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Malcolm-X

POR TODOS OS MEIOS NECESSÁRIOS:


Discursos escolhidos de Malcolm-X

Tradução: Felipe Feitosa Castro


Traduzido a partir de Malcolm-X files, em
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© Malcolm-X, 2020

Editora Terra sem Amos


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Tradução:
Felipe Feitosa Castro

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


M243 Malcolm-X (1925-1965).
Malcolm-X. Por todos os meios necessários:
discursos escolhidos de Malcolm-X. Tradução: Felipe
Feitosa Castro. Editora Terra sem Amos: Brasil, 2020.
44p.
ISBN: 978-65-992222-5-2
1.Movimento negro 2. Revolução 3.Luta de classes.
I.Malcolm-X. II. Título.
CDD: 808.85
SUMÁRIO
Mensagem à Organização de Base....... 05
A Revolução Negra................................. 21
Discurso para Trabalhadores dos Direitos
Civis do Mississippi................................ 29
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 5

Malcom-X, 10 de novembro de 1963

MENSAGEM À ORGANIZAÇÃO
DE BASE

Durante os poucos momentos que temos, queremos ter uma con-


versa informal entre vocês e eu – nós. Queremos conversar com os pés
plantados no chão em uma linguagem que todos possam facilmente
entender. Todos concordamos, hoje, todos os oradores concordaram,
que a América tem um problema muito sério. Não só a América tem
um problema muito sério. O problema da América somos nós. Somos
o problema dela. A única razão pela qual ela tem um problema é que
ela não nos quer aqui. E cada vez que você olha pra si mesmo, seja pre-
to, marrom, vermelho, ou amarelo, o chamado “Crioulo”, você repre-
senta o tipo de pessoa que é o tal problema muito sério para a América
porque você não é quisto por aqui. No momento em que você encarar
isso como fato, então você pode começar a planejar o caminho que vai
te fazer parecer inteligente no lugar de pouco inteligente.
O que vocês e eu precisamos fazer é aprender a esquecer nossas
diferenças. Quando nos juntamos, não nos juntamos como batistas
ou metodistas. Você não vive um inferno por ser batista, e você não
vive um inferno por ser metodista. Você não vive um inferno por ser
metodista ou batista. Você não vive um inferno por ser democrata ou
republicano. Você não vive um inferno por ser maçom ou elk. E com
certeza você não vive um inferno por ser americano; porque se você
fosse americano, não viveria inferno algum. Você vive um inferno por
ser um homem negro. Você vive um inferno, todos nós vivemos um
inferno pela mesma razão.
6 • Por todos os meios necessários

Então todos somos pretos, os assim chamados “crioulos”, cidadão


de segunda classe, ex-escravos. Você não é nada além de um ex-es-
cravo. Você não gosta de ouvir isso. Mas o que você é além disso?
Vocês são ex-escravos. Vocês não vieram aqui no navio de peregrinos,
o Mayflower. Vocês vieram aqui em um navio negreiro – acorrenta-
dos, como um cavalo, ou uma vaca, ou uma galinha. E vocês foram
trazidos para cá pelas pessoas que vieram no Mayflower. Vocês foram
trazidos aqui pelos assim chamados peregrinos, ou os pais fundadores.
Foram eles que trouxeram vocês até aqui.
Temos um inimigo em comum. Temos isso em comum: temos um
opressor em comum, um explorador em comum, e um discriminador
em comum. À medida que percebermos que temos esse inimigo em
comum, então nos uniremos sob aquilo que temos em comum. E o
que mais temos em comum é esse inimigo – o homem branco. Ele é
inimigo de todos nós. Sei que alguns de vocês acham que alguns deles
não são inimigos. O tempo vai dizer.
Em Bandung, creio que em 1954, aconteceu a primeira reunião
conjunta em séculos do povo negro. No momento em que você es-
tudar o que aconteceu na conferência de Bandung, e os resultados
da conferência de Bandung, a coisa toda vai servir de modelo para
que possamos, eu e vocês, resolver nossos problemas. Em Bandung
todas as nações se reuniram. Eram nações pretas da África e da Ásia.
Alguns eram budistas. Alguns deles eram muçulmanos. Alguns deles
eram cristãos. Alguns deles eram confucionistas. Alguns eram ateus.
Apesar das diferenças religiosas, eles se reuniram. Alguns eram comu-
nistas; alguns eram socialistas; alguns eram capitalistas. Apesar de suas
diferenças econômicas e políticas, eles se reuniram. Todos eles eram
pretos, marrons, vermelhos ou amarelos.
A primeira coisa que não foi autorizada a comparecer à conferência
de Bandung foi o homem branco. Ele não podia ir. Depois de excluir
o homem branco, descobriram que poderiam ficar juntos. Uma vez
que o mantiveram fora, todo mundo se sentiu bem e entrou na linha.
Isso é o que você e eu temos que entender. E essas pessoas que se
reuniram não tinham armas nucleares, não tinham aviões a jato, não
tinham todos os armamentos pesados que o homem branco tem. Mas
eles tinham unidade.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 7

Eles foram capazes de submergir suas diferençazinhas mesquinhas


e concordar em uma coisa: embora um africano viesse do Quênia e
estivesse sendo colonizado pelo inglês, outro africano viesse do Congo
e estivesse sendo colonizado pelo belga, e outro africano viesse Guiné
e estivesse sendo colonizada pelos franceses, e outra vinha de Angola
e estivesse sendo colonizada por portugueses, quando foram para a
conferência de Bandung, olharam para o português, e para o francês,
e para o inglês, e para o holandês , e aprenderam ou perceberam que a
única coisa que todos eles tinham em comum: eram todos da Europa,
eram todos europeus, loiros, de olhos azuis e de pele branca. Eles co-
meçaram a reconhecer quem era seu inimigo. O mesmo homem que
estava colonizando nosso povo no Quênia estava colonizando nosso
povo no Congo. O mesmo no Congo estava colonizando nosso povo
na África do Sul, na Rodésia do Sul, na Birmânia, na Índia, no Afega-
nistão e no Paquistão. Eles perceberam que ao redor do mundo onde
o homem negro estava sendo oprimido, ele estava sendo oprimido
pelo homem branco; onde o homem negro estava sendo explorado,
ele estava sendo explorado pelo homem branco. Então eles se uniram
sob esta base – que eles tinham um inimigo comum.
E quando você e eu aqui em Detroit e em Michigan e na América
que despertamos hoje olhamos ao nosso redor, nós também percebe-
mos aqui na América que temos um inimigo em comum, seja ele na
Geórgia ou Michigan, seja na Califórnia ou em Nova York. Ele é o
mesmo homem: olhos azuis e cabelos loiros e pele pálida – o mesmo
homem. Então, o que temos que fazer é o que eles fizeram. Eles con-
cordaram em parar de brigar entre si. Qualquer pequena disputa que
tivessem, resolveriam entre si, se agrupariam – não deixe o inimigo
saber que você teve uma desavença.
Em vez de expor nossas diferenças em público, temos que perceber
que somos todos a mesma família. E quando você tem uma briga de
família, você não sai na calçada. Se você fizer isso, todos o chamarão
de rude, não refinado, não civilizado, selvagem. Se alguma coisa não
dá certo em casa, você resolve em casa; você entra no armário – discu-
ta a portas fechadas. E então, quando você sai para a rua você coloca
uma frente comum, uma frente unida. E é isso que precisamos fazer
na comunidade, na cidade e no estado. Precisamos parar de expor
8 • Por todos os meios necessários

nossas diferenças na frente do homem branco. Tire o homem branco


de nossas reuniões, número um, e depois sente-se e converse um com
o outro. Isso é tudo que você tem que fazer.
Eu gostaria de fazer alguns comentários sobre a diferença entre a
revolução preta e a revolução crioula. Existe uma diferença. São iguais?
E se não forem, qual é a diferença? Qual é a diferença entre uma
revolução negra e uma revolução crioula? Primeiro, o que é uma re-
volução? Às vezes, estou inclinado a acreditar que muitos de nosso
povo estão usando essa palavra “revolução” vagamente, sem levar em
consideração o que essa palavra realmente significa e quais são suas
características históricas. Quando você estuda a natureza histórica das
revoluções, o motivo de uma revolução, o objetivo de uma revolução e
o resultado de uma revolução e os métodos usados em uma revolução,
você pode escolher outras palavras. Você pode inventar outro progra-
ma. Você pode mudar seu objetivo e mudar de ideia.
Pensemos na Revolução Americana de 1776. Essa revolução foi
para quê? Por terra. Por que eles queriam terras? Independência.
Como foi feito? Derramamento de sangue. Número um, era baseado
na terra, a base da independência. E a única maneira de conseguir
isso era derramamento de sangue. A Revolução Francesa – em que foi
baseada? Os sem-terra contra o senhorio. Pelo que estavam lutando?
Terra. Como é que conseguiram? Derramamento de sangue. Nenhum
amor foi perdido; não houve compromisso; não houve negociação.
Estou dizendo, você não sabe o que é uma revolução. Porque quando
descobrir o que é, você voltará para o beco, você vai sair do caminho.
A Revolução Russa – foi baseada em quê? Terra. Os sem-terra contra
o senhorio. Como eles conseguiram? Derramamento de sangue. Você
não tem uma revolução que não envolva derramamento de sangue!
E você tem medo de sangrar.
Eu disse, você tem medo de sangrar.
Enquanto o homem branco te mandou para a Coreia1, você san-
grou. Ele te enviou para a Alemanha2, você sangrou. Ele te mandou

1 Guerra entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, que começou em 1950.


2 Entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial aconteceu em 1941 após o ataque do
Império Japonês a Pearl Harbor. Os estadunidenses, então, oficialmente entraram ao
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 9

para o sul do Pacífico3 para lutar contra os japoneses, você sangrou.


