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ensaios sobre

tradução e cultura
Walter Costa
Mayara R. Guimarães
Izabela Leal
(Orgs.)

ensaios sobre
tradução e cultura
© 2013 Walter Costa; Mayara R. Guimarães e Izabela Lea
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Victoria Rabello Palimpsestos imperfeitos
(Que significa traduzir o cânone?) 7
João Barrento
Traduzir, o jogo da diferença no ÉCART,
em Maurice Blanchot 21
Eclair Antonio Almeida Filho
Mario Faustino: poeta-elo do estrangeiro e do próprio 35
Mayara Ribeiro Guimarães
Um beijo de línguas: as metáforas eróticas da tradução 51
Izabela Leal
Toda a tradução é composta de mudança, diz Herberto 61
Luis Maffei
A experiência, em poesia e em tradução:
partilha(s), lugar(es) comum(ns) 73
Marcelo Jacques de Moraes
La traduction littéraire entre le religieux et le poétique:
le cas d’Esther 81
Inês Oseki-Dépré
2013
Viveiros de Castro Editora Ltda. Etnografía multisituada de conceptos en movimiento
Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320 – Ipanema y semiosis decolonial: la Europa del siglo XXI a la luz
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902 de la América colonial 99
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br Christiane Stallaert
Palimpsestos imperfeitos
Elegias de Duíno – Original e Tradução como Identificação
Transcultural da Modernidade em Paulo Plinio de Abreu (Que significa traduzir o cânone?)
(1950 em Belém) e Augusto de Campos (1990 em São Paulo) 111 João Barrento
Gunter Karl Pressler
O tradutor: perfil e análise 127
Marie-Hélène Catherine Torres
Literatura em trânsito: notas sobre edições, coleções
e antologias entre o Brasil e Argentina 137
Paloma Vidal
Traduzir: recordar o destino 145
Sabrina Sedlmayer
Sobre os autores 151
A pergunta do meu subtítulo pode sugerir a questão prévia de saber o que
nele está implícito: o “porquê de ler/traduzir o cânone?”, ou, talvez mais, o
“como ler/traduzir o cânone?”.

i – a pergunta do “porquê”
leva-nos de volta a Calvino e à questão do Porquê ler [traduzir] os clássicos,
e a um certo número de inquirições a que eu próprio já dei algumas respos-
tas em “Ler os clássicos com os clássicos” (no livro A Espiral Vertiginosa, p.
105 segs.). Traduzem-se os clássicos
– porque as “grandes obras” não só asseguram a sua sobrevivência
através da tradução – uma metempsicose, e não uma morte –, que é hoje
reconhecidamente o meio por excelência de alargamento (universalização)
de um texto já canónico, como também “pedem” para ser traduzidas;
– porque a tradução é um dos garantes do papel determinante da his-
tória e das instâncias de recepção na formação do cânone;
– porque a leitura/tradução permite dar respostas, sustentadas pela
prática, às perguntas sobre o cânone, a sua natureza e o seu destino, per-
guntas essas que relevam sempre de uma de três posições teóricas ou filo-
sóficas: essencialistas (o que é um clássico, ou um texto canónico?), histo-
ricistas (como nascem e morrem os clássicos?) ou funcionalistas (para que
servem os clássicos?);

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– porque, na resposta a essas questões, podemos chegar a constatações da sua linguagem; e razões de circunstância, como os interesses de conhe-
essenciais, como a de que, para entender o que é, ou como se devém, um cimento particulares, as modas, as alterações nas relações de força entre
clássico, é fundamental saber o que é o tempo e como se lhe resiste, ou sistemas fortes e fracos, centros e periferias, etc..
quem decide, e como, que textos serão canonizados ou se transformarão 3. Outra implicação contida na formulação do nosso tema, e suscep-
em clássicos; tível de discussão, poderá ser: traduzir o cânone é diferente de traduzir
– porque importa distinguir, na tradução do cânone, entre finalidade textos não canónicos? E a que níveis? O da produção do texto de chegada?
e apropriação, entre uso e abuso ou instrumentalização; O das expectativas de recepção, como se o texto dito canónico implicasse
– porque a pergunta sobre o cânone ou os clássicos nos conduz ao regras e modelos de tradução específicos e tivesse exigências de responsa-
cerne do nosso próprio tempo pós-moderno e ao seu regresso ostensivo aos bilidade acrescidas para quem traduz?
clássicos e à tradição, traduzido num eclectismo sem norte, mas também Os autores de algumas das principais traduções recentes de textos clás-
numa assimilação criativa da tradição – nomeadamente pela tradução. sicos entre nós estão, em geral, de acordo sobre alguns pontos essenciais,
A pergunta do “porquê” não será a que mais importa debater agora, como o equilíbrio (entre classicidade e actualidade) na esfera da produção
apesar do interesse que pode suscitar num tempo em que, pelo menos em e transformação – mais literal ou mais poetizada – do texto do passado
Portugal e desde há alguns anos, assistimos a uma nova e renovada vaga num texto poeticamente legível e defensável hoje (“equilíbrio” parece-me
de traduções de textos canónicos a partir das línguas originais, em especial de facto ser um termo-chave em muitas das práticas da tradução do cânone
daqueles que antes eram quase sempre objecto de traduções em segunda e a que me referirei).
terceira mão – os alemães, os russos, os gregos... O interesse pelos clássicos Assim, o poeta Vasco Graça Moura alude, no prefácio à sua tradução
e pela tradição parece, de facto, ser um sinal típico de uma época tardia, integral das Rimas de Petrarca, a esse equilíbrio entre “a personalidade do
de revivalismo e de regressos, pós-moderna porque pós-tudo, sem o élan tradutor..., que também é autor” e a “noção de ‘fotografia histórica’”, que,
antipassadista e a vontade de originalidade dos modernos. no caso de um autor que “teve influência patente na cultura da língua de
acolhimento, como é o caso de Petrarca em Portugal”, não deixa de suscitar
ii – a pergunta do “como” uma particular “expectativa do leitor” (MOURA, 2003, p. 32).
O helenista Frederico Lourenço, por seu lado, deixa claro que um dos
Penso ser antes a pergunta do “como” que aqui nos interessa, e ela sugere objectivos da sua tradução da Odisseia é o de “devolver ao leitor de língua
uma série de outras questões que passarei a enunciar, e a comentar breve- portuguesa o prazer do texto homérico”, o que implica não fazer “uma tra-
mente. Assim: dução arcaizante nem académica”, mas antes “uma tradução para ser lida
1. Talvez fosse conveniente lembrar que o cânone não existe, que não pelo gozo de ler” (LOURENçO, 2003, p. 7) (esta é uma questão decisiva para
existe um cânone, que o cânone é, por natureza, instável e a história trata de a nossa actualidade: se conseguíssemos pôr o cânone, o original e o tradu-
canonizar e descanonizar obras e autores. E que a tradução e a sua história, zido, a ser lido pelo gozo de ler, teríamos salvo por mais algum tempo a
desde o século XVI, tem revelado ela própria alguma capacidade canoni- cultura do livro e da letra hoje ameaçada).
zadora, impondo uns autores e ignorando outros. Épocas houve em que o O equilíbrio proposto por António Feijó (tradutor de Shakespeare),
cânone do subsistema da literatura em tradução foi entre nós surpreenden- sendo aparentemente de outra natureza, não anda tão longe assim dos res-
temente diverso do dos países ou das literaturas de origem. tantes: trata-se, para o tradutor do Hamlet, de “fixar o sentido literal de um
2. Mas também se pode dizer que existe um núcleo duro do cânone texto e ponderar praticamente o seu envelhecimento”, ou, como se lê no
que desde cedo se impôs e se mantém. Em relação a esse, caberia indagar final da sua última nota a esta tradução, de “alinhar palavras que, de modo
das razões que levam a que se traduzam e retraduzam certos textos: razões empírico, [o tradutor] julga poder oferecer como um contemporâneo
de fundo, como a historicidade das traduções e a consequente caducidade equivalente viável” (FEIJÓ, 2001, p. 250, 253) (comentarei ainda a questão

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importante dos modos de equilíbrio possíveis entre o apego à literalidade e colocam na própria leitura dos textos canónicos da nossa própria língua,
o trabalho do tempo sobre os textos). sobretudo os mais distantes no tempo, leitura essa que constitui também
Finalmente, eu próprio, na introdução à tradução do Fausto de Goethe, um processo de tradução intralinguística). Na história da tradução no Oci-
deixo clara a consciência de um certo determinismo que rege a relação do dente traduz-se quase exclusivamente na vertical até ao século XVII, o que
original com a sua tradução: “a natureza dos originais dita o caminho da significa que as línguas vernáculas se ignoravam entre si para efeitos de
sua tradução” (BARRENTO, 1999, p. 20), com isto sugerindo que a tradução tradução, e que o cânone era constituído pelos Antigos e pela Bíblia. A
de um Fausto canónico recomenda vias diversas das de um Fausto contem- nossa modernidade, nesta matéria como noutras, começa no século XVIII.
porâneo, como os de Thomas Mann, Lawrence Durrel, Paul Valéry, ou os A partir daí, a tradução do cânone antigo, um processo de escavação em
muitos Faustos socialistas que surgiram na extinta República Democrática palimpsesto mais ou menos transparente (a grande tradição alemã desde
Alemã. E afirmo a intenção de “orquestrar um Fausto em português para uso Schleiermacher e Hölderlin), translúcido ou mesmo opaco (práticas mais
de hoje”, orientando-o num sentido “que não será apenas, nem o da fluência presentes na tradição do franciser e das belles infidèles, ou também da
da dicção, nem o da fidelidade formal, mas qualquer coisa em que os dois fluency e da “invisibilidade do tradutor” no espaço anglo-saxónico), fez-se
aspectos convergem, e que o próprio texto sugere” (BARRENTO, 1999, p. 19). progressivamente acompanhar por uma prática de deslocamento à superfí-
4. Há outras questões que derivam dos casos referidos, que nos con- cie no espaço linguístico-cultural das línguas vernáculas europeias, todas
frontam, por acaso ou não, com exemplos de tradução do cânone que devedoras da tradição antiga, mas assumindo em determinados momentos
cobrem o espectro dos três grandes géneros tradicionais: o lírico, o épico e algumas delas o lugar de matrizes para a circulação de formas, géneros
o dramático (no caso do Fausto, os três em simultâneo). É uma questão – a e modos de linguagem que outras iriam tomar de empréstimo (Petrarca
das implicações da relação entre cânone e género para efeitos de tradução para a lírica, a matéria bretã para formas épico-narrativas anteriores ao
– que deixo sem maiores desenvolvimentos, porque há outras que me inte- romance, Shakespeare para o drama moderno, o romance inglês para o que
ressam bem mais. Como as seguintes: viria depois: a tradução da Pamela de Richardson para francês em 1760 é,
5. As determinações históricas da tradução do cânone, que formulo no âmbito do romance, um dos primeiros exemplos do que chamei a “tra-
numa hipótese: “Traduzir o cânone é traduzir na história”. i.e., um texto dução na horizontal”).
canónico traduz-se no tempo, é atravessado por vários estratos temporais Continuo ainda neste plano da historicidade da tradução do cânone,
que sobre ele se sedimentam. Uma vez que a tradução feita hoje pretende, para aflorar pelo menos mais dois aspectos com implicações importantes.
em princípio, trazer o texto do passado a este nosso momento (mais do 6. As traduções do cânone (e, em certos casos, também os próprios
que a simples leitura, ou o comentário, que podem perfeitamente ser his- textos canónicos, como da Odisseia diz Frederico Lourenço e do Hamlet
torizantes), todos os outros momentos por que ele passou se interpõem, António Feijó – e eu próprio poderia dizer o mesmo do Fausto) são muitas
funcionando, ou como janelas que abrem perspectivas, ou como empe- vezes traduções de traduções. A presença, ou mesmo a influência, dessas
cilhos a uma tradução mais liberta de modelos que podem colocar sérios várias versões intermédias na tradução actual de uma obra canónica verifi-
problemas de dependência. Outra é, por oposição, a situação de tradução cam-se a níveis e sob formas muito diversos. O recurso a traduções anterio-
de textos contemporâneos, que se traduzem no espaço. Também se poderia res é prática corrente, e parte integrante do processo de tradução do cânone,
falar, neste contexto, de tradução na vertical (na diacronia) e na horizontal uma vez que as versões intermédias intervêm directamente nesse processo
(na sincronia); e acontece que a tradução na horizontal se faz entre estádios de “tradução na história”, a que aludi antes. Nas suas últimas grandes tradu-
idênticos das línguas, os de hoje (penso apenas, para facilitar a discussão ções (de Dante, de Ronsard, de Petrarca), Vasco Graça Moura refere sempre
do problema, em núcleos de línguas afins ou próximas), enquanto a relação expressamente as versões anteriores a que recorreu, e Frederico Lourenço
na vertical se complexifica devido ao desfasamento temporal entre língua inclui mesmo uma bibliografia das traduções e comentários da Odisseia que
de chegada e de partida (aqui, potenciam-se todos os problemas que se utilizou (e o mesmo faz Graça Moura para as Rimas de Petrarca). Pessoal-

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mente, não me servi, para o trabalho no Fausto, de muitas traduções, em actuante da memória presente que leva à actualização de um passado textual
português ou noutras línguas (recorri mais a comentários alemães): ignorei na tradução) e Andenken (recordação, lembrança ou memória passiva). O
a reinvenção da Primeira Parte por António Feliciano de Castilho (1872), primeiro permite entender a tradução como revitalização permanente dos
desisti de olhar para a tradução brasileira de Jenny Segal, cheia de irritantes textos; o segundo opera uma cristalização, ou cai na simples comemoração,
tours de force linguísticos, não fui atrás das “transluciferações” de Haroldo e o texto traduzido é então um lieu de mémoire (no sentido que ao termo
de Campos, mas a certa altura dei por mim, inesperadamente, a prestar atribui o historiador francês Pierre Nora), em vez de texto vivo, ou redivivo
atenção ao excelente sentido da forma numa tradução inglesa, já antiga, de (como gosta de dizer Herberto Helder). Nesse caso, a tradução limita-se a
Albert Latham (1908), e clarifiquei pontualmente questões de semântica no confirmar as expectativas de um tempo que, em geral, nem sequer é o seu,
confronto com as versões em prosa francesa e italiana. mas um tempo anterior. Face a esta alternativa, o “equilíbrio” a que já várias
Esta “ponderação do envelhecimento do texto” (A. Feijó), a inserção, vezes aludi (quanto a mim recomendável na tradução do texto clássico que
mais ou menos explícita, numa linha ou mesmo numa determinada linha- não tenha de obedecer a uma finalidade particular) poderia eventualmente
gem de traduções anteriores, é inevitável, mas – talvez contrariamente dar-se por meio de uma fórmula como: traduzir para hoje (mesmo para a
ao que se poderia pensar – complexifica o processo no caso da tradução “actualidade mais incompatível”: CALVINO, 1994, p. 12), sem deixar de disse-
dos clássicos. António Feijó tem disto consciência ao traduzir o Hamlet, minar pelo texto sinais de que se trata de um texto de ontem (este “ontem”
quando escreve: “Considerar [...] que uma das tarefas do tradutor é pon- corresponde, ainda com Calvino, ao seu “ruído de fundo”). Deste modo, o
derar o envelhecimento do texto é praticamente complexo. [...] Mas, de texto traduzido será, não cópia, mas testemunho do seu original – testemu-
facto, o tradutor não tem que temer. A sua competência linguística tácita, nho diferido, como sempre acontece com as imagens da memória. A pro-
de que não pode nunca separar-se, nem tornar plenamente explícita a si dutividade do texto dito “original” não se esgota, assim, no espaço dessa sua
mesmo, trairá necessariamente um estádio particular da língua” (FEIJÓ, originalidade (não há origens puras, toda a origem existe para produzir con-
2001, p. 253, destaque meu). tinuidades), porque só a abertura ao outro a alarga para espaços de sentido
Da língua enquanto suporte de uma múltipla memória (e é aqui que outros. A sua produtividade – e na tradução do cânone é essencial que ela
reside a complexidade do processo): a da sua própria tradição literária, a exista – é a produtividade, diferida mas actuante, do intervalo e da diferença.
do original e a das versões intermédias dele. Javier Marías afirma em Lite- 7. Regresso ao pensamento de António Feijó com um novo momento,
ratura e Fantasma que “do texto original, o tradutor só possui a memória” decisivo, da questão: traduzir o cânone é revelar “um estádio particular da
(MARÍAS, 1998, p. 194). Também na tradução do texto canónico se projecta língua”. Acrescento: e pôr à vista um momento inconfundível do nosso ima-
uma memória do texto canónico, e não mais do que isso. O facto torna-se ginário cultural – poético, existencial, ideológico. Historizam-se (actuali-
mais evidente nos textos clássicos muito traduzidos, em que qualquer nova zam-se) os textos do cânone como Benjamin diz do passado histórico: nem
versão carrega consigo a memória de muitas outras – ou então rompe deli- o passado foi como foi, nem o presente se lhe pode impôr de forma arbi-
beradamente com ela, assumindo a função de memória parricida, como trária nas leituras que dele faz. Não há autonomia absoluta, nem de um
acontece nas traduções de Maria Gabriela Llansol ou nos “textos mudados nem de outro. O equilíbrio (esta noção parece de facto dominar a discussão
para português” por Herberto Helder. É esta a alternativa perante a qual do nosso tema) pressupõe o encontro entre a força de um imperativo do
nos coloca o peso do texto canónico a traduzir, aquele que, mais do que passado que se (me) impõe e a vontade de ler esse passado à luz de um pre-
outros, nos lança o imperativo e o repto do à-traduire (Derrida): pede para sente, de um sujeito (tradutor) nesse presente. As diferenças entre os diver-
ser traduzido uma vez mais, porque tem de sobreviver respirando outros sos caminhos na tradução do cânone medem-se em função da intensidade
ares. A alternativa poderia também esclarecer-se à luz da distinção benja- e das tonalidades dessa luz. Daqui derivam questões concretas como:
miniana (oriunda das “Teses sobre o conceito da História”) entre os con- – Existem condicionalismos históricos, civilizacionais, que expliquem
ceitos de Eingedenken (rememoração, presentificação anamnésica, forma ou suscitem a tradução de textos canónicos (por exemplo: a recente vaga

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de traduções de clássicos em Portugal), ou as razões são mais de ordem ladoras ou transformadoras – os Lusíadas de Mickle (1776) ou o Beowulf
prática, empírica, circunstancial? (penso que a nossa “apetência de classici- de Seamus Heaney (1999), o Fausto de Castilho ou de Haroldo de Campos,
dade” é hoje mais notória do que em décadas anteriores); o Shakespeare do nosso rei D. Luís (1877) ou o Sófocles de Hölderlin, os
– Como são regulados os focos de luz do presente que dão a ver o texto poemas ameríndios de Herberto Helder, o Rimbaud ou o Baudelaire de
do passado? É uma questão sempre discutida e que apresenta necessaria- Maria Gabriela Llansol.
mente as mais diversas saídas, desde as mais voluntaristas actualizações 8. Passo a alguns aspectos mais especificamente técnicos da questão
(“uma excessiva consciência de si”, diz A. Feijó) até à “perspectiva arcai- da tradução do cânone.
zante inevitável” (Graça Moura). Mas o que acontece na prática é que os Traduzir o cânone literário exige que se traduza “literariamente”, que
chamados “grandes textos” suportam muito mais do que se imagina, e a se faça, como diz Vasco Graça Moura, uma “leitura ‘literária’” de Petrarca,
sua tradução acaba por depender mais de critérios e contingências de fun- ou, como eu próprio me propus para o Fausto, “uma tradução poetica-
cionalidade do que de preceitos teóricos pré-definidos ou de uma sempre mente fiel, e não uma mera ‘tradução de serviço’” (MOURA, 2003, p. 20)?
hipostasiada essência objectiva da sua matéria linguística, plasmada num Vários problemas se enodam aqui: o que é traduzir “literariamente”
hipotético conceito de “literalidade”. Isto, embora na tradução se manifes- um texto literário? Que noção temos hoje do que seja “o literário”? Será que
tem os caminhos escolhidos: o Hamlet de Feijó orienta-se para o palco, o o “respeito” ou a veneração dos textos canónicos exigem, mais do que na
meu Fausto para a leitura em voz alta, a Odisseia de Frederico Lourenço tradução de outros, formas de fidelidade contaminadas à partida por um
para estimular o deleite da imaginação efabulatória do leitor de hoje, o conceito oscilante do literário? Não necessariamente, se pensarmos que
Petrarca de Graça Moura para mostrar o que pode ser “a tradução de um justamente os clássicos, sendo destinados a “ser lidos na classe” (segundo
escritor por outro escritor”. a conhecida definição de Aulo Gélio e Quintiliano), se transformam quase
O que me parece importante acentuar é ainda e sempre a ideia de que sempre em património linguístico e ideológico de um ou mais espaços cul-
traduzir o cânone é traduzir na história, e de que cada tradução representa
turais, de uma nação e de uma língua, e estão disponíveis para os mais
um modo de espelhar uma situação particular do imaginário linguístico
diversos fins, aproveitamentos, utilizações e manipulações.
-ideológico, privilegiadamente revelado na literatura. Essa adequação do
É claro que esta abertura e indeterminação do “literário” não obsta
texto clássico ao imaginário do tradutor, do seu tempo e da sua relação
a que se tenha de dar atenção ao lado técnico-literário dos textos – como
com a língua – porque na língua se plasma tudo isso, porque ela é espelho
todos os tradutores até aqui referidos fizeram – e a ter desses aspectos um
de uma “imagem do mundo” (o célebre Weltbild de W. von Humboldt),
conhecimento e uma competência translatória por vezes altamente espe-
casa do ser desse imaginário – pode então assumir, como sabemos, as mais
cializada. A minha experiência pessoal, com a tradução do Fausto (ou
diversas formas, sempre de algum modo variantes de uma manipulação
também de poesia do Barroco alemão, de Goethe, de Hölderlin ou dos
ou domesticação dos textos canónicos, por mais forte que seja a vontade
Expressionistas), permitiu-me compreender como é decisiva a “adequa-
mimética de fazer quasi la stessa cosa (Umberto Eco sobre a tradução).
ção funcional” das formas de verso a personagens, temáticas e situações.
É no intervalo entre o “mesmo” impossível e o “quase” necessário que se
Por isso, como escrevi a propósito do Fausto, “toda a tradução em prosa
instalam – têm de se instalar, porque não lhes é concedido outro espaço
não pode ser mais que um arremedo de aproximação desse mundo poético
que não seja o desse desvão – todos os manipuladores do real textual, eter-
nos fabricantes de palimpsestos imperfeitos. Por uma razão fundamental: onde encontramos toda a panóplia de formas da poesia épica, dramática
porque o seu trabalho é um trabalho feito sobre as palavras, e sobre as e lírica desde a Antiguidade. [...] Em Goethe, as formas trazem consigo
palavras no tempo, o trabalho de quem vem depois e actua noutro palco. uma auréola histórico-cultural, reminiscências que são recuperadas com
Isso explica a natureza necessariamente heterónoma de qualquer tradução, intenções muito claras e que transformam os metros em parte integrante
e não apenas dos clássicos, nas suas versões mais assumidamente manipu- da linguagem poética” (BARRENTO, 1999, p. 20).

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Mas esta desejada adequação funcional traz alguns problemas: os tex- porque é morte ilusória (o original continua a viver nas traduções) e por-
tos clássicos estão carregados, ou sobrecarregados, não apenas de formas que o pretenso cadáver aparece sempre, à transparência, no palimpsesto
fixas, mas também de matéria linguística específica que transporta consigo imperfeito que é o texto da tradução.
valências culturais, históricas, locais, tão específicas que não são susceptí- O domínio da tradução literária de que venho falando tem de cultivar,
veis de serem universalizáveis pela via da literalidade. Na tradução literal por um lado, uma certa forma de infidelidades (certeiramente referidas
de fórmulas, frases feitas, citações e alusões de toda a ordem, os universais precisamente como “infidelidades interactivas” por Vasco Graça Moura,
linguísticos, e sobretudo os do imaginário literário, deixam de funcionar. em nota aos Sonetos a Orfeu, de Rilke, e por mim próprio já vistas como
A tradução terá de correr os riscos da “literalidade”, bordejando essas fór- uma “rede funcional de traições”: vd. A Palavra Transversal, BARRENTO,
mulas e encontrando as suas homólogas na língua de chegada, para não 1996, p. 124) como pressuposto de “beleza” e fidelidade literária (como as
desvirtuar efeitos de leitura essenciais. A tradução literal será tanto mais “belas infiéis” do século XVII francês) e quase garantia de sucesso do resul-
impossível quanto mais o texto estiver carregado desses momentos que tado; por outro lado, dificilmente se pode tolerar hoje, ao que me parece,
funcionam como catalizadores da experiência de leitura, despoletando qualquer forma de “libertinagem” pela libertinagem, aquelas leviandades
sentidos e implicações de ordem experiencial e literária, nacional ou local. de quem muitas vezes não dispõe das ferramentas e da competência lin-
É então fundamental encontrar os meios de reconstituição, com materiais guística necessárias, e que Dryden já via como causadora da praga das
próprios da língua e da tradição de chegada, desses mecanismos de agen- “imitações” que tanto assolou também o século XIX português.
ciamento do imaginário do leitor. Todo o texto que recorra muito a estes A captação, sobretudo na leitura activa que é a tradução, da “matéria
materiais linguísticos específicos de uma dada tradição só poderá tornar-se negra” indefinida da literatura não depende do gesto leviano ou violento de
universal na tradução através de uma nova “regionalização”. Há que dester- uma assimilação deliberada, mas do equilíbrio entre a sensibilidade esté-
ritorializar para implantar noutro território e voltar a criar efeitos de leitura tica e as capacidades de recriação na língua de acolhimento, e uma vontade
afins. O processo será então, não literal, mas substitutivo. genuína de deixar entrar o outro na minha própria casa. Se possível, em
Pode também acontecer que a tradução do texto clássico se desloque tom menor – sem gestos apropriativos e desejo de afirmação demasiado
para o espaço de um fazer por vezes designado de “interactivo” (a que gritantes, antes com a discrição e a eficácia que levem à justeza de solu-
Dryden, no célebre prefácio às sua tradução das Epístolas de Ovídio, já cha- ções que faz jus a ambas as partes. Afinal, a tradução implica um pacto de
mara “libertário”), defendido em nome de uma “relação pragmática” com convivência e rege-se pelas leis da hospitalidade – a dos textos canónicos
o original, relação essa que pode ser, e muitas vezes é, simplesmente um provavelmente mais do que a de quaisquer outros.
alibi para toda a espécie de arbitrariedades que tendem a apagar o outro
no próprio (e este próprio tanto podem ser as idiossincrasias do tradutor
referências bibliográficas
como as ideologias dominantes). Estou cada vez mais convencido de que
algumas práticas ditas “interactivas” (mas que de facto são muitas vezes BARRENTO, João, A Palavra Transversal. Literatura e ideias no século XX. Lisboa,
violentamente neutralizadoras do outro, e que distingo da imprescindível Livros Cotovia, 1996.
consciência pragmática, do valor de uso da linguagem, na tradução), ves- ______. “Ler os clássicos com os clássicos”, in: A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre
tindo as roupagens da tolerância e da abertura, se orientam predominan- a cultura contemporânea. Lisboa, Livros Cotovia, 2001.
temente para uma “ordem” de teor imperialista que nos quer fazer crer que ______. “Introdução” a J. W. Goethe, Fausto. Trad. de João Barrento, imagens de
Ilda David. Lisboa, Círculo de Leitores e Relógio d’Água, 1999.
todo o original (o outro) já está morto à partida, que “deixou de respirar ao
CALVINO, Italo, Porquê Ler os Clássicos?. Lisboa, Teorema, 1994.
ser objecto de tradução noutra língua” (por exemplo Manuel Frias Martins,
no ensaio citado na bibliografia, MARTINS, 2003, p. 157). Erro fatal. A morte FEIJÓ,António, “Notas à Tradução” de W. Shakespeare, Hamlet. Lisboa, Livros
Cotovia, 2001.
do original é sempre uma morte “aparente”, no duplo sentido do termo:

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Lourenço, Frederico, “Prefácio” e “Introdução” a Homero, Odisseia. Trad. de F.
Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003.
Apêndice
MARÍAS, Javier, Literatura e Fantasma. Lisboa, Relógio d’Água, 1998.
MARTINS, Manuel Frias, “Tradução literária. Um lugar teórico”, in. M. F. M., Em
Teoria (A Literatura). Porto, Âmbar, 2003.
MOURA, Vasco Graça, “Setecentos anos de Petrarca”, in: V. G. M., As Rimas de
Petrarca. Lisboa, Bertrand, 2003.

Um pequeno exemplo de tradução, do Fausto de Goethe


Ah, por mais que queira, minto
Se disser que paz na alma sinto!
Por que há-de a torrente secar tão cedo,
Deixando-nos da sede no degredo?
Isso é experiência que até de mais conheço.
Mas com tais carências posso eu bem,
Aprendemos a estimar o Além,
Para a revelação vai todo o nosso apreço;
E a sua chama não encontra alimento
Mais puro e belo que no Novo Testamento.
Abrir o arquitexto é uma tentação,
Para, com sentir puro e leal,
Verter o sagrado original
No meu tão amado idioma alemão.

(Abre um volume e prepara-se para o trabalho.)

“Ao princípio era o Verbo!”, é o que está escrito.


Quem me ajuda? Logo aqui hesito!
Tanto não vale o verbo. Não,
Outra vai ter de ser a tradução,
Se bem me inspira o Espírito. Atento
E leio: “Ao princípio era o Pensamento.”
Esta linha tem de ser bem pensada,
Para que a pena não corra, apressada!
É o Pensamento que tudo move e cria?
Certo é: “Ao princípio era a Energia!”
Mas agora que esta versão escrevi,
Algo me avisa já para não parar aí.
Vale-me o Espírito, já vejo a solução,
E escrevo, confiante: “Ao princípio era a Acção!”

J. W. Goethe, Fausto. Versos 1210-1237.


Trad. de João Barrento

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Traduzir, o jogo da diferença no ÉCART,
em Maurice Blanchot
Eclair Antonio Almeida Filho

No começo era o futuro.


O Percurso, Edmond Jabès

Em sua vasta e riquíssima obra ensaística, Maurice Blanchot – tradutor


secreto de Paul Celan, como nô-lo revela Emmanuel Levinas – consagrou
apenas três textos à questão da tradução (como realização, cumprimento,
obra dada) e do traduzir (entendido como ato, exigência, devir, potência de
porvir), a saber: “Traduit de...” (1949), de La Part du Feu, “Traduire”1 (1971),
de L’Amitié, e La Parole Ascendante (1984, 2009), publicado originalmente
como prefácio para a tradução de Hors de la colline, do poeta e tradutor
russo Vadim Kozovoi, e republicado em Lettres à Vadim Kozovoï em 2009.
Desses três ensaios, é em “Traduire” que Blanchot restituirá ao tradutor seu
papel na efetivação do sentido da literatura – seu caminhamento –, bem
como aproximará, mas sem fazer síntese dialética, num écart2 o traduzir e o
escrever, de modo que a prática tradutória seja o jogo mesmo da diferença.

1 Ao final deste nosso ensaio encontra-se minha tradução de “Traduire”, seguida do original,
para fins de pesquisa e experiência tradutórias.
2 Aqui apropriamo-nos da palavra estrangeira na abertura da diferença em que écart pode
significar: distância que separa duas coisas que afastamos; diferença quanto à duração, dis-
tância, quantidade, valor, natureza, etc., que separa duas coisas; ação de se afastar; ação de
descartar (uma carta no monte, por exemplo); palavra, locução, estrutura que se distancia de
uma dada norma.

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Para tal, Blanchot realiza uma análise do famoso ensaio de Walter Blanchot entende que, caso o sonho benjaminiano se cumprisse,
Benjamin “A tarefa do tradutor” (La tâche du traducteur – Die Aufgabe des teríamos o fim de todas as línguas, ou seja, de todas as diferenças e, por
Übersetzers), em que ele busca acenar para o estatuto da diferença, uma conseguinte, de toda origem e todo porvir que cada língua encerra. Con-
diferença original no traduzir. De “Traduire”, depreenderemos seis essen- trariamente a Benjamin, que não vê a tradução como um original, um
ciais considerações de Blanchot sobre novo recomeço, mas como semelhança, uma tradução literal, Blanchot nos
chama a atenção para o fato de que
a) o modo de significação de cada língua;
b) a impossibilidade de uma tradução literária literal, ou seja, calcada na seme- [o] tradutor é um escritor de uma singular originalidade, precisamente lá
lhança; onde ele parece não reivindicar nenhuma. Ele é o mestre secreto da diferença
c) a potência tradutória criadora de porvires; das línguas, não para aboli-la, mas para utilizá-la, a fim de despertar, na sua
a abertura de um hiato – em termos blanchotianos, de um écart – entre as lín- língua, pelas mudanças violentas ou sutis que ele lhe traz, uma presença do
guas envolvidas no traduzir; que há de diferente, originalmente, no original.4 (BLANCHOT, 1917, p. 71-72)
d) a irreconciliabilidade – a não-complementaridade – antibabélica do traduzir;
e
e) a tradução como forma original – a origem que se funda a si mesma – de Assim, o tradutor, na visada blanchotiana, buscaria não suprimir a
atividade literária que concede ao tradutor o estatuto de escritor. diferença – localizada não só no estrangeiro, mas também no que consi-
deramos nossa morada. Indicando que a semelhança, a cópia, o simulacro,
Blanchot inicia sua crítica-comentário ao ensaio de Benjamin, apon- não caracterizam o ato de escritura que é a tarefa de traduzir, Blanchot
tando para um certo resquício – messiânico, com certeza – de um sonho observa que a identidade, se é que há uma na tradução, dá-se a partir de
com uma linguagem originária, pré-Babel, que se tornaria acessível por uma alteridade – uma outridade, diria Octavio Paz – em que se teria
meio da tradução, a qual, a partir do caráter de incompletude das línguas,
visaria uma complementaridade. Para Benjamin, todas as línguas diriam a mesma obra em duas línguas estrangeiras tanto em razão da sua estranheza,
as mesmas coisas, mas segundo um modo de visada diferente. Observa-se, quanto tornando, assim, visível o que faz que essa obra seja sempre outra...5
(BLANCHOT, 1917, p. 71-72)
aqui, uma perspectiva, provavelmente, platônica, em que os sentidos – os
mesmos – estariam à disposição das diversas línguas, que os veiculariam
Nesse sentido, a tradução – a obra outra, original –, além de dar sobre-
por meio de simulacros. Por sua vez, Blanchot aponta para o perigo que
vida ao original estrangeiro, se constituiria como ato de escritura, não lite-
implica tal concepção, uma vez que ela acenaria para
ral mas literário. Blanchot acrescenta que, no caso de obras escritas em lín-
uma linguagem superior, que seria a harmonia ou a unidade complementar guas que ninguém fala, as chamadas ‘línguas mortas’, elas ganhariam, não
de todos esses modos de visada diferentes e que falaria idealmente na jun-
apenas uma sobrevida, mas uma nova vida quando traduzidas, de sorte
ção do mistério reconciliado de todas as línguas faladas por todas as obras.
Donde um messianismo próprio a cada tradutor, se este trabalha para fazer que a tradução as reconduzia para “o que elas têm de mais próprio: à sua
crescerem as línguas em direção a essa linguagem última, atestada já em cada estranheza de origem”.6
língua presente, no que ela encerra de porvir e do qual a tradução se apro-
pria.3 (BLANCHOT, 1971, p. 70)
4 No original: Le traducteur est un écrivain d’une singulière originalité, précisément là où il
paraît n’en revendiquer aucune. Il est le maître secret de la différence des langues, non pas
pour l’abolir, mais pour l’utiliser, afin d’éveiller, dans la sienne, par les changements violents
ou subtils qu’il lui apporte, une présence de ce qu’il y a de différent, originellement, dans
l’original.
3 No original: un langage supérieur qui serait l’harmonie ou l’unité complémentaire de tous
ces modes de visée différents e qui parlerait idéalement à la jonction du mystère réconcilié de 5 No original: la même oeuvre dans deux langues étrangères et en raison de leur étrangeté, et
toutes les langues parlées par toutes les oeuvres. D’où un messianisme propre à chaque tra- en rendant, par là, visible ce qui fait que cette œuvre sera toujours autre, mouvement dont il
ducteur, si celui-ci travaille à faire croître les langues en direction de ce langage ultime, attesté faut précisément tirer la lumière qui éclairera, par transparence, la traduction.
déjà dans chaque langue présente, en ce qu’elle recèle d’avenir et dont la traduction se saisit. 6 No original: ce qu’ils ont de plus propre : vers leur étrangeté d’origine.

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Tal potência tradutória criadora de porvires e de vidas novas coloca no que se chama helenização do alemão), tornando assim inútil o trabalho
o tradutor numa situação em que, ao se defrontar com a diferença mani- da tradução, trabalho da diferença e não da diferença que só tem lugar pela
festada pela língua estrangeira, ele passa a se sentir sem morada em sua similitude entre as línguas. Blanchot observa, sagazmente, que a diferença
própria língua, a perceber que a tradução não pode abrigar os lugares não se orienta a partir de uma relação irmã entre o próprio e o estrangeiro,
comuns, os já ditos, o que, por conseguinte, numa busca, o força, o impele mas que a diferença é o desconcerto do próprio, a ferida, o rasgo. Essa ver-
a criar, a recriar, a vasculhar o lugar da diferença na diferença do lugar tente não aposta na oposição, complementaridade, ou suplementaridade do
tanto estrangeiro quanto familiar. Para Blanchot, é essa falta que o tra- próprio-estrangeiro, mas, indo um pouco além do que Blanchot disse, nos
dutor “precisa preencher pelos recursos de uma outra língua, ela mesma interstícios, nos meios, nos écarts. Destarte, o tradutor exploraria o entre
tornada outra na obra única onde ela torna a se agrupar momentanea- línguas ou, já que a língua só vale por comparação, preenchimento, redu-
mente”.7 (BLANCHOT, 1971, p. 72) ção e ausentamento no cruzamento sintagma-paradigma e se está sempre
Ciente de que a tensão criadora se cumpre na tradução tanto entre a no risco de essencializá-la, a tradução investe em uma linguagem do écart.
língua do original e a língua para a qual se traduzirá, quanto na própria lín- O écart significa, assim, a abertura de um hiato entre as línguas envolvi-
gua do tradutor, Blanchot contesta a declaração de Rudolf Pannwitz, apro- das no traduzir, no qual, por mais que o tradutor – tal Hércules – tentasse
priada por Benjamin, segundo a qual o tradutor, no caso, o que traduz para aproximar uma língua da outra, jamais haveria uma fusão pura e total, uma
a língua alemã, ao aproximar, por meio da diferença entre ambas, a língua unidade; o que podemos chamar a irreconciliabilidade anti-babélica do tra-
traduzida e aquela a traduzir da Ur-Spracht, da língua originária, empre- duzir. Para Blanchot, “a tradução não é de nenhuma maneira destinada a
garia como recurso de sua liberdade uma estrangeirização extrema de sua fazer desaparecer a diferença, da qual ela, pelo contrário, é o jogo”.9
própria língua, numa desembocadura do procedimento da literalidade em Com Blanchot, o tradutor passa a ter o estatuto de escritor – de
tradução. Citamos, a seguir, o trecho de Pannwitz, em nossa tradução a par- alguém que, pela escritura, parte em busca de –, de modo que, mesmo se
tir da tradução de Maurice Gandillac, a qual é, aliás, citada por Blanchot: se continua a dizer que “há aqui os poetas, lá os romancistas, até mesmo os
críticos, todos responsáveis pelo sentido da literatura, é necessário contar
Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um falso princípio; elas pre-
tendem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em vez de sanscritizar o do mesmo modo os tradutores, escritores da espécie mais rara, e verda-
alemão, helenizá-lo, anglicizá-lo. Elas têm mais respeito pelos usos da sua deiramente incomparáveis”10 (BLANCHOT, 1971, p. 69). Destarte, a tradução
própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira... O erro fundamental consistiria, também, numa forma original – a origem que se funda a si
do tradutor é de imobilizar o estado em que se encontra por acaso sua própria mesma – de atividade de escritura.
língua, em vez de submetê-la ao impulso violento que vem de uma linguagem
estrangeira.8 (BLANCHOT, 1971, p. 72) Ademais, Blanchot percebe que, tal como a palavra crítica – que vem
a ser um espaço aberto no qual se comunica a escritura –, a palavra tra-
O que lemos de Blanchot é que tal perspectiva, ao invés de ressaltar, dutória se dá para a palavra criadora da qual ela seria como a atualiza-
expor a diferença na e pela tradução, investe na semelhança, própria à lite- ção necessária, sua epifania. Essa epifania da obra literária seria apenas a
ralidade benjaminiana, entre uma língua e outra (ainda que não do modo última metamorfose dessa abertura, que é a obra em sua gênese, sua ori-
tradicional que implicaria a germanização do grego, mas resultando, pois, gem; o que poderíamos chamar de sua não-coincidência essencial consigo
mesma, tudo o que não cessa de torná-la possível-impossível.
7 No original: qu’il lui faut combler par les ressources d’une autre langue, elle même rendue
autre en l’œuvre unique où elle se rassemble momentanément.
8 No original: Nos versions, même les meilleures, partent d’un faux principe, elles veulent 9 No original: À la vérité, la traduction n’est nullement destinée à faire disparaître la différence
germaniser le sanscrit, le grec, l’anglais, au lieu de sanscritiser, d’helléniser, d’angliciser l’alle- dont elle est au contraire le jeu .
mand Elles ont plus de respect par les usages de leur propre langue que par l’esprit de l’oeuvre 10 No original: il y a ici les poètes, là les romanciers, voire les critiques, tous responsables du
étrangère... L’erreur fondamentale du traducteur est de figer l’état où se trouve par hasard sa sens de la littérature, il faut compter au même titre les traducteurs, écrivains de la sorte la plus
propre langue, au lieu de la soumettre à l’ impulsion violente qui vient d’un langage étranger. rare, et vraiment incomparables.

