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FOÜCAULT.
S1MPLESMENTE
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SRLMR TRNNUS
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LEITURAS CI~G FILOSÓFICAS

Aristóteles e o logos, Barbara Cassil1


Aristóteles no século XX, Enrico Berti
Da nahneza, José Gabriel dos Santos
Diálogos com a cultura contemporânea, W.M
Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo Perine
Filosofia a partir de seus problemas (A), 2" ed.,
Mario Ariei González Porta
Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8" ed.,
Rubem Alves
Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1
Foucault, simplemente - textos rennidos, Salma TamJUs Mucllail
Metáfora viva (A), Paul Ricoeur
\1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd
FOUCRULT,
l\'iilismo (O), Franco Volpi
Ofício do filósofo estóico (O), RacheI Gazolla
Ordem do discurso (A), 10" cd., Michell''oucault
SIMPLESMENTE
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa ·~2xtQS :-eL:f"":id:i5
Quc é a filosofia antiga? (O), Pierre Hadot
Razõcs dc Aristóteles (As), 2" ed., Enrico Berti
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.' ed.,
Giovallni Reale
Sete lições sobre o ser, 2" ed, Jacques Maritain
Sobre O político de Platão, Comeljus Castoriadjs PUCRS/BCE
Sócrates ou o despertar da consciência, fean-Toel Duhot
Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho, 1111111111111111111111
Carlos Arthur A. Nascimel1to 0.968.999-2
Transformação da filosofia, vol. 1, Karl-Otto Apel
Transformação clJ filosofia, vol. 2, Karl-Otto Apel
Vontadc de crer (A), William James
SUMRRIO

PREPARAÇÃO: Marcelo Perine


DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa
REVISÃO: Maurício B. Leal

Apresentação ................... . 7

P~CRS ' BIBLIOTECA "\ A TAAJETÓRIA DE MICHEL FOUCAULT .................. . 9

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L" . -'.' ,...- A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA
J~ Filosofia e/ou história? 21
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OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault
e Cornelius Castoriadis ... o •••••••••••••
..................... 109 RPRESENTRÇÃO
..... COMO NA OALA DO MAR. UM AOSTO DE AAEIA··
Notas sobre maio de 68 .. .......... ..... 115

MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO DO AUTOA ........... 123

BIBLlOGAAFIA ........... 133

o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento plural.


Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de
abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação cuidadosa para
que se possa enfrentar esta diversidade e, ao mesmo tempo, dar
conta de sua inventividade e de sua densidade conceitual. Por
outro lado, ao percorrê-los, o próprio pensamento é instigado a
tornar-se múltiplo e igualmente afinado com a inventividade e
o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter.
Em sua maioria são conferências, artigos e capítulos de livros já
publicados. Como reunião de textos dispersos, o livro compor-
ta suas próprias diversidades, não deixando de formar, no en-
tanto, uma unidade dotada de significado.
Relativamente às diversidades, trata-se, em primeiro lugar,
de um livro escrito em diferentes momentos. Os textos que o
compõem expressam a marca temporal dos momentos em que
foram produzidos, revelada por vezes na eleição dos Çlbjetos
tratados e, por outras, na contextualização das análises. Tam-
bém os temas discutidos são diversos. À semelhança dos escri-
tos de Foucault, a abordagem de temas como o ensino, a cultu-
ra, o poder, a história, a loucura, as instituições, a democracia,
a filosofia, não permite que se determine, para este livro, a pre-

apresentação ! 7
sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igual-
mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos
escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros,
mais específicos, realizam análises detidas sobre temas preci-
A TRAJETÓRIA DE
sos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão pro- MICHEL FOUCAULr
fundo e complexo quanto instigante.
A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitu-
ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes as-
Mas o que é filosofar hoje em dia (... ) senão o trabalho critico do
pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem
pensamento sobre o pensamento? Senão (... ) tentar saber de que
o leitor a seu respeito.
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em em vez de leptimar o que já se sabe?
muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível M. FOUCAULT, O uso dos prazeres, 13.
apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre-
sente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)
outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversifi- pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu primeiro grande
cação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura livro, e 1984, com seus últimos livros publicados. Os estudio-
desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar. sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com
certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três
Márcio Alves da Fonseca momentos. O primeiro, conhecido como período da "arqueo-
Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP logia", é voltado principalmente para questões relativas à cons-
tituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clí-
nica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber
(1969). O segundo mamemo, conhecido como períodó da "ge-

* Este texto é uma versão modificada de aula ministrada no curso


"Michel Foucault - Razão e Desrazão", na Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão, Belo
Horizonte, PUC/MG, v. 2, n. 1, fev. 1992.

8 I Foucault. simplesmente a trajetória de Michel Foucault I 9


nealogia", é centrado sobre questões relativas aos mecanismos centrada na descrição dos discursos, não porém quaisquer dis-
do poder e inclui os principais livros da década de 1970: Vigiar cursos, mas aqueles considerados científicos e, mais particular-
e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade, intitulado mente, os das chamadas ciências humanas ("o saber que se deu
A vontade de saber (1976). O terceiro momento trata de questões por domínio este curioso objeto que é o homem").
relativas à constituição do sujeito ético e inclui os volumes II e Observe-se que esta descrição histórica dos discursos não é
III da História da sexualidade, intitulados, respectivamente, O uso feita nem à maneira do "comentário", nem ao modo de uma
dos prazeres e O cuidado de si (1984( análise lingüística. O comentário é uma espécie de discurso se-
Tomando esta repartição como ponto de partida e roteiro, gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir
temaremos esboçar os traços que caracterizam esses três mo- alguma verdade implícita no dito explícito do discurso primei-
mentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen-
transcrição da seleção de passagens em que, a cada vez, o pró- contrada e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe, por ou-
prio Foucault declara suas preocupações e seus propósitos, fa- tro lado, que esta origem e este sentido - mais essencial e, ao
remos iniciar a abordagem de cada um desses momentos. mesmo tempo, mudo - de algum modo atravessam o sentido
explícito, nele dormitam, a fim de que possam ser trazidos à luz
••• pelo comentário. Supõe, pois, um conteúdo de significações
Em texto de 1968, assim descrevia Foucault os propósitos "já-dito" e, simultaneamente, "jamais-dito"3. Nas análises de
de suas primeiras investigações: "determinar, nas suas dimen- Foucault, ao contrário, os discursos são tomados em sua posi-
sões diversas, o que deve ter sido na Europa, desde o século tividade, como "fatos", e trata-se de buscar não sua origem ou
XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as
discursos científicos (... ) para que se constitua o saber que é regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas
nosso hoje e, de maneira mais precisa, o saber que se deu por mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim
domínio este curioso objeto que é o homem,,2. como as novas regras que presidem a formação de novos dis-
O primeiro momento de seus escritos tem, portanto, um cursos em outra época. A análise lingüística, por sua vez, diz
enfoque explicitamente histórico ("na Europa, desde o século respeito à língua como sistema formal que rege a formulação
XVII" ... até "o saber que é nosso hoje") e a preocupação está tanto de enunciados efetivamente realizados como a dos que,
em tese e em número infinito, poderiam vir a ser constituídos.
1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situações ocor- Já a descrição foucaultiana dos fatos discursivos se limita a enun-
ridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são ciados já formulados que compõem as formações discursivas, e
quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos, quer estabelecer não as regras formais de sua inteligibilidade,
aulas etc. que Foucault produzir~ e realizara em diversos países), e, ainda
mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no
mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade
Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos), do aparecimento, das transformações e do desaparecimento
cuja publicação foi iniciada em 1997.
2. FOUCAULT, M., "Resposta a uma Questão", Revista Tempo Brasileiro, 28 3. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu-
(Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar, ralismo e Teoria da Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes,
1972.79. 1971, 21; ver também L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, 36.

10 I Foucault, simplesmente a trajetória de Michel Foucault ! 11


de tais ou quais discursos, e não de outros, numa época dada e to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito da
numa dada sociedade, jogo este que é, portanto, variável num própria análise. "Nada me prova", diz Foucault, "que os reencon-
curso histórico marcado por diferenças e descontinuidades. trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)
Pode-se chamar a esse "jogo de regras" de epistéme de uma épo- ao termo da anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli-
ca, seu a priori histórico, ou ainda o solo onde são constituídas mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me
as formações discursivas historicamente realizadas e que com- prova que tal descrição poderá dar conta da cienrificidade (ou da
põem as diferentes configurações no espaço do saber. Assim é, não-cientificidade) desses conjuntos discursivos que assumi como
por exemplo, que em As palavras e as coisas as análises mostram ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre-
como na Europa dos séculos XVII e XVIII emergem determina- sunção de racionalidade científica"s A escolha do domínio, por-
das formações discursivas que vão constituir a gramática geral, tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio
a história natural e a análise das riquezas, enquanto no século escolhido. Trata-se tão-somente de "um privilégio de partida,,6.
XIX vão surgir a filologia, a biologia e a economia, de que as
primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo ou •••
conjunto de regras que, numa determinada época e para uma E contudo é um privilégio. Será nos escritos posteriores
determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como que se tornarão mais claros os motivos de semelhante eleição.
se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições isso se Em uma passagem de 1976, a respeito dos escritos do segundo
vincula etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: "O que
e o que deve ser excluído como desqualificável, eis o procedi- tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do
mento que Foucault chama de "arqueologia". poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon-
Mas não é, genericamente, de quaisquer discursos que tos de referência, dois limites: por um lado, as regras de direito
Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do que delimitam formalmente o poder e, por outro, oS efeitos de
saber considerado científico e, dentro dele, a região das chamadas verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez
ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação reproduzem-no,,7.
desse donúnio é uma escolha de certo modo hipotética, "uma Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre
primeira aproximação" ou "um primeiro esboço,,4. Trata-se de eles sobre "os que têm por domínio este curioso objeto que é o
uma circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por um lado, homem" - que melhor lhe permite trazer à tona "os mecanis-
a demarcação do domínio não limita o ãmbito de aplicabilidade mos existentes" entre exercícios de poder e produção de sabe-
da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em outros campos res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do
do saber. Por outro, essa de~arcação não pretende definir, salva-
guardar ou confirmar os contornos do próprio domínio escolhi- 5. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 53-54.
6. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutura-
do; pelo contrário, o campo do saber assim assumido como obje-
lismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43.
7. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder,
4. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu- trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,
ralismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43. 1979,179.

12 I Foucault. simolesmente a trajetória de Michel Foucault I 13


saber cujo terreno é mais movediço, mais claramente aberto a com a trama das instituições e práticas sociais, como faz prin-
combates e cuja história, por isso mesmo, pode ter mais "eficá- cipalmente em sua história do nascimento das prisões (Vigiar e
cia política"8. punir). Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção
Trata-se, agora, de evidenciar as articulações entre saber e mais complexa de "dispositivo estratégico", entendendo-se que,
poder, mediados, por assim dizer, pelo que podemos chamar enquanto a epistéme é também um dispositivo - ou, antes, um
de modos de produção da verdade. Por "verdade" deve-se elemento prioritariamente discursivo do dispositivo -, o dis-
entender não "o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou positivo, prioritariamente de natureza estratégica, envolve arti-
a fazer aceitar", mas "o conjunto de regras segundo as quais se culações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradis-
distingu~ o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efei- cursivos, tais como práticas jurídicas, projetos arquitetônicos,
tos específicos de poder"9. E, assim como a "verdade" de que se instituições sociais diversas. Quando Foucault passa a explici-
trata não é nenhuma essência universal, mas "regras" historica- tar esse momento de sua investigação, passa também a defini-
mente diferenciáveis, também o poder não deve ser compreen- lo menos como "arqueologia", para denominá-lo "genealogia".
dido como uma "idéia" ou uma "identidade teórica", mas como Assim, arqueologia e genealogia se distinguem ao mesmo
exercício, como prática, que só existe em sua "concretude", mul- tempo em que guardam, de certo modo, a mesma natureza e o
tifacetado e cotidiano 10. mesmo teor. Mais de uma vez Foucault afirma que os propósi-
Ora, compreende-se que é sobre os discursos científicos, e, tos explícitos nos escritos da fase genealógica já estavam pre-
particularmente sobre os das ciências humanas, que vai incidir sentes, mas não percebidos, nos primeiros escritos. Mas adverte
a investigação, uma vez que, se toda sociedade tem seu regime também que uma mudança ocorreu na condução das análises.
de verdade com efeitos de poder, em nossa sociedade a produ- "Enquanto a arqueologia", escreve ele, "é o método para a aná-
ção da verdade é regulamentada por regras que autorizam a lise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir
eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conse- da discursividade local assim descrita, ativa os saberes liber-
qüente exclusão de outros saberes, que qualificam os objetos tos da sujeição que emergem desta discursividade"l1. Poder-se-
dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições ia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na
apropriadas, e cujos efeitos de poder, particularmente no caso genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise
das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar. descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia constrói uma
Nesse momento de seus escritos, Foucault amplia o âmbi- política de resistência e de luta. A denominação "genealogia"
to das análises: de análises quase sempre mais preocupadas com será mantida por Foucault ao referir-se ao terceiro e último
discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento momento de sua trajetória. Mas com outras transformações.

8. FOVCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 154. ***


9. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 13. Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, assim
10. Ver, a este respeito, por exemplo, em Microftsica do poder:. "Introdu-
ção" (de R. Machado), XVI; "Verdade e poder", 6; "Os Intelectuais e o poder",
se exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: "Ten-
75-76; "Poder-Corpo", 149; "Genealogia e poder", 175; "Soberania e discipli-
na", 183-185; "O olho do poder", 221; "Sobre a história da sexualidade", 251. 11. FOUCAULT, M., "Genealogia e poder", in Microftsica do Poder, 172.

III I Foucault. Simplesmente a trajeto ria de Michel Foucault I 15


to responder a um problema 'preciso: nascimento de uma mo- A alteração na cronologia foi acompanhada por mudanças
ral, de uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga-
o desejo, o prazer,,12. ções será o sujeito, não porém como aquele "curioso objeto" de
Entre a publicação do volume I da História da sexualidade - um domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se
A vontade de saber (1976) - e a dos volumes II e 1II - O uso dos constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou-
prazeres e O cuidado de si (1984) - passaram-se oito anos. Neste tros, enquanto "sujeito do desejo"14, como espaço de referência.
intervalo, Foucault alterou radicalmente o plano inicial previs- Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos
to para a obra. Uma mudança importante ocorreu relativamen- códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini-
te ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores, doras do que é permitido ou interditado, mas a da conduta, do
continua a fazer filosofia fazendo pesquisa histórica. Mas ago- modo de comportar-se ou das posições em face de códigos e
ra a cronologia é outra. Até então as histórias que escrevera leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de "práticas de si",
atravessavam, quase sempre, um percurso que ia desde o final "técnicas da vida", "artes da existência"ls.
do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa Moder- Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação permite me-
nidade (séculos XIX e XX), com realce para a chamada Idade lhor aproximar dados da Antiguidade de problemas de nossa
Clãssica (séculos XVII e XVIII), buscando trazer à luz as trans- atualidade, mantendo, assim, a característica da genealogia de
formações que marcaram a passagem do Renascimento à Idade compreender o presente. A este propósito, eis algumas observa-
Clássica e, principalmente, as que assinalaram a passagem do ções de Foucaulr: "O que me impressionou é que na ética grega
final da Idade Clãssica à Modernidade, na direção, pois, de com- as pessoas se preocupavam com sua conduta moral, sua ética,
preender nosso presente. O projeto inicial da História da sexua- suas ligações com elas próprias e com os outros muito mais do
lidade anunciava um percurso histórico semelhante. Porém, que com problemas religiosos (... ). A segunda observação é que
a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou
como reconhece o próprio Foucault, a pergunta que ele então
pelo menos legal-institucional (... ). O terceiro ponto a observar
se colocou - "Por que tínhamos feito da sexualidade uma expe-
é que o que os preocupava, seu tema, era constituir um tipo de
riência moral?" - levou-o a procurar mais "atrás" pelo "nasci-
ética que era uma estética da existência". E as aproximações
mento de uma moral", detendo-se então na Antiguidade grega
que em seguida faz: ''(. .. ) eu me pergunto se nosso problema
e greco-romana, nos últimos séculos antes de Cristo e nos pri-
atualmente não é, de certa maneira, semelhante a este, desde
meiros séculos da era cristã 13 .
que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada
na religião, e nem quer um sistema legal que interfira na nossa
12. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis·
tas, org. de C. H. ESCOBAR, trad. Ana Maria de A Lima e M. da Glória R da
moral pessoal, privada (... ). Estou interessado nessa semelhança
Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75. de problemas"16.
13. Cf. BARBEDEITE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier-
últimas entrevistas, 136; R BELLOUR, "Um devaneio moral", in O Dossier - últi· 14. Cf. FOUCAULT, M., O uso do prazeres, "Introdução", 10-11.
mas entrevistas, 86; FOUCAULT, M., História da sexualidade, voI. 11, O uso dos praze- 15. Cf. ibid., 15.
res, trad. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, "Introdu- 16. DREYFUS, H. L. e RABINOW, P., "Sobre a genealogia da ética: uma
ção", 16. visão do trabalho em andamento", in O Dossier - últimas entrevistas, 43-44.

16 I Foucault. simplesmente a traietória de Michel Foucault I 17


Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica, Um segundo eixo desses escritos está em certo ângulo a
que o próprio Foucault faz questão de reconhecer. Aliás, ao pri- partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio-
meiro tópico da "Introdução" de O uso dos prazeres dá o título nam a "problematizações". Aliás, o segundo tópico da "Intro-
"Modificações". Em outra passagem realça essas diferenças, jun- dução" de O uso dos prazeres tem por título "As formas de proble-
tando sugestivamente as duas pontas de sua trajetória, da Histó- matização". Eis ainda uma passagem em que esse eixo comum
ria da loucura à História da sexualidade: "A propósito da loucura, é explicitado: "Em A história da loucura a questão era saber como
parti do 'problema' que ela podia constituir num certo contexto e porque a loucura, num dado momento, foi problematizada
social, político e epistemológico: o problema que a loucura co- através de uma certa prática institucional e um certo aparelho
locava para os outros. Aqui, parti do problema que o comporta- de conhecimento. Do mesmo modo, em Vigiar e punir, tratava-
mento sexual podia colocar aos próprios indivíduos (... ). Em um se de analisar as mudanças na problematização das relações
caso, tratava-se em suma de saber como se 'governava' os lou- entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti-
cos, agora como 'governar-se' a si próprio". E conclui apontan- tuições penitenciárias no fim do século XVIII e no início do
do para aproximações: "São, em resumo, duas vias de acesso século XIX. Agora, como se problematiza a atividade sexual?,,20.
inversas em direção a uma mesma questão: como se forma uma Os dois eixos comuns, por sua vez ~ o propósito de fazer a
'experiência' onde estão ligadas a relação a si e aos outros"l? história das relações entre pensamento e verdade e o ângulo das
Com efeito, na passagem dos momentos anteriores ao úl- problematizações~, articulam-se entre si, já que por "problema-
timo, as semelhanças também existem. E elas têm pelo menos tização" deve-se entender "o conjunto de práticas discursivas ou
dois eixos comuns. Primeiro, há, em todos eles, um mesmo não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro
propósito de base: escrever "a história das relações que o pensa- e do falso e a constitui como objeto para o pensamento JJ21 .
mento mantém com a verdade"18. Dito de outro modo, todos
•••
os escritos são sustentados por uma mesma pergunta de fun-
do: "Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser A partir daqueles eixos de aproximação pode-se, finalmen-
próprio a pensar quando se percebe como louco (A história da te, compreender a reunião dos três momentos da trajetória de
loucura), quando se olha como doente (O nascimento da clínica), Foucault em um mesmo conjunto, sem contudo escamotear
quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser traba- suas diferenças: o primeiro momento interroga o que habitual-
lhador (As palavras e as coisas), quando se julga e se pune en- mente se entende por "progresso do conhecimento", conduzin-
quanto criminoso (Vigiar e punir)? Através de quais jogos de do à análise das práticas discursivas constitutivas dos saberes
verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo reconhecidos como verdadeiros; o segundo interroga o que ha-
(História da sexualidade)?"!'. bitualmente se entende por "poder", conduzindo à análise dos
mecanismos de exercícios dos poderes relacionados à produção
17. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier - últimas entrevis- de saberes; o terceiro momento interroga o que habitualmente
tas, 76.
18. Ibid., 75. 20. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis-
19. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 12 (os títulos entre tas, 76.
parênteses foram acrescentados por nós). 21. Ibid., 76.

18 ! Foucault. simplesmente a trajetória de Michel Foucault I 19

l
se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição
de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enu- 11
merar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças
sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como A FILOSOFIA COMO
indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro po- CRíTICA DA CULTURA
lítico, outro étic023 ; ou trata-se, como se exprime o mesmo Fou- Filosofia e/ou história?*
cault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e
o da conduta individual"24.
De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensa-
mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim
A título de introdução, lembremos um conhecido problema
expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensa- afrontado por Husserl e muitas vezes explorado por Merleau-
va antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si Ponty. Poderia receber ele formulações diversas, todas elas, po-
mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber rém, contrapondo dois pólos ou dois termos: trata-se do anta-
diferentemente do que se vê,,27. gonismo ou da correlação entre idéia e fato, ou entre essência e
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças experiência, ou ainda entre interioridade e exterioridade, ou mes-
compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode cha- mo entre subjetividade e objetividade, e que constituiria a base
mar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habi- do antagonismo ou da correlação entre o pensamento filosófi-
tual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e co e a elaboração científica. Esta, como se sabe, é uma questão
dispõe-se constantemente a se recompor. a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti-
cularmente das relações entre a filosofia e as ciências humanas.
Basta evocar, por exemplo, Le philosophe et la sociologie, Éloge de la
philosophie, Risumés de cours) como ainda os opúsculos Les sciences
de l'hommeet la phénoménologie e Le métaphysique dans l'homme. Ne-
22. Cf. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 11.
23. Cf. EWALD, F., "Michel Foucault", in O Dossier - últimas entrevistas, 71. * Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen-
24. BARBEDElTE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier- tada no V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó-
últimas entrevistas, 129. ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em
25. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis- Cadernos PUC, n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi
tas, 74. republicado com o acréscimo de "Discussão" em Epistemologia das Ciências
26. Ibid., 81. Sociais, (FAVARETIO, C. F., BOGus, L. N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos
27. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 13. pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.

20 I Foucault. simplesmente a filosofia como critica da cultura I 21


les, o autot aborda aquela questão do ângulo das relações entre, preensão de outras situações e de outras formações culturais. Se
por um lado, a filosofia e, por outro, a psicologia, as ciências da nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o
linguagem, a história, a sociologia. Em quase todos esses en- único meio de acesso à compreensão de outras situações parti-
saios, retoma a questão desde onde Husserl a tinha levantado e culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian-
a conduz na direção da superação do impasse. Interessa-nos, para tes da nossa6• Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,
introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posi- pela qual vivenciamos uma "co-existência histórica"?, que impe-
ção a respeito da filosofia e da história. Primeiramente, Mer- de, por um lado, a submissão da história à força de uma lógica
leau-Ponty rejeita certas alternativas que confundem ou falseiam todo-poderosa e atemporal e, por outro, a sua redução a uma
O conceito de história e que fazem da filosofia e da história "tra- reunião de fatos circunstanciais e sem significação. Nessa medi-
dições rivais"l. Não há que escolher, por exemplo, entre uma da, história e filosofia serão não apenas solidárias, mas ainda
filosofia que postula uma consciência fora do tempo, "desliga- mutuamente indispensáveis. Uma história que se estreitasse a
da de todo interesse pelo fato", e as '''filosofias da história', que, um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a
ao contrário, inserem no curso das coisas uma lógica oculta", significação através do concurso da filosofia "não saberia, lite-
como que a predeterminá-I02 • Alternativas deste teor podem in- ralmente, do que ela fala", assim como uma filosofia que sobre-
corporar seja uma "ilusão retrospectiva", projetando as catego- voasse os fatos "só desembocaria em verdades formais, isto é,
rias de hoje na leitura do passado, seja uma "ilusão prospecti- em erros"s. Assim, se para Merleau-Poncy só "haverá história na
va", reduzindo os fatos à imediatez de seu presente sem qual- medida em que houver uma lógica na contingência, uma razão
quer abertura para o futur0 3 • Ademais, pressupõem isolados na desrazão"9, pode-se completar que só haverá filosofia se os
entre si "o fato e o homem interior", "a história e o intempo- sentidos ou as verdades que ela busca forem procurados no seio
ral,,4, elegendo, numa verdadeira "guerra fria", ou bem o "mito do devir, na trama histórica dos acontecimentos.
da filosofia" ou bem a "idolatria da objetividade"5. Em contra- Merleau-Ponty atribuía assim certa inerência entre o tra-
partida, Merleau-Ponry afirmará que é precisamente pela nossa balho do historiador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira
inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção numa nem a última vez que um pensador travou relações entre filoso-
cultura particular, que podemos realizar o movimento de com- fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos, em que neste
caso as relações não são tão sistemáticas a ponto de conduzir
L MERLEAu-PONTY, M.) Éloge de la philosophie, in Éloge de la philosophie et
autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da "rivalidade" aparece igual-
finalmente à anulação de uma sob o jugo da outra; e sobretudo
mente em outros textos. Por exemplo, em "Le métaphysique dans l'homme",
in Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1965, 171; ou em "Le philosophe et la socio- 6. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge
logie", in Éloge de la philosophie et au"tres essais, 112. 137; "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-sens, 162; Ciências do
2. MERLEAU-PONIT, M., "Máteriaux pour une théorie de l'histoire", in homem e fenomenologia, trad. S. T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61.
Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43. 7. MERLEAU-PONTY, M., Ciências do homem e fenomenologia, 69.
3. Ibid., 45. 8. MERLEAU-PONTY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-
4. Ibid., 43. sens, 171.
5. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge. 9. MERLEAU-PONTY, M., "Matériaux pour une théorie de l'histoire", in
113-114; "Le métaphysique dans l'homme", in Sensetnon-sens, 160. Résumés des Cours, 46.