Você sangra por gente branca. Mas quando chega a hora de ver suas
próprias igrejas sendo bombardeadas e menininhas pretas serem assas-
sinadas, você não tem sangue. Você sangra quando o homem branco
diz para sangrar, você morde quando o homem branco diz para mor-
der e você late quando o homem branco te diz para latir. Odeio dizer
isso ao nosso respeito, mas é verdade. Como você vai ser não-violen-
to no Mississipi, quando você foi violento daquele jeito na Coréia?
Como você pode justificar ser não-violento no Mississipi e no Alaba-
ma quando suas igrejas estão sendo bombardeadas, suas menininhas
estão sendo assassinadas, e ao mesmo tempo você está prestes a ser
violento contra Hitler, e Tojo, e outra pessoa que você sequer conhece?
Se a violência está errada na América, a violência está errada no ex-
terior. Se é errado ser violento defendendo mulheres pretas e crianças
pretas e bebês pretos e homens pretos, então é errado a América nos
convocar e nos tornar violentos no exterior em sua defesa. E se é certo
que os Estados Unidos nos recrutem e nos ensinem como ser violentos
em sua defesa, então é certo que você e eu façamos o que for necessário
para defender nosso próprio povo aqui mesmo neste país.
A Revolução Chinesa4 – eles queriam terras. Eles expulsaram os bri-
tânicos, junto com o tio Tom 5chinês. Pois é, fizeram isso. Eles deram
um bom exemplo. Quando estava na prisão, li um artigo – não fique
chocado quando digo que estava na prisão. Você ainda está na prisão.
Isso é o que América significa: prisão. Quando estava na prisão, li um
artigo na revista Life mostrando uma garotinha chinesa de nove anos,
o pai dela estava de joelhos e ela puxava o gatilho porque ele era um

lado dos Aliados e enviaram tropas para os diversos teatros de guerra contra o Eixo.
3 Teatro da Segunda Grande Guerra lutado em diversas batalhas ao longo do 1941
até 1945 na Ásia, Oceano Pacífico, Oceano Índico e Oceania.
4 Também conhecida como a Guerra da Liberação, aconteceu em 1948 e resultou na
proclamação da República Popular da China em 1949, liderada por Mao Tse-Tung.
5 Tio Tom é o personagem principal da novela Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Bee-
cher Stowe, escrita em 1852. Representado como homem negro escravizado ex-
tremamente subserviente aos seus “proprietários”, Tom é tido como imagem depre-
ciativa por sua não-resistência e escolha de não-violência. Malcolm X se refere ao
personagem enquanto “negro doméstico” ou “crioulo doméstico” em seus discursos
mais famosos. A representação recente mais conhecida talvez seja de Stephen, in-
terpretado por Samuel L Jackson, no filme Django Livre, de 2012.
10 • Por todos os meios necessários

tio Tom chinês. Quando fizeram a revolução lá, eles pegaram uma ge-
ração inteira de tios Tom – simplesmente os exterminaram. E em dez
anos aquela garotinha se tornou uma mulher adulta. Chega de Tom na
China. E hoje é um dos países mais difíceis, duros e temidos do planeta
– pelo homem branco. Porque não há nenhum tio Tom por lá.
De todos os nossos estudos, a história é a mais qualificada para
recompensar nossas pesquisas. E quando você vê que tem problemas,
tudo que você precisa fazer é examinar o método histórico usado em
todo o mundo por outras pessoas que têm problemas semelhantes aos
seus. E uma vez que você vê como eles corrigiram o deles, então você
sabe como pode corrigir o seu. Tem havido uma revolução, uma revo-
lução negra, acontecendo na África. No Quênia, os Mau Mau eram
revolucionários6, foram eles que criaram a palavra “Uhuru7“. Foram
eles que a trouxeram à tona. Os Mau Mau, eles eram revolucionários.
Eles acreditavam na terra arrasada. Passaram por cima de tudo que
lhes atrapalhavam, e sua revolução também foi baseada na terra, um
desejo de terra. Na Argélia, no norte da África, ocorreu uma revolu-
ção8. Os argelinos eram revolucionários, eles queriam terras. A França
ofereceu sua integração aos franceses. Eles responderam: para o infer-
no com a França. Eles queriam algumas terras, não alguma França. E
eles travaram uma batalha sangrenta.
Então eu cito essas várias revoluções, irmãos e irmãs, para mostrar
a vocês, você não tem uma revolução pacífica. Você não tem uma
revolução do tipo “mostrar a outra face”. Não existe revolução não
violenta. O único tipo de revolução não violenta é a revolução negra.
A única revolução baseada no amor ao inimigo é a revolução negra. A
única revolução em que o objetivo é uma lanchonete sem segregação,
um teatro sem segregação, um parque sem segregação e um banheiro
público sem segregação; você pode se sentar ao lado de gente branca...
na privada. Isso não é revolução. A revolução é baseada na terra. A
6 Malcolm X se refere à Revolta dos Mau Mau, ou Rebelião dos Mau Mau. O confli-
to se iniciou em 1952 e chegou ao fim em 1960, com vitória dos britânicos, mas
com a independência do Quênia.
7 “Liberdade” ou “Independência” em suaíli.
8 Também chamada de Guerra do Primeiro de Novembro, a Guerra de Independên-
cia Argelina se iniciou em 1954 e chegou ao seu fim em 1962, com a vitória do
Fronte Nacional de Liberação Argelino através da independência da Argélia.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 11

terra é a base de toda independência. A terra é a base da liberdade,


justiça e igualdade.
O homem branco sabe o que é revolução. Ele sabe que a revolução
negra tem alcance e natureza mundiais. A revolução negra está var-
rendo a Ásia, varrendo a África, está surgindo na América Latina. A
Revolução Cubana – isso é uma revolução. Eles derrubaram o sistema.
A revolução está na Ásia. A revolução está na África. E o homem bran-
co está gritando porque vê revolução na América Latina. Como você
acha que ele vai reagir quando você perceber o que é uma verdadeira
revolução? Você não sabe o que é uma revolução. Se você soubesse,
não usaria essa palavra.
Uma revolução é sangrenta. Revolução é hostil. Revolução não
conhece compromissos. Revolução derruba e destrói tudo que entra
em seu caminho. E você, sentado por aí como um nódulo na parede,
dizendo, “Vou amar essas pessoas não importa o quanto me odeiem”.
Não, você precisa de uma revolução. Quem já ouviu falar de uma re-
volução em que se dão os braços, como o reverendo Cleage destacou
de maneira tão bela, cantando “We Shall Overcome”? Só me diga.
Você não faz isso em uma revolução. Você não canta, você está muito
ocupado desferindo golpes. É baseado na terra. Um revolucionário
quer terras para que possa estabelecer sua própria nação, uma nação
independente. Esses crioulos não estão pedindo nenhuma nação. Eles
estão tentando rastejar de volta para a plantação.
Quando você quer uma nação, isso se chama nacionalismo. Quan-
do o homem branco se envolveu em uma revolução neste país contra
a Inglaterra, qual foi a razão? Ele queria esta terra para que pudesse
estabelecer outra nação branca. Isso é nacionalismo branco. A Revo-
lução Americana foi o nacionalismo branco. A Revolução Francesa foi
o nacionalismo branco. A Revolução Russa também, sim, foi o nacio-
nalismo branco. Você não acha? Por que você acha que Khrushchev
e Mao não conseguem entender? Nacionalismo branco. Todas as re-
voluções que estão acontecendo na Ásia e na África hoje são baseadas
em quê? Nacionalismo negro. Um revolucionário é um nacionalista
negro. Ele quer uma nação. Eu estava lendo algumas palavras lindas
do reverendo Cleage, mostrando porque ele não conseguia se reunir
com outra pessoa aqui na cidade porque todos tinham medo de se
12 • Por todos os meios necessários

identificar com o nacionalismo negro. Se você tem medo do naciona-


lismo negro, tem medo da revolução. E se você ama a revolução, você
ama o nacionalismo negro.
Para entender isso, você tem que voltar ao que o irmão mais novo
aqui chamou de negro doméstico e negro do campo. Na época da es-
cravidão havia dois tipos de escravos. Havia o negro da casa e o negro
do campo. Os negros da casa viviam na casa do patrão, se vestiam
muito bem, comiam bem porque comiam a comida dele – o que ele
permitia. Eles moravam no sótão ou no porão, mas ainda moravam
perto do mestre; e eles amaram seu mestre mais do que o mestre ama-
va a si mesmo. Eles dariam suas vidas para salvar a casa do mestre mais
rápido do que o próprio mestre faria. O negro doméstico, se o patrão
dissesse: “Temos uma boa casa aqui”, o negro doméstico diria: “Sim,
temos uma boa casa aqui.” Sempre que o mestre dizia “nós”, ele dizia
“nós”. É assim que você pode identificar um negro doméstico.
Se a casa do senhor pegasse fogo, o negro da casa lutaria mais para
apagar o incêndio do que o senhor. Se o patrão adoecesse, o negro
da casa dizia: “Qual é o problema, patrão, estamos doentes?” “Nós”
doentes! Ele se identificava com seu mestre mais do que seu mestre
se identificava consigo mesmo. E se você chegasse ao negro da casa e
dissesse: “Vamos fugir, vamos fugir, vamos sair daqui”, o negro da casa
olhava para você e dizia: “Cara, você tá maluco. O que quer dizer com
sair daqui? Onde tem melhor casa do que esta? Onde posso vestir rou-
pas melhores do que esta? Onde posso comer comida melhor do que
esta? “ Aquele era o negro doméstico. Naquela época, ele era chamado
de “crioulo doméstico”. E é assim que os chamamos hoje, porque ain-
da temos alguns negros domésticos correndo por aí.
Este crioulo doméstico moderno ama seu dono. Ele quer morar
perto dele. Vai pagar três vezes mais do que a casa vale apenas para
morar perto de seu dono, e depois vai se gabar “Eu sou o único negro
aqui”. “Sou o único no meu trabalho.” “Sou o único nesta escola.”
Você não passa de um negro doméstico. E se alguém vem até você
agora e diz: “Vamos nos sair daqui”, você diz a mesma coisa que o ne-
gro da casa disse na plantação. “O que você quer dizer com sair daqui?
Da América? Este bom homem branco? Onde você vai conseguir um
emprego melhor do que aquele que consegue aqui?” Quer dizer, isso
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 13

