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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES

MARTA MAIA FERNANDES BARROSO

DE FLICTS A FLICTUS:
PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA TRADUÇÃO

FORTALEZA - CEARÁ
MAIO - 2011
2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES

MARTA MAIA FERNANDES BARROSO

DE FLICTS A FLICTUS:
PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA TRADUÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso


submetido à Coordenação do Curso
de Pós-Graduação em Formação de
Tradutores da Universidade Estadual
do Ceará como requisito parcial para
a obtenção do grau de Especialista
em Tradução.

Orientadora: Prof. Ms. Gleyda Lucia


Cordeiro Costa Aragão

Fortaleza
2011
3
4

Para Giovanni, Joana, Ivan


e Nízia (in memoriam)
5

Agradecimentos

À minha orientadora, professora Gleyda Cordeiro, por seu zelo e interesse no


aprimoramento deste trabalho.

Às professoras Ana Tavares e Cláudia Giraud, membros da banca, por suas lições.

À professora Rozania Moraes, pelo incentivo na tradução de Flicts.

À Marilac Sucupira, pela revisão ortográfica e gramatical.

À Maiara Marrir e à Tânia Ellery pelo incentivo e pela indicação deste curso.

À Patrícia Maia e à Solange Moura, pela força de sempre.

À Evilene Castro, à Graça Marques e à Leda Freitas pela parceria durante o curso.

A todos que fazem a Especialização em Formação de Tradutores/UECE.

À Sylvianne Bigan pour son amitié, son soutien et ses conseils.

Ao Ziraldo por ter me proporcionado a felicidade de conhecer o Flicts.


6

Não basta que seja pura e justa a nossa causa.


É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.

Agostinho Neto
7

RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise da tradução para a língua francesa do livro
Flicts, primeira publicação infantil de Ziraldo, lançada em 1969. O público alvo da
referida tradução é a criança francesa. Visando realizar a tarefa de tradução de levar
o Flicts escrito em português do Brasil para o francês da França, a tradutora baseou-
se na noção de reescritura de Lefevère, dado que este tem sido visto nos estudos de
tradução como um teórico de tendência culturalista ou ideológica, com forte traço ao
antietnocentrismo. Ao longo deste trabalho é apresentada a descrição de cada
procedimento tradutório, com enfoque para as proximidades e impasses
encontrados durante processo de reescritura, revelando não somente decisões que
envolvem as interpretações do plano lingüístico, mas também os procedimentos de
edição e colagem do texto em francês sobre as imagens de Ziraldo, buscando assim
aproximar a tradução francesa da história narrada no texto de partida, com a sua
beleza, sua criatividade e sua simplicidade ao tratar de um tema que enfatiza o
confronto entre a aparência e a essência.

Palavras chaves: literatura infantil, tradução, reescritura.


8

RESUMÉ

Ce travail présente une analyse de la traduction en langue française du livre Flicts,


première publication destinée aux enfants de l’auteur Ziraldo, edité en 1969. Le
public cible de cette traduction est l'enfant français. Pour mener à bien la traduction
de cette oeuvre du portugais du Brésil en français de France, la traductrice s'est
basée sur la notion de réécriture de Lefevère, car c'est un théoricien de la traduction
reconnu pour son respect des particularités culturelles et son rejet de
l'ethnocentrisme. Ce travail est la description des procédés de traduction qui ont été
employés face aux ambiguités, aux subtilités de chacune des langues et à ce qui
semble "intraduisible" littéralement. Ce travail met en lumière les choix linguistiques
de la traductrice. Il présente aussi la manière dont le texte traduit est associé aux
illustrations de ZIRALDO avec le souci de montrer en français la beauté, la créativité
et la simplicité du texte de départ : une histoire dont son sujet philosophique, la
confrontation entre l’apparence et l’essence de l’être, est racontée aux enfants.

Mots clés : littérature, enfants, traduction, réécriture.


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INDICE

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.................................................................................. 13
1.1 CONCEITOS GERAIS DA TRADUÇÃO.................................................................................... 13
1.1.1 A TRADUÇÃO COMO REESCRITURA................................................................................ 17
2 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL.......................................................................................... 19
1.2.1 VISÃO HISTÓRICA E FUNÇÃO SOCIAL............................................................................. 19
1.2.2 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL................................................................................ 32
1.2.3 ZIRALDO E SEU UNIVERSO LITERÁRIO............................................................................ 40
CAPÍTULO 2 METODOLOGIA.................................................................................................... 45
2.1 CORPUS........................................................................................................................... 45
2.2 FLICTS............................................................................................................................. 45
2.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DE TRADUÇÃO......................................................................... 49
CAPÍTULO 3 ANÁLISE DA TRADUÇÃO DE FLICTS....................................................................... 52
3.1 TRADUZINDO O TÍTULO...................................................................................................... 52
3.2 TRADUZINDO A OBRA: ESTRATÉGIAS E IMPASSES............................................................... 52
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................... 69
SITES CONSULTADOS.............................................................................................................. 71
APÊNDICE............................................................................................................................... 72
ANEXO................................................................................................................................... 86

INDICE DAS TABELAS

TABELA 1: ELEMENTOS DE UM MESMO ATO COMUNICATIVO..................................................... 14


TABELA 2: OS QUATRO MODELOS DE TRADUÇÃO, PROPOSTOS POR CATFORD......................... 15
TABELA 3: CATEGORIAS DO PROCESSO DE TRADUÇÃO, SEGUNDO LEFEVÈRE.......................... 19
TABELA 4: DIFERENÇAS ENTRE CONTO MARAVILHOSO E CONTO DE FADAS............................... 27
TABELA 5: FORMAS LITERÁRIAS IDENTIFICADAS NOS CONTOS DE GRIMM................................. 30
TABELA 6: OBRA DE MONTEIRO LOBATO, ALGUNS EXEMPLOS................................................. 36
TABELA 7. TRAJETÓRIA EDITORIAL DE FLICTS NO EXTERIOR................................................... 48

INDICE DAS ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1: BANDEIRA DA INGLATERRA, SUBSTITUÍDA PELA BRASILEIRA NA EDIÇÃO DE1984....... 48


FIGURA 2: PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DO NOME FLICTS EM FLICTUS.............................. 51
10

INTRODUÇÃO

Leitora de Ziraldo desde a infância e eterna apaixonada pelo Flicts, a


pesquisadora não teve dúvidas em escolher traduzir este livro para o francês na
disciplina de Tradução Literária desta Especialização, ministrada pela professora
Rozania Moraes. Traduzir Flicts foi tão gratificante que, com a aprovação de sua
orientadora, a professora Gleyda Cordeiro, foi escolhida para este trabalho
monográfico a análise daquela tradução.
Iniciando o estudo buscou-se delimitar, dentro do universo francofônico, a
criança francesa como público-alvo da tradução. Tal escolha foi motivada pelo fato
de a pesquisadora haver morado por algum tempo na França, onde seus filhos
frequentaram o colégio e onde teve oportunidade de conhecer alguns de seus
coleguinhas, além de ter participado de associações locais, fazendo algumas
amizades. Em Évry, cidade onde residiu, como em toda a França, o hábito da leitura
é muito incentivado e este foi um dos pontos positivos da passagem de sua família
por lá.
Sendo Évry, uma cidade onde a maioria de sua população se compõe de
imigrantes de origem árabe ou africana, que preservam e transmitem aos filhos, já
nascidos na França, hábitos, crenças e, principalmente, convicções políticas, a
pesquisadora observou que seus filhos tiveram oportunidade de conviver com
pessoas de diversas origens. Essa convivência lhes permitiu observar, algumas
vezes com surpresa, que alguns de seus colegas, apesar de muito jovens, possuíam
e expressavam opiniões com relação a assuntos distantes do universo infanto-
juvenil, como a política internacional, por exemplo. Tais observações foram
discutidas, analisadas e justificadas em conversas domésticas.
A França tem se destacado como um centro de convergência, produção e
difusão cultural e científica há alguns séculos, o que despertou a atração de vários
povos. Pode-se conceber que durante muito tempo foi um país aberto aos
imigrantes.
Entretanto, o imigrante europeu não se distingue ostensivamente, em termos
culturais e étnicos, do povo francês, como ocorre com os imigrantes oriundos de
suas antigas colônias que, embora falantes da língua francesa, possuem uma
cultura, em muitos aspectos, distinta daquela do povo francês.
11

