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RECENSÃO

José Tolentino Mendonça, A leitura infinita. A Bíblia e a sua


interpretação, Prior Velho, Edições Paulinas, 2014, 351 pp. 1

A leitura infinita é uma proposta de hermenêutica bíblica que recorre a muitas


fontes: historiadores, cientistas, psicólogos, antropólogos, escritores,
psicanalistas, e outros mais, confrontando-os e fazendo-os dialogar, entre si e
com o leitor. É um livro em que se cruzam tempos diferentes. Em primeiro lugar
e determinante, há o tempo longo da exegese bíblica enquanto narrativa de
salvação. Depois, e inserindo-se neste, surge um tempo fragmentado,
interrompido por intervalos mais ou menos longos, nos quais se analisam
diferentes temáticas. Temáticas essas que nos ajudam a perceber melhor o
livro fascinante que é a Bíblia, nas suas múltiplas possíveis leituras (pp. 11-43).
São abordagens que nos perturbam, como o diálogo entre a violência e o
sagrado (pp. 60-65); que nos intrigam, como o papel dos Anjos no Antigo e no
Novo Testamento (pp. 98-118); que nos surpreendem como a relevância da
mesa e da cozinha na vida pública de Jesus (pp. 163-202); que nos
esclarecem, como a análise dos ritos, a mostrar a presença do judaísmo na
mensagem inovadora que é o Novo Testamento (pp. 294-301).

O texto bíblico transcende o tempo pois diz respeito a todas as épocas e


ultrapassa o contexto da sua escrita. A sua relação com o infinito prende-se
com a atemporalidade e com o não lugar. Portanto aplica-se a todos os tempos
e a todos os lugares, dado que a Bíblia é, no dizer de Tolentino, "um estaleiro
de símbolos (p. 50). E de facto ela transcende o universo religioso, impondo-se
como obra cultural e literária cujo desconhecimento o autor considera uma
forma de "iliteracia cultural" (p. 50). De qualquer modo, há um enraizamento
original que liga judaísmo e cristianismo a um dado tempo e a uma dada
cultura, mantendo um permanente diálogo com as diferentes épocas. Disso é
testemunha a pluralidade de interpretações a que têm sido sujeitos o Antigo e o
Novo Testamento.
1
Esta recensão não obedece ao acordo ortográfico embora nas citações se respeite a grafia do autor.
A hermenêutica que nos é apresentada em A leitura infinita desenrola-se em
dois ritmos. Há um tempo longo, cujo objectivo é interessar-nos pelo conjunto
de livros que integram a Bíblia, ajudando-nos na sua interpretação. Mas
paralelamente a esse percurso genérico vão-se abrindo pequenas janelas que
nos permitem parar, saboreando certos temas, aprofundando conceitos e
questionando teses e interprtações.

Sem grande preocupação de ordem salientamos algumas dessas janelas que


nos conduzem a tempos do quotidiano, particularmente significativos para o
leitor comum. São temas díspares como os diferentes ritmos das festas, os
rituais das celebrações, o papel das colheitas, a importância do corpo e da
sexualidade, o carácter gratuito do amor e do convívio, o modo como devemos
rezar, as pessoas com quem nos sentamos à mesa. Nessas múltiplas janelas
que se vão abrindo ao longo do texto JTM aprofunda uma diversidade de
temas, partilhando as suas preferências e os seus interesses, bem como o
modo original como utiliza as múltiplas fontes a que recorreu.

Algumas dessas janelas têm um objectivo claramente didáctico - é o caso da


interpretação da parábola do fariseu e do publicano. A análise desse passo
lucano é emblemática pois aplica-se a todos os relatos do mesmo tipo,
explicitando-os nos seus elementos constitutivos - a semântica, o auditório, a
identidade dos personagens, o significado do templo. É uma perspectiva que
nos esclarece, pois com ela compreendemos a diferença entre fariseus e
publicanos, ao mesmo tempo que nos ensina o modo como devemos rezar.
Com esta paragem aprendemos "uma entrega confiada na ajuda do Pai e o
empenhamento numa relação justa com os irmãos" (p. 271). E ao comentar
este episódio J.T.M leva-nos simultaneamente a perceber "a singular
linguagem da mudança" (p. 254) que caracteriza todas as parábolas.

Inegavelmente que neste livro, a abordagem histórica desempenha um papel


relevante. Contudo ela não é exclusiva pois embora situado, o texto bíblico
nunca é prisioneiro de um tempo e de um lugar. Esta é a tese recorrente ao
longo da obra sendo logo de início colocada no contexto da eternidade: "Não
sei de melhor iniciação ao infinito do que a leitura e a leitura bíblica." (p.7).
Contudo, contrapondo-se a esta atemporalidade, uma última secção, dedicada
a entrevistas, alerta-nos para uma "espessura histórica inalterável" propondo
múltiplas interpretações, adaptáveis à circunstância particular de cada leitor (p.
305).