22 I Foucault, simplesmente a filosofia como critica da cultura I 23


nem tão precisas que desfaçam certa ambigüidade a atravessar, não estou certo quanto ao que escreverei nos próximos volu-
na prática, o intercâmbio entre ambas. Ora, a nosso ver, é essa mes"; chama-o de "discurso hipotético" e, mais de uma vez, de
certa ambigüidade que, além de marcar uma postura fortemen- "jogo"ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e zigue-
te anti dogmática, parece abrir espaço para a possibilidade da zagueante de suas investigações 12 . Noutra ainda, justifica ter
eventual reunião das duas atividades numa mesma prática. E é gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de
essa a prática que, ao que parece, é executada nos escritos his- opinião "entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas obser-
tórico-filosóficos de Michel Foucault. vações, não será porém artificioso afirmar que os escritos de
A partir destas considerações iniciais, tentemos ver como o Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia.
próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e Ele próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são pou-
enquanto história e, em seguida, em que sentido se poderia di- cas as vezes em que se refere a seu trabalho de historiador.
zer que algo como uma crítica da cultura permeia esse trabalho. Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de "con-
É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Fou- selheiro" na militância política e designando-lhe, ao contrário,
cault em classificações estabelecidas do saber, buscando dese- a função mais modesta de "fornecer os instrumentos de análi-
nhar seus traços eventualmente inalteráveis ou circunscrever se", conclui dizendo ser "este, hoje, essencialmente, o papel do
características invariáveis. Questões dessa ordem são ampla- historiador"14. Por outro lado, quando, durante uma entrevis-
mente discutidas por estudiosos de Foucault. Não nos importa ta, após a observação de que "em muitos momentos você se
aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo
definiu como historiador", lhe é perguntado por que 'historia-
dessa "resistência" à classificação. É que esses e~ritos assumem
dor' e não 'filósofo"', sua resposta indica que a questão da filo-
um caráter por assim dizer flutuante, que atesta uma evasão
sofia hoje não deixa de ser igualmente uma questão de história:
sadia em relação a todo dogmatismo. Podemos dizer que Pou-
"é a questão deste presente que é o que somos,,15. Noutra oca-
cault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e
sião, já mais claramente afirmará: "E mesmo que eu diga que
toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questioná-
não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar
lo. Já no final da "Introdução" de A arqueologia do saber escrevera
de tudo filósofo", realçando porém que a questão da verdade
ele: "Não me perguntem quem sou e não me digam para per-
que ele coloca é a de perscrutar "qual é sua história, quais são
manecer o mesmo: isso é moral de estado civil; ela rege nossos
seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poderJJ16 .
papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever"lO. E
Ou ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem-
num debate a propósito do primeiro volume da História da se-
xualidade, depois de a ele referir-se como um "livro-programa
11 FOUCAULT, M., "Sobre a História da sexualidade", in Microfisica do
tipo queijo gruyere, cheio de buracos para que neles possamos poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 19'(9, 243.
nos alojar", escreve: "Não quis dizer - 'Eis o que penso', pois Ver também 259.
ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei (... ). O 12 Cf. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfisica do poder, 180.
13 FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 164.
que existe de incerto no que escrevi é certamente incerto (... ). E
14. FOUCAULT, M., "Poder.Corpo", in Microfisica do poder, 151.
15. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 239.
10 FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, Paris, Gallimard, 1969,28. 16. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 156.

2'-1 j Foucault, Simplesmente a filosofia como crítica da cultura I 25


po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do oculto" de que supostamente estariam carregadosr 9 . Esses pro-
Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é cedimentos têm em comum o uso da técnica que lhes é apro-
produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu priada, a saber, o tratamento dos textos na forma de "comentá-
propósito fazer "a história da 'verdade' - do poder próprio aos rios", capazes que seriam de trazer à luz a suposta origem e o
discursos aceitos como verdadeiros"!7. suposto segredo que o discurso explícito implicitamente conte-
Eis, pois, que filosofia e história se entrelaçam num mesmo ria. Mais ainda, esses procedimentos cunham a história com a
trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas marca unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios
que história e que verdade? Ou melhor, de que tipo de história às histórias "do espírito" e às histórias "globais". Com efeito,
esse filósofo que se ocupa da verdade é hoje o historiador? uma "história do espírito" é precisamente aquela que, median-
Afastemos, de início, os traços de uma história que Fou- te a "decifração" dos textos, quer desvelar a "consciência", as
cault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da clínica (1963) "intenções" ou o "espírito" que os teriam inspirado20 ; uma "his-
aponta dois recursos tradicionais que rejeita e chama-os de "es-
tória global" é precisamente aquela que, na dispersão dos fatos
tético" e "psicológico". O primeiro consiste em descrever uma
e documentos, quer encontrar "vestígios" que permitam traçar
história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo
uma linha contínua, uma direção única, que expliquem, de mo-
historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando de-
do uniforme e homogêneo, as multiplicidades e as transforma-
tectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no
ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou
âmbito interno de uma época (buscando captar seu espírito,
"progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti-
sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "inter-
nuidades ininterruptas JJ2 ! de uma teleologia segura. Ainda mais,
pretar" os fatos no sentido de encontrar como que por detrás
assegurando a linearidade do progresso, essas histórias salva-
deles suas razões mais secretas, uma lógica escondida, como se
guardam a unidade soberana do sujeito, "consciência históri-
os fatos fossem sempre uma espécie de "alegoria" a dizer outra
coisa que não eles próprios!8. É basicamente a esses mesmos ca" que se constitui em núcleo unificador ou centro originário
recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a capaz de reunir em si a explicação e, portanto, a dissolução da
elaboração da história tanto por um método que procede pelo heterogeneidade, da multiplicidade, da dispersão. Ao se salvar
"recurso histórico-transcendental" (isto é, que quer encontrar, a linha segura da continuidade histórica, de algum modo salva-
por meio de todo acontecimento, de toda manifestação histó- se ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: "Querer fazer
rica, as linhas de sua origem, apontando assim em direção a da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciên-
um horizonte sempre longínquo e cada vez mais recuável) como cia humana o assunto originário de todo devi r e de toda prática
por um método que procede pelo "recurso empírico ou psico- são as duas faces de um mesmo sistema de pensament,?JJ22.
lógico" (isto é, que quer "interpretar" as significações explícitas
19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a uma questão", Tempo Brasileiro) 28,
dos fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um "sentido
Rio de Janeiro, 1972,59.
20. Ibid., 65.
17. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfúica do poder; 239-23l. 21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, 21.
18. FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII. 22. Ibid., 22.

26 I Foucault. simplesmente a filosofia como critica da cultura I 27


Nem histórias do espírito, nem histórias globais, as históri- história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e
as que Foucault escreve são, como ele mesmo as chama, "histó- dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconcilia-
rias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua sin- ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um
gularidade de acontecimentos, em suas correlações, em suas olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva", ao contrário, a
transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que, genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado
no lugar de uma teleologia da continuidade e do progresso, imortal no homem"; reintroduz "o descontínuo em nosso pró-
buscam antes "detectar a incidência das interrupções"24, de sor- prio ser,,28. A história tradicional, em sua perseguição da origem
te que se antes a descontinuidade equivalia ao "impensável",
(Ursprung), considerando "acidentais todas as peripécias que pu-
que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado me-
deram ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces"29,
diante sua integração numa explicação continuísta, passa agora
pretende recuar ao reencontro de uma identidade enfim desve-
a ser "um dos elementos fundamentais da análise histórica"25.
lada, essência única e sempre a mesma. Para a genealogia, ao
O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra to-
contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida-
dos os fenômenos em torno de um centro único - princípio,
de pura de um sentido ou de uma essência; o que existe é preci-
significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma
samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca-
história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dis-
ras sob as quais não há um rosto a ser desmascarado: "A genea-
persão"26. Concomitantemente, as histórias que Foucault escre-
logia é um carnaval organizado"30. Recolhamos estes traços da
ve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as aná-
história praticada por Foucault na seleção de algumas passa-
lises dos discursos considerados quer em suas correlações inter-
gens em que ele explicita o perfil da genealogia. Primeiro, ela
nas, isto é, interdiscursivas, quer em suas relações com o extradis-
recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias: "A
cursivo, isto é, com as práticas e as instituições sociais.
genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profun-
À prática desse procedimento Foucault chamou primeira-
da do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao
mente "arqueologia" e posteriormente "genealogia". Sem dúvi-
contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
da, reporta a Nietzsche não só o termo "genealogia", como o
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da
modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreen-
'origem"'31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em
dida como "história efetiva" (Wirkliche Historie) à história tra-
dicional dos historiadores. Faz ver que esta última "reintroduz direção aos discursos que compõem os saberes: "É isto que eu
(e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que
que reria por função recolher em uma totalidade bem fechada dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí-
sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma
27. FOUCAULT, M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microftsica do
poder, 26.
23. Cf. ibid., 17.
28. Ibid., 27.
24. Ibid., I!.
29. Ibid., 17.
25. FOVCAULT, M., "Réponse au Cercle d'épistémologie", Cahiers pour 30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de
l'analyse, 9, Paris, Seuil, 1968, 10.
metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc.
26. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 19.
31. Ibid., 16.

28 I Foucault. Simplesmente a filosofia como crítica da cultura I 29


nios de objeto etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser
transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja inocente, funciona como uma "estratégia" porque calcada num
perseguindo sua identidade vazia ao longo da história"32. Ter- comprometimento crítico com pretensões a uma eficácia políti-
ceiro, ela não está preocupada com o "progresso": "Tenho esta ca. Ouçamo-lo mais uma vez: "Uma edição do Petit Larousse que
precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressivi- acaba de sair diz: 'Foucault: um filósofo que funda sua teoria da
dade que se dá por princípio não tomar o ponto em que nos história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (... ). Meu
encontramos por final de um progresso que nos caberia recons- problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade,
tituir com precisão na história. Isto é, ter em relação a nós mes- estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é
mos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceti- possível que se tenha, em certos momentos e em certas ordens
cismo que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu-
que é mais do que o passado (... ). E não digo que a humanidade ção, estas transformações que não correspondem à imagem tran-
não progrida. Digo que considero um mau método colocar o qüila e continuísta que normalmente se faz? Mas o importante
problema 'por que progredimos?'. O problema é 'como isto se em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu-
passa?'. E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou de, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal
mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos
antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito cons- enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros"35.
tituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma histó- Ora, é precisamente a eleição, para domínio da investiga-
ria marcada pela descontinuidade dos acontecimentos, enten- ção histórica, daquilo que é aceito "como cientificamente ver-
dendo-se por "acontecimento", "não uma decisão, um tratado, dadeiro" que nos encaminha à abordagem dos vínculos dessa
um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças", forças história com a questão da verdade enquanto assunto da filoso-
que "no jogo da história não obedecem nem a uma destinação, fia, e daí à compreensão do que chamamos seu comprometimen-
nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta", acaso do jogo que to crítico com a cultura.
"não é simples sorteio", mas antes "risco sempre renovado (... )"34. Com efeito, ao privilegiar os acontecimentos discursivos
Mas a prática deste procedimento na escrita da história não como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es-
é também movida ao acaso de um capricho. Afinal, por que tudos: entre os discursos, aqueles que são reconhecidos como
tantas "inversões"? Com efeito, não se trata pura e simplesmen- científicos e, entre estes, os que compõem a região mais cam-
te de efetuar substituições de algum modo arbitrárias: a conti- biante e imprecisa que é constituída pelos saberes das chamadas
nuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a ciências humanas. Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E
linearidade pela diferença; nem de trocar o núcleo "consciência" essa estratégia se aloja no ponto de cruzamento entre a questão
por outro chamado "discursos". Ao contrário, essa orientação da verdade e os mecanismos do poder. Por um lado, ocupar-se,
enquanto filósofo, com a questão da verdade significa aqui não
32. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 7.
ir em busca de uma essência a ser descoberta, mas descrever e
33. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder; 140.
34. FOUCAULT, M., "Nierzsche, a genealogia e a história", in Microfoica do
poder, 28. 35. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microftsica do poder, 3-4.

30 ! Foucault. simplesmente a filosofia como crítica da cultura j 31


analisar os modos como a "verdade" vem sendo historicamente Nesse sentido pois, ocupando-se da análise das relações entre
produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento do saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro-
jogo de regras - regras que são transformáveis de uma socieda- duzem e se reproduzem, a genealogia pretende constituir-se em
de para outra, de uma época para a outra - que autoriza a foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor
qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a pro- "um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti-
dução de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado, cas atuais,,40. E isso duplamente. Busca, por um lado, recuperar,
e ao mesmo tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a ques- num trabalho que exige paciência e erudição, conteúdos histó-
tão da verdade encarada segundo seus modos históricos de pro- ricos que foram subestimados ou silenciados pelo saber "quali-
dução é ocupar-se também do vínculo circular que ela mantém ficado" das histórias tradicionais: mostra, por exemplo, de que
com os modos de exercício do poder: "o exercício do poder cria modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o
perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin-
poder"36. Assim, podemos dizer que, se a "verdade" é "efeito" do po- do ao sujeito detentor do conhecimento sobre o homem a "com-
der das regras segundo as quais determinados saberes têm a petência" que autoriza o domínio de seus "objetos", dissociando
competência para a verdade, essa competência lhes atribui, por assim o sujeito do conhecimento que "possui a verdade" de seus
seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue "objetos" que "nada sabem"; descreve, em face das histórias da
não só o verdadeiro e o falso, como o permitido e o interditado, Razão e do mesmo, a história da Desrazão e do Outro, revelan-
o correto e o errado, o normal e o patológico etc.). Eis a pergun- do os mecanismos correlatos de exclusão, de enclausuramen-
ta de "filosofia política" que Foucault se coloca: "Em uma socie- to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci-
dade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir dis- mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po-
cursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?,,37 der na forma da disciplina etc. Por outro lado, é aliada da recu-
Ora, posto que em nossas sociedades ocidentais são os peração de saberes considerados "ingênuos, hierarquicamente
discursos reconhecidos como científicos os que compõem os inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade" (por exem-
saberes aceitos como verdadeiros, é desses saberes que tratará a
plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.)". "A genea-
genealogia. E posto que é a região das chamadas ciências hu-
logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
manas a que melhor ou mais claramente permite fazer ver aquele
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder, na
empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,
medida em que ela envolve saberes cujo "perfil epistemológi-
isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção
co", por ser "pouco definido"38, abriga "combates, linhas de
de um discurso teórico, unitário, formal e científico."42
força, pontos de confronto, tensões"39, é sobre ela que vai par-
Mais ainda: lembremos que enquanto a arqueologia pre-
ticularmente recair a invesrlgação.
tendia realçar principalmente as epistémes) isto é, o nível das
36. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder, 142.
37. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder, 179. 40. FOUCAULT, M.) "Genealogia e poder", in Microfísica do poder, 171.
38. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, l. 41. Ibid., 170.
39. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 154. 42. Ibid., 172.

32 I Foucault. Simplesmente a filosofia como critica da cultura I 33


correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente um "saber histórico das lutas" é, ele próprio, (saber", partícipe
ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as da "história" e da "cultura". Daí o cuidado insistente de Fou-
estruturas sociais. Lê-se, por exemplo, numa passagem de Vigiar caulr em não se vir a rransformar a análise realizada pelas ge-
e punir: "O sistema carceral reúne numa mesma figura discur- nealogias em outro saber centralizador ou monopolizador da
sos e arquiteturas, regulamentos coercitivos e proposições cien- "verdade" e, portanto, habilitado para o poder. Assim, em opo-
tíficas ... ,,43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem um caráter
que lhe é dirigida por um entrevistador: "Você mostrou como local e específico 46 • Em oposição ao teórico "legislador", Fou-
o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclu- cault sonha "com o intelectual destruidor das evidências e das
são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da universalidades"47. "Neste sentido", escreve Roberto Machado,
prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia «nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por
política a estrutura da fábrica"44. Entende-se assim que, ao esta- objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se consti-
belecer a história da constituição dos saberes explicitando seu tuir como sistema: o programa que elas formulam é o de reali-
vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como zar análises fragmentárias e transformáveis."48
peças nas tramas de uma rede - por ele chamada de "disposi- Essa mobilidade que é constitutiva da postura mesma das
tivo" - que envolve tanto as inter-relações dos saberes como investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de
suas articulações com as práticas institucionais. quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E
Ora, sem entrarmos na pluralidade possível de acepções permite que reencontremos, a respeito da filosofia e da histó-
que podem ser cobertas pelo termo "cultura", nem nos diferen- ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que
tes ângulos sob os quais pode ser abordado e, menos ainda, nas apontávamos em nossas primeiras considerações em torno de
muitas questões que suscita, poderíamos considerar "cultura", Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter-
de um modo tão geral quanto simples, o conjunto de saberes nativa entre uma história atravessada por um sentido teleológi-
teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se co e uma história desprovida de sentido porque concebida como
move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen-
as possibilidades de "nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido te tanto a ininteligibilidade da história como as pretensões "de
que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos histórico- uma História Universal inteiramente desdobrada diante do his-
filosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar uma toriador como o seria sob o olhar de Deus,,49. As histórias que
crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura "qualificada". Foucault escreve, além de avessas a qualquer aspiração de uni-
E, finalmente, não há que se esquecer que, contudo, essa versalidade, assumem, na prática, aquela simultaneidade entre
crítica da cultura, esse trab~lho filosófico de constituição de
46. Cf. principalmente "Verdade e poder", "Genealogia e poder", "Os
43. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,276. intelectuais e o poder", in Microfísica ...
44. Cf. "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 16l. 47. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 242.
45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, Préface, 48. MACHADO R., "Introdução", in Microfísica do poder, XIII.
11. É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente 49. MERLEAU-POl\.'TY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et
usado neste Prefácio. non·sens 158, Ver também, Éloge ... , 59.
J

34 I Foucau!t. simplesmente a filosofia como crítica da cultura I 35


a ausência de um sentido único e a presença de inteligibilidade,
agora, porém, conduzindo este aparente paradoxo a uma nova
111
direção: "A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que
seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve O MESMO E O OUTRO
poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas"50. Segundo, Faces da história da loucura*
e conseqüentemente, afirmando que é pela inerência a uma
situação histórica particular que podemos compreender a sig-
nificação de outras situações que compõem a trama da histó-
ria, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal de um espectador abso-
luto, de um conhecimento sem ponto de vista,,51. Afinal, nem
"ilusão retrospectiva", nem "ilusão prospectiva". "Saber pers-
pectivo", eis como Foucault (na descrição da genealogia nietzs-
chiana) caracteriza a história: os historiadores que perseguem a
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas
neutra objetividade de uma consciência isenta e soberana "pro- a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto
curam, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
seu saber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles momentos na vida nos quais a questão de saber se se pode pensar
estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua pai- diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
xão"; já o "saber perspectivo", ao contrário, "sabe que é perspec- indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
M. FOUCAULT, o uso dos prazeres, 13.
tivo", "olha de um determinado ângulo, com o propósito deli-
berado de apreciar, de dizer sim ou não", "é um olhar que sabe
Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histó-
tanto de onde olha como o que olha"52.
rias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o
Por ser "perspectivo", e se saber assim, elaborado a partir
tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai desde o fi-
da cultura que o torna possível, olha-a criticamente, mas a olha
nal do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa
de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu
Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a
mesmo olhar crítico, de sorte que, se provoca deslocamentos,
chamada Idade Clássica (séculos XVII e XVIII).
há que se dispor, ele próprio, a deslocar-se.
É possível sugerir que a questão que, genericamente, po-
demos denominar "do outro e do mesmo" se estenda como
um pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por
propô-la, partindo de uma ilustração que está nas primeiras
50. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, 5.
51. MERLEAu-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge.. , 136. ... Conferência apresentada na VII Semana de Estudos em Filosofia da
52. FOUCA.uLT, M., "Nieczsche, a genealogia e a história", in Microfoica do Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault
poder, 30. e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995.

36 I Foucault. Simplesmente o mesmo e o outro j 37


páginas do Prefácio de As palavras e as coisas. Trara-se da rero- não é, por assim dizer, "ausente" de espaço; antes, repousa
mada de uma classificação dos animais, citada por Jorge L. sobre outro espaço: "A China ... não é justamente o lugar privi-
Borges, supostamente extraída de uma enciclopédia chinesa. legiado do espaço?JJ5
Segundo esta classificação, "os animais se dividem em: a) per- Eis o "outro" em seu sentido mais amplo: limite de pensa-
tencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) mento e de linguagem para uma cultura, aquilo que a circunda
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluí- por fora e lhe escapa, simultaneamente, estranho e exterior.
dos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) Mas, a partir daí, pode-se também entender o "outro" em
inumeráveis, k) desenhados com um pincel fino de pêlo de seu sentido estrito: aquilo que, de dentro dos quadros de uma
camelo, I) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que cultura, a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simul-
de longe parecem moscasJ1 1. taneamente interna e estrangeira. É nesse sentido que a Histó-
Esta classificação reúne de modo incongruente categorias ria da loucura é uma história do "outro": história daquilo que
sem nexo que, a nós, parecem impossíveis de "nomear, falar, pen- pertence à nossa cultura - pensável, nomeável, dizível portan-
sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de "nomear, falar, to -, mas constantemente ameaçado de submissão aos crité-
pensar" podem ser analisadas em torno de três termos: ordem) rios do "mesmo", precisamente porque ameaçador; história "da-
lugar, espaço. Com efeito, há uma ordem que, naquela classifica- quilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estra-
ção, parece vincular a seqüência das classes nela reunidas, a sa- nho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo inte-
ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta ordem que ali pa- rior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade)"6.
rece não "caber". A estranheza da ordem está em sua articulação Nossa exposição pretende tão-somente retraçar, em resu-
com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e mo, alguns aspectos dessa história7 • No conjunto do livro, a
sua ordenação, ainda que meramente alfabética: "O absurdo ar- descrição da experiência da loucura durante o período renas-
ruína o e (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade centista ocupa não mais que as 55 páginas do capítulo inicial.
o em (lugar) onde se repartem as coisas enumeradas"3. É à experiência clássica - cuja vertente institucional é o Hospi-
Ordem e lugar, porém, dependem de um espaço homogê- tal Geral - e à experiência moderna - cuja vertente institucio-
neo e comum dentro do qual somente ou sobre o qual as nal é o Asilo - que, substancial e minuciosamente, se dedicam
coisas possam ser localizáveis e ordenáveis, espaço que torna as mais de 600 páginas do livro em suas três partes (as duas
possível nomeá-las, dizê-las, pensá-las. Assim, é a justaposição primeiras ocupando-se da Idade Clássica e a terceira da nossa
desse e (ordem), desse em (lugar) e desse sobre (espaço) que Modernidade). Nas pretensões reduzidas desta exposição -
instaura, para nós, a estranheza dessa classificação 4 . Estranhe-
5. Ibid., 10.
za, porém, para nós. Afinal, aquela classificação de animais 6. Ibid., 15.
7. Para uma reconstituição mais completa do livro, leia-se MACHADO, R.,
1. FOUCAULT, M., I..es mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, "Préface", 7. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal,
2. Ibid., 11. 1982 (cf. "Arqueologia da percepção", 57-95). Também ROUANET, S. P., "A
3. Ibid., 9. gramática do homicídio", in O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Fou-
4. Ibid., 8. cault), Rio. de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971.

38 I Foucau!t. simplesmente o mesmo e o outro I 39


pincelar algumas faces ou facetas da história desse "outro" que rante a Idade Média, estão vinculados à instituição do leprosário
é a loucura no Ocidente -, escolhemos tratar os três períodos e ao personagem do leproso vão persistir; exclusão e purifica-
em proporções diversas às do livro. Por isso mesmo, e evitando ção, segregação e sacralidade, reclusão e salvação serão trans-
o risco de um resumo por demais empobrecedor, a aborda- postas, séculos mais tarde, para outras instituições - muitas
gem da Idade Clássica e da Modernidade será apenas pautada vezes nos mesmos lugares que antes abrigavam os leprosos - e
em algumas passagens em que o próprio Foucault fornece des- para outros personagens. Entre eles, o louco.
crições mais amplas desses dois momentos. Por motivos análo- Assim, a loucura, de certo modo, assumirá, no decurso de
gos, a recomposição dessas "facetas" será organizada em dois uma longa sucessão histórica, uma espécie de papel de herdeira
tópicos ou subi tens. da lepra!'. Contudo, numa sucessão histórica longa, isto é, cer-
ca de dois séculos mais tarde (por volta da segunda metade do
••• século XVII e no século XVIII), na chamada Idade Clássica. Antes
disso, porém, no intermédio entre o final da Idade Média e o
Leprosários e navios início da Idade Clássica, ou seja, no chamado período renas-
Ao término da Idade Média, nos limiares do Renascimento centista (por volta dos séculos XV a XVII), ela ocupará outra
(por volta dos fins do século XIV), começa o esvaziamento da- posição, ou melhor, circulará sem posição fixa.
quelas casas de "exclusão" e "purificação"s que se haviam multi- Era freqüente nas composições literárias e pictóricas do
plicado às portas das cidades medievais: os leprosários. A lepra Renascimento a imagem de navios que transportavam "heróis
regride, não como resultado de práticas médicas, antes por força imaginários", "modelos éticos", "tipos sociais" cuja viagem sim-
da segregação dos leprosos (e, portanto, do contágio) e do final bolizava seu "destino" ou sua "verdade"I3. Assim, títulos de obras
das Cruzadas (e, portanto, do contato com focos de infecção do literárias incluíam, por exemplo, a Nau dos principes e das batalhas
Oriente). Com efeito, a lepra não era experimentada como "as- de nobreza, a Nau das damas virtuosas, como também a Nau dos
sunto médico", a ser "suprimida" e "curada". Era, antes, uma loucos. Mas, em meio a essa onda literária e pictórica, a Nau
espécie de testemunho do mal ao mesmo tempo que de sua ex- dos loucos guardava uma singular peculiaridade: a de existir real-
piação. Requeria, pois, o gesto ritual da cisão, rito que segregava mente. De fato, expulsos das cidades, entregues a mercadores,
e, simultaneamente, sacralizava, gesto que excluía e, simultanea- peregrinos ou marinheiros, os loucos vagavam, numa existên-
mente, purificava: "O pecador que abandona o leproso à sua cia "errante"14. Para Foucault, esse "gesto que expulsa" está pró-
porta abre-lhe a salvação,,9. ximo do "rito,,15; a figura da nau carrega o simbolismo da água
A lepra regride, os leprosários se esvaziam. Porém, os "valo- que purifica e da navegação que é passagem. Água e navegação
res" e as "imagens"lO, as "estruturas" e as "formas"ll que, du- cumprem, assim, o papel de manter o louco como "prisioneiro
em meio à mais livre e mais aberta das rotas: solidame~te preso
8. FOUCAULT, M., Historie de la falie à l'âge classique, 2 a ed., Paris, Galli-
mard, 1972, 13. 12. Ib;d., 18.
9. Ib;d., 16. 13. Ib;d., 19.
Ia. Ib;d., 15. 14. Ib;d., 19.
11. Ib;d., 16. 15. Ib;d., 16.