É fato conhecido que o encontro das diferenças pode propiciar tanto a


enriquecedora miscigenação cultural, como acontece no Brasil, mas também
provoca o retraimento e a exclusão do que não é convencional, gerando, muitas
vezes, o preconceito.
Saliente-se que o preconceito é mais facilmente assimilado durante a infância,
momento em que as crenças dos adultos, que orientam as primeiras relações
sociais das crianças, lhes são incutidas, podendo transformar seus valores, de
maneira acrítica, em visões de mundo e referenciais para condutas sociais e
tomadas de decisão.
O fenômeno que se observa cotidianamente nas manchetes dos jornais
atuais, não apenas na França, mas em toda a Comunidade Européia – CE –, é um
distanciamento entre imigrantes e nativos, levando à formação de comunidades
diferenciadas pela religião e pela cultura, acentuando diferenças e resultando no
fortalecimento dos preconceitos e da exclusão mútua. Fato este que fortalece a
importância desta tradução como veículo de reflexão e de superação de ideologias.
Tem-se que o advento da modalidade literária infantil se tornou um recurso a
mais para o cumprimento de uma das funções sociais da família, que é a formação
de conceitos, não só de conteúdos formais, mas também de natureza moral.
O livro Flicts, traduzido para o francês, ganha, pois, importância diante do
seu público-alvo devido ao seu caráter antissectarista, com ênfase no confronto
entre a aparência e a essência, pois facilita a disseminação de premissas igualitárias
durante a infância, período de formação de valores e de construção do juízo moral;
tem-se, portanto, como objetivo social oportunizar ao pequeno leitor francês o
conhecimento das ideias de igualdade e fraternidade propostas pelo escritor Ziraldo.
É interessante frisar que a obra versa sobre valores sociais. Apresenta,
enfaticamente, a conduta grupal, e com ela, a possibilidade de o leitor, sobretudo a
criança, entrar em contato com os sentimentos de quem é rejeitado, possibilitando
sua identificação com o personagem e seu acesso a estratégias de superação de
conflitos. Flicts trata de uma questão básica inerente a esse fenômeno social: a
diferença, ou o diferente, o que pode remeter a questões raciais, culturais, religiosas,
ou quaisquer que sejam. Os elementos cor e imagem, signos de compreensão
universal, utilizados pelo autor e mantidos pela tradutora, enfatizam e colaboram na
compreensão do conflito vivido pelo personagem.
12

O objetivo geral deste estudo é a análise da tradução de Flicts, livro infantil


de Ziraldo, a qual foi realizada pela autora desta pesquisa. Visando alcançar o
objetivo geral, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos que envolvem:
estudo dos conceitos gerais de tradução com ênfase na noção de reescritura de
Lefevère; contextualização histórica da tradução de literatura infantil no mundo e no
Brasil; e estudo da biografia e da obra de Ziraldo.
O primeiro capítulo contém o referencial teórico sobre tradução; a visão
histórica e social da literatura infanto-juvenil e de sua tradução no mundo e no Brasil;
e o universo literário de Ziraldo. No segundo capítulo encontra-se retratada a obra
traduzida, bem como a análise de seu conteúdo e de sua trajetória editorial no Brasil
e no mundo; traz também a descrição detalhada, passo a passo dos procedimentos
da tradução. O terceiro capítulo contempla a análise da tradução de Flicts,
procedendo à comparação entre o texto-fonte e o texto-alvo, observando,
justificando e explicando as escolhas feitas.
Seguindo a análise dos procedimentos tradutórios, são apresentadas as
conclusões a que chegou a pesquisadora.
13

CAPÍTULO 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 CONCEITOS GERAIS DA TRADUÇÃO

A primeira reflexão no ocidente sobre a arte e a tarefa de traduzir surgiu em


46 a.C. quando o grande orador Cícero, na sua obra De optimo genere oratorum
aborda a questão teórica da tradução que ainda hoje se discute: deve-se ser fiel às
palavras do texto ou ao pensamento contido nele? (PIETRO, 2009).
Segundo Furlan (2010), São Jerônimo, (400 anos d.C) religioso que traduziu a
Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim, também refletiu sobre a questão
da fidelidade na tradução, admitindo, em sua Carta a Pamáquio – um dos textos
mais importantes da Antiguidade sobre a maneira de traduzir – que, a exemplo de
Cícero, traduzia idéias e não palavras, defendendo a tradução pelo sentido em
função do conteúdo, servindo-se, se necessário, de recursos gramático-retóricos.
Tais afirmações lhe rendem severas críticas ainda nos dias de hoje.
Ao longo da história da tradução, muitos teóricos discorreram sobre “como
traduzir”; mas foi no século XX, em função da união dos países em organizações
como a Liga das Nações1, em 1920, e a ONU2, em 1950, que passaram a utilizar os
serviços de profissionais tradutores e intérpretes, em suas assembleias, gerando um
grande volume de traduções que, segundo Barbosa (2007), os estudos científicos
sobre o assunto ganharam impulso.
Informa Rodrigues (2000) que Georges Mounin foi o primeiro linguista a
estudar o assunto, validando a atividade tradutória por sua própria existência ao
defini-la como uma operação lingüística, alegando que:

[...] comporta, basicamente uma série de análises e de operações


especificamente dependentes da língua e susceptíveis de serem mais e
melhor esclarecidas pela ciência lingüística aplicada corretamente do que
por qualquer empirismo artesanal (Mounin, 1975, apud Barbosa, 2007, p.
20).

1
Liga das Nações é organismo internacional criado após a Primeira Grande Guerra, com a finalidade de impedir as guerras e
assegurar a paz, a partir de ações diplomáticas, de diálogos e de negociações para a solução dos litígios internacionais. Em
15/11/1920, em Genebra, na Suíça, aconteceu a Primeira Assembléia Geral da Liga das Nações.
(http://educacao.uol.com.br/historia/liga-das-nacoes.jhtm)
2
A Organização das Nações Unidas é uma instituição internacional formada por 192 Estados soberanos, fundada após a 2a
Guerra Mundial para manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover progresso
social, melhores padrões de vida e direitos humanos. Os membros são unidos em torno da Carta da ONU, um tratado
internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comunidade internacional. (http://www.onu-
brasil.org.br/conheca_onu.php)
14

Rodrigues (2000) observa que também Nida e Catford se valeram da


linguística para explicar a tradução. O primeiro fez uso instrumental da linguística
para solucionar questões de tradução e o segundo buscou na teoria linguística as
bases para sistematização da tradução. Outros linguistas, a partir da linguística
contrastiva, utilizaram a tradução para fornecer critérios básicos de comparação
entre línguas.
Relativamente a Nida, tem-se que ele buscou subsídios teóricos na gramática
de base gerativa-transformacional, considerando a língua como “um mecanismo
dinâmico capaz de gerar uma série infinita de enunciados diversos”. (Nida, 1964
apud Barbosa, 2007, p. 32).
Considera Nida que o tradutor e o leitor da tradução constituem elementos de
um mesmo ato comunicativo, sendo a tradução uma etapa deste ato, conforme
apresentado na Tabela 1, elaborada por Barbosa (2007, p. 34):

Tabela 1: Elementos de um mesmo ato comunicativo.

