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L" . -'.' ,...- A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA
J~ Filosofia e/ou história? 21
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Edições Loyola
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DE PRÃTICAS SOCIAIS FI PRODUÇÃO DE SABERES 73
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ISBN: 85-15-02992-8
OLHARES E DIZERES .............. .. 97
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OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault
e Cornelius Castoriadis ... o •••••••••••••
..................... 109 RPRESENTRÇÃO
..... COMO NA OALA DO MAR. UM AOSTO DE AAEIA··
Notas sobre maio de 68 .. .......... ..... 115
apresentação ! 7
sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igual-
mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos
escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros,
mais específicos, realizam análises detidas sobre temas preci-
A TRAJETÓRIA DE
sos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão pro- MICHEL FOUCAULr
fundo e complexo quanto instigante.
A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitu-
ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes as-
Mas o que é filosofar hoje em dia (... ) senão o trabalho critico do
pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem
pensamento sobre o pensamento? Senão (... ) tentar saber de que
o leitor a seu respeito.
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em em vez de leptimar o que já se sabe?
muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível M. FOUCAULT, O uso dos prazeres, 13.
apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre-
sente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)
outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversifi- pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu primeiro grande
cação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura livro, e 1984, com seus últimos livros publicados. Os estudio-
desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar. sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com
certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três
Márcio Alves da Fonseca momentos. O primeiro, conhecido como período da "arqueo-
Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP logia", é voltado principalmente para questões relativas à cons-
tituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clí-
nica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber
(1969). O segundo mamemo, conhecido como períodó da "ge-
l
se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição
de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enu- 11
merar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças
sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como A FILOSOFIA COMO
indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro po- CRíTICA DA CULTURA
lítico, outro étic023 ; ou trata-se, como se exprime o mesmo Fou- Filosofia e/ou história?*
cault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e
o da conduta individual"24.
De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensa-
mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim
A título de introdução, lembremos um conhecido problema
expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensa- afrontado por Husserl e muitas vezes explorado por Merleau-
va antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si Ponty. Poderia receber ele formulações diversas, todas elas, po-
mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber rém, contrapondo dois pólos ou dois termos: trata-se do anta-
diferentemente do que se vê,,27. gonismo ou da correlação entre idéia e fato, ou entre essência e
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças experiência, ou ainda entre interioridade e exterioridade, ou mes-
compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode cha- mo entre subjetividade e objetividade, e que constituiria a base
mar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habi- do antagonismo ou da correlação entre o pensamento filosófi-
tual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e co e a elaboração científica. Esta, como se sabe, é uma questão
dispõe-se constantemente a se recompor. a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti-
cularmente das relações entre a filosofia e as ciências humanas.
Basta evocar, por exemplo, Le philosophe et la sociologie, Éloge de la
philosophie, Risumés de cours) como ainda os opúsculos Les sciences
de l'hommeet la phénoménologie e Le métaphysique dans l'homme. Ne-
22. Cf. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 11.
23. Cf. EWALD, F., "Michel Foucault", in O Dossier - últimas entrevistas, 71. * Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen-
24. BARBEDElTE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier- tada no V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó-
últimas entrevistas, 129. ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em
25. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis- Cadernos PUC, n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi
tas, 74. republicado com o acréscimo de "Discussão" em Epistemologia das Ciências
26. Ibid., 81. Sociais, (FAVARETIO, C. F., BOGus, L. N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos
27. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 13. pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.
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desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racio- suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alqui-
nal. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada mistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alie-
em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmuta- nadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des-
rá em doença mental. razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram
No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que cons- "portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da
tituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25.
razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que
data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga",
única administração estabelecimentos já existentes com fins mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral
diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abri- são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no
gava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher invá- horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamen-
lidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alema- te a cisura entre a razão e a desrazã0 26 •
nha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamen- É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão
to, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a
como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluís- loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isola-
sem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não da" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os
tinham propósito terapêutico: tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes
"O classicismo inventou o internamento um pouco como a Ida- grupos com que até então se avizinhava. A designação poste-
de Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por rior e moderna da loucura como alienação e depois como doença
estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu: mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso
são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se
médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste ges-
lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segrega-
to de banimento que abria espaços malditos. O gesto que inter-
na não é mais simples: ele também tem significações políticas, ra, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque
sociais, religiosas, econômicas, morais,>23. já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Moder-
nidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento,
Os "novos personagens" que ocupam esses estabelecimen- numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e
toS são apresentados em diversas passagens e em listagens mais da doença mental:
ou menos longas. Com base nessas várias referências, podem ser
"anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proi-
assim identificados: pobres, v~gabundos, correcionários, desem-
bições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensa-
pregados, jovens que perturbam o repouso da família ou dilapi- mento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo-
dam seus bens, devassos, pródigos, enfermos, libertinos, filhos
ingratos, pais dissipadores, prostitutas, homossexuais, mágicos, 24. Ibid., II 7.
25. Ibid., 1I9.
23. Ibid., 64. 26. Ibid., 117.
2. Ibid., 25.
9. CHAU1, M., "Ideologia e educação", in Educação e Sociedade, nO 5, 26. lO. Ibid., 27.
16. Ibid., 218. Ver, a este respeito, Surveiller et punir, 219-220. 19. lbid., 95.
17. Cf. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 211. 20. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfisica do poder, 145.
18. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 94-95. 21. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurzdicas, 96.
1.
espaço hospitalar como nas prisões, de modo a "cobrir o corpo pelos guardas, pelo diretor d3: prisão etc. Mas também é curio-
social por inteiro,,22.
so, a esse respeito, o exemplo particular do sistema escolar,
Foucaulr indica inclusive que foram as disciplinas corporais quando Foucault faz ver quanto ele é "inteiramente baseado
(particularmente as militares e escolares) que tornaram possível em uma espécie de poder judiciário", explicitando que nele "a
a elaboração de um "saber fisiológico, orgânico", um "saber so- todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica,
bre o corpo,,23. Mas indicar que o controle dos corpos engendra se diz quem é o melhor, quem é o pior,,27.
saber já é referir-se ao caráter polimorfo do poder disciplinar. Poder econômico, poder político, poder judiciário, o poder
instalado nas instituições disciplinares é também epistemológi-
Instalação de um poder polimorfo co, isto é, produz saberes. E os produz duplamente: quer extra-
O tipo de poder instalado por essas instituições é "poli- indo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indiví-
morfo" e, por isso, "polivalente"24, Isto é, ele se desdobra em duos 28 . Um exemplo de saber extraído dos indivíduos ocorre em
múltiplos caracteres que, esquematicamente, podemos desig- instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito
nar de econômicos, políticos, judiciários e epistemológicos. de seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constante-
O caráter econômico do poder disciplinar é evidente, por mente submetido à vigilância e ao registro, fornece elementos
exemplo, no caso das fábricas; pode também aparecer de for- para gerar saber acerca da produção. Por sua vez, saberes sobre o
mas menos diretas, como no pagamento feito a hospitais. Mas indivíduo nascem das observações, das classificações, das ano-
ao caráter econômico se atrela o político: "As pessoas que diri- tações a respeito do doente, do criminoso, da criança etc.
gem estas instituições se delegam o direito de dar ordens, de Em suma, e conseqüentemente, as instituições disciplina-
estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de expulsar indi- res fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente,
víduos, de aceitar outros etc.".25 Ambos, o econômico e o polí- não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e
tico, articulam-se a um caráter judiciário: "nestas instituições, personificado, mas é principalmente difuso, espalhado, minu-
não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não somente se cioso, capilar.
garantem funções como a produção, a aprendizagem etc., mas
***
também se tem o direito de punir e compensar, se tem o poder
de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento"26. É Para concluir, o acréscimo de uma observação. É de se no-
claro que o caráter judiciário é mais evidente no caso das pri- tar que, nas análises das instituições disciplinares, muitas são
sões, onde, depois de julgado por um tribunal, o indivíduo as passagens em que Foucault se detém particularmente nas
prisões. As conferências sobre A verdade e as formas jurídicas, como
continua tendo seu comportamento constantemente julgado
27. Ibid., 97. Ver, também, o estudo destes caracteres no capítulo intitu-
22. FOUCAULT, M., Surveiller et punir; 141. Ver, a este respeito, particular- lado "Le paroptisme", de Surveilleret punir; e, em Microfisica do poder; os artigos
mente todo o capítulo desse livro intitulado "Les corps dociles". "Soberania e disciplina" e "O olho do poder". Neste último (211-212), o
23. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfoica do poder, 148-149. realce da importância de um estudo sobre "a arquitetura institucional" ("da
24. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 96.