40 I Foucault. Simplesmente o mesmo e o outro I 41


à infinita encruzilhada. Ele é o Passageiro por excelência, isto é, humanas, ocupa cada vez mais o primeiro plano na experiência
o prisioneiro da Passagem,,16. da loucura, deixando na sombra o silêncio verbal e fascinante
A ambigüidade dessa simbologia corresponde à ambigüi- das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas. Sem dúvi-
dade da experiência renascentista da loucura, uma experiência da, observa Foucault, essa ocultação jamais abolirá inteiramen-
que envolvia duas vertentes simultâneas: um lado trágico, fas- te a experiência do trágico: "esse desaparecimento não é uma
cinante e cósmico; um lado crítico, irônico e moral. O "fascínio derrocada"l9. Nos séculos seguintes e até hoje, o trágico da lou-
do trágico" transparece sobretudo nas imagens pictóricas: são cura subsistirá na obscuridade, como que "nas noites dos pen-
figuras fantásticas, humano-animalescas, que mostram a bestia- samentos e dos sonhos", como que "às escondidas" e "em vigí-
lidade presente no coração do homem, impregnadas de um lia", de tal modo que, malgrado o predomínio cada vez maior
saber hermético que anuncia a ameaça da desordem e do fim do racional, a presença subterrânea do trágico será pressentida
do mundo e ao qual só os loucos têm acesso. Ao mesmo tempo, e testemunhada como que em erupções esporádicas (Nietzs-
a "ironia da crítica", que transparece sobretudo nas composi- che, Van Gogh, Artaud, Goya, Sade são alguns exemplos desses
ções literárias e filosóficas, no verbo, no texto, na palavra: ali, a pressentimentos e testemunhos).
loucura aparece como motivo de sátira ou de escárnio, não Mas, no curso da história, a predominância do saber críti-
mais como detentora dos segredos ocultos do cosmos, mas co- co sobre o trágico, marcando o domínio da razão sobre a lou-
mo mal e fraqueza humanos, de onde nascem a ambição dos cura, assinala o fim da experiência renascentista, abrindo o li-
políticos, a avareza dos ricos, a presunção dos sábios (O Elogio miar da Idade Clássica e, a partir dela, os caminhos que condu-
da loucura, de Erasmo, por exemplo, reserva, "na ronda de lou- zirão à experiência moderna da loucura, num deslocamento
cos, um largo lugar para homens de saber" - gramáticos, poe- que vai da Nau ao Hospital, do Hospital ao Asilo.
tas, escritores, jurisconsultos, filósofos, teólogos etc.).l?
As duas vertentes da experiência renascentista da loucura, Hospitais e asilos
simbolizadas pictórica e literariamente, certamente se entrecru- No começo do século XVII a loucura adentrou os muros da
zam: há temas morais nos quadros de]. Bosch; e Montaigne cidade; internalizada, torna-se "familiar" em um mundo que lhe
sugere que loucura é fiar-se apenas na razão ls . Gradativamente, é "estranhamente hospitaleiro"20. Não mais vagará: "Ei-la amar-
porém, os dois pólos se distanciam e o elemento crítico ganha rada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e
relevo sobre o trágico. A ironia crítica, prioritária no texto, no mantida. Não mais nau, mas hospital"21. Não mais, com Mon-
verbo, na palavra, voltada para a racionalidade e a moralidade taigne, a crítica à presunção da razão, mas, com Descartes, o
banimento da loucura do caminho que conduz à certeza22 • A
16. Ibid., 22.
17. Ibid., 34. Entre as expressões pictóricas incluem-se obras de]. Bosch, 19. FOUCAULT, M., Historie de la folie .. ,39.
Brueghel, Dürer; entre as expressões lingüísticas, obras de Brant, Erasmo, 20. Ibid., 54-55.
Montaigne. 21. Ibid., 53.
18. O mastro da Nau dos Loucos de]. Bosch é a figura da árvore: árvo- 22. Enquanto em Montaigne a loucura é incorporada ao caminho que
re proibida da sabedoria à qual só os loucos têm acesso; mas é também conduz à verdade, em Descartes são incorporados os erros dos sentidos e a
árvore "moral" do bem e do mal. ilusão dos sonhos, mas a loucura é excluída.

42 1 Foucault. simplesmente o mesmo e o outro I 43


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desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racio- suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alqui-
nal. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada mistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alie-
em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmuta- nadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des-
rá em doença mental. razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram
No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que cons- "portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da
tituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25.
razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que
data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga",
única administração estabelecimentos já existentes com fins mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral
diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abri- são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no
gava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher invá- horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamen-
lidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alema- te a cisura entre a razão e a desrazã0 26 •
nha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamen- É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão
to, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a
como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluís- loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isola-
sem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não da" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os
tinham propósito terapêutico: tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes
"O classicismo inventou o internamento um pouco como a Ida- grupos com que até então se avizinhava. A designação poste-
de Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por rior e moderna da loucura como alienação e depois como doença
estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu: mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso
são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se
médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste ges-
lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segrega-
to de banimento que abria espaços malditos. O gesto que inter-
na não é mais simples: ele também tem significações políticas, ra, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque
sociais, religiosas, econômicas, morais,>23. já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Moder-
nidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento,
Os "novos personagens" que ocupam esses estabelecimen- numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e
toS são apresentados em diversas passagens e em listagens mais da doença mental:
ou menos longas. Com base nessas várias referências, podem ser
"anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proi-
assim identificados: pobres, v~gabundos, correcionários, desem-
bições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensa-
pregados, jovens que perturbam o repouso da família ou dilapi- mento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo-
dam seus bens, devassos, pródigos, enfermos, libertinos, filhos
ingratos, pais dissipadores, prostitutas, homossexuais, mágicos, 24. Ibid., II 7.
25. Ibid., 1I9.
23. Ibid., 64. 26. Ibid., 117.

44 I Foucault. simplEsmente o mesmo e o outro I 4S


ral da desrazão que serve, no fundo, de solo para o nosso conhe- sabilidades sociais. Nas casas de internamento, as decisões com-
cimento 'científico' da doença mental. Por esse distanciamento, petiam às autoridades sociais (magistrados, bispos, polícia) e o
por essa dessacralização, perfaz ele uma aparência de neutralida- louco tinha o estatuto de "sujeito social") perturbador da or-
de que já é comprometida, porque só alcançada no propósito ini- dem, comprometido, pois, com "as vizinhanças da culpabilida-
cial de uma condenação"27.
de,,31. Ora, uma leitura histórica simplista veria na hospitaliza-
Assim, não se pode pretender simplesmente que a loucura ção comum os indícios de uma espécie de progresso rumo à
será um dia tornada "objeto" de conhecimento por ter sido, Modernidade, quando, então, se reconheceria na loucura a doen-
então, liberada das "velhas participações religiosas e éticas em ça, sua verdade de sempre, sua essência imutável.
que a Idade Média a tomava,,2B. Antes de se tornar ~'objeto" de Essa leitura simples seria plausível se Os fatos fossem sim-
conhecimento e ser configurada como patologia, ela passou ples; na verdade, ela inverte-lhes a ordem e a prioridade. A hos-
pelo internamento do período classicista, e o internamento não pitalização individualizada do louco nos hospitais comuns,
consistiu numa forma possível de "conhecimento" da loucura, durante a Idade Clássica, não foi avanço rumo à Modernidade,
mas em seu exílio e em seu silêncio: "Não é importante para a mas o resíduo ainda de uma percepção medieval e renascentista
nossa cultura que a desrazão só tenha podido tomar-se objeto em que a individualidade do louco era de algum modo reconhe-
de conhecimento na medida em que previamente foi objeto de cida, ainda que vagamente. O fato "novo", inclusive do ponto
ex-comunicação?"29, de vista cronológico, da Idade Clássica foi justamente a transpo-
Uma leitura histórica simplista e linear poderia talvez pre- sição dos loucos das casas de cura para as casas de correção, e
valecer-se do fato de que durante esses 150 anos - entre a Idade não o inverso, de modo que a experiência mais ampla e relevan-
Média e o Renascimento até a nossa Modernidade, calcada na te da loucura foi seu internamento não Como procedimento
repartição entre razão e desrazão e misturando indiscrimina- médico, mas como prática social. "Ê entre os muros do interna-
damente os insensatos aos demais grupos "associais" - a expe- mento que Pinel e a psiquiatria do século XIX", escreve Fou-
riência clássica da loucura não foi uniforme. É que, além dos cault, "encontrarão os loucos; é lá - não o esqueçamos - que os
Hospitais Gerais, havia também hospitais comuns (Hôtel-Dieu deixarão, não sem antes se vangloriarem de os ter libertado"32.
em Paris, Bethlém em Londres, por exemplo), onde, embora em Com efeito, no caminho desse percurso histórico é possível
número extremamente menor, se internavam loucos com pers- compreender como a transformação que se operará a partir do
pectivas de tratamento e de cura, diferentemente das casas de final do século XVIII e do início do século XIX, sobre o solo da
internamento, em que as perspectivas eram antes de correção) experiência classicista da loucura, consistirá numa espécie de jun-
castigo e repressão. Nos hospitais comuns, as decisões proce- ção entre suas duas vertentes, que, antes "justapostas", serão
diam de julgamentos médicos e o louco tinha um estatuto de depois "superpostas,,33. Em outras palavras: o "alienado" será
"sujeito juridicamente incapaZ,,30) eximido, portanto, de respon- reconhecido simultaneamente como "incapaz e como louco"34;

27. Ibid., 121. 31. Ibid., 144.


28. Ibid., 119. 32. Ibid., 59.
29. Ibid., 119. 33. Ibid., 147.
30. Ibid., 146. 34. lbid., 146.

46 I Foucault, simplesmente o mesmo e o outro I 47


denominar-se-á "doença mental" essa união entre o fato de uma
incapacidade jurídica do indivíduo e o fato de um distúrbio
IV
que afeta a vida social. E é essa junção do conceito de doença
como assunto médico à prática social do internamento, ou, EDUCAÇÃO E
reciprocamente, a transformação do "internamento em ato te-
rapêutico"35, que, finalmente, caracterizará então a instauração SABER SOBERANO'
da instituição asilar.
• ••
A partir da reconstituição resumida de alguns aspectos
dessa história, podemos compreender que a loucura não seja
um "objeto" uniforme, consubstanciado numa verdade essen-
cial cuja identidade é sempre a mesma, mas antes um fato mul-
tifacetado, cujas verdades são historicamente produzidas e va-
riadas. Em palavras simples: '''a loucura não é um fato da natu- Como cenário de nossas considerações escolhemos algumas pas-
reza' mas um fato da civilização"36. E sua história a mostra sagens de As palavras e as coisas 1 cuja retomada constituirá o pri-
como tantas faces que figuram o "outro" no interior do "mes- meiro momento da exposição. Do interior desse cenário e a partir
mo". Para concluir, ousemos supor que esse "outro" de múlti- de uma interpretação relativamente livre das análises foucaul-
plos rostos que atravessa a história de nossa cultura possivel- tianas, tentaremos num segundo momento realçar alguns as-
mente atravessa também a história pessoal de cada um de nós. pectos dos papéis desempenhados pelas ciências humanas em
Esta suposição está sugerida, talvez, no primeiro título que Fou- geral e pela ciência da educação em particular.
cault pretendia dar a seu livro, "A outra forma da loucura,,37, e Numa visão extremamente sucinta (mas útil a nosso inten-
na frase de Pascal que escolhera para iniciá-lo: "Os homens são to), lembramos que As palavras e as coisas, em seu todo, percor-
tão necessariamente loucos que seria uma outra forma de lou- re uma trajetória histórica que começa no fim do Renascimen-
cura não ser louco". to (por volta do século XVI), detém-se na Idade Clássica (sécu-
los XVII e XVIII) e desemboca em nossa Modernidade; e que
aborda, em cada qual desses segmentos históricos, a emergên-
cia de determinados saberes de modo a finalmente poder
descrever, nos séculos XIX e XX, o surgimento das chamadas
ciências humanas.

35. Ibid., 149. * Comunicação apresentada por ocasião da "Semana de Educação", na


36. Retomamos aqui um comentário do livro de ERIBON, D., Michel Pou· Universidade Federal de Uberlândia, em maio de 1981. Publicada em Cadernos
cault: uma biografia. trad. H. Feist, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119. PUC, n. 13, São Paulo, EducjCorcez, 1982.
37. Cf. ERIBON, D., op. cit., 102-103. 1. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.

lI8 I Foucault, simolesmente educação e saber soberano I lI9


Com curiosa astúcia, o primeiro capítulo traz a nossoS olhos ramente empírica do quadro em questão: "( ... ) bastaria dizer
um quadro de Velázquez. Situado entre o fim da segunda me- que Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se
tade do século XVI e o início da segunda metade do século XVII representou a si mesmo, em seu atélier ou num salão do Escorial,
(1599-1660), o pintor, cuja obra foi escolhida, permite o assina- a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem con-
lamento do fim do Renascimento e do início da Idade Clássica. templar, rodeada de aias, de damas de companhia, de cortesãos
Por outro lado, o quadro escolhido (Las Meninas) aponta ele- e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atri-
mentos que serão retomados no final do livro (capítulo IX), buir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina
permitindo uma espécie de ilustração comparativa a propósito Sarmiente, ali Nieto, no primeiro plano Nicolaso Pertusato,
da Modernidade. bufa0 italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens
Para desenhar nosso cenário, retomaremos alguns aspec- que servem de modelos ao pintor não são visíveis, ao menos
tos do primeiro capítulo e, a partir dele, faremos um grande diretamente; mas que se pode distingui-las num espelho; que
salto até o capítulo IX. De início, ouçamos uma descrição me- se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana"2.
Porém, se deslocamos nosso olhar dessa visão imediata-
mente empírica e nos situamos numa região em que os nomes
não são diretamente colados às coisas percebidas, outra descri-
ção é possível. E é esta que nos interessa. Refaçamo-la em al-
guns de seus ângulos.

1O pintor e o espectador - De dentro do quadro, o pintor olha


para um ponto fixo e invisível: nesse ponto está o modelo que
ele pinta sobre uma tela da qual o espectador só vê o reverso.
Ora, nesse ponto igualmente, para o qual o pintor dirige o
olhar, está presumidamente o próprio espectador. Assim é que,
enquanto "objeto" virtual do olhar do pintor, o espectador é o
modelo de carne e osso mas sempre invisível e extremamente
variável. Trava-se assim um jogo ambíguo entre o visível e o
invisível: com efeito, para ser olhado pelo pintor, esse especta-
dor-modelo precisa colocar-se em face do quadro na posição de
quem olha, de modo que somente na medida em que é ((sujeito-
que-olha" pode ser "objeto-olhado". O reverso da tela que está
sendo pintada garante essa ambigüidade. Porque só o reverso é
representado, não sabemos, nós, espectadores, se olhamos ou

2. Ibid., 25.

SO I Foucault. simplesmente educação e saber soberano I Sl


se somos olhados. Nesse jogo, pois, o olhar do pintor, o único revela o jogo ambíguo entre o real e o representado: é um es-
que pode ir do modelo à frente da tela, é o "olhar soberano"'. pectador "real" do ponto de vista do interior do quadro e, con-
tudo, "representado" do ponto de vista do exterior do quadro.
2 O espelho - O quadro como um todo é, evidentemente, uma
representação. Do interior e no fundo dessa representação são 4 As personagens e os centros do quadro - Do plano de fundo, o
representados outros quadros (que são outras tantas represen-
visitante olha as personagens dos primeiros planos: o pintor, à
tações). Entre eles, porém, um é especialmente mais claro. "Mas
esquerda; um homem e uma mulher, à direita; ainda à direita e
não é um quadro: é um espelho.,,4
mais à frente, dois anões; e, no meio, a princesa entre duas
E, assim como a frente da tela tepresentada é invisível para
damas de companhia. Dois pontos centrais parecem comandar
o espectador e só visível para o pintor, agora o espelho é clara
a composição do quadro: o espelho a refletir os modelos, e o
visibilidade para o espectador mas sempre invisível para o pin-
olhar firme da princesa realçado em primeiro plano. Mas esses
tor 0á que este lhe dá as costas). Mas o espelho reflete precisa-
dois pontos parecem estar ambos direcionados para um ponto
mente o modelo que está sendo pintado. E percebe-se então
convergente: trata-se do espaço claro à frente do quadro, a de-
que, além do jogo entre o visível e o invisível, outra ambigüida-
marcar o limite impreciso entre o seu interior e o seu exterior.
de se estabelece, esta agora entre o interior e o exterior do qua-
É o espaço olhado pelo pintor e as personagens, mas donde,
dro: com efeito, o espelho faz ver (por "reflexo") os modelos
supostamente, os modelos olham o pintor e as personagens.
externos olhados de dentro do quadro pelo olhar do pintor que
Espaço ocupado e vazio ao mesmo tempo, ao mesmo tempo
os representa, e mostra assim o espaço interno do quadro que é
sujeito e objeto do olhar ausente e presente, é ele o centro prin-
representação de modelos; mas fá-los ver (também "por refle-
cipal do quadro. Um centro soberano, e duplamente soberano:
xo"), enquanto espectadores que olham do exterior o pintor
porque comanda a composição de todo o quadro e porque su-
que é, ele próprio, representado (feito de linhas, formas, cores),
postamente ocupado por "soberanos" (o rei e a rainha). No
e mostra assim o contorno externo do quadro que é, ele pró-
interior do quadro é o lugar do modelo, isto é, do rei; mas,
prio, em seu todo, representação de uma representação, quadro
como que prolongável para fora do quadro, esse espaço é tam-
que representa um quadro.
bém o lugar do espectador que olha e é olhado; é também o
3 O visitante inusitado - No fundo do quadro, uma porta deixa lugar do visitante que assiste à cena e é o espectador projetado
entrever uma estranha figura. Não se sabe se ela <{entra" ou "sai". para dentro da representação; e ainda, afinal, o lugar do pintor
Parece estar ao mesmo tempo dentro do quadro (isto é, do quadro real, que na verdade se olha como seu próprio modelo para se
enquanto visto do exterior) e fora dele (isto é, do quadro enquan- representar. O espaço vazio faz do quadro como um todo o que
to visto internamente); como se não fosse parte da representa- o espelho faz no interior do quadro: assim como no espelho o
ção, mas assistisse a ela, porém do interior dela. Se o espelho rei ausente está presente, mas "por reflexo", assim também O qua-
reflete o jogo ambíguo entre o interior e o exterior, o visitante dro como um todo torna presentes, mas "por reflexo") o mode-
lo real, o pintor real e o espectador real. Nesse espaço, só há
3. Ibid., 21. lugar para o sujeito no plano de representação; é nesse espaço,
4. Ibid., 21. afinal, que poderá ser enunciado o cogito cartesiano e onde pode-

S2 I Foucault. Simplesmente educação E' saber soberano I S3


rão desdobrar-se os saberes emergentes na Idade Clássica. Mas, nos agora apenas explorar alguns aspectos inerentes àquela po-
por outro lado, será também a ocupação desse espaço pelo su- sição ambígua hoje ocupada pelo homem como "objeto para
jeito concreto enquanto empírico e existente real (no duplo um saber" e como "sujeito que conhece". E o primeiro aspecto
sentido, aliás, de realidade e de realeza) que caracterizará o sur- a apontar é que a instauração das ciências humanas requer,
gimento das ciências humanas em nossa Modernidade. E eis intrinsecamente, que se atribua ao homem real o estatuto de
que já saltamos para o capítulo IX, cujo segundo item tem "coisa científica" a ser dominada pelo homem como sujeito
precisamente como título "O lugar do rei". detentor do conhecimento. Ora, acontece também que, por
No século XIX, a personagem representada no quadro de outro lado e ao mesmo tempo, uma vez que a racionalidade do
Velázquez entra empiricamente em cena. O homem, como saber científico é erigida como critério exclusivo da validade de
"indivíduo que vive, fala e trabalha"S, ocupa, "em carne e osso", todo saber e medida do verdadeiro, as ciências humanas carre-
o lugar antes vazio de uma presença ausente. Abre-se um novo gam em seu próprio bojo o risco inalienável da redução do
espaço epistemológico no qual podem emergir a biologia, a filo- homem ao que dele se pode "cientificamente conhecer". O co-
logia, a economia. E onde emergem também as filosofias do nhecimento "científico" sobre o homem torna-se não só o único
homem e as ciências humanas. "No movimento profundo de tal saber qualificado e competente, isto é, aquele que tem o poder
mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição am- de decidir sobre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o
bígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: sobera- normal e o patológico; corre também o risco inalienável de se
no submetido, espectador olhado, ele surge aí, nesse lugar do fazer sempre prescritivo, isto é, aquele que veicula as normas
Rei que lhe atribuíam antecipadamente Las Meninas, mas de onde, pelas quais são desqualificáveis quaisquer outros saberes e re-
durante tanto tempo, a sua presença real foi excluída. Como se duzidos ao silêncio outros discursos. Como único saber quali-
nesse espaço vago para o qual está virado inteiramente o quadro ficado, assume então o direito da soberania cujo poder se exer-
de Velázquez, mas que ele, no entanto, só refletia, mediante o ce pelos mecanismos da disciplina, do controle, da exclusão 7 •
acaso de um espelho e como que abusivamente, todas as figuras Ele dissocia os que "possuem" a verdade porque "sabem" e os
de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entre- demais que, simplesmente, "nada sabem".
laçamento e a ofuscação (o modelo, o pintor, o rei, o especta- Neste momento de nossas considerações, duas distinções
dor) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se petrificas- exploradas com extrema clareza por Marilena Chaut podem
sem numa figura plena e exigissem que fosse enfim referido a
um olhar de carne todo o espaço da representação."6 7. Ver, a esse respeito, entre outros, particularmente o artigo "Soberania
Não é nosso intento refazer a análise dessa mutação, nem e disciplina", de M. Foucault, in Microfisica do poder, introd. e org. de Roberto
examinar sua "legitimidade científica" ou avaliar o peso de sua Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
significação histórica. Partindo do pressuposto de que uma mu- 8. Ver, sobretudo, da autora: "Ideologia e educação", Educação e Socieda-
de, Cortez Editora/Autores Associados/Cedes, Ano 11, nO 5,jan. 1980; "Ven-
tação histórica do saber não é sinônimo de avanço ou de pro-
tos do progresso: A Universidade administrada", in Descaminhos da Educação
gresso, mas tão-somente a marca de uma diferença, interessa- Pós-68, São Paulo, Brasiliense, 1980; O que é ideologia, São Paulo, Brasiliense,
2 a ed., 1981; "A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo",
5. lbid., 321. Almanaque, Cadernos de Literatura e Ensaio, nO 11 ("Educação ou Desconversa?"),
6. lbid., 323. São Paulo, Brasiliense, 1980.

54 I Foucault, Simplesmente educação e saber soberano I 55


nQs ser úteis. A primeira é a distinção entre conhecimento e rias da educação, legisla, regulamenta e conttola o trabalho
pensamento. Conhecimento é aquisição intelectual do saber já pedagógico"lO. As estruturas mesmas das instituições escolares
constituído, estabelecido, instituído e qualificado. Pensamento são já um cumprimento dessas normas.
é afrontamento de uma realidade nova, cujo saber é construído Mas é preciso não se iludir: o poder que legisla, regulamen-
a partir de um não-saber que requer sua compreensão. Ora, na ta e controla não está exclusivamente centralizado num saber
medida em que as ciências humanas se movem na zona do elaborado no exterior da instituição escolar, nela se exercendo
conhecimento qualificado e instituído, tendem a excluir o espa- de fora para dentro e de cima para baixo. Ao contrário, na me-
ço do pensamento. A outra distinção (retomada de Claude Le- dida mesma em que professores e alunos nos limitamos a cum-
fort) marca a diferença entre "discurso sobre" e "discurso de". prir as normas, a assimilar o saber "qualificado", trazemos para
O "discurso sobre" um objeto dissimula e busca substituir o dentro das próprias relações pedagógicas os mesmos mecanis-
discurso daquilo mesmo que está em questão, impedindo que mos e os mesmos efeitos de exercício do poder. É quando a
isso mesmo que está em questão primeiramente fale de si e por escola não pode ser um lugar onde se pensa para ser o lugar
si para vir a ser compreendido. "Por exemplo, quando o discur- onde se reproduz o conhecimento instituído. É quando as rela-
so da unidade social se tornou realmente impossível em virtude ções entre professor e estudante reproduzem a relação do sujei-
da divisão social, surgiu um discurso sobre a unidade; quando o to que "possui" o saber com um "objeto" de educação.
discurso da loucura tem que ser silenciado, em seu lugar surge Diríamos, finalmente, que é nesse tipo de configuração do
um discurso sobre a loucura; onde não pode haver um discurso saber pedagógico e das relações pedagógicas que o "lugar do
da revolução surge um outro, sobre a revolução; ali onde não rei", esse "soberano submetido", está plenamente ocupado. E
pode haver discurso da mulher surge um discurso sobre a mu- que o que se propõe, em contrapartida, é o esforço por reverter
lher etc."9. Ora, as ciências humanas, enquanto saber sobera- semelhante configuração pelo esvaziamento da "posse" desse
no - e com isso entendamos qualificado, normativo e podero- espaço. Entenda-se: não estamos aqui a aspirar a um absurdo
so -, trazem não só a carga do conhecimento capaz de estagnar regresso ao século XVII nem a um retorno à soberania da repre-
o pensamento como as marcas de um saber sobre o homem que sentação. Por uma transposição mais metafórica que ilustrati-
silencia o seu próprio "objeto". va, e numa interpretação livre da análise foucaultiana do qua-
Transportemos finalmente estas considerações para a re- dro de Velázquez, estamos apenas endossando a proposta de
gião da pedagogia, admitida que é no campo das ciências hu- que, no saber da educação, na instituição escolar e nas relações
manas como "ciência da educação". É bem possível que acabe- pedagógicas, fique vazio o "lugar do rei", isto é, desocupado de
mos por verificar que ela se faça como conhecimento) isto é, re- qualquer sujeito soberano (quer na forma da representação, quer
produção de um saber instituído sobre a educação. É possível que no modo da realidade), destituído de todo direito da realeza.
quem primeiramente pronui,.cie o discurso pedagógico não Transposição metafórica e interpretação livre que pretende
sejam nem os professores nem os estudantes, mas "a burocra- apenas emoldurar, num cenário visual, a proposta muitas vezes
cia estatal, que, por intermédio dos ministérios e das secreta- formulada por Marilena Chaui. A saber: a de que no trabalho

9. CHAU1, M., "Ideologia e educação", in Educação e Sociedade, nO 5, 26. lO. Ibid., 27.

56 I Foucault. Simplesmente educaçáo e saber soberano I 57


pedagógico não seja o conhecimento a ponte entre o professor
e o estudante, mas antes seja o professor o mediador entre o
estudante e o pensamento. Na medida em que exercesse esse
v
papel, o professor desocuparia o lugar soberano de detentor do O LUGAR DAS INSTITUiÇÕES
saber, lugar que "então permaneceria sempre vazio, a fim de
que pudesse ser visto como acessível a todos porque não per- NA SOCIEDADE DISCIPLINAR'
tence a ninguém"ll.