FONTE MENSAGEM1 RECEPTOR1 MENSAGEM2 RECEPTOR2

FONTE : autor do texto na língua fonte MENSAGEM2 : texto na lingua de tradução


(equivalente à MENSAGEM1)
MENSAGEM1 : texto na língua fonte
RECEPTOR2 : o leitor do texto na lingua de
RECEPTOR1 : tradutor tradução

Barbosa (2007) observa que para Nida, a tradução é a produção de


mensagens equivalentes (não iguais), um processo de reprodução do caráter
dinâmico global da comunicação, sendo necessário considerar com antecedência
três fatores básicos: a natureza da mensagem; o objetivo ou objetivos do autor e,
consequentemente, do tradutor; e o tipo de público visado pelo original e pela
tradução. A partir daí se faz a tradução buscando a maior equivalência possível
entre as duas mensagens, sem deixar de considerar a existência de dois tipos
fundamentais de equivalência: A “equivalência formal”, centrada no conteúdo e na
forma do texto da lingua-fonte (LF), e a “equivalência dinâmica” cujo objetivo é
atingir uma total naturalidade no texto na língua-alvo (LA), produzindo no leitor do
texto traduzido o mesmo efeito que produziu o texto de origem no seu leitor, ou seja,
a equivalência formal é centrada no conteúdo da mensagem e a equivalência
dinâmica na expressão da mensagem.
15

Sob o olhar de Catford (1965/1980 apud Rodrigues, 2000, p. 38) tradução é


“substituição de material textual numa língua (língua fonte - LF), por outro material
textual equivalente noutra língua (língua alvo - LA)”. A expressão “material textual”
usada pelo autor não se refere ao “texto”, por “não ser a totalidade do texto” que se
traduz, já que nem todos os seus níveis podem ser substituídos por equivalentes. O
termo “equivalente" é para ele uma palavra-chave, pois o problema central da
tradução residiria na busca de equivalentes de tradução na LA.
Catford busca identificar “probabilidades linguísticas” com a finalidade de criar
“regras ou algoritmos de tradução” o que, segundo Rodrigues (2000), restringe
muitas das opções de tradução existentes na LA para um termo ou expressão.
Tabela 2: Os quatro modelos de tradução, propostos por Catford.
Na “tradução plena” todo o texto da LF é substituído por seu
equivalente na LA. Havendo, na “tradução parcial”, um ou mais
Tradução plena termos que não são traduzidos, e se incorporam à tradução. Este
Primeiro
procedimento, chamado de “transferência” por Catford, também
modelo
denominado “empréstimo”, acontece quando, na tradução, o termo
Tradução parcial da LF é mantido por razões estilísticas ou por não haver tradução
possível (BARBOSA, 2007).
A “total” respeita uma ordem ou hierarquia cujos níveis de gramática
e léxico do texto da LF se substituem por gramática e léxico
Tradução total equivalentes da LA, mas com substituição não equivalente dos
Segundo níveis fonológicos e grafológicos. Já na “restrita”, a substituição de
modelo material textual equivalente na LA limita-se a apenas um dos itens
Tradução restrita dessa hierarquia, ou gramatical, ou lexical, ou fonológico, ou
grafológico (BARBOSA, 2007).
Catford mantém o conceito de “ordem”, podendo a tradução ser
“limitada à ordem” ou “não limitada”. Na “tradução limitada”, o
Tradução
tradutor deve buscar equivalentes da LF na LA apenas em uma das
Terceiro limitada à ordem
ordens, por exemplo, a da palavra. Quanto à "tradução não
modelo limitada”, que corresponde à “tradução total” citada acima, tem-se
Tradução que as equivalências se deslocam livremente na escala das ordens,
não limitada de acordo com as necessidades que surgem durante confronto
entre as duas línguas (BARBOSA, 2007).
Catford refere-se à “tradução palavra-por-palavra”, à “tradução
Tradução literal" e à “tradução livre”, tendo sido cada um desses modelos já
palavra-por-palavra descrito nos modelos anteriores. A “tradução livre” é a “não
Quarto limitada”, do seu terceiro modelo, e a “total”, do seu segundo
modelo Tradução literal modelo. A “tradução palavra-por-palavra” é a “limitada à ordem”, do
seu terceiro modelo. Já a “tradução literal” é um meio termo entre
estas duas, pois partindo da tradução "palavra-por-palavra" faz
Tradução livre
alterações de acordo com as normas da LA (BARBOSA, 2007).

Note-se que Catford descreve o processo de tradução como “substituição”. Já


Nida expande essa imagem ao descrevê-lo como “transferência”. Porém, segundo a
visão de Arrojo (2007), em ambas as definições, o papel do tradutor se resume a
16

substituir palavras ou a transferir significados de uma língua para a outra, não


podendo interferir no texto, interpretando-o.
Em contrapartida à visão da tradução como substituição e transferência,
defende Arrojo (2007), que a tradução não pode se limitar ao simples transporte ou
transferência de significados estáveis de uma língua para outra, pois ao ser
traduzido, o texto passa a existir em outro contexto, onde deverá ter vida própria.
Explicita a autora (p. 24):

A tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que


protege os significados “originais” de um autor e assume sua condição de
produtora de significados; mesmo porque protegê-los seria impossível [...].

A tradução deve ser entendida como uma atividade ampla que, além de
pesquisar palavras, deve buscar entender o momento histórico, cultural e geográfico
em que nasceu o texto, para torná-lo acessível ao leitor da língua de chegada,
segundo esclarece Bassnet (2003, p. 35):

De acordo com uma abordagem estritamente linguística, a tradução


consistiria em transferir o “sentido” contido num conjunto de signos
linguísticos para outro conjunto de signos linguísticos através do recurso
competente ao dicionário e à gramática; contudo, o processo envolve
também um vasto conjunto de critérios extralingüísticos.