é o que você diz. “Não deixei nada na África”, é o que você diz. Ora,
você deixou sua mente na África!
Naquela mesma plantação havia o negro do campo. O crioulo do
campo, essas eram as massas. Sempre havia mais pretos no campo do
que na casa. O negro no campo vivia no inferno. Ele comia as sobras.
Na casa comiam as melhores partes do porco. O negro do campo
não recebia nada além das sobras do intestino do porco. Hoje em dia
chamam de “bucho”. Naquela época chamavam pelo que eram: tripas.
Era isso que você era, um comedor de tripa. E alguns de vocês ainda
são comedores de tripas.
O negro do campo era espancado da manhã até a noite. Ele mo-
rava num barraco, numa cabana. Ele usava roupas velhas e descar-
tadas. Ele odiava seu mestre. Eu disse que ele odiava seu mestre. Ele
era inteligente. O negro da casa amava seu mestre. Mas o negro do
campo – lembre bem, eles eram a maioria, e eles odiavam seu mestre.
Quando a casa pegava fogo, ele não tentava apagar; aquele negro do
campo rezava por um vento, por uma brisa. Quando o mestre adoecia,
o negro do campo rezava para que ele morresse. Se alguém chegasse
até o negro do campo e dissesse, “Vamos sair daqui, vamos fugir”, ele
não dizia “Onde nós vamos? ele dizia “Qualquer lugar é melhor do
que aqui”. Você tem negros do campo na América hoje em dia. Eu
sou um negro do campo. As massas são os negros do campo. Quando
eles veem a casa desse homem em chamas você não ouve esses negros
falando como “nosso governo está em apuros”. Eles dizem “O governo
está em apuros”. Imagine um preto: “Nosso governo!”, ouvi até um
dizendo uma vez “nossos astronautas”. Eles mal o deixam chegar perto
da instalação... e dos “nossos astronautas!”. “Nossa Marinha” ... esse é
um negro que está louco. Esse é um negro que está louco.
Assim como o senhor de escravos da época usava Tom, o crioulo
doméstico, para manter os negros do campo sob controle, o mesmo
velho senhor de escravos hoje tem negros que não são nada além do
que tios Tom modernos, os tios Tom do século 20, para manter você
e eu sob controle, nos manter sob controle, nos manter passivos e
pacíficos e não-violentos. Isso é o Tom fazendo com que você seja
não-violento. É como quando você vai ao dentista e o homem vai tirar
seu dente. Você vai lutar com ele quando ele começar a puxar. Então,
14 • Por todos os meios necessários

ele esguicha um negócio em sua mandíbula chamado novocaína, serve


para fazer você pensar que eles não estão fazendo nada com você. En-
tão você fica lá, sentado, e, porque você estar com toda aquela novo-
caína na mandíbula, você sofre pacificamente. Sangue escorrendo pelo
seu queixo, e você mal sabe o que está acontecendo. Porque alguém te
ensinou a sofrer – pacificamente.
O homem branco faz a mesma coisa com você na rua, quando
quer colocar caraminholas na sua na cabeça e tirar vantagem de você
sem precisar ter medo de uma vingança. Para evitar que você revide,
ele faz com que esses velhos religiosos desses tios Tom ensinem a você
e a mim, assim como a novocaína, a sofrer pacificamente. Não pare
de sofrer – apenas sofra pacificamente. Como observou o reverendo
Cleage: “Deixe seu sangue correr pelas ruas”. Isto é uma vergonha. E
você sabe que ele é um pregador cristão. Se é uma vergonha para ele,
então você sabe o que é para mim!
Não há nada em nosso livro, o Qu’ran – se pronuncia “Co-rão” – que
nos ensina a sofrer pacificamente. Nossa religião nos ensina a sermos
inteligentes. Seja tranquilo, seja cortês, obedeça a lei, respeite a todos,
mas se alguém encostar a mão em você, mande-o para o cemitério. Essa
é uma boa religião. Na verdade, essa é a religião dos velhos tempos. É
sobre isso que mamãe e papai falavam: olho por olho, dente por dente,
cabeça por cabeça e vida por vida: essa é uma boa religião. E não tem
ninguém que fique ressentido por esse tipo de religião ser ensinada, nin-
guém além do lobo, que pretende transformar você em refeição.
É assim que acontece com o homem branco na América. Ele é um
lobo e você é uma ovelha. Sempre que um pastor, um arrebanhador,
ensina você e eu a não fugirmos do homem branco e, ao mesmo tem-
po, nos ensina a não lutar com o homem branco, ele está nos traindo.
Não entregue sua vida desse jeito. Não, preserve sua vida, ela é a me-
lhor coisa que você tem. E se você tiver de entregá-la, então pague na
mesma moeda.
O senhor de escravos pegou Tom, vestiu-o bem, e o alimentou
bem e até lhe deu um pouco de educação – um pouco; deu-lhe um
casaco comprido e uma cartola e fez com que todos os outros escravos
o admirassem. Então ele usou Tom para controlá-los. A mesma estra-
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 15

tégia que era usada naquela época é usada hoje, pelo mesmo homem
branco. Ele pega um negro, um dito negro, e o torna proeminente,
constrói esse negro, lhe publicidade, faz dele uma celebridade. E então
ele se torna um porta-voz dos negros – e um líder negro.
Gostaria de mencionar só mais uma coisa rapidamente, e é que
esse é o método que o homem branco usa, como o homem branco
usa esse “armamento pesado”, ou líderes negros, contra a revolução
negra. Eles não são parte da revolução negra. Eles são usados contra a
revolução negra.
Quando Martin Luther King falhou em desagregar Albany, Geór-
gia, a luta pelos direitos civis na América atingiu seu ponto mais baixo.
King quase foi à falência como líder. Além disso, mesmo financeira-
mente, a Conferência de Liderança Cristã do Sul estava com proble-
mas financeiros; além do mais, estava numa enrascada com o povo
quando eles não conseguiram dessegregar Albany, Geórgia. Outros
líderes negros dos direitos civis da chamada estatura nacional torna-
ram-se ídolos caídos. À medida que se tornaram figuras desacreditas,
começaram a perder prestígio e influência, e então, os líderes negros
locais começaram a agitar as massas. Em Cambridge, Maryland, Glo-
ria, Richardson em Danville, Virginia, e outras partes do país, os lí-
deres locais começaram a agitar nosso povo nas bases. Isso nunca foi
feito por esses outros negros que vocês tão bem reconhecem, que são
grandes nacionalmente. Eles controlavam vocês, mas nunca os incita-
ram ou estimularam. Eles controlavam vocês; eles contiveram vocês;
eles mantiveram vocês na plantação.
Assim que King fracassou em Birmingham, os negros foram para
as ruas. King saiu e foi para a Califórnia para um grande comício e
arrecadou cerca de – não sei quantos milhares de dólares. Ele veio a
Detroit e fez uma marcha e levantou mais alguns milhares de dólares.
E lembrem-se, logo depois que Wilkins atacou King, acusou King
e acusou o CORE9 de criarem problemas em todos os lugares, e de
então obrigar à NAACP10 a tirá-los da cadeia e gastar muito dinheiro;
9 Congress of Racial Equality, ou “Congresso de Igualdade Racial”. Criado em 1942
por um grupo de Chicago, utilizavam-se da ação direta e não violenta dentro da
luta pelos direitos civis nos EUA.
10 “National Association for the Advencement of Colored People”, ou Associação
16 • Por todos os meios necessários

e então acusaram King e o CORE de arrecadar todo aquele dinheiro


e não pagar de volta. Isso realmente aconteceu; tenho essa evidência
documentada no jornal. Roy começou a atacar King, e King começou
a atacar Roy, e Farmer começou a atacar os dois. E quando esses ne-
gros de alcance nacional começaram a se atacar, começaram a perder o
controle sobre as massas negras.
E os negros estavam nas ruas. Eles estavam comentando sobre a
nossa marcha em Washington. A propósito, bem na época em que
as coisas em Birmingham11 explodiram, os negros em Birmingham
– lembrem-se, eles também explodiram. Eles começaram a esfaquear
os branquelos pelas costas e estourar seus miolos – pois é, foi o que
fizeram. Foi então que Kennedy enviou as tropas para Birmingham.
Logo depois disso Kennedy foi até a televisão e disse “isso é uma ques-
tão moral”. Foi quando ele disse que apresentaria um projeto de lei
de direitos civis. E quando ele mencionou o projeto de lei dos direitos
civis e os branquelos do Sul começaram a discutir sobre como iriam
boicotar ou obstruir o processo, e então os negros começaram a falar
– e falaram o quê? Falaram, vamos marchar em Washington, marchar
sobre o Senado, marchar na Casa Branca, marchar sobre o Congres-
so, vamos ocupá-lo, fazê-los parar, não deixaremos o governo seguir
adiante. Disseram até que iriam até o aeroporto e que deitariam na
pista e não deixariam nenhum avião pousar. Estou contando o que
eles disseram. Aquilo foi uma revolução. Isso foi uma revolução. Essa
foi a revolução preta.
Foram as bases que estiveram nas ruas. Assustaram o homem bran-
co para valer, assustaram a estrutura do supremacismo branco em
Washington, D. C. para valer. Eu estava lá. Quando descobriram que
esse rolo-compressor preto estava prestes a passar por cima da capital,
Nacional para o Avanço de Pessoas de Cor. Formada em 1909, é uma organização
focada nos direitos civis que advoga pelo avanço da justiça em relação aos afro-
-americanos.
11 O tumulto de Birmingham, no Alabama, aconteceu em 1963, quando a casa paro-
quial do irmão de Martin Luther King Jr., o reverendo A. D. King, e o motel onde
o próprio MLK e seus organizadores de campanha estavam hospedados foram
bombardeados. Como consequência, os afro-americanos da cidade incendiaram di-
versas empresas e lutaram contra a força policial no centro comercial. Acredita-se
que membros da Ku Klux Klan e a polícia de Birmingham, em cooperação, foram
os responsáveis pelos atentados.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 17

chamaram Wilkins12, eles chamaram Randolph13, chamaram todos


esses líderes pretos nacionalmente conhecidos que todos vocês respei-
tam e disseram, “Cancelem isso”. Kennedy disse, “Olha, vocês estão
deixando isso tudo ir longe demais”. E o velho Tom disse, “Patrão, não
tenho como pará-los, porque não fui eu quem comecei”. Estou dizen-
do o que foi que disseram. Disseram, “nem estou nisso, pior ainda na
liderança desse movimento”. E aquela velha raposa ardilosa, ele disse,
“Bem, se nenhum de vocês estão nesse movimento, vou coloca-los
nele. Vou coloca-los na liderança dele. Vou endossá-lo. Vou acolhê-lo.
Vou ajuda-lo. Vou me juntar a ele”.
Algumas horas se passaram. Eles se encontraram no Carlyle Hotel
na cidade de Nova York. O hotel é da família Kennedy; esse foi o
hotel em que Kennedy pernoitou duas noites atrás, o hotel de sua
família. Uma sociedade filantrópica liderada por um homem branco
chamado Stephen Currier convocou todos os maiores líderes por trás
da luta pelos direitos civis a irem ao Carlyle Hotel. E lhes disse que,
“Ao vocês lutarem uns contra os outros, estão destruindo o movimen-
to pelos direitos civis. E já que vocês estão brigando pelo dinheiro dos
brancos liberais, vamos montar o que será conhecido como o Conse-
lho da União das Lideranças pelos Direitos Civis. Vamos formar esse
conselho, e todas as organizações pelos direitos civis vão fazer parte
dele, e vamos usá-lo para angariar fundos”. Deixem-me mostra-los
quão ardiloso é o homem branco. E assim que o tal conselho foi for-
mado, elegeram Whitney Young como presidente e, então, quem vo-
cês acham que se tornou o co-presidente? Stephen Currier, o homem
branco, um milionário. Powell estava falando sobre isso lá no Cobo14,
mais cedo. Era sobre isso que ele estava falando. Powell sabe que foi
isso que aconteceu. Randolph sabe que aconteceu. Wilkins sabe que
aconteceu. King sabe que aconteceu. Todos do, assim chamado, Big
Six15, eles sabem o que aconteceu.
12 Roy Wilkins, membro da NAACP e secretário adjunto sob a liderança de Walter
Francis White de 1931 até 1934.
13 Asa Philip Randolph, líder sindicalista, ativista pelos direitos civis e político socialista.
14 Cobo Hall (hoje conhecido como TCF Center) é um centro de convenções no
centro de Detroit, Michigan.
15 Martin Luther King Jr., James Farmer, John Lewis, A. Philip Randolph, Roy Wil-
kins e Whitney Young – foram os líderes das seis principais organizações de direi-
18 • Por todos os meios necessários