Que há de espantoso no fato de que a pn'são se assemelhe às usinas, às escolas, às


casernas, aos hospitais, e de que todos se assemelhem às prisões?
M. FOUCAULT, Surveiller et punir, 229.

Buscando reconstituir aspectos do pensamento de Foucault


no tratamento das assim chamadas "instituições disciplinares",
convém, preliminarmente, situar o aparecimento desse tema
no contexto mais amplo daquele pensamento.
A inclusão de análises e descrições de práticas institucio-
nais no interior de um pensamento voltado para a formação e
a transformação de configurações discursivas que compõem
saberes historicamente constituídos é um assunto que perten-
ce, certamente, à questão das imbricações entre os planos dis-
cursivo e extradiscursivo. Ora, esta é uma questão que, particu-
larmente em relação aos primeiros livros de Foucault, foi (ou é)
objeto de polêmica e tema de interesse.

* Este textO reproduz, com pequenas alterações, palestra proferida por


ocasião do Colóquio Foucault, na Universidade de São Paulo, em abril de
11. CHAUl, M., "A não-violência do brasileiro, um miro interessantíssimo", 1985. Publicado em Recordar Foucault (RIBEIRO, R. J., org.), São Paulo, Brasi-
Almanaque, nO 11,24. liense, 1985.

58 I Foucault. Simplesmente o lugar das instituiçóes na sociedade disciplinar ! 59


Contudo, esta questão sofre um deslocamento considerá- tipo determinado de instituições: aquelas que, num dado mo-
vel a partir, precisamente, da publicação dos livros Vigiar e punir mento histórico, constituem peças na engrenagem de um tipo
(1975) e A vontade de saber (1976), marcando a passagem da determinado de sociedade, que é ainda a nossa, e que Foucault
"arqueologia" para a "genealogia". Desde então, quando Fou- chama de "instituições disciplinares".
cault busca, explicitamente, atrelar a questão da constituição
de saberes a modos de exercícios de poder, a análise se descen-
.**
traliza do eixo "discursivo/não-discursivo", para aproximar-se
R instalação das instituições disciplinares
de um eixo mais complexo que o autor chama de "dispositivo".
O ((dispositivo", com efeito, reúne o discursivo e o extradiscur- As conferências que compõem o texto A verdade e as formas
sivo, ou antes, coloca esta questão em um plano de menor im- juridicas (1974) descrevem uma história da produção de saberes
portância. Eis o que ele escreve: "Através desse termo tento de- baseada em determinadas práticas sociais (as práticas jurídicas
marcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente hete- ou judiciárias) que foram capazes de gerar modelos de estabe-
rogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações ar- lecimento da verdade. Ao longo desse estudo, Foucault descre-
quitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas admi- ve o surgimento e os caracteres do que denomina "sociedade
nistrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, mo- disciplinar", dedicando-se, na última conferência, a uma abor-
rais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elemen- dagem mais centralizada sobre as instituições inseridas nesse
tos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabele- tipo de sociedade. Tomaremos esse text03 como referência para
cer entre esses elementos". E segue mostrando que, com esse resumir, brevemente, o que ele nos diz sobre a sociedade disci-
termo, pretende ainda "demarcar a natureza da relação que po- plinar e nos determos na questão de suas instituições.
de existir entre esses elementos heterogêneos" ("discursivos ou A sociedade disciplinar tem seu surgimento por volta dos
não") bem como evidenciar a "função estratégica" do dispositi- fins do século XVIII. Caracterizando-se, principalmente, como
vo, na medida em que responde à articulação entre produção um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vi-
de saber e modos de exercício de poder que é dominante em giar e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta, a
cada momento histórico'. De sorte que poderá afirmar: "Mas, sociedade disciplinar deu lugar ao nascimento de determinados
em relação ao dispositivo, não é muito importante dizer: eis o saberes (os das chamadas ciências humanas), para os quais o
que é discursivo, eis o que não é"2. "exame" é o modelo prioritário de estabelecimento da verdade;
O que aqui nos ocupará é a análise de instituições entendidas, pelo "exame" instaura-se, igualmente, um modo de poder em
pois, como elementos de um "dispositivo" articulador das rela- que a sujeição não se faz apenas na forma negativa da repressão,
ções entre produção de saberes e modos de exercício de poder. mas, sobretudo, ao modo mais sutil do adestrament9, da pro-
Não, porém, genericamente. Retomaremos a descrição de um
3. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas) trad. Roberto Machado e
Eduardo J. Morais, Cadernos da PUC/Rj, série Letras e Arres, 6/74, nO 16,
1. Cf. FOUCAULT, M., "Sobre a história da sexualidade", in Microfísica 1974. Posteriormente, este texto foi republicado no Rio de Janeiro, pela Nau
do poder, inrrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979. Edirora, em 1999. As referências das passagens aqui reproduzidas remetem à
2. Ib;d., 247. primeira edição.

60 I Foucault. Simplesmente o lugar das instituições na sociedade disciplinar I 61


dução positiva de comportamentos que definem o "indivíduo" nham uma forma "compacta, forte", sendo depois substituídas
ou o que "deve" ele ser segundo o padrão da "normalidade". por instituições com iguais características, mas de "forma bran-
Concomitantemente ao surgimento de saberes e ao exercí- da, difusa,,6. Elas marcaram o aparecimento de fábricas, hospi-
cio do poder disciplinares, instalam-se determinadas institui- tais, escolas, casas de correção, prisões etc., cujas características
ções a eles articuladas. Foucault toma como modelo prenun- de fundo ainda hoje permanecem. Foucault chama-as ainda de
ciador dessas instituições um projeto de arquitetura, o Panóp- "instituições de seqüestro", em razão de que a reclusão que elas
tico, elaborado em fins do século XVIII pelo jurista inglês Jere- operam não pretende propriamente "excluir" o indivíduo re-
my Bentham. Retomemos uma das passagens em que descreve cluso, mas antes "incluí-lo" num sistema normalizador. Eis uma
esse projeto arquitetômco: passagem esclarecedora:
"O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, "Na época atual, rodas essas instituições ~ fábrica, escola, hospi-
uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte tal psiquiátrico, hospital, prisão ~ têm por finalidade não ex-
interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada cluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui
uma ocupando roda a largura da construção. Estas celas têm duas os indivíduos; liga-os a um aparelho de produção. A escola não
janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às jane- exclui os indivíduos; mesmo fechando-os, ela os fixa a um apare-
las da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atraves- lho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não exclui
se a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho
rorre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a ca-
condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de sa de correção ou com a prisão"?
contraluz, podem-se perceber da torre, recortando-se na lumino-
sidade, as pequenas silhueras prisioneiras nas celas da periferia. Descreveremos, a seguir, o traço mais básico e geral das
Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de instituições disciplinares e, a partir daí, as funções que lhes
um vigia captam melhor que o escuro, que, no fundo, protegia"4. cabe cumprir.

Outra passagem descritiva do projeto conclui com a se-


Característica básica: do espetáculo à vigilância
guinte observação: "O Panopticon é a utopia de uma sociedade
e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atual- Pode-se dizer que o traço característico fundamental das
mente conhecemos - utopia que efetivamente se realizou"s. instituições disciplinares está desenhado em seu modelo de ar-
Por isso, esse tipo de sociedade e de poder é perpassado pelo quitetura, tal como é anunciado no projeto do Panopticon.
que Foucault denomina "panoptismo". Recorrendo a autores contemporâneos ao surgimento dessas
Na realização do "panoptismo", as primeiras instituições instituições e que desenvolveram estudos a respe~to (N. H.
que, por volta do início do século XIX, foram instaladas ti-
6. Ibid., 90. É ilustrativo ler (no mesmo texto, 86-88), a longa descrição
4. Cf FoucAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 210. Esta que Foucault fornece do regulamento de um destes tipos de instituições,
descrição praticamente reproduz a. que se encontra em Surveiller et punir, que, em sua forma mais "compacta", realmente existiu na França dos anos
Paris, Gallima.rd, 1975,201-202. 1840-1845.
5. FoucAuLT, M., A Verdade e as formas jurídicas, 69. 7. 1bid., 91-92.

62 I Foucault, simplesmente o lugar das instituições na sociedade disciplinar I 63


Giulius, autor de Lições sobre as prisões, de 1830, e J. B. Treillard, tão um tipo de poder que se exerce "por transparências", uma
autor de Motivos do Código de Instrução Criminal, de 1808), Fou- dominação que se faz como por "iluminação"12.
caulr realça a transformação que, na arquitetura das institui- Foucault lembra que se o projeto de Bentham fora inspira-
ções, teve por efeito invertê-las de uma arquitetura de espetácu- do na arquitetura já existente da Escola Militar de Paris (1751),
lo a uma arquitetura de vigilância. Reportando-se a Giulius, faz contudo, a designação que lhe deu - Panopticon - encerra
ver como na civilização grega antiga, por exemplo, a arquitetura uma generalização altamente significativa. Com efeito, o proje-
atendia à necessidade de possibilitat a exibição de espetáculos to e seu nome não carregam apenas a idéia de uma técnica
ao maior número possível de pessoas (para isso, "a arquitetura específica destinada a "resolver um problema específico, como
dos templos, dos teatros, dos circos")'; esse tipo de construção O da prisão, o da escola ou o dos hospitais", mas sustentam
respondia a um tipo de sociedade marcado pela participação da "um princípio de conjunto,,13 capaz de inaugurar o que viria a
comunidade nos momentos de mais unidade na vida pública ser o desenvolvimento de toda uma nova forma de poder. As-
("sacrifícios religiosos, teatro ou discursos políticos"t Não que sim, não é por acaso que o próprio Bentham refere-se à sua
esse modelo tenha desaparecido por completo; porém, na socie- invenção como "um ovo de Colombo", e que Giulius vê nela
dade moderna, organizada na forma estatal, transformam-se as "um acontecimento 'na história do espírito humano",14.
necessidades e transforma-se a arquitetura. "Numa sociedade", Entendido assim. como "princípio de conjunto", o traço
diz Foucault, "onde os elementos principais não são mais a co- básico do panoptismo articula-se com transformações funda-
munidade e a vida pública, mas de um lado os indivíduos priva- mentais e gerais na ordem do poder. Basta apontar, por exem-
dos, e de outro o Estado, as relações só podem ser reguladas plo, as conseqüências vantajosas que acarreta para os custos
numa forma exatamente inversa ao espetáculo."lO Isto significa políticos e econômicos do poder. Do pOnto de vista propria-
que a arquitetura deverá então assegurar não mais que espetá- mente político, possibilita uma crítica ao funcionamento do
culos sejam dados ao maior número de pessoas, mas que indiví- poder monárquico, que, exercendo-se com violência aparente e
duos sejam dados como que em espetáculo a um olhar vigilan- garantindo Sua continuidade por meio de punições espetacula-
te. E (a partir de Giulius) lembra a metáfora do "olho" com que res para efeitos de exemplo, acaba por se tornar "um poder
então se simbolizava o imperador: "O imperador é o olho uni- muito oneroso e com poucos resultados"15. Economicamente,
versal vo.ltado sobre a sociedade em toda a sua extensão. Olho o controle contínuo é de uma eficácia pouco dispendiosa, efe-
auxiliado por uma série de olhares dispostos em forma de pirâ- tivando-se por meio da organização de uma cadeia de olhares
mide a partir do olho imperial e que vigiam toda a sociedade" I I vigilantes que, finalmente, cada indivíduo "acabará por interio-
Mediante uma vigilância que é "ao mesmo tempo global e rizar a ponto de observar a si mesmo", exercendo a vigilância
individualizante", em que o "anteparo da escuridão" é substi-
tuído por uma "visibilidade" isolante", vai-se constituindo en- 12. Cf. expressões usadas pelo autor em "O olho do poder", in Microfi:
sica do poder, 210, 216-217.
8. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,218. 13. Ibid., 217.
9. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 85. 14. Ibid., 209, 211, 218. Ver também: Surveiller et punir, 218, e A verdade
10. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, 218. e as formas jurídicas, 85.
11. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 86. 15. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 217.

64 I Foucault. Simplesmente o lugar das instituições na sociedade diSCiplinar I 65


"sobre e contra si mesmo"; portanto, mais que uma técnica prisões, nos orfanatos, nos hospitais, nas casas de correção etc.
particular, é uma "fórmula maravilhosa: um poder contínuo e como um dos nós que amarram essa rede de instituições.
de custo afinal de contas irrisório"!6.
Eis também por que, entendida assim a visibilidade como Controle dos corpos
princípio geral, esse sistema basicamente "ótico"!7 desdobrar- Aparentemente, cada uma das instituições disciplinares é
se-á no aperfeiçoamento, na multiplicação e na diversificação destinada a uma função específica: "As fábricas feitas para
de instrumentos de vigilância (até os mais sofisticados), de modo produzir, os hospitais, psiquiátricos ou não, para curar, as es-
a que as instituições disciplinares cumpram, efetivamente, colas para ensinar, as prisões para punir"!9. De fato, porém, é
diversificadas funções que respondem à instalação e ao desen- função de todas disciplinar a existência inteira do indivíduo
volvimento da sociedade disciplinar. pela disciplinarização do corpo. Lembremos, com Foucault, a
título de exemplo, que, nas fábricas do começo do século XIX,
Funçóes questões como a imoralidade e a devassidão eram assunto de
Controle do tempo preocupação dos patrões; assim também, nos hospitais, cuja
função específica é a cura, a proibição de atividades sexuais não
A vigilância é, nas sociedades modernas, uma maneira de
se reduz a motivos de higiene e saúde; as disciplinas escolares,
dispor do tempo do indivíduo, de modo a atender, sobretudo,
igualmente, excedem a função estrita do ensino. Foucault faz
às necessidades da industrialização. Controlar o tempo é trans- ver que, se no poder monárquico o "corpo do rei" era não uma
formar o tempo do trabalho em mercadoria trocada por salá- "metáfora, mas uma realidade política", já que "sua presença
rio, mas é mais ainda: é transformar todo o tempo dos homens física era necessária ao funcionamento da monarquia", na so-
em tempo de trabalho. Controlados são os tempos de festa, de ciedade moderna o importante é o "corpo da sociedade", atin-
prazer, de ociosidade, de descanso. Foucault mostra que certas gido por meio dos corpos individuais; ele será "protegido", subs-
técnicas, aparentemente criadas para a proteção do trabalha- tituindo-se "a eliminação pelo suplício" por "métodos de assep-
dor, na verdade têm a eficácia de controlar todo o tempo de sua sia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos 'degenerados"'20.
vida. Um exemplo disso é a concessão de aumentos salariais e Portanto, não mais o corpo supliciado, mas o corpo controla-
de fundos de economia, que, contudo, não podem ser usados do como "o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que
pelos trabalhadores "no momento em que desejarem, para fa- deve adquirir aptidões, receber um certo número de quali-
zer greve ou para festejar,,18. dades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar"Z!. Assim,
De maneiras mais abruptas ou mais sutis, e com diferentes a disciplina corporal é minuciosa, desenvolvendo-se de formas
técnicas, pode-se dizer que o.controle do tempo é exercido conti- diversificadas mas de algum modo semelhantes e intercruzadas
nuamente não só nas fábricas, mas também nas escolas, nas tanto na pedagogia escolar como na organização militar, no

16. Ibid., 218. Ver, a este respeito, Surveiller et punir, 219-220. 19. lbid., 95.
17. Cf. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 211. 20. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfisica do poder, 145.
18. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 94-95. 21. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurzdicas, 96.

66 I Foucault. Simplesmente o lugar das instituições na SOCiedade disciplinar I 67

1.
espaço hospitalar como nas prisões, de modo a "cobrir o corpo pelos guardas, pelo diretor d3: prisão etc. Mas também é curio-
social por inteiro,,22.
so, a esse respeito, o exemplo particular do sistema escolar,
Foucaulr indica inclusive que foram as disciplinas corporais quando Foucault faz ver quanto ele é "inteiramente baseado
(particularmente as militares e escolares) que tornaram possível em uma espécie de poder judiciário", explicitando que nele "a
a elaboração de um "saber fisiológico, orgânico", um "saber so- todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica,
bre o corpo,,23. Mas indicar que o controle dos corpos engendra se diz quem é o melhor, quem é o pior,,27.
saber já é referir-se ao caráter polimorfo do poder disciplinar. Poder econômico, poder político, poder judiciário, o poder
instalado nas instituições disciplinares é também epistemológi-
Instalação de um poder polimorfo co, isto é, produz saberes. E os produz duplamente: quer extra-
O tipo de poder instalado por essas instituições é "poli- indo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indiví-
morfo" e, por isso, "polivalente"24, Isto é, ele se desdobra em duos 28 . Um exemplo de saber extraído dos indivíduos ocorre em
múltiplos caracteres que, esquematicamente, podemos desig- instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito
nar de econômicos, políticos, judiciários e epistemológicos. de seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constante-
O caráter econômico do poder disciplinar é evidente, por mente submetido à vigilância e ao registro, fornece elementos
exemplo, no caso das fábricas; pode também aparecer de for- para gerar saber acerca da produção. Por sua vez, saberes sobre o
mas menos diretas, como no pagamento feito a hospitais. Mas indivíduo nascem das observações, das classificações, das ano-
ao caráter econômico se atrela o político: "As pessoas que diri- tações a respeito do doente, do criminoso, da criança etc.
gem estas instituições se delegam o direito de dar ordens, de Em suma, e conseqüentemente, as instituições disciplina-
estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de expulsar indi- res fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente,
víduos, de aceitar outros etc.".25 Ambos, o econômico e o polí- não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e
tico, articulam-se a um caráter judiciário: "nestas instituições, personificado, mas é principalmente difuso, espalhado, minu-
não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não somente se cioso, capilar.
garantem funções como a produção, a aprendizagem etc., mas
***
também se tem o direito de punir e compensar, se tem o poder
de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento"26. É Para concluir, o acréscimo de uma observação. É de se no-
claro que o caráter judiciário é mais evidente no caso das pri- tar que, nas análises das instituições disciplinares, muitas são
sões, onde, depois de julgado por um tribunal, o indivíduo as passagens em que Foucault se detém particularmente nas
prisões. As conferências sobre A verdade e as formas jurídicas, como
continua tendo seu comportamento constantemente julgado
27. Ibid., 97. Ver, também, o estudo destes caracteres no capítulo intitu-
22. FOUCAULT, M., Surveiller et punir; 141. Ver, a este respeito, particular- lado "Le paroptisme", de Surveilleret punir; e, em Microfisica do poder; os artigos
mente todo o capítulo desse livro intitulado "Les corps dociles". "Soberania e disciplina" e "O olho do poder". Neste último (211-212), o
23. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfoica do poder, 148-149. realce da importância de um estudo sobre "a arquitetura institucional" ("da
24. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 96.
sala de aula ou da organização hospitalar"), ou a elaboração de uma "histó-
25. Ibid., 96. ria dos espaços" que seria também uma "história dos poderes".
26. Ibid., 97. 28. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 97.

68 I Faucault, simplesmente o !ugar das instituições na sociedade disciplinar ! 69

1
já dissemos, tomam por base as práticas judiciárias, cuja histó- Assim, ao meSmo tempo em que é "diferente" das outras
ria, por certo, se vincula mais diretamente às prisões. O livro instituições, todas lhe são semelhantes. Por isso, de um lado,
Vigiar e punir, que focaliza explicitamente o estudo de institui- ela "inocenta" as demais, já que, afinal, só ela é prisão. (E o
ções, traz como subtítulo O nascimento das prisões. É possível que discurso que ela então emite seria: "A melhor prova de que
essa tônica ou esse realce se fundamente em dois aspectos que, vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição par-
ambiguamente, se completam. ticular, separada das outras ... ".) Mas, por outro, ela "se inocen-
Por um lado, há uma certa singularidade da prisão. É nela, ta" de ser prisão, pois, afinal, é apenas a forma mais transpa-
diz Foucault, que o "Panopticon" encontra "seu lugar privile- rente de todas as outras. (E o discurso que ela então emite seria:
giado de realização", é nela que "a utopia de Bentham pôde, "Eu faço unicamente aquilo que lhes fazem diariamente na fá-
num só lance, tomar uma forma material,,29. Tem, assim, a par- brica, na escola etc.".)34
ticularidade de concretizar o "panoptismo" da forma mais pal- Essa ambigüidade da prisão explica, para Foucault, "seu
pável. Além disso, e talvez por isso, entre as instituições disci- incrível sucesso, seu caráter quase evidente, a facilidade com
plinares, a prisão guarda certas peculiaridades: basta lembrar que ela foi aceita... "3S, explica "sua extrema solidez"36. E pode-
que, afinal, não faz parte da vida rotineira das pessoas e, atin- mos certamente completar: explica também, como que circular
gindo, efetivamente, um número reduzido de indivíduos, tem e reciprocamente, a aceitação cotidiana de sua diluição mais
uma marca "local e marginal,,30. E é assim, contudo, com esta sutil por toda a rede das chamadas instituições disciplinares.
marca, que a prisão desperta interesse ou curiosidade na maio-
ria das pessoas. Ora, segundo Foucault, isso talvez se explique
precisamente porque, entre as diversas instituições, é ela a úni-
ca "onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas
dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral".
Ou seja: "O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder
não se esconde, não se mascara cinicamente, se mostra como
tirania levada aos ínfimos detalhes, e ao mesmo tempo é puro,
é inteiramente 'justificado m31 .
Por outro lado, porém, a prisão também aparece como sendo
não mais que a forma "concentrada", "exemplar" e "simbólica"
de todas as outras instituições32 . Afinal, todas as outras institui-
ções realizam uma espécie ~e difusão discreta da prisão 33.

29. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, 252.


30. FOUCAULT, M., "Os intelectuais e o poder", in Microfoica do poder, 72.
31. Ibid., 73. 34. Cf. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas) 99.
32. Cf. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 99. 35. Ibid., 100.
33. Ver, particularmente, a este respeito, Surveiller et punir, 308-310. 36. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, 312.

70 I Foucault. simplesmente o lugar das instituições na SOciedade disciplinar I 71

.....
VI
DE PRÁTICAS SOCIAIS À
PRODUÇÃO DE SABERES*

Trarar-se-á aqui de verdade e poder, questão repetidas vezes indi-


cada como temática nuclear dos escritos de Michel Foucault. À
primeira vista, esta questão parece sugerir certa repartição entre
dois âmbitos: o dos saberes (onde se situaria a ocupação com a
verdade) e o dos procedimentos sociais (onde se reconheceria o
lugar do poder). Assim, por um lado, pensar um espaço comum
que abrigasse o encontro entre ambos não é sempre habitual.
Por outro, um pensamento sobre esse encontro parece apontar,
com maior freqüência, para uma direção de relações que vai,
prioritariamente, dos saberes às práticas sociais, estas como que
guiadas ou iluminadas por aqueles. É propósito desta exposi-
ção perguntar por esse encontro e problematizar essa direção.
Para isso, buscaremos na leitura de Michel Foucault a sele-
ção de algumas passagens capazes de estimular o debate sobre
o assunto e propiciar alguma reflexão acerca do trânsito entre o
campo das práticas sociais e o dos saberes.