A análise da tradução literária é o objeto das pesquisas de André Lefevère e


Gideon Toury. Estes autores se opõem aos estudos de fundamentação linguística já
existentes e buscam explicar os dados ainda não esclarecidos, analisando, entre
outros aspectos, as estratégias utilizadas por vários tradutores, buscando entender
suas escolhas, sem, porém, prescrever regras. (RODRIGUES, 2000).
Também Toury tem como objeto de estudo a tradução literária, em seu livro In
search a theory of translation, (1980) no qual, segundo Rodrigues (2000, p.132),
apresenta os principais tópicos de sua “abordagem semiótica da tradução”,
desenvolvida por um estudo descritivo, com foco no pólo receptor. O autor descreve
os passos em busca de uma explicação sistemática de tradução que, para ele,
envolve “operações de transferência ocorridas em uma entidade semiótica
pertencente a um certo sistema diferente”, sendo que a expressão “entidade
semiótica” pode ser compreendida de maneira ampla, representando desde o signo
até combinações hierarquicamente superiores, como orações, textos, “mensagens”
ou “modelos institucionalizados”.
17

A abordagem descritiva da tradução é utilizada pelo autor em seu estudo, com


o objetivo de verificar sua orientação, de que maneira ela se insere no sistema que a
recebe e quais os tipos de influência que sofreu durante o trabalho, partindo do
pressuposto de que o sistema receptor não tem apenas impacto na produção final,
ou “recomposição”, mas que também influi na “decomposição” do texto fonte, assim
como o próprio processo de transferência (RODRIGUES, 2000).
Através de seus estudos, o autor conclui que do ponto de vista da LF a
tradução não existe e em nada pode afetá-la. Por outro lado, de acordo com Toury
(1980) apud Rodrigues (2000, p. 133), as traduções “podem afetar as normas
linguísticas ou textuais e mesmo sistemas da cultura-alvo, receptora, assim como a
própria identidade do texto-alvo enquanto texto da LA”.

1.1.2 A TRADUÇÃO COMO REESCRITURA

André Lefevère, assim como Toury, critica a postura normativa dos primeiros
teóricos discordando dos rumos que a linguística e os estudos literários do fim dos
séculos XIX, até o início do século XX, imprimem aos estudos na área. Rodrigues
(2000) afirma que o autor, em seus estudos, de 1981 a 1992, analisa a tradução sob
vários aspectos, desde a sua história até o seu ensino, preocupando-se em valorizar
as pesquisas sobre o assunto, buscando situar cientificamente os estudos da
tradução e de outras formas de reescritura.
Lefevère (2007) inova quando, em sua discussão teórica, conduz os
estudiosos de literatura a refletirem e a relacionarem questões como o “poder”, a
“ideologia”, a “instituição” e a “manipulação” ao comportamento tradutório. Assim, de
acordo com Rodrigues (2000), ao estudar a tradução literária sob a luz de fatores
que possam ter influenciado a sua produção em certos períodos e em certas
culturas, define a tradução como uma reescritura, sujeita ao mesmo gênero de
coerções que a escritura:

A interação entre ambas seria até mesmo responsável pela canonização de


certos autores, pela rejeição de outros e pelas transformações pelas quais
passa uma literatura na medida em que a tradução pode contribuir para que
siga certos caminhos (RODRIGUES, 2000, p. 104).
18

Salienta Lefevère o duplo papel desempenhado pela reescritura que tanto


pode ser inovadora e subversiva como repressiva e conservadora: inovadora e
subversiva quando introduz novos conceitos, novos gêneros, novos mecanismos;
repressiva e conservadora ao manipular as obras para que se adaptem à poética ou
à ideologia estabelecida (RODRIGUES, 2000).
De acordo com Lefevère (2007), tais fenômenos evidenciam o poder
modelador de uma cultura sobre outra, enfatizando por ambos os prismas, segundo
a importância da reescritura, como força motriz por trás da evolução literária.
Não é possível, pois, falar em literatura sem falar em tradução ou reescritura,
que tem sido desde sempre não somente um importante instrumento de propagação
do pensamento humano, de enriquecimento cultural, mas também de manipulação.
Seu estudo é importante para a própria compreensão do mundo em que se vive.
Saber quem promove a reescritura, por que, como, para quem e quais são as
questões ideológicas envolvidas, permitirá ao pesquisador ver através das
manipulações. De acordo com Lefevère (apud Rodrigues 2007, p. 24) “o estudo da
reescritura não dirá aos estudantes o que fazer, mas poderá mostrar a eles a forma
de não permitir a outras pessoas que lhe digam o que fazer”.
Sendo a literatura um dos sistemas que constituem a cultura, ela é regida por
um fator interno, composto pelos profissionais da área (críticos, resenhistas,
professores, tradutores); e outro externo, exercido pela “patronagem”, com o poder
de controlar o primeiro (pessoas, instituições, partidos políticos, classes sociais,
editores, mídia), promovendo ou obstruindo a leitura, a escritura ou a reescritura
(RODRIGUES, 2007).
Ainda segundo Rodrigues (2007), essa poética dominante governa o sistema
literário em uma dada época, ditando e qualificando a sua produção. Havendo,
porém uma transformação no sistema literário acontece um jogo de força entre a
nova tendência e as forças conservadoras das instituições e autores canonizados
que podem vir a perder seu status com a instalação dessa nova poética. A
reescritura tem um papel fundamental nesse movimento porque, ao introduzir
inovações, afeta diretamente a interpretação dos sistemas literários.
A poética e a ideologia vigentes na época em que é feita determinada
reescritura são a própria imagem da literatura ali existente, bem como o tipo de
manipulação realizada na escritura. O prestígio da cultura que produziu o texto é um
dos fatores que influencia a sua reescritura, facilitando-a, dificultando-a ou mesmo
19

modificando-a com o objetivo de inserir a mesma nos padrões literários da cultura


receptora. (RODRIGUES, 2007).
Enumera Lefevère (apud Rodrigues, 2007, p. 106), quatro categorias vigentes
no processo de tradução ao longo da história, conforme apresentado na tabela 3:

Tabela 3: Categorias do processo de tradução, segundo Lefevère.


Autoridade Que inclui tanto a de quem encomenda a tradução, quanto a autoridade do texto e
do autor que serão traduzidos e a da cultura receptora da tradução.
Perícia Do tradutor.
Confiança Do público receptor de que a tradução feita é uma representação do original
Imagem Que a tradução cria do original, de seu autor, de sua literatura, de sua cultura.

Segundo Amorim (2005) Lefevère entende que a reescritura é responsável


pela sobrevivência de obras literárias e que seu alcance é, muitas vezes, bem maior
que o das obras originais, dependendo dos interesses com base nos quais essas
obras são retomadas ou reescritas.

1.2 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL

1.2.1 VISÃO HISTÓRICA E FUNÇÃO SOCIAL

A lenda que se difundiu e vive nos lábios do povo, jamais morre, porque é
deusa imortal (Hesíodo, 736 apud Grimm, 1961, p. 5).