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A essência da escritura – da tradução – é escapar a toda determina- Apêndice
ção essencial: ela não está jamais já lá, está sempre a se reencontrar e a se
reinventar. Traduzir o outro é uma maneira de, também, escrever(-se). A
tradução – o traduzir –, como novo ato de palavra, recomeça o incessante traduzir
movimento – interrompido no original – da escritura.
Sabemos nós tudo o que devemos aos tradutores e, mais ainda, à tradu-
ção? Nós o sabemos mal. E mesmo se temos gratidão pelos homens que
referências bibliográficas entram valentemente nesse enigma que é a tarefa de traduzir, se os sauda-
BENJAMIN, Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. In A tarefa do tradutor, de Walter mos de longe como os mestres escondidos de nossa cultura, ligados a eles
Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, e docilmente submetidos ao seu zelo, o nosso reconhecimento permanece
2008. p. 66-81. Tradução de Susana Kampff Lages. silencioso, um pouco desdenhoso, aliás por humildade, pois não estamos
BLANCHOT, Maurice. La Part du Feu. Paris: Gallimard, 1949. em condição de lhes ser gratos. De um ensaio de Walter Benjamin, no qual
______. Lautréamont et Sade. Paris: Éditions de Minuit, 1949, 1963. esse excelente ensaísta nos fala da tarefa do tradutor, tirarei algumas obser-
______. Le Livre à Venir. Paris: Gallimard, 1959. vações sobre essa forma da nossa atividade literária, forma original, e se se
______. L’Amitié. Paris: Gallimard, 1971. continua a dizer com ou sem razão: há aqui os poetas, lá os romancistas, até
______. Traduire. In BLANCHOT, Maurice. L’Amitié. Paris: Gallimard, 1971. p. 69-73. mesmo os críticos, todos responsáveis pelo sentido da literatura, é neces-
______. L’Écriture du Désastre. Paris: Gallimard, 1980. sário contar na mesma categoria os tradutores, escritores da espécie mais
______. Lettres à Vadim Kozovoï. Paris: Manucius, 2009. rara, e verdadeiramente incomparáveis.11
Traduzir, ressalto, pareceu por muito tempo, em certas regiões de cul-
tura, uma pretensão maligna. Uns não querem que se traduza na sua lín-
gua; outros, que se traduza sua língua; e é necessária a guerra para que essa
traição, no sentido próprio, se cumprisse: entregar ao estrangeiro o verda-
deiro falar de um povo. (Recordemo-nos do desespero de Etéocles: “Não
arranqueis ao solo, presa do inimigo, uma cidade que fala o verdadeiro
falar da Grécia”). Mas, o tradutor é culpado de uma maior impiedade.
Inimigo de Deus, ele pretende reconstruir a Torre de Babel, tirando par-
tido e proveito ironicamente do castigo celeste que separa os homens pela
confusão das línguas. Outrora acreditava-se poder remontar assim a uma
linguagem originária, palavra suprema que teria bastado falar para dizer
verdadeiramente. Benjamin retém algo desse sonho. As línguas, nota ele,
visam todas a mesma realidade, mas não do mesmo modo. Quando digo
Brot e quando digo pain, viso a mesma coisa segundo um modo diferente.
Tomadas uma a uma, as línguas são incompletas. Pela tradução, não me
contento em substituir um modo por outro, uma via por outra, mas aceno
para uma linguagem superior, que seria a harmonia ou a unidade comple-

11 Walter Benjamin, Oeuvres choisies, traduzidas do alemão por Maurice de Gandillac (Denoël,
collection “Les Lettres nouvelles”, 1959).

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mentar de todos esses modos de visada diferentes e que falaria idealmente exigem tanto mais ser traduzidas quanto elas são, doravante, únicas depo-
na junção do mistério reconciliado de todas as línguas faladas por todas sitárias da vida de uma língua morta e únicas responsáveis pelo porvir de
as obras. Donde um messianismo próprio a cada tradutor, se este trabalha uma língua sem porvir. Elas são vivas apenas traduzidas; mais ainda, elas
para fazer crescerem as línguas em direção a essa linguagem última, ates- são, na língua original ela mesma, como que sempre retraduzidas e recon-
tada já em cada língua presente, no que ela encerra de porvir e do qual a duzidas ao que elas têm de mais próprio: à sua estranheza de origem.
tradução se apropria. O tradutor é um escritor de uma singular originalidade, precisamente
O que é visivelmente um jogo utópico de ideias, já que se supõe lá onde ele parece não reivindicar nenhuma. Ele é o mestre secreto da dife-
que cada linguagem teria um só e mesmo modo de visada, e sempre de rença das línguas, não para aboli-la, mas para utilizá-la, a fim de desper-
mesma significação, e que todos esses modos de visada poderiam se tor- tar, na sua língua, pelas mudanças violentas ou sutis que ele lhe traz, uma
nar complementares. Mas, Benjamin sugere outra coisa: todo tradutor presença do que há de diferente, originalmente, no original. Nenhuma
vive da diferença das línguas, toda tradução é fundada nessa diferença, ao questão, aqui, de semelhança, diz com razão Benjamin: se se quer que a
mesmo tempo que perseguindo, aparentemente, o desígnio perverso de obra traduzida se assemelhe à obra a traduzir, não há tradução literária
suprimi-la. (A obra bem traduzida é louvada de duas feições opostas: não possível. Trata-se, bem mais, de uma identidade a partir de uma alteridade:
a creríamos traduzida, diz-se; ou ainda, é verdadeiramente a mesma obra, a mesma obra em duas línguas estrangeiras tanto em razão da sua estra-
encontramo-la maravilhosamente idêntica; mas, no primeiro caso, apaga- nheza, quanto tornando, assim, visível o que faz que essa obra seja sempre
se, em benefício da nova língua, a origem da obra; no segundo caso, em outra, movimento do qual se deve precisamente tirar a luz que clareará, por
benefício da obra, a originalidade das duas línguas; em todos os casos, algo transparência, a tradução.
de essencial é perdido). Na verdade, a tradução não é de nenhuma maneira Sim, o tradutor é um homem estranho, nostálgico, que sente, à maneira
destinada a fazer desaparecer a diferença, da qual ela, pelo contrário, é o de uma falta, em sua língua, tudo o que a obra original (que ele não pode,
jogo: constantemente a tradução faz constantemente alusão a ela, ela a dis- de resto, totalmente alcançar já que não está em sua morada nela, eterno
simula, mas, por vezes, revelando-a e, geralmente, acentuando-a, ela é a convidado que não a habita) lhe promete de afirmações presentes. Daí que,
vida mesma dessa diferença, encontra nela seu dever augusto, sua fascina- no testemunho dos especialistas, ele esteja sempre, traduzindo, mais em
ção também, quando ela vem a aproximar orgulhosamente as duas línguas dificuldade na língua à qual ele pertence do que embaraçado por aquela
por uma potência de unificação que lhe é própria e semelhante àquela de que ele não possui. É que ele não vê somente tudo o que falta ao francês
Hércules reapertando as duas orlas do mar. (por exemplo) para alcançar tal texto estrangeiro dominador, mas é que
Mas é preciso dizer mais: a obra só está em idade, em dignidade de ele possui doravante essa linguagem francesa de um modo privativo e rico,
ser traduzida se ela encerra, de alguma feição disponível, essa diferença, entretanto, dessa privação que ele precisa preencher pelos recursos de uma
seja porque ela acena originalmente para uma outra língua, seja porque outra língua, ela mesma tornada outra na obra única onde ela torna a se
ela reúne, de maneira privilegiada, as possibilidades de ser diferente de si agrupar momentaneamente.
mesma e estrangeira para si mesmo que possui toda língua viva. O original Benjamin cita, sobre uma teoria de Rudolf Pannwitz, isto que é sur-
não é jamais imóvel, e tudo o que há de porvir em uma língua em um certo preendente: “Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um falso
momento, tudo o que nela designa ou evoca um estado outro, por vezes princípio; elas pretendem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em vez
perigosamente outro, se afirma na solene deriva das obras literárias. A tra- de sanscritizar o alemão, helenizá-lo, anglicizá-lo. Elas têm mais respeito
dução está ligada a esse devir, ela o “traduz” e o cumpre, ela só é possível pelos usos da sua própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira...
por causa desse movimento e dessa vida da qual ela se apropria, por vezes O erro fundamental do tradutor é de imobilizar o estado em que se encon-
para livrá-la puramente, por vezes para cativá-la penosamente. Quanto às tra por acaso sua própria língua, em vez de submetê-la ao impulso violento
obras-primas clássicas que pertencem a uma língua que ninguém fala, elas que vem de uma linguagem estrangeira”. Proposição ou reivindicação que

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é perigosamente atraente. Ela deixa entender que cada língua poderia se traduire
tornar todas as outras, pelo menos se deslocar sem danos em todos os tipos
de direções novas; ela supõe que o tradutor encontrará bastantes recursos Savons-nous tout ce que nous devons aux traducteurs et, mais encore, à
na obra a ser traduzida e bastante autoridade em si mesmo para provocar traduction ? Nous le savons mal. Et même si nous avons de la gratitude
essa mutação brusca; ela supõe, enfim, uma tradução tanto mais livre e pour les hommes qui entrent vaillamment dans cette énigme qu’est la tâche
mais inovadora quanto ela for capaz de uma maior literalidade verbal ou de traduire, si nous les saluons de loin comme les maîtres cachés de notre
sintática, o que tornaria, no limite, a tradução inútil. culture, liés à eux et docilement soumis à leur zèle, notre reconnaissance
No entanto, Pannwitz, para garantir seus pontos de vista, pode apelar reste silencieuse, un peu dédaigneuse, par humilité, car nous ne sommes
para nomes tão fortes quanto os de Lutero, Voss, Hölderlin, George, os pas en mesure de leur être reconnaissants. D’un essai de Walter Benjamin,
quais não hesitaram, cada vez que foram tradutores, em romper o âmbito où cet essayiste excellent nous parle de la tâche du traducteur, je tirerai
da língua alemã, a fim de alargar as fronteiras. O exemplo de Hölderlin quelques remarques sur cette forme de notre activité littéraire, forme origi-
mostra, por fim, qual risco corre o homem fascinado pela potência de nale, et si l’on continue de dire à tort ou à raison : il y a ici les poètes, là les
traduzir: as traduções de Antígona e de Édipo foram, quase, suas últimas romanciers, voire les critiques, tous responsables du sens de la littérature,
obras na virada da loucura, obras extremamente meditadas, amestradas e il faut compter au même titre les traducteurs, écrivains de la sorte la plus
voluntárias, conduzidas com uma inflexível firmeza pelo desígnio, não de rare, et vraiment incomparables.
transportar o texto grego para o alemão, nem de reconduzir a língua alemã Traduire, je le rappelle, a longtemps paru, dans certaines régions de
às fontes gregas, mas de unificar as duas potências que representam, uma, culture, une prétention maligne. Les uns ne veulent pas qu’on traduise dans
as vicissitudes do Ocidente, a outra aquelas do Oriente, na simplicidade de leur langue, les autres, qu’on traduise leur langue, et il faut la guerre pour
uma linguagem total e pura. O resultado é quase terrível. Cremos descobrir que cette traîtrise, au sens propre, s’accomplisse : livrer à l’étranger le vrai
nas duas línguas um acordo tão profundo, uma harmonia tão fundamental parler d’un peuple. (Souvenons-nous du désespoir d’Étéocle : «N’arrachez
que ela mesma toma o lugar do sentido ou consegue fazer do hiato que pas au sol, proie de l’ennemi, une ville qui parle le vrai parler de la Grèce.»)
se abre entre elas a origem de um novo sentido. Isso é de um efeito tão Mais le traducteur est coupable d’une plus grande impiété. Ennemi de
forte que se compreende o riso gelado de Goethe. De quem Goethe ria? De Dieu, il prétend reconstruire la Tour de Babel, tirer parti et profit ironique-
um homem que não era mais nem poeta nem tradutor, mas que avançava ment du châtiment céleste qui sépare les hommes par la confusion des lan-
temerariamente a esse centro em que ele acreditava encontrar reunido o gues. Jadis on croyait pouvoir remonter ainsi à quelque langage originaire,
puro poder de unificar e tamanho que ele poderia dar sentido, afora todo parole suprême qu’il eût suffi de parler pour dire vrai. Benjamin retient
sentido determinado e limitado. Que essa tentação tenha vindo a Hölder- quelque chose de ce rêve. Les langues, note-t-il, visent toutes la même réa-
lin, nós o compreendemos; pois, com o poder unificador que está em obra lité, mais non pas sur le même mode. Quand je dis Brot et quand dis pain,
em toda relação prática, assim como em toda linguagem, e que o expõe ao je vise la même chose selon un mode différent. Prises une à une, les langues
mesmo tempo à pura cisão prévia, o homem prestes a traduzir está em uma sont incomplètes. Par la traduction, je ne me contente pas de remplacer un
intimidade constante, perigosa, admirável, e é dessa familiaridade que ele mode par un autre, une voie par une autre voie, mais je fais signe à un lan-
recebe o direito de ser o mais orgulhoso ou o mais secreto dos escritores – gage supérieur qui serait l’harmonie ou l’unité complémentaire de tous ces
com essa convicção de que traduzir é, no fim das contas, loucura. modes de visée différents e qui parlerait idéalement à la jonction du mys-
tère réconcilié de toutes les langues parlées par toutes les oeuvres. D’où un
messianisme propre à chaque traducteur, si celui-ci travaille à faire croître
les langues en direction de ce langage ultime, attesté déjà dans chaque
langue présente, en ce qu’elle recèle d’avenir et dont la traduction se saisit.

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Ce qui est vraiment un jeu utopique d’idées, puisqu’on suppose que rence des langues, non pas pour l’abolir, mais pour l’utiliser, afin d’éveiller,
chaque langage aurait un seul e même mode de visée, et toujours de même dans la sienne, par les changements violents ou subtils qu’il lui apporte,
signification, et que tous ces modes de visée pourraient devenir complé- une présence de ce qu’il y a de différent, originellement, dans l’original. Pas
mentaires. Mais Benjamin suggère autre chose: tout traducteur vit de la question, ici, de ressemblance, dit avec raison Benjamin: si l’on veut que
différence des langues, toute traduction est fondée sur cette différence, tout l’œuvre traduite ressemble à l’œuvre à traduire, il n’y pas de traduction litté-
en poursuivant, apparemment, le dessein pervers de la supprimer. (L’œuvre raire possible. Il s’agit, bien davantage, d’une identité à partir d’une altérité:
bien traduite est louée de deux façons opposées: on ne le croirait pas tra- la même oeuvre dans deux langues étrangères et en raison de leur étran-
duite, dit-on ; ou encore, c’est vraiment la même œuvre, on la retrouve mer- geté, et en rendant, par là, visible ce qui fait que cette œuvre sera toujours
veilleusement identique; mais, dans le premier cas, on efface, au bénéfice autre, mouvement dont il faut précisément tirer la lumière qui éclairera,
de la nouvelle langue, l’origine de l’œuvre; dans le second cas, au bénéfice par transparence, la traduction.
de l’œuvre, l’originalité des deux langues; dans tous les cas, quelque chose Oui, Le traducteur est un homme étrange, nostalgique, qui ressent, à
d’essentiel est perdu.) À la vérité, la traduction n’est nullement destinée à titre de manque, dans sa propre langue, tout ce que l’œuvre originale (qu’il ne
faire disparaître la différence dont elle est au contraire le jeu : constamment peut du reste tout à fait atteindre, puisqu’il n’est pas à demeure en elle, éternel
elle y fait allusion, elle la dissimule, mais parfois en la révélant et souvent en invité qui ne l’habite pas) lui promet d’affirmations présentes. De là qu’au
l’accentuant, elle est la vie même de cette différence, elle y trouve son devoir témoignage des spécialistes, il soit toujours, traduisant, plus en difficulté
auguste, sa fascination aussi, quand elle en vient à rapprocher orgueilleuse- dans la langue à qui il appartient qu’embarrassé par celle qu’il ne possède
ment les deux langages par une puissance d’unification qui lui est propre et pas. C’est qu’il ne voit pas seulement tout ce qui manque au français pour
semblable à celle d’Hercule resserrant les deux rives de la mer. rejoindre tel texte étranger dominateur, mais ce qu’il possède désormais ce
Mais il faut dire plus : l’œuvre n’est en âge et en dignité d’être traduite langage français sur un mode privatif et riche cependant de cette privation
que si elle recèle, de quelque façon disponible, cette différence, soit parce qu’il lui faut combler par les ressources d’une autre langue, elle même rendue
qu’elle fait signe originellement à une autre langue, soit parce qu’elle ras- autre en l’œuvre unique où elle se rassemble momentanément.
semble, d’une manière privilégiée, les possibilités d’être différente d’elle- Benjamin cite, sur une théorie de Rudolf Pannwitz, ceci qui est sur-
même et étrangère à elle-même que détient toute langue vivante. L’original prenant: «Nos versions, même les meilleures, partent d’un faux principe, elles
n’est jamais immobile, e tout ce qu’il y a d’avenir dans une langue à un veulent germaniser le sanscrit, le grec, l’anglais, au lieu de sanscritiser, d’hel-
certain moment, tout ce qui en elle désigne ou appelle un état autre, parfois léniser, d’angliciser l’allemand Elles ont plus de respect par les usages de leur
dangereusement autre, s’affirme dans la solennelle dérive des œuvres litté- propre langue que par l’esprit de l’oeuvre étrangère... L’erreur fondamentale
raires. La traduction est liée à ce devenir, elle le «traduit» et l’accomplit, elle du traducteur est de figer l’état où se trouve par hasard sa propre langue, au
n’est possible qu’à cause de ce mouvement et de cette vie dont elle s’empare, lieu de la soumettre à l’ impulsion violente qui vient d’un langage étranger. «
parfois pour la délivrer purement, parfois pour la captiver péniblement. Proposition ou revendication qui est dangereusement attirante. Elle laisse
Quant aux chefs-d’œuvre classiques appartenant à une langue qu’on ne entendre que chaque langue pourrait devenir toutes les autres, du moins
parle pas, ils exigent d’autant plus d’être traduits qu’ils sont désormais seuls se déplacer sans dommage dans toutes sortes de directions nouvelles ; elle
dépositaires de la vie d’une langue morte et seuls responsables de l’ave- suppose que le traducteur trouvera assez de ressources dans l’ouvrage à tra-
nir d’une langue sans avenir. Ils ne sont vivants que traduits ; davantage, duire et assez d’autorité en lui-même pour provoquer cette mutation brus-
ils sont, dans la langue originale elle-même, comme toujours retraduits et que ; elle suppose enfin une traduction d autant plus libre et plus novatrice
reconduits vers ce qu’ils ont de plus propre : vers leur étrangeté d’origine. qu’elle sera capable d’une plus grande littéralité verbal ou syntaxique, ce
Le traducteur est un écrivain d’une singulière originalité, précisément qui, à la limite, rendrait la traduction inutile.
là où il paraît n’en revendiquer aucune. Il est le maître secret de la diffé-

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Il reste que Pannwitz, pour garantir ses vues, peut en appeler à des Mario Faustino:
noms aussi forts que ceux de Luther, Voss, Hölderlin, George, lesquels
n’hésitèrent pas, chaque fois qu’ils furent traducteurs, à rompre les cadres poeta-elo do estrangeiro e do próprio
de la langue allemande, afin d’élargir les frontières. L’exemple de Hölderlin Mayara Ribeiro Guimarães
montre quel risque court, à la fin, l’homme fasciné par la puissance de tra-
duire : les traductions d’Antigone et d’Œdipe furent presque ses derniers
ouvrages au tournant de la folie, œuvres extrêmement méditées, maîtrisées
et volontaires, conduites avec une fermeté inflexible par le dessein, non
pas de transporter le texte grec en allemand, ni de reconduire la langue
allemande aux sources grecques, mas d’unifier les deux puissances repré-
sentant l’une les vicissitudes de l’Occident, l’autre celles de l’Orient, en la
simplicité d’un langage total et pur. Le résultat est presque terrible. On croit
découvrir entre les deux langues une entente si profonde, une harmonie si
fondamentale qu’elle se substitue au sens ou qu’elle réussit à faire du hia-
tus qui s’ouvre entre elles l’origine d’un nouveau sens. Cela est d’un effet si
fort qu’on comprend le rire glacé de Goethe. De qui Goethe riait-il ? D’un Entre 1948 e 1950, antes da consagração com as páginas de Poesia-Expe-
homme qui n’était plus ni poète ni traducteur, mais s’avançait téméraire- riência, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (1956-1959), o jovem
ment vers ce centre où il croyait trouver rassemblé le pur pouvoir d’unifier poeta Mario Faustino estreia no cenário literário brasileiro em dois jornais
et tel qu’il pût donner sens, en dehors de tout sens déterminé et limité. Que paraenses: A Província do Pará (1947-1949) e Folha do Norte (1948-1956).
cette tentation soit venue à Hölderlin par la traduction, on le comprend ; Antes mesmo da virada poético-crítica trazida pelos concretos, de quem
car, avec le pouvoir unificateur qui est à l’œuvre en toute relation pratique Faustino tanto se aproximou, sua própria produção sinalizava a simbiótica
comme en tout langage, et qui l’expose en même temps à la pure scission relação entre escrita poética, prática tradutória e investigação crítica, como
préalable, l’homme prêt à traduire est dans une intimité constante, dan- exercícios intelectuais e artísticos paralelos e complementares constitutivos
gereuse, admirable, et c’est de cette familiarité qu’il tient le droit d’être le da condição de vitalidade própria da literatura, evocando Eliot via Faustino.
plus orgueilleux ou le plus secret des écrivains – avec cette conviction que Assim, se em Poesia-Experiência o método crítico de investigação é exercido
traduire est, en fin de compte, folie. simultaneamente ao ato de criação literária, seja pelos estudos de poesia bra-
sileira, seja pelas traduções de poetas estrangeiros, ou ainda por seu próprio
trabalho poético, a contribuição dada aos jornais paraenses indica que desde
a juventude do poeta esse vínculo participa de seu modo de produção.
De 1948 a 1950, Faustino atua como tradutor no “Suplemento Arte-Li-
teratura”,1 do jornal paraense Folha do Norte, ao lado de Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Raquel de Queiroz, Ruy

1 Outro periódico que contou com a participação de Faustino-tradutor foi a Revista Norte,
organizada por Benedito Nunes, Max Martins e Orlando Costa, em 1952, e com apenas três
números publicados nesse mesmo ano. Nela Faustino traduz o “Poema sobre o sábado de
Aleluia” (n° 3, mai/jun/jul/ago 1952), do poeta americano Robert Stock, que viveu em Belém
durante os anos da revista Norte e contribuiu para a divulgação da literatura americana
moderna entre os membros do Grupo dos Novos (cf. OLIVEIRA, 2003, p. 108).

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Barata, Aurélio Buarque de Holanda, Paulo Quintela, entre outros, e como construção poética, sobretudo em sua Filosofia da Composição e em seus
poeta iniciante,2 ao lado de Ledo Ivo, José Paulo Paes, Dalton Trevisan, Ruy poemas. Nota-se que o valor conferido a Poe reside sobretudo no exer-
Barata, Max Martins, Cyro dos Anjos. A participação do poeta como agente cício crítico e teórico efetuado pelo poeta americano sobre a sua própria
de divulgação da prática tradutória na Folha do Norte, por sua vez, ocorrerá composição e, ainda, no entendimento de que o que garante a existência
pelo viés da literatura anglófona, nas traduções de James Joyce e T. S. Eliot, de um texto literário não são a intuição ou a inspiração, mas a articulação
e na tradução de poetas de língua alemã, italiana e espanhola, entre eles e o arranjo de elementos compositivos que organizam um cenário poé-
Rainer Maria Rilke, Rafael Alberti, Juán Ramon Jimenez e Afonsina Storni.3 tico repleto de “escadinhas, alçapões e disfarces” linguísticos (POE, 2008),
A proposta de reformulação de uma poética brasileira postulada pelo que, no caso de Faustino, se ergue em torno do equilíbrio harmônico entre
grupo concretista na década de cinquenta, já na Teoria da Poesia Concreta, “padrões lógicos, musicais e visuais”. Talvez, sobretudo, no fato de Poe
ancorava-se na herança poundiana de uma prática teórica, crítica e cria- ser um inventor que desloca a linguagem tão radicalmente, a exemplo do
tiva conjunta, onde a atividade tradutória, entendida como atividade crí- poema “To Helen”, traduzido por Faustino em prosa poética, e a exem-
tica, destacava-se, em ampla medida, pela tradução da literatura em língua plo da potência desterritorializadora da tradução, que ressignifica a figura
inglesa, fosse pelos Cantares de Pound, pelos poemas concretos de e. e. feminina da Helena grega em nova forma, figuração da Poesia, da criação.
cummings ou pela recriação de fragmentos do Finnegan’s Wake, de James Desde cedo, portanto, a tradução se confirmará como instrumento de
Joyce. A instauração de um exercício tradutório como instrumento de atuação na constituição de sua poética e como “trabalho crítico e peda-
crítica cultural introduzido no Brasil pelos poetas do Grupo Noigandres gógico” sistematizado nos rastros de uma formação intelectual de origem
chega, entre as traduções de Mallarmé, também pela moderna tradição poundiana, compartilhada com a geração concretista de Haroldo, Augusto
poética em língua inglesa, leitura obrigatória da vanguarda concretista. e Décio. No entanto, se a formação os aproximava, a execução poética
Para Faustino e o “Grupo dos Novos”, no norte do país, o interesse e faustiniana se afastava da radicalização proposta pelos poetas concretis-
impacto que a literatura anglófona despertou na geração de 1945, firmado tas de estilhaçamento e “encerramento do ciclo histórico do verso”. O pro-
como reflexo de um cenário de pós-guerra marcado pelo boom da lite- jeto mallarmaico de fundação de uma nova linguagem poética era menos
ratura inglesa e norte-americana no mercado editorial, foi o mesmo da central em sua poesia do que a experiência ideogrâmica de Pound, que
geração seguinte, dos irmãos Campos, promovendo uma afinidade entre norteava a reflexão em torno dos princípios constitutivos de sua própria
Faustino e os concretos. linguagem poética e da função a ela atribuída em sua obra, a exemplo da
Em “Fontes e correntes da poesia contemporânea” (1957), Faus- composição de O Homem e Sua Hora, estudada por Benedito Nunes.
tino assinala Edgar Allan Poe como o primeiro “inventor” e “recriador” O desejo de Faustino, aos olhos de Haroldo de Campos, pressupunha a
(FAUSTINO, 2004, p. 44) da modernidade literária, fonte das correntes poé- conciliação entre “a estrutura discursiva tradicional do verso com a sintaxe
ticas que fecunda a modernidade de Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Ver- de montagem propiciada pelo método ideogrâmico de Pound” (CAMPOS,
laine, Valéry, até os surrealistas, a partir da nova atitude e concepção de 2006, p. 200). Exemplos podem ser encontrados nos poemas “Cavosso-
nante escudo nosso”, “Aqui”, “22-10-1956”, ou “Soneto”, onde, como aponta
2 No “Suplemento Arte-Literatura” publicou os poemas “1º motivo da rosa” e “2º motivo da Nunes, o soneto em decassílabo rimado é decomposto e desarticulado ori-
rosa” (n° 76, 25/04/48); “Poemas do anjo I e II” (n° 82, 06/06/48); “Prelúdio” (n° 117, 27/03/49);
“Solilóquio” (n° 138, 20/11/49); “Elegia” e “Poemas do Anjo” (n° 163, 24/12/50), além do conto ginando uma nova forma que, apesar de inscrever um ideograma verbivo-
“As moscas” (n° 60, 01/01/48) (COELHO, 2003, p. 152). covisual dentro de outro ideograma ainda maior, entretanto, não substitui
3 Como veremos neste estudo, Faustino traduz o conto “Eveline”, de James Joyce, além do a discursividade do verso tradicional, valorizado por Faustino.
poema “Death by water”, de T. S. Eliot. De Rilke Faustino traduz “A grande noite” (n° 108,
01/01/49); de Alberti traduz os poemas “Minha corça” e “Se eu fosse embora, minha amada” Assim, a integração entre imagem, conceito e ritmo, na construção de
(n° 69, 07/03/48); de Jimenez traduz “Desnudo” e “Coisas impossíveis” (n° 70, 14/03/48) e de seu discurso poético, ao contrário de abolir o verso conferia-lhe maior cen-
Storni o poema “Homem pequenino” (n° 68, 29/02/48).

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tralidade e total reverência. Acredito que o diálogo intertextual que Haroldo que aponta indubitavelmente para uma crise que é também do verso
de Campos enxerga, de “oficina para oficina” (CAMPOS, 2006, p. 198), entre faustiniano. De um lado a fascinação pela chamada tradição da ruptura,
a poesia de Faustino e a poesia concreta encontra-se naquele estágio antes para lembrar Octavio Paz, emblematizada pelo grupo Noigandres e repre-
do último degrau de explosão concretista, quando o rigor absoluto da crise sentativa de uma “escritura geracional e grupal” (CAMPOS, 2006, p. 198-9),
ainda não fragmentou o verso, ainda não geometrizou o discurso, e sobre- e de outro o apego a uma “tradição clássica”.
tudo a partir de um entendimento de que a tradução tem especial função É o amigo Paulo Mendes Campos quem afirma que: “Antes de tudo
na constituição do próprio e na renovação da produção literária e da crítica sua poesia é o espelho de uma dolorosa consciência de um estado de crise”,
nacional, pela conquista de novos padrões de linguagem poética. como anunciam os versos finais de “Vida toda linguagem”: “Vida toda lin-
Em ensaio sobre Souza Caldas, Faustino batiza o padre de “poeta-elo” guagem/como todos sabemos /conjugar esses verbos, nomear/esses nomes:/
por enriquecer o acervo poético brasileiro menos por sua obra autoral e amar, fazer, destruir,/homem, mulher e besta, diabo e anjo/e deus talvez, e
mais por seu esforço “pró-restauração de padrões clássicos” (FAUSTINO, nada” (FAUSTINO, 1985, p. 154). Neles, o polo antagonista e agônico entre
2003, p. 153). Constata que a colaboração mais criativa e original prestada a constituição da vida e do todo, e a destruição da morte e do nada, que
pelo padre, espécie de tradutor-imitador dos clássicos greco-latinos e por- organiza a percepção da realidade, contém um elemento matriz de sua poé-
tugueses, foi fruto do exercício tradutório. Com isso deseja Faustino, ele tica que pode ser entendido como a maneira pela qual Faustino desenvolve
próprio um poeta-elo entre o novo e o clássico, o próprio e o estrangeiro, seus temas preferenciais de forma antagonística, na avaliação de Benedito
explicitar a ideia de que a contribuição mais expressiva que um poeta pode Nunes. Se tais oposições segmentam e atomizam o que é indivisível e único,
dar à sua língua e cultura é conferir-lhes uma nova dimensão, ampliando Benedito Nunes cita o poema “O Homem e a sua Hora”, que reproduzo a
seus limites, “seja em que sentido for” (FAUSTINO, 2003, p.152). Um dos seguir, como exemplo de superação dos dualismos: “Vai, estátua, levar ao
veículos claramente exaltados por Faustino para essa função é a tradução. dicionário/ a paz entre as palavras conflagradas./Ensina cada infante a dis-
A parceria com os irmãos Campos no Suplemento Dominical, com as cursar/exata, ardente, claramente: nomes/em paz com suas coisas, verbos
traduções de Marinetti e Palazzeschi, e sobretudo as “traduções-traições” em/paz com o baile das coisas, oradores/em paz com seus ouvintes, alvas
de Mallarmé, todas mudadas para a prosa, são exemplos de como o exercí- páginas/em paz com os planos atros do universo” (FAUSTINO, 1985, p. 187).
cio crítico de Faustino passa organicamente pelo exercício tradutório, onde Mas é a força dialética constitutiva do pensamento de Faustino que
a contaminação pelo estrangeiro empenha o escritor ao movimento múlti- une a atuação como crítico ao exercício de criação poética e tradução lite-
plo para fora de sua própria tradição, para, naquela zona enevoada que põe rária. A produção de poemas que o situam, dialeticamente, em duas fases
duas culturas em contato, poder retornar à sua própria língua, já alterada e poéticas distintas – uma mais conservadora e outra considerada pelo pró-
alterando-se. Experiência das obras para ser-obra e experiência das línguas prio Faustino “imprópria para publicação”, porque composta de produtos
para ser-língua. poéticos inacabados e sem uma “linha” que os caracterizaria como “formas
Ainda que as traduções de Faustino para a Folha do Norte tragam a suficientemente fixas”, (FAUSTINO, 1985, p. 35), próxima do experimenta-
marca e o compromisso com a modernidade, ao eleger textos de escrito- lismo concretista – é exemplo direto da atuação dessa força. Responsável
res modernos como James Joyce e T. S. Eliot, e expoentes da poesia de pela integração de diferentes aspectos da realidade na composição poética
vanguarda espanhola, como Alberti e Jimenez, o gosto pelo clássico con- faustiniana, a força dialética de sua escrita promove também a profunda e
duziu-o à tradução de sonetos de Shakespeare, da Vita Nuova de Dante, sensível articulação entre dois exercícios – o poético e o tradutório – que
de Horácio, Ben Johnson, entre outros. Essa espécie de ambivalência ou se complementam e iluminam, além de atuarem no processo de formação
“diálogo pelágico” entre o clássico e o moderno, evidencia-se no “nó mal- e transformação de uma literatura nacional como gestos antropofágicos de
larmaico” – como apontam os irmãos Campos – da poesia de Faustino, tradições e culturas que passam pelo estrangeiro e pelo próprio.

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faustino tradutor de joyce: o caso “eveline” Porque, na tradução de um texto joyceano, alguns dos elementos mais
marcantes de seu estilo pessoal de escrita são vitais enquanto questões tra-
A escolha de traduzir um único texto em prosa,4 consciente ou não, dentre dutórias com as quais o tradutor terá de se confrontar, entre eles: 1. aquilo
as muitas traduções que Faustino realizou não só na Folha do Norte, mas
que Haroldo de Campos demarca como o “problema da linguagem” e que
no Suplemento Dominical, surge como questão central para o estudo de sua
envolve uma profunda “perturbação do instrumento linguístico” (CAMPOS,
atuação como tradutor e poeta. A tradução do conto “Eveline”, de James
2006, p. 57), promovendo a “criação de um novo léxico”, retirando a palavra
Joyce, tem muito a revelar sobre este exercício, a começar pela escolha do
do seu contexto comum e desarticulando-a para rearranjá-la na página,
autor, que se destaca essencialmente por ter sido “o maior inovador da lite-
interferindo em suas potencialidades virtuais, aumentando as possibilida-
ratura inglesa deste século e uma das maiores influências da ficção contem-
des de atualização da língua (precisamente aquilo a que se vincula Guima-
porânea”,5 nas palavras do próprio poeta em nota de apresentação do conto,
rães Rosa, dentro da tradição do romance moderno de herança joyceana);
sobretudo pela inovação que desempenhou no alargamento conferido à
2. aquilo que José Roberto O’Shea chama de “polifonia” e que se mostra
língua inglesa. A escolha de James Joyce aparece como um gesto de reco-
na inflexão da fala dos personagens, isto é, em um coloquialismo trans-
nhecimento do lugar privilegiado que sua prosa ocupa dentro da tradição
formado esteticamente; 3. e, ainda, a forte musicalidade presente em sua
literária do século XX e da revolução que causou sobre o referencial lin-
prosa, precisamente elementos tidos em altíssima consideração no projeto
guístico, parafraseando Campos. O reconhecimento, entretanto, é também
poético faustiniano e na renovação estética pela qual passará a poética
da necessidade de uma renovação poética, ficcional e crítica em relação à
brasileira das décadas de cinquenta e sessenta, na reavaliação do projeto
geração de 1945, no verso, na metáfora e na tradução, renovação esta que
modernista de renovação da produção intelectual e artística.
será empreendida pelos poetas-tradutores participantes do “Suplemento
O estudo da tradução do conto de Joyce encaminha a reflexão ainda
Arte-Literatura” do jornal Folha do Norte entre os anos de 1946 e 1952, tor-
para outra questão, semelhante a observações apontadas por Haroldo de
nando o Suplemento e o grupo em torno do qual ele se projetou como
um movimento de vanguarda visionário e antecipador das vanguardas da Campos nas traduções que Hölderlin fez de Sófocles. Isso porque em uma
década de cinquenta, no norte do país. tradução literária e transcultural está implicado o risco do equívoco tradu-
tório e do “erro criativo” o que, no caso de Hölderlin, produziu textos tão
4 Em 24 de outubro de 1948, Faustino publica no “Suplemento Arte Literatura” a primeira tra- originais quanto os originais, ainda que considerados durante muito tempo
dução brasileira do conto “Eveline”. Até 1948, a única obra do escritor irlandês traduzida para
o português em terras brasileiras era Retrato do artista quando jovem (Trad. José Geraldo
“estranhos” e “monstruosos” (CAMPOS, 2010, p. 96). Textos que fazem res-
Vieira, 1945, Ed. Globo), além dos contos “Arábia” (Trad. Alfredo Mesquita, 1942, Editora surgir um novo Sófocles, vivo à luz da modernidade, e um Hölderlin ori-
Edigraf) e “Contrapartes” (Trad. Almiro R. Barbosa e Edgar Cavalheiro, 1944), incluídos em ginal e precursor, produtor de dois textos, o Sófocles comum e conhecido
seletas sob a categoria de “contos modernos” ou “contos ingleses” ou ainda “contos univer-
sais” e que, possivelmente, registravam traduções feitas por portugueses. Cf. http://naogos- e o Sófocles-elo com o moderno. Textos que, além de captar o “espírito do
todeplagio.blogspot.com.br/2011/08/joyce-no-brasil.html original”, manipulam o substrato linguístico de maneira a modificá-lo.
5 Transcrevo a nota na íntegra: “Nascido em 1882, em Dublin, na Irlanda, James Joyce é, sem Ainda que a língua inglesa possivelmente fosse o idioma estrangeiro
dúvida, o maior inovador da literatura inglesa deste século e uma das maiores influências da
ficção contemporânea. Sua maior obra, Ulysses, é atualmente um dos temas mais discutidos mais dominado por Faustino,6 sobretudo a partir de 1951, quando o poeta
da literatura, considerada por alguns críticos como epopeia da altura da Ilíada e da Odisséia, passa dois anos nos Estados Unidos com uma bolsa de estudos de lite-
por outros como o ponto final e obra prima do gênero romance e ainda por muitos outros
como o maior bleuf da história das letras universais. O autor, por sua vez, afirma que os lei- ratura inglesa, a tradução de “Eveline”, feita antes da viagem de Faustino,
tores devem dedicar toda a vida ao estudo de Ulysses. revela importantes “equívocos” de interpretação do texto original, seja por
Das obras de Joyce – Chamber Music (poemas) – Dubliners (contos), Portrait of the Artist as
a Young Man, Ulysses e Finnegan’s Wake – apenas a novela Retrato do Artista Quando Jovem
está traduzida para o português. O conto que agora publicamos pertence à série Dubliners, 6 Entre 1951 e 1952, Mario Faustino ganhou uma bolsa de estudos que lhe permitiu dedicar-se
publicada em 1914. Escritos na adolescência de Joyce, antes dos vinte anos, nesses contos já aos estudos de literatura inglesa no Pamona College, na Califórnia. Em 1960 retorna para os
se notam algumas características joyceanas, principalmente no que se refere à construção do Estados Unidos para trabalhar no Departamento de Informações Públicas da ONU, em Nova
enredo e ao tratamento dos caracteres.” York (COELHO, 152).