sala de aula ou da organização hospitalar"), ou a elaboração de uma "histó-
25. Ibid., 96. ria dos espaços" que seria também uma "história dos poderes".
26. Ibid., 97. 28. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 97.
1
já dissemos, tomam por base as práticas judiciárias, cuja histó- Assim, ao meSmo tempo em que é "diferente" das outras
ria, por certo, se vincula mais diretamente às prisões. O livro instituições, todas lhe são semelhantes. Por isso, de um lado,
Vigiar e punir, que focaliza explicitamente o estudo de institui- ela "inocenta" as demais, já que, afinal, só ela é prisão. (E o
ções, traz como subtítulo O nascimento das prisões. É possível que discurso que ela então emite seria: "A melhor prova de que
essa tônica ou esse realce se fundamente em dois aspectos que, vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição par-
ambiguamente, se completam. ticular, separada das outras ... ".) Mas, por outro, ela "se inocen-
Por um lado, há uma certa singularidade da prisão. É nela, ta" de ser prisão, pois, afinal, é apenas a forma mais transpa-
diz Foucault, que o "Panopticon" encontra "seu lugar privile- rente de todas as outras. (E o discurso que ela então emite seria:
giado de realização", é nela que "a utopia de Bentham pôde, "Eu faço unicamente aquilo que lhes fazem diariamente na fá-
num só lance, tomar uma forma material,,29. Tem, assim, a par- brica, na escola etc.".)34
ticularidade de concretizar o "panoptismo" da forma mais pal- Essa ambigüidade da prisão explica, para Foucault, "seu
pável. Além disso, e talvez por isso, entre as instituições disci- incrível sucesso, seu caráter quase evidente, a facilidade com
plinares, a prisão guarda certas peculiaridades: basta lembrar que ela foi aceita... "3S, explica "sua extrema solidez"36. E pode-
que, afinal, não faz parte da vida rotineira das pessoas e, atin- mos certamente completar: explica também, como que circular
gindo, efetivamente, um número reduzido de indivíduos, tem e reciprocamente, a aceitação cotidiana de sua diluição mais
uma marca "local e marginal,,30. E é assim, contudo, com esta sutil por toda a rede das chamadas instituições disciplinares.
marca, que a prisão desperta interesse ou curiosidade na maio-
ria das pessoas. Ora, segundo Foucault, isso talvez se explique
precisamente porque, entre as diversas instituições, é ela a úni-
ca "onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas
dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral".
Ou seja: "O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder
não se esconde, não se mascara cinicamente, se mostra como
tirania levada aos ínfimos detalhes, e ao mesmo tempo é puro,
é inteiramente 'justificado m31 .
Por outro lado, porém, a prisão também aparece como sendo
não mais que a forma "concentrada", "exemplar" e "simbólica"
de todas as outras instituições32 . Afinal, todas as outras institui-
ções realizam uma espécie ~e difusão discreta da prisão 33.
.....
VI
DE PRÁTICAS SOCIAIS À
PRODUÇÃO DE SABERES*
....
Pode-se dizer, de modo muito genérico, que os escritos de mos, a título de caso ilustrativo, a reflexão foucaultiana a res-
Foucault investigam a verdade e seus vínculos com o poder. peito de tais práticas l .
Mas pode-se igualmente dizer que não é da verdade e do poder Numa definição introdurória e geral, entende-se por práti-
que eles tratam. É que a verdade não é entendida enquanto cas jurídicas ou judiciárias "o modo pelo qual os homens po-
identidade de uma essência una e sempre a mesma, mas en- diam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a
quanto produzida no decurso da história, constituindo-se na maneira como se impôs a determinados indivíduos a repara-
formação de saberes reconhecidos como verdadeiros, portan- ção de algumas de suas ações e a punição de outras,,2. A des-
to historicamente múltiplos e diversificados; numa palavra, crição histórica empreendida por Foucault pretende então mos-
trata-se de verdades em seus diferentes modos de produção trar em que sentido modos práticos de estabelecimento da ver-
em diferentes sociedades. Do mesmo modo, não se trata do dade, de natureza jurídica, puderam vir a constituir como que
poder enquanto dominação central e unitária, mas de poderes modelos de produção da verdade no plano discursivo, isto é, no
ou de múltiplos modos de exercício do poder que permeiam plano dos saberes (ciências, filosofia etc.)3. O percurso da histó-
as diferentes sociedades em diferentes momentos históricos. ria que Foucault refaz começa na Grécia antiga e atravessa a
Assim, dizer que os escritos de Foucault concernem à verdade Idade Média, para centrar-se mais detidamente no período que
e ao poder significa que eles realizam investigações históricas vai desde os fins do século XVIII e início do século XIX até
que buscam descrever, em períodos determinados da história nossa contemporaneidade. Essa história pode ser lida e organi-
da cultura ocidental, modos de produção de saberes reconhe- zada em torno de três procedimentos ou práticas sociais de
cidos como verdadeiros e sua articulação com modos de exer- caráter jurídico: a prova, o inquérito, o exame.
cícios do poder.
Essa investigação histórica - mostra-nos Foucault - pode Prova e inQuérito
ser elaborada de modo direto e interno, isto é, percorrendo, por A prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais
dentro, a própria trajetória da constituição dos saberes (é esse, arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois (a partir do sécu-
por exemplo, o procedimento empregado em As palavras e as lo V a.c. aproximadamente) a prática do inquérito4 • Pela prova,
coisas, de 1966). Mas pode-se também realizá-la desde uma pers-
pectiva externa aos saberes, isto é, retraçando não o seu pró- 1. Servir-nos-á de roteiro, basicamente, o textO de cinco conferências
prio desenvolvimento, mas tomando como ponto de partida pronunciadas por M. Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
determinadas práticas sociais que, historicamente, engendra- Janeiro, reunidas sob o título A verdade e as formas jurídicas, trad. de Roberto
Machado e Eduardo]. Morais, em Cadernos PUC-RJ, Série Letras e Artes, 06/
ram saberes considerados verdadeiros. É esse o ângulo que aqui
74, n° 16, Rio de Janeiro, 1974. Posteriormente, este textO foi republicado no
nos interessa, ou seja, verific~r como, no decurso da história, Rio de Janeiro pela Nau Editora, em 1999. As referências das passagens aqui
certos procedimentos, certas práticas não-discursivas de esta- reproduzidas remetem àquela primeira edição.
belecimento da verdade puderam tornar-se matrizes ou mode- 2. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 8.
3. Ibid., 20-21.
los para a produção discursiva da verdade. Entre essas práticas, 4. Segundo Foucault, duas formas de prática jurídica marcaram a socieda-
Foucault dedica especial destaque às chamadas práticas jurídi- de grega antiga. Embora o âmbito desta exposição não comporte reconsticuí-
cas ou judiciárias. Para o propósito desta exposição retomare- las, vale assinalar a descrição dos elementos da prova e das características do
...
a verdade é judiciariamente estabelecida sem o recurso a teste- mecanismos bélicos (a rapina, a ocupação de uma terra, de um
munhas ou a sentenças: os adversários em litígio são literal- castelo etc.)'.