A modalidade literária conhecida como Literatura Infantil é bem recente na


história da humanidade. Sendo, portanto, suas traduções consideradas tardias, se
comparadas ao início das traduções de outros gêneros literários. Sua produção,
direcionada especialmente para o público infantil, também é recente já que, até
meados do séc. XVII, o universo infantil era ignorado.
A criança não era vista como um ser em desenvolvimento, com
características e necessidades próprias, mas como um adulto em miniatura que,
passado o período de maior fragilidade dos primeiros anos de vida, misturava-se aos
adultos e já começava a participar dos jogos e trabalhos, sendo muito tênues os
limites que separavam a vida adulta da vida infantil. Conforme Ariès (1981, p. 10),
“de criancinha pequena ela se transformava imediatamente em um homem jovem,
20

sem passar pelas etapas da juventude.” As crianças aprendiam na prática os


saberes cotidianos, e também os ofícios, participando da vida comunitária,
assimilando os costumes sociais, a linguagem, os jogos, as brincadeiras, as festas.
Todos os temas da vida adulta eram com elas compartilhados: as alegrias, a luta
pela sobrevivência, as preocupações, a sexualidade, a morte, a transgressão às
regras sociais, o imaginário, as crenças, as comemorações, as indagações e as
perplexidades, tudo era vivenciado por toda a comunidade.
Segundo Áries (1981), o hábito de ouvir e contar histórias, tão antigo quanto a
humanidade, era muito cultivado na idade média quando crianças e adultos
sentavam-se lado a lado em praças públicas, em festas ou em casa, após a jornada
de trabalho, para escutar histórias. Estas lhes chegavam quase sempre recheadas
de personagens como fadas, gigantes, anões, bruxas, castelos encantados, elixires,
tesouros, revelando o espírito popular marcado pelo fatalismo, pela crença no
fantástico e em poderes sobre-humanos.
Para Oliveira (2011a), ao narrar suas experiências, suas crenças e seus
temores, os primeiros homens transmitiam seu conhecimento e sua sabedoria, que
se transformavam no acervo cultural do seu povo em forma de histórias e lendas
repassadas a princípio em linguagem oral e, mais tarde, através dos livros. Cheola
(2006) conta que, ainda no amanhecer da vida no planeta, o homem já tecia suas
narrativas:

[...] Primeiro, falava de seu cotidiano: seus hábitos e seus revezes. Depois,
em determinado momento, sentiu necessidade de dar conta de
acontecimentos que escapavam a seu entendimento racional. Precisava
encontrar explicações tanto para fenômenos da natureza quanto para o
fato de ser quem era e estar onde estava. Assim concebeu um conto
maravilhoso que, com seus elementos mágicos, explicava o que a razão
desconhecia (CHEOLA, 2006, p. 47).

A criação literária exprime e reúne necessidades primordiais do ser humano,


tais como a aprendizagem da vida e a busca incessante de conhecimentos. Para a
criança, a convivência com a literatura possibilita o desenvolvimento do seu senso
crítico, que a ajuda a perceber o mundo ao seu redor e a avaliar suas próprias
experiências. Segundo Coelho (2008, p. 29):

No encontro com a literatura, ou com a arte em geral, os homens têm a


oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência
de vida em um grau de intensidade não igualado em nenhuma outra
atividade.
21

A literatura infantil é um importante instrumento auxiliar no desenvolvimento


do ser humano durante a infância, não apenas por trabalhar a linguagem, mas por
seu papel no desenvolvimento psicológico, intelectual e social da criança, sendo um
dos elementos essenciais de comunicação e, sobretudo, um instrumento de diálogo
com o adulto. Dada sua ampla função, a literatura infantil conduz a criança à
recreação, à atividade lúdica da imaginação, à liberdade do pensamento, do
raciocínio, da reflexão criadora e da elaboração de ideias. Castro (2008) salienta que
o primeiro contato da criança com a literatura é como ouvinte, desde cedo ela
desenvolve o prazer de ouvir histórias, vivenciando emoções importantes, como: a
tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a insegurança, a
tranquilidade e tantas outras; pois a criança ouve, sente e enxerga com os olhos do
imaginário. Os dramas presentes nos contos refletem o mundo interior do ser
humano e, embora seu atrativo inicial esteja relacionado ao encantamento, seu valor
duradouro reside no poder de ajudar as crianças a lidar com seus conflitos internos,
pois retratam, de forma imaginária e simbólica, os passos essenciais do crescimento
e da aquisição de uma existência independente.
A literatura destinada ao público infantil deriva de contos primordiais, que
eram narrativas de natureza fantástica e mágica, oriundas da cultura do povo hindu.
Segundo Oliveira (2011)3:

A célula mater da literatura infantil, hoje conhecida como "clássica",


encontra-se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia.
Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como
algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como
ameaçar, construir ou destruir. São também de caráter mágico ou
fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi
descoberto o mundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram
durante séculos antes de Cristo e se difundiram por todo o mundo, através
da tradição oral.

Estas primeiras narrativas exemplares ou fábulas, surgidas no oriente antes


da era cristã, viajaram no tempo, atravessando enormes distâncias geográficas,
seguiram os caminhos da comunicação humana através da tradução e chegaram
até os dias de hoje; sobrevivendo e convivendo conosco, fazendo parte da nossa
cultura e do nosso cotidiano. Coelho (1987) exemplifica, mostrando o provável

3
OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. A Literatura Infantil. [on line]
Disponível em: <http://graudez.com.br/litinf/origens.htm>. Acesso em 25 fev. 2011
22

percurso seguido pela coletânea indo-européia, Calila e Dimna, - fonte das mais
antigas do folclore europeu e sul-americano, via Europa, nascida na Índia, por volta
do séc. VI a.C. Algumas de suas narrativas fariam parte do Pantschatantra
(apólogos ou narrativas edificantes usadas pelos pregadores budistas) ou da
epopéia primitiva indiana, Mahabarata. A língua original de Calila e Dimna foi o
sânscrito:

Sua primeira versão teria sido para o persa, feita no séc. VI d.C., por ordem
do rei Cosroes, da Pérsia, que mandara seu médico à Índia, em busca dos
"tesouros de sabedoria" que diziam existir ali. O médico encontrou o
fabulário indiano de Bippai (ou Pilpay, figura que ficou conhecida como o
Esopo oriental). Traduziu-o do sânscrito para o persa, com o titulo de
CALILA E DIMNA (nomes dos chacais que são os personagens principais).
Do persa, a coletânea foi, mais tarde, traduzida para o sírio e finalmente,
no séc. VIII, para o árabe. Foi esta última versão que se divulgou por toda a
Europa e serviu para as traduções em hebraico e em latim, por volta do
século XV. Muitas de suas narrativas foram traduzidas em varias línguas
neolatinas ou anglo-saxônicas e hoje fazem parte do folclore de diferentes
regiões. (Uma consulta ao mapa-múndi, marcando as possíveis rotas
seguidas pelos que levaram essas narrativas através de tão longas
distâncias, da Índia para a Pérsia, desta para Síria, Arábia e toda a Europa
tornará evidente o gigantesco esforço despendido pelos homens para se
comunicarem uns com os outros, no sentido de conquistarem ou
propagarem a Sabedoria da Vida) (Coelho,1987, p. 03).

Muitos dos contos populares do Oriente, que chegaram ao mundo europeu na


era Medieval, foram trazidos pelos árabes juntamente com suas mercadorias raras
também vindas do Oriente, e se disseminaram de forma oral e escrita, resultando
posteriormente no acervo da literatura infantil que hoje se conhece.
De fato os mercadores árabes da Idade Média, muito contribuíram para
enriquecer a cultura do Ocidente cristão, pois trouxeram também manuscritos que
continham uma grande parte do conhecimento já esquecido da cultura grega.
Segundo conta Le Goff (1996), dentre estes manuscritos havia algumas das obras
de Aristóteles, Euclides, Ptolomeu e outros que haviam sido levadas para o mundo
árabe através de traduções em tempos remotos. Aos árabes também devemos a
matemática e os números arábicos, que, de origem hindu, chegam ao conhecimento
de Leonardo de Pisa4 nos primeiros anos do século XIII, bem como conhecimentos
sobre medicina, astronomia, filosofia e, “por empréstimo5”, o vocabulário do