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limitação do conhecimento do idioma estrangeiro, seja por imprecisão de (JOYCE, 2012, p. 45-6),8 Faustino confunde a formulação “make toast” com
leitura. Embora o caso de Faustino seja completamente distinto do de Höl- sentido de “preparar algo de comer” com a expressão idiomática “make
derlin, chama atenção o fato de Faustino cometer alterações significativas a toast”, que significa fazer um brinde, traduzindo o trecho da seguinte
no original que levam à construção criativa de um retrato de Eveline Hill, maneira: “tinha lido para ela uma história de fantasmas e fizera-lhe um
protagonista do conto, distinto do original, como tentarei apontar adiante. brinde diante do fogo”.
No estudo comparativo entre as traduções realizadas por Faustino Ou ainda quando omite uma frase, propositalmente ou não, do
(1948), Hamilton Trevisan (1964) e José Roberto O’Shea7 (1992/2012), em seguinte trecho: “he was lodging in a house on the main road where she
que me deterei por ora, proponho traçar alguns breves comentários centra- used to visit. It seemed a few weeks ago. He was standing at the gate, his
dos na investigação da atividade tradutória realizada por Mario Faustino peaked cap pushed back on his head and his hair tumbled forward over a
no Suplemento, buscando investigar ainda de que modo as três versões se face of bronze.” (JOYCE 1995, p. 31) Faustino não inclui em sua tradução a
traduzem também como leituras culturais em tempos distintos retratando frase “It seemed a few weeks ago”, o que, se não altera o sentido do conto,
tradições e valorações distintas. no entanto, provoca uma quebra no jogo temporal de descontinuidades e
Na leitura das três traduções, parece-me que a estratégia tradutória continuidades importante para a narrativa joyceana, sobretudo no traba-
adotada por Mario Faustino ateve-se à advertência que faz na nota ao lei- lho que o autor faz entre tempo real, tempo psicológico e memória.
tor, presente no Suplemento junto ao conto traduzido, precisamente no Ou quando confunde o adjetivo com o advérbio na frase “her father
que diz respeito à “construção do enredo” e sobretudo ao “tratamento dado was not so bad then” (JOYCE, 1995, p. 29), ambiguidade mantida no texto
aos caracteres”. A reconstrução que a tradução de Faustino faz da persona- original e que no português é impossível de traduzir. Faustino e Trevisan
gem Eveline altera significativamente alguns elementos da prosa joyceana optam por “Seu pai não era tão mau”, enquanto O’Shea traduz como “O
em nome da associação do caráter da protagonista, e de seu destino, ao pai dela ainda não estava tão mal”, o que faz toda a diferença no conto,
caráter e destino de sua mãe, isto é, à solidão e loucura, à “vida de sacrifí- sobretudo se associarmos essa alteração ao trecho: “When they were grow-
cios”, finalizada em delírios e alucinações. Além disso, parece-me que, ao ing up, he had never gone for her, like he used to go for Harry and Ernest,
privilegiar esse sentido do texto, Faustino investe menos na sonoridade ou because she was a girl” (JOYCE, 1995, p. 30), talvez um dos mais ambíguos
musicalidade da prosa joyceana, preferindo destacar o efeito “psicológico” do conto. Faustino opta por “ele nunca fora lá muito dela, como tinha sido
e simbólico das imagens construídas ao longo do conto. de Harry ou Ernest, porque era mulher”, Trevisan por “Porque era menina,
Além dessas opções, a tradução de Faustino se abre a ambiguidades ele nunca se importara com ela quando criança, como fazia com Harry e
que possivelmente apontam para inclinações próprias, talvez para expres- Ernest” (JOYCE, 1964, p. 24) e O’Shea por “ele nunca havia batido nela con-
sões de cunho regional ou pessoal, além da subtração de sintagmas ou fra- forme batia em Harry e em Ernest, porque ela era menina” (JOYCE, 2012, p.
ses inteiras do conto, ou ainda por meio da alteração da ordem sintática 44). A expressão “go for someone”, em inglês, carrega o sentido de “avançar
e, consequentemente, do sentido de determinados adjetivos, verbos ou
contra alguém”,9 verbal ou fisicamente, avançar para cima de alguém, no
substantivos, como na passagem em que Eveline relembra um dos poucos
sentido de “bater”, como utilizado por O’Shea, ou ainda tentar obter algo,
momentos de delicadeza do pai, quando, ao se encontrar acamada, o pai
escolher, gostar ou atrair-se por alguém. Porém, Faustino usa um estranho
lhe conta uma história e lhe prepara torradas. No original o trecho é dito
“nunca fora lá muito dela”, expressão dicionarizada com sentido de “ter
da seguinte maneira: “had read her out a ghost story and made toast for her
propensão a, inclinação ou atração por” e que no texto de Faustino assu-
at the fire” (JOYCE, 1995, p. 31). Enquanto O’Shea opta pela tradução do sin-
tagma por “tinha lido para ela um conto de terror e lhe preparado torradas” 8 Na tradução de Trevisan: “o pai tinha lido uma história de fantasmas e preparado torradas na
lareira” (JOYCE, 1964, p. 26)
7 José Roberto O’Shea é o responsável pela reedição, revista e ampliada, em 2012, de sua pri- 9 Cf. Dictionary for English Language and Culture da Longman e Dicionário Houaiss da Língua
meira tradução de Dublinenses, publicada vinte anos antes (1992). Portuguesa para todas as expressões dicionarizadas em língua inglesa e portuguesa.

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miria a função de “gostar”. Porém entre “bater em alguém” e “não gostar de como se nota no trecho seguinte: “Sentou-se à janela, observando a noite
alguém” há uma larga diferença, o que poderia sugerir talvez certa proxi- que invadia a avenida. Sua cabeça apoiava-se de encontro às cortinas e pene-
midade com a expressão oral local “ir em alguém”, não dicionarizada, mas trava em suas narinas o cheiro do cretone empoeirado. Estava cansada.”
com sentido de “ir contra alguém”, isto é, “seguir ou atirar-se com ímpeto, No trecho de abertura, Joyce utiliza o passado simples (sat, was leaned,
investir”. Estaria Faustino fazendo registro de expressão oralizada em texto was), indicando a paralisia generalizada, da qual Eveline é vítima. O preté-
literário moderno, para o qual uma das renovações propostas, em oposi- rito imperfeito, entretanto, eleito por Faustino, introduz uma ideia de con-
ção ao tradicionalismo da prosa realista, era a inserção de expressões orais tinuidade e duração que, no original, só aparecerá no segundo momento,
e coloquiais no discurso literário como forma de estilização culta da lin- quando a passagem se repete. Com isso, Faustino neutraliza as distinções
guagem popular, através da técnica de justaposição de diferentes registros, temporais essenciais para contrapor os dois momentos que descrevem o
promovendo com isso um efeito de hibridismo linguístico? estado anímico de Eveline.
Nada disso acontece com a tradução de O’Shea, mais preocupada com No trecho seguinte, o passado simples reaparece modificado para ver-
aspectos linguísticos que atualizem o discurso original no discurso de che- bos indicativos de um gesto de movimento, sobretudo pelo uso dos verbos
gada. Ou, em suas palavras, que “mantenham em vista o autor do original”, no gerúndio (was running, leaning, inhaling), sugerindo um aparente gesto
exercitando o conceito de paráfrase proposto por John Dryden (JOYCE, de mudança e movimento que, no entanto, não se concretizará no decorrer
2012, p. 14) citado em sua introdução à tradução de Dublinenses por meio da narrativa joyceana.
do qual o tradutor pode lidar de forma “sensata” com o “conflito de lealda- Outro exemplo da reconstrução feita por Faustino é a ênfase dada ao
des” envolvido no ato tradutório. Nesse sentido, O’Shea defende e pratica caráter de dever associado à escolha de Eveline. Qual o dever da protago-
um exercício tradutório que passa pela recriação do “sabor” e da “tona- nista: cuidar do lar, como prometera à mãe, ou seguir o curso de sua vida,
lidade” do original, buscando manter o registro pessoal do autor, sendo autonomamente? Ser esposa de Frank, ou de Cristo, tal qual a beata cano-
talvez mais próximo do original do que Faustino.
nizada Margarida Maria Alacoque, cuja gravura pendia na parede da casa?
O primeiro exemplo dessas diferenças acontece na cena de abertura
O simbolismo católico, seus valores e rituais, permeiam não só o conto
do conto que, posteriormente, terá determinadas estruturas frasais repe-
“Eveline”, espécie de diminutivo ou corruptela de Eva, mas toda a obra de
tidas ao longo do texto com algumas alterações significativas. “She sat at
Joyce, sobretudo em Dublinenses, como é o caso dos contos “Graça”, “A
the window watching the evening invade the avenue. Her head was leaned
pensão” e “As irmãs”, e sobretudo ainda no tratamento da paralisia espiri-
agaisnt the window curtains and in her nostrils was the odour of dusty
tual evidenciada por toda a casta clerical que enrijecia a Irlanda.
cretonne. She was tired” (JOYCE, 1995, p. 29).
Nesse sentido, quando a personagem se questiona sobre sua decisão,
A tradução de O’Shea utiliza o pretérito perfeito para denotar ação
perguntando-se “Was that wise?” (JOYCE, 1995, p. 30), Faustino traduz:
concluída, sem indicação de movimento: “Sentou-se à janela vendo a
“Estava direito?”, conferindo oposição entre o caminho do bem e o caminho
noite invadir a avenida. Encostou a cabeça na cortina e o odor de cretone
do mal, ou o caminho certo e o errado, repetido ao final do conto, quando
empoeirado encheu-lhe as narinas. Sentia-se cansada” (JOYCE, 2012, p. 43).
Eveline, já no porto para embarcar “pede a Deus que a dirigisse, que lhe
Em diálogo intertextual com a poesia de Tennyson, como aponta O’Shea,
a musicalidade do estilo joyceano é característica marcante da poeticidade mostrasse onde estava o direito”, em contraste com a opção mais literal de
de seu texto, quando o autor estabelece o tom pelas aliterações de “evening”, O’Shea, que opta por: “Teria sido uma decisão sensata?” e de Trevisan, que
“invade” e “avenue”, que recuperam a sonoridade do vento e introduzem não mantém a interrogação do original, utilizando a frase na afirmativa:
o tema do deslocamento, central para o conto. A musicalidade da frase de “Seria sensato” (JOYCE, 1964, p. 24). O’Shea, por sua vez, mantém a mesma
abertura é mantida pelos dois tradutores, mas o contraste entre os tempos linha de tradução para o trecho final: “[...] rezou pedindo a Deus que a
verbais usados no original não se concretizará na tradução de Faustino, guiasse, que lhe mostrasse qual era o seu dever” (JOYCE, 2012, p. 46).

44 45
Sobretudo, Faustino associa Eveline à mãe, cometendo uma significa- casas novas, em oposição ao passado de casas velhas e escuras, vira, na tra-
tiva alteração na passagem “People would treat her with respect. She would dução de Faustino, “pátio cinzento”, em oposição à cor vermelha das novas
not be treated as her mother had been” (JOYCE, 1995, p. 30), quando traduz: casas, indicando preferência de tratamento psicológico e não linguístico na
“As pessoas a tratariam com respeito. Não seria como sua mãe”. Faustino tradução. Cinzenta e indefinida é a escolha que Eveline está prestes a fazer.
promove uma ambiguidade que abre o texto para duas interpretações: a O contraste entre cinza e vermelho, a cor indefinida e o colorido, indica as
de que Eveline não seria tratada como a mãe, opção escolhida por O’Shea, oposições típicas do estilo de Joyce entre o claro e o escuro, onde o escuro
ou que não seria parecida com sua mãe. O’Shea e Trevisan traduzem da aponta para paralisia da vida em Dublin. Nesta mesma passagem, a escolha
seguinte maneira, respectivamente: “As pessoas a tratariam com respeito. de verbos que adjetivam o som dos passos “estalando” na calçada e “ran-
Não seria tratada como a mãe” (JOYCE, 2012, p. 44) e “As pessoas a trata- gendo” no caminho de cascalho, caracterizando a escolha da preservação
riam com respeito; não iria sofrer como sua mãe” (JOYCE , 1964, p. 24). de um elemento de musicalidade ou uma preocupação com a elaboração
A ausência do verbo na tradução de Faustino provoca uma alteração no linguística, singular em Joyce, e mantida por O’Shea, no entanto, não apa-
sentido do verbo “ser”, indicativo de um “estado”, e que aparece como verbo rece na tradução de Faustino, que perde em melodia, mas ganha em aden-
auxiliar na voz passiva utilizada por O’Shea. Assim, as semelhanças entre a samento psicológico, indicando a preferência de Mario pelo tratamento de
personalidade de Eveline e a da mãe são enfatizadas por Faustino. cunho mais emocional.
No mesmo parágrafo, encontramos outro exemplo na frase “What A descrição das casas também segue a mesma distinção. De um lado,
would they say of her in the Stores when they found out that she had run Faustino opta por “casinhas pardas”, que contrastam com as novas casas
away with a fellow? Say she was a fool, perhaps” (JOYCE, 1995, p. 30). O “imponentes”, “cor de telha, com telhados resplandecentes” (1948), repe-
adjetivo “fool”, que no original pode significar tanto “idiota”, opção vis- tindo a oposição anterior entre o cinza (pardo) indefinido e o vermelho
lumbrada por O’Shea,10 quanto “louca”, ganha sentido especial na tradução (cor de telha) vivo e resplandecente, que aponta para a oposição entre a
de Faustino quando traduzido como “doida”,11 reenfatizando a semelhança imobilidade e a novidade que o deslocamento para fora de Dublin pro-
entre a personalidade da mãe e da filha. Acredito que a escolha de Faustino porcionará, com o diminutivo e a indistinção do adjetivo “pardas” indi-
esteja ligada à aproximação que faz do caráter de Eveline ao da mãe, uma cando mais uma vez o tratamento psicológico reservado à vida em Dublin.
vez que toda a vida de sacrifícios maternos culminara em loucura, como O’Shea, por sua vez, mantém o contraste entre claro e escuro entre as “casas
registrado no conto. pequenas e escuras” e as casas “vistosas de tijolo aparente e com telhados
O contraste entre claro e escuro, evidente na descrição do cenário luzidios” (JOYCE, 2012, p. 43), autorizando a permanência dos contrastes
citadino, aponta para o jogo alternado entre visibilidade e invisibilidade, sem, contudo, projetar na cidade a carga dramática do indefinido subli-
mobilidade e imutabilidade que tanto Faustino quanto O’Shea preservam nhada por Faustino. A substituição da cor marrom ou negra pela cor parda
em suas traduções. Os tons de preto e marrom, cores arquetípicas da para- ou cinzenta parece-me indicar uma ênfase na escolha de adjetivos que pro-
lisia de Dublin, se contrastam ao colorido luzidio que surge com a expe- jetam mais fortemente a zona de indefinibilidade ou de invisibilidade em
riência do novo, que chegará pelo elemento do estrangeiro ou do “de fora”, vez de um contraste direto entre o claro e o escuro eleitos por O’Shea.
o estranho, em contraste ao familiar. A paralisia, condição presente no funcionamento e na mentalidade da
Vejamos um exemplo. O “caminho coberto com cascalho” (JOYCE, sociedade irlandesa da virada do século, é central na narrativa e, por isso,
2012, p. 43), na tradução de O’Shea, que introduz o cenário do presente, de incontornável na obra joyceana, sobretudo nos contos de Dublinenses, entre
os quais se encontra “Eveline”. Como desdobramento deste tema, observa-
10 “O que diriam na loja quando descobrissem que ela fugira de casa com um sujeito qualquer? se a relação entre a mobilização e o deslocamento gerados pela vida, em um
Que era uma idiota, talvez” (2012, p. 44).
11 “Que diriam dela nos Armazéns quando soubessem que tinha fugido com o namorado?
polo, e a imobilização e o véu de palidez que a morte encomenda, em outro.
Diriam que era uma doida, talvez” (1948). A travessia por espaços, personagens e pela história de Dublin apresenta-se

46 47
como uma jornada pelo território emocional e moral do indivíduo, apon- ponto, o próprio escritor torna-se um tradutor. Na dupla posição de cria-
tando a fragmentação, a incompletude e solidão que a região de difícil dor e reinventor, atua na esfera do próximo e do longínquo, sem suprimir
apreensão e visibilidade promove no contato entre a dimensão histórica e a a distância entre a cifra e a chave, mas estabelecendo uma relação – puro
cultura, evidente na descrição da zona indiscernível em que se encontram tanger de cordas.
os anfitriões do reino dos mortos, como no conto “Os mortos”. Ao mesmo
tempo em que a aproximação da morte vem trazer notícias da dura certeza referências bibliográficas
da mortalidade, ela também pode se apresentar como a própria sugestão de
ALFARO, Carolina. “The Sisters, de James Joyce – Luz, escuridão e sentidos nas
mergulho nessa zona indefinida – aproximação e afastamento: paradoxo traduções de José Roberto O’Shea e Hamilton Trevisan”. In: Cadernos de
moderno que o gesto tradutório opera em sua natureza. Tradução, Florianópolis: Ed. UFSC, Número II, 1997.
Percorrer uma Dublin imaginária e real, nos contos de Dublinenses, em BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Florianópolis,
busca de um reconhecimento identitário, em um período em que história e Editora Copiart, PGET/UFSC, 2013.
cultura sofriam graves impactos, aponta para o sentimento de amor e ódio CAMPOS, Haroldo, “A palavra vermelha de Hölderlin”. In: A arte no horizonte do
pela terra natal que a condição de exilado proporcionou a Joyce e que o pro- provável. São Paulo: Perspectiva, 2010.
jetou em um espaço de constante redefinição deste mesmo senso de identi- ______. “Mario Faustino ou a Impaciência Órfica”. In: Metalinguagem e outras
metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
dade intensificada pelo sentimento de não-lugar e desterritorialidade e que
a tradução de Faustino reatualiza sintomaticamente em 1948, momento em ______. “Da tradução como criação e como crítica”. In: Metalinguagem e outras
metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
que o projeto modernista de renovação estética e desconstrução da noção
______. “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na literatura brasileira”. In:
de identidade, vislumbrado por Mario de Andrade e Oswald de Andrade, Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
começava a ser revisto e ressignificado pela geração de cinquenta. ______. “A linguagem do Iauratê”. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo:
A posição de imigrante, ou de estrangeiro, ou ainda de viajante, à qual Perspectiva, 2006.
Eveline poderia se entregar, mas não o faz, vem implicar questões vincu- FAUSTINO, Mario. “Poeta-elo”. In: De Anchieta aos Concretos. São Paulo: Cia. das
ladas à noção de identidade e cultura, que, quando postas em circulação Letras, 2003.
pelo processo tradutório efetuado por Mario Faustino, em 1948, ganham ______. “Poesia, Brasil, 1956” e “Poesia, Brasil , 1957”. In: De Anchieta aos Concretos.
nova dimensão se entendermos o papel da tradução como fenômeno de São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
intercâmbio cultural ligado à formação de uma identidade nacional. ______. “A poesia concreta e o momento poético brasileiro”. In: De Anchieta aos
Concretos. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
É assim que a condição de imigrante coloca a identidade em trânsito,
______. “Um ano de experiência em poesia”. In: De Anchieta aos Concretos. São
a partir da vivência dos limites de pertencimento e não-pertencimento e
Paulo: Cia. das Letras, 2003.
da transformação desses horizontes. No limiar da violência da desidentifi-
______. Artesanatos de Poesia. Fontes e correntes da poesia ocidental. São Paulo:
cação, a linguagem também imigra para regiões sem fronteiras, assumindo Cia. das Letras, 2004.
o próprio lugar de território estrangeiro, zona de mutação que interessa à ______. completa e traduzida. São Paulo: Editora Max Limonad, 1985.
literatura e à experiência de tradução, ou, para falar com Berman, à tra- JOYCE, James. “Eveline”. In: James Joyce’s Dubliners. An illustrated edition with
dução enquanto experiência de si mesma. O jogo que se estabelece entre annotations. John Wyse Jackson and Bernard McGinley. London, Reed
a expansão e retração das marcas da tradição para uma subjetividade em Books, 1995.
trânsito, e do abandono de si para a mescla com a diferença, cria zonas de ______.“Eveline“. In: Dublinenses. Tradução de Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro:
interseção e entre-lugares. Em um primeiro movimento, habitar esta zona Ed. Civilização Brasileira, 1964.
indelimitada é atuar no domínio do desconhecido, do enigma, e, nesse ______. “Eveline”. In: Dublinenses. Tradução José Roberto O’Shea. São Paulo:
Hedra, 2012.

48 49
______. “Eveline”. In: Folha do Norte. “Suplemento Arte-Literatura”. Belém, Ano
III, n° 102, 24 de outubro de 1948. Trad. Mario Faustino.
Um beijo de línguas:
NUNES, Benedito. “A poesia de Mario Faustino”. In: Poesia completa e traduzida. as metáforas eróticas da tradução
São Paulo: Editora Max Limonad, 1985.
Izabela Leal
POE, Edgar, Allan. A filosofia da composição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
SILVA, Antonio M. dos Santos. “Presença de Poe na poética de Mario Faustino”. In:
Fragmentos, Florianópolis, número 17, jul-dez 1999.

E quem não queria uma língua dentro da própria língua?


Herberto Helder

A epígrafe de Herberto Helder, retirada de um poema do livro A faca não


corta o fogo, remete à questão da escrita como possibilidade de invenção
de uma língua outra dentro da própria língua. Língua carregada de novas
potências, língua que estilhaça a sintaxe, que subverte a gramática: língua
estrangeira. É essa relação entre o próprio e o estrangeiro o que me move
aqui, o estrangeiro pensado não como algo que está fora do próprio, mas
que o constitui como alteridade em relação a si, que revela em seu âmago
o núcleo silencioso de uma heterogeneidade irredutível. É justamente esse
núcleo silencioso que faz falar, que aponta para a necessidade de uma
espécie de tradução dessa língua outra, encoberta pelo verniz do sentido,
que precisa ser liberada dentro da língua própria. Escrever, assim como
traduzir, é desdobrar a potencialidade da língua, violentando-a, tornan-
do-a uma bilíngua.
A escrita deve oferecer-se à iminência dessa bilíngua, assim como,
na tradução, o tradutor se abandona ao que há de irrefreável na palavra
estrangeira, deslizando pelo núcleo silencioso que é intrínseco a qualquer
língua, sendo que na estrangeira ele é sempre visível, mas na língua própria
está aparentemente oculto. A tradução tem algo de afetivo, já que, assim

50 51
como na lógica do desejo, é a própria ausência que determina a constitui- vel não se aproxima da dinâmica erótica proposta por Bataille? Pensada à
ção do movimento, no caso, o desejo de traduzir. Se a atividade de tradução luz da teoria de Bataille sobre o erotismo como “nostalgia da continuidade
envolve um desejo que se reinscreve a todo momento, não é de espantar perdida” (BATAILLE, 2004, p. 25), podemos falar num tipo de relação erótica
que poetas, tradutores e ensaístas, ao se referirem ao ato de traduzir, utili- entre a língua do original e a língua da tradução, já que, assim como no
zem metáforas amorosas e/ou eróticas para falar dessa relação tão íntima erotismo, há no processo de tradução a quebra de limites ditos individuais,
entre diferentes línguas e culturas. Relação que pressupõe a ambivalência sendo que o próprio tradutor é aquele que, ao se desnortear no contato com
amorosa de amor e ódio, como já pensava Deleuze em relação à escrita: o outro, possibilita a perturbação e a dissolução das fronteiras entre a língua
“Para escrever talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas de estrangeira e a língua materna, do mesmo modo como Bataille pensava a
tal modo que uma criação sintática trace aí uma espécie de língua estran- violência intrínseca ao erotismo: “[...] o campo do erotismo é o campo da
geira, e que toda a linguagem revele o seu exterior, para além de toda a violência, o campo da violação” (BATAILLE, 2004, p. 27).
sintaxe” (DELEUZE, 2004, p. 16) Não é à toa que Antoine Berman, no livro A prova do estrangeiro, falará
Trata-se, sem dúvida, de uma experiência de si e do outro, de uma de uma pulsão tradutória, retomando o conceito freudiano que remete a
experiência de si atravessada pelo outro, ou ainda, e sobretudo, da expe- essa pura força desejante, uma força cega que impele o tradutor à infinita
riência de tornar-se outro. Falo, evidentemente, de um duplo vínculo, e tarefa de traduzir. É por aí que se esboça a analogia entre tradução e ero-
também de uma dupla perda: perder a comodidade da língua própria, que tismo. O ato de traduzir tem um caráter complexo; ele é, ao mesmo tempo,
é também um lugar de alienação, e fazer com que a língua estrangeira perca lúdico, violento e transgressor, ainda que nem todas essas facetas estejam
a sua particularidade, que sua identidade seja desarticulada, violada. O ato impressas com a mesma intensidade numa tradução. A própria questão
de violar a língua estrangeira foi bem conhecido nos processos de coloni- da fidelidade ou não à obra original enuncia-se segundo essa lógica, pelo
zação, a partir dos quais sempre houve a imposição da língua e da cultura menos para os estudos contemporâneos de tradução. Se, por um lado,
do colonizador ao colonizado. A tradução, quando funciona em seu viés existe uma espécie de reverência à obra original, por outro, decorre daí que
etnocêntrico, torna-se um dispositivo opressor, utilizado por uma deter- a tradução será também uma transgressão em relação a ela, pois pretende
minada cultura que busca se sobrepor a outras. Esse é um debate antigo e se inscrever como um “canto paralelo”, como pensava Haroldo de Cam-
recorrente no campo dos estudos culturais. É claro que não é nesse sentido pos (2005, p. 191). A tradução, como afirma ainda Haroldo, desempenha
que penso a relação tradutória naquilo que ela tem de mais potente, porém um papel usurpador, transgressor. De todo modo, não estamos mais no
não é possível passar ao largo de certa violência inerente ao de traduzir. campo da “dominação” do estrangeiro, pois a língua do tradutor também
Refiro-me, portanto, ao duplo vínculo e à dupla perda que rondam a se modifica com o ato de tradução, já que este conduz à experiência do
tarefa de tradução, pois o tradutor é aquele que habita um espaço não loca- que une e ao mesmo tempo separa as línguas. Trata-se, mais uma vez, do
lizável, sempre entre duas línguas sem estar em nenhuma delas, sempre no duplo vínculo e da dupla perda. Como diria Antoine Berman em A prova
limiar, como pensa Alexis Nouss (2012). E aquele que habita esse não lugar do estrangeiro, “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem,
tem que suportar certa experiência de dilaceramento, de cisão, ao mesmo descentralização. Ela é relação, ou não é nada”. (BERMAN, 2002, p. 17)
tempo em que vê anunciar-se a construção de outra voz, de outra língua, Evidentemente, a reflexão sobre o ato de traduzir não esteve desde sem-
de outro texto: lugar do próprio sempre assombrado pelo outro. pre associada a um projeto tão radical de estranhamento de si e do outro.
Duplo vínculo movido também por um gesto violento que retira cada É preciso ter em mente que o modo de pensarmos contemporaneamente a
língua de sua comodidade, tornando-a estrangeira não mais em relação tradução está nitidamente relacionado ao modo de pensarmos nossa rela-
à outra, mas estrangeira em relação a si mesma. Essa dinâmica de afasta- ção com a língua, e com a pluralidade de línguas que nos atravessam cada
mento de si para perder-se no outro e com o outro, num gesto que aponta ao vez mais nessa babel que habitamos. É preciso levar em consideração, por
mesmo tempo para o horizonte de uma completude prometida e inalcançá- um lado, o quanto os trânsitos culturais decorrentes dos processos de emi-

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gração que se intensificaram nas últimas décadas estão relacionados a esse imagem fiel da índole de seu povo” (Apud. BERMAN, 2002, p. 74). Herder,
fenômeno. Por outro lado, e segundo meu modo particular de entender o na sua ingenuidade em se referir à língua própria como uma moça virgem
problema, a discussão sobre as margens e limites da tradução passa inevi- que deveria manter-se afastada do contato com o estrangeiro, manifesta
tavelmente pelo campo da poesia. Sabemos, pelo menos já desde Novalis, o desejo de impedir uma relação que de todo modo já aconteceu – pois
que poesia e tradução caminham juntas na medida em que ambas ence- não existe nenhuma língua que seja originariamente pura –, e que inevi-
nam a capacidade artificial, criadora da linguagem, sua possibilidade de tavelmente continuará acontecendo. Aqui, mais uma vez, o que está sendo
produção (poesia) e reprodução (tradução) de formas. Daí em diante, poe- recusado é o lugar da língua por vir, “fruto da mistura de sangues” que não
sia e tradução não cessam de reenviar uma a outra, sendo que boa parte se deixa subsumir na língua materna ou na estrangeira.
dos poetas contemporâneos chegam mesmo a afirmar a necessidade de E é também nesse sentido que o ato de tradução toca a dimensão silen-
traduzir como dispositivo necessário ao fazer poético. A tradução, como ciosa e poética adormecida no interior de cada língua. Para que se des-
diria ainda Berman, “é um ato poético”. (BERMAN, 2002, p. 306) perte do sono da língua materna, do lugar de alienação que ela de certa
Dos românticos aos nossos dias a relação entre tradução e poesia forma impõe, é necessário desapegar-se do seio que ela representa, para
intensificou-se, não porque a tradução ocupe um lugar mais importante no que, estando agora num lugar que não pertence nem à língua materna nem
mundo das letras do que o que fora ocupado naquele momento – isso seria à língua estrangeira, possa ser anunciada uma língua por vir, a língua da
questionável –, mas porque há uma mudança radical no próprio projeto poesia. A procura do idioma poético não se dá sem uma certa dose de
que articula, “eroticamente”, como estou tendendo a pensar, a relação entre violência em relação à língua materna. É preciso que o poeta, ao procurar
línguas. Trata-se não apenas de uma mudança que diz respeito à forma a sua dicção, desate os laços que modulam a sua fala, permitindo que uma
de compreender as interações entre línguas e culturas, como também, no nova voz irrompa da massa compacta da língua. Nesse sentido, o poeta é
plano teórico que me interessa, aquilo que põe em jogo a relação entre a aquele que precisa se insurgir contra a língua mãe, ainda que a voz que fala
língua própria e a estrangeira. Se podemos dizer que o viés erótico está através dele continue a ser proveniente desta. A fala do poeta é portadora
presente pelo menos desde a segunda metade do século XVIII, para Herder de uma condição paradoxal na medida em que encena a separação da lín-
essa dinâmica erótica entre línguas não se enuncia segundo a ótica de uma gua materna ao mesmo tempo em que explicita a sua dívida para com ela,
violência desarticuladora da língua própria, mas segundo uma prática que revelando a ambivalência amorosa que marca o lugar do poeta na língua.
leva o tradutor a cortejar a língua materna, e por isso o filósofo adverte: Tomo como exemplo um poema de Herberto Helder, poeta português con-
“não é para desaprender minha língua que aprendo outras, não é para temporâneo, do livro A faca não corta o fogo, no qual a relação erótica e vio-
intercambiar meus hábitos de educação que viajo entre os povos estran- lenta com a língua materna funda a possibilidade de uma língua múltipla:
geiros [...] Mas passeio nos jardins estrangeiros para colher nele flores para A acerba, funda língua portuguesa,
a minha língua, como para a noiva na minha maneira de pensar.” (Apud. Língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
BERMAN, 2002, p. 72). A língua própria é então vista como uma noiva que Escorchá-la viva, a cabra!
Transá-la?
deve ser cortejada, recebendo as flores do estrangeiro. Esse modo de for-
Nenhum autor, nunca mais, nada,
mular o problema elimina justamente a experiência real do outro, a expe- Se a mão térmica, se a técnica dessa mão,
riência da estranheza. O pensamento de Herder não cessa de apontar para Que violência, que mansuetude!
uma espécie de pureza da língua materna, e chega até mesmo a pensar que, Que é que se apura da língua múltipla:
antes da tradução, ela pode ser comparada “a uma moça virgem que ainda Paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
Que se foda a língua, esta ou outra,
não tenha tido comércio com um homem e não tenha ainda concebido o Porque o errado é sempre o certo disso
fruto da mistura de sangues; ela ainda está pura e em estado de inocência, (HELDER, 2010, p. 170)

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Impregnado de ambivalências do início ao fim, o poema de Herberto com as constelações, por uma estranha atração do universo. Ao dizer-se isso,
Helder não deixa de assinalar a variação de ritmos típica do ato sexual. E ele acreditava explicar para si mesmo a lancinância da androginia, amando,
desamando sob o poder dos mesmos encantos.
a que distância estamos das considerações de Herder.... Sinal dos tempos?
Amor incapturável. A cada instante, a língua estrangeira pode – poder sem
Brincadeira à parte, é a relação do escritor/poeta com a língua materna o limite – se retirar nela mesma, além de toda tradução. Eu sou, dizia ele, um
que está sendo discutido aqui. No poema, essa imagem da língua materna centro entre duas línguas: quanto mais vou ao centro, mais me afasto dele.
passa também por uma ambivalência, língua mãe e língua puta, e a varia- (KATHIBI, 1992, p. 10) (tradução minha)
ção linguística que o atravessa chega até mesmo a um registro que oscila
A tradução é a tentativa de dizer o outro, esse outro constituído de
entre a linguagem culta e a coloquial, incluindo uma expressão do “portu-
palavras, pondo em cena algo que, por se situar entre línguas, não se reduz
guês brasileiro”, “transá-la”.
a nenhuma delas, sendo o incomunicável da própria língua, “amor incap-
A tradução, naquilo que tem em comum com a busca de um idioma
turável”, pura fenda erótica por onde escapa o sentido e faz com que toda
poético, encena um problema já esboçado por Schleiermacher, mas que
língua seja, desde sempre, uma bilíngua.
em nossa época passa a ser o motor do trabalho poético: “assim como o
Outro poema que apresenta o viver entre línguas como condição
homem deve se decidir a pertencer a um país, ele deve se decidir a perten-
implacável da da tradução é “Traslating is sexy”, de Leslie Kaplan, aqui
cer a uma língua ou a uma outra, sob pena de flutuar sem descanso em um
apresentado numa versão de Marilia Garcia. Poeta também de condição
desagradável meio-termo”. (Apud. BERMAN, 2002, p. 269) Mas o que dizer
bilíngue, Leslie Kaplan nasceu em Nova Iorque, tendo mudado para a
daqueles que, por um motivo ou por outro, já se encontram necessaria-
França com apenas três anos. O poema, escrito originalmente em inglês e
mente implantados nesse meio-termo? Aqueles que estão, desde o início,
francês, explora a sonoridade das duas línguas que incita os jogos de pala-
habitados por um incontornável bilinguismo? Lembro aqui o exemplo do
vras, e passa de uma língua a outra sem maiores constrangimentos, já reve-
poeta marroquino Abdelkibir Khatibi e de seu sugestivo livro intitulado
lando o bilinguismo da autora e apresentando de saída um problema para
Amour bilingue (Amor bilíngue), que trabalha, de forma poética, o desliza-
a tradução: como traduzir um poema bilíngue mantendo o bilinguismo
mento temático da relação amorosa entre um casal para a relação amorosa
que o caracteriza? Se a solução for traduzir apenas uma parte dele, como
com o próprio idioma, dando origem a uma cadeia de imagens que se suce-
é o caso aqui, onde só a parte em francês foi traduzida, a tradução aparece
dem: o mar, a mãe, a amante, a língua1.
como tarefa necessariamente incompleta. Por outro lado, se o poema for
Para Kathibi, o bilinguismo será inseparável do processo de coloniza-
inteiramente traduzido para a língua materna do tradutor o bilinguismo se
ção por ele vivenciado, o que faz com que o autor esteja inelutavelmente
perde. A terceira solução, traduzir o poema para a língua materna e para
dilacerado entre duas línguas: o árabe e o francês. A partir dessa dilace-
uma segunda língua qualquer (português e espanhol, por exemplo) não
ração inicial, da duplicidade da língua (a materna e a estrangeira), há a
deixa de ser bastante arbitrária, fazendo quase o mesmo efeito de traduzir
recorrência de imagens que encenam o lugar do duplo: o fluxo e o refluxo
o poema apenas parcialmente. Nesse caso a tradução parece ser mesmo
do mar, a oscilação entre dentro e fora, a fala e a escrita, e até mesmo a
uma tarefa impossível.
figura do andrógino que aponta para o desdobramento entre o sexo mas-
culino e o feminino, sendo que essa tensão entre elementos distintos não POEMA DE LESLIE KAPLAN
anuncia nenhum tipo de síntese ou conciliação, mas sim a manutenção de Translating is sexy
um núcleo de estranheza impenetrável:
a poesia é um beijo
Ele pensava no sol, e logo o seu nome, o da lua se invertendo – do feminino entre duas línguas
ao masculino – em sua dupla língua. Inversão que faz girar as palavras junto a french kiss
ou
1 A esse respeito, conferir o ensaio de DÊANGELI, Maria Angélica, (2011). um beijo americano