mente "postos à prova", numa espécie de jogo, de duelo ou de É na segunda metade da Idade Média (a partir de fins do
desafio, determinando-se a verdade pelo lado do vencedor do século XII e no decurso do século XIII) que o sistema da prova
risco; qualquer instância como um júri ou um juiz não tem tende a desaparecer, cedendo lugar ao que Foucault chama de
competência de decisão sobre a verdade senão apenas sobre o "uma espécie de segundo nascimento do inquérito", este agora
correto cumprimento das regras do jogo. No inquérito) ao con- de "dimensões extraordinárias", já que "seu destino será prati-
trário, a verdade é determinada por quem "viu e enuncia"s, ou camente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou
seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de ocidental'" e, de certo modo, "para a história do mundo intei-
opor-se ao poder dos governantes. Segundo Foucault, foi a ro, na medida em que a Europa impôs violentamente seu jugo
prática do inquérito que constituiu modelo para formações cul- a toda a superfície da terra"IO. Usado inicialmente nas esferas
turais então emergentes na Grécia antiga, tais como: "sistemas eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introdu-
racionais" (como a filosofia), a "arte de persuadir" (como a zido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como
retórica), conhecimentos empíricos, baseados que são em modelo de produção de verdade e de outras práticas. Eis, no
testemunhos (como os dos historiadores, dos botânicos, dos âmbito jurídico, os traços principais que desenham seu perfil:
geógrafos etc.)6. a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre
Na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente os oponentes, mas se impõe "de fora" e "do alto" por um poder
(entre os séculos V e XII aproximadamente), prevalece o pri- simultaneamente judiciário e político; aparece um personagem
meiro, o da prova, cujos traços principais podem ser assim reu- novo, o "procurador" do rei, representante do soberano, res-
nidos: tratava-se sempre de uma ação "de estrutura binária"7, ponsável por "dublar" a vítima, uma vez que o próprio rei é
isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de
postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro ele- crime como infração, porque um dano não configura mais ques-
mento que representasse a autoridade ou a coletividade; a ver- tão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas "também
dade se confundia com a vitória do mais forte, o direito cons- uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como
tituindo-se não numa correlação entre justiça e paz mas num
prolongamento ritualizado da guerra. Essa era a prática ade- 8. Ibid., 49. Eis alguns dos exemplos levantados por Foucault (cf 45-47)
de provas durante a Idade Média. Prova verbal: o acusado deveria responder à
quada ao perfil de uma sociedade de tipo marcadamente feu- acusação pronunciando certas fórmulas; pronunciá-las incorretamente (um
dal em que a circulação dos bens era assegurada menos pelo erro gramatical, uma troca de palavras) era prova de culpa. Prova corporal: o
comércio que pela herança, pelos testamentos e, sobretudo, pelos acusado deveria andar sobre ferro em brasa e se, dois dias .depois, ainda
apresentasse cicatrizes, era considerado culpado. Ou ainda: amarrava-se a
inquérito que Foucault, na segunda daquelas cinco conferências, reconhece mão direita ao pé esquerdo do acusado e se o atirava na água; se não se
em sua instigante leitura de Édipo-Rei. afogasse era porque nem a água o recebera e, portanto, era culpado; se se
S. Ibid., 41. afogasse, a água o recebera, e o acusado ganhava o processo.
6. Ibid., 42. 9. Ibid., 42-43.
7. Ibid., 47. 10. Ibid., 49.
.1
representante do Estado"; por isso mesmo é da competência do exercício do poder. É nesse quadro novo que se instaura o que
soberano o direito de impor penas e exigir reparações (freqüen- Foucault chama de "sociedade disciplinar", que é ainda a nossa.
temente na forma de "confiscos" que enriquecerão as monar- Do ponto de vista judiciário, as transformações acontece-
quias)11. É o funcionamento desse sistema que requer a neces- ram em dois níveis, com resultados diferentes. No nível teórico
sária argüição de testemunhas, a busca da reconstituição dos realizam-se, durante o século XVIII (principalmente com Becca-
fatos, enfim, a prática do inquérito como instrumento capaz de ria, Bentham e Brissot), reelaborações do sistema penal cujos
substituir o flagrante delito, reatualizando o crime quando o princípios básicos podem ser assim reunidos: primeiro, a infra-
criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta. ção não diz respeito à lei natural, religiosa ou moral e só se
Ora, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir configura como ruptura com a lei civil, que precisa, portanto,
dados são procedimentos que se estenderão para outras práti- estar explicitamente formulada; segundo, as leis civis, formula-
cas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do das pelo poder político, concernem apenas à sociedade civil, ou
saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente, melhor, ao que é socialmente útil; terceiro, o crime, não sendo
as ciências empíricas ou da natureza, em domínios "como o da falta moral ou religiosa, define-se como "dano social" e o crimi-
geografia, da astronomia, do conhecimento de climas etc.", ou noso como "inimigo interno" a ser, de algum modo, excluído
ainda da medicina, da botânica e da zoologia 12 • da sociedade; quarto, não compete à lei, por conseguinte, a
Enquanto o sistema da prova desaparece quase por com- prescrição de "vingança" ou a "redenção de um pecado"14, mas
pleto, dele restando talvez a prática da tortura (e mesmo esta a reparação do dano social; quinto, nessa direção, as punições
"já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de serão de quatro tipos possíveis, a saber, a deportação, a humi-
verificação"13), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e lhação pública, o trabalho forçado e a pena de talião.
se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do No nível prático, porém, as sociedades industriais nascen-
sistema jurídico de nossa sociedade. Porém, com a introdução tes vão adotar um procedimento penal que não estava previsto
de uma importante diferença: a partir dos fins do século XVIII pelos teóricos da lei e que vai estabelecer-se, portanto, "quase
e no decurso do século XIX, o modelo do inquérito é invadido sem justificativa teórica": trata-se do aprisionamento, tal como
por outro, este inteiramente novo - o exame. se instala a partir do século XIX, pois, como faz notar Fou-
cault, a prisão, que "não era uma pena de direito no sistema
Inquérito e exame penal dos séculos XVII e XVIII", é "que vai se tornar a gran-
No início do período que passamos a investigar, transfor- de punição do século XIX,,15. Na medida em que se generaliza a
mações fundamentais ocorreram: novas formas de práticas ju- prática do aprisionamento alteram-se radicalmente os princí-
diciárias, novas formas de estabelecimento da verdade, ou me- pios da legislação penal, cujos traços novos podem ser assim
lhor, de saberes considerados verdadeiros, novas formas de reunidos: primeiro, as leis tendem agora a ajustar-se menos à
utilidade social que ao indivíduo (o recurso cada vez maior ao
11. Ibid., 51-52.
12. Ibid., 59. 14. Ibid., 64-65.
13. Ibid., 59. 15. Ibid., 78.
1
que chamamos de "circunstâncias atenuantes", permitindo desaparecimento completo do modelo inquisitorial. Dele a dis-
modificações na aplicação estrita da lei, em função de situações ciplina faz uso e é ele que permanece no interior do sistema
individuais, é um exemplo desta mudança); segundo e correla- jurídico cujo discurso calca-se ainda no inquérito e organiza-se
tamente, elas buscam menos o "castigo" que o ajustamento do em torno das relaçoes de soberania (do tipo súdito-rei). Em
indivíduo à sociedade, isto é, "o controle e a reforma psicológi- suma, nas sociedades modernas encontra-se, por um lado, um
ca e moral das atitudes e comportamentos"; terceiro, por isso saber do direito articulado na esfera do inquérito e, por outro,
mesmo, enquanto a punição propriamente dita depende da exis- mecanismos ramificados de controles disciplinares, imbrican-
tência de lei explícita e concerne à ocorrência efetiva de uma do-se concomitante e complementarmente.
infração, o controle aringe não apenas o crime já cometido, Mas, se o modelo da soberania (e, portanto, o do inquérito)
mas a possibilidade de ser cometido, enfatizando então a no- permanece incorporado ao saber jurídico, isso não significa que
ção nova de "periculosidade". De ação assim ampliada, esse o modelo da disciplina (e, portanto, sob o do exame) não se
controle não pode ser assumido apenas pelo poder judiciário. tenham constituído outros saberes. A sociedade disciplinar, con-
Ele requererá a conjugação de outros poderes, "poderes late- trolando o tempo e o espaço dos indivíduos, examinando-os,
rais, à margem da justiça". São eles, basicamente, a polícia, para avaliando-os, classificando-os e registrando continuamente suas
a função de vigilância, e "toda uma rede de instituições" ("psi- condutas, constrói as condições para um novo modo de produ-
cológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas"), ção da verdade. É assim que, enquanto a prática do inquérito foi
para funções de correção 16 . modelo para o desenvolvimento das ciências da natureza, o
Mais, a esse âmbito de ação do controle já não basta o exame, ou a disciplina, abre espaço para o surgimento das cha-
inquérito. Ele se calca em outro procedimento. Foucault chama- madas ciências do homem.