4
Italiano, primeiro grande matemático europeu depois da decadência helênica. Considerado por alguns como o mais talentoso
matemático ocidental da Idade Média. Ficou conhecido pelo seu papel na introdução dos algarismos árabes na Europa.
5
Numa tradução, os empréstimos acontecem quando não se consegue encontrar um termo equivalente na língua que os
recebe e contribuem para o seu enriquecimento. Com grande experiência no comércio, os árabes possuíam também um vasto
vocabulário ligado à sua prática, ao contrário dos ocidentais que, não sendo comerciantes, não possuíam um vocabulário sobre
o assunto.
23

comércio: aduana, bazar, cheque, etc. Pontue-se que os monges foram os principais
responsáveis pelo resgate e aquisição deste importante acervo do pensamento e do
saber humano, através de suas traduções do árabe para o latim e para as línguas
neolatinas.
Para Coelho (2010) a prosa da era medieval originou-se de duas vertentes, a
popular e a culta. A narrativa culta é conhecida como Novelas de Cavalaria, e a
narrativa popular, como Narrativas Exemplares, derivando esta última de fontes
orientais e greco-romanas.
Coelho (2010) relata que a literatura popular começa a circular por volta dos
séculos IX e X, passando a ser conhecida como folclórica e depois como literatura
infantil. Essas histórias, inicialmente escritas para o público adulto, utilizando
personagens em forma de animais e com tendência a formular mensagens
instrutivas e de cunho moral, ilustrando a conduta social desejada, fizeram com que
esses contos fossem bem aproveitados na educação infantil.
Coelho (2008) observa que a aproximação entre as histórias escritas para
adultos e o gosto infantil se deu graças aos elementos popularidade e
exemplaridade presentes em todas as obras adultas que se transformaram em
clássicos da literatura infantil. Tais obras nasceram no meio popular (ou em meio
culto e depois se popularizaram em adaptações) e em todas elas havia a intenção
de passar determinados valores ou padrões a serem respeitados pela comunidade
ou incorporados pelo indivíduo em seu comportamento. Essa literatura inaugural
nasceu no domínio do mito, da lenda e do maravilhoso. A psicologia explica o fato
ao constatar que no povo (ou no homem primitivo) e nas crianças o conhecimento
da realidade se dá através do sensível, do emotivo e da intuição, e não através do
racional ou da inteligência, como acontece com a mente adulta e culta. Em ambos
predomina o pensamento mágico, com sua lógica própria, razão pela qual o popular
e o infantil se sentem atraídos pelas mesmas realidades.
Ainda segundo Coelho (2008) a literatura infantil é um subgênero da ficção
(ou prosa) da mesma forma que o conto, a novela e o romance. Tais subgêneros se
diversificam, dependendo da sua natureza: ficção científica, romance policial, novela
de aventuras, romance de amor, narrativa satírica, paródia, biografia, romance
histórico, etc. Existem, porém, desde a origem dos tempos, um sem número de
formas narrativas surgidas anonimamente e que passaram a circular entre os povos
da Antiguidade, levadas por contadores de histórias, peregrinos, viajantes, povos
24

emigrantes e outros, que acabaram sendo absorvidas por diferentes povos e que,
atualmente, representam fator comum entre diferentes tradições folclóricas,
transformando-se no que hoje se conhece como tradição popular. Estas narrativas,
consideradas pela autora também como pertencentes ao gênero ficção, são as
chamadas formas simples: fábula, apólogo, alegoria, mito, lenda, saga, conto
maravilhoso, conto de fada, conto exemplar, conto jocoso e outras formas narrativas.
São formas simples porque resultam da criação espontânea não elaborada –
diferentemente dos romances medievais e das novelas de cavalaria, que são
artisticamente mais elaborados, apesar de se apresentarem ainda de uma forma
rudimentar. Quase todas essas narrativas foram assimiladas pela literatura infantil,
via tradição popular, pela sua simplicidade e autenticidade.
Coelho (2008) esclarece ainda que a fábula é uma narrativa de natureza
alegórica em que os personagens são animais com características e sentimentos
humanos, sendo seu objetivo transmitir uma moralidade (quando as personagens
são seres inanimados, a narrativa é chamada de apólogo). No mundo da fábula
cada personagem assume uma simbologia específica, como por exemplo: o leão
simboliza o poder real; o lobo, a dominação do mais forte; a raposa, a astúcia e a
esperteza; o cordeiro, a ingenuidade; etc. Sua estrutura é conduzida por sua
perspectiva didática. Geralmente a moralidade é explicitada no final, podendo
acontecer o oposto, quando é citada no início e repetida no final. A moralidade
também pode ser demonstrada de maneira implícita (como no caso de Flicts). É a
moralidade que diferencia a fábula de outras formas de narrativas, como o mito e a
lenda.
A fábula surgiu no ocidente, no século VI a.C., com Esopo, escravo grego
famoso por suas pequenas histórias de animais que falam e cometem erros: ora são
sábios ou tolos, ora maus ou bons - assim como os homens - transmitindo sabedoria
de caráter moral aos seus ouvintes. As narrativas de Esopo em eram apenas orais,
o povo as apreciava e as repetia. Em meio às mais de trezentas histórias atribuídas
ao fabulista, Coelho (2010) cita algumas das mais conhecidas: A raposa e as uvas,
O leão e o rato e A galinha dos ovos de ouro.
Centenas de anos mais tarde, no século I, a obra de Esopo foi traduzida para
o latim por Fedro. Este a enriqueceu estilisticamente reescrevendo-a em forma de
versos. Com o passar do tempo, Fedro veio a criar seus próprios temas e
argumentos, histórias que mostram, através da sátira dos costumes e personagens
25

de sua época, a sua revolta contra as injustiças tornando-se, por isso, incômodo aos
poderosos. Sua produção soma cinco livros, com 123 composições, dentre seus
títulos mais conhecidos citados por Coelho (2010) estão A raposa e as uvas e O
lobo e o cordeiro, A rã e o boi.
O trabalho de Fedro começou a ser conhecido na Europa durante o século X,
despertando grande interesse na França, o que resultou em inúmeras versões em
prosa e verso conhecidas como Ysopets ou Esopetes6, que se popularizaram na
Idade Média em todo continente europeu.
No século XVII, o francês Jean de La Fontaine reescreveu as fábulas com
grande sucesso (a partir do modelo latino e também do oriental, oferecido pelos
textos do indiano Pilpay), introduzindo-as definitivamente na literatura ocidental em
duas coletâneas de Fábulas, a primeira, editada em 1668 e a segunda em 1693.
Porém, no prefácio de sua primeira coletânea, La Fontaine diz; “O apólogo é
composto de duas partes... o corpo é a fábula, a alma é a moralidade” (COELHO,
2008, p. 165). Percebe-se, pois, que La Fontaine dava o nome de “apólogo” à
espécie de sua matéria literária, de “fábula” à história narrada e de “moralidade” ao
significado simbólico da história. Mas a tradição continua rotulando tudo como
fábula. Conforme a autora (p. 85):

Com relação às diferenças de matéria literária, pode-se dizer que, no geral,


a fábula visa aos costumes, ao comportamento social dos homens [...]
enquanto o apólogo visa, em última análise, às atitudes morais [...] o que
não quer dizer que as várias intenções não possam estar presentes em
todas as espécies.

