. Ele passou, pela
terceira vez, diante de mim, ofegante, com o suor inundando o
rosto enrugado. Passou por mim, sempre sem me ver, e eu vi
outra vez seu dorso encurvado afastando-se entre as duas filas
de prisioneiros, que agora já não choravam mais.
O silêncio, de repente, envolveu mulheres e velhos. Foi
como se as lembranças de Abou Othman penetrassem pelos
ossos de todos. Lembranças que ele costumava contar a todos
os homens de Ramallah quando conversavam nas cadeiras da
barbearia. Lembranças que agora enchiam todos os peitos e se
infiltravam sorrateiramente nos ossos, para corroê-los como ácido.
Era uma pessoa muito querida. Confiava em tudo e em
todos e, mais ainda, nele mesmo. Começou do nada e, quando
a revolução da Montanha de Fogo o empurrou... para Ramallah,
voltou ao seu ponto de partida.
Recomeçou então a dar duro, sempre útil como uma
planta fecundada pela terra fértil de Ramallah. Conseguira a
estima e a afeição dos habitantes da cidade. Quando começou
a última guerra da Palestina, vendeu tudo o que tinha para
comprar armas, que distribuía entre os parentes, pedindo-lhes
que cumprissem seu dever. A barbearia se transformou em
depósito de armas e munições. Ele nunca pediu nada em troca
desses sacrifícios. Tudo o que desejava era ser enterrado no belo
cemitério da cidade, à sombra das árvores frondosas. Os homens
de Ramallah sabiam que Abou Othman esperava ser enterrado
ali quando chegasse o dia.
Ao meu redor, os rostos cobertos de suor refletiam
o peso das lembranças. Eu olhava para minha mãe, parada ali
com os braços levantados, o corpo ereto como se não sentisse
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qualquer cansaço. Imóvel como uma estátua de chumbo, ela
seguiu Othman com os olhos. Eu virei um pouco a cabeça para
poder ver o “tio”, que agora estava diante de um soldado judeu.
Ele disse alguma coisa e depois apontou para sua barbearia.
Depois foi andando, sozinho, na direção dela. Voltou logo,
trazendo um lençol branco que usou para envolver o corpo de
sua mulher. Retomou então, com ela nos braços, sua marcha
rumo ao cemitério.
Voltei a vê-lo um pouco depois, vindo em nossa direção
com o andar muito pesado, o corpo ainda mais encurvado, os
braços cansados pendurados ao longo do corpo. Aproximou-se
lentamente de mim. Havia envelhecido muito. Seu rosto tinha a
cor de poeira. Ofegava. Sobre seu peito se misturavam traços de
sangue e lama.
Parou e ficou me encarando como se eu fosse um
desconhecido. Ficou um pouco ali, parado no meio da estrada,
sob aquele terrível sol de julho, coberto de poeira, encharcado
de suor, seus lábios rachados e a boca, onde o sangue secava,
entreaberta. Continuou a me olhar por um tempo. Tive a
impressão de ver em seus olhos um mundo de coisas que me
perturbavam sem que eu as pudesse chegar a compreender.
Ele retomou seu caminho, passo a passo, fôlego curto. Quando
chegou ao seu lugar, parou de avançar, virou o rosto para a
estrada e levantou os braços bem alto.
Não foi possível enterrar Abou Othman como ele sempre
havia imaginado. Ele entrou no escritório do comandante judeu
para um interrogatório. Quando colocou os pés lá dentro, todos
ouviram uma pavorosa explosão. O prédio inteiro desabou e o
corpo de Abou Othman desapareceu entre os escombros.
Mais tarde, minha mãe contou, enquanto caminhávamos
pelas montanhas rumo à Jordânia, o que houve. Abou Othman,
ao entrar na barbearia antes de enterrar sua mulher, não havia
retornado somente com o lençol branco.
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Visão de Gaza
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Retirou a colcha branca para me mostrar a perna,
amputada à altura da coxa.
Mustafa, eu nunca mais vou poder esquecer isso.
E não vou poder esquecer a tristeza que a partir de então
marca todos os traços do rosto dela. Deixei o hospital naquele
fim de tarde para sair andando pelos bairros da cidade, com as
mãos crispadas sobre o pacote de maçãs. Com a luz do sol que
caía, as ruas me pareceram lavadas de sangue. Gaza me pareceu
inteiramente diferente da cidade que você e eu conhecemos.
As pedras amontoadas à entrada do bairro de Shagiah davam
a impressão de transmitirem algo que me escapava. A Gaza em
que passamos sete anos de tristeza e frustração não estava mais
ali. Em seu lugar, havia uma espécie de início, de amostra de algo
que viria pela frente. A rua principal, que tomei para voltar para
casa, parecia o primeiro trecho de uma estrada, mais longa do
que aquela que vai até Safad. Gaza toda, e tudo o que havia nela,
estremecia ao redor da perna amputada de Nádia gritava um
apelo que era mais do que um apelo, era o desejo delirante de
dar de volta a Nádia a perna cortada.
Caminhei pelas ruas que o sol ainda banhava.
Fiquei sabendo que Nádia havia perdido a perna ao tentar
proteger os irmãos quando sua casa se incendiou durante
o bombardeio. Ela poderia ter fugido e escapado ilesa. Mas
não fez isso. Você sabe por quê?
Não, Mustafa. Eu não vou mais para Sacramento. Não
lamento isso. Não vou poder ir até o fim dos sonhos que tivemos
juntos desde a infância. É preciso que deixemos crescer este
estranho sentimento, que você certamente teve, com uma
ferida, ao deixar Gaza. Temos de fazer com que ele supere todos
os outros. Procure dentro de você mesmo até encontrar. Mas
acho que você não pode reencontrá-lo a não ser aqui, no meio
das ruínas de nossa tragédia.
Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar. Voltar
para aprender, diante da perna amputada de Nádia, o que vale a
vida, nossa vida.
Volte. Todos nós esperamos por você.
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Sobre o autor
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Yasser Jamil Fayad –
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