56 57
buscar o ponto ele denominou hospitalidade linguística, ou seja, a possibilidade de acolher
em que as duas línguas se encontram o estrangeiro naquilo que ele tem de irredutível à minha língua e à minha
lá no fundo
cultura, o que é também a possibilidade de acolhê-lo em sua diferença.
da boca
ou então na superfície Ricoeur termina a aula “O paradigma da tradução” (2011) retomando jus-
a ponta da língua tamente o problema da incomunicabilidade entre os idiomas, daquilo que
contra a ponta da outra língua é comumente chamado de intraduzível, o que faz com que o autor se per-
how do you say that in english? gunte se sem essa “prova [do estrangeiro] não seríamos ameaçados de nos
I love you
that’s all
fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros?” (RICOEUR,
and 2011, p. 55) Cabe acrescentar que a metáfora erótica associada à tradução
hold me tight também retorna, mas agora num terceiro sentido, pois Ricoeur se ques-
and tiona a respeito do lugar do segredo, o núcleo poético e silencioso que a
give it another try tradução evidencia: “E nossas melhores trocas no amor e na amizade guar-
baby
dariam elas essa qualidade de discrição – segredo/discrição – que preserva
qual é o ponto de encontro a distância na proximidade?” (RICOEUR, 2011, p. 56)
the meeting point Para terminar, trago a imagem da tradução como um beijo de línguas,
mas aí a gente pensa em carne habilmente trabalhada por Ricardo Domeneck no poema “Da tradução
I can’t meet you here
como exercício erótico” (2012). Domeneck, poeta brasileiro que vive em
dear meat
Berlim, não deixa de experimentar a condição de viver entre línguas, entre
let’s play o português e o alemão. No poema em questão a tradução evoca o ato
a game sexual e aponta para o erotismo que subjaz a todo ato de partilha, aqui
sim, vamos jogar um pouco evocando muito especificamente a materialidade da linguagem. O tradu-
tor, nesse caso, toca o texto alheio como se tocasse um corpo, como se o
translating
is sexy texto fosse corpo: corpo da língua, corpo do poeta. A tradução, nesse caso,
abandona qualquer noção de impossibilidade para configurar-se como
I know that pura harmonia entre as línguas, lugar do gozo erótico:
[…] Traduzo os textos do poeta bonito
e é como se eu alisasse suas pernas,
O poema de Leslie Kaplan parece apontar também para o devir bilín- erotizado medisse os seus músculos
gue da língua, a língua da poesia, no caso também da tradução, aquele com os olhos e as mãos, a carnadura
devir que Herberto Helder prometia para a “funda língua portuguesa” ao do seu estilo na extensão de sua carne
dura, rija, o tesão de suas metonímias,
torná-la uma língua múltipla. E aqui recaímos, mais uma vez, no espaço de
as palmas no tórax de suas metáforas,
uma contaminação inevitável de uma língua por outra, justamente a conta- o vazio de um “o” como o orifício
minação tão temida por Herder no século XVIII. É bem verdade que na tra- que não se quer trair, o pingo do “i”
dução há uma perda da suposta pureza que cada língua manifesta em seu como a primeira gotícula que jorra,
monolinguismo, sendo que o “fruto da mistura de sangues”, que no caso é falo, brusco, e quando eu encontro
a wit, equivalente em meu idioma
também a poesia, só pode ser alcançado a partir de uma recíproca conta- à sua, é como se um beijo de língua
minação. Nesse sentido, e para ir terminando, evoco Paul Ricoeur e o que misturasse a sua saliva à minha, e o

58 59
texto novo que nasce fosse o filho
que não posso, puta, parir-lhe, tesura
Toda a tradução é composta de mudança,
de sua escrita só equiparada à ereção diz Herberto
que me habita a cada vez que atinjo
um ponto final seu, meu, e pergunto, Luis Maffei
enquanto a milhares de quilômetros
o traduzo, se ele sente como penetro
por sua linguagem sua língua, nunca
antes verter textos fora tal transplante
de pele, ou a tradução esta anilíngua.

referências bibliográficas
BATAILLE, Georges. O erotismo. (Tradução de Claudia Fares). São Paulo: Editora
Arx, 2004.
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha român-
tica. (Tradução de Maria Emília Pereira Chanut). Bauru/São Paulo: EDUSC, Não se pode negar que Herberto Helder seja um tradutor, mas é um tra-
2002. dutor bastante especial. Como camoniano que sou, olho para Camões
CAMPOS, Haroldo de. “Transluciferação mefistofáustica”. In: Deus e o diabo no a fim de chegar ao camoniano Herberto, pois nenhum dos herbertia-
Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005. nos livros que se dedicam a trazer ao português textos em outros idio-
DEÂNGELI, Maria Angélica. “Amour Bilingue, de Abdelkebir Khatibi: uma genealo- mas apresenta-se, em subtítulo, como tradução: O bebedor nocturno, As
gia dos duplos”. In: Tradução literária: a vertigem do próximo. (ALENCAR, Ana magias, Oulof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda contêm “Poe-
Maria; LEAL, Izabela; MEIRA, Caio, org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, mas mudados para português”. Mudados mas traduzidos, pois o que um
2011, p. 11-22.
monolíngue lusófono não leria antes de Herberto pôr a mão na língua
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. (Tradução de Peter Pál Pelbart). São Paulo:
outra, agora lê. Portanto, se Camões escreveu que “Todo o mundo é com-
Editora 34, 2004.
posto de mudança” (CAMÕES, 2005, p. 162), pode-se dizer que, para Her-
DOMENECK, Ricardo. Ciclo do amante substituível. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012
berto, todas as traduções são compostas de mudança, as dele, talvez, mais
HELDER, Herberto. A faca não corta o fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008
que as outras, mas as outras também.
KAPLAN, Leslie. In: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2011/07/leslie
-kaplan.html acesso em 31/10/2012.
Um dos livros que recolhe traduções herbertianas de textos alheios é
Doze nós numa corda, expressão pertencente ao poema de Henri Michaux
KHATIBI, Abdelkebir. Amour bilíngue. Casablanca: Ediff, 1992.
intitulado exatamente “Tradução”: “(...) mas tenho nos dedos o jeito dos
NOUSS, Alexis. “A tradução: no limiar”. In: Alea: Estudos neolatinos. (Tradução de
Izabela Leal) Vol. 14, N.1, Rio de Janeiro: 7letras, 2012, p. 13-34. marinheiros de dar doze nós numa corda (...)” (HELDER, 1997b, p. 9). O
RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. (Tradução de Patrícia Lavelle). Belo Horizonte: exercício feito pelo poeta é complexo, e não é possível nomeá-lo apenas
UFMG, 2011. com o particípio “mudado”; o próprio Herberto Helder, em primeira pes-
soa, considera esses poemas “traduzidos, vertidos, mudados, apresentados
– vindos de outras línguas – em língua portuguesa” (HELDER, 1997c, p. 77).
Isso indica que o gesto da mudança não é apenas de mudança, mas de ver-
são e apresentação, além de, digo eu, movimento, deslocação. Jorge Wan-
derley, num texto intitulado “Tradução e traduzibilidade”, afirma:

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Porque a tradução perfeita (esta ficção) é, num certo critério, aquela que, ver- por exemplo, uma nota de pé de página ou deixando como no original,
tida para a língua primeira, resulta exatamente no texto original, na óptica que, todos sabem, é francês. Herberto Helder, no entanto, ao optar por
das teorias tradicionais da tradução. O que faria borgeanamente com que –
“Um sítio chama e outro responde”, transforma em dois sítios o que é, no
para fugir de vez a estes critérios de equivalências máximas – a melhor tradu-
ção de qualquer poema fosse o poema mesmo, supondo-se o movimento em original, um só: o tradutor privilegia o texto novo, mesmo que o poema
sua imobilidade (...). E, numa outra óptica, só é tradução aquilo que, bem ao primeiro seja a própria razão de ser da existência do poema “mudado”.
contrário, não seja o poema original. No meio desses dois extremos, ocorre O tradutor Herberto Helder também está mais interessado no portu-
uma luta de arcanjos que se chamam O MESMO e O OUTRO – mas de tal modo guês que no idioma em que foram escritos os textos originais, pois a lín-
travada que seu final deva ser a (impossível) fusão dos dois corpos num só.
(WANDERLEY, 1995, p. 10) gua-alvo é aquela que vai ser favorecida: se os poemas são “mudados para
português”, é do idioma de chegada a soberania, e não faz sentido exigir
A tradução se debate entre dois polos, o texto de origem e o texto do novo poema, português, algo como uma nota explicativa, possibilidade
-alvo, a fim de que exista entre os dois uma “fusão” inalcançável, dadas as que rascunhei no parágrafo acima. Nesse sentido, o trabalho de Herberto
peculiaridades de cada idioma e a intraduzibilidade de palavras e mesmo Helder, ao pôr o português no subtítulo de seus livros de tradução e ao, por
de ideias. O caso das mudanças empreendidas por Herberto Helder apro- exemplo, descaracterizar a cidade de Michaux privilegiando o idioma de
xima-se, aparentemente, mais da segunda óptica apresentada por Wander- chegada, lembra o exemplo dado por Borges: “os tradutores em épocas pas-
ley, pois o que resulta de cada uma de suas mudanças não é “o poema origi- sadas (...) queriam provar que o vernáculo era capaz de um grande poema
nal” – mas quando o seria, senão na quimera borgiana da imobilidade? No como o original” (BORGES, 2000, p. 77).
entanto, lembro que o particípio “traduzidos”, escrito pelo próprio tradu- O poema que abre Oulof, “Sobre tradução de poesia”, diz, obviamente,
tor, ou modificador, não deixa de caracterizar a nova situação dos poemas da prática tradutória. Seu autor original é o polonês Zbigniew Herbert:
“vindos de outras línguas”, posto que, agora, há leitura potencial nova. Mais
Zumbindo um besouro pousa
que isso: em alguns casos, como no próprio “Tradução”, de Henri Michaux, numa flor e encurva
o texto original é publicado ao lado do novo, o modificado – indicando o o caule delgado
máximo de movimento ou a convivência entre movimento e imobilidade? e anda por entre filas de pétalas folhas
O que fica evidente é uma consonância de sentidos entre os dois textos, de dicionários
e vai direito ao centro
respeitando-se “o mesmo” a que se refere Wanderley e permitindo a Gas-
do aroma e da doçura
tão Cruz afirmar: “A tarefa, na verdade, é só uma e, se o próprio Herberto e embora transtornado perca
manifesta alguma perplexidade quanto à forma de nomeá-la, o mesmo não o sentido do gosto
se verifica no que respeita ao modo de execução, ou seja, em relação ao que continua
(...) poderíamos chamar a actividade do tradutor” (CRUZ, 1998, p. 109). até bater com a cabeça
no pistilo amarelo
Alguns detalhes, porém, são mais que traduzidos, são efetivamente e agora o difícil o mais extremo
“mudados”; por exemplo, o verso “Clermont sonne et Ferrand répond”, de penetrar floralmente através
Michaux, é traduzido como “Um sítio chama outro responde” (HELDER, dos cálices até
1997b, p. 9). O verso original pode ser encarado como um obstáculo à tra- à raiz e depois bêbado e glorioso
zumbir forte:
dução convencional, pois os nomes próprios do poema de Michaux são de
penetrei dentro dentro dentro
uma cidade francesa, Clermont-Ferrand, e o autor parte em dois o que era e mostrar aos cépticos a cabeça
um substantivo composto. Ainda assim, uma suposta fidelidade ao texto– coberta de ouro
fonte poderia preocupar-se com a manutenção dos nomes que formam o de pólen.
nome da cidade e mantê-los, esclarecendo ao leitor o jogo do texto com, (HELDER, 1997c, p. 9, 10)

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O dicionário é, como um jardim, lugar de floração de sentidos, está- O tradutor, além disso, é um poeta, e a fusão que se realiza não é ape-
ticos apenas na aparência: se as “forêts de symboles” (BAUDELAIRE, 1985, nas a do texto-fonte com o texto-alvo, mas também a do poeta-alvo com os
p. 114), como escreveu Baudelaire, são florestas e são de símbolos, houve poetas-fonte, mesmo porque nada consta nos livros de tradução de Her-
muito caminho, etimológico e não, até que os sentidos, simbólicos e simbo- berto Helder que não esteja em consonância com sua poética; de acordo
lizáveis, se tenham possibilitado. O tradutor é um “besouro”, e a “tradução com João Barrento, a “relação determinante” do exercício tradutório de
de poesia”, a um tempo, inebriante (“transtornado”), saborosa (“doçura”) e Herberto “não é com o texto do outro, mas com o próprio” (BARRENTO,
conflituosa (“bater com a cabeça”). Mas o “mais difícil” da tarefa tradutora 2006, p. 228). Pratica Herberto, aliás, algo que não é considerado dese-
é “penetrar”, algo como a “fusão” descrita por Wanderley como “impossí- jável no exercício da tradução, como traduzir poemas, diz em primeira
vel”, “através dos cálices” da língua estrangeira “até à raiz”, até a compreen- pessoa o autor em Oulof, “que me foram acessíveis em línguas que fre-
são e a tradução, que se faz desde “dentro dentro dentro”, desde os sentidos quento” (1997c, p. 77), o que certamente é o caso do poema de Herbert,
fortes, determinantes, do texto original. As mudanças para português de escrito originalmente em polonês. O próprio Herberto Helder assume-se
poemas estrangeiros feitas por Herberto Helder querem, como qualquer um desconhecedor de muitas línguas na apresentação de O bebedor noc-
tradução ousada, “mostrar” “a cabeça/ coberta” do “ouro” do outro poema, turno, texto que reaparece em Photomaton & Vox com o título, justamente,
agora novo e, portanto, polenizado. de “(o bebedor nocturno)”:
Por essas e por outras, todo tradutor é um leitor, ele próprio em estado Quanto a mim, não sei línguas. Trata-se da minha vantagem. Permite-me
de mudança, alteração, afetação, em virtude do texto que ele põe em novo verter poesia do Antigo Egipto, desconhecendo o idioma, para o português.
movimento – a leitura é já o primeiro movimento a que o texto obriga. Pego no Cântico dos Cânticos, em inglês ou francês, como se fosse um poema
O leitor é quem se situa no imenso espaço simbólico, e simbolicamente em inglês ou francês, e, ousando, ouso não só um poema em português como
também, e sobretudo, um poema meu. (HELDER, 1995, p. 71, 72)
natural, desenhado por Baudelaire na primeira estrofe de “Correspon-
dances”, que faz sentido citar na íntegra: “La nature est un temple où de Camões, disse Herberto em (auto)entrevista, basta “para o tempo
vivants piliers/ Laissent parfois sortir de confuses paroles;/ L’homme y inteiro em palavra portuguesa” (HELDER, 2001, p. 195): “Transforma-se” o
passe à travers des forêts de symboles/ Qui l’observent avec des regards poema original num poema mudado, pois “Mudam-se os tempos, mudam-
familiers” (BAUDELAIRE, 1985, p. 114). Uma imagem irresistível que se ofe- se as vontades” (CAMÕES, 2005, p. 162), “mudam-se” as palavras e as línguas
rece a este texto, em virtude de seu assunto e estratégia, é supor cada uma e muda o autor, já que o “poema” agora é “meu”: toda a tradução é com-
dessas “forêts” relativa a um idioma. O tradutor, leitor de caráter especial, posta de mudança, e talvez não venha ao caso nenhuma ideia de traição
vai além da leitura, e mistura-se com o autor traduzido, estranhando “des nesse deslocamento, já que não vem ao caso a impossível fidelidade. Ou
regards familiers” e forjando novos. se pode pensar, sim, em traição, caso a etimologia da palavra, que indica
Uma das particularidades das traduções herbertianas é o fato de o tra- movência de algo para outra ordem, seja posta em cena. “Trata-se da minha
dutor, ou mudador, assinar todos os livros, misturando autores vários em vantagem” muitas vezes deparar com a transposição já a meio do caminho,
cada um. Nesse caso, o leitor que antecede o tradutor reúne suas leituras e e entrar no transporte para movê-lo, diz Herberto, rumo à direção da lín-
as localiza em livros de caráter verdadeiramente antológico. Ressalto que a gua portuguesa, a camoniana.
ideia de antologia não é estranha a Herberto Helder, que editou, em 1985, Assim, o que importa não é a primazia da língua do texto-fonte, mas
Edoi Lelia Doura, polêmica reunião de autores diversos da literatura portu- a fusão dos sentidos caros ao autor/ tradutor com os sentidos do poema
guesa moderna e contemporânea. A seleção feita para as traduções é uma original, permissor do novo poema, ao mesmo tempo autônomo (“sobre-
maneira muito pessoal de Herberto passear pelas “forêts”, colhendo, tal o tudo um poema meu”) e atento ao original, pois “não há infidelidade. É
besouro, plantas para serem postas em partilha. que procuro construir o poema português pelo sentido emocional, mental,

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linguístico que eu tinha, sub-repticiamente, ao lê-lo em inglês, francês, ita- Os poemas que trazem culturas preservadas das colonizações euro-
liano ou espanhol” (HELDER, 1995, p. 72), diz o autor do recentíssimo Servi- peias estão presentes não apenas nos Poemas ameríndios, mas também em
dões. Além disso, há na prática tradutória herbertiana dois vieses, “aquele a todos os outros volumes de “poemas mudados para português” por Her-
que poderíamos chamar de ‘poemas cultos’, integrados na tradição poética berto (exceção feita a Doze nós numa corda). Além de serem uma aproxi-
do Ocidente (...), e os outros, que se inserem no âmbito do que Herberto mação com um mundo ainda aberto ao mágico e mais distante da razão
designaria talvez como ‘magias’ ”, de acordo com Gastão Cruz (1998, p. 110). lógica imediatista de certa cultura ocidental prevalente, alguns destes poe-
Nesses últimos, encontram-se os poemas oriundos de culturas ancestrais; mas têm um fundo, em certa medida, moral. É óbvio que esta moral não
Maria Lúcia Dal Farra (1986, p. 45) afirma que estes poemas “descortinam é a das religiões ocidentais predominantes, que se opõem à magia, como
um mundo ancestral e primitivo, livre de contaminações ideológicas” e bem revela uma afirmação de Antônio Flavio Pierucci: “o sagrado reli-
“conservam as relações iniciais do homem com a natureza”. gioso, cá entre nós, ocidentais, tem fortes pendores para a moralização da
Referi Edoi Lelia Doura e acabo de referir um universo ambicioso de conduta cotidiana” (PIERUCCI, 2001, p. 101). A moral dos poemas herber-
ancestralidade. Referi também o mais recente título de Herberto, Servi- tizados, pelo contrário, refere-se a um tipo de ética de existência que tem
dões, cujo texto de abertura inclui como um fragmento seu o prefácio da na natureza uma interlocução constante. Desta relação plena de anima, e
antologia sui generis. Ali, o poeta diz que feita simbólica, com a realidade natural, se pode perceber a fugacidade do
podia contar gemeamente duas histórias: uma afro-carnívora, simbólica, a
fenômeno da vida, como revela um dos poemas ameríndios:
outra silenciosa, subtil, japonesa. De cada uma delas acabariam por decorrer Até o jade se parte,
um tom e um tema. A história carnívora foi colhida algures, de leitura, e até o ouro se dobra,
respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo das grandes até a plumagem de quetzal se despedaça...
árvores. (HELDER, 2013, p. 13) Não se vive para sempre na terra!
Duramos apenas um instante!
Um dos aspectos que emociona o poeta na história afro-carnívora é (HELDER, 1997d, p. 37)
o “empenho tribalmente mágico” (HELDER, 2013, p. 13), algo que escapa à
imobilidade. Trazer essa história para seu tempo e para seu texto (Herberto Talvez como “magias”, diz Gastão Cruz, possa-se designar a vertente
a colheu “algures, de leitura”) é pô-la em deslocação, inquietá-la, e, conse- desses poemas mudados para português, pois Herberto, de acordo com
quentemente, impor uma revisão da própria ideia de “relações iniciais do João Barrento, “trabalha (...) fora de cânones e códigos correntes (...), pró-
homem com a natureza”. Digo isso porque, não obstante a evidente atenção ximo (...) das tradições esquecidas que traz para o espaço do português”
a “um mundo ancestral e primitivo”, a relação agora não se dá imediata- (BARRENTO, 2006, p. 232). Mas considero interessante notar que, em dois
mente com a natureza, pois existe a extrema presença do que Baudelaire dos livros de “poemas mudados para português”, as duas vertentes assi-
chamou de “symboles”, e também a da leitura feita escritura. A palavra naladas por Gastão Cruz se encontram: tanto As magias como Oulof con-
baudelairiana ocorre também em seu colega português: “E apanho aqui templam “poemas cultos”, canônicos, e “magias”, “tradições esquecidas”.
o símbolo” (HELDER, 2013, p. 13). Se é na fusão de sentidos entre textos e Um dos mais fascinantes gestos do tradutor é unir as duas categorias e, em
poéticas que a tradução faz sentido, é na fusão entre primitivismo e leitura grande medida, partir de suas diferenças para estabelecer entre elas dicção
contemporânea que se constroem símbolos muito vivos. Portanto, não há afim, afinada, como acontece no final de As magias, cujos três últimos poe-
exatamente “contaminações ideológicas” na seleção do que seleciona, mas mas têm tema semelhante. São eles: “Canto em honra dos ferreiros”, sem
não deixa de haver alguma ideologia em causa, posto que Herberto Hel- autor, originário da Mongólia; “Os ferreiros”, de Marie L. de Welch; e “As
der só olha para onde olha por uma escolha não desprovida de orientação coisas feitas em ferro”, de D.H. Lawrence.
política – infelizmente, não mergulharei, aqui, nesse aspecto, inclusive por É claro que, em comum nos três poemas, há o ferro e o trabalho sobre
limitações estruturais. o ferro, tratado de três modos distintos: “É a magia da forja”, dirá o mongol

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(HELDER, 1996, p. 510); “(...) o ferro árduo e frio/ (...) não é carne nem san- além ou aquém dos significados, um canto que se investe de ambições
gue”, dirá Welch (1996, p. 511); e “As coisas feitas em aço e trabalhadas em mágicas – não acho significados, mas intuo um ritmo, uma música.
ferro/ nascem mortas”, dirá Lawrence (1996, p. 512). Originalmente, os três Estando os poemas mudados em livros novos, que mescla origens e
poemas não têm, necessariamente, nada em comum, mas agora, postos em autores, questiono: faz sentido a separação feita parágrafos acima? Uma
sequência dentro de um livro, passam a ser consonantes, e as duas verten- das conquistas de livros tradutórios, ou mudadores, de Herberto Helder
tes apontadas por Gastão se imbricam. Portanto, a própria organização de pode ser justamente reunir obras díspares na aparência, mas capazes de
As magias é uma prática tradutória, pois, originalmente, traduzir diz de ocupar páginas consecutivas. Esse encontro, que acaba por encerrar um
conduzir duma parte a outra, transpor, assumindo a mudança. Faz sentido encontro também com a ideia herbertiana de poesia, já é proposto pelo
o mesmo Gastão Cruz (além de poeta, tradutor) questionar – e suspei- texto que citei de Servidões mas que, originalmente, é prefacial a Edoi Lelia
tar duma resposta à sua própria questão – ?: “Mudar poemas para portu- Doura: a ancestralidade, na antologia, antecipa poetas modernos, como
guês será, ou não, afinal, a mesma coisa que traduzir? Ou verter? Talvez a Pessoa, e coetâneos a Herberto, como Luiza Neto Jorge. Constrói-se, pela
expressão usada não seja muito importante” (CRUZ, 1998, p. 109), pois o mão do poeta que traduz, ou muda, e antologiza, uma convivência cheia de
caso herbertiano se trata, efetivamente, duma condução, não apenas “para mudança, nova pela sintaxe.
português”, mas para sentidos novos surgidos do encontro de poemas dife- Após o poema de apresentação de Doze nós numa corda, original-
rentes que passam a fazer parte de um conjunto comum. Isso, porém, não mente de Zbigniew Herbert, a sintaxe recebe mais sentidos, mais poetas,
cria outra dimensão de mudança? Se Gastão aponta para uma semelhança, todos lidando com o mesmo material e mudando-o: o(s) poema(s) é/ são
e com toda a razão, não deixa de haver aí também uma diferença. “Israfel”, e os poetas, Edgar Poe, Stéphane Mallarmé, Antonin Artaud, com
Os citados conjuntos comuns, assinalo uma obviedade, serão livros de seus textos originais publicados, e, claro, Herberto Helder. Antes de mais,
Herberto Helder, ou, ao menos, por ele assinalados. Não obstante, em As digo que “Israfel” é um exemplo notável da prática tradutória, ou modi-
magias há um poema que dificilmente poderia ser forjado por Herberto, ficatória, herbertiana. O que importa aqui é o tema, o anjo, e se os poe-
mas que é colhido com grande coerência por ele: mas originais são expostos, todos passam a fazer parte, quando mudados
para português, de um único conjunto. Não é feita, pois, uma canônica
Djá i dju nibá u
i dju nibá i dju nibá u tradução, mas sim uma filiação de Herberto Helder à mesma genealogia
djá i dju nibá i ná ê nê ná daqueles que trouxeram a figura de Israfel de sua origem, o Corão, e retra-
i djá i naí ni ná balharam-na. Neste caso, todos são modificadores de um único original.
i dju nibá u Além de comparecer como autor, comparece Mallarmé como proponente
i dju nibá i dju nibá u
do livro inacabado que é toda a literatura. Em Do mundo, livro de poemas
djá i dju nibá i djá ê nê ná
(HELDER, 1996, p. 490) herbertiano editado pela primeira vez em 1994, há uma referência, precisa-
mente, a poemas sem autor:
Origina-se dos índios Comanches estadunidenses o texto, e não sei
Este que chegou ao poema pelo mais alto que os poemas têm
como os significados ali se configuram. No entanto, suponho ler os versos
chegou ao sítio de acabar com o mundo: não o quero
em minha língua, pois quero partir da premissa de que esse é um poema para o enlevo, o erro, disse,
“mudado” para português por Herberto Helder. Quero-me, pois, diante de quero-o para a estrela planária que há nalguns sítios de alguns poemas
um poema em português, sem me esquecer, claro, da origem indígena do abruptos, sem autoria.
texto. Se estou diante dum poema em português, e se me vejo na situação (HELDER, 2009, p. 518)
de não conseguir convencionalmente lê-lo, permito-me enxergá-lo como,

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O “sítio de acabar com o mundo” é o poema, e chegou-se ao poema referências bibliográficas
por outros poemas: está feita uma ressignificação. Os “poemas/ abruptos”
BARRENTO, João. “Fulgor e ritmo: tradução e escrita em Maria Gabriela Llansol e
que podem fundar a “estrela” (com todo o brilho e toda a luz que a “estrela” Herberto Helder.” Terceira margem – Revista do Programa de Pós-Graduação
tem) “plenária” (com toda a irmandade poética e toda a plenitude) não em Ciência da Literatura. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
têm autor. A razão disso não é, ao menos não peremptoriamente, a série Janeiro, n. 15, 2006. p. 227-238.
de teses críticas acerca da morte do autor, levantadas por muitos pensado- BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal (edição bilíngue). Tradução, introdução e
res há décadas. A não autoralidade dos poemas, ou seja, seu anonimato, notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
remete à obscuridade manifestada por Herberto Helder em seu conto BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. Organização de Calin-Andrei Mihailescu.

“Poeta obscuro”: Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CAMÕES, Luis de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa
Acerca da frase – “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.” Pimpão. Coimbra: Almedina, 2005.
– julgo haver alguma coisa a explicar. Para já não sei onde a li, se a li, pois
CRUZ, Gastão. “Poemas tornados portugueses.” Relâmpago – Revista de poesia.
bem pode ser que ma tenham referido e uma frase referida, não lida, torna-
Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava/ Relógio d’água, n. 3, 1998. p. 109-110.
se menos de seu autor. Tracei-a a lápis na parede em frente da cama. Estava
sempre a vê-la. (HELDER, 1997a, p. 167) DAL FARRA, Maria Lúcia Dal. A Alquimia da linguagem – Leitura da cosmogonia
poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986.
Dialogando com a obscuridade do título do conto, o fato de “uma HELDER, Herberto. Doze nós numa corda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997b.
frase referida” tornar-se “menos de seu autor” aponta, junto com a igno- ______. Ofício cantante – poesia completa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
rância da autoria da heterodoxa oração que vai entre aspas no conto, para ______. Oulof. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997c.
a mesma não autoria que se vê no fragmento de Do mundo. A não autoria ______. Herberto Helder: entrevista. Inimigo rumor. Rio de Janeiro: 7Letras/
que o autor de Ofício cantante vê nos poemas pode também ser ilustrada Lisboa: Cotovia, n. 11, 2001. p. 190-197.
por Borges: ______. Os Passos em volta. 7. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997a.
______. Photomaton &Vox. 3. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.
Se um poema foi escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos
historiadores da literatura. Suponhamos, só para argumentar, que eu tenha ______. Poemas ameríndios. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997d.
escrito um belo verso; tomemos como uma hipótese de trabalho. Uma vez ______. Poesia toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
escrito, esse verso não me serve mais, porque, como já disse, esse verso me ______. Servidões. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.
veio do Espírito Santo, do subconsciente, ou talvez de algum outro escritor.
WANDERLEY, Jorge. “Tradução e traduzibilidade”. Range rede – Revista de literatura.
Muitas vezes descubro que estou apenas citando algo que li tempos atrás, e
isto se torna uma redescoberta. Melhor seria, talvez, que os poetas fossem Rio de Janeiro: Pós-Graduação e Departamento de Ciências da Literatura,
anônimos. (BORGES, 2000, p. 24) n.1, 1995. p. 7-15.

Não será um anonimato cheio de nomes em sintaxe que propõem os


livros de Herberto Helder que guardam “poemas mudados para portu-
guês”? Lá no começo do texto, escrevi que, para Herberto, toda a tradução
é composta de mudança, as dele, talvez, mais que as outras, mas as outras
também. Agora, posso dizer, depois de muita sintaxe, que isso se deve, não
a uma específica ou especial técnica de tradutor, mas à concepção dos livros
novos, à nova montagem, às novas recolhas. Em grande medida, todas são
antológicas. Em medida ainda maior, todas são propostas de mudanças
ainda mais novas.

70 71
A experiência, em poesia e em tradução:
partilha(s), lugar(es) comum(ns)
Marcelo Jacques de Moraes

Meu trabalho como pesquisador no domínio da literatura francesa, desde


meus anos de formação, sempre girou em torno de um objetivo geral, que
balizou todos os meus projetos anteriores: a investigação das relações entre
corpo, experiência e linguagem no âmbito da reflexão estética moderna e
contemporânea. Nos últimos anos, voltei-me, cada vez mais para a poesia,
mais especificamente para as relações entre a poesia francesa moderna e a
contemporânea, explorando particularmente sua dimensão autorreflexiva,
sua interrogação sobre seus próprios limites. Interessei-me à maneira pró-
pria de certos poetas de interrogar suas relações com outros poetas e artis-
tas e, consequentemente, suas relações com a poesia e com outras artes,
com sua própria contemporaneidade, de interrogar, portanto, a maneira
própria da poesia de pensar e expor o contemporâneo, e de problematizar
– e apagar – assim suas próprias fronteiras.
Essas perspectivas me permitiram repensar certas tensões e ambigui-
dades que atravessam o pensamento poético francês desde a modernidade
em torno dos limites mais ou menos embaçados entre a poesia e a filo-
sofia, entre a poesia e as outras artes, entre a poesia e outros domínios
do conhecimento. Foi nesse âmbito que pude confrontar autores moder-
nos por excelência (como Lautréamont, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé)
a outros que se aproximam mais de nossa contemporaneidade (como
Francis Ponge, Michel Deguy, Jean-Marie Gleize, Christophe Tarkos), ten-
tando por à prova a noção de “comunidade poética” (inspirado pela poé-

73
tica do “como-um” sugerida por Deguy, mas também, bem entendido, pela eu, a reflexão sobre a língua e a cultura francesa enquanto tais – sobre uma
noção teórica de “comunidade”, desenvolvida em torno do pensamento de identidade francesa da poesia francesa – jamais me atraiu de maneira par-
Georges Bataille, Maurice Blanchot e Jean-Luc Nancy). ticular. Talvez porque nunca tenha sido realmente central para os autores
Por outro lado, comecei também, nestes últimos anos, a desenvolver que me interessaram. É claro que o problema identitário esteve no cerne
uma pesquisa mais ou menos sistemática sobre a experiência da tradução, da questão poética nos séculos XVI-XVII, momento fundamental de afir-
inspirado especialmente, do ponto de vista teórico, em textos de autores mação e de consolidação da língua e da literatura francesa enquanto tais,
fundamentais no campo do pensamento da tradução literária, como Wal- enquanto francesas, mas em sentido bem diferente, quase oposto, eu diria,
ter Benjamin, Jacques Derrida, Haroldo de Campos, Antoine Berman. É ao que ela possa ter atualmente. O que sempre contou para mim foi a rela-
preciso dizer que, enquanto pesquisador e professor de literatura francesa ção da poesia com o contemporâneo, com o presente, com o comum, seus
no Brasil, para ler, estudar, escrever, preparar aulas e conferências, eu me rumores, seus modos específicos e próprios de fazer falar ou de deixar falar
vejo há quase trinta anos diante da obrigação quase cotidiana de tradu- a língua de sua época, e ao mesmo tempo resistir, por seu próprio movi-
zir, de confrontar traduções, de refletir sobre as traduções existentes, de mento, a essa língua e a essa época, a esses rumores, portanto.
comentá-las de maneira mais ou menos formal, mais ou menos direta. No entanto – e este é um dos aspectos fundamentais que venho inves-
Mas mais do que essa prática quotidiana da tradução, foi seu papel tigando ao longo desta pesquisa –, parece-me que, por um certo viés, a
cada vez mais inevitável em toda espécie de laço comunitário em nossa questão da identidade a si da língua e da literatura francesa voltou a se tor-
contemporaneidade – e na violência que tal laço põe em perspectiva – que nar problemática, muito especialmente nas últimas duas décadas. E isso,
me levou a me dedicar a interrogar a experiência do comum também a a meu ver, não é sem relação mais ou menos direta com a discussão já
partir da tradução. antiga sobre a sobrevivência ou a saída da poesia, de uma poesia que se
queira ou se recuse como tal, e que, em sua afirmação ou em sua recusa, se
*** identifique e se reconheça em torno de uma comunidade: comunidade de
É evidente que, ao manejar uma língua e uma cultura estrangeira, poetas, de escritores, de artistas, de semelhantes, de humanos, ou mesmo
diante de alunos estrangeiros, eu mesmo sendo um estrangeiro, é preciso “comunidade daqueles que não têm comunidade”, para evocar uma frase
todo o tempo contextualizar os problemas em torno desta palavra que célebre de Georges Bataille.
acaba se tornando uma espécie de traço distintivo identitário: o adjetivo Trata-se, pois, de recolocar em questão a possibilidade de pensar a
“francês”: língua francesa, história francesa, literatura francesa, poetas poesia como lugar comum de pensamento, justamente, no sentido forte da
franceses... É como estrangeiro que ensino, pesquiso e oriento, e por isso expressão “lugar comum”, no sentido deste lugar de partilha que é propria-
estou sempre operando uma série de vaivéns panorâmicos em torno da mente o lugar ou não lugar poético, lugar que separa e reúne ao mesmo
palavra “francês”, o que me permite de algum modo, atravessar essa dis- tempo a dimensão performativa da língua, que dispõe de algum modo ao
tância. No entanto, em minha relação com a França e com pesquisadores comum, e opacidade concreta da língua que recusa o comum. Lugar de
e poetas franceses, venho percebendo que a condição de estrangeiro me partilha em que a língua enfrenta os rumores do comum ao enfrentar-se
permite ser sensível a algo que se passa particularmente na poesia francesa a si mesma, lugar de realização e de fracasso, perda, da experiência em
contemporânea e que diz respeito justamente à tensão permanente entre o comum, da experiência da língua e da experiência do mundo. E que aventa
comum e o estrangeiro. assim a possibilidade de pensar uma comunidade poética que se constitui
Mas é preciso voltar um pouco atrás para contextualizar um pouco em torno da ideia da poesia como possibilidade de comunicar – não evi-
melhor o projeto. Se, de fato, o trabalho permanente de contextualização tarei a palavra –, de tornar comum a sensação de ser comum, de ser como
cultural-identitária é especialmente inevitável para um estrangeiro como -um outro, e assim, como-um homem, um homem comum. Experiência

74 75
a partir da qual, nos casos que me interessam particularmente, a poesia Línguas cujo rumor atravessa e fura a língua de cada um. É nesse quadro
francesa pode de algum modo tornar-se estrangeira a si mesma. em que hoje se dissolve qualquer hierarquia entre as línguas e as culturas e
Nesse sentido, venho tentando reconstituir o processo de reflexão e em que se desfaz qualquer ilusão de identidade estável, que a problemática
produção das vanguardas francesas a partir dos anos 1960, que se voltam da tradução se alia à questão do poético e me parece tornar-se central.
cada vez mais para uma experiência ao mesmo tempo orgânica e hetero- Pois, na prática, o que a tradução poética em particular nos permite
gênea – ou heterológica – de obra, implicando mais sistematicamente o experimentar de maneira exemplar é que a experiência da tradução jamais
agenciamento do corpo como suporte (na poesia sonora, na performance, é isenta de violência. Que há uma violência fundamental intrínseca à ope-
nas artes plásticas, no teatro etc.), no intuito de pensar o lugar que se cons- ração tradutória, mas não tanto em sua direção mais frequentemente evo-
trói para o poético no final do século XX e no inicio do XXI, e o modo cada, isto é, a violência do próprio sobre o estrangeiro, aquela que seria
como ele permite sempre, ao desnaturalizar o espaço de qualquer pertenci- deflagrada pelo trabalho da tradução de vocação etnocêntrica, a violência
mento linguístico e identitário, refletir sobre, ou remeter a uma experiência da língua tradutora sobre a língua traduzida. Trata-se, antes, da experiên-
comum do mundo, um lugar – uma língua, um corpo uma linguagem – cia da violência do estrangeiro sobre o próprio, da língua traduzida, da
comum. Parece-me que é a isso que podemos continuar a ou deixar de cha- língua do original, sobre o tradutor e sua língua, e que é, a meu ver, a que
mar de poético que cabe, de algum modo, fazer circular, ou experimentar deflagra propriamente a “pulsão tradutória” (BERMAN, 2002, p. 24) a que
esse saber – ou não saber. se refere Berman em seu já clássico ensaio A prova do estrangeiro, de 1984,
Ora essa experiência da língua, em um mundo em que os fenômenos ensaio em que discute a tradição alemã do pensamento sobre a tradução.
de interação, apropriação e expropriação das línguas e das formas culturais Aliás, creio que se pode dizer, no que tange a essa operação tradutória, que
se tornaram uma realidade profusa e incontestável é hoje quase em toda não há primeiramente o original, apreendido na autonomia significante de
parte uma experiência do cotidiano. Os meios reais e virtuais de contato sua língua, e depois a tradução, por meio da qual o tradutor transporia esse
e de contaminação linguística e cultural se multiplicam numa velocidade original para sua própria língua, ela também autônoma.
crescente, tornando cada vez mais insustentável, independentemente do A experiência da tradução é de saída uma relação já em movimento,
juízo que se possa fazer disso, a identificação de uma língua a uma nação, uma tensão já estabelecida com um original que, se exige, se deseja intrin-
de uma língua a uma cultura, de uma língua a si mesma. Toda noção eugê- secamente tradução, como ensinou Walter Benjamin,2 é justamente por
nica de língua, remetendo à ideia de uma língua pura, autônoma, mono- apresentar-se desde sempre já em tensão tradutória. Por isso, se a tradu-
linguística, monocultural, se encontra evidentemente em declínio, é cada ção é forma, se ela é Bildung, como queriam os românticos alemães, não é
vez menos sustentável. apenas no sentido de um “movimento em direção a uma forma que é uma
“É preciso ao menos duas línguas para saber que se fala uma”, como forma própria” (BERMAN, 2002, p. 80), como disse Berman, não é apenas
costuma dizer a filósofa Barbara Cassin (CASSIN, 2010). De fato, por meio nesse sentido, mas também no sentido freudiano de uma forma em for-
dessa exposição permanente a mais de uma língua, cujo sentido é no limite
mação (Freud chama de Symptombildung o que se costuma traduzir por
irredutível a cada uma das línguas em jogo, não se pode não ser sensível ao
“formação de sintoma”), em tensão consigo própria, de uma forma que
fato de que a língua é sempre e antes de tudo um lugar entre línguas, “uma
se apresenta intrinsecamente numa perspectiva conflitante, de uma forma
língua cheia de línguas”, para empregar uma expressão de Hélène Cixous.1
que não se consegue estabilizar.