o de exame. Enquanto o inquérito é um procedimento para se O estabelecimento da verdade pela matriz do exame não se
saber o que havia ocorrido, isto é, "reatualizar um aconteci- faz mais pela reconstituição de fatos nem na ordem dos teste-
mento passado através de testemunhos,,17, o exame é vigilância munhos, mas pela objetivação do indivíduo e na ordem do que
sempre atual e ininterrupta, importando saber não tanto o que é certo ou errado, permitido ou interditado, correto ou incorre-
"se passou", mas quais as virtualidades do indivíduo e como ele to, em suma, "normal" ou não. No mesmo quadro, simultâ-
presentemente se conduz. De modo genérico, pode-se dizer que, neos aos saberes disciplinares, instalam-se seus correlatos no
enquanto o modelo do inquérito é correlato de uma sociedade plano das instituições sociais: são as instituições disciplinares
comandada pela soberania do monarca, a disciplina é correlata - a prisão, a fábrica, a escola, o asilo, os hospitais psiquiátricos,
de uma sociedade comandada pela democracia burguesa. as casas de correção -, cuja finalidade não é propriamente a
Radicalmente heterogên~os, os dois sistemas mantêm, con- "exclusão" do indivíduo mediante sua "reclusão", mas, ao con-
tudo, certa articulação na sociedade contemporânea. Pode-se trário, precisamente sua "inclusão" como indivíduo, isto é, seu
dizer que na sociedade caracterizada pela disciplina não se dá o ajustamento, sua correção, seu adestramento. São saberes e
instituições que não se atrelam ao que é do estrito âmbito da
16. Ibid., 67-68. lei, mas à conduta do indivíduo no âmbito da norma. Foucault
17. Ibid., 69. faz ver, por exemplo, que, enquanto numa sociedade de tipo
j
inquisitorial "a individualização é máxima do lado em que se sura (da imprensa, das artes etc.) na história ainda recen-
exerce a soberania e nas regiões superiores do poder", numa te de nossa sociedade são indícios, talvez, de proximida-
sociedade de tipo disciplinar passa-se o contrário, isto é, a indi- de ainda com o modo do poder espetacular e repressivo
vidualização é "descendente", vale dizer, " à medida que o po- que caracteriza menos "a disciplina" do que a prova ou o
der se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre quem ele inquérito;
se exerce tendem a ser fortemente individualizados'1l8. • um sistema de governo no qual foi possível ocorrer o uso
Introduz-se assim, dentro dos quadros da sociedade discipli- ainda recente do confisco e em que a tônica da indivi-
nar, um modo de exercício do poder do qual uma descrição dualização recai tantas vezes sobre a figura expoente do
meramente negativa, espetacular e repressiva não pode dar con- governante traz indícios, talvez, de proximidade ainda
ta. É um poder sutil e produtivo: produz comportamentos e com as relações súdito-rei que caracterizam a sociedade
gestos; cria hábitos; não exclui, normaliza. comandada pela soberania.
.1
cia, as práticas judiciárias, o direito, a sexualidade, a literatu- sobre Kant (de 1961)3; a releitura (de 1971) das Meditações de
ra, as artes ... ). Descartes4 (em réplica tardia à crítica de Derrida); o ensaio so-
Segundo, variados são também os planos das abordagens. bre Nierzsche (de 1971)5; o esrudo mais recente sobre Kant (de
Ora mantêm-se na dimensão estrita dos discursos, e isso signi- 1984t De modo geral, trata-se de cursos, ensaios "avulsos",
fica no âmbito das epistémes ou dos espaços que demarcam as textos curtos e, em todo caso, em número reduzido.
possibilidades de configurações dos saberes historicamente qua- Todavia, a presença assídua das filosofias encontra-se nos
lificados, permanecendo, portanto, no interior das articulações escritos volumosos e de grande porre onde têm lugar, por as-
interdiscursivas. Ora se movem no trânsito entre a dimensão sim dizer, indireto, atreladas que estão ao assunto central da
discursiva e a extradiscursiva, e isso significa no âmbito dos respectiva investigação. Para mencionar algumas siruações par-
chamados dispositivos estratégicos, agregando, portanto, ao cam- ticularmente explícitas: a leitura comparativa entre Montaigne
po epistêmico práticas e instituições sociais. e Descartes, no capítulo II ("O grande enclausuramento") da
Terceiro, e mais genericamente, há diversidade porque Fou- primeira parte de História da loucura; ou as retomadas de Platão
cault realiza um peculiar cruzamento entre a atividade do filó- nos volumes II e III (O uso dos prazeres e O cuidado de si) de Histo-
sofo e a do historiador na medida em que, diferentemente da ria da sexualidade. Em todo caso, com diferentes intensidades e
prática filosófica de pensar a história, pensa filosoficamente extensões, as filosofias são protagonistas dos grandes livros de
história (História da loucura) Nascimento da clínica, As palavras e as
ao praticar a investigação histórica. Como escreveu um historia-
coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade).
dor, "seu pensamento se situa sistematicamente nas linhas
Para o primeiro modo de presença, tomemos uma análise
fronteiriças, nos limites, nos interstícios entre os gêneros"'.
textual que nos parece exemplar. Trata-se da réplica à crítica que
Entretanto, certa leitura das filosofias - se se quiser, em
Derrida endereçara à leitura foucaultiana de Descartes em História
sentido largo, certa história das filosofias - marca presen-
da loucura? Com efeito, no texto "Mon corps, ce papier, ce feu",
ça nos trabalhos de Foucault. Pode ser reconhecida de duas
maneiras, mas em proporções desiguais: convencionemos dizer
3. Comporta tradução e introdução a Kant, Antropologia do ponto de vista
que diretamente as filosofias comparecem com menor freqüên- pragmático. O texto de Foucault, datilografado, está incluído no acervo do
cia, indiretamente, quase sempre. Centre Michel Foucault e uma "Notice historique" está publicada em Dits et
écrits, I, 288-293.
••• 4. Sob o título "Mon corps, ce papier, ce feu", acrescentada à segunda
edição de Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, 1972.
Não muitos escritos se ocupam diretamente da abordagem 5. Cf "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", in Dits et écrits) lI, 136-156.
de filósofos. Para mencionar alguns: um estudo introdutório Incluído, em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., Microftsica M poder,
introd. e org. Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
sobre Rousseau (de 1962)2; a tese complementar de dourorado
6. Cf. "Qu'est-ce que les Lumieres?", in Dits et écrits) IV, 562-578 e 679-
688. Esta última versão, extraída do curso de 5 de janeiro de 1983, incluída,
1. DOSSE) F., Histoire du structuralisme. 11 - Le chant du rygne, 1967 à nos em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., O Dossier - últimas entrevis·
jours, Paris, Éditions La Découverte, 1992, 305. Tradução brasileira de Álvaro tas. Introd. e org. de Carlos Henrique Escobar. Trad. de Ana Maria de A. Lima
Cabral, São Paulo, Ensaio, 1994,274. e M. da Glória R. da Silva. Rio de Janeiro, Taurus, 1984.
2. Cf. "Introduction" a Rousseau, Rousseau)juge deJean-Jacques. Dialogues, 7. Cf. DERRlDA, J., "Cogito et histoire de la folie", Revue de Métaphysique
incluído em Dits etécrits, I. Paris, Gallimard, 1994, 172-188. etde Morale, oct.jdéc., 1963 n. 4, 460-494.
.........
Foucault realiza, com habilidade de mestre, uma reconstitui- tes, de Kant, de Husserl JJ1z ; não deixa de lembrar quanto Fou-
ção interna das Meditações, usando técnicas refinadamente rigo- cault suspeitava de uma «história da filosofia universitária"'3 e,
rosas e uma esmerada ordem de exposição. Compara, passo a no final, indica o trabalho foucaultiano como "um instrumen-
passo, os parágrafos (sobre o sonho e sobre a loucura) do texto to de renovação de uma 'história da filosofia' que seria aciona-
cartesiano e segue, em detalhe, o sistema que os opõé; remete da, enfim, com a morte da 'filosofia' tal como esta é ainda
a termos latinos e a suas traduções9; principalmente, faz ver a escolarmente entendida"'4. Se, em As palavras e as coisas) fizer-
necessidade de dupla postura de leitura demandada pelo pró- mos um levantamento geral na seqüência dos dez capítulos,
prio texto, isto é, enquanto sistema, certamente ("encadeamento acompanhando os três períodos históricos percorridos (renas-
sistemático de proposições))), mas também enquanto exercício, cimento, idade clássica, modernidade), veremos que são convo-
precisamente por sua natureza de "meditação"lO. Finalmente, cados, entre outros, e muitos deles numerosas vezes: Montaigne,
subverte a posição de defesa para instalar-se no terreno do opo- Descartes, Bacon, Berkeley, Condillac, Hume, Hobbes, Male-
sitor e apontar os defeitos que são dele, de seu crítico (no caso, branche, Espinosa, Rousseau, Locke, Montesquieu, Kant, Dil-
Derrida), na leitura do mesmo texto cartesiano: "omissão de they, Bergson, Leibniz, Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger;
elementos literais", "elisão de diferenças textuais", "apagamen- além disso, há chamadas à Logique de Port-Royal, aos ideólogos,
to enfim e sobretudo da determinação discursiva essencial (du- à fenomenologia, ao estruturalismo etc.
pla trama do exercício e da demonstração)"ll. Dessa relação apenas nominal, destaquemos algumas passa-
Consideremos a outra e mais freqüente maneira - a indireta gens e, preferencialmente, duas escolhidas entre aquelas que se
- de inserção das filosofias, tentando vasculhá-la um pouco no ocupam com momentos de limiares ou de transição entre os
enredo das investigações históricas períodos históricos investigados.