Em A leitura infinita o texto bíblico apresenta-se-nos como um diálogo entre a


eternidade e o tempo, relevando-se os diferentes tempos que nos permitem
entender a mensagem de Cristo, bem como a infinidade de caminhos que nos
fazem aceder à leitura da gramática divina.

À primeira vista o livro surge-nos como um emaranhado de textos, norteados


por um mesmo fio condutor - ajudar-nos a penetrar nos livros sagrados do
Antigo e do Novo Testamento. Assim, a oferta que se nos apresenta é dupla :
por um lado o livro lê-se de um modo linear, corrido, em que os diferentes
capítulos se sucedem, complementando-se e oferecendo-nos uma diversidade
de instrumentos aplicáveis à exegese bíblica. Por outro, podemos descansar,
saboreando as suas diferentes paragens e desvios, escolhendo-os como leitura
autónoma em função de interesses próprios e de carências informativas.

À medida que avançamos na leitura do livro damo-nos conta de que ele se


articula numa sucessão de tempos e que o tempo longo da narrativa da
salvação se intercala com tempos mais rápidos, uma espécie de intervalos que
irrompem ao longo dos capítulos. De facto, a estrutura desta obra integra
cinco grandes blocos, sendo o primeiro dedicado à leitura, o segundo à
revelação, o terceiro ao amor e à sexualidade, o quarto à cozinha e à mesa e
o último às inúmeras questões e interrogações ligadas à figura de Jesus. E ao
longo destes blocos vão-se abrindo janelas que permanentemente nos
desafiam ao aprofundamento do percurso corrido.

Podemos entender este constante mergulhar em diferentes cenas como a


consequência lógica dos múltiplos estilos literários que o autor analisa - a
história, o romance, o quotidiano, a poesia, a profecia. Há infinitos modos de
ler a Bíblia e JTM ajuda-nos a percebê-los apresentando-nos a rede múltipla
que é o seu texto. A hermenêutica dos textos bíblicos à qual o autor dedica o
seu primeiro capítulo - "O elogio da leitura" - , não pode ser feita na ignorância
das vicissitudes por eles sofridas, inexoravelmente ligadas ao tempo. Mas a
Bíblia constitui um apelo à transcendência, libertando-se da prisão de uma
história ou de um lugar. Daí a sua força e actualidade, no passado e no
presente. Daí a sua participação no intemporal, particularmente sublinhada no
Quarto Evangelho que TM associa à indeterminação: "a indeterminação
instaura entre o texto e o leitor uma espécie de espaço em branco, um patamar
vazio, um tempo que ainda não começou."(p.44).

O diálogo entre o tempo e a eternidade é particularmente visível no segundo


grupo de textos que constitui o bloco "Escondimento e Revelação" (pp. 73-
124). Aqui a narrativa da expulsão do primeiro casal do Paraíso não é
interpretada como perda mas sim como a cisão de dois tempos - o tempo da
plenitude, infinito e sem dimensões e o tempo da salvação "orientado e
finalizado" (p. 73), portanto mensurável e inserível numa cronologia. A
cosmogonia bíblica dá ao homem um papel de construtor da própria terra,
moldando-a à sua maneira, na medida em que descobre os seus ritmos. O
poder que o homem recebe de Deus torna-o senhor do tempo - plantar,
cultivar, cuidar, exige uma obediência a ciclos. Estes constituem-se como "o
começo do viver histórico" (p.77).

A providência divina revela-se não só na história dos homens como também


nas histórias individuais de cada um: "As acções divinas não estão contidas
apenas no excepcional tempo das origens mas atravessam e resgatam o
tempo ordinário, profano, presente." (p.83). O exercício da providência no Novo
Testamento abre-nos a uma dimensão escatológica do tempo - "o espírito
sopra onde quer" (p. 88) - pela qual tomamos consciência da imprevisibilidade
divina, uma constante nos dois Testamentos.

"Ars Amatoria" (pp. 125-138) é um terceiro bloco de textos. Com ele


mergulhamos na tradição amorosa e no erotismo. A análise aqui empreendida
ao Cântico dos Cânticos e à corporeidade, permite-nos perceber o modo
como o corpo humano se insere no "misterioso corpo da criação" (p. 131). JTM
interroga-se sobre a origem, a estranheza e o enredo deste poema amoroso no
qual é dado à mulher um protagonismo pouco comum no Mundo Antigo,
Discorre sobre as potencialidades eróticas do corpo humano, pelo qual os
enamorados tecem "uma prece ininterrupta onde Deus se toca." (135). As
diferentes leituras do Cântico são um primeiro degrau para a análise da
sexualidade que é confrontada com o conceito de pessoa e referenciada à
ética, numa exaltação da "paridade entre géneros" (p. 144). A importância da
corporeidade é também realçada noutros textos do Novo Testamento bem
como nas epístolas paulinas onde o corpo se reinventa (pp. 148 e sgs.). A
construção da identidade pessoal é revisitada através do amor e o Evangelho
de Lucas é eleito como a trajectória onde melhor se declinam diferentes
formas da relação amorosa.