Assim que formaram esse conselho, com o homem branco lideran-


do tudo, ele prometeu e entregou 800 mil dólares para que dividissem
entre os Big Six, e lhes disseram que depois que a marcha acabasse,
lhes dariam mais 700 mil dólares. Um milhão e meio de dólares, divi-
didos entre os líderes que vocês têm seguido, por quem vocês têm ido
para a cadeia, por quem vocês têm chorado lágrimas de crocodilo. E
eles não são nada além de Frank James e Jesse James16 e irmãos seja lá
do que vocês os chamam.
Assim que eles organizaram tudo, o homem branco colocou à sua
disposição os melhores especialistas em relações públicas, colocou o
noticiário em todo o país à sua disposição, e então, eles começaram a
projetar esses Big Six como os líderes da marcha. Originalmente, eles
nem estavam marchando. Vocês estavam falando do tal discurso da
marcha na Rua Hastings – a Rua Hastings ainda existe? – bem, na
Rua Hasting. Vocês estavam falando sobre o discurso da marcha na
Avenida Lenox, e na – como vocês chamam? – Rua Fillmore, Avenida
Central, na 32ª Rua e 63ª Rua. Foi onde o discurso da marcha estava
sendo feito. Mas o homem branco colocou os Big Six à frente disso, os
fez marchar. Eles se tornaram a marcha. Eles assumiram o controle. E
o primeiro movimento que fizeram depois de assumirem o controle,
eles convidaram Walter Reuther, um homem branco; convidaram um
padre, um rabino e um velho pastor branco. Sim, um velho pastor
branco. O mesmo elemento branco que colocou Kennedy no poder
– os trabalhadores, os católicos, os judeus e os protestantes liberais; a
mesma panelinha que colocou Kennedy no poder juntou-se à marcha
sobre Washington.
É exatamente como quando você tem um pouco de café que é
preto demais, que significa que é forte demais. O que você faz? Você
integra com creme, você deixa mais fraco. Se você despejar muito cre-

tos civis fundamentais na organização da Marcha em Washington por Empregos e


Liberdade, que aconteceu em 1963.
16 Os irmãos James, Frank James, soldado confederado e guerrilheiro que se tornou
bandido depois da Guerra Civil estadunidense, se juntando a seu notório irmão,
Jesse James, o famoso bandido, líder da gangue James-Younger, ladrão de bancos e
trens. Ambos se mantiveram leais aos valores do sul confederado, atacando aboli-
cionistas e soldados da união (norte) com extrema brutalidade. Enquanto Jesse foi
traído e assassinado em 1882, Frank morreu de velhice em 1915.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 19

me, mal vai perceber que tinha café. Era quente, tornou-se morno.
Era forte, tornou-se fraco. Costumava te acordar, agora vai te colocar
para dormir. Foi isso que fizeram com a marcha sobre Washington.
Juntaram-se a ela. Eles não se integraram a ela, eles se infiltraram. Eles
se juntaram a ela, tornaram-se parte dela, tomaram controle. E assim
que passaram a controla-la, ela perdeu sua militância. Deixaram a rai-
va de lado. Pararam de ser quente. Deixaram a inflexibilidade de lado.
Aliás, deixou de ser uma marcha. Aquilo se tornou um piquenique,
um circo. Nada além de um circo, com palhaços e tudo mais. Vocês
tinham uma bem aqui em Detroit – eu vi na televisão – com palhaços
liderando, palhaços brancos e palhaços pretos. Sei que vocês não estão
gostando do que estou dizendo, mas vou dizer mesmo assim. Porque
posso provar o que estou dizendo. Se acham que estou enganando
vocês, então me tragam Martin Luther King e A. Pilhip Randolph e
James Farmer e aqueles outros três, e vamos ver se eles vão negar tudo
diante do microfone.
Não, aquilo foi traição. Foi uma expropriação. Quando James Bal-
dwin17 veio de Paris, não o deixaram falar porque não conseguiram
fazê-lo seguir o roteiro. Burt Lancaster18 leu o discurso que Baldwin
deveria fazer; e eles não deixariam Baldwin subir lá porque sabiam que
ele podia dizer qualquer coisa. Eles controlavam com tanta força – di-
ziam àqueles negros a que horas chegar à cidade, como chegar, onde
parar, que placas carregar, que música cantar, que discurso eles podiam
fazer e que discursos não podiam; e disseram para que saíssem da ci-
dade ao pôr-do-sol. E cada um daqueles Toms estava fora da cidade
ao pôr do sol. Veja, sei que vocês não gostam que eu diga isso. Mas eu
posso provar. Foi um circo, uma apresentação que superou qualquer
coisa que Hollywood pudesse fazer, a apresentação do ano. Reuther19
17 James Baldwin foi o escritor, dramaturgo, ensaísta, poeta e ativista negro responsá-
vel por algumas das maiores e mais importantes obras e principais debates raciais
do final do século passado. Dentre seus livros mais famosos que foram traduzidos
no Brasil estão Terra Estranha, O Quarto de Giovanni, Marcas da Vida, Notas de
um Filho Nativo, e Se a rua Beale Falasse.
18 Burton Lancaster foi um ator e produtor de cinema branco que recebeu o Oscar
de melhor protagonista por Entre Deus e o pecado, de 1960.
19 Walter Reuther foi um renomado líder sindicalista e ativista pelos direitos civis.
Socialista até o início dos anos 30, Walter tornou-se liberal, e na década de 1940
tornou-se apoiador ferrenho da guerra do Vietnã, além de notório anticomunista.
20 • Por todos os meios necessários

e os outros três diabos deveriam receber Oscares de melhores atores,


porque agiram como se realmente amassem os pretos, e realmente en-
ganaram muitos deles. E os seis líderes negros deveriam receber um
prêmio também, de melhor elenco de apoio.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 21

Malcom-X, junho de 1963

A REVOLUÇÃO NEGRA

Dr. Powell, convidados distintos, irmãos e irmãs, amigos e amigas,


e até mesmo nossos inimigos. Como seguidor e membro do ministé-
rio do honorável Elijah Muhammad20, que é o Mensageiro de Allah
para o, assim chamado, negro americano, estou muito feliz em aceitar
o convite do Dr. Powell para estar aqui, nesta tarde, na Igreja Batista
Abissínia e para expressar ou, pelo menos, para tentar representar as
opiniões do honorável Elijah Muhammad a respeito deste, que é o
tema mais oportuno, a Revolução Negra.
Antes, porém, há algumas perguntas que devemos fazer a vocês. Já
que as massas negras aqui na América estão, agora, em revolta explícita
contra o sistema de segregação americano, essas mesmas massas negras
se voltarão para a integração ou se voltarão para a separação completa?
Essas massas negras despertas exigirão integração na sociedade branca
que as escravizou ou exigirão a separação completa daquela cruel so-
ciedade branca que as escravizou? Irão as massas negras exploradas e
oprimidas buscar integração com seus exploradores e opressores bran-
cos ou essas massas negras despertas realmente se revoltarão e se sepa-
rarão completamente desta raça maldita que nos escravizou?
Estas são apenas breves perguntas que creio que provocarão alguns
pensamentos em vocês e em mim. Como podem os chamados negros,
que se dizem líderes iluminados, esperar que a pobre ovelha negra se

20 Elijah Muhammad foi o líder religioso que liderou a Nação do Islã de 1943 até
sua morte, em 1975. A Nação do Islã foi o movimento político e religioso fundado
em Detroit em 1930 por Wallace Fard Muhammad com a intenção de melhorar as
condições da vida dos afro-americanos.
22 • Por todos os meios necessários

integre a uma sociedade de lobos brancos sanguinários, lobos bran-


cos que já sugam nosso sangue há mais de quatrocentos anos aqui na
América? Ou essas ovelhas negras também se revoltarão contra o “falso
pastor”, o Tom negro líder escolhido a dedo, e buscarão a separação
completa para que possamos escapar do covil dos lobos, em vez de
serem integrados aos lobos nesta toca dos lobos? E já que estamos na
igreja e muitos de nós aqui professamos crer em Deus, há outra ques-
tão: Quando o “bom pastor” vier, ele integrará suas ovelhas perdidas
com os lobos brancos? De acordo com a Bíblia, quando Deus vier,
Ele nem mesmo deixará suas ovelhas se integrarem com cabras. E se
Suas ovelhas não podem ser integradas com segurança às cabras, elas
certamente não são integradas com segurança aos lobos.
O honorável Elijah Muhammad nos ensina que nenhum povo na
terra se encaixa mais na figura simbólica da Bíblia sobre a ovelha per-
dida do que os vinte milhões de negros da América, e nunca houve na
história um lobo mais cruel e sanguinário do que o homem branco
americano. Ele nos ensina que por quatrocentos anos a América não
passou de uma toca de lobos para vinte milhões dos chamados negros,
vinte milhões de cidadãos de segunda classe, e esta revolução negra
que está se desenvolvendo contra o lobo branco hoje, está se desenvol-
vendo porque o honorável Elijah Muhammad, um pastor enviado por
Deus, abriu os olhos de nosso povo. E as massas negras podem agora
ver que todos nós estamos aqui nesta casinha de cachorro branca há
muito, muito tempo. As massas negras não querem segregação nem
nós queremos integração. O que queremos é a separação completa. Em
suma, não queremos estar integrados com o homem branco, queremos
estar separados do homem branco. E agora nosso líder religioso e pro-
fessor, o honorável Elijah Muhammad, nos ensina que esta é a única
solução inteligente e duradoura para o problema racial atual. Para en-
tender completamente por que os seguidores muçulmanos do honorá-
vel Elijah Muhammad realmente rejeitam as promessas hipócritas de
integração, deve-se primeiro entender por todos que somos um grupo
religioso, e como um grupo religioso não podemos de forma alguma
ser igualados ou comparados aos grupos não religiosos de direitos civis.
Somos muçulmanos porque acreditamos em Allah. Somos mu-
çulmanos porque praticamos a religião do Islã. O honorável Elijah
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 23