* Este texto reproduz, com pequenas alterações, palestra proferida em


Fórum de Debates realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
em abril de 1993. Foi publicado em O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas
do saber (MARTINELLI, M. L., RODRIGUES, M. L., MUCHAIL, S. T., orgs.), São
Paulo, Educ, 1995.

de prátícas sociaís à produção de saberes ! 73

....
Pode-se dizer, de modo muito genérico, que os escritos de mos, a título de caso ilustrativo, a reflexão foucaultiana a res-
Foucault investigam a verdade e seus vínculos com o poder. peito de tais práticas l .
Mas pode-se igualmente dizer que não é da verdade e do poder Numa definição introdurória e geral, entende-se por práti-
que eles tratam. É que a verdade não é entendida enquanto cas jurídicas ou judiciárias "o modo pelo qual os homens po-
identidade de uma essência una e sempre a mesma, mas en- diam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a
quanto produzida no decurso da história, constituindo-se na maneira como se impôs a determinados indivíduos a repara-
formação de saberes reconhecidos como verdadeiros, portan- ção de algumas de suas ações e a punição de outras,,2. A des-
to historicamente múltiplos e diversificados; numa palavra, crição histórica empreendida por Foucault pretende então mos-
trata-se de verdades em seus diferentes modos de produção trar em que sentido modos práticos de estabelecimento da ver-
em diferentes sociedades. Do mesmo modo, não se trata do dade, de natureza jurídica, puderam vir a constituir como que
poder enquanto dominação central e unitária, mas de poderes modelos de produção da verdade no plano discursivo, isto é, no
ou de múltiplos modos de exercício do poder que permeiam plano dos saberes (ciências, filosofia etc.)3. O percurso da histó-
as diferentes sociedades em diferentes momentos históricos. ria que Foucault refaz começa na Grécia antiga e atravessa a
Assim, dizer que os escritos de Foucault concernem à verdade Idade Média, para centrar-se mais detidamente no período que
e ao poder significa que eles realizam investigações históricas vai desde os fins do século XVIII e início do século XIX até
que buscam descrever, em períodos determinados da história nossa contemporaneidade. Essa história pode ser lida e organi-
da cultura ocidental, modos de produção de saberes reconhe- zada em torno de três procedimentos ou práticas sociais de
cidos como verdadeiros e sua articulação com modos de exer- caráter jurídico: a prova, o inquérito, o exame.
cícios do poder.
Essa investigação histórica - mostra-nos Foucault - pode Prova e inQuérito
ser elaborada de modo direto e interno, isto é, percorrendo, por A prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais
dentro, a própria trajetória da constituição dos saberes (é esse, arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois (a partir do sécu-
por exemplo, o procedimento empregado em As palavras e as lo V a.c. aproximadamente) a prática do inquérito4 • Pela prova,
coisas, de 1966). Mas pode-se também realizá-la desde uma pers-
pectiva externa aos saberes, isto é, retraçando não o seu pró- 1. Servir-nos-á de roteiro, basicamente, o textO de cinco conferências
prio desenvolvimento, mas tomando como ponto de partida pronunciadas por M. Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
determinadas práticas sociais que, historicamente, engendra- Janeiro, reunidas sob o título A verdade e as formas jurídicas, trad. de Roberto
Machado e Eduardo]. Morais, em Cadernos PUC-RJ, Série Letras e Artes, 06/
ram saberes considerados verdadeiros. É esse o ângulo que aqui
74, n° 16, Rio de Janeiro, 1974. Posteriormente, este textO foi republicado no
nos interessa, ou seja, verific~r como, no decurso da história, Rio de Janeiro pela Nau Editora, em 1999. As referências das passagens aqui
certos procedimentos, certas práticas não-discursivas de esta- reproduzidas remetem àquela primeira edição.
belecimento da verdade puderam tornar-se matrizes ou mode- 2. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 8.
3. Ibid., 20-21.
los para a produção discursiva da verdade. Entre essas práticas, 4. Segundo Foucault, duas formas de prática jurídica marcaram a socieda-
Foucault dedica especial destaque às chamadas práticas jurídi- de grega antiga. Embora o âmbito desta exposição não comporte reconsticuí-
cas ou judiciárias. Para o propósito desta exposição retomare- las, vale assinalar a descrição dos elementos da prova e das características do

74 ! Foucault, simplesmente de práticas sociais à produção de saberes I 7S

...
a verdade é judiciariamente estabelecida sem o recurso a teste- mecanismos bélicos (a rapina, a ocupação de uma terra, de um
munhas ou a sentenças: os adversários em litígio são literal- castelo etc.)'.
mente "postos à prova", numa espécie de jogo, de duelo ou de É na segunda metade da Idade Média (a partir de fins do
desafio, determinando-se a verdade pelo lado do vencedor do século XII e no decurso do século XIII) que o sistema da prova
risco; qualquer instância como um júri ou um juiz não tem tende a desaparecer, cedendo lugar ao que Foucault chama de
competência de decisão sobre a verdade senão apenas sobre o "uma espécie de segundo nascimento do inquérito", este agora
correto cumprimento das regras do jogo. No inquérito) ao con- de "dimensões extraordinárias", já que "seu destino será prati-
trário, a verdade é determinada por quem "viu e enuncia"s, ou camente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou
seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de ocidental'" e, de certo modo, "para a história do mundo intei-
opor-se ao poder dos governantes. Segundo Foucault, foi a ro, na medida em que a Europa impôs violentamente seu jugo
prática do inquérito que constituiu modelo para formações cul- a toda a superfície da terra"IO. Usado inicialmente nas esferas
turais então emergentes na Grécia antiga, tais como: "sistemas eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introdu-
racionais" (como a filosofia), a "arte de persuadir" (como a zido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como
retórica), conhecimentos empíricos, baseados que são em modelo de produção de verdade e de outras práticas. Eis, no
testemunhos (como os dos historiadores, dos botânicos, dos âmbito jurídico, os traços principais que desenham seu perfil:
geógrafos etc.)6. a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre
Na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente os oponentes, mas se impõe "de fora" e "do alto" por um poder
(entre os séculos V e XII aproximadamente), prevalece o pri- simultaneamente judiciário e político; aparece um personagem
meiro, o da prova, cujos traços principais podem ser assim reu- novo, o "procurador" do rei, representante do soberano, res-
nidos: tratava-se sempre de uma ação "de estrutura binária"7, ponsável por "dublar" a vítima, uma vez que o próprio rei é
isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de
postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro ele- crime como infração, porque um dano não configura mais ques-
mento que representasse a autoridade ou a coletividade; a ver- tão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas "também
dade se confundia com a vitória do mais forte, o direito cons- uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como
tituindo-se não numa correlação entre justiça e paz mas num
prolongamento ritualizado da guerra. Essa era a prática ade- 8. Ibid., 49. Eis alguns dos exemplos levantados por Foucault (cf 45-47)
de provas durante a Idade Média. Prova verbal: o acusado deveria responder à
quada ao perfil de uma sociedade de tipo marcadamente feu- acusação pronunciando certas fórmulas; pronunciá-las incorretamente (um
dal em que a circulação dos bens era assegurada menos pelo erro gramatical, uma troca de palavras) era prova de culpa. Prova corporal: o
comércio que pela herança, pelos testamentos e, sobretudo, pelos acusado deveria andar sobre ferro em brasa e se, dois dias .depois, ainda
apresentasse cicatrizes, era considerado culpado. Ou ainda: amarrava-se a
inquérito que Foucault, na segunda daquelas cinco conferências, reconhece mão direita ao pé esquerdo do acusado e se o atirava na água; se não se
em sua instigante leitura de Édipo-Rei. afogasse era porque nem a água o recebera e, portanto, era culpado; se se
S. Ibid., 41. afogasse, a água o recebera, e o acusado ganhava o processo.
6. Ibid., 42. 9. Ibid., 42-43.
7. Ibid., 47. 10. Ibid., 49.

76 I Foucault, Simplesmente de práticas sociais à produção de saberes I 77

.1
representante do Estado"; por isso mesmo é da competência do exercício do poder. É nesse quadro novo que se instaura o que
soberano o direito de impor penas e exigir reparações (freqüen- Foucault chama de "sociedade disciplinar", que é ainda a nossa.
temente na forma de "confiscos" que enriquecerão as monar- Do ponto de vista judiciário, as transformações acontece-
quias)11. É o funcionamento desse sistema que requer a neces- ram em dois níveis, com resultados diferentes. No nível teórico
sária argüição de testemunhas, a busca da reconstituição dos realizam-se, durante o século XVIII (principalmente com Becca-
fatos, enfim, a prática do inquérito como instrumento capaz de ria, Bentham e Brissot), reelaborações do sistema penal cujos
substituir o flagrante delito, reatualizando o crime quando o princípios básicos podem ser assim reunidos: primeiro, a infra-
criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta. ção não diz respeito à lei natural, religiosa ou moral e só se
Ora, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir configura como ruptura com a lei civil, que precisa, portanto,
dados são procedimentos que se estenderão para outras práti- estar explicitamente formulada; segundo, as leis civis, formula-
cas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do das pelo poder político, concernem apenas à sociedade civil, ou
saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente, melhor, ao que é socialmente útil; terceiro, o crime, não sendo
as ciências empíricas ou da natureza, em domínios "como o da falta moral ou religiosa, define-se como "dano social" e o crimi-
geografia, da astronomia, do conhecimento de climas etc.", ou noso como "inimigo interno" a ser, de algum modo, excluído
ainda da medicina, da botânica e da zoologia 12 • da sociedade; quarto, não compete à lei, por conseguinte, a
Enquanto o sistema da prova desaparece quase por com- prescrição de "vingança" ou a "redenção de um pecado"14, mas
pleto, dele restando talvez a prática da tortura (e mesmo esta a reparação do dano social; quinto, nessa direção, as punições
"já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de serão de quatro tipos possíveis, a saber, a deportação, a humi-
verificação"13), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e lhação pública, o trabalho forçado e a pena de talião.
se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do No nível prático, porém, as sociedades industriais nascen-
sistema jurídico de nossa sociedade. Porém, com a introdução tes vão adotar um procedimento penal que não estava previsto
de uma importante diferença: a partir dos fins do século XVIII pelos teóricos da lei e que vai estabelecer-se, portanto, "quase
e no decurso do século XIX, o modelo do inquérito é invadido sem justificativa teórica": trata-se do aprisionamento, tal como
por outro, este inteiramente novo - o exame. se instala a partir do século XIX, pois, como faz notar Fou-
cault, a prisão, que "não era uma pena de direito no sistema
Inquérito e exame penal dos séculos XVII e XVIII", é "que vai se tornar a gran-
No início do período que passamos a investigar, transfor- de punição do século XIX,,15. Na medida em que se generaliza a
mações fundamentais ocorreram: novas formas de práticas ju- prática do aprisionamento alteram-se radicalmente os princí-
diciárias, novas formas de estabelecimento da verdade, ou me- pios da legislação penal, cujos traços novos podem ser assim
lhor, de saberes considerados verdadeiros, novas formas de reunidos: primeiro, as leis tendem agora a ajustar-se menos à
utilidade social que ao indivíduo (o recurso cada vez maior ao
11. Ibid., 51-52.
12. Ibid., 59. 14. Ibid., 64-65.
13. Ibid., 59. 15. Ibid., 78.

78 I Foucault. simplesmente de práticas sociais à produção de saberes I 79

1
que chamamos de "circunstâncias atenuantes", permitindo desaparecimento completo do modelo inquisitorial. Dele a dis-
modificações na aplicação estrita da lei, em função de situações ciplina faz uso e é ele que permanece no interior do sistema
individuais, é um exemplo desta mudança); segundo e correla- jurídico cujo discurso calca-se ainda no inquérito e organiza-se
tamente, elas buscam menos o "castigo" que o ajustamento do em torno das relaçoes de soberania (do tipo súdito-rei). Em
indivíduo à sociedade, isto é, "o controle e a reforma psicológi- suma, nas sociedades modernas encontra-se, por um lado, um
ca e moral das atitudes e comportamentos"; terceiro, por isso saber do direito articulado na esfera do inquérito e, por outro,
mesmo, enquanto a punição propriamente dita depende da exis- mecanismos ramificados de controles disciplinares, imbrican-
tência de lei explícita e concerne à ocorrência efetiva de uma do-se concomitante e complementarmente.
infração, o controle aringe não apenas o crime já cometido, Mas, se o modelo da soberania (e, portanto, o do inquérito)
mas a possibilidade de ser cometido, enfatizando então a no- permanece incorporado ao saber jurídico, isso não significa que
ção nova de "periculosidade". De ação assim ampliada, esse o modelo da disciplina (e, portanto, sob o do exame) não se
controle não pode ser assumido apenas pelo poder judiciário. tenham constituído outros saberes. A sociedade disciplinar, con-
Ele requererá a conjugação de outros poderes, "poderes late- trolando o tempo e o espaço dos indivíduos, examinando-os,
rais, à margem da justiça". São eles, basicamente, a polícia, para avaliando-os, classificando-os e registrando continuamente suas
a função de vigilância, e "toda uma rede de instituições" ("psi- condutas, constrói as condições para um novo modo de produ-
cológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas"), ção da verdade. É assim que, enquanto a prática do inquérito foi
para funções de correção 16 . modelo para o desenvolvimento das ciências da natureza, o
Mais, a esse âmbito de ação do controle já não basta o exame, ou a disciplina, abre espaço para o surgimento das cha-
inquérito. Ele se calca em outro procedimento. Foucault chama- madas ciências do homem.
o de exame. Enquanto o inquérito é um procedimento para se O estabelecimento da verdade pela matriz do exame não se
saber o que havia ocorrido, isto é, "reatualizar um aconteci- faz mais pela reconstituição de fatos nem na ordem dos teste-
mento passado através de testemunhos,,17, o exame é vigilância munhos, mas pela objetivação do indivíduo e na ordem do que
sempre atual e ininterrupta, importando saber não tanto o que é certo ou errado, permitido ou interditado, correto ou incorre-
"se passou", mas quais as virtualidades do indivíduo e como ele to, em suma, "normal" ou não. No mesmo quadro, simultâ-
presentemente se conduz. De modo genérico, pode-se dizer que, neos aos saberes disciplinares, instalam-se seus correlatos no
enquanto o modelo do inquérito é correlato de uma sociedade plano das instituições sociais: são as instituições disciplinares
comandada pela soberania do monarca, a disciplina é correlata - a prisão, a fábrica, a escola, o asilo, os hospitais psiquiátricos,
de uma sociedade comandada pela democracia burguesa. as casas de correção -, cuja finalidade não é propriamente a
Radicalmente heterogên~os, os dois sistemas mantêm, con- "exclusão" do indivíduo mediante sua "reclusão", mas, ao con-
tudo, certa articulação na sociedade contemporânea. Pode-se trário, precisamente sua "inclusão" como indivíduo, isto é, seu
dizer que na sociedade caracterizada pela disciplina não se dá o ajustamento, sua correção, seu adestramento. São saberes e
instituições que não se atrelam ao que é do estrito âmbito da
16. Ibid., 67-68. lei, mas à conduta do indivíduo no âmbito da norma. Foucault
17. Ibid., 69. faz ver, por exemplo, que, enquanto numa sociedade de tipo

80 I Foucau!t. Simplesmente de práticas sociais à produção de saberes I 81

j
inquisitorial "a individualização é máxima do lado em que se sura (da imprensa, das artes etc.) na história ainda recen-
exerce a soberania e nas regiões superiores do poder", numa te de nossa sociedade são indícios, talvez, de proximida-
sociedade de tipo disciplinar passa-se o contrário, isto é, a indi- de ainda com o modo do poder espetacular e repressivo
vidualização é "descendente", vale dizer, " à medida que o po- que caracteriza menos "a disciplina" do que a prova ou o
der se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre quem ele inquérito;
se exerce tendem a ser fortemente individualizados'1l8. • um sistema de governo no qual foi possível ocorrer o uso
Introduz-se assim, dentro dos quadros da sociedade discipli- ainda recente do confisco e em que a tônica da indivi-
nar, um modo de exercício do poder do qual uma descrição dualização recai tantas vezes sobre a figura expoente do
meramente negativa, espetacular e repressiva não pode dar con- governante traz indícios, talvez, de proximidade ainda
ta. É um poder sutil e produtivo: produz comportamentos e com as relações súdito-rei que caracterizam a sociedade
gestos; cria hábitos; não exclui, normaliza. comandada pela soberania.

••• Indícios como estes podem sugerir uma curiosa situação:


Levantemos algumas reflexões que a reconstituição destas enquanto a descrição foucaultiana já veicula, polemicamente, a
passagens pode, mais de perto, nos suscitar. Sabemos que as crítica das sociedades moldadas na disciplina e no controle, é
análises foucaultianas não pretendem, de modo algum, consti- possível que nOSSa sociedade, pelo menos sob alguns aspectos
tuir uma espécie de proposta teórica geral. Elas são pontuais, ou em algumas regiões, ainda esteja projetando - como meta
circunscritas, localizadas. Pode-se, pois, perguntar pela situa- de desenvolvimento ou como horizonte de esperança - sua
ção particular da sociedade brasileira atual no quadro daquela realização mais completa como sociedade disciplinar.
descrição da sociedade contemporânea ocidental. De um pon- Finalmente, numa última consideração, retomemos o con-
to de vista amplo, parece-nos que o perfil de nossa sociedade texto em que situamos inicialmente esta exposição. Depois de
encontra-se, também ele, ali desenhado; ao mesmo tempo, po- termos feito a apresentação de uma espécie de caso ilustrativo,
rém, é possível interrogar se ele se ajusta inteiramente ao qua- alarguemos o alcance do exemplo e indaguemos, mais ampla-
dro descrito. Estimulando esta pergunta, apontemos alguns mente, pela possibilidade de que, à diferença do que parece
indícios para a reflexão: habitual, as fronteiras entre procedimentos e discursos, entre
• a industrialização em escala incipiente, desigual e regio- práticas sociais e saberes sejam menos distantes e o trânsito
nalizada, bem como a preservação das grandes proprie- bem mais freqüente.
dades de terra são indícios, talvez, de proximidade ainda
com as condições qu~ caracterizam o modelo inquisitorial
mais do que o do controle;
• a manipulação pela tortura e pela violência sem disfar-
ces, assim como o uso de mecanismos explícitos de cen-

18. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, Paris, Gallimard, 1975, 194-195.

82 I Foucault. simplesmente de práticas sociais à produção de saberes I 83


VII1
FOUCAULT E A LEITURA
DOS FILÓSOFOS'

Meus livros não são tratados de filosofia nem estudos históricos;


no máximo, são fragmentos filosóficos em canteiros históricos.
M. FOUCAULT) Dits et écrits) IV, 21.

De modo geral, os filósofos reúnem sua atividade à do


historiador quando o que os ocupa são "canteiros históricos"
de obras filosóficas, isto é, quando se trata da leitura de textos
filosóficos na elaboração de histórias da filosofia. Nesses casos,
indagações sobre a conjugação ou a disjunção entre caráter
histórico e qualidade filosófica são freqüentes. Questões seme-
lhantes podem ter lugar relativamente aos escritos de Michel
Foucault. Porém, com particularidades de uma situação muito
diversa. E de uma diversidade pelo menos tríplice.
Primeiro, como se sabe, não são as filosofias, mas outros
e variados os "objetos" e os "domínios" dos quais se ocupam
os estudos históricos que Foucault realiza (a loucura, a doen-
ça, a medicina, as chamadas ciências humanas, a delinqüên-

* Este texto reproduz, com algumas modificações, palestra proferida


por ocasião do Colóquio Michel Foucault, na Universidade do Rio deJaneiro,
em novembro de 1999. Publicado em Retratos de Foucault (PORTOC.ARRERO, V.,
CASTELO BRANCO, G., orgs.), Rio de Janeiro, Nau Editora, 2000.

Foucault e a leitura dos filósofos I 85

.1
cia, as práticas judiciárias, o direito, a sexualidade, a literatu- sobre Kant (de 1961)3; a releitura (de 1971) das Meditações de
ra, as artes ... ). Descartes4 (em réplica tardia à crítica de Derrida); o ensaio so-
Segundo, variados são também os planos das abordagens. bre Nierzsche (de 1971)5; o esrudo mais recente sobre Kant (de
Ora mantêm-se na dimensão estrita dos discursos, e isso signi- 1984t De modo geral, trata-se de cursos, ensaios "avulsos",
fica no âmbito das epistémes ou dos espaços que demarcam as textos curtos e, em todo caso, em número reduzido.
possibilidades de configurações dos saberes historicamente qua- Todavia, a presença assídua das filosofias encontra-se nos
lificados, permanecendo, portanto, no interior das articulações escritos volumosos e de grande porre onde têm lugar, por as-
interdiscursivas. Ora se movem no trânsito entre a dimensão sim dizer, indireto, atreladas que estão ao assunto central da
discursiva e a extradiscursiva, e isso significa no âmbito dos respectiva investigação. Para mencionar algumas siruações par-
chamados dispositivos estratégicos, agregando, portanto, ao cam- ticularmente explícitas: a leitura comparativa entre Montaigne
po epistêmico práticas e instituições sociais. e Descartes, no capítulo II ("O grande enclausuramento") da
Terceiro, e mais genericamente, há diversidade porque Fou- primeira parte de História da loucura; ou as retomadas de Platão
cault realiza um peculiar cruzamento entre a atividade do filó- nos volumes II e III (O uso dos prazeres e O cuidado de si) de Histo-
sofo e a do historiador na medida em que, diferentemente da ria da sexualidade. Em todo caso, com diferentes intensidades e
prática filosófica de pensar a história, pensa filosoficamente extensões, as filosofias são protagonistas dos grandes livros de
história (História da loucura) Nascimento da clínica, As palavras e as
ao praticar a investigação histórica. Como escreveu um historia-
coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade).
dor, "seu pensamento se situa sistematicamente nas linhas
Para o primeiro modo de presença, tomemos uma análise
fronteiriças, nos limites, nos interstícios entre os gêneros"'.
textual que nos parece exemplar. Trata-se da réplica à crítica que
Entretanto, certa leitura das filosofias - se se quiser, em
Derrida endereçara à leitura foucaultiana de Descartes em História
sentido largo, certa história das filosofias - marca presen-
da loucura? Com efeito, no texto "Mon corps, ce papier, ce feu",
ça nos trabalhos de Foucault. Pode ser reconhecida de duas
maneiras, mas em proporções desiguais: convencionemos dizer
3. Comporta tradução e introdução a Kant, Antropologia do ponto de vista
que diretamente as filosofias comparecem com menor freqüên- pragmático. O texto de Foucault, datilografado, está incluído no acervo do
cia, indiretamente, quase sempre. Centre Michel Foucault e uma "Notice historique" está publicada em Dits et
écrits, I, 288-293.
••• 4. Sob o título "Mon corps, ce papier, ce feu", acrescentada à segunda
edição de Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, 1972.
Não muitos escritos se ocupam diretamente da abordagem 5. Cf "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", in Dits et écrits) lI, 136-156.
de filósofos. Para mencionar alguns: um estudo introdutório Incluído, em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., Microftsica M poder,
introd. e org. Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
sobre Rousseau (de 1962)2; a tese complementar de dourorado
6. Cf. "Qu'est-ce que les Lumieres?", in Dits et écrits) IV, 562-578 e 679-
688. Esta última versão, extraída do curso de 5 de janeiro de 1983, incluída,
1. DOSSE) F., Histoire du structuralisme. 11 - Le chant du rygne, 1967 à nos em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., O Dossier - últimas entrevis·
jours, Paris, Éditions La Découverte, 1992, 305. Tradução brasileira de Álvaro tas. Introd. e org. de Carlos Henrique Escobar. Trad. de Ana Maria de A. Lima
Cabral, São Paulo, Ensaio, 1994,274. e M. da Glória R. da Silva. Rio de Janeiro, Taurus, 1984.
2. Cf. "Introduction" a Rousseau, Rousseau)juge deJean-Jacques. Dialogues, 7. Cf. DERRlDA, J., "Cogito et histoire de la folie", Revue de Métaphysique
incluído em Dits etécrits, I. Paris, Gallimard, 1994, 172-188. etde Morale, oct.jdéc., 1963 n. 4, 460-494.

86 I Foucault. Simplesmente Foucault e a leitura dos filósofos I 87

.........
Foucault realiza, com habilidade de mestre, uma reconstitui- tes, de Kant, de Husserl JJ1z ; não deixa de lembrar quanto Fou-
ção interna das Meditações, usando técnicas refinadamente rigo- cault suspeitava de uma «história da filosofia universitária"'3 e,
rosas e uma esmerada ordem de exposição. Compara, passo a no final, indica o trabalho foucaultiano como "um instrumen-
passo, os parágrafos (sobre o sonho e sobre a loucura) do texto to de renovação de uma 'história da filosofia' que seria aciona-
cartesiano e segue, em detalhe, o sistema que os opõé; remete da, enfim, com a morte da 'filosofia' tal como esta é ainda
a termos latinos e a suas traduções9; principalmente, faz ver a escolarmente entendida"'4. Se, em As palavras e as coisas) fizer-
necessidade de dupla postura de leitura demandada pelo pró- mos um levantamento geral na seqüência dos dez capítulos,
prio texto, isto é, enquanto sistema, certamente ("encadeamento acompanhando os três períodos históricos percorridos (renas-
sistemático de proposições))), mas também enquanto exercício, cimento, idade clássica, modernidade), veremos que são convo-
precisamente por sua natureza de "meditação"lO. Finalmente, cados, entre outros, e muitos deles numerosas vezes: Montaigne,
subverte a posição de defesa para instalar-se no terreno do opo- Descartes, Bacon, Berkeley, Condillac, Hume, Hobbes, Male-
sitor e apontar os defeitos que são dele, de seu crítico (no caso, branche, Espinosa, Rousseau, Locke, Montesquieu, Kant, Dil-
Derrida), na leitura do mesmo texto cartesiano: "omissão de they, Bergson, Leibniz, Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger;
elementos literais", "elisão de diferenças textuais", "apagamen- além disso, há chamadas à Logique de Port-Royal, aos ideólogos,
to enfim e sobretudo da determinação discursiva essencial (du- à fenomenologia, ao estruturalismo etc.
pla trama do exercício e da demonstração)"ll. Dessa relação apenas nominal, destaquemos algumas passa-
Consideremos a outra e mais freqüente maneira - a indireta gens e, preferencialmente, duas escolhidas entre aquelas que se
- de inserção das filosofias, tentando vasculhá-la um pouco no ocupam com momentos de limiares ou de transição entre os
enredo das investigações históricas períodos históricos investigados.
Tomemos As palavras e as coisas. Um artigo de G. Lebrun O capítulo III ("Representar"), que estabelece a ponte do
descreve-o como "um livro de combate" e "um livro filosófico", renascimento à idade clássica, depois de iniciar-se com a cativan-
que "contém ao menos o esboço de uma história da filosofia" te leitura sobre as aventuras de "Dom Quixote" (item I), passa a
e no qual encontramos "indicações para uma leitura de Descar- fazer falar os filósofos. A palavra de Descartes, principalmente,
compõe todo o teor do item II, para explanar o desmoronamen-
8. FOUCAULT, M., "Mon corps, ce papier, ce feu", in Histoire de lafolie, to da semelhança renascentista e a instauração da categoria clás-
588-590. sica da "ordem". No item I1I, a Logique de Port-Royal, Berkeley e
9. Ibid., 590-591. Condillac, para '(a representação do signo". O item N, "a repre-
10. Ibid., 593-597. sentação reduplicada", conta com a Logique e com Destutt de
11. Ibid, 599. A título de curiosidade, lembremos a publicação bem
posterior (Éd. Galilée, 1992) de outro texto, "Fazer justiça a Freud - A histó- Tracy. Para apresentar "a imaginação da semelhança", no item V,
ria da loucura na era da psicanálise", no qual, ao afirmar que evita o retorno
à discussão anterior, Derrida de certo modo a repete e propõe - agora acerca 12. LEBRUN, G., "Note sur la phénoménologie dans Les Mots et les choses",
de Freud, não de Descartes - "o esquema ou o espectro de uma problemática in Michel Foucault philosophe - Rencontre internationale)Paris, 9)10,11 janvier 1988.
análoga" ou de "uma questão semelhante". Cf. ROUDINESCO, E.; CANGUILHEM, Paris, Seuil, 1989,33.
G., MAJOR, R., DERRlDA, J., Foucault - Leituras da história da loucura. Trad. M. 13. Ibid., 38.
Ignes Duque Estrada, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, 55ss. 14. Ibid., 51.