De fato, sua obra Fábulas é composta por poemas narrativos pertencentes a


várias matérias literárias, dentre as quais está a própria fábula (histórias de animais),
apólogos, parábolas, contos exemplares, contos jocosos, alegorias e historietas.
Segundo Coelho (2010), encontramos em todos eles a narrativa de uma situação
encerrando com uma moralidade, assim como o caráter e a simbologia atribuídos
aos animais pelos antigos autores, que foram mantidos pelo autor francês.
E, dessa maneira, La Fontaine descreveu o comportamento social de sua
época. A respeito de suas Fábulas o autor declarou: “É uma pintura em que
podemos encontrar nosso próprio retrato” (LIVROS & LETRAS, 2011).

6
Palavra derivada do nome Esopo.
26

Assim como Fedro, La Fontaine denunciou com suas Fábulas as misérias e


injustiças do seu tempo. Luís XIV7 e sua corte povoada de parasitas servis e
hipócritas, onde as rivalidades levam às denúncias e traições, serviram de
inspiração para sua obra: O leão representa o Rei, orgulhoso de sua autoridade
quase divina, desprezando seus súditos e ostentando poder em pomposas
cerimônias, mas buscando ocasião para se mostrar generoso quando na verdade
esmaga os mais fracos. A raposa representa o cortesão, que bajula o Rei, mas que
também não confia muito na sua palavra. Coelho ressalta que não era difícil, para o
leitor da época, identificar as personagens da vida real, mas a simbologia utilizada
por La Fontaine dispensa o leitor contemporâneo de conhecer os fatos e
personagens de sua época para a compreensão de seus poemas narrativos.
Contemporâneo de La Fontaine, Charles Perrault, poeta e membro da
Academia Francesa, publicou onze contos popularmente conhecidos como contos
de fada, numa coletânea que recebeu o nome de Histórias ou narrativas do tempo
passado com moralidades, mais conhecida por seu subtítulo Os contos da
mamãe gansa. Porém em sua primeira publicação, de 1697, Perrault atribui a
autoria da obra ao seu filho adolescente, Pierre Darmancourt. Segundo Lajolo e
Zilberman (2007 pp. 14-15):

[...] a recusa de Perrault em assinar a primeira edição do livro é sintomática


do destino do gênero que inaugura: desde o aparecimento, ele terá
dificuldades de legitimação. Para um membro da Academia Francesa,
escrever uma obra popular representa fazer uma concessão a que ele não
podia se permitir. Porém, como ocorrerá depois a tantos outros escritores,
da dedicação à literatura infantil advirão prêmios recompensadores:
prestígio comercial, renome e lugar na história literária.

Coelho (2010) conta que ao final do século XVII a estética dominante desde o
Renascimento, que considerava como modelo exclusivo de arte os clássicos da
Antiguidade greco-romana estava em decadência, sendo Perrault um de seus
opositores, protagonizando, desde a década de 1680, a famosa polêmica conhecida
como a Querela dos Antigos e Modernos contra escritores como Racine e Boileau.
Durante a Querela, Perrault defende a superioridade do francês sobre o latim
e busca valorizar o papel da mulher, criticando autores que, como Molière, a
ridicularizam em suas obras.

7
Luís XIV, o “Rei Sol”, símbolo do Absolutismo.
27

Defende também a aceitação de modelos “modernos”, que, para ele, não


eram os seus contemporâneos, mas aqueles que, a partir da Idade Média haviam
criado as novas literaturas da França e de vários outros países europeus. De acordo
com Coelho (2010) tais literaturas, a partir de uma origem comum, se transformaram
no acervo de tradições folclóricas de onde Perrault recolheu os onze contos de sua
coletânea. Popularmente conhecidos como contos de fadas, os Contos da Mamãe
Gansa utilizam as duas variedades narrativas do conto: o “maravilhoso” e o “de
fadas”. Coelho (2008) ressalta as diferenças entre eles (ver Tabela 4).

Tabela 4: Diferenças entre conto maravilhoso e conto de fadas.


Conto Narrativas com raízes no oriente; o espaço da narrativa é o maravilhoso, fora da
maravilhoso realidade concreta; os personagens possuem poderes sobrenaturais, confrontando-
se com as forças personificadas do Bem e do Mal, sofrendo profecias que se
cumprem, mas também se beneficiando com milagres e assistindo a fenômenos
extraordinários. O núcleo da sua narrativa é sempre de natureza
material/social/sensorial (a busca da riqueza, a satisfação do corpo, a conquista do
poder). Seu modelo mais completo é a coletânea As mil e uma noites. Em Os
contos da mamãe gansa são exemplos de contos maravilhosos: Chapeuzinho
vermelho, O barba azul, O gato de botas e O pequeno polegar.
Conto De origem celta, sua natureza é espiritual/ética/existencial e seus personagens vivem
de Fadas aventuras ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida visando à realização
interior. As novelas de cavalaria, como a Lenda do Rei Arthur, estão nas raízes dos
8
contos de fada. Sendo a fada um personagem que ainda nos dias de hoje encanta
adultos e crianças, encarnando a possível realização dos sonhos ou ideais inerentes
à condição humana. Em Perrault são exemplos de contos de fadas: A bela
adormecida no bosque, As fadas, A gata borralheira ou Cinderela, Henrique o
topetudo, Pele de asno, Os desejos ridículos e Grisélidis.

De acordo com Coelho (2010) o subtítulo Os Contos da Mamãe Gansa faz


referência a uma personagem dos contos populares, a “Mãe Gansa”, que contava
histórias para seus filhotes, sendo já um indício da intenção do autor em direcionar
seus contos para as crianças. Em uma ilustração Perrault apresenta a Mãe Gansa
como uma velha fiandeira, popularizando a figura de “uma velha contadora de
histórias”, imagem que ganhou o mundo e recebeu um nome diferente em cada
região.

Seus contos, a princípio escritos em versos ganham uma redação final em


prosa, em linguagem clara, desembaraçada, direta e sabiamente ingênua,
que agradava plenamente crianças e adultos [...] com uma moralidade
escrita em versos que encerra cada história, apontando sempre para
normas de comportamento que facilitariam o sucesso da pessoa junto aos
demais ou que lhe evitariam dissabores. (COELHO, 2010, pp. 91-92).