Muhammad nos ensina que existe apenas um Deus, o criador e man-


tenedor de todo o universo, o Ser Supremo onisciente e todo-pode-
roso. O grande Deus cujo nome próprio é Allah. O honorável Elijah
Muhammad também nos ensina que o Islã é uma palavra árabe que
significa “completa submissão à vontade de Alá, ou obediência ao Deus
da verdade, Deus da paz, o Deus da justiça, o Deus cujo nome próprio
é Allah.” E ele nos ensina que a palavra muçulmano é usada para des-
crever aquele que se submete a Deus, aquele que obedece a Deus. Em
outras palavras, um muçulmano é aquele que se esforça para viver uma
vida de retidão. Você pode perguntar, o que a religião do Islã tem a ver
com a mudança de atitude do suposto negro americano em relação a si
mesmo, ao homem branco, à segregação, à integração e à separação, e
que papel esta religião do Islã desempenhará na atual revolução negra
que está varrendo o continente americano hoje? O honorável Elijah
Muhammad nos ensina que o Islã é a religião da verdade nua, da ver-
dade desnudada, da verdade que não está disfarçada, e ele diz que a
verdade é a única coisa que realmente libertará nosso povo.
A verdade abrirá nossos olhos e permitirá que vejamos o lobo bran-
co como ele realmente é. A verdade nos firmará em nossos próprios
pés. A verdade nos fará caminhar por nós mesmos, em vez de nos
apoiarmos nos outros que não desejam bem ao nosso povo. A ver-
dade não apenas nos mostra quem é nosso verdadeiro inimigo, mas
também nos dá a força e o conhecimento para nos separarmos desse
inimigo. Somente um cego entrará no abraço aberto de seu inimigo, e
somente um povo cego, um povo cego para a verdade sobre seus ini-
migos, procurará abraçar ou se integrar a esse inimigo. Ora, o próprio
Jesus profetizou: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
Amados irmãos e irmãs, Jesus nunca disse que Abraham Lincoln
nos libertaria. Ele nunca disse que o congresso nos libertaria. Ele nun-
ca disse que o senado ou a suprema corte ou John Kennedy nos liber-
taria. Há dois mil anos Jesus olhou para a roda do tempo e enxergou
a sua e a minha luta aqui, hoje, e Ele sabia que as astutas decisões da
alta corte, da suprema corte, lhes colocariam em um sono ainda mais
profundo, e as promessas maliciosas dos políticos hipócritas em rela-
ção à legislação dos direitos civis seriam projetadas apenas para fazer
com que mudássemos da antiga escravidão para a escravidão moderna.
24 • Por todos os meios necessários

Mas Jesus de fato profetizou que quando Elijah viesse em espírito e no


poder da verdade, ele disse que Elijah lhes ensinaria a verdade. Elijah
lhes guiaria com a verdade, e Elijah lhes protegeria com a verdade e, de
fato, lhes libertaria. E, irmãos e irmãs, aquele Elijah, aquele que Jesus
disse que viria, veio e está hoje na América na pessoa do honorável
Elijah Muhammad.
Esse Elijah, aquele que disseram que viria e que veio, ensina aqueles
que são muçulmanos que nossos senhores de escravos sempre soube-
ram a verdade e que sempre souberam que somente a verdade poderia
nos libertar. Portanto, esse mesmo homem branco americano manteve
a verdade escondida do nosso povo. Ele nos manteve nas trevas da ig-
norância. Ele nos fez espiritualmente cegos ao nos privar da luz da ver-
dade. Durante os quatrocentos anos em que estivemos confinados na
escuridão nesta terra de escravidão, nossos escravizadores americanos
nos deram uma overdose de sua própria religião cristã controlada por
brancos, mas mantiveram todas as outras religiões escondidas de nós,
especialmente a religião do Islã. E por essa razão, o Deus Todo Pode-
roso Allah, o Deus de nossos antepassados, ergueu o honorável Elijah
Muhammad em meio ao nosso povo oprimido aqui na América. E
esse mesmo Deus deu ao honorável Elijah Muhammad a missão de
espalhar a verdade nua aos vinte milhões dos assim chamados negros
da América, e somente a verdade libertará a mim e a você.
O honorável Elijah Muhammad nos ensina que há apenas um
Deus cujo nome próprio é Allah, e uma religião, a religião do Islã, e
que esse único Deus não descansará até que tenha usado Sua religião
para estabelecer um mundo – uma fraternidade mundial e universal.
Mas para estabelecer Seu mundo justo Deus deve primeiro derrubar
este perverso mundo branco. A revolução negra contra as injustiças do
mundo branco é parte do plano divino de Deus. Deus deverá destruir
o mundo de escravidão e maldade a fim de estabelecer um mundo
baseado em liberdade, justiça e igualdade. Os seguidores do honorável
Elijah Muhammad creem religiosamente que estamos vivendo o fim
deste mundo perverso, o mundo do colonialismo, o mundo da escra-
vidão, o fim do mundo ocidental, o mundo branco ou o mundo cris-
tão, ou o fim do perverso mundo cristão ocidental do homem branco.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 25

O honorável Elijah Muhammad nos ensina que as históricas sim-


bólicas de todas as escrituras religiosas pintam uma imagem profética
dos dias de hoje. Ele diz que a Casa Egípcia da Escravidão foi apenas
uma imagem profética da América. A lendária Babilônia foi apenas
uma imagem profética da América. As malditas cidades de Sodoma e
Gomorra apenas pintavam uma imagem profética da América. Nin-
guém aqui nesta igreja hoje à noite pode negar que a América é o mais
poderoso governo na terra nos dias de hoje, o mais poderoso, o mais
rico, e o mais perverso. E que ninguém nesta igreja hoje à noite se atre-
va a negar que a riqueza e o poder da América não resultam dos 310
anos do trabalho escravo do assim chamado negro americano.
O honorável Elijah Muhammad nos ensina que esses mesmos as-
sim chamados negros americanos são o povo perdido de Deus, que são
simbolicamente descritos na Bíblia como a ovelha perdida ou a tribo
perdida de Israel. Nós, muçulmanos, acreditamos em Deus, acredita-
mos em suas escrituras, acreditamos em profecias. Em nenhum lugar
das escrituras Deus integrou Seu povo escravizado com seus senhores
de escravos. Deus sempre separa seu povo oprimido de seu opressor
e então destrói o opressor. Deus nunca se desviou de Seu padrão di-
vino no passado e o honorável Elijah Muhammad diz que Deus não
se desviará desse padrão divino hoje. Assim como Deus destruiu os
escravizadores no passado, Deus vai destruir esse perverso escravizador
branco de nosso povo aqui na América.
Deus deseja que nos separemos desta perversa raça branca aqui na
América, porque esta Casa Americana de Escravidão é a número um
na lista de Deus para a destruição divina nos dias de hoje. Repito:
esta Casa Americana de Escravidão é a número um na lista de Deus
para a destruição divina nos dias de hoje. Ele diz para que lembremos
que Noé nunca ensinou integração, Noé ensinou separação; Moisés
nunca ensinou integração, Moisés ensinou separação. O inocente deve
sempre ter a chance de se separar do culpado antes que o culpado seja
executado. Ninguém é mais inocente do que o pobre, assim chamado,
negro americano que foi desviado por líderes negros cegos, e ninguém
na terra é mais culpado do que o homem branco de olhos azuis que
usou seu controle e influência sobre o líder negro para extraviar o resto
de nosso povo.
26 • Por todos os meios necessários

Amados irmãos e irmãs, aqui, uma bela igreja, aqui na Igreja Batista
Abissínia no Harlem, por causa das más ações da América contra os as-
sim chamados negros, como o Egito e a Babilônia antes dela, a própria
América agora está diante do tribunal da justiça. A própria América
agora está enfrentando o dia do julgamento, e ela não pode escapar
porque o próprio Deus é o juiz. Se a América não pode expiar os crimes
que cometeu contra os vinte milhões dos assim chamados negros, se
ela não pode desfazer os males que descarregou brutal e impiedosa-
mente sobre nosso povo nos últimos quatrocentos anos, o honorável
Elijah Muhammad diz que a América assinou sua própria condenação.
E vocês, nosso povo, seriam tolos em aceitar suas ofertas enganosas de
integração nesta data tardia em sua sociedade condenada.
A América pode escapar? A América pode expiar? E se sim, como
ela pode expiar esses crimes? Em minha conclusão, devo apontar que
o honorável Elijah Muhammad diz que um teatro não segregado, uma
lanchonete dessegregada não resolverá nosso problema. Melhores em-
pregos não resolverão nossos problemas. Uma xícara de café integrada
não é pagamento suficiente por quatrocentos anos de trabalho escra-
vo. Ele também diz que um emprego melhor, um emprego melhor
na fábrica do homem branco, ou um emprego melhor no negócio do
homem branco, ou um emprego melhor na indústria ou na economia
do homem branco é, na melhor das hipóteses, apenas uma solução
temporária. Ele diz que a única solução duradoura e permanente é a
separação completa em alguma terra que possamos chamar de nos-
sa. Portanto, o honorável Elijah Muhammad diz que este problema
pode ser resolvido, e resolvido para sempre, apenas enviando nosso
povo de volta para nossa própria pátria ou de volta para nosso próprio
povo, mas que este governo deve fornecer o transporte e tudo mais
que precisarmos para começar novamente em nosso próprio país. Este
governo deve nos dar tudo de que precisarmos na forma de maqui-
nário, material e finanças, o suficiente para durar de vinte a vinte e
cinco anos até que possamos nos tornar um povo independente e uma
nação independente em nossa própria terra. Ele diz que se o governo
americano tem medo de nos mandar de volta ao nosso país e ao nosso
próprio povo, então a América deveria reservar algum território se-
parado bem aqui no hemisfério ocidental onde as duas raças possam
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 27

viver separadas uma da outra, já que nós certamente não vivemos pa-
cificamente enquanto estamos juntos.
O honorável Elijah Muhammad diz que o tamanho do território
pode ser julgado de acordo com a nossa população. Se um sétimo da
população deste país é negro, dê-nos um sétimo do território, uma
sétima parte do condado. E isso não é pedir muito porque já trabalha-
mos para o homem branco por quatrocentos anos.
Ele diz que não deve ser no deserto, mas onde há muita chuva
e muitas riquezas minerais. Queremos terras férteis e produtivas nas
quais possamos cultivar e fornecer alimentos, roupas e abrigo para
nosso próprio povo. Ele diz que esse governo deve nos fornecer, na-
quele território, o maquinário e outras ferramentas necessárias para
cavar a terra. Dê-nos tudo de que precisarmos por vinte a vinte e cinco
anos, até que possamos produzir e suprir nossas próprias necessidades.
Para concluir, repito: não queremos participar da integração com
esta raça perversa de demônios. Mas ele também diz que não deve-
mos deixar a América de mãos vazias. Depois de quatrocentos anos de
trabalho escravo, temos alguns pagamentos atrasados ​​chegando. Uma
fatura que nos é devida e deve ser cobrada. Se o governo da América
realmente se arrepender de seus pecados contra nosso povo e expiar,
dando-nos nossa verdadeira parte da terra e da riqueza, então a Amé-
rica poderá se salvar. Mas se a América esperar que Deus intervenha
e a force a fazer um acordo justo, Deus tirará todo este continente
do homem branco. E a Bíblia diz que Deus pode então dar o reino a
quem ele quiser.
Muito obrigado.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 29