No quarto bloco de textos - "A Cozinha e a Mesa" - a corporeidade continua a


ocupar um lugar central. A originalidade com que é analisado o tempo de
preparação das refeições, o cuidado com o modo como se come e com quem
se come, a importância atribuída aos lugares e aos sabores, a referência à
comensalidade e ao encontro entre amigos através da cozinha, constitui um
dos capítulos mais originais deste livro. Nele Tolentino Mendonça releva a
mesa como um lugar privilegiado de partilha e de hospitalidade. É à mesa que
descobrimos a gramática das diferentes civilizações e que nos apercebemos
do simbolismo próprio da comensalidade, bem como da sua dimensão lúdica e
do seu potencial dialógico. A mesa é o lugar em que Jesus subverte o
estabelecido pois nela acolhe pecadores, impuros, mulheres e estrangeiros.
JTM orienta-nos para "uma Bíblia dos sabores" (p. 165) e apresenta-nos a
mesa como lugar determinante da tradição bíblica, interrogando-se se na
condenação de Jesus teria pesado o modo como comia e com quem comia
(pp. 173,185). A hospitalidade e a abertura são evidenciadas como marcas
que distinguem o cristianismo das culturas etnocentradas com as quais ele
convive: "a mesa e a refeição tornam-se por excelência o sítio da
universalidade e da utopia cristãs" (p. 178), mostrando-nos que a tradição
cristã, mais do que uma teoria é uma prática de vida. Uma prática que acolhe
os vários caminhos que nos levam a Deus.

O quinto e último capítulo - "No meio de vós está o que não conheceis" é
dedicado à figura de Jesus, cuja identidade é construída a partir de uma série
de personagens. Deus, os demónios, Moisés, Elias, são figuras individuais
que nos ajudam a perceber a personalidade do Salvador. Mas para reconstituir
a sua mensagem JTM também recorre a entidades colectivas como a
multidão. E nela destaca os discípulos a quem é dada uma instrução
particular, confiando-se-lhes uma missão. As mulheres também têm
protagonismo, pois Jesus fá-las figuras emblemáticas do cuidado e da
solidariedade. Também os publicanos e os pecadores, bem como os fariseus e
os escribas, nos ajudam a construir e reconhecer a identidade do Mestre.
No texto lucano que Tolentino privilegia neste capítulo, destacam-se figuras
individuais como João Baptista, Maria Mãe de Jesus, os seus irmãos e
familiares bem como inúmeros anónimos que desempenham um papel
determinante na narrativa evangélica. A mensagem de Jesus desenrola-se
assim na sua relação com os outros, acolhendo-os, curando-os, perdoando-os,
e convertendo-os. E como não poderia deixar de ser, aos discípulos é dado
uma especial atenção (pp. 237-240).

A confirmar a importância do tempo ao longo deste livro, abre-se uma janela


que lhe é concretamente dedicada: "A qualificação messiânica do tempo" (pp.
283-291). Neste subtexto aprofunda-se o significado simbólico e teológico do
calendário cristão, hoje adoptado universalmente pois a era messiânica
tornou-se um marco para todas as civilizações. O chamado "tempo de
plenitude" perde a sua dimensão escatológica e identifica-se simultaneamente
com o começo e com a sua continuação. Deste modo, Kairos e Chrónos
entrelaçam-se, relacionando-se o primeiro com um momento determinado e o
segundo com o fluir do tempo, susceptível de contagem (pp. 290-1). Na
verdade, a mensagem de Jesus instaura um novo tempo , pelo qual crentes e
não crentes passam a ser regidos.

A título de complemento temos uma série de entrevistas, todas elas


importantes para responder às dúvidas e questões que o leitor comum
certamente foi levantando ao ler esta obra. E percebemos que os desvios e
paragens que intercalam o tempo longo, testemunham os diferentes tempos
da escrita do autor, que com eles foi construindo a sua exegese bíblica.

Neste livro em que se cruzam diferentes tempos, privilegia-se "o momento


pleno do tempo", ou seja, o tempo de Jesus e do anúncio da palavra divina,
encarnada num homem. Um tempo divino mas simultaneamente humano. Com
o anúncio do Reino instaura-se o milagre e tudo se subverte e liberta, sendo a
ética retributiva substituída pelo perdão e pela misericórdia.
À maneira de conclusão pareceu-nos oportuno citar dois excertos do próprio
autor, que em poucas palavras sintetizam o percurso efectuado neste livro: "A
Bíblia não é um suplemento da fé, mas é central e indispensável à própria
descoberta e maturação do caminho da fé." (p. 311) e "Não há leitura exclusiva
da Bíblia. O grande perigo é acharmos que existe "a" leitura. O que existe são
leituras" (p. 312).

Se JTM elegeu como um dos seus objectivos principais fornecer ao leitor de A


leitura infinita competências hermenêuticas para uma melhor compreensão dos
textos sagrados, pensamos que inegavelmente tal desiderato foi amplamente
sucedido.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira

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