Tomemos As palavras e as coisas. Um artigo de G. Lebrun O capítulo III ("Representar"), que estabelece a ponte do
descreve-o como "um livro de combate" e "um livro filosófico", renascimento à idade clássica, depois de iniciar-se com a cativan-
que "contém ao menos o esboço de uma história da filosofia" te leitura sobre as aventuras de "Dom Quixote" (item I), passa a
e no qual encontramos "indicações para uma leitura de Descar- fazer falar os filósofos. A palavra de Descartes, principalmente,
compõe todo o teor do item II, para explanar o desmoronamen-
8. FOUCAULT, M., "Mon corps, ce papier, ce feu", in Histoire de lafolie, to da semelhança renascentista e a instauração da categoria clás-
588-590. sica da "ordem". No item I1I, a Logique de Port-Royal, Berkeley e
9. Ibid., 590-591. Condillac, para '(a representação do signo". O item N, "a repre-
10. Ibid., 593-597. sentação reduplicada", conta com a Logique e com Destutt de
11. Ibid, 599. A título de curiosidade, lembremos a publicação bem
posterior (Éd. Galilée, 1992) de outro texto, "Fazer justiça a Freud - A histó- Tracy. Para apresentar "a imaginação da semelhança", no item V,
ria da loucura na era da psicanálise", no qual, ao afirmar que evita o retorno
à discussão anterior, Derrida de certo modo a repete e propõe - agora acerca 12. LEBRUN, G., "Note sur la phénoménologie dans Les Mots et les choses",
de Freud, não de Descartes - "o esquema ou o espectro de uma problemática in Michel Foucault philosophe - Rencontre internationale)Paris, 9)10,11 janvier 1988.
análoga" ou de "uma questão semelhante". Cf. ROUDINESCO, E.; CANGUILHEM, Paris, Seuil, 1989,33.
G., MAJOR, R., DERRlDA, J., Foucault - Leituras da história da loucura. Trad. M. 13. Ibid., 38.
Ignes Duque Estrada, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, 55ss. 14. Ibid., 51.
•
lá estão Hobbes e Hume, e são evocados Descartes, Malebran- nhecimento que coloca para Kant o problema de saber o que é
che e Espinosa, assim como Condillac, Hume e Rousseau. a relação entre o sujeito moral e o sujeito do conhecimento,,16.
Bem mais adiante, o capítulo VII ("Os limites da represen- Importa observar que, para o filósofo investigador da histó-
tação"), que descreve as transformações ocorridas na segunda ria, não há desigualdade de importância nem de prestígio ou,
metade do século XVIII, traça agora a curva do classicismo para para empregar uma expressão de Roberto Machado, "diferença
a modernidade e assinala, em seu último item (VI. "As sínteses de nível,,17 entre a filosofia e outros saberes dos respectivos
objetivas"), a presença de Kant. Mostra a correspondência entre períodos históricos. Assim como o pensamento de Kant é ana-
o campo transcendental kantiano das condições de possibili- lisado em correlação com os saberes modernos "Sobre o traba-
dade do conhecimento e as categorias modernas de "trabalho", lho, a vida, a linguagem (economia, biologia, filologia), assim o
"vida", "linguagem": trata-se, sempre, de "transcendentais", com de Descartes com os saberes clássicos (análise das riquezas, his-
a diferença de que estas categorias situam-se do lado não do tória natural, gramática geral). Isso no que concerne ao âmbito
sujeito e do a priori, mas do objeto e do a posteriori, enquanto de articulações somente interdiscursivas. Mas observação se-
condições de possibilidade de conhecimentos objetivos (econo- melhante pode ser feita também a propósito das relações entre
mia, biologia, filologia). Kant será reintroduzido, longa e expli- a filosofia e práticas não-discursivas. Se tivéssemos tomado
citamente, nos capítulos IX ("O homem e seus duplos") e X outro exemplo, como é o caso de História da loucura, teríamos
("As ciências humanas"), quando também aparecerão, entre visto o tecido de relações entre o plano discursivo e o extradis-
outros, a fenomenologia, o positivismo, a dialética. Desenhar- cursivo, e certamente então reencontraríamos Descartes, agora
se-á, então, a configuração moderna dos saberes e, finalmente como o marco filosófico na partilha clássica entre razão e des-
- e é para onde todo o livro se dirige -, o lugar de surgimento razão, de que o Hospital Geral é o marco institucional.
das ciências humanas: elas emergem no entroncamento das Duas passagens extraídas do livro biográfico de Didier Eri-
dimensões positiva e filosófica dos saberes, elas se alojam na bon nos servem para retomar conjuntamente os modos de pre-
confluência, precisamente ou, melhor dizendo, ambiguamen- sença das filosofias que estivemos denominando direto e indire-
te, dos conhecimentos positivos com o pensamento filosófico. to, assim como para ilustrar a diferença entre eles.
Está bem claro que As palavras e as coisas, sem desconsiderar Para o primeiro caso, um trecho sobre as declarações de
outros filósofos, detalhadamente posiciona Descartes no limiar Foucault acerca de sua tese complementar de doutorado (que,
do classicismo como Kant no da modernidade 15 . Aliás, Fou- lembremos, se compôs de tradução e introdução à Antropologia
cault retomará, mas de modo genérico, em um texto escrito de Kant):
muito depois (originado em uma entrevista de 1983), essas duas
16. FOUCAULT, M., "À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du
pontas filosóficas daqueles períodos históricos: "Seguramente, travail en cours", in Dits et écrits, IV, 411. Veja-se também, no mesmo livro,
esquematizo aqui uma história muito longa, mas que perma- 630, já que se trata da mesma entrevista reproduzida com modificações. Em
nece fundamental. Após Descartes, tem-se um sujeito do co- português: Dossier, op. cit., 69. A entrevista também se encontra, em apêndi-
ce, no livro de RABINOW e DREYFUS, Uma trajetória filosófica - Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Fo-
15. Cf MACHADO, R, Ciência e saber - A trajetória da arqueologia de Fou- rense Universitária, 1995,278.
cault. Rio de Janeiro, Graal, 1982, 136-138. 17. MACHADO, R., op. cit., 137.
J
A filosofia. em toda parte como transgredir se as filosofias, como outros saberes e prá-
ticas, estão calcadas nos solos das épistemes e tecidas nas redes
Dize~ que as atividades filosóficas existem "em domínios de-
dos dispositivos?
terminados" e que o diagnóstico que elas realizam remete a "uma
Retomemos aqui, para nosso uso, alguns aspectos das con-
cultura" significa também que elas não configuram um "domínio"
siderações de Deleuze sobre o que é o dispositivo. O dispositivo é
específico, senão que se constroem no espaço relacionaI com o
"multilinear" e as linhas de que se compõe são linhas de visibi-
seu diverso, o seu outro, o seu fora, a não-filosofia Como diria
lidade e de enunciação, envolvem o ver e o dizer, as coisas e as
Merleau-poncy, a filosofia está em toda e em nenhuma parte.
palavras; são também linhas de forças e linhas de subjetivação.
"Assim, eu diria que é precisamente nos seus 'ensaios' para
Há "linhas de fuga" e "todas as linhas são linhas de variação".
abrir a filosofia ao seu fora que Foucault era filósofo - uma
22 Os dispositivos são "moventes". Comportam o arquivo, assunto
espécie de filósofo malgrado ele", escreve]. Rajchman • E o
da análise histórica, e o atual, assunto do diagnóstico. O atual é o
próptio Foucault, também em entrevista mais antiga (de 1966):
transformávet o ((devir-outro)~ aquilo em que nos tornamos.
"( ... ) Nietzsche multiplicou os gestos filosóficos. Interessou-se
Assim, em sua mobilidade, as linhas do dispositivo se repartem
por tudo, pela literatura, pela história, pela política etc. Foi
em "linhas de estratificação ou de sedimentação" e "linhas de
buscar a filosofia em toda parte. Com isto, mesmo se em certos
domínios permanece um homem do século XIX, genialmente atualização ou de criatividade"26.
antecipou a nossa época,>23. Por isso, essas histórias que inserem a urdidura das filoso-
Por isso, conjugar as filosofias a saberes e práticas não- fias nas tramas de objetos, saberes e práticas diversificados e as
filosóficos que compõem epistémes e dispositivos não é reduzir os situam como peças de dispositivos historicamente dominantes não
gestos filosóficos, é multiplicá-los. fazem, necessariamente, apenas atrelar as filosofias ao estabele-
cido. Abrem também a possibilidade do discurso de resistência,
A filosofia. palavra transgressora "que foge a toda conivência, um discurso não-cúmplice,m. Tra-
ta-se, se se quiser, de procedimentos que delineiam um modo
Pertencente ao seu tempo, o gesto filosófico pode ser tam- outro de história da filosofia como estratégia de criatividade na
bém capaz de excedê-lo. Em um texto de 1970, Foucault já contraface de dispositivos estratégicos estratificados.
aproximava os filósofos de "seus vizinhos, os poetas e os lou- Finalmente, reunindo as reflexões que acabamos de suge-
COS,,24. Em texto bem mais recente, Judith Ravel retoma essas
rir, poderíamos acrescentar: para que a filosofia possa ser um
"três figuras misturadas" - o poeta, o louco, o filósofo -, olhar atento sobre o presente, um pensamento sem morada,
reunindo-as sob a categoria da "palavra transgressora,,25. Mas
uma palavra interrogante, é preciso que ela seja -:- antes de tudo
22. RAjCHMAN, J., "Foucault: l'échique et l'oeuvre", in Michel Foucault e após tudo - exercício de vida, modo de existência.
philosophe, op. cit., 25l.