1 Eis a passagem completa: “On devrait se souvenir d’abord que le français – comme toutes
les autres langues, bien sûr – est une langue pleine de langues, que chaque fois qu’on parle 2 Cf. BENJAMIN (2008), p.84. Uso aqui a tradução de João Barrento, eventualmente modificada
français on parle en même temps portugais, espagnol, arabe, bien sûr latin, enfin c’est une com base na tradução para o francês de Martine Broda, realizada a partir do seminário de
langue qui porte les traces et les restes de bien d’autres langues, donc chaque fois que je suis Antoine Berman sobre o texto de Benjamin, realizado em 1984-1985 e publicado em 2008 por
en français je le suis dans toutes les autres langues.” CIXOUS (2000), p.10. Isabelle Berman (BERMAN, 2008).

76 77
A relação entre as línguas se estabelece, assim, a partir da violência zação, desconstrução”, como diz Haroldo (CAMPOS, 2010, 234-235). Talvez
da língua estrangeira sobre a língua própria, produzindo uma experiência seja isso o que distingue a vocação antropofágica reivindicada pela lite-
vertiginosa de linguagem entre as duas línguas, suspendendo o fluxo con- ratura brasileira da perspectiva intertextual subjacente a toda experiência
tínuo de cada uma delas. Assim, da mesma maneira que o ato de hospita- literária: o fato de que a conquista do próprio reside na capacidade de reco-
lidade – ou de hostipitalidade3 – reivindicado por Derrida em sua reflexão nhecer sua própria alteridade constitutiva.
sobre o ato de acolhimento ao estrangeiro, o ato tradutório não é volun- Nesse sentido, uma das questões que me coloco é a seguinte: até que
tário, mas imposto por uma violação da soberania – aqui, a soberania da ponto não é justamente contra sua tradição literária demasiado altiva, fun-
língua e do sujeito que se fala nessa língua. Assim, não se trata apenas de dada na “defesa e ilustração” de uma língua que sempre se quis própria
acolher ou não o estrangeiro e sua língua, com maior ou menor boa von- e pura, esquecendo – ou recalcando – sua origem impura, o que faz jus-
tade. Trata-se de uma espécie de irrupção significante com que o sujeito- tamente com que ela tenda a inibir o trabalho da língua que se alimenta
tradutor tem que se haver à sua própria revelia. É por isso que a relação de incessantemente de restos, fragmentos de línguas mais ou menos estran-
hospitalidade é, como reivindica Derrida, incondicional (DERRIDA, 1997), geiras, a que ponto não é justamente contra a envergadura dessa tradição,
e não porque seja motivada por algum imperativo ético que teria levado que certas práticas, fundadas em uma experiência da linguagem que não
alguém a decidir que ela o fosse, que ela fosse incondicional, por alguma mascara sua impureza orgânica de fundo, se não é, portanto, contra essa
espécie de generosidade, de boa-vontade, de tolerância ou de altruísmo tradição que certas práticas emergem hoje com um vigor inaudito na poe-
que seriam intrínsecos a um tradutor empírico qualquer ou a uma certa sia francesa contemporânea. E que alguns poetas franceses hoje reivindi-
posição prévia relativa à tradução. cam com tanta insistência a saída da poesia.
Assim, o que está em jogo na experiência-limite da operação tradutó- Em compensação, não se deve esquecer, como afirma Suely Rolnik,
ria não é a incorporação de recursos e de valores de uma língua, de uma em um trabalho recente sobre o que ela chama de “antropofagia zumbi”, ou
cultura, pela outra, como queriam de certa forma os alemães nos séculos neoliberal, que caracterizaria a subjetividade contemporânea, que “cinco
XVIII e XIX. A relação vale não tanto como experiência da incorporação séculos de antropofagia no Brasil nos ensinam que [...] a hibridação, a fle-
ou da contaminação de diferenças, mas, sobretudo, como experiência da xibilidade, a liberdade de experimentação e de irreverência enquanto tais”
afirmação da sua irredutibilidade, da irredutibilidade dessas diferenças. resultam também frequentemente “na flexibilidade mais servil, cujo coro-
Fazendo com que a tradução seja necessariamente interminada e intermi- lário é a mais perversa instrumentalização do outro”, completamente desti-
nável. O que deve impedir de se cair na armadilha de um “nacionalismo tuída de “força crítica” (ROLNIK, 2011, p. 13, 41).
ontológico” (CASSIN, 2012, p. 94) qualquer, para evocar uma vez mais Bar- Assim, parece-me fundamental perseguir a maneira como a expe-
bara Cassin. Ao menos para aqueles que têm – e para quem sempre se riência do contemporâneo pode ser traduzida enquanto “força crítica”
impõe – mais de uma língua. tanto no domínio das práticas que se querem poéticas como no daquelas
É claro que, trabalhando entre o Brasil e a França, entre o francês e que se querem tradutórias. E a maneira como tais práticas podem even-
o português, o contraponto com a experiência brasileira está sempre à tualmente se cruzar e se potencializar reciprocamente, tanto num domí-
espreita. Contraponto que informa, e talvez deforme, meu olhar de estran- nio quanto no outro.
geiro sobre a poesia francesa. Todos sabemos que a “razão antropofágica”
– para evocar Haroldo de Campos – que está na base da formação e da referências bibliográficas
afirmação da cultura brasileira enquanto tal envolve sempre uma “função
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Quatro traduções para o português.
negativa”, “capaz tanto de apropriação, como de expropriação, desierarqui- Organização de Lúcia Castello Branco. Traduções de Fernando Camacho,
Karlheinz Barck e outros, Susana Kampff Lages e João Barrento. Belo
3 Cf. DERRIDA (1996) e DERRIDA (1997). Horizonte: Fale/UFMG, 2008.

78 79
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha român-
tica, 1984. (Tradução de Maria Emília Pereira Chanut). Bauru/São Paulo:
La traduction littéraire entre le religieux
EDUSC, 2002 [1984]. et le poétique. Le cas d’Esther.
______. L’Âge de la traduction. “La tâche du traducteur” de Walter Benjamin,
Inês Oseki-Dépré
un commentaire. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2008.
CAMPOS, Haroldo, Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 4a ed.,
2010 [1992].
CASSIN, Barbara. “Plus d’une langue. Appel pour une politique européenne de la
traduction”. In: http://www.dglflf.culture.gouv.fr/publications/References10_
Traduire.pdf
______. “Philosopher en langues”. In: KRISTEVA, Julia (org.). Des expériences inté-
rieures pour quelles modernités? Nantes: Éditions Cécile Defaut, 2012.
CIXOUS, Hélène. “La langue est le seul refuge”. Entrevista com Bernard Leclair. In:
La Quinzaine littéraire, nº 793, 1-15 octobre 2000.
DERRIDA, Jacques. Le monolinguisme de l’autre, ou la prothèse d’origine. Paris:
Galilée, 1996.
______. De l’hospitalité. Paris: Calmann-Lévy, 1997.
ROLNIK, Suely. Anthropophagie zombie. Paris: Blackjack ed., 2011.
préliminaires
Je reprends ici certains éléments que j’ai développés lors d’un travail anté-
rieur sur les rapports entre le religieux et le poétique via la traduction à
propos du Qohélet.1 En effet, dans les deux cas (et dans bien d’autres), deux
questions préalables se posent: la question de la re-traduction et la question
de la traduction du texte religieux.
Le choix d’Esther comme support de ma présente analyse n’est pas
anodin. Ainsi, de même que le Qohélet, qui est un texte de facture très
poétique, Esther, qui fait partie des Cinq Rouleaux, est un récit légendaire,
qui raconte une histoire «merveilleuse» et qui, comme le premier, a failli ne
pas être admis dans les livres de la Bible pour sa «non-religiosité», sa non
référence à Elohim.
Ce n’est donc pas par hasard si Jacques Roubaud (pour la version apo-
cryphe), Marie Borel (et Aldina da Silva pour les deux) et Henri Meschonnic,
poètes, aient choisi de traduire le même texte: les comparer avec la Bible
d’André Chouraqui et au regard de la Bible de Jérusalem constitue l’objet de
ma proposition qui essaye de saisir la visée des traducteurs.

1 Voir Inês Oseki-Dépré, De Walter Benjamin à nos jours, Paris, Honoré Champion, 2006, le
chapitre «Retraduction de la Bible : le Qohélet», p. 155-176.

80 81
pourquoi retraduire? poèmes) jusqu’à sa fixation au premier siècle après Jésus-Christ, dont on a
déjà parlé dans un travail antérieur.4
Selon Walter Benjamin tous les grands textes sont appelés à être re-traduits En tant que somme de textes préalablement choisis, la Bible commence
et ce pour deux raisons: la première est que le vrai traducteur, de ne pas à être écrite progressivement et on peut dater les débuts de sa fixation au
viser la communication (qu’il considère comme inessentielle), n’atteindra XIème siècle avant J.-C. époque où l’écriture est fixée depuis longtemps.
jamais le noyau (Kern) du texte, intraduisible, sans quoi il n’y en aurait Parallèlement à sa fixation, la traduction orale continue d’alimenter son
qu’une traduction pour chaque texte. Et même lorsqu’il s’approche de la corpus, un corpus varié, constitué de textes en provenance de différentes
visée du visé de l’original, il en restera toujours des zones d’intraduisibilité. tribus installées sur divers territoires.
Ces dernières, si elles sont immanentes à tout grand texte, dépendent Le matériau thématique est tout autant diversifié : récits, aventures
aussi en partie des changements survenus à la langue du texte et à la langue héroïques, souvenirs, descriptions de sanctuaires. La finalité de ces écrits
du traducteur. Les langues ne sont pas figées et ce qui du temps d’un auteur est, bien sûr, de donner des exemples et des règles de conduite, matérialisés
a pu être une tendance de sa langue d’écrivain peut plus tard disparaître de par des lois, des rites, des leçons morales et religieuses, le tout concourant
même que pour la langue du traducteur. à offrir la conception de Dieu, du monde et de l’homme.
Pour Antoine Berman, «la retraduction (est) l’espace de la traduction, Les textes qui se présentent sous des formes et genres variés sont
de son accomplissement» mais elle peut être aussi due à un désir de faire retranscrits respectueusement par les scribes à partir des XIIème et
autrement, en d’autres mots, de traduire «contre».2 XIème siècles avant J.-C..5 Leurs styles diffèrent tout autant, allant du style
Il est certain que, dans le cas de Bible, la tâche est infinie et que ce archaïque (Nombres) aux styles les plus élaborés. On attribue les premiers
grand texte ne sera jamais traduit «une fois pour toutes», avec ses traduc- textes (Alliance, le Décalogue ; Exode et Deutéronome) à Moïse, mais la
tions en toutes les langues (337 langues intégralement, 2000 partiellement) littérarité se fait remarquer à partir de la constitution des royaumes (David,
et au regard de ses différents publics. puis Salomon), donc au Xème siècle avant J.-C..
On s’attardera ici sur la comparaison des quatre versions contempo- Les écrits de type prophétiques sont datés entre le IXème et le VIIème
raines françaises d’Esther, texte de prose, dans le but d’en dégager l’intentio siècles et les écrits du Nord et du Sud seront rassemblés pendant le royaume
operis de la traduction. S’agit-il pour le traducteur de transmettre un texte d’Ezéchias (VIIème-VIème siècles avant J.-C.).
religieux ou poétique? S’agit-il de transformer un texte ancien en texte En ce qui concerne notre texte, on ne connaît pas la date exacte de
moderne, lisible, ou d’en garder une aura d’authenticité historique ? sa rédaction. Pour les spécialistes, en effet, après l’Exil, il devient difficile
Car, si pour le Qohélet, parole prophétique s’il en fut, la transcréation de suivre la formation du recueil biblique. On pense qu’il apparaît assez
poétique semble aller de soi, qu’en est-il pour un récit qui est lu lors de l’une tardivement. L’essentiel de la pensée juive, néanmoins, est représenté par
des cinq fêtes religieuses juives?3 la Torah ou la Loi, œuvre de juristes éditée vers le milieu du IVème siècle
(le Pentateuque en cinq livres : Genèse, Exode, Lévitique, Nombres, Deu-
téronome) bien que tous les textes aient connu de multiples remaniements
rédaction de la bible
au long de l’histoire de la constitution du livre et aient influencé les uns les
On passera rapidement sur la constitution du texte biblique dans son his- autres. Le genre sapientiel, source de textes remarquables, quoique tardif,
toricité: son élaboration progressive, son multilinguisme, son caractère perdurera longtemps (du IVème au Ier siècle).6
extrêmement hétérogène (somme de contes, légendes, hagiographies, lois,
4 Voir Inês Oseki-Dépré, De Walter Benjamin à nos jours, Paris, Honoré Champion, 2006.
5 André Paul, Encyclopaedia Universalis, «Les Livres de la Bible». Je reprends ici des
2 Antoine Berman, Les Tours de Babel, op. cit, p. 116. éléments collectés pour mon travail antérieur. (NOTE)
3 Le Cantique des Cantiques est lu à Pâques, Ruth à la Pentecôte, Lamentations le 9 AV (juillet/ 6 La Bible de tous les temps, Paris, Beauchesne, 1984-1989 ; André Paul, «De Bible à Bible, pour
août), Ecclésiastes à Soukout (juste après Kippour), Esther à Pourim (ancêtre du carnaval). une histoire biblique», in Le fait biblique, Paris, éd. du Cerf, 1979, p. 151-177 ; N.H. Snaith,

82 83
un traducteur, plusieurs traducteurs selon la Bible de Jérusalem, «récit, farce, épopée», selon Henri Meschon-
nic, il s’agit d’après les premiers d’un conte à caractère sapiential. En voici le
Si on résume ce qui vient d’être dit, force est donc d’admettre que le texte
résumé de la Bible de Jérusalem:
biblique est on ne peut plus multiple. Sa richesse vient de cette pluralité (épo-
cale, générique, auctoriale, culturelle, mélange d’écrit et d’oralité…) et des Assuérus (Xerxès) choisit Esther parmi les plus femmes de son empire et,
multiples remaniements qu’il a connus suivant les variations de la loi reli- ignorant son ascendance juive, la fait reine. Par son influence à la cour, Esther
déjoue les plans meurtriers qu’Aman avait dressés contre les Juifs de l’empire
gieuse et des mutations historiques entraînant des modifications formelles.7
perse. La joie et la vengeance des Juifs qui s’ensuivent donnent lieu à l’institu-
Ainsi, selon Henri Meschonnic, «l’un des traits les plus fondamentaux tion de la fête des – Purim9 (à l’origine une fête païenne, proche du Carnaval).
de l’opération de traduction des textes bibliques consiste en une attention
scrupuleuse à ‘l’original’ du double point de la langue et du texte source».8 La Bible de Jérusalem contient ce court récit précédé des suppléments
Cette opération constitue, selon cet auteur, «le paradigme initial de toute trouvés dans la Vulgate de Jérôme. Selon les sources, le texte est né entre
œuvre de traduction littéraire», dérivée elle-même du mode de lecture 300 et 150 av. J.-C. et les suppléments figuraient déjà dans la traduction
(lecture/exégèse) pratiqué dans le monde juif, lié aux mots, aux tournures, grecque faite par Lysimaque de Jérusalem (entre 114 et 48 av. J.-C.). La ver-
à l’étymologie, aux signes, aux sons. sion qui est arrivée jusqu’à nous est la dernière parmi les multiples versions
que le texte a connues. Il y aurait deux versions d’Esther, l’une «liturgique»
un traducteur ou plusieurs? et centrée sur Esther, l’autre «historique» qui présente Mardochée comme
héros. Ce second texte s’intéresse aux intrigues de la cour et à la persécu-
Il s’ensuit que le texte biblique ou les textes bibliques sont porteurs d’une
tion des Juifs à Suse.
haute teneur dialogique dont il faut tenir compte lors de sa (leur) traduc-
Le résumé d’André Chouraqui est un peu plus détaillé, qui inclut les
tion. Œuvre collective, sa prise en compte par un traducteur unique posera
préalables (la répudiation de la reine Vashti, qui désobéit au roi, les liens
le problème de l’adaptation de ce dernier à la multiplicité d’écritures de
d’Esther et de Mardochée (Mordekhaï), son cousin ; le complot dirigé contre
l’original (comme c’est le cas de la traduction Chouraqui) outre celui d’une
le roi ; la jalousie du ministre Hamân qui tente de faire tuer les Iehoudim –
connaissance linguistique et culturelle (religieuse) encyclopédique (en
les Juifs –; l’intervention d’Estèr qui dénonce Hamân, sauve son peuple et
synchronie et en diachronie). On pourra nous objecter que toute grande
permet à Mardochée-Mardokhaï de prendre la place de Hamân auprès du
œuvre étant dialogique (chez Joyce, chez Proust, etc.), la traduction de la
Bible n’est qu’amplification de la tâche. roi et enfin la vengeance des Juifs.10)
Pour Henri Meschonnic, il s’agit d’une «création» où les personnages
Esther sont des «figures». «Dans une Perse de comédie, c’est la présence de la dis-
persion, comme une modernité à cette histoire». Plus loin: histoire seule-
Esther est le dernier texte des Cinq Rouleaux qui vont du VIe siècle av. J.-C.
ment humaine: Dieu n’est pas nommé une fois «et la morale d’Esther «est
jusqu’au IIe siècle, pendant l’époque hasmonéenne. «Conte populaire»
d’autant plus forte qu’elle est innommée: elle est dans la joie, sa force est
«Bible», Encyclopaedia judaica, vol. IV, col. 816-841.–— l’imaginaire». L’auteur pointe, en effet, la symbolique du nombre (les pro-
7 Cette caractéristique a comme conséquence que le texte biblique se prête non seulement à la vinces, la durée de la fête; les douze mois nécessaires à l’embellissement de
re-traduction, mais aussi à l’étude des problèmes posés par sa traduction, ce qui fait que pour la reine … «où tout se fait avec une aise onirique».11
Eugene Nida, directeur du Centre Américain de la Traduction de la Bible, les (re)traductions
de la Bible permettent à la fois d’analyser les facteurs en jeu dans le processus traductif et
de combler plusieurs demandes et exigences d’une traduction «target oriented» – dans la 9 La Bible de Jérusalem, Paris, Editions du Cerf, 1986, p. 440. On y trouve aussi des ajouts en
mesure où, pour ce critique, la Bible est un texte pour tous. provenance de la Septante, que l’Eglise reconnaît comme inspirés, mais que St Jérôme avait
rejetés en appendice de la Vulgate.
8 Voir «La lettre et le souffle», Sylvère Guiriec, Labyrinthe, Revue de recherche et d’expérimen-
tation dans le domaine des savoirs littéraires, philosophiques, historiques et sociaux, Thèmes 10 Voir Esther, Bible de Jérusalem, …, p. 441. La BB ne fournit pas de résumé.
n°9, 31-34. 11 Henri Meschonnic, Les Cinq rouleaux, Paris, Gallimard, 1986 (première édition 1970), p. 188.

84 85
Pour le critique Jack M. Sasson, l’un des collaborateurs du The Literary blable, merveilleuse en somme, aucune traduction ne laisse transparaître
Guide to the Bible,12 le texte a, à la fois, un caractère didactique (puisqu’il cette drôlerie. Ainsi, à l’instar du Qohélet, les traducteurs ont tendance à
renseigne le public sur l’histoire des Juifs) et littéraire, comparable à un traduire le texte sans ambiguïté.
conte des Mille et une nuits. En effet, le besoin d’une année pour se préparer De même, aucun commentaire ne vient-il à souligner l’extrême violence
à se présenter devant le roi chez Esther, l’attitude du roi – que l’auteur rap- du dénouement de l’histoire: lorsque le roi apprend qu’Haman veut faire éli-
proche des histoires de la période hellénique – cette exagération en fait une miner les Juifs (dont et par conséquent Mardokhaï, son rival) et qu’après le
sorte de conte. Sasson fait remarquer également le peu de dialogues contenu discours d’Esther, il autorise les Juifs à tuer tous leurs ennemis, il en résulte
dans le récit, en bien moindre nombre que dans les autres narrations du 75 000 morts, une fois pendus les enfants de Mardokhaï déjà assassinés. En
Livre, le petit nombre de caractères individuels (concentrés sur Mordekhaï, fait, cette violence, qui pourrait être compensée par une traduction drôla-
Esther et Haman), des invraisemblances comme la méconnaissance chez tique, est «sublimée» en quelque sorte dans nos quatre traductions.
Haman du lien de parenté entre Esther et son cousin Mordekhaï, ignorés
de Haman. Ahasuerus est caricatural en tant que roi. Haman, plus com- confrontations
plexe, incarne, aux yeux de Sasson, «a Persian Shylock».13
Quant à Esther, elle entre dans l’histoire dans un contexte favorable. La seule comparaison des noms propres donne une indication de la façon
Juive orpheline, belle, charmante, docile, elle devient reine encouragée par dont on a voulu traduire le texte.
son entourage. De même, c’est lorsque son cousin est sûr de l’affection que Ainsi, la Bible Bayard (Marie Borel et Aldina da Silva – Jacques Rou-
le roi nourrit pour elle, qu’il lui demande d’intervenir en faveur des Juifs. baud (en plus des deux traductrices citées pour la version apocryphe) tra-
Cela étant, elle manifeste des sentiments et des attitudes différentes, duit les noms des personnages de façon simplifiée. Le roi est Xerxès, le
n’étant pas un personnage figé. Elle peut montrer de l’inquiétude pour le mauvais ministre, Hamân, le Juif Mardochée, la première femme du roi
sort de Mordekhaï ou un sens de la responsabilité, lorsqu’elle se charge Washti, Esther est Esther.
du destin de son peuple. Elle peut être coquette et mystérieuse mais aussi La Bible de Jérusalem appelle les personnages : Assuérus (le roi), Aman
«politique» et va même jusqu’à être très éloquente lors du second banquet (le mauvais ministre), Mardochée (le Juif), Vashti (la première femme) et
où elle mélange des tons de supplication, de flatterie et d’ironie. Esther, Esther.
Mordekhaï apparaît, quant à lui de façon fragmentée «like a theme in Pour Henri Meschonnic, le roi est Assuérus, les ministres Haman et
a Sibelius symphony» (p. 338); tantôt courtisan, tantôt farouchement Juif Mardochée, les deux femmes Vachti et Esther.
alors que dans la version grecque, il apparaît comme un personnage distant Pour André Chouraqui, enfin, les noms restent hébraïsés, Assuérus ou
et plus conscient à la fois. Xerxès devient Ahashvérosh (avec un _ sous le deuxième a); les ministres
Ce qui paraît très frappant, néanmoins, lors de la lecture des diffé- Hamân et Mordekhaï, les femmes Vashti et Èstér.
rentes versions, c’est que, malgré la réaction des hébréophones qui voient À l’instar de l’onomastique, la présentation et séparation en chapitres
dans Esther14 une histoire amusante, pleine de rebondissements, invraisem- ou en sections s’avère très différente.
Ainsi, La BJ15 divise le texte en cinq parties précédés des préliminaires
12 Voir Jack M. Sasson, «Esther», The Literary Guide to the Bible, edited bu Robert Alter and
dont font partie «Songe de Mardochée» et «Complot contre le roi» issues de
Frank Kermode, Cambridge, Massachusetts, The Belknap Press of Harvard University Press, la version grecque et reconnues par l’Eglise. La section 1 s’appelle «Assué-
p. 335 et suivantes.
rus et Vashti» (à l’instar de la version Chouraqui) et comprend deux sous
13 Les variations dans la graphie des noms propres correspondent aux différences dans les sour-
ces empruntées. parties non numérotées: ‘Festin d’Assuérus’ et ‘L’affaire Vashti’; la section 2,
14 Les personnages ont vraiment existé et la tombe d’Esther se trouve à Hamedan, dans l’ouest
de l’Iran, à côté de celle de Mordekhaï-Mardochée, devenue lieu de pèlerinage juif. 15 On désignera la Bible de Jérusalem par les initiales BJ, la Bible aux éditions Bayard par BB.

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«Mardochée et Esther» comprend deux sous parties: ‘Esther devient reine’ Pour les paratextes, seul Henri Meschonnic commente sa traduction (le
(qui couvre chez Chouraqui ‘Ester au harem’, ‘La reine Ester’ et ‘Le Com- texte à traduire, la traduction comme opération créatrice). On pourra rap-
plot’). La troisième partie s’appelle dans la BJ «Les Juifs menacés» et inclut peler la préface Bayard, qui n’est nommée que par l’éditeur ou la préface de
le ‘Décret d’extermination des Juifs’, ‘Mardochée et Esther vont conjurer le Chouraqui, présentée aussi par l’éditeur.
péril’ plus les deux prières: ‘Prière de Mardochée’, ‘Prière d’Esther’ suivies La position des traducteurs Bayard est très claire sur cette question.
de ‘Esther se présente au palais’. La BJ intègre ici des textes traduits du grec, Après avoir rappelé la diversité de la composition des livres de la Bible, son
ce qui rend cette partie bien plus longue qu’ailleurs (le texte du décret, les aspect polyphonique et multiple, la durée de son élaboration, le préfacier
deux Prières). Chez Chouraqui, à la troisième partie qui s’appelle «L’oppres- évoque l’importance structurelle de la traduction comme fixation de ses
seur des Iehoudim» correspond ‘L’oppresseur des Iehoudim’ qui appartient textes («survie») , dans les termes benjaminiens, avec les apports magis-
à la partie 2 de la BJ. En effet, pour ce dernier, la partie 4, qui s’intitule «Une traux des Septante (Bible grecque, à partir du IIIe siècle); de la Vulgate de
clameur amère» fait toujours de la partie 3 de la BJ ainsi que la partie 5, «Le St Jérôme au Ve siècle; de la première version française d’Olivétan en 1535
Sceptre d’or» qui correspond à ‘Esther se présente au palais’ dans la BJ. ou de celles de Luther (1534) ou la King James (1611), et tant d’autres. L’ob-
La partie 4 de la BJ s’intitule «Revanche des Juifs», numérotée 6 chez jectif de la nouvelle traduction est d’articuler les écrits bibliques (qui sont
Chouraqui sous le titre «Le vêtement royal». Dans BJ, cette partie inclut la source de la littérature occidentale) avec la littérature française contem-
‘Déconvenue d’Aman’, ‘Aman au banquet d’Esther’, qui correspond à la par- poraine. C’est dans ce sens, et donc, compte tenu de leur l’horizon d’attente
tie 7 chez Chouraqui, sous le nom «Quelle est ta demande ?», «La faveur que, pendant six années, 47 traducteurs différents (groupés par 2 ou 3, avec
royale passe aux Juifs», à la partie 8 chez Chouraqui sous le nom de «La un écrivain et un ou deux interprètes-exégètes) ont œuvré et nous pouvons
bague du roi». La BJ ajoute ici le texte du ‘Décret de réhabilitation grec’, rapprocher cette position de celle d’un Goethe qui assigne comme finalité
absent, il va de soi, chez Chouraqui. La dernière section de la BJ, «Le grand de la traduction le rajeunissement.
jour des Purim» correspond à la section 9 chez Chouraqui, qui s’intitule «La Le seul traducteur parmi ceux qui nous intéressent ici à revendiquer
vengeance». La partie 5 de la BJ est «La fête des Purim», toujours dans la par- une «traduction littérale» de la Bible se révèle être André Chouraqui, dont
tie 9 de Chouraqui. Les deux Bibles finissent sur «Eloge de Mardochée », BJ la présentation (par l’éditeur) la définit comme une traduction « avec les
et 10: «Mordekhaï est grand» chez Chouraqui. La version chrétienne inclut garanties de l’exactitude scientifique et de la fidélité spirituelle» qui, plus
encore les paroles de Mardochée en italiques, prélevées de la Bible grecque. est, est œuvre d’un hébréophone.
On peut faire ici deux remarques: les deux Bibles procèdent à des Henri Meschonnic, traducteur et traductologue, s’exprime à plusieurs
découpages thématiques selon une interprétation différente qui met l’ac- reprises sur la traduction des textes bibliques. Quant à la sienne, ce qui est
cent sur l’aspect thématique mis en valeur selon une herméneutique diffé- postulé, à l’intérieur de sa poétique du traduire (où « traduire c’est écrire»),
rente. Les intitulés des sous sections sont explicatifs dans la BJ, rappelant les c’est non pas un littéralisme-calque, mais le respect de la grammaire et de la
procédés chers aux auteurs du XVIIIe siècle dont les titres portent la diégèse prosodie originales compte tenu de l’horizon d’attente contemporain (l’évo-
et annoncent le contenu. lution de la langue-littérature française).
Chez Henri Meschonnic, les dix parties apparaissent précédées du Ainsi, la traduction d’Henri Meschonnic apparaît comme un long
chiffre romain et chaque partie contient des strophes ou versets numéro- poème et l’auteur respecte le programme qu’il s’est donné pour l’ensemble
tées avec des chiffres arabes. des Cinq rouleaux: le rapport entre traduire et écrire, le rapport entre tra-
La confrontation des traductions (extraits) n’a pas pour but de vérifier duire et la poétique de la traduction, la position décentrée du traducteur,
leur justesse ou les contresens, ce qui dépasserait l’objectif de cet article. le rapport de concordance entre original et traduction (la disposition sur
Il s’agit, comme je l’ai annoncé, de voir dans quelle mesure les procédés la page, la prosodie). La prosodie chez Meschonnic, en effet, comme l’a
employés sont pertinents par rapport au texte original et dans quel but. observé le poète brésilien Haroldo de Campos, traducteur brésilien du

88 89
Qohélet, se marque par le maintien des pauses que le traducteur reproduit La version d’André Chouraqui est tout autre. On l’avait déjà signalé
au moyen de l’espace blanc, unités de souffle, sans ponctuation, les blancs, dans notre étude sur le Qohélet, sa tendance à la littéralité, qui ne sont pas
en effet, servant à séparer les segments du texte (les accents), plus impor- sans rappeler les propos benjaminiens (ici, «hébraïser» le texte français).
tants pour les grands segments, plus petits pour les accents secondaires, Chouraqui privilégie étymologie comme les traducteurs littéralistes de la
la séparation des phrases se faisant par une pause sof pasuq et suivie de tradition religieuse (tel Aquila). Sa traduction sonne d’emblée «étrange»,
majuscule, la séparation des segments par ‘athnah. ce qui attire des critiques sévères de la part d’Henri Meschonnic qui l’ac-
Ce que vise Henri Meschonnic est donc de saisir «le mouvement du cuse de «calquer» l’original, manifestant ainsi de façon ostensive un effort
mot dans l’écriture» et sa traduction s’apparente ainsi au texte poétique, ce de retour à l’origine, «théologisante»,17 produisant «le mime d’un langage
qu’on peut voir dans l’incipit de sa version.16 mystique juif».
Un festin
I
I. Et c’est aux jours d’Ahashvérosh, lui, Ahashvérosh
Et ce fut du temps d’Assuérus
Le même Assuérus qui est roi Le régent de Hodou à Koush: cent-vingt-sept cités,
de l’Inde et jusqu’à l’Ethiopie sept II. En ces jours où le roi Ahashvérosh siège
et vingt et cent provinces Sur le trône de son royaume à Shoushân, la capitale,
II III. En l’an trois de son règne, il fait un festin pour tous ses chefs,
En ce temps là ses serviteurs, l’armée de Pars, de Madaï,
Comme siégeait le roi Assué- les gérontes et les chefs des cités en face de lui.18
rus sur son trône royal qui
était dans Suse la citadelle On peut faire deux remarques dont la première est déjà rappelée dans
la présentation des noms propres. Chouraqui, en effet, maintient les noms
III de ville ou de personnages de façon étymologique, créant un effet d’exo-
Dans la troisième année qu’il était roi tisme et de distance (spatio-temporelle) dans sa traduction. La deuxième
il fit un festin pour tous ses gouverneurs remarque concerne la syntaxe elliptique avec inversion de segments qui
et ses serviteurs rend la phrase énigmatique et obtient le même effet (exotisation, étrangeté)
L’armée de Perse et de Médie
les princes et les gouverneurs des provinces que l’usage des noms hébraïques. André Chouraqui ajoute des notes expli-
devant lui catives en bas de page; ainsi Ahashvérosh est désigné comme Assuérus ou
Xerxès Ier (486-465), de Hodou à Kouxh, de l’Inde à l’Ethiopie. Soushan est
La traduction d’Henri Meschonnic est manifestement littéraire et désignée comme Suse, les Paras son les Perses, les Madaï, les Mèdes.
poétique. Le découpage des mots ajoutés aux pauses crée d’emblée un effet La version Bayard prend le parti de traduire le texte comme un conte,
particulier auquel s’ajoute la proximité du même mot sur la page (Assué- sans séparations de chapitres ou de sections, de façon à ce qu’il puisse être
rus, Assuérus). Le texte apparaît comme largement paronomastique (rus/ lu d’une traite. On y trouve un vocabulaire assez simple, les noms propres
sur), avec assonances vocaliques (en /y/ /e/ nasale comme dans princes/ sont actualisés et tout le long du texte, qui présente des espaces blancs cor-
provinces) et consonantiques (/r/ /s/ comme dans Suse, serviteurs, Perse).
C’est le seul traducteur de notre corpus qui ne traduit pas Esther en prose. 17 « Le calque littéraire et linguistique, derrière son ostentation de retour à l’origine, théologise
le texte selon un vague synchrétisme judéo-chrétien qui se révèle dans son vocabulaire reli-
gieux, comme dans ses arguments», voir Henri Meschonnic, «Le calque dans la traduction»,
16 Henri Meschonnic, Les cinq rouleaux, Paris, Gallimard, p. 193. La traduction d’HM répond à Poésie sans réponse, op. cit., p. 249 .
cette forme de façon homogène sur tout le texte. 18 Esther, 1.1, La Bible, traduite et présentée par André Chouraqui, Desclée de Brouwer, 1989.

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respondants aux 10 sections, on trouve des parallélismes, comme dans les traducteurs de la Bible Bayard, dans la mesure où l’original est un récit, on
histoires ou les contes. traduit le texte en prose, comme un récit à raconter à voix haute, avec un
En voici l’incipit: vocabulaire juste et simple, dans un effort de le rajeunir.
En ce temps, Xerxès règne sur cent vingt-sept provinces de l’Inde à l’Ethiopie.
Il a pris place sur le trône royal de Suse-la-Citadelle. En l’an 3 de son règne, un texte littéraire? un texte religieux?
il convie à de grandes libations ses chefs et serviteurs, l’armée de Perse et de
Médie, les nobles et gouverneurs de ses provinces.19 De ce qui vient d’être dit, on peut constater que Chouraqui a la même
façon de procéder en traduisant le Qohélet ou Esther, ce qui homogénéise
La version apocryphe, traduite par le poète Jacques Roubaud, est très un ensemble assez hétérogène au départ tel que la Bible en y mettant sa
proche de la version de Marie Borel, en prose, En fait, elle commence par le marque et son style de traducteur: littéraliste, exotisant, étymologisant,
«Rêve de Mardochée», rapporté par la Bible de Jérusalem, traduit du grec: dans le but de conserver l’aspect énigmatique de l’original et une aura de
Deuxième année du règne d’Artaxerxès le Grand, premier jour de nisân, Mar- vérité éternelle. À son propos, on pourrait rappeler les paroles de Walter
dochée fils de Yaïr fils de Semeï fils de Kisaïos, de la tribu de Benjamin, rêve. Benjamin citant Pannwitz:
Juif de la cité de Suse, homme illustre, servant à la cour du roi, un des captifs
amenés de Jérusalem avec Héchonias roi de Juda par Nabuchodonosor roi de Surtout quand il traduit d’une langue très lointaine, il lui (au traducteur) faut
Babylone, il voit dans ce rêve cris et fracas, tonnerre et tremblement, désordre remonter aux derniers éléments de la langue même, où mot, image et ton ne
sur la terre. font qu’un; il doit élargir et approfondir sa langue grâche à la langue étran-
(…) gère, on n’imagine pas dans quelle mesure cela est possible…21
Cela s’était passé aux jours d’Artaxerxès. Depuis l’Inde Artaxerxès exerçait sa
domination sur cent vingt-sept provinces. Or, on peut penser que, quoiqu’une certaine religiosité (littéralité) pré-
Le jour où le roi Artaxerxès s’installe sur le trône dans la cité de Suse, en vale dans sa traduction, son effort tend tout de même vers une littérarisa-
la troisième année de son règne, il offre un festin à ses amis et aux autres tion du littéral. Sa traduction, contrairement à ce que préconise Eugene
peuples, aux Perses et Mèdes illustres, aux chefs des satrapes. (p. 1908)20
Nida, n’est pas une traduction «target oriented», faite dans un but didac-
Dans l’ensemble, la même intention de «rajeunir» le texte biblique, en tique ou prosélyte. Sa traduction exige le même effort de lecture qu’un texte
lui donnant des caractéristiques du conte, les différences tenant à l’original, littéraire de facture complexe.
le premier de la version hébraïque, le second de la version grecque. Ainsi, Meschonnic, en traduisant le Qohélet, on le rappelle, le fait en tant que
des parallélismes phrastiques parsèment le texte: «Cela plut au roi et aux poète, et pour cela il utilise les mêmes procédés que ceux qu’il emploie lui
chefs», l’usage du déictique est fréquent «ce qui fut fait», «cette parole plut même dans ses textes (où nous trouvons souvent l’article, le pronom ou la
au chef» et les formes du passé se déclinent sur le passé simple ou le plus préposition avant le «souffle»).22 Ici, malgré une certaine similitude avec
que parfait, la présence des dialogues est évidente. sa traduction du texte prophétique, il semble que les procédés poétiques
L’intention des traducteurs est donc différente dans les trois cas. Chez utilisés soient plus marqués, comme si, ce faisant, le traducteur s’employait
Meschonnic, l’intention est claire, de considérer le texte biblique comme à faire «chanter» le texte dans la joie et la fantaisie. La fonction poétique du
non religieux mais poétique. Chez Chouraqui, son intention est de créer texte est assez évidente (l’attention portée sur le message lui-même selon
une grande distance entre le texte et le lecteur, ce qui procure un effet Jakobson). L’examen d’autres exemples tend à confirmer cette impression:
d’éloignement, évocation des temps immémoriaux, mais éternels. Chez les
21 Walter Benjamin, «La tâche du traducteur». In: Mythe et violence, traduction M. de Gandillac.
19 La Bible /nouvelle traduction, Paris, Bayard, 2001, p.1684. Paris, Denoël, 1971, p. 34.
20 On peut noter, toutefois, que Roubaud utilise l’autre nom de Xerxès ou Assuérusqui, en per- 22 À propos de «Légendaire chaque jour», poème d’Henri Meschonnic, Gérard Dessons dit: «Le
san, se dit Kshajarsha. De même, il modifie l’expression «l’an 3» par «en la troisième année de blanc des fins de vers accentue les inaccentuées qu’une, je,comme, en une véritable gestuelle
son règne», qui est plus solennelle. de la parole.» (Dictionnaire de poésie de Baudelaire à nos jours, Paris, PUF, 2001).