Malcom-X, 1° de janeiro de 1963

DISCURSO PARA TRABALHA-


DORES DOS DIREITOS CIVIS DO
MISSISSIPPI

Fui abordado, acho que estávamos nas Nações Unidas, e conheci


a Sra. Walker, cerca de duas ou três semanas atrás, e ela disse que um
grupo de alunos estava vindo de McComb, Mississippi, e queria saber
se eu iria encontrar com vocês e falar com vocês. Eu disse a ela franca-
mente que seria a maior honra que já tive. Porque, em primeiro lugar,
eu nunca havia ido ao estado do Mississippi – não por culpa minha,
eu não acho – mas seria um grande desejo ir para lá ou encontrar
alguém de lá.
Para não perder muito tempo, gostaria de apontar um pequeno
incidente em que estive envolvido há pouco tempo, que vai dar uma
ideia de por que vou dizer o que sou.
Eu estava voando em um avião de Argel para Genebra cerca de
quatro semanas atrás, com dois outros americanos. Ambos eram bran-
cos – um era homem, o outro era mulher. E depois de voarmos juntos
por cerca de quarenta minutos, a senhora se virou para mim e me
perguntou – ela olhou para minha pasta e viu as iniciais M e X – e dis-
se: “Eu gostaria de fazer uma pergunta. Que tipo de sobrenome você
poderia ter que comece com X?”
Então eu disse a ela: “É isso: X.”
30 • Por todos os meios necessários

Ela ficou quieta por um tempo. Por cerca de dez minutos ela ficou
quieta. Ela não tinha ficado quieta até então, sabe. E então, finalmen-
te, ela se virou e disse: “Bem, qual é o seu primeiro nome?”
Eu disse: “Malcolm”.
Ela ficou quieta por mais dez minutos. Então ela se virou e disse:
“Bem, você não é Malcolm X?”
Mas a razão pela qual ela fez essa pergunta foi porque tinha obtido
da imprensa, e de coisas que ela tinha ouvido e lido, ela estava procu-
rando por algo diferente, ou por alguém diferente.
O motivo pelo qual levo tempo para lhes dizer isso é que uma das
primeiras coisas que acho que os jovens, especialmente hoje em dia,
devem aprender a fazerem é verem por si mesmos, ouvirem por si
mesmos e pensarem por si mesmos. Então vocês podem tomar uma
decisão inteligente por si mesmos. Mas se vocês criarem o hábito de
seguirem o que ouvem os outros dizerem sobre alguém, ou seguirem
o que os outros pensam sobre alguém, em vez de ir e procurar aquilo
por si mesmos e verem por si mesmos, vocês estarão caminhando para
o oeste quando pensarem que estão indo para o leste e estarão cami-
nhando para o leste quando pensarem que estão indo para o oeste.
Portanto, esta geração, especialmente de nosso povo, tem um grande
peso sobre si mesma, mais do que em qualquer outro momento da
história. A coisa mais importante que podemos aprender a fazer hoje
é pensar por nós mesmos.
É bom manter os ouvidos bem abertos e ouvir o que todo mundo
tem a dizer, mas quando vocês tomarem uma decisão, vocês tem que
pesar tudo o que ouviram por conta própria e colocarem em seus de-
vidos lugares, e então, tomar uma decisão por si mesmos. Vocês nunca
vão se arrepender. Mas se vocês criarem o hábito de aceitar o que outra
pessoa diz sobre uma coisa sem verificar por si mesmos, vocês desco-
brirão que outras pessoas farão com que vocês odeiem seus próprios
amigos e amem seus inimigos. Essa é uma das coisas que nosso povo
está começando a aprender hoje – que é muito importante pensar em
uma situação sozinho. Se vocês não fizerem isso, então vocês sempre
serão levados a realmente – vocês nunca lutarão contra seus inimigos,
mas se verão lutando contra si mesmos.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 31

Acho que nosso povo neste país é o melhor exemplo disso. Porque
muitos de nós queremos ser não-violentos. Nós falamos muito alto,
sabe, sobre não sermos violento. Aqui no Harlem, onde provavelmente
há mais negros concentrados do que em qualquer outro lugar do mun-
do, alguns falam aquela linguagem não violenta também. E quando
eles param de falar sobre o quão não-violentos são, descobrimos que
eles não são violentos um com o outro. No Hospital Harlem, você
pode sair na sexta à noite, que – hoje é o quê, sexta? – sim, você pode
ir aqui para o Hospital Harlem, onde há mais pacientes negros em
um hospital do que em qualquer hospital do mundo, porque há uma
concentração de nosso povo aqui, e encontrar negros que afirmam não
serem violentos. Mas você os vê entrando lá, todos cortados, cheios de
tiros e ferrados por terem se tornado violentos uns com os outros.
Então, minha experiência tem sido que em muitos casos em que
você encontra negros sempre falando sobre não serem violentos, eles
não são não-violentos um com o outro e não se amam, não são pacien-
tes ou perdoam um ao outro. Normalmente, quando dizem que não
são violentos, querem dizer que não são violentos com outra pessoa.
Acho que vocês entendem o que quero dizer. Eles não são violentos
com o inimigo. Uma pessoa pode ir à sua casa e, se ela for branca
e quiser agir brutalmente com você, então você não é violento. Ou
ele pode vir colocar uma corda em volta do seu pescoço, você não é
violento. Ou ele pode vir buscar seu pai e colocar uma corda em seu
pescoço, você não é violento. Mas agora se outro negro apenas bater
o pé, você vai trocar socos com ele bem rápido. O que mostra que há
uma inconsistência aí.
Veja, eu mesmo optaria pela não violência se fosse consistente, se
fosse inteligente, se todos fossem não-violentos e se fôssemos não-vio-
lentos o tempo todo. Eu diria, okay, vamos em frente, seremos todos
não-violentos. Mas eu não concordo – e estou apenas dizendo a vocês
como penso – eu não concordo com qualquer tipo de não violência,
a não ser que todos sejam não-violentos. Se eles tornarem a Ku Klux
Klan não violenta, eu serei não-violento. Se eles tornarem o Conselho
de Cidadãos Brancos21 não-violento, eu serei não-violento. Mas des-

21 Conselho de Cidadãos, Conselho dos Cidadãos Brancos (como Malcolm se refere),


ou Citizen’s Councils, foram uma rede de organizações supremacistas brancas con-
32 • Por todos os meios necessários

de que você tenha alguém que não seja não-violento, não quero que
ninguém venha até mim com qualquer tipo de papinho não-violento.
Não acho que seja justo dizer ao nosso povo para ser não-violento, a
menos que alguém esteja por aí fazendo com que a Klan e o Conselho
de Cidadãos e esses outros grupos também sejam não-violentos.
Mas assim, não estou criticando aqueles aqui que não são violen-
tos. Acho que todos deveriam fazer da maneira que acharem melhor,
e parabenizo qualquer um que puder ser não-violento diante de todo
tipo de ação sobre a qual li enquanto estive naquela parte do mundo.
Mas não creio que em 1965 você encontrará a próxima geração de
nosso povo, especialmente aqueles que têm pensado um pouco, que
aceitará qualquer forma de não violência, a menos que a não violência
seja praticada por todo o lado.
Se os líderes do movimento não-violento podem entrar na comu-
nidade branca e ensinar a não violência, ótimo. Eu concordaria com
isso. Mas enquanto os vejo ensinando não violência apenas na comu-
nidade negra, então não podemos concordar com isso. Acreditamos
na igualdade, e igualdade significa que você tem que colocar aqui a
mesma coisa que colocou lá. E se apenas os negros serão os não-violen-
tos, então não é justo. Nós nos jogamos desprevenidos. Na verdade,
nós nos desarmamos e nos tornamos indefesos.
Veja, para tentar fazer com que você compreenda melhor a nossa
própria posição, acho que você precisa saber algumas coisas sobre o
movimento muçulmano negro, que deveria ser um movimento reli-
gioso neste país, que era extremamente militante, vocalmente militan-
te ou militante vocal. O movimento negro muçulmano era conside-
rado um grupo religioso. E porque havia a intenção de ser um grupo
religioso, nunca se envolveu em questões cívicas – assim disse. E por
não se envolver em questões cívicas, e realmente nunca se envolveu,
sendo militante, atraiu os negros ou afro-americanos mais militantes
deste país. O movimento muçulmano negro atraiu os negros mais
insatisfeitos, impacientes e militantes deste país.

centradas no sul dos EUA. Depois de 1956 o nome passou a ser Citizen’s Councils
of America, ou Concelho dos Cidadãos da América.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 33

Mas quando os atraiu, o próprio movimento, por nunca se envol-


ver na luta real que está enfrentando os negros neste país, em certo
sentido foi manobrado para uma espécie de vácuo político e cívico.
Foi militante, foi vocal, mas nunca entrou na batalha em si.
E embora professasse ser um grupo religioso, as pessoas da parte
do mundo cuja religião ele havia adotado não os reconheciam nem
os aceitavam como um grupo religioso. Portanto foi também em um
vácuo religioso. Foi em um vazio religioso, ao se propor como grupo
religioso e por ter adotado uma religião que, na verdade, os rejeitava
ou simplesmente não os aceitava. Então, religiosamente, estava no vá-
cuo. O governo federal tentou classificá-lo como um grupo político,
para manobrá-lo a uma posição em que pudesse rotulá-lo de sedicioso,
para poder esmagá-lo por temer suas características inflexíveis e mili-
tantes. Portanto, por esse motivo, embora tenha sido rotulado de gru-
po político e nunca tenha participado da política, estava em um vácuo
político. Então, o grupo, o próprio movimento muçulmano negro,
se desenvolveu em uma espécie de híbrido, um híbrido religioso, um
híbrido político, uma organização do tipo híbrido.
Envolver todos esses negros bastante militantes, e depois não ter
um programa que os capacitasse a participar ativamente da luta, ge-
rou uma grande insatisfação entre seus membros. Ele se polarizou em
duas facções diferentes – uma facção que era bem vocal e outra facção
que queria algum tipo de ação, ação militante, ação firme. Por fim, a
insatisfação transformou-se em divisão, a divisão transformou-se em
cisão e muitos de seus membros saíram. Os que partiram formaram o
que ficou conhecido como Mesquita Muçulmana, Inc.22., que é uma
organização autenticamente religiosa afiliada e reconhecida por todos
os chefes religiosos oficiais do mundo muçulmano. Isso foi chamado
de Mesquita Muçulmana, Inc., cujos escritórios estão aqui.
Mas este grupo, sendo afro-americano ou negro americano, per-
cebeu que embora estivéssemos praticando a religião do Islã, ainda
havia um problema enfrentado por nosso povo neste país que não
tinha nada a ver com religião e que ia além da religião. Uma organi-
22 Muslim Mosque, Inc. foi uma pequena organização muçulmana formada por Mal-
colm X assim que ele deixou a Nação do Islã. A organização acabou assim que
Malcolm foi assassinado.
34 • Por todos os meios necessários