88 I FoucaulL Simplesmente Foucault e a leitura dos filósofos I 89


lá estão Hobbes e Hume, e são evocados Descartes, Malebran- nhecimento que coloca para Kant o problema de saber o que é
che e Espinosa, assim como Condillac, Hume e Rousseau. a relação entre o sujeito moral e o sujeito do conhecimento,,16.
Bem mais adiante, o capítulo VII ("Os limites da represen- Importa observar que, para o filósofo investigador da histó-
tação"), que descreve as transformações ocorridas na segunda ria, não há desigualdade de importância nem de prestígio ou,
metade do século XVIII, traça agora a curva do classicismo para para empregar uma expressão de Roberto Machado, "diferença
a modernidade e assinala, em seu último item (VI. "As sínteses de nível,,17 entre a filosofia e outros saberes dos respectivos
objetivas"), a presença de Kant. Mostra a correspondência entre períodos históricos. Assim como o pensamento de Kant é ana-
o campo transcendental kantiano das condições de possibili- lisado em correlação com os saberes modernos "Sobre o traba-
dade do conhecimento e as categorias modernas de "trabalho", lho, a vida, a linguagem (economia, biologia, filologia), assim o
"vida", "linguagem": trata-se, sempre, de "transcendentais", com de Descartes com os saberes clássicos (análise das riquezas, his-
a diferença de que estas categorias situam-se do lado não do tória natural, gramática geral). Isso no que concerne ao âmbito
sujeito e do a priori, mas do objeto e do a posteriori, enquanto de articulações somente interdiscursivas. Mas observação se-
condições de possibilidade de conhecimentos objetivos (econo- melhante pode ser feita também a propósito das relações entre
mia, biologia, filologia). Kant será reintroduzido, longa e expli- a filosofia e práticas não-discursivas. Se tivéssemos tomado
citamente, nos capítulos IX ("O homem e seus duplos") e X outro exemplo, como é o caso de História da loucura, teríamos
("As ciências humanas"), quando também aparecerão, entre visto o tecido de relações entre o plano discursivo e o extradis-
outros, a fenomenologia, o positivismo, a dialética. Desenhar- cursivo, e certamente então reencontraríamos Descartes, agora
se-á, então, a configuração moderna dos saberes e, finalmente como o marco filosófico na partilha clássica entre razão e des-
- e é para onde todo o livro se dirige -, o lugar de surgimento razão, de que o Hospital Geral é o marco institucional.
das ciências humanas: elas emergem no entroncamento das Duas passagens extraídas do livro biográfico de Didier Eri-
dimensões positiva e filosófica dos saberes, elas se alojam na bon nos servem para retomar conjuntamente os modos de pre-
confluência, precisamente ou, melhor dizendo, ambiguamen- sença das filosofias que estivemos denominando direto e indire-
te, dos conhecimentos positivos com o pensamento filosófico. to, assim como para ilustrar a diferença entre eles.
Está bem claro que As palavras e as coisas, sem desconsiderar Para o primeiro caso, um trecho sobre as declarações de
outros filósofos, detalhadamente posiciona Descartes no limiar Foucault acerca de sua tese complementar de doutorado (que,
do classicismo como Kant no da modernidade 15 . Aliás, Fou- lembremos, se compôs de tradução e introdução à Antropologia
cault retomará, mas de modo genérico, em um texto escrito de Kant):
muito depois (originado em uma entrevista de 1983), essas duas
16. FOUCAULT, M., "À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du
pontas filosóficas daqueles períodos históricos: "Seguramente, travail en cours", in Dits et écrits, IV, 411. Veja-se também, no mesmo livro,
esquematizo aqui uma história muito longa, mas que perma- 630, já que se trata da mesma entrevista reproduzida com modificações. Em
nece fundamental. Após Descartes, tem-se um sujeito do co- português: Dossier, op. cit., 69. A entrevista também se encontra, em apêndi-
ce, no livro de RABINOW e DREYFUS, Uma trajetória filosófica - Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Fo-
15. Cf MACHADO, R, Ciência e saber - A trajetória da arqueologia de Fou- rense Universitária, 1995,278.
cault. Rio de Janeiro, Graal, 1982, 136-138. 17. MACHADO, R., op. cit., 137.

90 I Faucault. simplesme-nte- Foucault e a leitura dos filósofos I 91


"( ... ) para compreender esse texto de Kant escrito, remanejado, quase sempre, com objetos múltiplos, com domínios diversos,
transformado durante quase 25 anos, é necessário cruzar análise com saberes não-filosóficos, com práticas não-discursivas.
estrutural e análise genética. Como essa obra terminal foi elabo- Essa forma de inclusão das filosofias na história não é
rada, de que sucessivos sedimentos se alimentou? Análise genéti- certamente descomprometida. Pertence a certa escolha que,
ca. Qual é a situação dessa obra na disposição global e interna do se por um lado resulta em um modo de história da filosofia, por
sistema kantiano, qual é a relação dessa Antropologia com o movi-
outro é resultante de uma maneira de conceber a própria filo-
mento 'crítico' desenvolvido por Kant? Análise estrutural,,18.
sofia. Concluamos com a sugestão, a este propósito, de algu-
E para ilustrar o que chamamos de presença indireta a mas reflexões.
citação sobre a tese principal de doutorado (Folie el Déraison.
Histoire de la folie à l'âge classique), obtida de um comentário de A filosofia, diagnóstico do presente
Michel Serres: As filosofias só estão associadas às investigações históricas
"Inútil seria esse rigor da arquitetura se, além da compreensão do passado para possibilitar um olhar mais atento sobre nosso
estrutural, não houvesse uma visão secreta, uma atenção mais tempo. Em outras palavras, para que elas possam ser o que
ardente: a obra seria precisa sem ser inteiramente verdadeira. Por devem ser, a saber, diagnóstico do presente.
isso é que no próprio seio da argumentação lógica, no seio da A compreensão da filosofia como "diagnóstico" é, em vá-
minuciosa erudição da pesquisa histórica circula um amor pro-
rios momentos e de muitos modos, formulada por Foucault.
fundo, não vagamente humanista, mas quase piedoso, por essa
gente obscura em que se reconhece o infinitamente próximo, o Já em uma entrevista de 1967, por exemplo, declara-se "filóso-
outro eu. Assim, esse livro é também um grito ... Assim, essa geo- fo" por reconhecer-se no trabalho de quem "busca diagnosti-
metria transparente é a linguagem patética dos homens que so- car, realizar um diagnóstico do presente", o que "desde Nietz-
frem o suplício maior da rejeição, da desgraça, do exílio, da qua- sche caracteriza a filosofia contemporânea,,20. E conclui: "Fa-
rentena, do ostracismo e da excomunhão,,19. lei-lhes de um desaparecimento das filosofias e não de um
desaparecimento do filósofo. Creio que existe certo tipo de
••• atividades 'filosóficas' em domínios determinados que consis-
te em geral em diagnosticar o presente de uma cultura: é a
As filosofias comparecem, pois, enredadas no interior das
verdadeira função que podem ter hoje os indivíduos a que cha-
histórias. Não, porém, no cerco interno dos sistemas, nem tam-
mamos filósofos"21.
pouco na suficiência de suas singularidades, mas espalhadas
Por isso começa-se a entender que uma história "exclusiva"
na exterioridade espessa das epistémes ou conectadas à heteroge-
das filosofias possa ser não apenas historicamente como ainda
neidade complexa dos disposltivos estratégicos, contracenando,
filosoficamente insuficiente.
18. ERIBON, D., Michel Foucault ~ Uma biografia. Trad. Hildegard Feise,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119.
19. lbid., 125. Cf. SERRES, M., "Géometrie de la folie", Mercure de France, 20. FOUCAULT, M., "Qui êees-vous, professeur Foucault?", in Dits et écrits,
n. 1188, agosro de 1962, 176. Republicado em Hermes ou la communication, 1,606.
Minuit, 1968. 21. lbid., 620.

92 Foucault. Simplesmente Foucault e a leitura dos filósofos I 93

J
A filosofia. em toda parte como transgredir se as filosofias, como outros saberes e prá-
ticas, estão calcadas nos solos das épistemes e tecidas nas redes
Dize~ que as atividades filosóficas existem "em domínios de-
dos dispositivos?
terminados" e que o diagnóstico que elas realizam remete a "uma
Retomemos aqui, para nosso uso, alguns aspectos das con-
cultura" significa também que elas não configuram um "domínio"
siderações de Deleuze sobre o que é o dispositivo. O dispositivo é
específico, senão que se constroem no espaço relacionaI com o
"multilinear" e as linhas de que se compõe são linhas de visibi-
seu diverso, o seu outro, o seu fora, a não-filosofia Como diria
lidade e de enunciação, envolvem o ver e o dizer, as coisas e as
Merleau-poncy, a filosofia está em toda e em nenhuma parte.
palavras; são também linhas de forças e linhas de subjetivação.
"Assim, eu diria que é precisamente nos seus 'ensaios' para
Há "linhas de fuga" e "todas as linhas são linhas de variação".
abrir a filosofia ao seu fora que Foucault era filósofo - uma
22 Os dispositivos são "moventes". Comportam o arquivo, assunto
espécie de filósofo malgrado ele", escreve]. Rajchman • E o
da análise histórica, e o atual, assunto do diagnóstico. O atual é o
próptio Foucault, também em entrevista mais antiga (de 1966):
transformávet o ((devir-outro)~ aquilo em que nos tornamos.
"( ... ) Nietzsche multiplicou os gestos filosóficos. Interessou-se
Assim, em sua mobilidade, as linhas do dispositivo se repartem
por tudo, pela literatura, pela história, pela política etc. Foi
em "linhas de estratificação ou de sedimentação" e "linhas de
buscar a filosofia em toda parte. Com isto, mesmo se em certos
domínios permanece um homem do século XIX, genialmente atualização ou de criatividade"26.
antecipou a nossa época,>23. Por isso, essas histórias que inserem a urdidura das filoso-
Por isso, conjugar as filosofias a saberes e práticas não- fias nas tramas de objetos, saberes e práticas diversificados e as
filosóficos que compõem epistémes e dispositivos não é reduzir os situam como peças de dispositivos historicamente dominantes não
gestos filosóficos, é multiplicá-los. fazem, necessariamente, apenas atrelar as filosofias ao estabele-
cido. Abrem também a possibilidade do discurso de resistência,
A filosofia. palavra transgressora "que foge a toda conivência, um discurso não-cúmplice,m. Tra-
ta-se, se se quiser, de procedimentos que delineiam um modo
Pertencente ao seu tempo, o gesto filosófico pode ser tam- outro de história da filosofia como estratégia de criatividade na
bém capaz de excedê-lo. Em um texto de 1970, Foucault já contraface de dispositivos estratégicos estratificados.
aproximava os filósofos de "seus vizinhos, os poetas e os lou- Finalmente, reunindo as reflexões que acabamos de suge-
COS,,24. Em texto bem mais recente, Judith Ravel retoma essas
rir, poderíamos acrescentar: para que a filosofia possa ser um
"três figuras misturadas" - o poeta, o louco, o filósofo -, olhar atento sobre o presente, um pensamento sem morada,
reunindo-as sob a categoria da "palavra transgressora,,25. Mas
uma palavra interrogante, é preciso que ela seja -:- antes de tudo
22. RAjCHMAN, J., "Foucault: l'échique et l'oeuvre", in Michel Foucault e após tudo - exercício de vida, modo de existência.
philosophe, op. cit., 25l.
23. Cf. "Michel Foucault et Gilles Deleuze veulem rendre à Nietzsche
son vrai visage", in Dits et écrits I, 552. 26. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso·
24. FOUCAULT, M., "Le piege de Vincennes", in Dits et écrits, lI, 70. phe, 185-195.
25. RAVEL,]., "Sur l'Imroduction à Binswan~er (1954)", in Michel Foucault, 27. MOREY, M., "Sur le style philosophique de Michel Foucault ~ pour
lire l'oeuvre, diréction de Luce Giard, Grenoble, Ed. Jérôme Millon, 1992, 55. une critique du normal", in Michel Foucault philosophe, 144.

94 I Foucault, Simplesmente Foucault e a., leitura dos filósofos I 9S


._-' .-- .-.,

1
VIII
OLHARES E DIZERES'

Fazer a cnêica é tornar difiéeis os gestos demasiado fáceis.


M. FOUCAULT, Dits et écrits, IV, 180.

Em busca do fio condutor


Os modos de distribuir os escritos de Foucault e recompô-
los podem ser relativamente diversos, mas quase sempre se
sobrepõem e, sem dificuldades, complementam-se. O modo
mais freqüente, nomeado e renomeado pelos diferentes estu-
diosos e reconhecido pelo próprio Foucault, consiste em consi-
derá-los ao longo de sua cronologia, situando-os, segundo o
critério dos grandes deslocamentos, em três grupos: quer se
fale de momentos, fases ou etapas, de áreas, campos ou domí-
nios, de eixos ou vertentes, de planos, níveis, camadas, terrenos
ou patamares, eles configuram, em seu conjunto e sucessiva-
mente, uma arqueologia do saber, uma genealogia do poder e uma
genealogia da ética.

* Conferência proferida por ocasião do Colóquio FoucaulrjDeleuze, na


Universidade Estadual de Campinas, novembro de 2000. Publicada em Ima-
gens de Foucault e Deleuze, ressonâncias nietzschianas (RAGo, M., ORlANDI, L. 1.,
VEIGA-NETO, A., orgs.), Rio de Janeiro, DP&A editora, 2002.

olhares e dizeres j 97

j
Contudo, pretendo referir-me aqui a outros modos ou cri- nhecimento científico, desembocando nas chamadas ciências
térios de organização, que não se opõem ao mais usual e que, a humanas com sua característica normativa; no segundo, a aná-
meu ver, são aproximáveis entre si. Para isso, evoco três passa- lise dos "jogos de verdade" pelos quais o sujeito é constituído
gens, duas das quais recolho em Foucault e a terceira em Deleuze. como objeto de conhecimento, alojado, porém, no "outro lado
Já no "Prefácio" de As palavras e as coisas, de 1966 - antes, da divisão normativa". Pode-se ver, no primeiro caso, o sujeito
portanto, da produção chamada genealógica -, o próprio Fou- enquanto "distinguido por marcas e recolhido em suas identi-
cault propunha certa organização de seus escritos, e o critério era dades", de As palavras e as coisas. No segundo, trata-se do "dife-
então o da ênfase no Outro ou no Mesmo. Assim, enquanto Histó- rente", o louco, o doente, o delinqüente, de História da loucura, O
ri4 da loucura perguntava pela "diferença" que limita internamen- Nascimento da clínica, Vigiar e punir'.
te uma cultura, As palavras e as coisas, respondendo "como em Finalmente, e sempre no interior do mesmo "projeto geral",
eco", investigava a "proximidade das coisas"; enquanto História da aos dois primeiros tipos de análise seguiu-se o mais recente: in-
loucura "seria uma história do Outro" - daquilo que, em uma vestigar "a maneira como o sujeito faz a experiência de si mesmo
cultura, na nossa, "é ao mesmo tempo interior e estranho" -, As em um jogo de verdade no qual se relaciona consigo próprio"4.
palavras e as coisas "seria uma história do Mesmo" - daquilo que, Reunindo esta reconstituição às considerações do "Prefá-
em nossa cultura, preside "a ordem das coisas", podendo ser cio" de As palavras e as coisas, pode-se dizer que, na seqüência dos
"distinguido por marcas e recolhido em identidades"l. grupos de escritos, o fio condutor é sempre o das relações entre
Anos depois, na elaboração de um texto que tem por tÍtu- sujeito e verdade, tramadas nos jogos do Mesmo e do Outro.
lo o seu nome - um verbete para um Dicionário de filósofos, de Resta acrescentar que, quando os escritos se centram no Mes-
1984 -, Foucault reconstitui a organização de seus escritos e, mo, descrevem a epistéme, o círculo de uma época, o instituído,
de certo modo, retoma, como que obliquamente, aquele crité- o sedimentado. Quando se voltam para o Outro) realçam o dis-
rio usado no início de sua trajetória, o do Outro e do Mesmo. positivo, que tanto comporta a estratégia dominante como se
Reúne então, retrospectivamente, toda a sua produção sob o abre à possibilidade do novo, da resistência e da mobilidade.
que ele chama de um "projeto geral": investigar a experiência A aproximação dessas passagens, a mais antiga e a mais
histórica da constituição do sujeito nas formas diversas de sua recente, permite, por sua vez, ligar ambas a alguns aspectos da
subjetivação e de sua objetivação. E, como que atravessando leitura que faz Deleuze acerca do percurso foucaultiano. Os
este projeto, um "fio condutor": a questão dos "jogos de verda- três momentos desse percurso são por ele descritos em termos
de" ou "das relações entre sujeito e verdade"z. de "linhas" que compõem os diversos dispositivos analisados por
Dentro desse "projeto" e segundo esse "fio condutor", rea- Foucault. As mudanças entre eles são referidas como "crises",
lizam-se, no conjunto e no decurso de sua trajetória, dois mo- "desvios", "brechas", "linhas quebradas", "novas linhas" etcs.
dos de análise: no primeiro, a análise dos "jogos de verdade"
Dicionário de filósofos, trad. C. Berliner, E. Brandão, I. Castilho Benedeti, M. E.
pelos quais o sujeito torna-se objeto de saber na forma do co- Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001, 388-391.
3. Ibid., 633.
1. FOUCAULT, M., As palavras e as coisas, "Prefácio", 13-14. 4. Ibid., 633.
2. Cf. "Foucault" in Dits et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994, 631-636. O 5. Cf. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?" in Michel Foucault philosophe
verbete "Foucault" pode ser encontrado na tradução brasileira: HUISMAN, D., - Rencontre Internationale, 1988, 185-195, que retoma, particularmente, o capítu-

98 I Foucault. simplesmente olhares e dizeres I 99


No primeiro momento - o da dimensão do saber -, trata- Finalmente, reunindo as três referências, busquemos refa-
se, especialmente, de "linhas de visibilidade e de enunciação": zer o fio condutor que percorre o trajeto foucaultiano. Digamos
"pensar é, primeiramente, ver e falar ... "6. Isso corresponde, nos que se trata das relações entre sujeito e verdade, ou mesmo do
termos do citado verbete de 1984, aos jogos de verdade segun- sujeito com sua verdade; que essas relações são tomadas no jogo
do os quais o sujeito é constituído como objeto para um saber entre o estabelecido e o mutável, vale dizer, entre o Mesmo e o
reconhecido; ou ainda, nos termos do "Prefácio" de As palavras Outro; e acrescentemos agora que, nesse jogo, as relações são
e as coisas, ao sujeito "visível" e "dizível", na ordem do Mesmo. visíveis e dizíveis de modos diversos, isto é, que olhares e dizeres
No segundo momento - o da dimensão do poder -, trata- - analogamente aos pólos do idêntico e o do estranho - são
se, especialmente, de "linhas de forças": elas operam um "vai-e- sedimentados ou mobilizadores, dependentemente daquilo que
vém do ver ao dizer", fazem "entrecruzar as coisas e as pala- nós, historicamente, somos capazes de ver e dizer.
vras"7. É o pensamento na elaboração de "estratégias". Nos ter-
mos dos dois textos anteriormente considerados, significa que Imagens e palavras - um exercício
isso inclui tanto o pólo das "identidades" como o das "diferen-
Usando o fio condutor brevemente reconstruído, propo-
ças"; ou, se se quiser, tanto o lado "instituído" da "divisão nor-
nho que façamos um pequeno jogo, alinhavando com ele al-
mativa" como seu "outro".
guns comentários sobre o filme Meninos não choram lO•
No terceiro momento - o da dimensão ética -, trata-se,
especialmente, de "linhas de subjetivação": elas apontam para Personagens principais e ambientação geral
"novas possibilidades de existência"g. Não mais "o domínio das
regras codificadas do saber (... ), nem o das regras coercitivas do • Brandon ou Teena Brandon: uma jovem de 21 anos que se
poder (... ), são regras de algum modo facultativas"9. Nos termos sente) se veste e se comporta como um rapaz; tem um primo
que é também seu confidente.
dos textos vistos, isso corresponde à "experiência que o sujeito
• Lana' jovem aproximadamente da mesma idade) mora com a
faz de si" na relação consigo próprio, ou ainda, se se quiser, à
mãe e trabalha em uma fábrica; é amiga de Candace.
possibilidade de um devir do Mesmo em Outro.
• John: namorado de Lana; é amigo de Tom e ambos são ex-
presidiários.
lo "Pensar de outra maneira" de seu livro Foucault, Paris, Minuit, 1986. Veja-
se também as três entrevistas sobre Foucault, "Rachar as coisas, rachar as Os personagens são todos de classe média baixa ou pobres,
palavras", "A vida como obra de arte" e "Um retrato de Foucault", reunidas arriscam-se em aventuras, são usuários de drogas. O contexto é o
em Conversações, trad. P. P. Pelbart, São Paulo, Ed. 34, 1992. de uma pequena cidade americana (Falls City). O filme todo
6. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", in Conversações, 119. Veja-se ainda,
transcorre em ambientação de pouca luminosidade, ~esmo quan-
no mesmo texto, 119-122; 126; e no texto "Um retrato de Foucaulr", 133-134.
7. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso- do a cena acontece ao ar livre (como no episódio do estupro).
phe. 186.
8. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", 120. 10. Boys don't cry - 1999. Direção: Kimberly Pewirce (também um dos
9. DELEUZE, G., "Um retrato de Foucault", in Conversações, 141. Veja-se autores do texto). No elenco: Hilary Swank (Oscar de melhor atriz), no papel
ainda ''Rachar as coisas, rachar as palavras", 116; "A vida como obra de arte", de Teena Brandon; Chloé Sevigny, no papel de Lana; Peter Sarsgaard, no
123; 125. "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philosophe, 187. papel de John. O enredo reconstitui uma hiscória real ocorrida. em 1993.

100 ! Foucault. simplesmente olhares e dizeres ! 101


Resumo do enredo Há uma última cena de amor em que Lana faz Brandon
Na cena inicial, Brandon quer ser rapaz e produz sua trans- despir-se. Decidem fugir juntas, "tomar a estrada". Bran-
formação. Aparentemente sem vínculos (salvo os raros encon- don vai então à casa onde se hospedara a fim de apanhar suas
tros com um primo), vai, meio ao acaso, à pequena cidade on- coisas. John e Tom surpreendem Lana e a levam também à
de moram Lana, sua mãe e seus amigos. Hospeda-se na casa de casa de Candace. Sob seu olhar perplexo, matam a tiros Can-
dace e Brandon.
Candace. Tenta comportar-se como o grupo de jovens que aca-
ba de conhecer, especialmente os rapazes. Apaixona-se por Lana Na cena final, Lana, sozinha, "toma a estrada"ll.
e é correspondido. Quando têm relações amorosas, não se des-
Palavras e imagens
pe, exceto na última vez, quando é por ela despido.
Desencadeada por um acidente de carro - que Brandon • De Brandon, sobre si mesma
dirigia a mando de John e Tom -, uma investigação policial Vê-se como um rapaz e faz saber que quer mudar de sexo;
revela sua identidade feminina. Teena Brandon é levada presa. essa mesma visão, quando posta sob o olhar do primo/confi-
Quase ao mesmo tempo, Candace vasculha os objetos pessoais dente parece ingenuamente tola. Também se vê examinada pelo
de sua hóspede e faz a mesma descoberta, relatando-a aJohn e olhar de Lana ou o de sua mãe e, sob eles, recua, ameaçada,
Tom, que, por sua vez, contam à mãe de Lana. Desconhecedora como se perscrutassem sua "verdade".
dessas informações, Lana busca Brandon na prisão, estranha Entre seus objetos pessoais encontra-se um pequeno livro
encontrá-la em uma cela feminina, mas sua única preocupação sobre "crise de identidade sexual", expressão que repete aos
é tirá-la dali. Leva-a então à sua casa onde, indignados, todos os outros para tentar definir-se.
esperam. Inquirida sobre a identidade sexual de Brandon e Quando presa, na cela feminina, eis o que diz a Lana: "Quer
buscando impedir que a forcem a despir-se publicamente, pro- saber a verdade? Sou hermafrodita. Uma pessoa que tem ór-
põe fechar-se a sós com ela, comprometendo-se a dar, em segui- gãos femininos e masculinos. O nome de Brandon é Teena.
da, seu testemunho da "verdade". Depois de alguns momentos Mas Brandon não é bem ele, é mais ela que ele".
com ela no quarto, apenas abre a porta e comunica a todos que Quando fechada no quarto com Lana, começa quase
Brandon é homem. mecanicamente a despir-se a fim de que Lana pudesse testemu-
John e Tom agarram Brandon e brutalmente lhe tiram as nhar sobre sua "verdade". É Lana que a interrompe.
roupas, expondo-a nua ao olhar de todos. Levam-na depois a Quando, aos olhos de todos, é despida por John e Tom,
um lugar ermo onde a espancam e estupram. Cobram-lhe se- pede, desesperadamente, que apaguem as luzes.
gredo do ocorrido e conduzem-na de volta à casa de Candace Em suma, Brandon tem sobre si o olhar e o dizer da verda-
para que se lave. Após o banho, Brandon consegue escapar e de "reconhecida": verdade una, localizada no sexo, ou, se se
encontra Lana, que a faz ser levada a um hospital. Em seguida,
Brandon vai à polícia e, com imensa dificuldade, quase em
11. Informações em notas finais: John foi condenado e está apelando
murmúrio, faz o relato das agressões, sendo porém submetida da pena de morte; Tom colaborou com a acusação, testemunhou contra
a uma espécie de interrogatório informal que quer desvendar John e foi condenado à prisão perpétua; Lana, alguns anos depois, teve uma
não o estupro mas a natureza de seu sexo. filha e voltou a morar na pequena cidade.

102 I Faucault. Simplesmente olhares e dizeres I 103


quiser, no dispositivo instituído da sexualidade, verdade identi- Primeira situação
tária, essencial e universal. Por isso é que a "verdade" de si mes- 1. Na cena inicial, a câmera faz ver Brandon "transformar-
ma estaria perigosamente exibida em seu desnudamento, e por se" em rapaz; no corte de cabelos, nas roupas, nos geni-
isso também, é preciso que as luzes se apaguem. tais postiços, no disfarce do chapéu.
2. Na cena em que a personagem se instala na casa de Can-
• De Lana, sobre Brandon e sobre si mesma dace, a câmera faz ver seu corpo seminu, mas com a
Lana vê Brandon sem suspeitas e admite ver-se confusa. camisa cobrindo-o até as pernas; veste-se depois, de cos-
Eis um de seus dizeres: {(Também tenho sentimentos estranhos". tas, e comprimindo os seios.
Quando na prisão, afirma: "Não me interessa se você é meio
macaco. Vou tirá-lo daqui".
Nesse par de cenas) o personagem aparece como uma figu-
ra ambivalente, quase andrógina, é certo, mas meio caricata)
Quando se fecha no quarto com Brandon e a impede de
despir-se, declara, não sem alguma ambiguidade: cCDirei a eles o apenas uma espécie de falso artifício.
que querem ouvir. O que sabemos ser a verdade".
Em suma, esta é a única personagem com indícios de críti- Segunda situação
ca e sugestão de perplexidade. 1. Na cena em que Brandon se declara hermafrodita, come-
ça a insinuar-se no espectador uma dúvida sutil; na ex-
• De outras personagens, sobre Brandon pectativa de resolvê-la) só lhe resta (como, de resto, aos
Candace "descobre", nos objetos vasculhados) a verdade estupradores) que o personagem se dispa.
"encoberta". 2. Na cena do banho) após o estupro, a câmera percorre o
John e Tom localizam a marca da identidade no "nome" corpo, agora enfim nu; focalizando as curvas femininas
de Brandon, que, afinal, é Teena. E o nome, por sua vez, tem de coxas e quadris) parece finalmente fornecer ao espec-
que estar inscrito na carne. Assim, no dizer de Tom, ((só há um tador a informação aguardada, a mesma, aliás, de que
modo de saber a verdade", despir. E no de] ohn: "Só quero a verda- precisavam os estupradores.
de, seu mentiroso". Nesse par de cenas, tudo se passa como se a lente da câme-
Ao policial que a interroga, só interessa conjeturar sobre ra intermediasse entre eles, estupradores e espectador, uma in-
seu sexo e por que ('nunca fez amor antes do estupro~'. desejada cumplicidade.
Em suma, a verdade está na transparência do visto e na
unicidade do dito. Tudo o mais é de menor importância ou é •••
falso, simplesmente mentira. o filme traça "linhas de visibilidade e de em.mçiação", reve-
lando o circuito de condições dentro do qual somente alguma
• Da câmera e o do espectador sobre Brandon coisa como a "verdade" do sujeito é visível e enunciável. Indica
Para capturar o olhar da câmera - que conduz o do espec- "linhas de forças", as do poder que, ele próprio invisível e indi-
. tador - e os dizeres que o acompanham, proponho o destaque zível, entrecruza imagens e palavras, sustentando aquilo que
de quatro cenas, reunidas e contrapostas em dois pares. pode ser "distinguido por marcas e recolhido em identidades".