92 93
IV Les deux traductions toutefois, se distinguent complètement, l’une
1. fluide, cursive, pour être comprise même des enfants, comme les contes,
Et Mardochée sut tout ce qui s’était fait et l’autre plus solennelle, avec des images (se revêt de poussière), des réité-
et Mardochée déchira ses vêtements
rations (il clame, une grande clameur amère) avec effet de rimes externes.
et il se vêtit d’un sac et de cendre
Et il sortit au milieu de la Pour conclure sur la question posée au début de cet exposé, je reviens
Ville et il cria un cri long à l’analyse de John Sasson. Celui-ci fait remarquer que la version grecque
Et amer est bien plus grave que la version hébraïque, riche de situations comiques:
2.
In the Hebrew rendering, however, the comic potential of the story is richly
Et il vint jusque devant la porte du
exploited, and laughter at human vanity, gall, and blindness becomes the vehicle
roi
by which the writer gives his tale integrity and moral vision.
Car on ne pouvait pas venir
par la porte du roi vêtu d’un sac
Ce ton, ajoute le critique, est du même mode que celui adopté par les
(p. 208)
récits helléniques (comme L’Âne d’Or, d’Apulée), par les fabliaux médiévaux,
Où les mots ont une place spécifique sur la page, à l’instar du Coup de par les Contes philosophiques de Voltaire (tels Candide, Zadig, Micromégas).
dés, de Stéphane Mallarmé, se lisant comme une partition musicale, avec La structure de l’histoire se construit à partir des banquets, les pre-
insistance sur la place et le nombre de conjonctions copulatives. On note miers et les derniers. Le critique fait remarquer l’importance des nombres
qu’il emploie le même procédé que pour le Qohélet, avec les mots atones dans chaque banquet:
en fin de ligne.
Douze mois s’écoulent avant que tour à tour les jeunes filles se rendent chez
La Bible Bayard propose pour le même passage:
le roi Xerxès. Elles ont passé le rituels de leurs apprêts, six mois de soins
Mardochée a appris ce qui se tramait. Il déchire ses vêtements. Il se couvre dans l’huile de myrrhé et six mois dans les aromates et les cosmétiques…
du sac et des cendres de deuil et se rend dans la ville. Il pousse de grands cris (p. 1686, BB)
amers. Il se rend jusqu’à la porte du roi. Personne ne passe la porte du roi
couvert d’un sac. (p. 1686) La partie centrale tourne autour de la rupture entre Mordekhaï et
Haman, à partir de laquelle le récit s’accélère. Sasson refuse, toutefois, l’idée
La traduction, au présent de l’indicatif, se veut vivante, visuelle, rapide. selon laquelle Esther soit bâti sur deux histoires et deux antagonismes,
Chez Chouraqui: l’une entre les deux femmes (Vashti et Esther), l’autre entre Mordekhaï et
IV. Une clameur amère Haman. Pour lui, il existe trois facteurs. En effet, il faut l’interférence d’un
1. Mordekhaï savait tout ce qui s’était fait. tiers, Harbona, pour que le roi se rappelle que Mordekhaï lui a sauvé la
Mordekhaï déchire ses habits, se revêt de sac et de poussière. vie. Cette scène, selon le critique, montre la potentialité comique de l’op-
Il sort dans la ville. Il clame, une grande clameur amère. position entre les deux points de vue, celle du roi et celle de Haman qui ne
2. Il vient jusqu’en face de la porte du roi, comprend rien de ce qui lui arrive au final.
Car il ne devait pas venir à la porte du roi en vêtement de sac. Au chapitre VI, selon le critique, on se retrouve devant un pique
comique, lorsque Haman est surpris sur le lit de la reine et accusé par le
On note dans les deux traductions, des ajouts dont la finalité est d’ex-
roi d’avoir tenté de la violer. L’intervention de Harbone à cet instant scelle
pliciter. La traduction de la BB ajoute «deuil» à l’accoutrement de Mar-
le destin du ministre:
dochée, sans quoi le lecteur pourrait rester interloqué par cette attitude.
Chouraqui fait précéder l’extrait d’un verset où il est question de l’omnis- Le roi revient du jardin du palais et rentre dans la maison du festin. Il trouve
cience de Mordekhaï. Hamân effondré sur le divan où se trouve Esther.

94 95
Ici à séduire la reine, en ma présence? _______. Textes (Shakespeare, Goethe, Dante, Meng-Hao-Ran, etc.) in Poétique du
Sur ordre du roi, le visage d’Hamân est voilé. traduire, Lagrasse, Verdier, 1999.
Harbona, l’un des eunuques présents, dit au roi: _______. Gloires (traduction des Psaumes), Paris, Desc1ée de Brouwer, 2001.
Il y a la potence préparée par Hamân pour Mardochée, lui dont la parole a
_______. Les Noms, Paris, Desc1ée de Brouwer, 2003.
sauvé le roi. Haute de cinquante coudées, elle est dans la maison d’Hamân.
Qu’il soit pendu, dit le roi. Oseki-Dépré, Inês. De Walter Benjamin à nos jours, Paris, Honoré Champion,
Ils pendent Hamân sur la potence préparée pour Mardochée. La fureur du roi 2006.
s’apaise. (p. 1691, BB) ROUBAUD, Jacques. Mono no aware : Le sentiment des choses (cent quarante trois
poèmes empruntés au japonais), Paris, Gallimard, 1970.
Bref, malgré une certaine violence contenue dans cette scène (et dans _______. Renga, (avec Octavio Paz, Charles Tomlinson, Edoardo Sanguineti),
d’autres), l’histoire finit bien pour les bons et mal pour les méchants, ce qui Paris, Gallimard, 1971.
ravit l’assistance du Purim. Mais le Schylock persan, s’il ne perd pas sa foi, _______. Vingt poèmes américains, avec Michel Deguy, Paris, Gallimard, 1980.
perd sa vie dans l’affaire. _______. Les Troubadours, Paris, Seghers (anthologie bilingue),1981
Si le comique des situations ne nous parvient pas par les traductions _______. Témoignage, de Charles Reznikoff, Paris, Hachette, P.O.L.,1981.
françaises, on peut retenir comme conclusion que les trois traductions main- _______. La Chasse au Snark, de Lewis Carroll, Paris, Slaktine-Garance, 1981.
tiennent une forte teneur littéraire. Ainsi, mis à part André Chouraqui, qui, _______. La reproduction des profils de Rosmarie Waldrop, Paris, La Tuilerie
tout en pratiquant une traduction plus «fidèle», plus marquée religieuse, Tropicale, 1991.
fait d’Esther un poème liturgique, les traductions d’Henri Meschonnic, de _______. Qohelet, Lévitique, Nombres, Joël, Esther, in Bible, Paris, Bayard 2000 (en
Jacques Roubaud, de Marie Borel et Aldina da Silva transfèrent le texte sur co-traduction).
le registre littéraire, poétique pour l’un, narratif pour les autres qui le place
sur le plan de la fiction.
Inês Oseki-Dépré / Aix-en-Provence, 2013

références bibliographiques
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Gandillac, Paris, Denoël, 1971.
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MESCHONNIC, Henri. Les Cinq rouleaux, Paris, Gallimard, 1970.
_______. Jona et le signifiant errant, Paris, Gallimard, 1981.

96 97
Etnografía multisituada de conceptos
en movimiento y semiosis decolonial.
La Europa del siglo XXI a la luz de la América colonial
Christiane Stallaert

A finales de marzo de 2013 un jurado popular en Gante (Flandes, Bélgica)


tuvo que pronunciarse sobre un caso de homicidio múltiple cometido por
un joven de 20 años. Cuatro años antes, el joven había irrumpido en una
guardería infantil donde, con un cuchillo de cocina, había asesinado bru-
talmente a dos bebés y una niñera además de sembrar el terror y dejar
a una docena de heridos. Durante el juicio oral en el que los psiquiatras
forenses se contradecían, el debate giró en torno al estado psíquico del
asesino. La falta de consenso en el diagnóstico psiquiátrico se vio agra-
vada por la imprecisión del concepto jurídico de ‘ontoerekeningsvatbaar’
(en español: ‘incapacidad de culpabilidad’ o ‘inimputabilidad’), que, de
acuerdo con el derecho penal belga significa que el reo ‘no es responsa-
ble de sus actos debido a una enfermedad o deficiencia mental’. Se intentó
buscar una respuesta mirando más allá de las fronteras nacionales, hacia
Holanda, el país vecino con el que Flandes comparte la misma lengua aun-
que no el ordenamiento jurídico. El asunto se complicó, ya que mientras
que el derecho belga sólo prevé una respuesta en blanco y negro (sí o no),
el derecho holandés define zonas ‘grises’ y reconoce hasta cinco grados de
inimputabilidad por enfermedad mental. Finalmente, ante la indecisión de
los expertos, le tocó al tribunal popular zanjar la cuestión y juzgar si el
autor del crimen era imputable o no.

99
A pesar de su aparente complejidad, el caso citado fue, no obstante, que cada una recibían un subsidio social del Estado como madres solte-
relativamente sencillo. El juicio se celebró en la región de Flandes, con un ras, el Ministro de Interior francés amenazó con quitarle la nacionalidad
tribunal flamenco compuesto de jueces flamencos, las víctimas y los testi- francesa por delito de ‘poligamia’. El imputado se defendió alegando que
gos eran todos flamencos, los expertos forenses eran flamencos así como el tenía cuatro ‘amantes’, una práctica no tipificada como delito bajo la ley
joven autor de los hechos. La situación ‘babélica’ generada por los exper- francesa.2 Recientemente, en abril de 2013, Francia aprobó en medio de
tos en torno al concepto de ‘inimputabilidad [por enfermedad mental]’ se protestas masivas la ley de matrimonio homosexual conocida como ‘ley
desarrolló estrictamente a nivel intralingüístico e intracultural, entre acto- del matrimonio para todos’ (‘Loi du marriage pour tous’). Aunque las pro-
res que compartían la misma lengua y cultura. testas procedían de sectores católicos conservadores, algunos periodistas
Aunque menos que en Flandes, el caso del asesinato múltiple también se preguntaban si en nombre de la ‘igualdad’ republicana habría que incluir
atrajo la atención de los medios francófonos del país. El tenor del debate también en el futuro la opción musulmana de la poligamia.3 Este debate en
era, sin embargo, diferente. Por un lado, en francés ‘irresponsable de ses Francia coincidía con las protestas en apoyo de Amina, joven tunecina que
actes’ --el equivalente jurídico de ‘ontoerekeningsvatbaar’-– no se asocia se había manifestado en Facebook contra la moral estricta impuesta en su
espontáneamente con un problema de salud mental mientras que, por otro país por los islamistas.4 El haberse retratado en torso desnudo le podía cos-
lado, el término neerlandés no evoca de forma directa la idea de exención tar la muerte por lapidación. De forma preventiva, la familia hizo ‘internar’
de responsabilidad. Dentro de un mismo ordenamiento jurídico definido a la joven.5 ¿Será que, de acuerdo con las normas islamistas (¿islámicas?),
en dos lenguas nacionales --el neerlandés y el francés-– un mismo con- Amina ‘no era responsable de sus actos por enfermedad mental’?
cepto da lugar a connotaciones distintas. De la misma índole es el debate hoy en día en Europa en torno al
Desplacémonos 50 kilómetros del lugar del juicio, hacia Bruselas, concepto de ‘acoso sexual’. Mientras que Bélgica tipificó este delito en 2002
zona de contacto entre las dos grandes comunidades lingüístico-cultura- (ley de 11 de junio de 2002), Francia, donde el ‘harcèlement (sexuel)’ había
les de Bélgica, la flamenca (de habla neerlandesa) y la valona/francófona sido introducido en el código penal en 1992, decidió abrogar la ley en mayo
(de habla francesa). En las últimas décadas, Bruselas ha evolucionado de de 2012 por falta de precisión en la definición de ‘los elementos constitu-
una ciudad oficialmente bilingüe aunque mayoritariamente francófona a tivos del delito’.6 La reforma en Francia coincidía con una visita oficial del
una ciudad caracterizada por la ‘superdiversidad’ (Vertovec 2007) donde gobierno belga en Marruecos, en abril de 2012, en cuya ocasión el primer
el multilingüismo se ha convertido en norma. Mientras que el francés se ministro marroquí se negó a estrecharle la mano a la ministra de Justicia
mantiene como lengua mayoritaria, el inglés ya sobrepasó el neerlandés belga y durante la visita no le dirigió ni la mirada ni la palabra. ¿Sería por
como segunda lengua. Hoy uno de cada diez habitantes de Bruselas no miedo a ser acusado de acoso sexual? Es lo que irónicamente se pregun-
habla ninguna de las tres lenguas mayoritarias (francés, inglés o neerlan- taban algunos periodistas belgas. La cuestión, sin embargo, no es baladí
dés) y se ha registrado un avance espectacular del árabe, lengua hablada si tenemos en cuenta el alto porcentaje de población de origen marro-
por casi un 20% de la población (el 10% en el año 2000).1
2 ‘Ik ben niet polygaam, ik heb maîtresses’, De Standaard, 26.04. 2010. URL: http://www.stan-
Tengamos en cuenta este último dato: el avance espectacular del árabe daard.be/artikel/detail.aspx?artikelid=LF2PFGF2
como primera, y en algunos casos, única lengua de los habitantes de Bru- 3 Mia Doornaert, ‘Waarom Frankrijk zo massaal tegen het homohuwelijk protesteert’, De
selas a inicios del siglo XXI, y reflexionemos sobre un caso ocurrido en Standaard, 04.04.2013, p.38-39. URL: http://www.standaard.be/artikel/detail.aspx?artikelid=
DMF20130403_00528602
Francia, con un argelino que había adquirido en 1999 la nacionalidad fran-
4 http://femen.org/en/news/id/294
cesa. Cuando en 2010 se descubrió que el hombre tenía cuatro mujeres, 5 De Standaard, 26.03.2013, p.18.
6 Le Conseil constitutionnel censure la loi sur le harcèlement sexuel, Le Monde, 04.05.2012,
1 BRIO-taalbarometer Brussel, 20.03.2013, http://www.briobrussel.be/ned/resource-detail. http://www.lemonde.fr/societe/article/2012/05/04/le-conseil-constitutionnel-censure-la-loi-
asp?ResourceId=632. Fecha de consulta: 10 de abril de 2013. sur-le-harcelement-sexuel_1695710_3224.html

100 101
quí o musulmana en Bruselas. Si Francia tuvo que abrogar la ley sobre el of social location. Indeed, the persuasiveness of the broader field that any
acoso sexual por falta de precisión terminológica, qué pensar entonces de such ethnography maps and constructs is in its capacity to make connections
through translations and tracings among distinctive discourses from site to
un escenario donde el consenso terminológico se ha de establecer entre
site (MARCUS, 1998, p. 84).
tradiciones culturales y religiosas muy diferentes, reunidas todas bajo una
misma ley. En un entorno multicultural, los conceptos se convierten en De acuerdo con la metodología propuesta por Marcus, estudiamos la
resbaladizos y de contornos inciertos. ¿Qué significa hoy en Bruselas --o trayectoria a través del tiempo y del espacio del concepto ibérico de ‘casti-
en cualquier metrópoli europea caracterizada por la superdiversidad resul- cismo’ (STALLAERT, 2011).7 Inicialmente, en el contexto ibérico medieval,
tado de flujos migratorios recientes-– el concepto de ‘emancipación’ o de ‘casta’ era sinónimo de ‘especie’ o ‘linaje’ y servía como concepto genérico
‘religión’? ¿Cómo entender el derecho a la libertad religiosa? ¿Incluye el para denominar las categorías etnorreligiosas que convivían en la Penín-
derecho a institucionalizar la posición subalterna de la mujer? Y el derecho sula Ibérica (STALLAERT, 1998, 2006). Gradualmente, la noción de ‘casta’
a la libertad de expresión, ¿incluye el derecho a criticar opciones religiosas adquirió la connotación de ‘pureza’, en el sentido genealógico o racial, es
contrarias a dicha libertad? Estas cuestiones de difícil solución, síntoma decir, de linaje no contaminado por sangre ajena. Con el proyecto impe-
de la incertidumbre que provoca la experiencia multicultural, ocupan el rialista, el ideal casticista se exportó a otros continentes, principalmente a
debate público en la Europa de inicios del siglo XXI. América, donde el concepto de ‘casta’ se emancipó de su contexto ibérico
Desde un punto de vista occidental, solemos ver ‘la globalización’ para adoptar nuevos significados más acordes al nuevo entorno. Mientras
como un fenómeno nuevo que, para estudiarlo, requiere una metodolo- que en la Península Ibérica ‘casta’ (y la calidad de ‘castizo’) se había conver-
gía nueva. Los antropólogos, conscientes del nuevo desafío que significa tido en prerrogativa de los cristianos étnicamente puros (cristianos viejos),
el mundo ‘globalizado’, desarrollaron nuevos conceptos y enfoques meto- en el continente americano al compás del imparable mestizaje de blancos,
dológicos. Dentro de este contexto, George E. Marcus recomienda aban- negros e indios, el concepto de casta dejó de referirse a la pureza étnica
donar la práctica etnográfica clásica del trabajo de campo enraizado en un para significar preferentemente la mezcla biológica (en plural, ‘las castas’).
solo lugar proponiendo un nuevo modelo de investigación más adecuado Si inicialmente designaba categorías sociales estancas y herméticas pasó
a un mundo de flujos y paisajes compuestos por realidades discontinuas. a significar el proceso dinámico e imparable de las hibridaciones. En su
En su modelo de ‘etnografía multisituada’, Marcus parte de la idea de que migración hacia el Nuevo Mundo cruzando el Atlántico, el concepto de
las lógicas culturales que el antropólogo espera descubrir son producidas ‘casta’ se transculturó por influencia de la nueva realidad humana emer-
en múltiples lugares y la estrategia para estudiarlas consistiría en ‘seguir gida de la sociedad colonial muy alejada de la realidad peninsular.
literalmente las conexiones, asociaciones y supuestas relaciones’ (Marcus George Marcus diseñó su metodología de la etnografía multisituada
1998:81). Esta técnica del trabajo de campo multisituado se inscribe en para el estudio de los nuevos ‘paisajes’ antropológicos surgidos a raíz de
el análisis de sistema-mundo descrito por Wallerstein implicando, según la globalización. El término de ‘paisaje’ (landscape, Marcus 1998) remite a
Marcus (1998:86), un enfoque interdisciplinario y la definición de nuevos la obra del antropólogo Arjun Appadurai (2008 [1996]) en cuya termino-
objetos de estudio. Lo interesante para el tema que nos ocupa aquí, es que logía el sufijo ‘-scape’ (‘ethnoscape’, ‘ideoscape’, etc.) da cuenta de realida-
el modelo de Marcus otorga un papel fundamental a la traducción. Com- des diaspóricas en un mundo globalizado donde las trayectorias seguidas
parado con la etnografía tradicional, en la etnografía multisituada, por personas, ideas o productos se vuelven cada vez menos isomorfas. El
[t]he function of translation (from one cultural idiom or language to
another) is enhanced since it is no longer practiced in the primary, dualistic 7 Otro ejemplo de la metodología de Marcus lo ofrece el libro coordinado por Carol Gluck y
‘them-us’ frame of conventional ethnography but requires considerably more Anna Lowenhaupt Tsing, Words in Motion: Toward a Global Lexicon (2009). En esta colec-
nuancing and shading as the practice of translation connects the several sites ción de ensayos, cada autor sigue un concepto en su periplo a través del tiempo y del espa-
cio. Entre los conceptos estudiados se encuentran ‘seguridad’ en Brasil, ‘responsabilidad’ en
that the research explores along unexpected and even dissonant fractures
Japón, ‘secularismo’ en Marruecos o ‘hijab’ en Francia.

102 103
movimiento diaspórico disyuntivo hace que los conceptos que confor- globalizada caracterizada por redes y flujos transfronterizos disyuntivos y,
man un ‘ideoscape’ se vayan incrustando en nuevos contextos muy diver- por otro, la sociedad ‘vertebrada’, vestigio del ideal de Estado-Nación. La
sos creando caleidoscopios terminológicos. Appadurai diferencia entre la terminología para caracterizar esta oposición procede de Appadurai, quien
‘genealogía’ de los conceptos, definida como su circulación geográfica, y la observa que ‘Modern nation-states recognize their common belonging to
‘historia’ de los mismos, definida como el proceso de su domesticación en the vertebrate world and, like the last dinosaurs, see that they are in a des-
una práctica local (APPADURAI, 2008, p. 17). Con respecto al ‘casticismo’, perate struggle for survival as a global formation’ (APPADURAI, 2006, p. 21).
establecer el vínculo entre historia y genealogía del concepto nos trans- De acuerdo con nuestro análisis, el casticismo, espina dorsal de la ‘España
porta, primero, del marco ibérico al colonial y, segundo, del colonial a otro vertebrada’, aparece como el dinosaurio que lucha desesperadamente por la
de-colonial, este último definido desde el punto de vista de la antigua colo- supervivencia bajo la presión de la nueva globalización. Según Appadurai
nia como ‘un diálogo con el pasado colonial y no simplemente el desman- (2006, p. 25), lo propio de la sociedad ‘vertebrada’ del Estado Nación es que
telamiento de los hábitos o modos de vida coloniales’ (APPADURAI, 2008, este sistema se apoya en un sistema semiótico de comunicación compuesto
p. 89). Reconstruir etnográficamente el ‘ideoscape’ -el paisaje diaspórico por un conjunto limitado de normas y signos mutuamente reconocidos
conceptual– del casticismo nos obliga a transitar a través de tiempo y espa- por los miembros.8
cio pasando no por uno sino por dos momentos de globalización. En cada Esta observación nos retrotrae al principio del presente texto contex-
una de estas globalizaciones el ‘ideoscape’ del casticismo se enriquece con tualizado en la creciente diversidad de lenguas y culturas con la que se
nuevos significados importados desde los contextos históricos y geográfi- ven confrontados los países europeos de hoy. En la mayoría de estos países
cos cambiantes. por efecto de la globalización el sistema semiótico compartido que garan-
Anteriormente hemos aludido a la migración del concepto de ‘casta’ tizaba la relativa estabilidad del sistema de sociedad ‘vertebrada’ conocida
durante la primera globalización a partir de 1492. Para España, la ‘segunda como ‘Estado Nación’ se está perturbando. Visto de esta manera, Europa se
globalización’ (comúnmente designada como ‘la’ globalización) irrumpe encuentra en un momento de transición, donde los paisajes conceptuales
con fuerza en la década de los 1990, coincidiendo con medidas nacionales (ideoscape) tradicionales están bajo tensión. Por analogía con el ejemplo del
de liberalización económica que trajeron consigo la privatización e inter- ‘casticismo’, que por efecto del colonialismo (o primera globalización) fue
nacionalización de empresas estatales y el boom en el sector de la construc- exportado a América donde se transculturó para luego regresar a España
ción, que provocó la reactivación del sistema migratorio transatlántico, en a finales del siglo XX, hoy Europa se ve confrontada con el ‘retorno’ de sus
dirección contraria esta vez al colonial. Los inmigrantes iberoamericanos propios conceptos e ideales. Junto con los inmigrantes africanos, latinoa-
llegaron a situarse a la cabeza de la población extranjera en España ascen- mericanos o asiáticos los conceptos históricos que acompañaron la génesis
diendo en la Comunidad de Madrid, al 46% del total de extranjeros (cifras del Estado-Nación europeo regresan transculturados a Europa, resemanti-
de 2008, STALLAERT, 2001). zados a lo largo del periplo migratorio. El gran desafío para la Europa ‘glo-
Si el ‘casticismo’ ha sido el concepto clave en la construcción de la balizada’ de hoy es cómo garantizar un marco semiótico suficientemente
identidad española (STALLAERT, 1998), resulta interesante examinar cómo estable y mutuamente reconocible y reconocido en medio de un paisaje
el ‘ideoscape’ – el paisaje conceptual – del casticismo se ha visto afectado humano cada vez más diverso e inestable. En otras palabras y aludiendo
por el nuevo contexto humano de la ‘neohispanoamericanización’ en suelo
peninsular. Hemos estudiado este tema a partir de un trabajo de campo en 8 ‘The systems of nation-states has relied from the start on a system of semiotic recognition
and communication, composed of such simple items as flags, stamps, and airlines and by
Madrid y Toledo y para los resultados remitimos al lector a nuestra publi- much more complex systems such as those of consulates, ambassadors, and other mutual
cación antes citada (STALLAERT, 2011). Me limito a destacar aquí que la forms of recognition. Such vertebrate systems, of which the system of nation-states may be
the largest and most extensive in scale, are not necessarily centralized or hierarchical. But
etnografía multisituada reveló en este caso la pugna o tensión entre dos they are fundamentally premised on a finite set of coordinated, regulative norms and signals’
modelos de sociedad, por un lado, la sociedad ‘celular’ propia de la era (APPADURAI, 2006, p. 25).

104 105
a los ejemplos antes citados, ¿cómo insertar, por ejemplo, una concepción es decir, fuera del territorio tribal o étnico. Aunque originalmente sin nin-
‘musulmana’ de ‘emancipación’, ‘libertad’, ‘igualdad’ en el ideoscape domés- guna connotación de mestizaje o mezcla racial/étnica, hoy en día ‘creoli-
tico europeo desde donde estos mismos conceptos fueron exportados zación’ evoca la idea de mestizaje, de producto del contacto e intercambio
hacia el mundo como parte de un proyecto político determinado? intenso entre culturas de distintas procedencias.
El precedente de la primera globalización puede servir aquí de referente En su Historia Natural y Moral de las Indias (1590), el jesuita José de
histórico para comprender la disyuntiva ante la cual se halla la Europa del Acosta ya era consciente de que el viaje de los conceptos europeos hacia el
siglo XXI. La llegada de los europeos (españoles y portugueses) al continente Nuevo Mundo, ponía en movimiento sus significados hasta hacer desapa-
americano a finales del siglo XV significó la importación de un sistema de recer la relativa estabilidad denotativa que parecían poseer en el contexto
signos en un entorno nuevo, creando una ‘semiosis colonial’ (MIGNOLO, del Viejo Mundo. El conocimiento empírico del Nuevo Mundo y el con-
1993), fruto de la dialéctica entre signos procedentes de diferentes tradi- tacto con su enorme diversidad contradice ciertas ‘verdades’ europeas, lo
ciones culturales. Desde las primeras fechas de la llegada de los europeos cual obliga a revisar ciertas leyes concebidas desde Europa introduciendo
al llamado Nuevo Mundo existen testimonios sobre el conflicto semiótico una perspectiva múltiple y transcontinental.10 Esta conciencia, presente en
generado. La ‘semiosis colonial’ queda patente en la Carta de Pedro (o Pêro) José de Acosta y otros cronistas del Nuevo Mundo, permite romper con
Vaz de Caminha, de 1500, donde el autor escribe que las mujeres indígenas la euro-normatividad (el tomar Europa como única norma del sistema
andaban con ‘sus vergüenzas tan desnudas y con tanta inocencia descubier- semiótico). En su descripción del Nuevo Mundo, Acosta se muestra capaz
tas, que en eso no había vergüenza alguna.’9 Una lectura sintomática de tes- de adoptar una perspectiva des-centrada, no eurocéntrica. Hablando de
timonios tempranos de la primera globalización revela el choque semiótico los vientos en la región equinoccial (Libro Segundo, capítulo 13), Acosta
entre la cultura europeocristiana, inscrita en la lengua del colonizador, y la escribe desde una perspectiva cambiante, tomando una vez Europa y otra
realidad indígena que se intenta describir. De acuerdo con Mignolo (2004, vez América como referencia normativa: ‘Lo cual en Europa es al revés’, y
p. 289), una característica de la semiosis colonial es su dimensión híbrida, unos párrafos más bajo: ‘Mas en el Pirú y en toda la Equinocial [sic] es al
que resulta del traslado del signo (originado en un contexto geográfico y contrario’ (ACOSTA, 2008, p. 56-57).
cultural determinado) a un contexto diferente. En el proceso de migración, Recordamos aquí que el concepto de ‘semiosis colonial’ remite a
el signo original procedente del centro de la modernidad europea con su una proceso de producción de significados relacional e interaccionista
ideal de lo puro y homogéneo se convierte en copia contaminada, impura, (MIGNOLO, 2004, p. 262).
imperfecta o mestiza en la situación colonial. Recordemos que lo impuro, lo
Colonial semiosis is the general term to indicate a network of semiotic pro-
‘sucio’ ha sido definido por Mary Douglas como ‘lo que está fuera de lugar’, cesses in which signs from different cultural systems interact in the produc-
fuera de contexto, característica de lo foráneo y del forastero. tions and interpretation of hybrid cultural artifacts. In colonial semiosis the
Desde una perspectiva histórica, este choque semiótico fue el motor
de la transculturación de conceptos europeos introducidos en una realidad 10 Así, ‘guiándonos no tanto por la doctrina de los antiguos filósofos cuanto por la verdadera
razón y cierta experiencia’ (Acosta 2008:45), la experiencia en el Nuevo Mundo enseña que
distinta, en un ‘Mundo Nuevo’. Aparte del antes comentado concepto de ‘la Tórrida Zona es humidísima, y que en esto se engañaron mucho los antiguos’, siendo esta
‘casta’, otro ejemplo es el de ‘criollo’, palabra de etimología incierta aunque verdad además comprobada en la India Oriental según el testimonio obtenido en las cartas
de otros jesuitas: ‘Lo mismo está observado en la India Oriental, y por la relación de las
asociada inicialmente con españoles y esclavos negros nacidos en América, cartas de allá parece ser así’ (Acosta 2008:46 y 47); ’Siendo así que en las causas naturales y
físicas no se ha de pedir regla infalible y matemática sino que lo ordinario y muy común eso
9 En portugués: ‘Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou es lo que hace regla, conviene entender que en ese propio estilo se ha de tomar lo que vamos
deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande ino- diciendo: que en la Tórrida hay más humidad que en esotras regiones, y que en ella llueve
cência’. También: ‘Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cuando el sol anda más cercano, pues esto es así según lo más común y ordinario. Y no por
cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e eso negamos las excepciones que la naturaleza quiso dar a la regla dicha, haciendo algunas
tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.’ Véase: partes de la Tórrida sumamente secas, como de la Etiopía y de gran parte del Pirú lo hemos
http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/caminha/index02.html. visto’ (ACOSTA, 2008, p. 51).

106 107
meaning of a sign no longer depends on its original cultural context (for referencias bibliográficas
instance, Castilian, or Amerindian, or Chinese), but on the new set of rela-
tions generated by communicative interactions across cultural boundaries. acosta, Josef de (2008). Historia Natural y Moral de las Indias. Edición crítica de
Fermín del Pino-Díaz. Madrid, CSIC, 2008.
Esta producción de nuevos significados en el contexto de la coloniza- Appadurai, Arjun (2006). Fear of Small Numbers: An Essay on the Geography of
ción de Latinoamérica no es otra cosa que el resultado de un proceso de Anger. Duke University Press.
traducción, entendida como ‘el proceso de relacionar o crear convergen- ______. (2008). Modernity at Large. Cultural dimensions of Globalization (first
cias, homologías o equivalencias entre elementos inicialmente dispares’.11 edition: 1996). University of Minnesota Press.
La traducción es vista aquí como un proceso de inter-relacionamiento de Gluck, Carol & Lowenhaupt Tsing, Anna (2009). Words in Motion: Toward a
lenguajes semióticos distantes, y puede ser estudiada etnográficamente de Global Lexicon. Duke University Press.
acuerdo con una metodología multisituada. Law, John & Hassard, John (eds.) (1999). Actor Network Theory and After. Oxford:

Desde el observatorio eurocéntrico ha resultado difícil darse cuenta Blackwell, 1999.


de los procesos de transculturación semiótica que se operaron en las cul- Marcus, George E. (1998). Ethnography through Thick and Thin. Princeton
University Press.
turas y lenguas de los nuevos mundos colonizados. Es ahora, cuando por
Mignolo, Walter (1993). ‘Colonial and Postcolonial Discourse: Cultural critique
efecto de la segunda globalización, los conceptos occidentales ya transcul-
or Academic colonialism?’, Latin American Research Review, Vol. 28, Number
turados vuelven hacia Europa que el viejo centro del sistema-mundo se 3, 120-134.
ve confrontado con los significados alterados que desafían las acepciones ______. (2004). ‘The Movable Center: Geographical Discourses and Territoriality
históricas. Parafraseando a Mignolo y Appadurai, se podría decir que la During the Expansion of the Spanish Empire’, en Ana del Sarto, Alicia Ríos,
semiosis de-colonial nace del reencuentro conflictivo entre la genealogía de and Abril Trigo (eds.). The Latin American cultural Studies Reader. Duke
un concepto o signo (su puesta en circulación en el mundo) y su historia University Press, 262-290.
(su domesticación en una práctica local). Stallaert, Christiane (1998). Etnogénesis y etnicidad en España. Una aproxima-
Como observó George Marcus, la etnografía multisituada en/del siste- ción histórico-antropológica al casticismo. Barcelona, Anthropos.
ma-mundo implica un mayor desafío para la traducción. En la Europa del ______. (2006). Ni una gota de sangre impura. La España inquisitorial y la Alemania
siglo XXI, confrontada con una ‘semiosis de-colonial’, el esfuerzo de traduc- nazi cara a cara. Barcelona, Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores.
ción consiste en relacionar o crear convergencias, homologías o equivalen- ______. (2011). ‘Castas, razas, etnias. Circulación intercontinental de concep-
tos y personas’, en Kristien Vanden Berghe (ed.), El retorno de los galeones.
cias entre genealogías e historias dispares de conceptos en movimiento.
Literatura, arte, cultura popular, historia. Frankfurt/Main, Peter Lang, 77-94.
Este esfuerzo constante de negociación semiótica es una situación vivida
Vertovec, Steven (2007). ‘Super-diversity and its implications’, Ethnic and Racial
como nueva por muchos países europeos, cuya experiencia de intercultu- Studies 29(6): 1024-54.
ralidad se ha situado históricamente más bien fuera del territorio nacional,
en los confines de Europa como parte de su historia colonial. Si antes las
tensiones semióticas eran más bien un problema de las periferias del sis-
tema mundo, ahora se ubican en el seno del sistema y lo que antes era un
problema exótico se ha convertido en un problema doméstico.

11 ‘Considered from a very general point of view, this notion [translation] postulates the exis-
tence of a single field of significations, concerns and interests, the expression of a shared
desire to arrive at the same result… Translation involves creating convergences and homolo-
gies by relating things that were previously different’ (Michel Callon, p. 32); ‘translation is the
process or the work of making two things that are not the same, equivalent’ (John Law, p.8).
In: John Law & John Hassard (eds.), Actor Network Theory and After, 2006.

108 109
Elegias de Duíno – Original e Tradução como
Identificação Transcultural da Modernidade em
Paulo Plínio de Abreu (1950, Belém) e Augusto de
Campos (1990, São Paulo)
Gunter Karl Pressler

Não há conhecimento de uma equivalência histórico-cultural entre dois


países de diferentes idiomas, em diferentes continentes, sob diferentes cir-
cunstâncias coloniais. Eu fiquei surpreso quando, no ano de 1997, pouco
antes da minha chegada como professor-visitante na Universidade Federal
do Pará, pode-se dizer na entrada do Amazonas, encontrei uma estudante,
criativa e segura de si, que queria escrever seu trabalho final sobre o antigo
tradutor de Rainer Maria Rilke no Brasil, Paulo Plínio de Abreu, de Belém.
Muito embora eu não fosse especialista em poesia e nem um leitor de
Rilke, o projeto criado e elaborado me motivou, pois me permtiu interro-
gar a história da recepção da literatura alemã e europeia em um ambiente
inesperado. O aprofundamento do tema se deu e me acompanhou durante
anos, fazendo emergir novamente o desafio no ano de 2003, quando fui
convidado para participar de um exame de Mestrado sobre, justamente,
Paulo Plínio de Abreu, juntamente com o especialista lírico francês pro-
fessor Christophe Golder. O último estímulo para apresentação, no Con-
gresso da ALEG, veio depois através de um iniciante projeto de pesquisa
com interrogações sobre a tradução. A temática setorial: a diferença entre
R. M. Rilke e P. P. Abreu, principalmente em relação aos conhecimentos
contínuos e aos fundamentos sobre a literatura e a cultura brasileiras (poe-
sia concreta, influências da poesia alemã, francesa e inglesa).