zação religiosa não poderia enfrentar esse problema de acordo com


sua magnitude, a complexidade do problema em si. Então, membros
desse grupo, depois de analisarem o problema, viram a carência, ou
necessidade, de formar outro agrupamento que não tivesse nada a ver
com religião. E esse grupo é o que se chama e hoje é conhecido como
a Organização da Unidade Afro-Americana23.
A Organização da Unidade Afro-Americana é um grupo não reli-
gioso de negros neste país que acreditam que os problemas enfrentados
por nosso povo precisam ser reanalisados ​​e que uma nova abordagem
deve ser desenvolvida para tentar chegar em uma solução. Estudando
o problema, lembramos que antes de 1939 neste país, todo o nosso
povo – no Norte, Sul, Leste e Oeste, não importa quanta educação
tivéssemos – era segregado. Éramos segregados no Norte tanto quanto
éramos segregados no sul. E mesmo agora, hoje, há tanta segregação
no Norte quanto no Sul. Temos segregação ainda pior aqui na cidade
de Nova York do que em McComb, Mississippi; mas aqui em cima
eles são sutis, ardilosos e enganosos, e fazem você pensar que con-
seguiu, quando na verdade ainda nem começou a construir alguma
coisa para si.
Antes de 1939, nosso povo ocupava uma posição ou condição mui-
to servil. A maioria de nós éramos garçons, carregadores, mensageiros,
zeladores, garçonetes e coisas desse tipo. Não foi até que a guerra foi
declarada na Alemanha por Hitler, e a América se envolveu em uma
escassez de mão de obra em relação a suas fábricas e seu exército – foi só
então que o homem negro neste país foi autorizado a dar alguns passos
adiante. Nunca foi por algum tipo de esclarecimento moral ou cons-
ciência moral por parte do Tio Sam. Tio Sam só deixou o negro dar um
passo à frente quando ele mesmo estava encurralado contra a parede.
Em Michigan, onde fui criado naquela época, lembro que os me-
lhores empregos para negros na cidade eram garçons no country club.
E naquela época, se você tinha um emprego servindo mesa no clube
de campo, você estava feito. Ou se você tivesse um emprego na Câ-

23 A Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU) foi uma organização Pan-A-


fricanista fundada por Malcolm X em 1964, modelada com base na Organização
da Unidade Africana (que causara grande impressão em Malcolm em suas viagens
no mesmo ano).
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 35

mara dos Deputados. Ter um emprego na Câmara dos Deputados não


significava que você era um escriturário ou algo do tipo – você era o
engraxate na Câmara dos Deputados. Só de estar onde você podia
ficar perto de todos esses grandes políticos, isso o torna um negro
figurão. Você estava engraxando os sapatos, mas era um negro figurão
porque estava perto de brancos figurões e dava para ganha-los na lábia
para levantar da calçada e ficar do lado deles. E muitas vezes, naquela
época, você era escolhido para ser a voz da comunidade negra.
Também nesta época, 1939 ou 40, 41, eles não estavam recrutando
negros no exército ou na marinha. Um negro não podia ingressar na
marinha em 1940 ou em 41 neste país. Ele não poderia entrar. Eles
não aceitariam um homem negro na marinha. Eles o levariam se qui-
sessem e o fariam cozinheiro. Mas ele não podia simplesmente ir e se
juntar à marinha. E ele não poderia simplesmente ir – eu não acho que
ele poderia simplesmente ir e se juntar ao exército. Eles não o estavam
recrutando assim que a guerra começou.
Isso é o que eles pensavam de você e de mim naquela época. Por
um lado, eles não confiavam em nós. Eles temiam que, se nos colo-
cassem no exército e nos treinassem no uso de rifles e outras coisas,
poderíamos atirar em alguns alvos que eles não haviam escolhido. E
nós atiraríamos. Qualquer homem pensante sabe em que alvo atirar.
E se um homem não pensa, se ele tem que ter outra pessoa para esco-
lher seu alvo, então ele não está pensando por si mesmo – eles estão
pensando por ele.
Então, foi só quando os líderes negros – eles tinham o mesmo
tipo de líderes negros naqueles dias que temos hoje – quando os líde-
res negros viram todos os companheiros brancos sendo convocados e
levados para o exército e morrendo no campo de batalha, e nenhum
negro estavam morrendo porque não estavam sendo convocados, os
líderes negros apareceram e disseram: “Temos que morrer também.
Queremos ser convocados também, e exigimos que você nos leve lá e
nos deixe morrer por nosso país também.” Isso é o que os líderes ne-
gros diziam, em 1940, eu me lembro. A. Philip Randolph foi um dos
principais negros que disse isso naquela época, e ele é um dos Big Six
agora. É por isso que ele é um dos Big Six agora.
36 • Por todos os meios necessários

Eles começaram a convocar soldados negros então, e começaram a


deixar os negros entrarem na marinha – mas não até que Hitler e Tojo
e as potências estrangeiras estivessem fortes o suficiente para pressionar
este país de modo que ele estava encurralado e precisava de nós. Ao
mesmo tempo, eles nos deixam trabalhar em fábricas. Até então não
podíamos trabalhar nas fábricas. Estou falando tanto do Norte quanto
do Sul. E quando eles nos deixaram trabalhar nas fábricas, começamos
– no início, quando eles nos deixaram entrar, só podíamos ser zela-
dores. Então, depois de um ano ou mais, eles nos deixaram trabalhar
nas máquinas. Nos tornamos maquinistas, adquirimos um pouco de
habilidade. E à medida que ganhamos um pouco mais de habilidade,
ganhamos um pouco mais de dinheiro, o que nos permitiu morar em
um bairro um pouco melhor. Quando morávamos em um bairro um
pouco melhor, íamos para uma escola um pouco melhor, tivemos uma
educação um pouco melhor e podíamos sair e conseguir um emprego
um pouco melhor. Portanto, o ciclo foi interrompido um pouco.
Mas o ciclo não foi quebrado por causa de algum tipo de senso de
responsabilidade moral por parte do governo. Não, a única vez que
esse ciclo foi quebrado até certo ponto foi quando a pressão mundial
foi exercida sobre o governo dos Estados Unidos e eles foram forçados
a olhar para o Negro – e então eles nem mesmo nos olharam como
seres humanos, eles apenas nos colocaram em seu sistema e nos dei-
xaram avançar um pouco mais porque isso serviu aos seus interesses.
Mas eles nunca nos deixaram avançar um pouco mais porque estavam
pensando ​​em nossos interesses, ou interessados ​​em nós como seres
humanos. Qualquer um de vocês que tenha conhecimento de história,
sociologia, ciência política ou do desenvolvimento econômico deste
país e suas relações raciais, tudo que você precisa fazer é pegar o que
estou dizendo e voltar e fazer algumas pesquisas sobre isso e você terá
de admitir que isso é verdade.
Foi durante o tempo em que Hitler e Tojo foram capazes de fazer
guerra com este país e pressioná-los que os pretos neste país avançaram
um pouco. No final da guerra com a Alemanha e o Japão, Joe Stalin
e a Rússia comunista eram uma ameaça. E nesse período avançamos
um pouco mais.
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 37

Agora, o que estou enfatizando é o seguinte: Nunca, em qualquer


momento na história de nosso povo neste país, fizemos avanços ou
avançamos, ou sequer progredimos de qualquer forma apenas com
base na boa vontade interna deste país, ou com base na atividade inter-
na deste país. Só avançamos neste país quando ele estava sob pressão
de forças acima e além de seu controle. Porque a consciência moral
interna deste país está falida. Ela não existia desde que nos trouxeram
aqui e nos tornaram escravos. Eles nos ludibriam e fazem parecer que
carregam nossos interesses em seus corações. Mas quando você estuda,
todas as vezes, não importa quantos passos eles nos levem para frente, é
como se estivéssemos em uma – como se chama aquele negócio? – uma
esteira. A esteira está se movendo para trás mais rápido do que somos
capazes de avançar nessa direção. Não estamos nem parados – estamos
andando para frente, ao mesmo tempo que estamos indo para trás.
Digo isso porque a Organização da Unidade Afro-Americana, ao
estudar o processo desse tal “progresso” durante os últimos vinte anos,
percebeu que a única vez que o homem negro neste país recebeu qual-
quer tipo de reconhecimento, ou recebe qualquer tipo de favoreci-
mento, ou mesmo sua voz é ouvida, é quando a América tem medo
da pressão externa ou quando tem medo de sua imagem no exterior.
Pudemos ver que enquanto nos sentássemos e continuássemos nossa
luta em um determinado nível ou de uma maneira que envolvesse
apenas a boa vontade das forças internas deste país, continuaríamos
retrocedendo, não haveria mudanças realmente significativas. Portan-
to, a Organização da Unidade Afro-Americana viu que era necessário
expandir o problema e a luta do homem negro neste país para que
fosse além da jurisdição dos Estados Unidos.
Nos últimos quinze anos, a luta do homem negro neste país foi
rotulada como uma luta pelos direitos civis e, como tal, permaneceu
totalmente sob a jurisdição dos Estados Unidos. Você e eu não pode-
ríamos obter nenhum tipo de benefício além do que viria de Washing-
ton, D.C. O que significava que, para vir de Washington, D.C., todos
os congressistas e senadores teriam que concordar com isso.
Mas os congressistas e senadores mais poderosos eram do sul. E
eles eram do Sul por serem os mais experientes em Washington, D.C.
E tinham experiência porque o nosso povo no Sul, de onde esses con-
38 • Por todos os meios necessários