104 I Foucault, Simplesmente olhares e dizeres I 105


No plano das evidências, pretende, certamente, ser um de- Sob esse ponto de vista, retomo uma passagem tantas ve-
poimento contra a violência e uma resistência ao preconceito. zes lembrada, em que, descrevendo a atividade filosófica como
Todavia, refaz a tonalidade do Mesmo e, enquanto dispositivo, "trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento",
permanece nos ecos do instituído. Raras vezes e somente ao Foucault também nos fala daqueles "momentos na vida em
olhar e dizer de um personagem esboça-se uma luz desfocada, que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que
um som destoante, o vislumbre talvez de um dispositivo outro. se pensa e perceber diferentemente do que se vê é indispensável
Mas não passa de vislumbre, como aquela penumbra que am- para continuar a olhar e a refletir'J14.
bienta todo o filme. É também sob essa perspectiva que Foucault, mais de uma
De algum modo, porém, à semelhança do Diário de Hercu- vez, se reconhece tributário da fenomenologia e fiel à lição de
line Barbin, o filme faz saber que, assim como "Herculine-Adé- Merleau-Ponty naquilo "que constituía, para ele, a tarefa filo-
laide Barbin, ou ainda Alexina Barbin, ou ainda Abel Barbin, sófica essencial: jamais consentir em estar totalmente à vonta-
designada em seu próprio texto ora pelo nome de Alexina ora de com suas próprias evidências (... ); lembrar-se de que, para
pelo de Camille", também Teena Brandon "foi um desses he- dar a elas a indispensável mobilidade, é preciso olhar ao longe
róis infelizes da caça à identidade"12. mas também muito de perto e em torno de si"ls.

Em busca da filosofia

Atitude de "diagnóstico", a filosofia vê e diz. Percepção e


discurso estão cercados pelo mesmo círculo de condições de
visibilidade e dizibilidade a que ela própria pertence. Mas vê e
diz criticamente. Isso significa que, se se instaura no presente,
é como para perceber por dentro suas oscilações e falar de seus
abalos. O olhar filosófico não prevê, nem o dizer filosófico
prediz. Apenas, como escreveu Deleuze, fazem-nos "atentos ao
desconhecido que bate à porta,,13. Situam-nos na difícil passa-
gem entre o que já se diz e vê e o que não ainda, entre o agora
e o devir, o Mesmo e o Outro, entre o que somos e o que estamos
vindo a ser. É assim, creio, como pensamento de limiar que o
pensamento filosófico é uma .ontologia do presente.

12. FOUCAULT, M. Prefácio a Herculine Barbin, O diário de uma hermafrodi· 14. FoucAuLT, M., História da sexualidade, 11 - O uso dos prazeres, crad. de
ta, trad. de r. Franco, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, 13.
13. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philoso· 15. FoucAuLT, M., "Pour une morale de l'inconfort", Le Nouvel Observateur,
phe, 191. abril/79, em Dits et écrits, IlI, 787.

106 I Foucault. simplesmente olhares e dizeres I 107

o
IX
DEMOCRACIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de
Michel Foucault e Cornelius Castoriadis*

(...) um princípio político, em toda época


e em todo lugar; presta-se a interpretações
diversas e só com a prática adquire
sentido preciso.
G. GLOTZ, A cidade grega, 111.

Democracia é uma palavra que, como se sabe, se presta aos


mais variados usos. Partidos e regimes políticos, governantes e
representantes sociais, instituições diversas, partilhando tendên-
cias diferentes e, freqüentes vezes opostas, são qualificados ou
se autoqualificam como democráticos. Alguns reconhecem nisso,
e não sem razão, a situação de termos cujo uso foi de tal modo
banalizado que acabam por perder toda consistência concei-
tual. Mas este é apenas um ângulo possível de consideração.

* Palestra proferida por ocasião do Seminário "Democracia e Soberania


Popular", promovido pela Comissão de Legislação Participativa da Câ.mara
dos Deputados, em Brasília, em dezembro de 2001. O texto, revistO e modi-
ficado, foi publicado em Michel Foucault - entre o murmúrio e a palavra (CALO-
MENI, T. c., org.), Campos, Ed. Faculdade de Campos, 2004.

democracia camo prática I 109

..I
Outros também cabem, talvez mais fundamentais. Pode-se pen- Para elaborar esse esquema, recorro a elementos extraídos
sar, por exemplo, que o esvaziamento conceitual não se deva das análises de dois pensadores contemporâneos, Michel Fou-
apenas à vulgarização do termo, mas à natureza mesma do con- cault e Cornelius Castoriadis. A partir de suas idéias, primeira-
ceito de democracia. Afinal, à democracia pertencem, como por mente darei realce a alguns aspectos, por assim dizer, mais es-
princípio, uma necessária flexibilidade e uma permanente curos de nossa sociedade, aqueles que a descrevem e denun-
incompletude, de modo tal que parece incompatível com esse ciam. E, em seguida, sempre a partir dos mesmos pensadores,
conceito que ele se substancialize em uma significação única e as luzes de algumas sugestões.
definitiva, recobrindo um sentido universal. Mais ainda, a essa
natureza de certo modo vaga vincula-se, complementarmente, o 1. Traços da atualidade
fato de se tratar de um conceito historicamente circunscrito,
Segundo Michel Foucaulr (1926-1984), o aparecimento da
portanto incessantemente construído e reconstruído. Não é pri-
sociedade moderna é assinalado pelo declínio de um tipo hege-
meiramente uma idéia, é antes uma prática, e são os modos his-
mônico de poder, o poder soberano, monárquico, e pela
tóricos de exercê-la que lhe conferem diferentes significados.
insralação crescente de outro tipo de poder por ele denomina-
Assim, retomando a expressão de um historiador helenista clás-
do «disciplinar" ou "de controle", "instrumento fundamental
sico, pode-se dizer que, desde o momento histórico de seu sur-
para a constituição do capitalismo industrial e da sociedade
gimento, na Atenas do século V a.c., a democracia seria «uma
que lhe é correspondente,,2. O poder disciplinar não é apenas
palavra oca" se não houvesse sido praticad4 pelas pessoas do povo:
repressivo ou ostensivamente opressor. Mais sutil, ele é "positi-
"Era também necessário, para que a democracia não fosse uma vo", isto é, "produz" comportamentos, hábitos, gestos, numa
palavra oca, permitir que as pessoas do povo, ocupadas em ga- palavra, adestra as pessoas. Não se exibe na identidade de um
nhar a vida, dedicassem seu tempo ao serviço da república"'. poder central e superior - como na figura do Estado soberano
- mas se espalha, anônimo, difuso, capilar, em práticas minu-
11 ciosas exercidas por todo o corpo social. Não se mantém numa
unidade, mas se exerce no plural - trata-se, antes, de poderes,
Da prática, pois, ao conceito, proponho considerar aqui
múltiplos, heterogêneos, móveis, enfim, micropoderes cujo fun-
um recorte histórico particular: o que demarca os contornos de
cionamento dá sustentação e eficácia ao macro poder estatal.
nossas socieda.des ocidentais modernas, que têm início por vol-
Vejamos agora algumas reflexões de Cornelius Castoriadis
ta do começo do século XIX e às quais, de alguma forma, ainda
(1922-1997). Em uma entrevisra radiofônica realizada em 1996,
pertencemos. Às características desse tipo de sociedade vincula-
pouco antes de sua morte, e em seguida publicada, o autor
se a construção das significações modernas de democracia. As-
explicita, em tom coloquial mas não menos denso, o uso que
sim, ainda que muito esquematicamente, tentarei delinear al-
atribui ao termo "insignificância" para caracterizar nossa épo-
guns sinais que marcam esse tipo de sociedade.
2. FOUCAULT, M., "Cours du 14 Janvier 1976", in Dits et écrits, Paris, Galli-
1. GLOTZ, G., A cidade grega. Trad. H. de Araújo Mesquita e R. Cones de mard, 1994, voI. IH. Tradução brasileira.: "Soberania e disciplina", in Microfoicado
Lacerda, São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1980, 105. poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 13. ed., 1998, 188.

110 I Foucault. Simplesmente democracia como prática 111

...I.
ca. É a "insignificância" que, por um lado, distingue os políti- 2. Prospectivas
cos de hoje. Eles são descritos como "profissionais da política" Para Foucault, a todo tipo de poder responde um tipo de
ou Upolíticos de carteirinha"3. A democracia representativa "não resistência e de luta, na direção de mudanças. No caso de trans-
é uma verdadeira democracia. Seus representantes muito pou- formação da sociedade moderna, que é a do ripo disciplinar e
co representam as pessoas que os elegem. Primeiramente eles se de controle, não se terá bom êxito transformando do alto o
representam a si mesmos ou representam interesses particula- regime central de governo ou o aparelho de Estado, mas atuan-
res, lobbies etc." 4. do estrategicamente na trama molecular dos poderes sociais,
Quanto aos cidadãos comuns, por outro lado, é na estabelecendo "redes" dentro da rede do poder. Como os pode-
experiência de uma "contra-educação política" que a "insignifi- res, as lutas, para serem eficazes, precisam ser plurais, heterogê-
cância" os alcança. "Enquanto as pessoas deveriam habituar-se neas, móveis, provisórias, pontuais.
a exercer todas as espécies de responsabilidades e a tomar ini- De orientação similar, reproduzo algumas passagens de
ciativas, habituam-se a seguir opções que outros lhes apresen- Castoriadis.
tam ou a votar por elas. Como as pessoas estão longe de ser
"( ... ) e creio que só sairemos dele [do esgotamento ideológico]
idiotas, o resultado é que elas crêem cada vez menos e se tor- pelo ressurgimento de uma potente crítica do sistema e um re-
nam cínicas, numa espécie de apatia política"5. Há um "esgota- nascimenco da atividade das pessoas, de sua partici pação na coi-
mento ideológico", acompanhado de uma "disposição geral" sa comum. Dizer isso é uma tautologia, mas é preciso esperar, é
que é de "resignação", ou de "conformismo generalizado", de preciso confiar e é preciso trabalhar nessa direção"7.
"inibição" para agir6• "Mas, nesse momento, sentimos vibrar uma retomada da ativi-
Mas essas análises de nossa sociedade não se reduzem a dade cívica. Aqui e lá começa-se, de algum modo, a compreender
seu desenho austero. Cada qual dos dois pensadores descreve e que a 'crise' não é uma fatalidade da modernidade à qual seria
denuncia o presente com o intuito de questionar nossas evi- preciso submeter-se, 'adaptar-se' para não incorrennos em alguma
dências de pensamentos e nossas aderências de condutas e, a espécie de arcaísmo. Coloca-se, então, o problema do papel dos
cidadãos e da competência de cada um para exercer os direitos e
partir daí, delinear e anunciar um horizonte de transforma-
os deveres democráticos com a finalidade - doce e bela utopia-
ções. É dessa perspectiva que apresentarei, brevemente, a indi- de sair do conformismo generalizado."s
cação de algumas pistas.
Àquela "contra-educação política", Castoriadis opõe a boa "edu-
cação polírica" que se faz pela ariva participação das pessoas nas
3. CASTORIADIS, c., Post-scriptum sur l'insignifiance. Entretiens avec Daniel coisas comuns. E, apoiando-se na afinnação de Aristóteles - "cida-
Mermet. Paris, Éd. de l'Aube, 1998 .. Tradução brasileira: Post-scriptum sobre a
dão é aquele capaz de governar e ser governado" -, faz ver que nisso
insignificância, tradução Salma Tannus Muchail e Maria Lucia. Rodrigues;
apresentação Maria Lucia Rodrigues; prefácio Edgard de Assis Carvalho. São consiste a educação política: em aprender a governar, governando 9•
Paulo, Veras Editora, 2001, 27 e 33.
4. Ibid .• 29. 7. Ibid., 38.
5. Ibid., 30-31. 8. Ibid., 39.
6. Ibid., 38; 39; 47-48. 9. Cf ibid., 30; 40-44.

112 I Foucault. simplesmente democracia como prática I 113

1
111
Finalmente, reúno os dois autores que escolhi como apoio, x
em uma idéia mais ampla. Casroriadis, no final daquela entre-
vista, usa a expressão "sociedade autônoma"IO e nos convida à
. COMO NA ORLA DO MAR,
difícil porém verdadeira democracia. Foucault, por sua vez, no
comentário de um texto de Kant l l , nos convoca à saída de um UM ROSTO DE AREIA"
"estado de menoridade') - que é aquele em que se é conduzido Notas sobre maio de 68*
por outrem - para o "estado de maioridade" - que consiste no
governo ou condução de si mesmo. Governo de si ou autonomia,
eis certamente, um norte para balizar nossas tentativas de exer-
cício democrático.
É um norte apenas. Mas suficiente talvez para nos predis-
por a certas condições indispensáveis se quisermos fazer de nossa
própria prática um lugar de transformações e de superação de Para situar Foucault relativamente a maio de 68, descrevo, bre-
nossas desesperanças. A partir das reflexões que fizemos, vemente, um fragmento de sua trajetória - de 1966 a 1970 _
algumas dessas condições podem ser identificadas: 1) dispor-se permitindo-me misturar considerações conceituais com curio-
à pluralidade de participações heterogêneas, flexíveis, móveis, sidades biográficas.
provisórias, pontuais, compondo pistas diversas que sejam ca- Depois dos já polêmicos escritos anteriores (principalmen-
pazes de convergir em alianças e pactos em nome de causas te História da loucura), em abril de 1966 é publicado As palavras
democráticas compartilhadas; 2) dispor-se à educação política e as coisas. O livro, que se mantém no estrito plano dos discur-
que propicie ao cidadão comum a aprendizagem de "governar sos, sem nenhuma articulação com a ordem das práticas so-
e ser governado", contribuindo assim para sacudir as apatias, ciais, desloca o homem do centro da história e da origem dos
abalar os conformismos, mobilizar nossas inibições. saberes. E se encerra com aquele prenúncio solene, meio tea-
Estas são, possivelmente, algumas predisposições que po- tral, um quase gesto, a apontar o iminente desaparecimento do
dem nos orientar rumo à maioridade democrática, cuja con- sujeito: "( ... ) então se pode apostar que o homem se desvanece-
quista é tanto mais alcançável quanto mais se praticar a auto- ria, como na orla do mar, um rosto de areia"1, A atmosfera
nomia de pensamentos e de condutas. intelectual da época - que precedia de perto 68 - deveria, su-
postamente, ser-lhe bem pouco acolhedora. Em u~a avaliação

* Palestra proferida por ocasião da Semana de Ciências Sociais "1968-


30 anos, o mundo é Outro?", na Pontifícia Universidade Católica de São
10. Cf. ibid., 52. Paulo, em maio de 1998. Texto inédito.
11. Cf FOUCAULT, M., "Qu'est-ce que les Lumieres?" in Dits et écrits IV, L FOUCAULT, M., Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966, 398. As pala-
Paris, Gallimard, 1944, 562·578. vras e as coisas, trad. de S. T. Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1981,404.

114 ! Foucault, Simplesmente como na orla do mar, um rosto de areia" I 115

J
retrospectiva, por ocasião de uma entrevista realizada anos mais "Repensando essa época, eu diria que, em definitivo, o que esta-
tarde (em 1978, publicada em 1980), Foucault realça algumas va em via de acontecer não tinha sua própria teoria, seu próprio
razões para um esperado insucesso. Depois de apontar motivos vocabulário. As mutações em curso produziam-se relativamente
de ordem mais teórica, como a supervalorização do marxismo, a um tipo de filosofia, de reflexão geral, a um tipo até de cultura
as resistências a certas aproximações com o estruturalismo e, que era, no conjunto, o da primeira metade de nosso século. As
em geral, todas as posições humanistas relativas ao sujeito, coisas estavam se desagregando e não existia vocabulário apto
para exprimir esse processo. Ora, em As palavras e as coisas, as pes-
sugere outros:
soas talvez reconhecessem como que uma diferença e ao mesmo
"E também, se quisermos, o fato de que não se podia levar muito tempo se revoltavam por não reconhecer o vocabulário do que
a sério alguém que, de um lado, se ocupava com a loucura e, de estava em via de acontecer (. .. )"6.
outro, reconstruía uma história das ciências de modo tão extrava-
gante, tão particular, em relação aos problemas reconhecidos No momento em que eclode maio de 68, é certamente esse
como válidos e importantes. A convergência desse conjunto de tipo de reconhecimento que está tão vivo no depoimento de
razões provocou o anátema, a grande excomunhão de As palavras Maurice Clavel: "Quando desembarquei em Paris, no dia 3 de
e as coisas por parte de todos: Les Temps Modernes) Esprit, Le NouveZ maio, comprei os jornais na estação de Lyon e, diante das man-
Observateur, da direita, da esquerda, do centro. Era pancadaria de
chetes sobre a primeira revolta estudantil, disse a minha mu-
todos os lados. O livro não deveria vender mais que duzentos
exemplares; ora, vendeu dezenas de milhares"z. lher, com uma calma, ao que parece, estranha, eis aí, aconteceu,
chegamos lá... 'Onde?', perguntou-me ela. Em pleno Foucault ...
Com efeito, "acontecimento editorial do ano, a melhor pois, afinal, As palavras e as coisas não era o formidável anúncio
venda do verão", sua repercussão foi "fulgurante"). Como lem- da rachadura geológica de nossa cultura humana, humanista
bra o biógrafo de Foucault, Didier Eribon, "segundo as descri- que havia de produzir-se em maio de 6S?"'.
ções publicadas pelos jornais da época, as pessoas lêem a obra Se foi possível dizer que se estava "em pleno Foucault", o
de Foucault na praia ou a exibem pelas mesas de bar para mos- próprio Foucault, contudo, não estava lá. Desde setembro de
trar que não ignoraram tal acontecimento,,4. "Foucault vende 1966, instalara-se em uma pequena cidade na Tunísia, como
como pãezinhos" é título de um artigo do momentos. Inusita- professor de filosofia. Uma passagem escrita em 1967 nos diz O
do êxito que Foucault, naquela mesma avaliação retrospectiva, que pensava ele sobre a Tunísia (e, por comparação, sobre o Bra-
tenta, um tanto genericamente, explicar: sil): "Eu viera por causa dos mitos que todo europeu, hoje em
2. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault" (com D. Trombado-
dia, tem sobre a Tunísia: o sol, o mar, a grande tepidez da
ri, Paris, 1978, publicada em II Contributo, n.l, jan.jmar.,1980, 23-84), in Dits África, em suma, viera buscar um retiro sem ascetismo. Na ver-
et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994,70. dade, encontrei estudantes tunisianos e então aconteceu o ines-
3. DOSSE, F., História do estruturalismo I, trad. de A. Cabral, São Paulo, Ed.
perado. Provavelmente foi só no Brasil e na Tunísia que encon-
Ensaio, 1993,367-368.
4. ERIBON, D., Michel Foucault) uma biografia, trad. de H. Feist, São Paulo, trei nos estudantes tanta seriedade e tanta paixão, paixões tão
Companhia das Letras, 1990, 160.
S. O artigo foi publicado em Le Nouvel observateur. Cf. DOSSE, História do 6. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault", in Ditsetécrits IV, 70.
estruturalismo, 367, e ERIBON, D., Michel Foucault, 159. 7. Cf. FOUCAULT, M., Dits et écrits I, "Chronologie", 32-33.

116 ! Foucault. simplesmente como na orla do mar. um rosto de areia" I 117


sérias e, o que mais me encanta, a absoluta avidez de saber"B. algo diferente de todo o ronronar de instituições e de discursos
Ali, além de viver "entre os prazeres do sol e a ascese filosófi- políticos na Europa"lO.
ca,,9, também comprometeu-se intensamente com atividades Por duas vezes, no fim de maio e no fim de junho, tem
políticas. Na Universidade de Túnis as revoltas estudantis co- ocasião de ir a Paris, onde assiste a um comício e participa das
meçaram bem antes: no final de 66, um estudante é espancado últimas manifestações na Sorbonne. Mas, entre uma e outra
por policiais; em junho de 67, os tumultos, atrelados a ques- viagem, ainda na Tunísia, no mês de junho, escreve: "Daqui, é um
tões palestinas e às oposições ao governo, se agravam; e é em grande enigma"ll. Para ele, portanto, "não foi maio de 68, mas
março de 68 que recrudesce a repressão violenta. Os professo- março de 68 e em um país do terceiro mundo"12.
res franceses intercedem e Foucault, entre eles, atua intensa- Nem bem aceito na Tunísia, nem bem recebido na França,
mente: procura o embaixador da França, abriga estudantes fo- Foucault diz-se "sempre um pouco deslocado, à margem" e,
ragidos, esconde em seu jardim um mimeógrafo para a impres- quando volta para a França, "é sempre com um olhar um pou-
são de panfletos; não é oficialmente importunado, mas recebe co estrangeiro"I3. O retorno ocorre em outubro de 68. Inicial-
ameaças e intimidaçães do serviço de polícia paralelo e chega a mente nomeado para a Faculdade de Nanterre, onde não chega
sofrer maus-tratos físicos. Retomemos trechos de seu relato. a assumir o posto, vincula-se ao centro experimental de Vin-
"Estávamos em março de 1968: greves, interrupções dos cursos, cennes, espécie de faculdade-piloto, fundada sob o então mi-
detenções e greve geral dos estudantes. A polícia entrou na nistro da Educação, Edgar Faure, em resposta às recentes rei-
universidade, maltratou numerosos estudantes, feriu gravemente
vindicações. Constituída uma comissão de cerca de vinte
vários deles e os jogou na prisão. Alguns foram condenados a
oito, dez e mesmo quatorze anos de prisão. Alguns ainda estão membros (entre eles, Canguilhem, Barthes, Derrida) encarrega-
lá. Dada minha posição de professor, sendo francês, eu estava, da de designar os primeiros professores de diferentes áreas, aos
de certo modo, protegido em relação às autoridades locais, o quais caberá a tarefa de compor o corpo docente, Foucault é
que me permitiu realizar facilmente uma série de ações e, escolhido para a área de filosofia1 4 • Ao mesmo tempo em que a
ao mesmo tempo, apreender com exatidão as reações do gover-
no francês em face de tudo aquilo. Tive uma idéia direta do que 10. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 78.
se passava nas universidades do mundo. fiquei profundamente 11. Cf. FOUCAULT, M., "Chronologie", in Dits et écrits I, 33.
impressionado com aquelas moças e aqueles rapazes que se ex- 12. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 79.
punham a riscos terríveis redigindo um panfleto, distribuindo- 13. Ibid., 78.
o ou convocando à greve. Foi, para mim, uma verdadeira expe- 14. Convidará para o quadro docente da filosofia, entre outros, Gilles
Deleuze (que não pôde aceitar por estar adoentado), Michel Serres, Judith
riência política. (... ) Na Tunísia (... ) fui levado a tocar com o dedo
Miller, Alain Badiou, Jacques Ranciere, Jean-François Lyotard, François
Châtelet (Cf. ERIBON, D., Michel Foucault .. , 189; DossE, F., História do estrutura-
8. FOUCAULT, M., "La philosophie strucruraliste permet de diagnosttiquer lismo 11,175). Quando, pouco mais tarde, em janeiro de 1970., o novo minis-
ce qu'est 'aujourd' hui''', in Dits et écrits I, 584. tro da Educação, Olivier Guichard, recusa o reconhecimento de validade
9. ERIBON, D., Michel Foucault, 179. Em um depoimento de Jean Daniel, nacional para o ensino da filosofia ao diploma obtido em Vincennes, Fou-
reproduzido por Eribon, à p. 176, lê-se: "Nessa cidadezinha onde ele era feliz, cault concede uma entrevista publicada sob o título "Le piege de Vincennes".
ninguém o conhecia por outra coisa que não seu hábito de trabalhar desde Como era argumento do ministro que o conteúdo de filosofia ali ensinado
o amanhecer diante das janelas de sua villa, que davam para a baía, e por sua era demasiadamente particular e especializado, vale a pena reproduzir um
gula de viver e amar ao sol". pequeno trecho da resposta de Foucault: "Como sabem, não estou certo de

118 I Foucault. Simplesmente como na orla do mar, um rosto de areia'· ! 119


comissão é atacada pela direita "como um bando de esquerdis- indica também o efeito recíproco, isto é, as marcas do evento
tas", Foucault é considerado "pouco engajado" pelas esquerdas em Michel Foucault e as mudanças que nele acarretaram. Des·
e criticado «(por não ter 'feito nada' em maio de 1968". A um se ponto de vista, ou seja, do pensamento de Foucault pós-68,
amigo Oean Gattegno) que militara com ele na Tunísia, agora dois traços, pelo menos, merecem destaque.
também em Vincennes, declara: "Vou dizer a eles: 'Enquanto Primeiro, aquela proclamada "morte do homem" passará a
vocês se divertiam em suas barricadas do Quartier Latin, eu me receber contornos e consistência mais precisos. Ao tratamento
ocupava de coisas sérias na Tunísia"'IS. Mais uma vez, desta- quase solene do tema, seguir-se-ão comentários mais concretos
quemos um trecho da entrevista de 1978. e até irônicos. Assim, por exemplo, numa discussão com Lu·
"Quando voltei para a França, em novembro-dezembro de 1968, cien Goldman, dirá: "Não se trata de afirmar que o homem
fiquei principalmente surpreso, admirado e até decepcionado em morreu, trata-se (... ) de ver de que modo, segundo quais regras
relação ao que vira na Tunísia. As lutas, com sua violência, sua se formou e funcionou o conceito de homem. Fiz a mesma
paixão, não implicaram, de modo algum, o mesmo preço, os coisa com a noção de autor. Portanto, vamos conter as lágri-
mesmos sacrifícios. Não há comparação entre as barricadas do
mas"17. É nessa direção, creio, que Foucault vai relativizar o
Quarcier Latin e o risco real de cumprir, como na Tunísia, quinze
alcance e o entusiasmo por As palavras e as coisas, como se lê
anos de prisão (... ). Isso explica talvez a maneira como, a partir
daquele momento, busquei considerar as coisas tomando distân· naquela entrevista de 1978.
cia em relação a essas discussões indefinidas, a essa hipermarxi· "( ... ) um livro muito técnico, que se endereçava principalmente a
zação, a essa discursividade incoercível que era própria da vida técnicos da história das ciências (... ). Para dizer a verdade, lá não
das universidades, e em particular da de Vincennes, em 1969. Ten· estavam os problemas que mais me apaixonavam. Já lhes falei de
rei fazer coisas que implicassem um comprometimento pessoal, experiências· limite: eis o tema que verdadeiramente me fascina·
físico e real e que colocassem os problemas em termos concretos, va. Loucura, morte, sexualidade, crime são para mim coisas mais
precisos, definidos no interior de uma situação determinada"16. intensas. Em contrapartida, As palavras e as coisas foi para mim
uma espécie de exercício formal"18.
Assim, em Vincennes, Foucault será o "filósofo engajado" e
o "intelectual militante", lá permanecendo até 1970, quando Outro aspecto, ligado ao anterior, é o abandono das descri-
ingressa no College de France, pronunciando em 2 de dezembro ções estritamente intra e interdiscursivas que caracterizavam a
sua aula inaugural. configuração de uma epistéme e direcionavam o horizonte meto·
Esta breve reconstituição permite ver a marca forre e con- dológico de As palavras e as coisas. Suas investigações agora se ocu-
trovertida de Michel Foucault nos acontecimentos de 68. Mas parão, explicita e principalmente, de práticas e instituições sociais
que entram na composição da noção de dispositivo, essa configura-
que a filosofia exista. O que existe.são 'filósofos', isto é, certa categoria de
pessoas cujas atividades e cujos discursos variaram muito de uma época para ção heterogênea que articula o dircursivo e o extradiscursivo.
outra. O que os distingue, assim como a seus vizinhos, os poetas e os loucos,
é a separação que os isola, não a unidade de um gênero ou a constância de 17. FOlJCAULT, M., "Qu'esc·ce qu'un auteur?" (compce rendu de la séance),
uma doença" (FOUCAULT, M., "Le piege de Vincennes", in Dits et écrits lI, 70). in Dits et écrits I, 817. O que é um autor? Trad. de A. F. Cascais e E. Cordeiro,
15. ERlBON, D., Michel Foucault, 188. Lisboa, Vega, 1992,81.
16. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 80. 18. FOUCAULT, M., "Encretien ... ", in Dits et écrits IV, 67.