111
Minhas questões iniciais foram: a recepção da poesia de Rainer Maria recidas de nosso tempo”, escreveu Paulo Plínio de Abreu na introdução,
Rilke (1875-1926), difundida, resultou numa determinada imagem da Ale- reportando-se a seu tempo, entre 1940 e 1950.1 Abreu relata a história de
manha? Até que ponto uma semelhança na tradução lírica desempenha um formação das Elegias de Duíno, baseado em fontes como Walter Reinhardt,
papel significativo, por exemplo, no próprio ato de traduzir? A intenção foi Maurice Betz, Bowra, Butler, e mais ainda Romano Guardini, Günther,
refletir sobre dois pontos difíceis sobre a ciência da tradução: como ques- Bassermann, Hermann Pongs, Kretschmar, E.Schmidt-Pauli e Angelloz.2
tões epistemológicas despertam a ciência da tradução diante de interesses As referências bibliográficas não são identificadas. Para o conhecedor de
hermenêuticos (sujeito-objeto-relação)? Uma vez que isto se dá em “espa- Rilke, os nomes são conhecidos e mostram as leituras de Abreu, que se
ços estruturados hierarquicamente” (Kalverkämpers, 2009), no campo dedicou ao trabalho sobre Rilke, respectivamente, quando começou a sen-
da recepção intercultural, os quais – num processo criativo de escrita – são tir afinidade pela poesia deste autor. Francisco Paulo Mendes fez o prefá-
levados em consideração em um determinado universo político-social. No cio para a obra de poesia de Abreu, quando confirma que o jovem poeta
decorrer da composição do artigo para o Congresso e depois, sobretudo, conhecia as publicações francesas de M. Betz (Malte) e J. F. Angelloz (As
durante o debate no setor da temática, cristalizou-se a interrogação sobre Elegias) aproximadamente no ano de 1939. Professor de ginásio e líder de
a “traduzibilidade” como um “problema poetológico” próprio, ou melhor, um círculo intelectual em Belém dos anos de 1930 e 1940, Francisco Paulo
como tema de referências reflexivas sobre o meio de representação pró- Mendes reuniu seus conhecimentos de Literatura europeia quase exclusi-
pria do procedimento da tradução, a qual teve que recorrer novamente à vamente a partir de fontes francesas (N. Berdiall, J. Maritain, E. Seilliere,
compreensão fundamental da lírica no contexto histórico-poetológico do H. Taine, A Maurois, F. A. Lange e C. Guignebet) e de fontes de traduções
início do século 20. espanholas (J. Burkhardt, R. F. Arnold, G. Wundt e M. Koch). A linguagem
Nesse contexto brasileiro, é importante previamente constatar que cultural do meio intelectual era o francês. Até aqui não esclarecido, mais
o concretista e tradutor Augusto de Campos não traduziu as Elegias de importante fora o encontro com o arqueólogo alemão do Museu Paraense
Emilio Goeldi, Peter Paul Hilbert (1914-1989), nos anos finais da década de
Duíno, mas sim outros poemas de Rilke – aqueles que surgiriam mais
1940. Com uma citação de Rilke3 (de Poesia de Pantera) se inicia a biografia
tarde, com a interpretação poetológica do tradutor de Mallarmé, Keats,
de Klaus Hilbert sobre o pai. “Meu pai tinha uma fantasia privilegiada e um
Yeats e Cummings. O livro das traduções de José Paulo Paes, publicado em
talento para a escrita” (HILBERT, 2009, p. 138). Ele foi autor de seis contos e
2012, só apresenta uma seleção de cinco elegias (a segunda, terceira, quinta,
romances e foi o iniciador e meio tradutor de Paulo Plínio de Abreu, mas
oitava e nona).
no artigo biográfico sobre seu pai não se encontra nem o nome de Abreu,
“Rilke é um dos poucos poetas do século 20 que alcançou um grande
nem o resumo com os escritores e literatos da época em Belém.
e universal público [...] Mais de cinquenta anos após sua morte, em todo
caso, é o mito de Rilke além do mundo da linguagem alemã que se man- 1 Na “Nota liminar”, J. P. Paes confirma esta recepção, apoiando-se no estudo de Arnaldo
Saraiva (1984), e cita o ensaio de Cristiano Martins (1949) e a tradução de Dora Ferreira da
tém sempre vivo”, como bem constatou Paul de Man (1999, p. 52). Um dos Silva com a data de 1956. A reedição de 2001/2008 só fala da data de 1972; cf. as referências,
motivos dessa demanda é o fato de que ele concebeu essa recepção com 2012: 10. Cf. o estudo importante sobre a recepção de Rilke em Portugal, de Maria Ferreira
um “entusiasmo considerável”, aproxima De Man do meu ponto de par- Hörster (2001).
2 Todos os nomes aqui são introduzidos como foram encontrados nas referências, isso signi-
tida, pois – assim afirma o autor – “o que ele próprio teria dito para aquele fica, sem prenomes ou apenas com a primeira letra do nome. Apenas um exato exame pode
leitor longe da sua linguagem e sua forma de viver, que foi de fundamental constatar, de quais fontes de pesquisas foram utilizadas por Abreu e como foram levantadas.
Igualmente se pensa sobre as referências de Francisco Paulo Mendes; são trabalhos de crítica
importância”. E, desta forma, Rilke se reafirma em “inúmeras biografias,
literária, mas não são pesquisas científicas. A Universidade de Belém foi fundada em 1960 e
pensamentos e cartas que comprovam uma forma pessoal de recepção” (DE o magistério em Letras (Literatura e Língua) teve seu início de vida em 1987.
MAN, 1999, p. 52). 3 2009: 136. A seguinte tradução foi anotada na nota de rodapé: “De vez em quando o fecho
da pupila/ se abre em silêncio. Uma imagem, então,/ na tensa paz dos músculos se instila/
Não foi apenas a obra de Rilke uma das mais importantes da litera- para morrer no coração” (A pantera. No Jardin des Plantes, Paris. Novos Poemas, 1907). A
tura alemã da metade do século, mas também “uma das obras mais escla- tradução é de Augusto de Campos (2001, p. 57).

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(Rilke por volta de 1900, Editora Insel) (Retrato de Rilke, de Paula Modersohn-Becker, 1906)

A relação entre texto (escrito) e imagem (metáfora) pode ser enten- O elemento metafórico se destacou nas expressões artísticas, fazendo
dida conceitualmente como o “encontro semiótico” (Kristeva), como um surgir um movimento que privilegiava a visualidade ante a razão/argu-
caminho fronteiriço entre a imaginação verbal (imagem da palavra) e a mento principal – o que significou, para escritores e poetas, privilegiar a
visualidade imaginária (visão da imagem). O movimento de vanguarda “relação imagem-palavra” (PONZI, 2009, p. 17). Rilke foi o precursor desse
artístico e político no início do século 20 sempre consolidou claramente movimento, que desejava estar sempre em outro lugar, em vários sentidos
uma relação imanente entre a expressão verbal e visual; revoluções foram (“Anderswo”, 2009, p. 16). Expressão da “procura” por uma direção autô-
efetivadas com as palavras do movimento dadaísta na arte da pintura e noma e própria. “Procura” foi a palavra-chave da época. “O voltar-se para o
realizadas na política, por exemplo, com o martelo e o símbolo da foice. ponto crucial da arte visual” – constatou Ponzi – “é o display, i.e., o disposi-
Rainer Maria Rilke coloca-se como um artista de seu tempo no seu espaço tivo, através do qual a imagem [uma imagem poética, completo eu] se apre-
criativo e político-ideológico. Seu caráter nômade e seu “canto” religio- senta, ‘se projeta’, se desdobra” (PONZI, 2009, p. 20). O conceito da retórica
so-ideológico não permitiram a formação de grupos, mas de mitos. O antiga pensa com o dispositio da “organização interna do material retórico”
retrato de Rilke, nas suas diversas versões, tornou-se o ícone procurado (PONZI, 2009, p. 20). Para Rilke, esse dispositivo era tanto físico, geográfico
por diversos poetas que seguiram seu próprio estilo. Ele se coloca na tran- (palácio, castelo, campo, por exemplo, Worpswede, no Teufelsmoor, no “pân-
sição poético-histórica e como poeta, mas não no círculo de Stefan George, tano do demônio”, junto à cidade de Bremen) como também a imaginação
que articulou seu limite no caminho das experiências na tradução. Isso foi psicológica (como no Surrealismo); o lugar religioso e metafísico (a região
em geral, como bem coloca Mauro Ponzi, sempre a busca por um “novo dos Anjos) – o lugar religioso era transformado em linguagem escrita.
homem”, que buscava “com outra sensibilidade, com uma representação da
A revolução das formas e a desconstrução do que antes se colocava como
natureza, com um impulso inovador, construir uma obra de arte integral, forma de expressão são os interesses principais desses movimentos artísti-
uma expressão paradigmática da Modernidade” (PONZI, 2009, p. 16). cos. Essas decisões políticas foram produzidas, principalmente, pelas situa-

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ções geográficas ou históricas, e estas são quase insignificantes, ao se pen- sas divisões de estrofes, então, seria absurdo querer interpretar a ordena-
sar em compor um determinado conceito da modernidade clássica (PONZI, ção dessas construções. Uma comparação com a edição de 1923, da Editora
2009, p. 18).
Insel, em Leipzig, mostra, por exemplo, que nessa edição apenas a primeira
Até que ponto Rilke se antecipou ao movimento vanguardista, no palavra dos princípios das Elegias foi escrita em letra maiúscula (Abreu
qual era experimentada a associação de palavra e imagem, de visualidade e assumiu isso, mas com D. Ferreira da Silva surge, pode-se dizer, a primeira
som, e se a “reviravolta do sentido das imagens” (“Sinnumkehrung der Bil- frase em letra maiúscula: quais edições podemos tomar como traduções
der”) aconteceu, como fala Aby Warburg, deverá ser investigado em outro respectivamente?). Até que ponto esses aspectos formais podem ser toma-
momento. Na investigação sobre os “espaços ultrapassados” e a “reorde- dos pela interpretação?
nação da visualidade”, M. Ponzi retoma novamente um passo, que eu gos- A primeira Elegia inicia com o (frustrado) chamado do Eu lírico,
taria de relacionar a Rilke e tentar em seguida justificar. Não é trabalhado que se estabelece num grito inaudível. Com o início aliterativo (“Quem” e
aqui “uma ligação estreita entre palavra e imagem na produção estética, “Quando”) se acentua para o grito audível através da duplicidade dos “e” na
mas sim muito mais na composição estrutural do texto literário através de forma do passado (“schriee”). A subida até a quinta sílaba poética adentra
imagens [Augusto de Campos dialoga com Paul de Man que dialoga com no “ouvir obscuro”, que se estende ao desapontamento (“me ouviria”) até
uma ‘estratégia poetológica’, 2001], objetivando a recepção visual da obra ser reconhecido no parceiro-locutor anjo. Mas não se dá através de um anjo
de arte” (POBZI, 2009, p. 19). Rilke apregoou um estado de alerta poético individual nem por um anjo coletivo; se dá em virtude do abstrato de uma
à frente do seu tempo – e quase ninguém o ouviu, mas muitos o sentiram. organização hierárquica que se apresenta livre no segundo verso: “Ordens”.
Uma análise curta pode mostrar a dificuldade de um entendimento
Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel
de Rilke no contexto da poesia moderna. Já nas primeiras Elegias pode- Ordnungen? Und gesetzt selbst, es nähme
mos constatar uma métrica irregular e um claro ordenamento arbitrário einer mich plötzlich ans Herz: ich verging von seinem
nas estrofes; por exemplo, encontramos na primeira Elegia quatro estrofes stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
respectivamente com 25, 28, 32 e 10 versos. Na segunda Elegia, por exemplo,
QUEM, se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
há entre as traduções de Paulo Plínio de Abreu, José Paulo Paes e de Dora dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Ferreira de Silva4 uma divergência num aspecto formal. J. P. Paes separa, um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
no final, duas estrofes: “Senhores de si” e “Se encontrássemos nós também ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
uma pura, contida” (PAES, 2012, p. 135). Ferreira da Silva separou somente os (ABREU, 2008, p. 125)
últimos seis versos, “Ah, encontrássemos também nós”, como uma estrofe
Podemos comentar que, até a interrogação no nono e décimo versos,
própria. Várias vezes a divisão das estrofes nessa tradução da editora Globo
há uma sintaxe regular que, se em alguns momentos permite divergências
é incompatível com a quebra das páginas, assim é difícil reconhecer como
poéticas, e às vezes se apresenta estranhamente, não influencia substancial-
as estrofes são separadas. Logo, também as seguintes impressões com os
mente, podendo ser traduzido sem problema de significação. São estabele-
novos caracteres e as novas imposições na língua alemã apresentam diver-
cidas divergências das normas corretas de escrita (Inversão da construção
negativa, frases sem conjunções, fileiras de substantivos, enjambement),
4 O livro de Dora Ferreira da Silva foi publicado em 1972; até 1984 saíram três reedições. No
ano de 2001, uma nova edição revisada apareceu e, em 2008, saiu mais uma reedição (cf. a os quais como pré-entendimento, são lidos sem maiores problemas. Um
nota de rodapé 1). O poeta Rilke é um sucesso garantido. O prefácio foi escrito por Sérgio exemplo é o modo como o verbo “vergehen” (“sucumbir”) foi ligado à pre-
Augusto de Andrade num tom conhecido de elogios sobre o grande poeta. Há uma infor-
mação sobre um seminário de Peter Szondi, em que ele não conseguiu analisar mais de posição “von”. Na língua alemã, deveríamos fazer uso de “vor” em vez de
quarenta versos (naturalmente sem uma referência, parece uma anedota que quer ilustrar a “von” (“ante” e “de”), para produzir o sentido de ante a alegria sucumbir, já
dificuldade do poema). Não há nenhuma referência sobre estudos brasileiros do poema e,
naturalmente, não há conhecimento da tradução de P. P. Abreu.
que “sucumbir por” não existe em alemão (“vergehen von”). O leitor pode

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pensar em “sucumbir frente à”, com o entendimento de que se trata de um zível. Para D. Ferreira da Silva não há diferença, tanto na primeira, quanto
texto poético (como faz o tradutor; “sucumbiria ante”5 (ABREU, 2008, p. na segunda Elegia: “todo anjo é terrível”, mas Paulo Plínio Abreu tenta com
125). O eu lírico se desfaz (“sucumbiria”) frente à intensidade da essência a variante “cada” no primeiro verso, “todo” na segunda Elegia.
(“Dasein”), traduzida como “existência”. Nos próximos dois versos a figura do quiasmo continua ser utilizada.
Mas de qual “essência intensa” se fala? “Pois o belo não é Em vez de efetuar simbolicamente o sentido semântico de “reprimir” e do
“obscuro soluço”, o verso é valorizado alegoricamente através da inserção
senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
e o admiramos tanto porque ele tranquilamente desdenha do “apelo” (“Lockruf ”); posso dizer polemicamente que o verso recebe
destruir-nos. Cada anjo é terrível uma roupagem específica com a finalidade de alcançar um significado
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo transfigurado místico (prática nas interpretações de Rilke). Então, qual é
de obscuro soluço. Ah! A quem podemos a significação do verso? Também pensei conjuntamente nas interrogações
recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
(Abreu, 2008: 125). seguintes, que não fazem propriamente nenhum sentido na ordenação sin-
tática (“Ach, wen vermögen wir/ denn zu brauchen?”), quando elas não
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen, se adéquam à regularidade dos verbos: “Ah, a quem nós devemos gostar?/
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
pois necessitamos?” De uma falta de sentido construída, o poeta se vê
Und so verhalt ich mich den und verschlucke den Lockruf consciente, nós podemos dizer. Logo depois, ele escreve um trecho poético
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen e filosoficamente belo: “daβ wir nicht sehr verläβlich zu Hause sind/ in der
wir den zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht, gedeuteten Welt” (“que não estamos muito seguros/ no mundo interpre-
tado”, ABREU, 2008, p. 125). A solução de Ferreira da Silva (“que para nós
O entrecruzamento (“coração” e “perecer”, “destruir”, no significado de
não há amparo/ neste mundo definido”, 2008, p. 17) seria retraduzida em
“morte”, como nós a lemos em uma tradução, “aniquilar”; e o “belo” e o
algo como “não há saída para nós”; infelizmente o “zu Hause sein” (“estar
“péssimo” no quarto e quinto versos) remete à figura retórica do quiasmo,
em casa”), não aparece em nenhuma tradução.
muito em uso no Maneirismo, remetendo a impressões de uma compreen-
são indissolúvel e a impressões sentimentais com origens internas e exter- Und die findigen Tiere merken es schon,
nas de um mundo de difícil superação. O plano possível e facilmente sim- Daβ wir nicht sehr verläβlich zu Hause sind
In der gedeuteten Welt. Es bleibt uns vielleicht
bólico (“coração”, aniquilamento frente à dor, “morte”) é rompido através
da sintaxe quebrada e do uso inabitual de verbos e preposições. Em frente e os animais sagazes logo percebem
à dor, o eu lírico sucumbe “frente” (“von”) ao “Dasein” (“essência”), mas o que não estamos muito seguros
anjo o “despreza”– o eu lírico não tem valor? – não apenas isso, é “relaxado” no mundo interpretado. Resta-nos talvez
(“gelassen”), mas é, admiravelmente aguentado (“ertragen”). No sétimo De fato, a “crise dos sentidos” por volta do advento do novo século é
verso, o “terrível” (“das Schreckliche”) é personificado como anjo e, para o marcada na linguagem poética como material (construção de palavra e sin-
leitor, esta qualificação surpreendente (ao contrário do horizonte de expec- taxe) e não apenas como parte do significado do espaço semântico. Trata-
tativa) é assegurada com um absolutismo relativo, pois em alemão a afirma- se de uma “sobre-estruturação” (“Überstrukturierung”, como se conceitua
ção absoluta é abrandada através de algo como “ein”, enquanto a tradução na teoria poética alemã), em que a ordem paradigmática se sobrepõe a um
aumenta e diz no imperativo categórico: “Cada anjo é terrível” (como diz sintagma quebrado (“vergehen von” ou “wen vermögen... zu brauchen”) e,
Rilke na segunda Elegia). Além do mais, “ein jeder Engel” (“um cada anjo”) desta forma, causa uma semantização da estrutura. Os tradutores, fugindo
é poeticamente melhor do que “jeder Engel” (“todo anjo”), embora intradu- do “conflito”, harmonizam o paradigmático e o sintagmático. O exercício
5 A tradutora escolheu: “aniquilar-me-ia” (D. Ferreira da Silva, 2008: 17).
da tradução não seria portanto achar não só apenas palavras expressas na

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língua final, mas sim apontar também desvios gramaticais e sintáticos, o Os tradutores alteram, portanto, o original poético substancial, pois
que não é reconhecido, quando se fala de um hermético, metafísico, reli- eles não mantêm o poema como unidade de conteúdo e forma e apresen-
gioso, consequentemente, de um “difícil” Rilke. As traduções explicam tam uma interpretação esperada diante da história da recepção do poeta
interpretativamente e tornam o texto pleno de sentido, assim que o conhe- místico, i.e., se ajustam a um texto argumentativo e não ao lírico. A língua
cido e tradicional material de recepção apresenta (por exemplo a introdu- alemã possibilita a ligação entre dois verbos, por exemplo, onde o segundo
ção de Angelloz): Rilke é mistificado – a tradução “comprova”. se coloca numa estrutura do infinitivo. Portanto, o verbo irregular “vermö-
Como então podem ser traduzidas as Elegias na sua unidade e na sua gen” (“poder, ser capaz de, conseguir algo”), não pode ser combinado com
particularidade? Formalmente, Abreu coloca a palavra inicial em letra o verbo transitivo “brauchen” (“precisar”) na complementação. O comple-
maiúscula, enquanto Ferreira da Silva coloca as quatro primeiras pala- mento infinitivo teve que representar uma atividade (fazer algo) e não um
vras com letra maiúscula “QUEM, SE EU GRITASSE” que, já falamos, não se estado (precisar de algo). Isso significa dizer, que numa frase subdividida, em
comprova nas edições alemães. Outra formalidade da língua alemã, por vez de se colocar “brauchen” deve-se colocar “nutzen” (“usar”) ou “benut-
exemplo, Abreu coloca: “me ouviria pois entre as ordens/dos anjos?” Fer- zen” (“empregar”). Um eu possibilita o uso de algo ou a alguém qualquer
reira da Silva traduz, “entre as legiões dos Anjos/ me ouviria?” No alemão, empregar ou aproveitar-se de algo (Quem?). A tradução elimina o problema
todos os substantivos se iniciam com a letra maiúscula, o que não justi- do sentido, talvez se pense, em superar a dificuldade do texto hermenêutico
fica a forma singular “Anjos”; seria, então, o caso de que a tradutora que- através de “representação de sentido” como tarefa do tradutor (ele entendeu
ria dar uma indicação clara da interpretação? A forma do verso “gritasse” assim, pois acreditava que o texto comunica algo compreensível?).
tem uma imagem sonora similar como “schriee”. Abreu continua de forma O servir ao leitor satisfaz adequadamente à recepção estabelecida, mas
eloquente, mas em relação às “legiões de Anjos”, de Ferreira da Silva, não não há, na tradução, a procura autêntica do poeta na crise do seu tempo (o
mantém evidentemente a sequência. A tradutora tenta manter um subs- material poético, a palavra e a estrutura da língua). A correção sintática: “A
tantivo importante (“legiões”) no espaço do verso com a diferença de que quem podemos recorrer?”, torna-se semanticamente germanizada, assim,
o segundo verbo (“ouvir”) deve estar no primeiro e não no segundo verso. “an wen können wir uns wenden?”, mas no original está escrito: “Ach, wen
A tradução de “Ordnungen” em “legiões” traz novamente uma metá- vermögen/ wir denn zu brauchen?” A tradução cheia de sentidos pode-
fora conhecida, que reúne legiões de anjos ou de militares. Com isso é mos ver como exercício, a qual cada professor de alemão no contexto de
acentuado o aspecto militar, quando Abreu faz uso de uma combinação curso de estudos ou Alemão como Língua Estrangeira marcaria uma falta,
com uma interpretação necessária. Novamente “ordem” possibilita um no caso do texto de Rilke. O eu lírico necessita de ajuda (“ist in Not”) e
aspecto religioso, no qual a palavra alemã “Ordnung” (disciplina, classi- se direciona para quem? (“Engel nicht, Menschen nicht”) (“Nem anjos,
ficação, ordem) de forma nenhuma contém – mas ambos os tradutores nem homens”). Se Rilke queria uma constatação plena de sentido, ele teria
se apropriam de um aspecto administrativo e hierárquico. Nós podemos expressado seguramente isso, bem como quer a semântica. Estímulos se
sobressaem em “frases modais como elas são praticadas na lógica modal
comentar sobre diferentes variantes dos aspectos semânticos, os quais se
[...] Essas expressões têm ao mesmo tempo, apenas um significado prático,
relacionam com soluções sintáticas. Em ambos os versos, há “problema
quando elas se permitem ser verdade ou ser falsificadas, isso significa que
de sentido”, de transposição de significados. Sobre o pequeno problema de
elas têm que obter um significado” (RICHTER, 2009, p. 201).
sentido nós já comentamos, mas como foi traduzida apenas a frase ausente
Na poética, algumas frases não têm significado prático, mas signifi-
de sentido no nono e décimo verso? Abreu traduz: “Ah! A quem podemos/
cado literário – apesar disso, “devem” ser construídas coerentemente. Mas
recorrer então?”, enquanto Ferreira da Silva escreve: “Ai, quem nos pode-
as Elegias e os poemas tardios de Rilke mostram que ele não conseguia
ria/ valer?” Ambas as traduções com diferentes soluções dão, entretanto, “o
resolver a crise do sentido criativo e mundial em estruturas coerentes;
absurdo”/”ausência de sentido” um sentido.
não teria solução na linguagem, fora da “irregularidade”. O poeta francês

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Stéphane Mallarmé aplicou uma outra “irregularidade” à linguagem poé- 2004, p. 364-366), foi descoberta em um tempo bem mais atual. As inter-
tica, desfez a estrutura de estrofes e versos. Os tradutores resolveram, para pretações dominantes no sentido do cristianismo (Romano Guardini),
melhorar a compreensão, dar sentido às frases irregulares. Isso significa vivamente presentes nos anos de 1940, também no Brasil, como Augusto de
que eles acham uma poética permissiva que, para o horizonte de expecta- Campos (2001, p. 21) ressalta, perderam a base de sustentação. A tradução e
tiva da interpretação e para o horizonte de expectativa de Rilke (na busca a recepção produtiva de Paulo Plínio de Abreu são um exemplo significante
da solução da linguagem poética na crise de sentido moderno) não se disso. Trata-se de um lugar do mundo muito afastado, aparentemente, um
adequa. Ambos os verbos colocados por Rilke “vermögen” e “brauchen” ambiente cultural que permitia uma conciliação singular da literatura euro-
expressam tanto a incapacidade metafísica ou religiosa, quanto como a peia ao encontro de afinidades eletivas do poeta na Amazônia.
dificuldade do próprio ato criativo.
A disciplina de literatura fala da crise das possibilidades de “repre-
sentação da linguagem”, que os versos iniciais como prova introduziram.
Foram os concretistas brasileiros, dentre eles, Augusto de Campos, que
reconheceram em primeiro lugar esta crise também na poesia de Rilke. A
atenção introduz exato meio da linguagem de expressão. Assim, escreve
Augusto de Campos sobre a recepção de Rilke, “a língua de sua poesia
foi menos observada do que o ‘clima’, o ‘feeling’” e o substrato existencial,
metafísico” (CAMPOS, 2001). Manuel Bandeira e Décio Pignatari já apon-
tam para as transgressões linguísticas na poesia de Rilke. Também os con-
cretistas, diz Augusto de Campos, tinham deixado Rilke, pode-se dizer,
em quarentena, por ser a prática da recepção muito dura. “Desmontado o
ritual dos misticismos de fachada que alimentaram um certo tipo de recep-
ção que Paul de Man denominou de ‘interpretação messiânica’ da poesia
de Rilke, é possível vê-la, ou revê-la, hoje, com olhos mais objetivos ou
menos transtornados”, assegura Augusto de Campos em seus livros, Rilke: (Capa do livro que inclui as traduções das Elegias, retrato de César Calvo)
Poesia-Coisa (19946); Coisas e Anjos de Rilke (2001).
Sem o entendimento da estratégia poética de Rainer Maria Rilke, Dessa forma, Abreu pertence ao mundo conhecido da recepção mís-
mesmo o emprego do quiasmo, como Augusto de Campos acentuou com tica de Rilke, como parte do modo da compreensão moderna nostálgica,
referências de Paul de Man, as Elegias podem ser compreendidas apenas enquanto Augusto de Campos reconhece o “concretismo” em Rilke ao
como “aprendizagem, cujo sentido profundo o leitor do século 21 não revelar uma impressão autêntica da mudança para uma nova moderni-
alcança”, como constata uma nova abordagem. “A perfeição formal e igual- dade da metade do século 20. Por conseguinte, Campos prefere a tradução
mente também a liberdade ideológica em várias das Poesias novas e poemas, dos Poemas Novos e não a das Elegias, as quais recaem novamente em um
as quais acompanharam a construção das Elegias de Duíno” (STEPHENS, tom “autoritário” de um “poeta messiânico”, como Paul de Man ressalta
(1999, p. 80, 81). Sem a contribuição teórica de Paul de Man, que acentua
6 Paul de Man aparece, no prefácio do livro de 1994, somente com sua introdução a obra de a “procedência dos significantes”, construída sobre a poética fonocêntrica
Rilke, em francês (1972). As outras referências são conhecidas, J.-F. Angelloz (1952) e Ursula
Emde (1949). Um novo nome é Philippe Jaccottet (1985). Também há uma referência ao tra- de quiasmo, mas também sem o ato da tradução criativa de Augusto de
dutor norte-americano, Edward Snow (1994). Não se encontra nenhuma referência ao ensaio Campos, Rilke não pode nunca mais ser traduzido.
“Tropen” no livro Allegories of Reading, de Paul de Man (1979).

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Embora as Elegias representem uma compreensão de língua que exclui Rilke,Rainer Maria (2008/1972), Elegias de Duíno. Tradução e anotações: Dora
dimensões subjetivas e intersubjetivas, as Elegias de Duíno apelaram forte- Ferreira da Silva. Prefácio: Sérgio Augusto de Andrade. Edição bilíngue. São
mente para o sentimento e participação do leitor. Paulo: Globo 2008 (2ª. ed.).
Esse paradoxo não provém de nenhuma ausência de sinceridade ou engano ______. (2012/1993), Poemas. Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Companhia
consciente da forma de Rilke; trata-se da ambivalência inerente à linguagem das Letras (2ª. ed.).
do poeta (DE MAN, 1999, p. 81).
Sampaio, Ângela M. Vasconcellos (2003), Paulo Plínio Abreu e o enigma da pala-
vra: uma introdução ao estudo da metapoesia. Belém: Universidade do Pará
Nesse ponto, torna-se contagiante em Rilke, a crise da linguagem e do (Dissertação de Mestrado).
mundo na virada do século, que ficou escondido sob a recepção mística do
Stephens, Antony (2004), “Duineser Elegien”. In: Manfred Engel (Org.). Rilke
autor, até os anos de 1980. As Elegias de Duíno, se possível, deveriam ser Handbuch. Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart, Weimar: J.B. Metzler.
traduzidas integralmente de modo novo para o século XXI.
Fontes das ilustrações:
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Mendes. Belém: EDUFPA (2ª ed.) (Coleção Amazônica).
(Tradução: Rosanne Castelo)
De Man, Paul (1999 [1979]), Allegorien des Lesens. Frankfurt A.M.: Suhrkamp (ES
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Hilbert, Klaus (2009), “Uma biografia de Peter Paul Hilbert: a história de quem
partiu para ver a Amazônia”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas (Belém), v. 4, n. 1, p. 135-154, jan.– abr. 2009.
Hörster, Maria António Henriques Jorge Ferreira (2001), Para uma história da
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Reinken, Liselotte von (1995/1983), Paula Modersohn-Becker mit Selbstzeugnissen
und Bilddokumenten. Reinbek B. Hamburg: Rowohlt (10ª ed.).

124 125
O tradutor: perfil e análise
Marie-Hélène Catherine Torres

Valéry Larbaud, no seu livro Sob a invocação de São Jerônimo afirma que
as alegrias e os ganhos que o tradutor consegue são dignos de inveja. Ele
ainda diz, e cito,
Eis um poema, um livro inteiro que o tradutor gosta, que ele leu 20 vezes
com prazer e do qual seus pensamentos se nutriram; e , este poema, este livro
representam para seu amigo, para as pessoas pelas quais tem consideração
somente preto no branco, pontos compactos e irregulares na página impressa.
“Aguarda um pouco”, disse o tradutor e ele começa a trabalhar. E, com sua
varinha, feita de um material preto e brilhante de prata, o que era uma triste
e cinza matéria impressa, ilegível, impronunciável, desprovida de significado
para o seu amigo, torna-se uma palavra viva, um pensamento articulado, um
novo texto, destacando sentido e intuição que estavam tão escondidos no
texto estrangeiro. Agora seu amigo pode ler esse poema, esse livro que você
ama tanto: não é mais um livro fechado para ele. Você que o faz visitar esse
palácio, o que acompanha em todos os recantos e cantos mais charmosos da
cidade estrangeira. Sem você, ele provavelmente não a teria visitado.

O tradutor tem, de fato, o poder de revelar o outro, o estrangeiro, e


isso, em todos os níveis da sociedade. Ao estabelecer uma relação interativa
entre as culturas, o tradutor ou perpetua a “tradição” ou a transgride com
a importação de palavras estrangeiras ou a criação de neologismos. Em
outras palavras, de acordo com as estratégias de tradução que o tradutor
adotar, as normas existentes, isto é, a assimilação do estrangeiro, será refor-
çada, ou ao contrário, haveria uma abertura para as inovações na língua e
cultura (TORRES, 2004).

127
O tradutor literário participa, consciente ou in conscientemente, idioma, ao traduzi-lo. Essa mobilidade, esse deslocamento, permite, sem
da luta pela visibilidade, do reconhecimento internacional da literatura. dúvida, um aumento do volume de traduções e uma diversificação espaço-
Dependendo da tradução, certa visão cultural e literária de um determi- temporal das mesmas. Não significa que as literaturas nacionais e os mode-
nado sistema será transmitida em detrimento a outra. los literários desapareceram, mas sim que competem com outras tradições
O poder do tradutor é tal que podemos tentar alguns questionamentos e modelos. Falar de mobilidade da literatura através das traduções, nos
a respeito do seu desejo de antropofagia e sobre os seus meios de anexar o leva ao conceito de desterritorialização da literatura, no sentido de que um
outro. Tal abordagem vai permitir posteriormente desenvolver um perfil do texto traduzido é um texto cortado do ambiente que o viu surgir e crescer
tradutor, com as devidas limitações espacio-temporais. A existência do tra- – sob a forma do texto-fonte – e também um texto projetado numa outra
dutor torna-se possível graças à sua visibilidade dentro do texto traduzido. cultura, especificamente para novos leitores para os quais o texto não foi
originalmente concebido. Anthony Pym considera a tradução como um
o tradutor é que antropófago? texto que muda em qualidade por se deslocar no espaço e no tempo.
Esse conceito de transferência espacial ou de desterritorialização da
A Teoria da Antropofagia é uma teoria brasileira interessante oriunda da literatura traduzida é essencial para apreender o conceito de apropriação,
busca de uma identidade nacional, a brasilidade, em reação contra a cultura
uma vez que partimos da hipótese segundo a qual um texto estrangeiro é
europeia importada no Brasil (BOSI, 2011, p. 402-7).
desterritorializado (Venuti) ou deslocado no tempo e no espaço (Pym),
Segundo Zilá Bernd (1995, p. 77-81), no Manifesto Antropofágico, o mito para depois ser traduzido por apropriação. Acreditamos que a teoria
do ritual antropofágico tupi foi usado como metáfora para o movimento antropofágica e o processo de tradução segue o mesmo processo, devorar,
antropofágico cultural, representando o ápice da busca de identidade no incorporar, digerir, para criar sua própria produção. O tradutor, portanto,
Brasil. É, conforme ela, “um retorno aos tempos inaugurais da nossa his- produz um outro texto – apesar de carregar a marca da identidade do texto
tória, ao paraíso mítico onde viviam os Tupinambá antes da chegada do original –, o texto traduzido transformado em energia criativa. O tradutor
Português”. Na verdade, Leyla Perrone-Moisés já havia clamado, há três é, portanto, um autor.
décadas, que o desejo de criar uma arte brasileira se voltou para a cultura Toda tradução é um ato antropofágico por absorção do texto-fonte e
indígena, temas de inspiração. Bernd também acrescenta que, seja no ritual criação do texto traduzido, cada tradução sendo única no sentido em que
Tupinambá ou entre os antropófagos modernos, a devoração não era gene- é produzida por um tradutor específico, num determinado momento. É ao
ralizada, mas praticada a partir de alguns critérios de seleção. Assim como confrontar textos traduzidos por tradutores diferentes, correspondendo ao
o “selvagem” que devora o inimigo, mas não qualquer inimigo, um ini- mesmo texto-fonte, que se pode estabelecer como os tradutores traduzem,
migo valente e que se distingue por suas qualidades guerreiras, o absorve ou seja, qual o grau de antropofagia cometido.
e o digere para incorporar suas virtudes, o escritor brasileiro faz o mesmo Portanto, se toda tradução é um ato antropofágico, cada uma será:
através do ritual da antropofagia cultural. Frente à cultura do outro, o escri- – Ou naturalizada, ou mais naturalizada (o que podemos chamar de antro-
tor brasileiro terá o mesmo comportamento: devorar a cultura estrangeira, pofagia etnocêntrica)
a absorver, a digerir, para restaurar seu próprio patrimônio cultural. “A
– Ou exotisada ou mais exotisada (o que podemos chamar de antropofagia
devoração proposta pelos novos antropófagos devia atender a certos crité- inovadora)
rios de maneira a digerir somente o necessário, e para que o devorado não
faça sucumbir o devorador por indigestão”. – Ou um compromisso entre naturalização e exoticisation (o que podemos
chamar de antropofagia intercultural).
A partir daí, partimos da hipótese segundo a qual qualquer tradução é
antropófaga. Eis o nosso raciocínio: Todo tradutor se apropria do texto tra- Mas, ainda há questionamentos como a maneira do tradutor revelar
duzido, ou seja, torna o texto-fonte apto a ser lido em outra cultura, outro o estrangeiro.

128 129
2. o papel do tradutor é o revelar línguas e duas tradições culturais. O tradutor, de acordo com Toury, está
ou de anexar o estrangeiro? frente a duas escolhas preliminares possíveis. Toury (1980, p. 115-7) afirma
que o tradutor opera, desde o início, uma escolha básica, isto é, ele segue
Segundo nossa hipótese, a naturalização e a exoticisation de um texto lite- uma norma inicial (1995, p. 56-7), que o coloca frente a duas escolhas.
rário se refere à teoria da adequação e da aceitabilidade dos descritivis- Se, por um lado, o tradutor se sujeita ao texto-fonte, a sua tradução
tas como Toury. Na verdade, quando num texto traduzido, personagens, seguirá as normas do texto-fonte e também as normas da língua e da cul-
lugares, instituições, costumes e tradições estão adaptados à cultura do tura do texto-fonte. Trata-se, de acordo com Toury, de uma tradução ade-
leitor da tradução, estamos diante de uma naturalização do texto. Neste quada do texto-fonte. É o que ele chama de ‘tradução orientada para o
caso, no texto traduzido, o narrador tenta minimizar a distância entre o texto-fonte. Por outro lado, se o tradutor segue as normas do sistema de
mundo ficcional estrangeiro e o leitor, já que o mundo ficcional apresen- chegada, no qual o texto é traduzido, sua tradução será uma tradução acei-
tado parece com o seu. tável em relação à língua e à cultura do sistema de chegada. É o que Toury
Ao inverso, se há elementos de cultura específicos, ou seja, elementos chama de tradução orientada para a cultura de chegada. Mas acrescenta
que fornecem informações sobre uma cultura, sobre características sociais que, em geral, as decisões tomadas pelos tradutores revelam ser uma com-
do texto-fonte, o texto traduzido seguiu um processo de exoticisation, binação ou um compromisso entre as duas escolhas alternativas iniciais.
promovendo certa inovação da língua (por exemplo, a criação de neolo- É possível verificar como os tradutores traduziram, ao analisar especifica-
gismos), bem como a expansão do horizonte cultural do país de chegada, mente elementos culturais encontrados nas traduções (expressões idiomá-
razão, a nosso ver, sine qua non do traduzir. ticas, nomes próprios, topónimos, marcas de oralidade...).
Outras terminologias são usadas pelos críticos. Lawrence Venuti (1995,
p. 81), para o qual as traduções são inevitavelmente naturalizadas, distin-
3. como fazer o perfil de um tradutor?
gue “domesticação”, redução etnocêntrica do texto estrangeiro aos valores
culturais dominantes, e método de “estrangeirização”, que leva em conta as De acordo com as premissas da teoria descritiva da tradução, a análise
diferenças linguísticas e culturais do texto estrangeiro. José Lambert (1980, parte do texto de chegada, isto é, do texto traduzido, uma vez que a obser-
p. 252) afirmava, usando outros termos, que, dependendo das circunstân- vação realmente começa por lá (TOURY, 1995, p. 36). Este procedimento
cias, o texto traduzido poderia ter uma função exotizante (importação permite evitar as análises prescritivas para estudar as traduções o mais
não velada), uma função tradicional (submissão às convenções da litera- objetivamente possível pelo que elas são e pelo que elas representam no
tura de chegada) ou uma função a-simétrica (a natureza convencional não sistema cultural de chegada.
podendo ser atribuída nem à literatura de chegada nem de partida). Uma das principais vantagens do estudo da literatura traduzida a partir
Portanto, para superar uma deficiência terminológica antiga – a ques- de bases conceituais descritivistas, conforme Lambert e van Gorp no texto
tão da escolha inicial do tradutor já era discutida há exatamente dois sécu- “ao descrever a Tradução”, é superar a visão tradicional dos problemas de
los por Schleiermacher (1999, p. 300-1), que percebia dois métodos possí- tradução, tais como: “por que as pessoas traduzem?”, ou “a tradução é fiel ao
veis, um segundo o qual o tradutor traduz como se o autor tivesse escrito original?”; “tal tradução é uma boa tradução?”. A abordagem descritivista, ao
na língua traduzente e, outro método, onde o tradutor tenta comunicar contrário, permite concentrar-se em questões como quem traduz? como?,
seus conhecimentos da língua de origem, ao deslocá-los até o lugar que qual é o status de traduções em um tal sistema cultural e literário? ou ainda,
ocupa e que lhes é estrangeiro – trabalharemos com a hipótese de natura- qual o conceito de tradução subjacente em determinado texto traduzido?
lização e da exoticisation. A teoria descritiva da tradução propõe estudar modelos, estratégias e ten-
A questão da escolha inicial foi também abordada por Toury, segundo dências seguidas por tradutores e permite estabelecer como os textos exis-
o qual a tradução é um tipo de atividade que afeta ao mesmo tempo duas tentes são traduzidos.