gressistas e senadores vinham, não podia votar. Eles (os negros) não
tinham direito de voto.
Então, quando vimos que estávamos enfrentando uma batalha de-
sesperada internamente, vimos a necessidade de conseguir aliados em
nível mundial ou do exterior, de todo o mundo. E então, imediatamen-
te percebemos que, enquanto a luta fosse uma luta pelos direitos civis
e estivesse sob a jurisdição dos Estados Unidos, não teríamos aliados
reais ou apoio real. Decidimos que a única maneira de fazer o problema
atingir o grau em que pudéssemos obter apoio mundial seria retirá-lo
do rótulo de direitos civis e colocá-lo no rótulo de direitos humanos.
Não é por acaso que a luta do homem negro neste país nos últimos
dez ou quinze anos foi chamada de luta pelos direitos civis. Porque
enquanto você está lutando pelos direitos civis, o que você está fazen-
do é pedir a esses segregacionistas racistas que controlam Washington,
DC – e eles controlam Washington, DC, eles controlam o governo
federal por meio desses comitês – contanto que isso seja uma luta pe-
los direitos civis, você está perguntando em um nível onde o seu dito
benfeitor é, na verdade, alguém da pior parte deste país. Você só pode
ir em frente na medida em que eles permitirem.
Mas quando você se envolve em uma luta pelos direitos humanos,
isso está completamente fora da jurisdição do governo dos Estados
Unidos. Você leva isso para as Nações Unidas. E qualquer problema
que seja levado às Nações Unidas, os Estados Unidos não têm nenhu-
ma palavra a dizer sobre isso. Porque na ONU ela só tem um voto,
e na ONU o maior bloco de votos é africano, o continente africano
tem o maior bloco de votos de qualquer continente do planeta. E o
continente africano, juntamente com o bloco asiático e o bloco árabe,
compreende mais de dois terços das forças da ONU, e são as nações
sombrias. Esse é o único tribunal ao qual você pode ir hoje e ter seu
próprio povo, as pessoas que se parecem com você, do seu lado – as
Nações Unidas.
Isso poderia ter sido feito quinze anos atrás. Isso poderia ter sido
feito dezenove anos atrás. Mas eles nos enganaram. Eles contataram
nossos líderes e os usaram para nos conduzir de volta aos tribunais,
sabendo que eles controlam seus tribunais. Assim, os líderes parecem
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 39

estar nos liderando contra um inimigo, mas quando você analisa a luta
em que estivemos envolvidos nos últimos quinze anos, o bem ou o
progresso que fizemos é realmente vergonhoso. Devemos ter vergonha
até de usar a palavra “progresso” no contexto de nossa luta.
Então, houve um movimento, – e eu concluirei em breve – houve
um movimento para manter o negro pensando que neste país ele esta-
va fazendo progressos no campo dos direitos civis, apenas com o pro-
pósito de distraí-lo e não o deixando saber que se ele se familiarizasse
com a estrutura das Nações Unidas e a política das Nações Unidas, o
objetivo e o propósito das Nações Unidas, ele poderia elevar seu pro-
blema a esse organismo mundial. E ele teria o porrete mais forte do
mundo para usar contra os racistas no Mississippi.
Mas um dos argumentos contra que eu você e eu façamos isso
sempre foi que nosso imbróglio sempre foi um problema doméstico
dos Estados Unidos. E, como tal, não devemos pensar em colocá-lo
em um nível em que outra pessoa possa vir e bagunçar os assuntos
internos dos Estados Unidos. Mas você está dando uma chance ao
Tio Sam. Tio Sam está com as mãos no Congo, em Cuba, na América
do Sul, em Saigon. Tio Sam tem as mãos ensanguentadas em todos
os continentes e nos negócios de todos os outros nesta Terra. Mas, ao
mesmo tempo, quando se trata de tomar medidas enérgicas neste país
no que diz respeito aos nossos direitos, ele sempre dirá a você e a mim:
“Bem, esses são direitos dos Estados”. Ou ele vai tirar um álibi da car-
tola, um álibi que não é genuíno – não por ser um álibi, mas para jus-
tificar sua inatividade no que diz respeito aos seus e aos meus direitos.
Tivemos sucesso quando percebemos que tínhamos de levar isso às
Nações Unidas. Sabíamos que tínhamos de obter apoio, tínhamos de
obter apoio mundial e que a parte mais lógica do mundo em que de-
veríamos buscar apoio seria entre pessoas que se parecem exatamente
como vocês e eu.
Tive a sorte de poder fazer um tour pelo continente africano du-
rante o verão – o Oriente Médio e a África. Fui ao Egito, depois à Ará-
bia, Kuwait, Líbano e depois ao Sudão, Etiópia, Quênia, Tanganica,
Zanzibar, Nigéria, Gana, Guiné, Libéria e Argélia. Descobri enquanto
estava viajando pelo continente africano – e já havia percebido isso em
40 • Por todos os meios necessários

maio – que alguém muito astutamente plantou as sementes da divisão


neste continente para fazer com que os africanos não demonstrassem
preocupação sincera com o nosso problema, assim como eles plantam
sementes em sua e em minha mentes para que não nos preocupemos
com o problema africano. Tentam fazer com que você e eu pensemos
que somos separados e que os dois problemas são separados.
Quando voltei desta vez e viajei para diferentes países, tive a sorte
de passar uma hora e meia com Nasser no Egito, que é um país do
Norte da África; e três horas com o presidente Nyerere em Tanganica,
que agora se tornou a Tanzânia, país da África Oriental; e com o pri-
meiro ministro Obote, Milton Obote, em Uganda, que também é um
país da África Oriental; e com Jomo Kenyatta no Quênia, que é outro
país da África Oriental; e com o presidente Azikiwe na Nigéria, o
presidente Nkrumah em Gana, e o presidente Sékou Touré na Guiné.
Descobri que em cada um desses países africanos, o chefe de estado
está genuinamente preocupado com o problema do homem negro nes-
te país, no entanto, muitos deles pensaram que caso abrissem a boca
e expressassem tal preocupação, seriam insultados pelos líderes negros
americanos. Porque um chefe de estado da Ásia expressou seu apoio à
luta pelos direitos civis e alguns dos Big Six tiveram a audácia de res-
ponder agressivamente e dizer que não estavam interessados nesse
​​ tipo
de ajuda – o que, na minha opinião, é imbecil. Chegamos em tal ponto
que os líderes africanos tiveram de se convencer de que, caso assumis-
sem uma posição aberta a nível governamental e mostrassem interesse
pelo problema dos negros neste país, eles não seriam rejeitados.
E hoje vocês vão descobrir nas Nações Unidas – e não por aca-
so – que toda vez que a questão do Congo ou qualquer situação no
continente africano está sendo debatida no Conselho de Segurança,
eles associam isso com o que está rolando, ou o que está acontecendo
com você e comigo, no Mississippi e no Alabama e nesses outros lu-
gares. Na minha opinião, a maior conquista alcançada na da luta do
homem negro na América em 1964 em direção a qualquer tipo de
progresso real foi a conexão bem-sucedida do nosso problema com o
problema africano, ou terem tornado nosso problema um problema
mundial. Porque agora sempre que alguma coisa acontece com vocês
no Mississippi, não é o caso de só alguém no Alabama ficar indignado,
Discursos escolhidos de Malcolm-X • 41

ou alguém em Nova York ficar indignado. O que quer que aconteça


no Mississippi hoje, com a atenção das nações africanas voltadas para
o Mississippi em nível governamental, então, as mesmas repercussões
que vocês veem no mundo inteiro quando uma potência imperialista
ou estrangeira interfere em alguma parte da África, vocês veem re-
percussões, veem as embaixadas sendo bombardeadas, queimadas e
destruídas. Nos dias de hoje, quando algo acontecer aos negros no
Mississippi, vocês verão essas mesmas repercussões no mundo inteiro.
Gostaria de mostrar isso a vocês porque é importante que saibam
que quando estão no Mississippi, vocês não estão sozinhos. Mas en-
quanto vocês pensam que estão sozinhos, então adotam uma posição
como se fossem uma minoria ou como se estivessem em desvantagem,
e esse tipo de posição nunca permitirá que vocês ganhem uma batalha.
Vocês têm que saber que têm tanto poder do seu lado quanto a Ku
Klux Klan tem do lado dela. E quando vocês sabem que têm tanto
poder do seu lado quanto a Klan, vocês passam a usar o mesmo tipo
de linguagem com essa “Klan” que ela usa com você.
Vou dizer só mais uma coisa, e então concluirei.
Quando digo o mesmo tipo de linguagem, devo explicar o que
quero dizer. Veja, vocês jamais podem ter boas relações com alguém
com quem não podem se comunicar. Vocês nunca podem ter boas
relações com alguém que não os entendam. Tem de haver entendi-
mento. A compreensão é obtida por meio do diálogo. O diálogo é
comunicação das ideias. Isso só pode ser feito em um idioma, um
idioma comum. Vocês não podem falar em francês com alguém que
fala somente em alemão e pensar que estão se comunicando. Nenhum
deles – eles não compreendem. Vocês têm que ser capazes de falar a
língua de um homem para fazê-lo entender.
Veja bem, vocês já moraram no Mississippi por tempo suficiente
para saber qual é a linguagem da Ku Klux Klan. Eles só conhecem
uma língua. Se você chegar com outra língua, você não se comunica.
Você deve ser capaz de falar a mesma língua que eles, seja no Mississi-
ppi, na cidade de Nova York ou no Alabama, ou na Califórnia, ou em
qualquer outro lugar. Quando vocês se desenvolvem ou amadurecem
a ponto de poder falarem a língua de outro homem no nível dele, esse
42 • Por todos os meios necessários

sujeito entende bem o que vocês querem dizer. Essa é a única vez que
ele entende. Vocês não podem falar de paz com uma pessoa que não
sabe o que paz significa. Vocês não podem falar sobre amor com uma
pessoa que não sabe o que o amor significa. E vocês não podem discu-
tir a respeito de qualquer meio não-violento com uma pessoa que não
acredita na não violência. Ora, vocês estão perdendo tempo.
Então, acho que em 1965 – quer você goste, ou eu goste, ou nós
gostemos, ou eles gostem, ou não – vocês podem perceber que há uma
geração de negros nascidos neste país que amadureceu ao ponto de
sentirem que não devem atender aos pedidos de agirem pacificamente
em relação às outras pessoas, a não ser que todo mundo adote uma
postura pacífica.
Então, nós, aqui na Organização da Unidade Afro-Americana, es-
tamos mil por cento com a luta no Mississipi. Estamos juntos dos
esforços para registrar nosso povo no Mississippi para que votemos
mil por cento. Mas não estamos no mesmo barco com ninguém que
nos diga para ajudar de maneira não-violência. Cremos que se o go-
verno diz que os pretos têm o direito de votar, e então, quando os
pretos saem para votar, algum grupo como a Ku Klux Klan aparece
para jogá-los no rio, e o governo não faz nada a respeito, é hora de nos
organizarmos e nos unirmos e nos equiparmos e nos qualificarmos
para nos proteger. E uma vez que você é capaz de se proteger, você não
precisa se preocupar em ser ferido. É isso.

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