120 I Foucault. simplesmente como na orla do mar. um rosto de areia·· I 121


Mudanças, pois, nos temas e na direção das investigações.
Chamemos, mais uma vez e para concluir, o testemunho de
Foucault. Perguntado por que, ao evocar maio de 68, parece
XI
subestimar o acontecimento, Foucault reconhece que alguns
de seus aspectos, "os mais visíveis e superficiais", eram-lhe "com-
MICHEL FOUCAULT E O
pletamente estranhos". Mas, no que tange "àquilo que estava DILACERAMENTO DO AUTOR'
realmente em jogo, àquilo que realmente fez mudar as coisas"
e que "era da mesma natureza, na França e na Tunísia", a ava-
liação é outra:
"Maio de 68 teve uma importância, sem dúvida, excepcional. É
certo que, sem maio de 68, eu não teria jamais feito o que faço, a
propósito da prisão, da delinqüência, da sexualidade. No clima
anterior a 1968 nada disto era possível"19.

Para este livro já velho, eu devena escrever um novo prefácio. Confesso que
isto me repugna (. .. ). Quereria que um livro, pelo menos do lado daquele
que o escreveu, nada mais fosse que as frases de que éfeito; e que não se
desdobrasse neste primeiro simulacro dele mesmo que é um prefácio (. ..).
- Mas você acabou de fazer um prefácio.
- Pelo menos é curto.
M. FOUCAULT, Prefácio à nova edição de Histoire de la folie.

Tão paradoxal quanto escrever um prefácio escrevendo sobre


a relutância em escrevê-lo é querer preservar a obscuridade do
anonimato falando dele, expondo-o às luzes do próprio discurso.
São conhecidas as considerações de Foucault sobre o apa-
gamento do autor. Mas o paradoxo parece instalar-se quando
ele traz para o centro da cena aquilo que precisamente desejaria
fora dela, a saber, a atribuição de autoria a seus próprios discur-
sos. É esse paradoxo que está já presente na célebre formulação
que Foucault tomou emprestada a Beckett: "Que importa quem

* Este texto é uma versão modificada de comunicação apresentada no


Encontro Nacional de Filosofia, ANPOF, Águas de Lindóia, 1996, sob o
título "Foucault, o autor, por ele mesmo". Foi publicado na revista Margem,
19. Ibid., 81. número 16, São Paulo, Educ, 2002.

122 I Foucault. simplesmente Michel Foucault e o dilaceramento do autor I 123


fala; alguém disse: que imporra quem fala"l Considerando que I. Autor e nome própriO
o primeiro segmento dessa formulação ("que importa quem
Ainda que o "nome de autor" seja um "nome próprio" e
fala") diz respeiro a qualquer auror, e que o segundo ("alguém
com ele mantenha semelhanças, guarda porém uma "singulari-
disse: que importa quem fala") concerne ao autor dessa fala, se
dade paradoxal"3, Só para sugerir um exemplo, é diferente, e
perguntarmos então quem disse "que importa quem fala)), a
diferentes são as conseqüências, dizer que um nome foi erro-
resposta será "quem é apenas alguém", isto é, "que importa",
neamente atribuído a uma pessoa e dizer que o nome Guima-
perfazendo uma dobra circular do discurso sobre si mesmo.
rães Rosa foi erroneamente atribuído ao autor de Sagarana. O
Porém, mais que paradoxo, talvez haja nessa dobra um jogo
nome de autor está atrelado não propriamente a um indivíduo
de estratégia. Com efeito, o gesto que aponta para o desejo
real e exterior que proferiu um discurso, mas a certo tipo de
pessoal de impessoalidade em seu posro de auror não faz dele
discursos com estatuto específico, isto é, aqueles cujo modo de
necessariamente um privilégio; talvez apenas o dilua, indiferen-
ser, numa determinada cultura, os torna providos de uma atri-
ciadamente, como um caso entre outros, digamos assim, dentro
buição de autoria. Assim, a noção de autor de que aqui se trata,
de uma concepção teórica sobre a categoria do autor, qualquer
autor, ele inclusive. menos que um nome próprio, é uma função - "característica do
Para apresentar aqui algumas considerações sobre esse as- modo de existência, de circulação e de funcionamento de al-
sunto, farei liSO de passagens extraídas de três textos: ('O que é guns discursos no interior de uma sociedade"4.
um autor?" (1969), A ordem do discurso (1970) e "Foucault"
(1984). Com os dois primeiros, escritos na mesma época, for- 11. Função-autor
mo um pequeno conjunto e, como num jogo, não bem de pa- Restringindo a função-autor ao âmbito de livros e textos,
lavras, mas de "textos cruzados", imagino-os como estendidos pode-se nela reconhecer certas características, duas das quais
na "horizontal"; o terceiro, produzido bem depois deles, é o escolho destacarS , Por um lado, a função-autor não resulta sim-
texto "vertical", com que os pretendo cruzar. plesmente da espontânea "atribuição de um discurso a um in-
divíduo", mas "de uma operação complexa" que tem por efeito
•••
Do primeiro texto - "O que é um autor?" (1969) - destaco 3. FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un auteur?", in Dits et écrits, I, 797
três pontos. (tead., 44).
4. Ibid., 798 (trad., 46). A relação entre aucor e nome próprio é também
tratada por Foucault quando discute o conceito de "obra"como unidade
1. Cf FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un ameur?", in Dits et écrits, 792. (O discursiva. Ver, por exemplo, o texto de 1968, "Réponse au Cercle d'Epistémo-
que é um autor?, trad. de A. F. Cascais e E. Cordeiro, Lisboa, Vega, 1992,34). logie" (trad. bras. em Estruturalismo e teoria da linguagem, 1971) bem como o
Ver também: FOUCAULT, M., "Réponse à une question", in Dits et écrits I, Paris, item "Les unités du discours" de L'Archéologiedu savoir, Paris, Gallimard, 1969.
Gallimard, 1994,792. ("Resposta a uma questão", in Epistemologia/28, trad. 5. As duas outras que Foucault indica estão assim resumidas: "a fun-
M. da Glória Ribeiro da Silva, Rio de Janeiro, jan./mar. 1972,81). ção-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, deter-
2. FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un auteur?", in Ditsetécrits I, 789-821; L'ordre mina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da
du discours, Paris, Gallimard, 1971 (A ordem do discurso, trad. Laura Fraga de A. mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as
Sampaio, São Paulo, LoyoIa, 1996); "Foucault", in Dits et écrits, IV, 631-636. formas de civilização" (Dits et écrits I, 803; trad., 56).

124 I Foucault. simplesmente Michel Foucau!t e o di!aceramento do autor I 125


um "ser de razão"6, portanto construído, e segundo determina- crição dos diversos procedimentos de rarefação ou controle dos
das regras (por exemplo, o autor é definido "como certo nível discursos. Circunscrito como um deles, a categoria do autor
constante de valor"; "como certo campo de coerência concep- pertence ao grupo de procedimentos classificados como inter-
tual ou teórica"; "como unidade estilística"; "como momento nos, cujo papel consiste em reduzir, nos discursos, o que eles
histórico definido e ponto de encontro de certo número de têm de acaso, de acontecimento, de ficção'!.
acontecimentos"?). Por outro lado, e complementarmente, não Desse texto, limito-me a reproduzir três passagens, confe-
apenas efeito de uma construção, o autor é também sinalizado rindo-lhes pequenos títulos.
e definido pelos próprios textos que, por sua vez, podem reme-
ter, não a um indivíduo singular, mas a uma "pluralidade de I. Autor, função de controle
egos" ou a "várias posições-sujeitos" (por exemplo, uma é a
posição-sujeito do autor que fala em um prefácio, outra a do "Trata-se do autor. O autor entendido, é claro, não como o indi-
que argumenta no corpo de um livro, outra ainda a que avalia víduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor
a recepção da obra publicada ou a esclarece)'. como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e
origem de suas significações, como foco de sua coerência."I2
111. Autor e sujeito
A análise da função-autor conduz, entre outras conseqüên- 11. Autor, função recebida
cias, a um reexame da noção de sujeito. Sem dúvida, considerar
"Seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que es-
um texto do ponto de vista da "análise interna e arquitetônica" já
creve e inventa. Mas penso que - ao menos desde certa época-
é colocar em questão "o caráter absoluto e o papel fundador do
o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual
sujeito"9. Ora, reexaminar a noção de sujeito não significa restau- paira uma obra possível retoma por sua conta a função do au.
rar a pergunta pelo sujeito originário, mas invertê-la: consideran- tor (... )."13
do-se a função-autor uma particularização possível da função-
sujeito, tratar-se-á de perguntar não pelo sujeito constituinte,
111. Autor, função modificável
mas por sua constituição enquanto função do discurso.

••• "( ... ) função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como
ele, por sua vez, a modifica. Pois, embora possa modificar a ima-
o segundo texto - A ordem do discurso (1970) - dá à noção gem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma
de autor um tratamento, por assim dizer, mais "negativo". O
assunto ocupa um breve trech.o lO, inserido na seqüência de des- 11. Os procedimentos ditos externos ou de exclusão - ~'proibição" de
certos discursos, "segregação" de outros, imposição da "vontade de verdade"
6. Ibid., 800·801 (trad., 50). - foram apresentados anteriormente. Entre os chamados internos, a descri-
7. Ibid., 801-802 (trad., 52-53). ção do "autor" é precedida pela do "comentário" e seguida pela da repartição
8. Ibid., 802·803 (trad., 54-57). em "disciplinas".
9. Ibid., 810 (trad., 69). 12. Ibid., 28 (trad., 26).
10. FOUCAULT, M., L'Ordre du discours, 28-31 (trad., 26-29). 13. Ibid., 30 (trad., 28·29).

126 ! Foucault. simplesmente Míchel Foucau!t e o dilaceramento do autor I 127


nova posição de autor que recortará (... ) o perfil ainda trêmulo Lê-se que a produção de Foucault pode ser denominada
de sua obra.,,14 "História crítica do pensamento,,17, na medida em que realiza
análises (históricas) das condições de possibilidade para a cons-
***
trução de saberes. Essas condições dizem respeito, basicamen-
Finalmente, considero o terceiro texto, publicado quatorze
te, a dois procedimentos interdependentes: a "subjetivação" do
a quinze anos após os outros. Dele retraço algumas linhas que
sujeito, entendida como o estabelecimento das condições se-
permitam possíveis cruzamentos com os destaques dos textos
gundo as quais, em uma determinada sociedade, em uma de-
anteriores.
terminada época, um sujeito pode ser legitimado como "sujei-
to do conhecimento"; a "objetivação" do objeto, entendida como
I. O título e a destinação o estabelecimento das condições segundo as quais, em uma de-
o texto intitula-se "Foucault" e destinou-se a compor um terminada sociedade, em uma determinada época, alguma coi-
verbete para um Dicionário de filósofosls. Ora, é no mínimo curioso sa pode ser qualificada como objeto para um conhecimento
que esteja instalado em um dicionário de "autores" um pensador possível. Lê-se, a seguir, que a investigação de Foucault ocupa-
que se renha empenhado em denunciar a função restritiva do se, não com quaisquer modalidades de "subjetivação" e de "ob-
autor. Mais, que seus trabalhos sejam identificados mediante jetivação" para a construção de quaisquer saberes possíveis, mas
um título que é nada menos que seu "nome próprio". Entretan- com aqueles, precisamente, em que o próprio sujeito é colocado
to, a estranheza se atenua quando se examina o teor do verbete. como objeto de conhecimento.
Apresentado como uma espécie de fio condutor dos escri-
tos de Foucault, o ponto de vista da "constituição do sujeito"
11. Reconstituição de um projeto e constituição do sujeito
permite, inclusive, dar-lhes um novo desenho, dispondo-os em
Sob o nome-título nada se lê acerca do autor. Antes, o tex- um modo novo de repartição. Com efeito, estudos sobre o per-
to é, por inteiro, uma reconstituição de seus trabalhos reunidos curso da produção foucaultiana fornecem algumas formas de
desde o ponto de vista de um "projeto geral,,16 que os teria agrupar seus escritos.
presidido. Ora, esse projeto, que, de um modo ou de outro, • A mais conhecida reúne-os segundo os momentos "me-
teria orientado a produção dos escritos foucaultianos, é descri- todológicos", coincidindo com sua sucessão cronológi-
to, por sua vez, como precisamente assentado na questão da ca: arqueologia (História da loucura, O nascimento da clz'nica,
constituição do sujeito. Para mostrá-lo, apresento um breve As palavras e as coisas, A arqueologia do saber); genealogia
resumo do trecho inicial. (Vigiar e punir, A vontade de saber, vol. I de História da sexua-
lidade); vertente ética (O uso dos prazeres, O c/fidado de si,
14. Ibid., 31 (ecad., 29). vols. 11 e III de História da sexualidade). Organização seme-
15. HUISMAN, D., Dictionnaire des philosophes, Paris, PUF, 1984, t. I, 942- lhante já foi também formulada em termos de priorida-
944 (republicado em Dits et écrits, IV). "Foucault", in HUISMAN, D., Dicionário
dos filósofos, trad. C. Berliner, E. Brandão, I. C. Benedetti, M. E. Galvão, São de de "áreas": epistemológica, política, ética.
Paulo, Martins Fontes, 2001, 388-391.
16. FouCAuLT, M., Dits etécrits IV, 633 (trad. em Dicionárro dos filósofos, 389). 17. Ibid., 631 (trad., 389).

128 I Foucault. Simplesmente Michel Foucault e o dilaceramento do autor I 129


• Outro modo de organizar tem por critério a "transitivi- tltUlção do sujeito", a tal ponto que permite, inclusive, um
dade" ou "intransitividade" da dimensão discursiva às rearranjo do conjunto de escritos.
práticas extradiscursivas (por exemplo, enquanto As pa-
lavras e as coisas se classifica no nível discursivo estrito, 111. R assinatura" o paradoxo
História da loucura e Vigiar e punir misturam-no ao das
Atenuada, a estranheza porém ressurge e, com ela, faz
práticas sociais). Organização semelhante tem por crité-
ressurgir o paradoxo sugerido anteriormente. É quando se aten-
rio, como uma espécie de pano de fundo, a questão do
ta para o fato de que o texto do verbete, inicialmente solicitado
"Mesmo" e do "Outro" (por exemplo, História da loucura
a François Ewald, então assistente de Michel Foucault, foi redi-
é uma história do "Qutrol) e As palavras e as coisas é uma
gido e vem assinado por um certo Maurice Florence ou, abrevi-
história do "Mesmo").
ando, se se quiser, M. F. Ora, quem desenvolveu aquela concep-
Ora, o "projeto geral" proposto justifica agora uma nova ção teórica sobre a categoria do autor e nela pretendeu diluir o
organização dos escritos de Foucault, que não se opõe necessa- seu próprio apagamento parece agora revestir-se de um disfar-
riamente às anteriores, mas as amplia ou mesmo as recobre. Tra- ce que, ao contrário, o expõe à plena luz.
ta-se de redistribuí-Ios - retrospectivamente, é claro - em três Entretanto, suspeita-se aqui, mais uma vez, de que tudo
conjuntos, de acordo com diferentes modos de operar a análise seja ainda um prosseguimento daquele jogo estratégico no qual
da constituição do sujeito enquanto objeto de conhecimento: quem ainda é apenas alguém. Suspeita-se de que, se a função-
• análise da constituição do sujeito enquanto objeto de autor é não somente recebida, mas modificável, Foucault a "re-
conhecimento com pretensão a estatuto científico (isto toma por sua conta" e "a modifica". E dessa suspeita há pelo
é, enquanto objeto das chamadas ciências humanas) - menos dois indícios. Primeiro, se lembrarmos que a função-
temos aqui As palavras e as coisas; autor é uma particularização da função-sujeito, é estrategica-
• análise da constituição do sujeito enquanto objeto do mente instrutivo que o título-autor recubra um texto cujo de-
conhecimento como "o outro lado de uma partição nor- senvolvimento trata da questão do sujeito. Segundo, é possível
mativa,,18 (isto é, como o louco, o doente, o delinquente) que, em contrapartida a uma abordagem mais "negativa" (como
e - temos História da loucura, O nascimento da clínica, Vigiar em A ordem do discurso) da função-autor, esse texto realize~, em
e punir, sua materialidade, a positiva explicitação de uma pluralidade
• análise da "constituição do sujeito como objeto para ele possível de "posições-sujeitos".
mesmo"19 - temos os volumes de História da sexualidade. Em suma e para concluir, ao mesmo tempo em que, sob o
título, o texto permite um desdobramento do próprio título:
Com essas observações, o que interessa é fazer notar que, também permite, sob a assinatura, um desdobramento do au-
malgrado o título, não é do "autor" que o texto fala, mas de sua tor que a si próprio se coloca numa espécie de zona limítro-
produção discursiva, a qual é conduzida pela temática da "cons- fe em que ele é e pode não ser igual a si mesmo.

18. Ibid., 633 (cead., 389).


19. Ibid., 633 (trad., 389).

130 I Foucault, simplesmente Michel Foucault e o dilaceramento do autor ) 131


BIBLIOGRAFIA

Os textos utilizados ou citados ao longo dos artigos estão


referenciados nas respectivas notas. Acrescentamos aqui uma
relação das obras de Michel Foucault seguida de uma relação
de traduções em língua portuguesa.

Obras de Michel Foucault


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• Falie et déraison. Histoire de la folie à l'âge classique. Paris, PIon,
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• lntroduction à l'anthropologie de Kant. These complémentaire pour
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datilografado) .
• Maladie mentale et psychologie. Paris, PUF, 1962.
• Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical. Paris,
PUF,1963.
• Raymond Roussel. Paris, Gallimard, 1963.
• Les Mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris,
Gallimard, 1966.
• L'Archéologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969.
• L'Ordre du discours. Leçon inaugural au Col/ége de France prononcée
le 2 décembre 1970. Paris, Gallimard, 1971.·

bibliografia ! 133
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Gallimard, 1972. Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan-
• Moi) Pierre Riviêre) ayant égorgé ma mere) ma soeur et mon frere ... Un dro Fontana, par Michel Senellart. Paris, Gallimard/Seuil, 2004.
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Gallimard/Julliard, 1973. Édition établie par François Ewald et Alessandro Fontana, par
• Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris) Gallimard, 1975. Michel Senellarr. Paris, Gallimard/Seuil, 2004.
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Paris, Gallimard, 1982.
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cault). Paris, Gallimatd, 1982. visão técnica de Chaim Samuel Katz. Rio de Janeiro, Tempo
o Histoire de la sexualité, 11. L 'Usage des plaisirs. Paris, Gallimard, Brasileiro, 1975.
1984. • História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira
• Histoire de la sexualité, III. Le Souci de soi. Paris, Gallimard, 1984. Coelho Neto. São Paulo, Perspectiva, 1978.
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Jacgues Lagtange Paris, Gallimatd, 1994 (2 vols. Paris, Galli- 1999.
mard,2001). • As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tra-
o "I! faut défendre la société". Cours au Collége de France, 1975-1976. dução de Salma Tannus MuchailJ São Paulo, Martins Fontes,
Édition étab!ie sous la direction de François Ewald et Alessan- 1981.
dro Fontana, par Mauro Bertani e Alesssanclro Fontana. Paris, o A arqueologia do saber. Tradução de Luís Felipe Baeta Neves. Rio
Gallimard/Seuil, 1999. de Janeiro, Forense Universitária, 1972.
°Les Anormaux. Cours au Collégede France,1974-1975. Édition établie • A ordem do discurso. Aula inaugural no College de France pronunciada
sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Lauta Fraga de Almeida
Valerio Marchetti et Antonella Salomini. Paris, Gallimard/Seuil, Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996. (Edição portuguesa revista
1999. por Nuno Nabais, Lisboa, Relógio D'Água Editores, 1997.)
o L'Herméneutique du sujeI. Cours au Collége de France, 1981-1982. • Eu, Pierre Riviere) que degolei minha mãe) minha irmã e meu irmão ...
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan- Um caso de parricídio do século XIX (apresentado por Michel Fou-
dro Fontana, par Frédéric Gros. Paris, Gallimard/Seuil, 2001. cault). Tradução de Denise Lezan de Almeida. Revisão técnica
o Le Pouvoir psychiatrique.Cours au Collége de France, 1973-1974. de Geotges Lamaziére. Rio de Janeiro, Graal, 1977.
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan- o Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Tradução de Raguel Rama-
dro Fontana, par Jacgues Lagtange. Paris, Gallimard/SeuiI2003. lhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

134 ! Foucault. Simplesmente bibliografia I 135


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cisco Alves, 1982. • O Dossier. Últimas entrevistas. Introdução e organização de Car~
• História da sexualidade, r. A vontade de saber. Tradução de Maria los Henrique de Escobar. Tradução de Ana Maria de A. Lima e
Thereza da Cosra Albuquerque e José Augusto Guilhon Albu- M. da Glória R da Silva. Rio de Janeiro, Taurus, 1984 (inclui
querque. Rio de Janeiro, Graal, 1977. três entrevistas com Michel Foucault: «Sobre a genealogia da
• História M sexualiMde, 11. O uso dos prazeres. Tradução de Maria ética: uma visão do trabalho em andamento", "O cuidado com
Thereza da Cosra Albuquerque. Revisão récnica de José Augus- a verdade", "O retorno da moral" e uma transcrição da aula "O
to Guilhon Alburqueque. Rio de Janeiro, Graal, 1984. que é o iluminismo?").
• História da sexualidade, III. O cuidado de si. Tradução de Maria • Isto não é um cachimbo. Tradução de Jorge Coli. Rio de Janeiro,
Thereza da Costa Albuquerque. Revisão técnica de José Augus- Paz e Terra, 1988.
to Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1985. • O pensamento do exterior. Tradução de Nurimar Falei. São Paulo,
Princípio, 1990.
Textos avulsos e coletâneas • O que é um autor? seguido de A vida dos homens infames e A escrita
• "Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo episte- de si. Tradução de Antônio Fernando Cascais e Edmundo Cor-
mológico". In: Estruturalismo e Teoria M Linguagem. Tradução de deiro. Prefácio de José A. Bragança de Miranda e Antônio Fer-
Luís Felipe Baera Neves. Perrópolis, Vozes, 1971, p. 9-55. nando Cascais. Lisboa, Vega, 1992.
• "Entrevista com Michel Foucault". Por Sérgio Paulo Rouanet e • Michel Poucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow.
José Guilherme Merquior. In: O Homem e o discurso (A arqueolo- In: RABINOW, P. e DREYFus, H., Uma Trajetória filosófica. Para além
gia de Michel Poucault), Comunicação/3. Rio de Janeiro, Tempo do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Portocarrero.
Brasileiro, 1971, p. 17-42. Introdução traduzida por Antônio Carlos Maia. Rio de Janeiro,
• "Resposta a uma questão". In: Tempo Brasileiro, Epistemologia/ Forense Universirária, 1995 (Apêndice à 2. edição).
28, jan-mar. 1972, p. 57-81. • Resposta a Derrida. In: Três tempos sobre a história da loucura. Orga-
• A verMde e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Machado e nização de Maria Cristina Franco Ferraz. Tradução de Vera Lúcia
Eduardo Jardim Morais. Cadernos M PUCjR]. Série Lerras e Ar- Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
res, 06/74, n. 16, PUC/RJ, Rio, 1974. (republicado no Rio de • Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Cole-
Janeiro, Nau Editora, 1994). ção "Ditos e Escritos", voI. r. Organização e seleção de textos de
• Microftsica do poder. Tradução de Lílian Holzmeister, Ângela Lou- Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribei-
reiro de Souza, Marcelo Catan, Roberto Machado, Marcelo Mar- ro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.
ques Damião,José Thomaz ~rum Duarte, Déborah Danowski, • Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pen:samento. Cole-
Maria Teresa de Oliveira. Organização, introdução e revisão ção "Ditos e Escritos", voI. II. Organização e seleção de textos
récnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979 (reu- de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monreiro. Rio
nião de textos diversos). de Janeiro, Forense Universitária, 2000.
• Nietzsche, Marx, Preud. e Theatrum philosoficum. Tradução de Jor- • Estética: literatura e pintura) música e cinema. Coleção "Ditos e Es-
ge Lima Barreto. São Paulo, Princípio, 1987 (republicação de critos", voI. IIr. Organização e seleção de texto de Manoel Bar-

136 1 Foucault, simplesmente bibliografia I 137


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138 ! Foucault. simplesmente
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