23. Cf. "Michel Foucault et Gilles Deleuze veulem rendre à Nietzsche
son vrai visage", in Dits et écrits I, 552. 26. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso·
24. FOUCAULT, M., "Le piege de Vincennes", in Dits et écrits, lI, 70. phe, 185-195.
25. RAVEL,]., "Sur l'Imroduction à Binswan~er (1954)", in Michel Foucault, 27. MOREY, M., "Sur le style philosophique de Michel Foucault ~ pour
lire l'oeuvre, diréction de Luce Giard, Grenoble, Ed. Jérôme Millon, 1992, 55. une critique du normal", in Michel Foucault philosophe, 144.
1
VIII
OLHARES E DIZERES'
olhares e dizeres j 97
j
Contudo, pretendo referir-me aqui a outros modos ou cri- nhecimento científico, desembocando nas chamadas ciências
térios de organização, que não se opõem ao mais usual e que, a humanas com sua característica normativa; no segundo, a aná-
meu ver, são aproximáveis entre si. Para isso, evoco três passa- lise dos "jogos de verdade" pelos quais o sujeito é constituído
gens, duas das quais recolho em Foucault e a terceira em Deleuze. como objeto de conhecimento, alojado, porém, no "outro lado
Já no "Prefácio" de As palavras e as coisas, de 1966 - antes, da divisão normativa". Pode-se ver, no primeiro caso, o sujeito
portanto, da produção chamada genealógica -, o próprio Fou- enquanto "distinguido por marcas e recolhido em suas identi-
cault propunha certa organização de seus escritos, e o critério era dades", de As palavras e as coisas. No segundo, trata-se do "dife-
então o da ênfase no Outro ou no Mesmo. Assim, enquanto Histó- rente", o louco, o doente, o delinqüente, de História da loucura, O
ri4 da loucura perguntava pela "diferença" que limita internamen- Nascimento da clínica, Vigiar e punir'.
te uma cultura, As palavras e as coisas, respondendo "como em Finalmente, e sempre no interior do mesmo "projeto geral",
eco", investigava a "proximidade das coisas"; enquanto História da aos dois primeiros tipos de análise seguiu-se o mais recente: in-
loucura "seria uma história do Outro" - daquilo que, em uma vestigar "a maneira como o sujeito faz a experiência de si mesmo
cultura, na nossa, "é ao mesmo tempo interior e estranho" -, As em um jogo de verdade no qual se relaciona consigo próprio"4.
palavras e as coisas "seria uma história do Mesmo" - daquilo que, Reunindo esta reconstituição às considerações do "Prefá-
em nossa cultura, preside "a ordem das coisas", podendo ser cio" de As palavras e as coisas, pode-se dizer que, na seqüência dos
"distinguido por marcas e recolhido em identidades"l. grupos de escritos, o fio condutor é sempre o das relações entre
Anos depois, na elaboração de um texto que tem por tÍtu- sujeito e verdade, tramadas nos jogos do Mesmo e do Outro.
lo o seu nome - um verbete para um Dicionário de filósofos, de Resta acrescentar que, quando os escritos se centram no Mes-
1984 -, Foucault reconstitui a organização de seus escritos e, mo, descrevem a epistéme, o círculo de uma época, o instituído,
de certo modo, retoma, como que obliquamente, aquele crité- o sedimentado. Quando se voltam para o Outro) realçam o dis-
rio usado no início de sua trajetória, o do Outro e do Mesmo. positivo, que tanto comporta a estratégia dominante como se
Reúne então, retrospectivamente, toda a sua produção sob o abre à possibilidade do novo, da resistência e da mobilidade.
que ele chama de um "projeto geral": investigar a experiência A aproximação dessas passagens, a mais antiga e a mais
histórica da constituição do sujeito nas formas diversas de sua recente, permite, por sua vez, ligar ambas a alguns aspectos da
subjetivação e de sua objetivação. E, como que atravessando leitura que faz Deleuze acerca do percurso foucaultiano. Os
este projeto, um "fio condutor": a questão dos "jogos de verda- três momentos desse percurso são por ele descritos em termos
de" ou "das relações entre sujeito e verdade"z. de "linhas" que compõem os diversos dispositivos analisados por
Dentro desse "projeto" e segundo esse "fio condutor", rea- Foucault. As mudanças entre eles são referidas como "crises",
lizam-se, no conjunto e no decurso de sua trajetória, dois mo- "desvios", "brechas", "linhas quebradas", "novas linhas" etcs.
dos de análise: no primeiro, a análise dos "jogos de verdade"
Dicionário de filósofos, trad. C. Berliner, E. Brandão, I. Castilho Benedeti, M. E.
pelos quais o sujeito torna-se objeto de saber na forma do co- Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001, 388-391.
3. Ibid., 633.
1. FOUCAULT, M., As palavras e as coisas, "Prefácio", 13-14. 4. Ibid., 633.
2. Cf. "Foucault" in Dits et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994, 631-636. O 5. Cf. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?" in Michel Foucault philosophe
verbete "Foucault" pode ser encontrado na tradução brasileira: HUISMAN, D., - Rencontre Internationale, 1988, 185-195, que retoma, particularmente, o capítu-
•
quiser, no dispositivo instituído da sexualidade, verdade identi- Primeira situação
tária, essencial e universal. Por isso é que a "verdade" de si mes- 1. Na cena inicial, a câmera faz ver Brandon "transformar-
ma estaria perigosamente exibida em seu desnudamento, e por se" em rapaz; no corte de cabelos, nas roupas, nos geni-
isso também, é preciso que as luzes se apaguem. tais postiços, no disfarce do chapéu.
2. Na cena em que a personagem se instala na casa de Can-
• De Lana, sobre Brandon e sobre si mesma dace, a câmera faz ver seu corpo seminu, mas com a
Lana vê Brandon sem suspeitas e admite ver-se confusa. camisa cobrindo-o até as pernas; veste-se depois, de cos-
Eis um de seus dizeres: {(Também tenho sentimentos estranhos". tas, e comprimindo os seios.
Quando na prisão, afirma: "Não me interessa se você é meio
macaco. Vou tirá-lo daqui".
Nesse par de cenas) o personagem aparece como uma figu-
ra ambivalente, quase andrógina, é certo, mas meio caricata)
Quando se fecha no quarto com Brandon e a impede de
despir-se, declara, não sem alguma ambiguidade: cCDirei a eles o apenas uma espécie de falso artifício.
que querem ouvir. O que sabemos ser a verdade".
Em suma, esta é a única personagem com indícios de críti- Segunda situação
ca e sugestão de perplexidade. 1. Na cena em que Brandon se declara hermafrodita, come-
ça a insinuar-se no espectador uma dúvida sutil; na ex-
• De outras personagens, sobre Brandon pectativa de resolvê-la) só lhe resta (como, de resto, aos
Candace "descobre", nos objetos vasculhados) a verdade estupradores) que o personagem se dispa.
"encoberta". 2. Na cena do banho) após o estupro, a câmera percorre o
John e Tom localizam a marca da identidade no "nome" corpo, agora enfim nu; focalizando as curvas femininas
de Brandon, que, afinal, é Teena. E o nome, por sua vez, tem de coxas e quadris) parece finalmente fornecer ao espec-
que estar inscrito na carne. Assim, no dizer de Tom, ((só há um tador a informação aguardada, a mesma, aliás, de que
modo de saber a verdade", despir. E no de] ohn: "Só quero a verda- precisavam os estupradores.
de, seu mentiroso". Nesse par de cenas, tudo se passa como se a lente da câme-
Ao policial que a interroga, só interessa conjeturar sobre ra intermediasse entre eles, estupradores e espectador, uma in-
seu sexo e por que ('nunca fez amor antes do estupro~'. desejada cumplicidade.