130 131
O uso da teoria da antropofagia, em complementaridade com a teoria de duas culturas, no espaço intercultural. Assim, ao contrário de Berman,
descritiva, é bastante inovador, pois nossa hipótese assume que todo tradu- que estabelece uma separação binária entre as duas culturas, Pym afirma
tor é um antropófago, em graus variados e, por extensão, que toda cultura não somente que os tradutores não pertencem a uma única cultura, mas
também é antropófaga, em graus igualmente variados. também que eles [os tradutores] são a intercultura.
Mas para compreender a lógica do texto traduzido o pesquisador se Levando em conta os critérios de Pym sobre a intercultura e o ques-
volta ao próprio trabalho tradutivo, e, além disso, ao tradutor (BERMAN, tionário do Berman, é possível estabelecer o perfil de tradutores de uma
1995, p. 72-3). Indo em busca do tradutor, Berman coloca claramente a literatura traduzida determinada, considerando o discurso implícito dos
questão: Quem é o tradutor? Para ele, essa questão tem um outro propósito paratextos – prefácios, notas do tradutor e outras introduções ou posfácios –
do que aquela dirigida a um autor (o que é o autor?). Afirma que a vida e bem como metatextos – notas e glossários – e de outros textos escritos pelos
os humores de um tradutor não nos dizem respeito. É importante saber, de tradutores. Todos estes documentos são preciosas fontes de informações.
acordo com Berman, o seguinte: Finalmente, todas as informações sobre a vida dos tradutores, de
acordo com Pym, podem ajudar a melhor compreender e apreciar as deci-
– Se o tradutor é francês ou estrangeiro;
– Se é somente tradutor ou se exerce outra profissão; sões e estratégias de tradução utilizadas. Mas, para tanto, é necessário que
– Se o autor e quais suas obras? o tradutor seja visível.
– De quis línguas traduz?
– Se é bilíngue?
– O (s) tipo (s) de obras que ele traduziu; 4. é possível que o tradutor seja invisível?
– Se escreveu sobre sua prática tradutiva? o best-seller em tradução
– Se traduziu com outros tradutores (tradução a “quatro mãos”)?
Venuti, que dedica um capítulo inteiro ao best-seller no seu livro Escândalos
Anthony Pym (1998, p. 160) tem uma visão completamente oposta à da tradução, afirma que a publicação/tradução de um best-seller depende
do Berman porque vê os tradutores como pessoas de carne e osso, como do sucesso comercial destes na cultura de origem, esperando assim renovar
seres humanos e não como figuras do discurso que produziram uma tra- e perpetuar performances similares. O best-seller beneficia, de fato, de uma
dução. E, portanto, contrariamente a Berman, Pym argumenta que certos grande difusão, de publicação com grandes tiragens, para alcançar o maior
detalhes da vida privada dos tradutores podem ser relevantes para explicar número possível de leitores. É por isso que, de acordo com Venuti, as elites
o que foi feito no campo da tradução. Por outro lado, segundo Pym, os culturais consideraram os best-sellers como uma literatura popular e barata.
tradutores são raramente tradutores profissionais, vivendo apenas de tra- A abordagem do editor de best seller é principalmente comercial e até
duções, pois a maioria exerce outra profissão. Isto é de acordo com Pym mesmo imperialista, de acordo com Venuti, no sentido de que se espera que
uma vantagem, porque um tradutor que só vive de suas traduções seria a tradução fortaleça os valores literários, morais, religiosos ou políticos do
muito mais dependente das estruturas estabelecidas (prazos, exigências do leitor. Para Venuti, as traduções confirmam a regra estabelecida por Pierre
editor, etc.), o que restringiria de certa forma a sua capacidade de traduzir. Nora sobre o best-seller inesperado, isto é, a transgressão, impactando sobre
Uma das questões fundamentais de Pym é saber como alguém se torna um público para o qual não foi escrito originalmente. O público é hetero-
tradutor. Será porque é bilíngue? Este critério, segundo ele, não afeta o fato gêneo, mas o best-seller traduzido implementa estratégias discursivas, de
de que geralmente alguém se torne tradutor porque mantém uma relação acordo com Venuti, que poderão atingir uma massa importante de leitores.
emocional com uma determinada cultura ou um autor específico. O tra- O sucesso do best-seller depende, diz ele, da identificação do leitor com
dutor traduz porque sente um prazer em traduzir, em revelar um outro. os personagens que evoluem numa problemática social contemporânea. O
A hipótese de Pym é a intercultura, que explícita que a nacionalidade do texto traduzido deve criar um mundo que o leitor reconhece. Outros cri-
tradutor não importa, porque, segundo ele, o tradutor está na intersecção térios para o sucesso do best-seller, tal como a simplicidade da linguagem,

132 133
das imagens estereotipadas e a identificação clara dos personagens, permi- BOSI, Alfredo (2011) História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix.
tem que o leitor aceda ao mundo imaginário do texto, porque os valores CASANOVA, Pascale (2002) A república mundial da letras. São Paulo : Estação
que os personagens representam e divulgam são óbvios e conhecidos. Pas- Liberdade, 2002. Tradução de Marina Appenzeller.
cale Casanova (1999, p. 173) acrescenta a importância do público-alvo, um LAMBERT, José (1980) «Production, tradition et importation : une clef pour la

público internacional. Segundo ela, os editores norte-americanos têm pro- description de la littérature et de la littérature en traduction». In: Revue
Canadienne de Littérature Comparée, Numéro Spécial La Traduction.
curado o segredo do novo bestseller internacional, ou seja, normas estéti-
Toronto: University of Toronto Press.
cas em vigor (até do século passado) e certa visão de mundo ocidental. De
PERRONE-MOISÉS, Leyla (1982) «Anthropophagie» In Magazine Littéraire, n. 187.
acordo com ela, trata-se dos mais difundidos critérios comerciais.
PYM, Anthony (1998) Method in Translation History. Manchester: St Jerome.
E para atingir um público tão heterogêneo, Venuti parte da sensação
______. (2010) Exploring Translation Theories. New York: Routledge.
de prazer produzida pela identificação dos leitores com os personagens e
TORRES, Marie-Hélène Catherine (2004). Variations sur l’étranger dans les lettres.
situações da narrativa. Para procurar esse prazer, disse ainda que a narra-
Arras: Artois Presses Université.
ção deve ser imediatamente compreensível, ter uma linguagem simples,
______. (2011) Traduzir o Brasil Literário. Paratextos e discurso de acompanha-
uma sintaxe contínua e um léxico familiar. É essa simplicidade da lingua- mento. Volume 1. Tradução do francês de Marlova Aseff e Eleonora Castelli.
gem, sintaxe, vocabulário, que leva Venuti a falar de traduções fluentes, nas Copiart: Tubarão.
quais se percebe o efeito de transparência em relação ao original. Para obter TOURY, Gideon (1980) In Search of a Theory of Translation. Tel Aviv: Porter
tais traduções, diz ele, os tradutores utilizam estratégias adequadas, sintaxe Institute.
linear, significado claro, uso comum e consistência lexical. Os tradutores ______. (1995) Descriptive Translation Studies and Beyond. Amsterdam/
evitam, de acordo com ele, as construções não idiomáticas, a polissemia, os Philadelphia: John Benjamins.
arcaísmos, jargões, ou qualquer palavra que atraia a atenção do leitor. Estas VENUTI, Lawrence (1995) The Translator’s Invisibility. London/New York:
traduções em ‘linguagem fluente’ favorecem a familiaridade à linguagem, Routledge.
tornando-a invisível. A naturalização destas traduções neutraliza, a nosso ______. (1998) Translation and Minority, revue the translator.
ver, a cultura estrangeira. ______. (2002) Os Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Bauru, SP:
EDUSC, 2002. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela,
A invisibilidade do tradutor e da transparência da tradução, como o
Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo.
mostra Venuti, parecem ser as palavras de ordem das traduções de best-
sellers que nos ajudaram aqui contra ponto, um exemplo extremo da morte
do tradutor. Seu estatuto [do tradutor] só depende, como já vimos, das
escolhas feitas. É um intermediário cultural de peso. Seu poder, manipula-
dor ou não, é o poder supremo, o das palavras.

referências bibliográficas
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italiano e renascimento). Florianópolis: NUT-NUPLITT, 2004-2010.
BERMAN, Antoine (1995) Pour une critique des traductions : John Donne. Paris:
Gallimard.
______. (2013) A tradução e a letra ou o albergue longínquo. Tubarão: Copiart/
Florianópolis: PGET, Tradução de Marie-Hélène Torres et alii.
BERND, Zilá (1995) Littérature brésilienne et identité nationale. Paris: L’Harmattan.

134 135
Literatura em trânsito: notas sobre edições,
coleções e antologias entre o Brasil e Argentina
Paloma Vidal

As relações literárias entre dois países se constroem hoje em dia de múl-


tiplas maneiras: pela circulação de escritores em palestras, dentro e fora
da universidade, visitas e viagens, a convite ou não; circulação de livros e
textos, que passam de leitor em leitor, por recomendações, virtuais ou ao
vivo; traduções, de livros ou trechos de livros, feitas por iniciativas pessoais
e também institucionais, publicadas em papel ou na rede; revistas literárias
e culturais que promovem a literatura de outro país, em dossiês, traduções,
artigos, também em papel ou virtuais. São fatores diversos que foram e
são mapeados pela sociologia da cultura e da literatura. Do meu ponto
de vista, mais do que um mapeamento, embora uma tentativa de algo do
gênero não esteja excluída destas notas, gostaria apenas de indicar, pela via
de uma experiência de leitura e de escrita, algumas impressões sobre o que
circula no presente, em termos de crítica, literatura e tradução, entre Brasil
e Argentina, na última década.

**

Duas palavras são fundamentais, então, para começar: mapeamento


e impressão. A ideia de um mapeamento parece sempre trazer consigo a
de uma representação, o mais fidedigna possível, de algo que está na reali-
dade. Ele está do lado da objetividade, dos dados, das medidas; neste caso,
da possibilidade de fazer um mapa a partir dos dados que temos sobre as

137
relações literárias entre Brasil e Argentina. Um mapa que trabalha, de saída, No meu caso, como eu disse, mais do que um mapa se trata de uma
com os mapas dessas nações, seus estados, suas fronteiras, suas dimensões; impressão. A impressão, talvez, poderia fazer uma espécie de ponte entre
e, consequentemente, que tem como perspectiva fundamental a ideia de o objetivo e subjetivo, na medida em que é algo que se imprime a partir de
uma literatura nacional. Nesse sentido, há coisas interessantes sendo fei- dados do real, mas supõe um resto, aquilo que fica ou não, ou em maior
tas. Aqui no Brasil é possível citar a iniciativa do Itaú Cultural, através do ou menor grau, em que ela deixa sua marca. Nesse sentido, estas notas
projeto Conexões, criado em 2007, que, como diz a apresentação no site, estão inspiradas nas Impressões de viagem, livro que Heloísa Buarque de
“contempla um mapeamento inédito da presença da literatura brasileira Hollanda escreveu no final dos anos 80 sobre sua geração, tentando enten-
no mundo, seja na mídia, na pesquisa universitária ou no mercado edito- der os movimentos entre engajamento e desbunde. Penso, em especial, no
rial, além de realizar encontros de pesquisadores que trabalham com lite- emocionante prefácio de Chico Alvim:
ratura brasileira no Brasil e no exterior e produzir textos reflexivos sobre Viagem. Mais atraente do que chegar aos lugares é transitar entre um e outro.
as condições da literatura brasileira no exterior”; um outro exemplo, na Deixei-me onde parti. Intervalei-me.
Argentina, o livro Traducir al Brasil, de Gustavo Sorá, de 2003, que estuda Numa cabine de trem, com um projetor de slides: Duas telas: uma dentro, outra
quatro períodos importantes: o primeiro estende-se desde o século XIX até fora. A de dentro é uma tela escura, por trás da retina, onde o pensamento é
uma ideia de bruma. A de fora é a janela da cabine. A projeção é simultânea.
os anos 1930, quando se cristaliza a ideia de uma “auténtica cultura nacio- Nelas passa um país qualquer, que até pode ser este (9).
nal brasileña”, que inicia o segundo período; nessa primeira etapa veem-
se os vínculos estreitos entre diplomacia e tradução, o que resulta numa
atualidade das traduções: Esaú e Jacob, de Machado de Assis, por exemplo, *
cuja primeira edição é de 1904, foi traduzido para o espanhol só um ano
Com essa imagem das “impressões de viagem” em mente, em espe-
depois, em 1905; no segundo período, a tradução mostra seus vínculos com
cial nessa abertura do Chico Alvim, na ideia de uma bruma do pensa-
as políticas estatais e com as alianças políticas e ideológicas de esquerda,
mento, por um lado, mas também de um pensamento que se deixa atrair
vê-se, então, por exemplo, a tradução de “escritores regionalistas” do Brasil,
pelo intervalo, por uma indefinição dos lugares, gostaria de recuperar dois
o que reflete uma década fértil em regionalismos na literatura argentina,
momentos, duas viagens, que podem talvez falar algo, a partir de uma expe-
que proporciona um entorno cultural propício para receber essa literatura;
riência pessoal, dessas relações que estou começando a trabalhar: em 1997,
um terceiro período, que Sorá denomina mercantil, vai de 1945 a 1985 e eu estava no terceiro ano do curso de Letras e queria escrever um romance.
exibe a hegemonia do mercado na seleção e produção da tradução; mas Por algum motivo, que agora parece bastante claro, mas que naquela época
também a importância das leituras feitas pelos críticos do boom da litera- acho que era bastante nebuloso, decidi que escreveria o tal romance em Bue-
tura latino-americana, como a leitura que Angel Rama faz de Guimarães nos Aires, me enfurnando para isso no consultório psicanalítico da minha
Rosa, incluindo-o ao lado dos escritores hispano-americanos pela via da madrinha, nos horários vagos das consultas. Era um romance sobre uma
“transculturação”; por último, um quarto período, que Sorá denomina de mulher que estava passando por um luto amoroso que remetia ao luto pela
internacionalização, inicia-se em 1985, quando as relações entre a cultura morte da sua mãe. O romance não saía do lugar, então fui fazer uma oficina
argentina e brasileira resultam em grande parte da mediação de intercâm- com uma pessoa que tentou me ajudar, embora não falasse português. Pela
bios internacionais nas feiras de Frankfurt, das grandes editoras e dos cir- particularidade da situação, ela me recebia sozinha, e não junto com algum
cuitos legitimadores do mercado editorial internacional; aqui é possível de seus grupos, num apartamento que ficava dentro de um cortiço no cen-
citar, como exemplo, o fato de que as obras de Clarice até pouco tempo tro da cidade. Era a época do governo Menem, a decadência desse governo,
atrás chegavam à Argentina nas edições espanholas da Siruela, caríssimas. o que por incrível que pareça não é um oximoro: a Argentina estava mer-
Voltarei especificamente a isso mais adiante. gulhada na recessão e no cinismo. Esse prédio para mim naquela mesma

138 139
viagem encontraria seu correlato ficcional no livro Os fantasmas, de César Penso, de maneira um tanto óbvia, no “herói sem nenhum caráter”.
Aira, de 1990, livro que me foi dado como uma espécie de segredo compar- Mario, no seu primeiro prefácio a Macunaíma, fala de “trabalhar e desco-
tilhado por uma moça, também estudante de Letras, que fazia a oficina da brir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros”. Dessa peleja vem
Hebe Solves e que também era filha de psicanalistas. Quando perguntei a a conclusão de que “o brasileiro não tem caráter”. Trata-se de algo novo, diz
ela sobre a literatura brasileira na Universidade de Buenos Aires, ela me res- Mario. A novidade, como foi apontado por vários teóricos do modernismo
pondeu que não existia, muito menos a contemporânea. Essa moça depois brasileiro, é fazer de uma negatividade a afirmação; afirmar o negativo; da
foi morar nos Estados Unidos, como tantos outros da nossa geração que “desregionalização”, “desgeograficando”, que significativamente são fruto de
partiram entre o final da década passada e o início desta. estudos, pesquisas, leituras, surge uma cara para o Brasil, que a literatura
Em 2005, uma das minhas últimas atividades de “trabalho” antes do com orgulho cria. Mas, interessantemente, a pergunta fica em aberto: “Não
nascimento do Antonio, em setembro, foi receber a visita de uma douto- sei si sou brasileiro”, diz Mario no final desse texto. A pergunta é o que move.
randa de Princeton, amiga de um amigo, também doutorando em Prince- Ela insiste, ela se desdobra em vários prefácios. “Me parece que os melho-
ton, que por sua vez foi estudar lá por indicação da Florencia Garramuño, res elementos duma cultura nacional aparecem nele”, diz em outro. Há um
personagem importante deste relato. Cecilia Palmeiro tinha sido infor- duplo impulso o tempo todo, uma tensão, entre o próprio e o impróprio,
mada que eu podia indicar o caminho das pedras da literatura brasileira que de algum modo se sintetiza, embora Mario rejeite a palavra associada
contemporânea, agora não lembro por quem; mas lembro bem da ima- ao seu protagonista. Talvez, efetivamente, Macunaíma não seja uma síntese
gem dela diante da minha biblioteca tentando entender quem era quem enquanto representação: o herói sem nenhum caráter não representa o bra-
naqueles títulos e nomes; e eu improvisando um mapa, sobrepondo meu sileiro; mas o livro é uma síntese, poderíamos dizer, enquanto operação de
mapa ao dela, uma argentina ex-patriada, que queria fazer uma relação linguagem, filosófica, etnográfica; quer dizer, ao juntar num livro a fauna e
entre a literatura brasileira e a argentina via estudos queer. Ela saiu lá de a flora própria, via invenção; ou ao construir um herói indígena via os rela-
casa com uma pilha de coisas, livros, artigos, teses, entre elas a da Luciene tos de um explorador alemão, Mario opera sínteses entre o dentro e o fora,
Azevedo, que tinha defendido um tempo antes. Seguindo seu percurso, entre o presente e o passado, entre tradição e invenção.
Cecilia acabou escrevendo um livro chamado Desbunde y felicidad, que Isso ecoa América Latina afora. Borges, em “O escritor argentino e a
será publicado pela Eduerj, e que foi publicado na Argentina, onde ela vol- tradição”, insiste: o escritor argentino será sempre escritor e argentino, o
tou a morar com a onda de otimismo trazido pelo governo dos K. que significa um duplo deslocamento: 1. da tradição ocidental, da qual no
entanto faz parte e se alimenta. 2. da tradição argentina, que ele incorpora
** sempre através de uma elaboração literária, já distanciado dessa mesma
tradição. Assim é que a literatura argentina é universal e local, sempre; ela
Essas impressões, bastante afetivas, certamente, me remetem a uma é, aqui também, necessariamente, uma síntese. “Creio que nós argentinos,
descaracterização dos mapas: crise, estudos queer, argentinos desterra- e os sul-americanos em geral, estamos numa situação análoga; podemos
dos falando de Brasil via universidade americana, mas também contra a lançar mão de todos os temas europeus, utilizá-los sem superstições, com
universidade americana, fora das cronologias e das fronteiras dos estudos uma irreverência que pode ter, e já tem, consequências afortunadas”, dirá
comparados, porque certamente é sui generis o caminho feito por Cecilia Borges. A irreverência é o que produz a síntese, em Borges e em Mario.
Palmeiro quando entende os efeitos estéticos e político da crise de 2001 na Ela será retomada por Silviano Santiago para construir a ideia de um
Argentina via o desbunde brasileiro. Descaracterizar o Brasil e a Argen- entre-lugar da literatura latino-americana: “O escritor latino-americano
tina, talvez essa seja uma operação crítica interessante. Até que ponto? Até brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra”, diz no
onde se pode ir desfazendo essas fronteiras? É possível fazê-lo? De que célebre artigo. Depois fala em pastiche, paródia, digressão. E chega final-
modos? Com que objetivos? mente a Borges: “A presença de Menard – diferença, escritura, originali-

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dade – instala-se na transgressão ao modelo, no movimento imperceptível coleção é Em liberdade, de Silviano Santiago – único autor contemporâneo
e sutil de conversão, de perversão, de reviravolta. O escritor latino-ameri- que tem dois livros publicados nela, além de aparecer em diversos outros,
cano, nesse texto de Silviano do início dos anos 70, é antes de mais nada assinando ensaios críticos sobre outros autores, como nas edições Vidas
um leitor da tradição, mas um leitor irreverente, antropófago, como que- secas e A legião estrangeira. Florencia Garramuño, uma das editoras da
riam os modernistas. coleção junto com Gonzalo Aguilar, é uma leitora e difusora da obra de Sil-
É interessante ver como isso será relido pelo próprio Silviano alguns viano, desde sua tese de doutorado, feita em Princeton, chamada Genealo-
anos mais tarde. No texto “A ameaça do lobisomen”, para falar do escritor gías culturales. Argentina, Brasil y Uruguay en la novela contemporánea, em
latino-americano, Silviano se refere à “conquista de uma região mediana”. que a obra de Silviano é analisada junto com as de Juan José Saer e César
Embora o termo retome a ideia de um lugar intermediário que estava no Aira. Florencia leva adiante, com novas molduras teóricas, o trabalho de
texto do “entre-lugar”, a irreverência aqui ganha ares mais belicosos e, comparatismo e tradução. E essas molduras renovadas estão ligadas, como
quem sabe também, mais melancólicos: “Os latino-americanos sempre ela mesma propõe, num livro que sairá ainda este ano aqui no Brasil com o
vivemos no lugar da desordem nos encontros, nos encontros arruinados, nome Frutos estranhos, sobre a inespecificidade na estética contemporânea,
nos escombros catastróficos”. A leitura que Foucault faz de Borges serve a à possibilidade de imaginar, a partir da literatura e das artes visuais – e os
Silviano para mostrar os embates implicados na relação entre essa leitura exemplos incluem a narrativa de Bernardo Carvalho, as obras de Nuno
desconstrutora europeia e a escrita modernista latino-americana, o que no Ramos, a poesia de Carlito Azevedo – “coletividades ou comunidades que
texto de 1971 era apenas continuidade, naquele caso entre Barthes e Borges. são anteriores e se contrapõem às autorizadas pelo nacionalismo ou pelo
Aqui, aparece um recalcado, na forma do lobisomem excluído do Manual capitalismo e que podem encontrar nos estudos comparados o espaço pro-
de zoologia fantástica de Borges, a partir da qual Silviano debate o quanto dutivo do qual emergir, desmontando a restrita continuidade da tradição
dessa literatura modernista, na sua síntese do mesmo e do outro, serviu nacional e a reduzida relação entre literatura e território”.
para provocar o riso do pensamento europeu colonizador, “re-alimentando Pensando na coleção, me parece identificar uma proposta que res-
o esgotamento cultural e artístico do Ocidente europeizado”; ou seja, o que ponde a necessidades pedagógicas, ligadas à ação e às atividades de seus
era irreverência se mostra aqui como reverência, quando a literatura latino organizadores em instituições e cátedras: os livros são material de leitura
-americana serve à museificação europeia, que Silviano ilustra com a expo- para alunos interessados na literatura brasileira e, para isso, vêm acom-
sição em homenagem a Borges no Centro Georges Pompidou, em 1992. O panhados de um aparato crítico, que serve de introdução a essas leituras.
lobisomem é excluído do manual de Borges, segundo seu próprio prólogo, Então, por exemplo, na tradução de A hora da estrela, há um prólogo de
porque ele não vai tratar de lendas sobre transformações do ser humano. Gonzalo Aguilar, editor e também neste caso, como acontece em vários
Isso para Silviano fala de uma exclusão daquilo que é “o puro movimento outros livros da coleção, tradutor, intitulado “La intensidade de los perros
sem direção fixa”, “o movimento do devir outro que é dado, não como o um vagabundos: introducción a La hora de la estrela; e dois textos críticos: um
que é conjunção de dois, a priori morto, mas como ‘confusión ignorante’”. de Florencia Garramuño, intitulado “Una lectura histórica de Clarice”, e
Essa confusão é que deve ser evitada, “essa metamorfose ambulante”, essa outro de Ítalo Moriconi, “La hora de la basura”.
indefinição que não se define, ora homem, ora lobo. Borges não é queer. Numa entrevista sobre as traduções recentes das obras de Clarice
na Argentina, a partir da venda dos direitos para as editoras Corregidor
** e Cuenco del Plata, Gonzalo se refere à primeira recepção de Clarice na
Argentina: “A primeira leitura de Clarice foi ao princípio dos anos 70,
Para terminar, gostaria de falar sobre uma coleção de literatura brasi- quando a tradução de seus livros foi lançada segundo dois preceitos: lati-
leira na Argentina, chamada Vereda Brasil, que na última década publicou no-americanização e pertencimento ao gênero fantástico. A latino-ameri-
cerca de 25 títulos. Certamente não é à toa que um dos primeiros livros da canização, que se aplicava aos escritores brasileiros e de outros países do

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continente, orientava a leitura da narrativa como construção de identida- Traduzir: recordar o destino
des (sociais, políticas, culturais)”. Associada a outros escritores do boom,
especialmente Cortázar, Clarice foi lida como uma transculturadora, que Sabrina Sedlmayer
faria, mais uma vez, via literatura fantástica, a síntese entre o local da iden-
tidade latino-americana e os conflitos universais da literatura ocidental.
As edições de Clarice na coleção Vereda Brasil claramente procu-
ram fazer uma releitura de sua obra, que poderia ser pensada, segundo a
proposta de Gonzalo nessa mesma entrevista, como uma “máquina para
compreender, sentir e inventar uma política de afetos”. Interessantemente,
a palavra política vem associada aqui aos afetos. A combinação ganha sen-
tido no texto de Gonzalo que abre a edição crítica de La hora de la estrela.
Para falar dos diversos despojamentos da obra – Clarice despojada de sua
classe social, de seu gênero e da literatura mesma –, citando Deleuze, ele
se refere à “potência de um impessoal”. Os afetos politizam precisamente poema
pelo que têm de impessoal, distanciados dos sentimentos, mas também das
apreender
identidades. Nesse sentido, a escrita de Clarice é lida politicamente como ou absolutamente nada apreender ou apreender com louca
uma abertura, um abandono, um “despojamento absoluto”, um “cachorro intensidade
vagabundo”. “Sem destino, sem necessidade, a escrita da vida de Macabeia
transcorre na máxima precariedade, no fora mais absoluto”, diz Gonzalo. Por falta do principal
apreender desordenadamente, exageradamente,
Fica, quem sabe, a pergunta, como provocação: será preciso um olhar “de
fora” para ler esse fora, político e afetivo, em Clarice? Atordoar-me

Tornar-me insecto para melhor apreender


patas em gancho para melhor apreender
insecto, aracnídeo, miriápode, ácaro
se for preciso, para melhor apreender.

Este poema de Michaux, mudado para o português por Herberto Helder,


parece dizer menos da posse do que da maneira e gesto de aquisição do
apreensível. Lido como processo, e não resultado, os versos que reiteram o
esforço da captura podem também figurar o lugar do tradutor. Da mesma
forma que o aprendizado, a tradução não tem fim. Não há chegada, linha
reta, ponto principal, lugar certeiro: o exercício tradutório tange a partilha,
a participação, a posse em comum. Talvez por isso esteja ligada a certa
herança messiânica, “de que o estudo não só não pode ter fim, como tam-
bém o não quer ter.” (AGAMBEN, 1985, p.53).
O que se pretende pontuar aqui, neste texto, é não somente o que nos
lembra o pensador italiano Giorgio Agamben – todo problema do conhe-

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cimento é relacionado à posse, e todo problema de posse é um problema de A tentativa de conservação não impede que toda língua um dia perca
linguagem – , como também que a poesia, a tradução e o estudo, necessa- todos os seus sons, decaia e desapareça, assim como as letras caiam em
riamente encontram-se imbricados num ritmo que trafega entre o “nada” e desuso. Um grupo de falantes pode perder a capacidade de produzir não
o “loucamente”. Dito de outra forma, a tradução é uma questão de potência. apenas alguns, mas mesmo todos os sons e as letras. Todas essas assertivas,
Em “Ideia do Estudo”, Agamben esboça a tese que dará prossegui- já anunciadas melancolicamente em “Tabacaria”, de Álvaro de Campos,
mento, em momentos diferenciados e posteriores do seu pensamento, de são desenvolvidas com perspicácia por Daniel Heller-Roazen. Para este
que toda potência é ao mesmo tempo potência e impotência. Distingue, autor, uma língua nunca pode permanecer a mesma (tal como afirmara
assim, duas formas dessa categoria aristotélica: a passiva, paixão pura e infi- anteriormente Dante) e, sim, como “ecolalia”, ecos de uma outra fala e de
nita, e a activa, que se dirige a passagem ao ato. Sublinha como a etimologia algo outro que a fala, que guarda na memória, um balbucio indistinto e
de studium é capaz de aparelhar lado a lado as palavras estudo a estúpido. imemorial que, ao ser perdido pela criança, faz com que todas as línguas
Tornar-se inseto, miriápode, ácaro, para melhor apreender, apreender existam. Completa:
intensamente, desordenadamente, exageradamente, culmina, assim, em
Na passagem de uma língua para outra, algo sempre permance, menos que
outra estrofe de um verbo só, em primeira pessoa: “atordoar-me.” Vindo
não haja ninguém para se lembrar desse algo. Pois um idioma retém em si
de um poema que se intilula “Poesia” e de um autor como Michaux que, mais memórias que os seus falantes e, como uma chapa mineral marcada por
exemplarmente, apresenta em sua obra um passo tenso entre reminiscência camadas de uma história mais antiga do que aquela dos seres viventes, inevi-
e memória, a reiteração do verbo não é uma tarefa inocente. Ao procurar tavelmente carrega em si a impressão das eras pelas quais passou. Se as “lín-
desapreender o francês e fazer do exílio a verdadeira pátria da sua língua, do guas são os arquivos da história”, como Ralph Waldo Emerson escreveu, elas
carecem de livros de registros e catálogos. Aquilo que contêm pode apenas ser
seu estilo, o poeta belga alertou, ainda nas primeiras décadas do século pas-
consultado em parte, fornecendo ao pesquisador menos os elementos de uma
sado, como o alcance de um idioma só se dá quando é esquecido, quando a biografia do que de um estudo geológico de uma sedimentação realizada em
língua é exilada. “Atordoar-me” poderia ser lido, assim, como a estância da um período sem começo ou fim definido. Como as memórias múltiplas das
inspiração, de estufetamento. E a reiteração do verbo apreender poderia ser origens indistintas e imemoriais invocadas pela narrador quase sem nome de
uma espécie de método ou, como prefere Starobinski, uma marca do estilo, Em busca do tempo perdido, os vestígios do passado são sobrepostos uns aos
outros, com uma densidade e uma complexidade frequentemente impenetrá-
já que todo estilo é redundância (STAROBINSKI, 1970, p.258).
veis. Na língua, como na mente do protagonista, o presente invariavelmente
Redundância, no seio da reflexão sobre o tema da tradução, é uma abarca resíduos estratificados de um passado que, quando examinado, remete
palavra preciosa pois, distinta de repetição, possui em seu elemento de para além do indivíduo que o desvela (HELLER-ROAZEN, 2010, p.67)
composição o”und”, antepositivo do latim, unda, que significa água em
movimento, onda, que abunda. A tradução é um gesto abundante. O esquecimento pode ser deliberado, o seu objeto obliterado ou
Mas se este raciocínio nos leva, num primeiro momento, ao imaginário voluntariamente preservado em seu apagamento. Tomando como análise
de um manancial da memória, ao que Bacon comparou a um “rico guarda o verbo esquecer, Heller-Roazen recupera comentários de autoria de Karl
-roupa”, a um “armazém” e suas mercadorias acumuladas, a conexão estabe- Kraus quando estudou as anomalias linguísticas do seu tempo (neologis-
lecida entre tradução e história, para a tradição do Quatrocento ao Setecen- mos, solecismos e barbarismos), e, dentre elas, uma distorção na língua
tos, que tanto insistitu na memória como técnica de conservação (e que foi alemã: daran vergessen, algo como “esquecer em”. Neste curioso artigo de
laconicamente definida por Paolo Rossi em cinco verbos imperativos, “bus- jornal, datado de 1921, Kraus pontua como não se deve acreditar que a frase
car, encontrar, julgar, conservar, transmitir), vai impetuosamente contra esteja incorreta, pois:
ao que parece nos dizer as obras de Michaux, Helder e Agamben. Para tais as regras são derivadas de um sentimento em relação à lingua (Sprachgefuhl);
autores, o esquecimento, o olvido, a cesura, o apagamento e, principalmente, mas um sentimento mais elevado poderia ainda surgir de sua dissolução.
a noção de vestígio, são constituintes do gesto de apreensão e da memória. “Esquecer-se em” seria um exemplo extremo disso; e para uma discussão

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fundamental de tal possibilidade, pode-se levá-lo em consideração. A expres- A prática tradutória de Helder possui curiosas afinidades com a
são está relacionada a “lembrar-se”(sich daran erinnern, o termo alemão para maneira de Aby Warburg pensar a memória. Na recusa ao método esti-
“lembrar-se”significa literalmente “lembra-se em”) e em “pensar-se em”(den-
lístico-formal, no salto das falsas divisões, periodizações e hierarquias, na
ken daran), formas cuja negação não é considerada até o final, de maneira que
a dimensão positiva do termo “em” persiste, quando deveria, a princípio, desa- severa manutenção de uma “honesta repugnância” frente à história enten-
parecer completamente, junto com toda “rememoração”. (HELLER-ROAZEN, dida como continuidade, a obsessão pelo mito, o entrelaçamento entre
2010, p. 158) palavra e imagem, o logos da techné oposto à dimensão mitopoética, o
valor desmesmesurado à técnica da montagem, mas, fundamentalmente,
Esquecer em desafia a gramática já que o verbo não permite uma pre- a crença de que existe uma complexa e densa memória de imagens que
posição, distintamente dos outros verbos “lembrar-se em” e “pensar-se sobrevivem através de determinadas leis de recepção e transmissão, une as
em”. Pertinente seria recuperar um dos casos mais célebres de tradução da experiências de pathos de ambos.
França dos anos setenta do século passado, o do estudante estúpido que Movidas por um prazer deambulatório, amor projetivo, as traduções,
tentava “esquecer em” ou extrair da língua materna uma espécie de língua como a realizada no poema do Michaux, são descritas por Helder como
estrangeira. Denominava-se como “l’étudiant de langues schizophrénique”, alterações das línguas, “explosões velozmente laboriosas.” Parte considerá-
“l’étudiant d’idiomes dément“, “l’étudiant malade mentalment”, “l’e jeune vel da crítica helderiana já salientou a dimensão trans-histórica, não perio-
ome zqizofrène”. Louis Wolfson, que teve seu livro prefaciado por Deleuze, dológica do elenco de poetas traduzidos selecionados por uma espécie de
possuia um singular procedimento que consistia numa operação capaz de escolha ético-poética: Blake, Artaud, Hermann Hesse e Lawrence são tra-
converter a língua materna em outras frases estrangeiras ao mesmo tempo duzidos lado a lado aos poemas do Velho Testamento e do Egito Antigo.
semelhantes a ela no som e no sentido. Matar a língua materna, confeccio- Em todos os seus cinco livros de tradução, a saber, O bebedor noturno,
nar uma torre Blablabel, traduzir, reunir para depois desordenar a palavra Magias, Ouolof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda, acentua-se a
materna em outras línguas, era esse seu método. predileção pela escolha de culturas que sofreram abusivamente coloniza-
Mais uma vez as minhas reflexões desembocam no poema de Michaux, ção e cujos poemas são, no presente, uma espécie de Spuren (resto, rastro,
que, ao mesmo tempo em que atesta a sofreguidão do apreender, do gozo, vestígio), uma presença de uma ausência e ausência de presença. A atuali-
não ignora que o atordoado, o que se encontra perplexo, estupefato e em zação desses poemas seria, assim, a expressão simbólica de algo vunerável
estado de espanto, é suspenso da continuidade temporal. “Por falta do e parcialmente extinto.
principal”, aprende-se abundantemente. Ao ir contra o que seja moderno, racionalista, investigativo e utilita-
Radicalmente apartados da patologia do excesso do memorioso rista, Helder, como tradutor, considera “o espírito enfático da magia” e vai
Funes, os pensadores alemães Aby Warburg e Walter Benjamin se encon- longe, aos “recônditos do tempo”(Helder, 2001, p. 11). Maias e astecas, ou
tram na construção de uma ‘”iconologia do intervalo” que aposta na para- guaranis e koguis, além de se relacionarem de forma ritualística com a lin-
gem do movimento e do curso da história em oposição à temporalidade guagem, possuem uma noção de inocência cara ao poeta português. Numa
causal. Conhecida é a tese benjaminiana de que o passado possui uma curiosa autoentrevista, desvencilhando-se da influência do Surrealismo
(amplamente associado à sua poesia), sublinha:
carga explosiva que necessita ser salva no presente por uma dialética em
estado de suspensão. Sente-se um tremor secreto na palavra, desde a origem, desde as invocações e
Essas considerações, que merecem um comentário mais extenso e rigo- as imprecações dos feiticeiros, dos xamãs, dos hierofantes; esse tremor desapa-
rece de súbito e um dia reaparece; sempre assim ao longo da história da palavra;
roso, são trazidas a essa discussão apenas para sublinhar como o que pode
deve-se ao surrealismo, numa época sem tremor, ter dito que ele existia; alguns
ser a linha de força da prática do poeta português Herberto Helder, tradutor surrealistas, não muitos, nunca são muitos, tinham os pés colocados sobre a
de Michaux: Nachleben, a relação entre sobrevivência e transmissão. linha sísmica que atravessa a terra, e vê-se que tremiam dos pés à cabeça, a sua
palavra tremia na boca furiosamente enfática (HELDER, 2001, p. 11)

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Se por um lado podemos identificar uma linhagem sucessora dos Sobre os autores
românticos (ou órfica – ou xamânica, como preferem outros, fiel a essa
noção de chama que atravessa os tempos e é recebida e transmitida por
poucos), identifica-se, também, forma do pathos, uma história de fantas-
mas feita para pessoas adultas – como Warburg denominava a sua icono-
logia –, prenhe de tensões, e que compartilha a recordação do destino, a
transformação e metamorfose do passado no presente. E a tradução, por
este viés, seria uma lembrança do futuro.

referências bibliográficas Christiane Stallaert

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999. Professora do Departamento de Tradução e Interpretação da Universidade
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Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. versidade de Leuven, Bélgica.
HLLER-ROAZEN, Daniel. Ecolalias. Sobre o esquecimento das línguas. Tradução
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ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das Gunter Karl Pressler
ideias. Trad. Nilson Rolin. São Paulo: UNESP, 2010.
Professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Pará.
STAROBINSKI, Jean. Le style de l’autobiographie. Poétique. Revue de théorie et
d’analyse littéraire. Paris, n. 3, p. 257-265, 1970. Inês Oseki-Dépré
Professora Emérita de Literatura Comparada da Universidade Aix-Mar-
seille, França, e Tradutora.

Izabela Leal
Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Pará.

João Barrento
Ensaísta, Tradutor e Professor (aposentado) de Literatura Alemã e Compa-
rada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa.

Luis Maffei
Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense.

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Marcelo Jacques de Moraes

Professor de Literatura Francesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro


e Tradutor.

Mayara Ribeiro Guimarães


Professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Pará.

Marie-Hélène Catherine Torres


Professora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade
Federal de Santa Catarina.

Paloma Vidal
Professora de Teoria Literária da Universidade de São Paulo e Tradutora.

Sabrina Sedlmayer
Professora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universi-
dade Federal de Minas Gerais.

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