Em suma, a verdade está na transparência do visto e na
unicidade do dito. Tudo o mais é de menor importância ou é •••
falso, simplesmente mentira. o filme traça "linhas de visibilidade e de em.mçiação", reve-
lando o circuito de condições dentro do qual somente alguma
• Da câmera e o do espectador sobre Brandon coisa como a "verdade" do sujeito é visível e enunciável. Indica
Para capturar o olhar da câmera - que conduz o do espec- "linhas de forças", as do poder que, ele próprio invisível e indi-
. tador - e os dizeres que o acompanham, proponho o destaque zível, entrecruza imagens e palavras, sustentando aquilo que
de quatro cenas, reunidas e contrapostas em dois pares. pode ser "distinguido por marcas e recolhido em identidades".
Em busca da filosofia
12. FOUCAULT, M. Prefácio a Herculine Barbin, O diário de uma hermafrodi· 14. FoucAuLT, M., História da sexualidade, 11 - O uso dos prazeres, crad. de
ta, trad. de r. Franco, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, 13.
13. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philoso· 15. FoucAuLT, M., "Pour une morale de l'inconfort", Le Nouvel Observateur,
phe, 191. abril/79, em Dits et écrits, IlI, 787.
o
IX
DEMOCRACIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de
Michel Foucault e Cornelius Castoriadis*
..I
Outros também cabem, talvez mais fundamentais. Pode-se pen- Para elaborar esse esquema, recorro a elementos extraídos
sar, por exemplo, que o esvaziamento conceitual não se deva das análises de dois pensadores contemporâneos, Michel Fou-
apenas à vulgarização do termo, mas à natureza mesma do con- cault e Cornelius Castoriadis. A partir de suas idéias, primeira-
ceito de democracia. Afinal, à democracia pertencem, como por mente darei realce a alguns aspectos, por assim dizer, mais es-
princípio, uma necessária flexibilidade e uma permanente curos de nossa sociedade, aqueles que a descrevem e denun-
incompletude, de modo tal que parece incompatível com esse ciam. E, em seguida, sempre a partir dos mesmos pensadores,
conceito que ele se substancialize em uma significação única e as luzes de algumas sugestões.
definitiva, recobrindo um sentido universal. Mais ainda, a essa
natureza de certo modo vaga vincula-se, complementarmente, o 1. Traços da atualidade
fato de se tratar de um conceito historicamente circunscrito,
Segundo Michel Foucaulr (1926-1984), o aparecimento da
portanto incessantemente construído e reconstruído. Não é pri-
sociedade moderna é assinalado pelo declínio de um tipo hege-
meiramente uma idéia, é antes uma prática, e são os modos his-
mônico de poder, o poder soberano, monárquico, e pela
tóricos de exercê-la que lhe conferem diferentes significados.
insralação crescente de outro tipo de poder por ele denomina-
Assim, retomando a expressão de um historiador helenista clás-
do «disciplinar" ou "de controle", "instrumento fundamental
sico, pode-se dizer que, desde o momento histórico de seu sur-
para a constituição do capitalismo industrial e da sociedade
gimento, na Atenas do século V a.c., a democracia seria «uma
que lhe é correspondente,,2. O poder disciplinar não é apenas
palavra oca" se não houvesse sido praticad4 pelas pessoas do povo:
repressivo ou ostensivamente opressor. Mais sutil, ele é "positi-
"Era também necessário, para que a democracia não fosse uma vo", isto é, "produz" comportamentos, hábitos, gestos, numa
palavra oca, permitir que as pessoas do povo, ocupadas em ga- palavra, adestra as pessoas. Não se exibe na identidade de um
nhar a vida, dedicassem seu tempo ao serviço da república"'. poder central e superior - como na figura do Estado soberano
- mas se espalha, anônimo, difuso, capilar, em práticas minu-
11 ciosas exercidas por todo o corpo social. Não se mantém numa
unidade, mas se exerce no plural - trata-se, antes, de poderes,
Da prática, pois, ao conceito, proponho considerar aqui
múltiplos, heterogêneos, móveis, enfim, micropoderes cujo fun-
um recorte histórico particular: o que demarca os contornos de
cionamento dá sustentação e eficácia ao macro poder estatal.
nossas socieda.des ocidentais modernas, que têm início por vol-
Vejamos agora algumas reflexões de Cornelius Castoriadis
ta do começo do século XIX e às quais, de alguma forma, ainda
(1922-1997). Em uma entrevisra radiofônica realizada em 1996,
pertencemos. Às características desse tipo de sociedade vincula-
pouco antes de sua morte, e em seguida publicada, o autor
se a construção das significações modernas de democracia. As-
explicita, em tom coloquial mas não menos denso, o uso que
sim, ainda que muito esquematicamente, tentarei delinear al-
atribui ao termo "insignificância" para caracterizar nossa épo-
guns sinais que marcam esse tipo de sociedade.
2. FOUCAULT, M., "Cours du 14 Janvier 1976", in Dits et écrits, Paris, Galli-
1. GLOTZ, G., A cidade grega. Trad. H. de Araújo Mesquita e R. Cones de mard, 1994, voI. IH. Tradução brasileira.: "Soberania e disciplina", in Microfoicado
Lacerda, São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1980, 105. poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 13. ed., 1998, 188.
...I.
ca. É a "insignificância" que, por um lado, distingue os políti- 2. Prospectivas
cos de hoje. Eles são descritos como "profissionais da política" Para Foucault, a todo tipo de poder responde um tipo de
ou Upolíticos de carteirinha"3. A democracia representativa "não resistência e de luta, na direção de mudanças. No caso de trans-
é uma verdadeira democracia. Seus representantes muito pou- formação da sociedade moderna, que é a do ripo disciplinar e
co representam as pessoas que os elegem. Primeiramente eles se de controle, não se terá bom êxito transformando do alto o
representam a si mesmos ou representam interesses particula- regime central de governo ou o aparelho de Estado, mas atuan-
res, lobbies etc." 4. do estrategicamente na trama molecular dos poderes sociais,
Quanto aos cidadãos comuns, por outro lado, é na estabelecendo "redes" dentro da rede do poder. Como os pode-
experiência de uma "contra-educação política" que a "insignifi- res, as lutas, para serem eficazes, precisam ser plurais, heterogê-
cância" os alcança. "Enquanto as pessoas deveriam habituar-se neas, móveis, provisórias, pontuais.
a exercer todas as espécies de responsabilidades e a tomar ini- De orientação similar, reproduzo algumas passagens de
ciativas, habituam-se a seguir opções que outros lhes apresen- Castoriadis.
tam ou a votar por elas. Como as pessoas estão longe de ser
"( ... ) e creio que só sairemos dele [do esgotamento ideológico]
idiotas, o resultado é que elas crêem cada vez menos e se tor- pelo ressurgimento de uma potente crítica do sistema e um re-
nam cínicas, numa espécie de apatia política"5. Há um "esgota- nascimenco da atividade das pessoas, de sua partici pação na coi-
mento ideológico", acompanhado de uma "disposição geral" sa comum. Dizer isso é uma tautologia, mas é preciso esperar, é
que é de "resignação", ou de "conformismo generalizado", de preciso confiar e é preciso trabalhar nessa direção"7.
"inibição" para agir6• "Mas, nesse momento, sentimos vibrar uma retomada da ativi-
Mas essas análises de nossa sociedade não se reduzem a dade cívica. Aqui e lá começa-se, de algum modo, a compreender
seu desenho austero. Cada qual dos dois pensadores descreve e que a 'crise' não é uma fatalidade da modernidade à qual seria
denuncia o presente com o intuito de questionar nossas evi- preciso submeter-se, 'adaptar-se' para não incorrennos em alguma
dências de pensamentos e nossas aderências de condutas e, a espécie de arcaísmo. Coloca-se, então, o problema do papel dos
cidadãos e da competência de cada um para exercer os direitos e
partir daí, delinear e anunciar um horizonte de transforma-
os deveres democráticos com a finalidade - doce e bela utopia-
ções. É dessa perspectiva que apresentarei, brevemente, a indi- de sair do conformismo generalizado."s
cação de algumas pistas.
Àquela "contra-educação política", Castoriadis opõe a boa "edu-
cação polírica" que se faz pela ariva participação das pessoas nas
3. CASTORIADIS, c., Post-scriptum sur l'insignifiance. Entretiens avec Daniel coisas comuns. E, apoiando-se na afinnação de Aristóteles - "cida-
Mermet. Paris, Éd. de l'Aube, 1998 .. Tradução brasileira: Post-scriptum sobre a
dão é aquele capaz de governar e ser governado" -, faz ver que nisso
insignificância, tradução Salma Tannus Muchail e Maria Lucia. Rodrigues;
apresentação Maria Lucia Rodrigues; prefácio Edgard de Assis Carvalho. São consiste a educação política: em aprender a governar, governando 9•
Paulo, Veras Editora, 2001, 27 e 33.
4. Ibid .• 29. 7. Ibid., 38.
5. Ibid., 30-31. 8. Ibid., 39.
6. Ibid., 38; 39; 47-48. 9. Cf ibid., 30; 40-44.
1
111
Finalmente, reúno os dois autores que escolhi como apoio, x
em uma idéia mais ampla. Casroriadis, no final daquela entre-
vista, usa a expressão "sociedade autônoma"IO e nos convida à
. COMO NA ORLA DO MAR,
difícil porém verdadeira democracia. Foucault, por sua vez, no
comentário de um texto de Kant l l , nos convoca à saída de um UM ROSTO DE AREIA"
"estado de menoridade') - que é aquele em que se é conduzido Notas sobre maio de 68*
por outrem - para o "estado de maioridade" - que consiste no
governo ou condução de si mesmo. Governo de si ou autonomia,
eis certamente, um norte para balizar nossas tentativas de exer-
cício democrático.
É um norte apenas. Mas suficiente talvez para nos predis-
por a certas condições indispensáveis se quisermos fazer de nossa
própria prática um lugar de transformações e de superação de Para situar Foucault relativamente a maio de 68, descrevo, bre-
nossas desesperanças. A partir das reflexões que fizemos, vemente, um fragmento de sua trajetória - de 1966 a 1970 _
algumas dessas condições podem ser identificadas: 1) dispor-se permitindo-me misturar considerações conceituais com curio-
à pluralidade de participações heterogêneas, flexíveis, móveis, sidades biográficas.
provisórias, pontuais, compondo pistas diversas que sejam ca- Depois dos já polêmicos escritos anteriores (principalmen-
pazes de convergir em alianças e pactos em nome de causas te História da loucura), em abril de 1966 é publicado As palavras
democráticas compartilhadas; 2) dispor-se à educação política e as coisas. O livro, que se mantém no estrito plano dos discur-
que propicie ao cidadão comum a aprendizagem de "governar sos, sem nenhuma articulação com a ordem das práticas so-
e ser governado", contribuindo assim para sacudir as apatias, ciais, desloca o homem do centro da história e da origem dos
abalar os conformismos, mobilizar nossas inibições. saberes. E se encerra com aquele prenúncio solene, meio tea-
Estas são, possivelmente, algumas predisposições que po- tral, um quase gesto, a apontar o iminente desaparecimento do
dem nos orientar rumo à maioridade democrática, cuja con- sujeito: "( ... ) então se pode apostar que o homem se desvanece-
quista é tanto mais alcançável quanto mais se praticar a auto- ria, como na orla do mar, um rosto de areia"1, A atmosfera
nomia de pensamentos e de condutas. intelectual da época - que precedia de perto 68 - deveria, su-
postamente, ser-lhe bem pouco acolhedora. Em u~a avaliação
J
retrospectiva, por ocasião de uma entrevista realizada anos mais "Repensando essa época, eu diria que, em definitivo, o que esta-
tarde (em 1978, publicada em 1980), Foucault realça algumas va em via de acontecer não tinha sua própria teoria, seu próprio
razões para um esperado insucesso. Depois de apontar motivos vocabulário. As mutações em curso produziam-se relativamente
de ordem mais teórica, como a supervalorização do marxismo, a um tipo de filosofia, de reflexão geral, a um tipo até de cultura
as resistências a certas aproximações com o estruturalismo e, que era, no conjunto, o da primeira metade de nosso século. As
em geral, todas as posições humanistas relativas ao sujeito, coisas estavam se desagregando e não existia vocabulário apto
para exprimir esse processo. Ora, em As palavras e as coisas, as pes-
sugere outros:
soas talvez reconhecessem como que uma diferença e ao mesmo
"E também, se quisermos, o fato de que não se podia levar muito tempo se revoltavam por não reconhecer o vocabulário do que
a sério alguém que, de um lado, se ocupava com a loucura e, de estava em via de acontecer (. .. )"6.
outro, reconstruía uma história das ciências de modo tão extrava-
gante, tão particular, em relação aos problemas reconhecidos No momento em que eclode maio de 68, é certamente esse
como válidos e importantes. A convergência desse conjunto de tipo de reconhecimento que está tão vivo no depoimento de
razões provocou o anátema, a grande excomunhão de As palavras Maurice Clavel: "Quando desembarquei em Paris, no dia 3 de
e as coisas por parte de todos: Les Temps Modernes) Esprit, Le NouveZ maio, comprei os jornais na estação de Lyon e, diante das man-
Observateur, da direita, da esquerda, do centro. Era pancadaria de
chetes sobre a primeira revolta estudantil, disse a minha mu-
todos os lados. O livro não deveria vender mais que duzentos
exemplares; ora, vendeu dezenas de milhares"z. lher, com uma calma, ao que parece, estranha, eis aí, aconteceu,
chegamos lá... 'Onde?', perguntou-me ela. Em pleno Foucault ...
Com efeito, "acontecimento editorial do ano, a melhor pois, afinal, As palavras e as coisas não era o formidável anúncio
venda do verão", sua repercussão foi "fulgurante"). Como lem- da rachadura geológica de nossa cultura humana, humanista
bra o biógrafo de Foucault, Didier Eribon, "segundo as descri- que havia de produzir-se em maio de 6S?"'.
ções publicadas pelos jornais da época, as pessoas lêem a obra Se foi possível dizer que se estava "em pleno Foucault", o
de Foucault na praia ou a exibem pelas mesas de bar para mos- próprio Foucault, contudo, não estava lá. Desde setembro de
trar que não ignoraram tal acontecimento,,4. "Foucault vende 1966, instalara-se em uma pequena cidade na Tunísia, como
como pãezinhos" é título de um artigo do momentos. Inusita- professor de filosofia. Uma passagem escrita em 1967 nos diz O
do êxito que Foucault, naquela mesma avaliação retrospectiva, que pensava ele sobre a Tunísia (e, por comparação, sobre o Bra-
tenta, um tanto genericamente, explicar: sil): "Eu viera por causa dos mitos que todo europeu, hoje em
2. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault" (com D. Trombado-
dia, tem sobre a Tunísia: o sol, o mar, a grande tepidez da
ri, Paris, 1978, publicada em II Contributo, n.l, jan.jmar.,1980, 23-84), in Dits África, em suma, viera buscar um retiro sem ascetismo. Na ver-
et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994,70. dade, encontrei estudantes tunisianos e então aconteceu o ines-
3. DOSSE, F., História do estruturalismo I, trad. de A. Cabral, São Paulo, Ed.
perado. Provavelmente foi só no Brasil e na Tunísia que encon-
Ensaio, 1993,367-368.
4. ERIBON, D., Michel Foucault) uma biografia, trad. de H. Feist, São Paulo, trei nos estudantes tanta seriedade e tanta paixão, paixões tão
Companhia das Letras, 1990, 160.
S. O artigo foi publicado em Le Nouvel observateur. Cf. DOSSE, História do 6. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault", in Ditsetécrits IV, 70.
estruturalismo, 367, e ERIBON, D., Michel Foucault, 159. 7. Cf. FOUCAULT, M., Dits et écrits I, "Chronologie", 32-33.
Para este livro já velho, eu devena escrever um novo prefácio. Confesso que
isto me repugna (. .. ). Quereria que um livro, pelo menos do lado daquele
que o escreveu, nada mais fosse que as frases de que éfeito; e que não se
desdobrasse neste primeiro simulacro dele mesmo que é um prefácio (. ..).
- Mas você acabou de fazer um prefácio.
- Pelo menos é curto.
M. FOUCAULT, Prefácio à nova edição de Histoire de la folie.
••• "( ... ) função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como
ele, por sua vez, a modifica. Pois, embora possa modificar a ima-
o segundo texto - A ordem do discurso (1970) - dá à noção gem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma
de autor um tratamento, por assim dizer, mais "negativo". O
assunto ocupa um breve trech.o lO, inserido na seqüência de des- 11. Os procedimentos ditos externos ou de exclusão - ~'proibição" de
certos discursos, "segregação" de outros, imposição da "vontade de verdade"
6. Ibid., 800·801 (trad., 50). - foram apresentados anteriormente. Entre os chamados internos, a descri-
7. Ibid., 801-802 (trad., 52-53). ção do "autor" é precedida pela do "comentário" e seguida pela da repartição
8. Ibid., 802·803 (trad., 54-57). em "disciplinas".
9. Ibid., 810 (trad., 69). 12. Ibid., 28 (trad., 26).
10. FOUCAULT, M., L'Ordre du discours, 28-31 (trad., 26-29). 13. Ibid., 30 (trad., 28·29).
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