8
A palavra fada é oriunda do latim fatum, que significa destino.
28

A preocupação do autor ao recontar histórias tradicionais que circulavam


apenas oralmente entre o povo era não apenas de confrontá-las com os antigos
clássicos greco-romanos, mas também, como ressalta Coelho (2010), o próprio título
indica haver a intenção pedagógica ao inserir “moralidades” em suas narrativas, com
exemplos do conformismo necessário à manutenção da nova ordem social que se
instalava. Mendes (2000) observa que o autor explorou elementos que permitiam a
pregação da moral cristã-burguesa característica de sua classe social, a alta
burguesia, que dividia privilégios da classe dominante com a nobreza e o clero.
A despeito de suas intenções, segundo Lajolo e Zilberman (2007), Perrault,
ao colocar no papel contos até então transmitidos oralmente pelo povo imortalizou-
se como o responsável pelo nascimento da literatura infantil, literatura esta que
acaba por incorporar retroativamente a obra de La Fontaine.
Dentre as grandes transformações provocadas pela industrialização surgida
na Inglaterra do século XVIII, Lajolo e Zilberman (2007) destacam a ascenção da
burguesia que, graças à sua riqueza, se consolida como classe social, conquistando
aos poucos um poder político alicerçado em instituições como a família que, em
oposição ao sistema feudal, estimula a vida doméstica como padrão moderno ideal,
que se estabiliza através da divisão do trabalho entre seus membros (cabendo ao
pai o sustento econômico, e à mãe, a gerência do lar), tendo a criança se
beneficiado nesse novo contexto socio-familiar. Seu novo papel na sociedade
possibilita, entre outras coisas, o surgimento da indústria dos brinquedos e da
escola, que a princípio era facultativa, mas que logo torna-se obrigatória não apenas
para os filhos da burguesia, mas para todas as crianças, diminuindo assim a
incidência do trabalho infantil nas fábricas inglesas.
Nesta sociedade moderna e industrializada Lajolo e Zilberman (2007)
enfatizam o aperfeiçamento da tipografia, que expande a produção de livros nos
mais variados gêneros literários; inclusive os infantis que, com o estímulo da
alfabetização das crianças, tranformam-se em objetos de consumo, com
características atraentes que motivam a sua aquisição. Essa literatura infantil
assume posturas nitidamente pedagógicas, fato que agrada à burguesia, apesar de
gerar a desconfiança de setores especializados da teoria e da crítica literária. Mas o
capitalismo nascente e as ingerências mercadológcas, além das pedagógicas,
interferem na qualidade artística da literatura infantil. Segundo as autoras (p. 20):
29

[...] Do grande elenco de obras publicadas no século XVIII, poucas


permaneceram [...] Mas, ao sucesso dos contos de fadas de Perrault,
somou-se o das adaptações de romances de aventuras, como os já
clássicos Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, e Viagens de
Gulliver (1726), de Jonathan Swift, autores que asseguraram a assiduidade
de criação e consumo de obras.

Já na França, o grande sucesso dos contos de fadas se mantém por todo o


século XVIII, porém após o período apocalíptico que se segue à Revolução
Francesa de 1789, inicia-se, naquele país, um novo tempo no qual, segundo Coelho
(2010), não havia espaço para as fadas, que embora relegadas a um segundo plano
sobreviveram nas narrativas orais e nas muitas reedições em todo o mundo.
No início do século XIX, durante o período em que a França de Napoleão
Bonaparte9 dominou grande parte da Europa, nasceu na Alemanha um forte
movimento cultural que buscava valorizar sua literatura, suas artes e sua ciência,
com o objetivo de arrancar o país do ostracismo em que se encontrava perante as
outras nações. Segundo relato de Grimm (1961), Goethe e outros intelectuais se
propuseram a despertar no povo a consciência de sua grandeza através das antigas
tradições vindas de um passado remoto e que constituiam autêntica salvaguarda da
nacionalidade alemã.
Dentro desta atmosfera surgiu, em 1812, o primeiro volume dos Contos de
fadas para crianças e adultos dos Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos,
folcloristas, estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão, que,
na busca dos contos populares germânicos, viajaram por todo o país, passando por
aldeias e vilarejos, especialmente pelas localidades mais isoladas, onde a imprensa
ainda não havia chegado. Convivendo com camponeses e lenhadores, os irmãos
encontraram material autêntico e abundante para suas publicações, ouviram e
colecionaram narrativas folclóricas de todas as regiões do país. Na intenção de
“salvar do esquecimento esse patrimônio popular que sintetiza a alma e a tradição
de um povo” (Grimm, 1961, p. 15) os Grimm tiveram o cuidado de preservar a
linguagem e o vocabulário original, ao transcrever as histórias e lendas narradas por
camponeses (GRIMM, 1961).
Porém, o seu zelo em prezervar a tradição acabou por chocar-se com a
realidade do seu tempo em que as crianças já não participavam da vida adulta como

9
Napoleão esteve no governo da França de 1799 a 1815

.
30

nos tempos antigos e que eram poupadas de cenas e narrativas violentas. Sendo
assim, após uma séria polêmica com o escritor Von Arnim, os irmãos “passaram a
suavizar o rigor doutrinal e levaram em conta as exigências da mentalidade infantil”
(Coelho, 2010, p. 151) retirando de sua edição completa de 1819 um conto
extremamente violento e também suprimindo alguns trechos de outros contos que
poderiam ser chocantes para as crianças.
De acordo com observação de Coelho (2010, p. 152), dentre o material
folclórico recolhido pelos irmãos encontram-se narrativas de origem germânica e
também de outras procedências, observa-se que algumas delas coincidem com as
narrativas recolhidas por Perrault, com algumas variações no seu enredo – o que
confirma a existência de uma fonte comum para o folclore europeu. A autora
classifica os Contos de Grimm como narrativas do fantástico-maravilhoso, contendo
diferentes espécies literárias todas pertencendo ao mundo do imaginário ou da
fantasia, não sendo propriamente contos de fadas. As formas literárias identificadas
por Coelho encontram-se na Tabela 5.

Tabela 5 : Formas literárias identificadas nos contos de Grimm.


Contos de Histórias onde acontecem metamorfoses ou transformações por meio de
encantamento encantamento. Exemplos: A dama e o leão; Os sete corvos; O príncipe rã;
A alface mágica; O cravo; O príncipe e a princesa; A casa do bosque.
Contos Histórias onde estão presentes elementos mágicos ou sobrenaturais,
maravilhosos naturalmente integrados nas situações relatadas. Exemplos: O pescador e a
esposa; O ganso de ouro; Branca de neve; A luz azul; Joãozinho e
Maria; O chapeuzinho vermelho; O pequeno polegar.
Fábulas Histórias vividas por animais. Exemplos: O rato, O pássaro e a salsicha; A
raposa e a comadre; A raposa e o gato; O lobo e as sete cabras.
Parábola Exemplo: O lobo e o homem.
Lendas Histórias ligadas ao princípio dos tempos ou da comunidade, e nas quais o
mágico ou o fantástico aparecem como “milagre” ligado a alguma divindade.
Exemplos: João jogatudo; A donzela que não tinha mãos; O diabo e a
avó; O senhor compadre; O irmão folgazão.
Contos de enigma História que têm com eixo um enigma a ser desvendado. Exemplo: O
ou de mistério enigma.
Contos jocosos Histórias Divertidas ou Humorísticas. Exemplos: O alfaiate valente;
Frederico e Catarina; Margarida, a espertalhona; As três fiandeiras;
João, o felizardo.

Coelho (2010) aponta Hans Christian Andersen, poeta e novelista


dinamarquês, como um dos principais nomes da literatura infanto-juvenil mundial.
Nascido em 1805, cresce num ambiente influenciado pela exaltação nacionalista
desencadeada pela Alemanha em reação às conquistas de Napoleão que encontra
31

eco nos países nórdicos, já que Dinamarca, Suécia e Noruega, países estreitamente
ligados à cultura germânica, também passam a cultivar suas tradições buscando a
autoafirmação étnica.
Ao período de exaltação de autodefesa da era napoleônica (de 1805 a 1815)
seguiu-se a calma idílica do período de reconstrução pós-napoleônico. É nesta fase,
numa atmosfera cultural e política mais tranquila e amadurecida que, segundo
Coelho (2010), Andersen inicia sua produção literária, valorizando a sensibilidade
em suas narrativas, o que o transforma num dos mais famosos escritores para
crianças em todo o mundo.
Seu pai, um humilde sapateiro, tinha grande interesse pela literatura,
costumava narrar-lhe belos contos e fábulas. Castro (2008) relata que o autor ficou
órfão de pai aos 11 anos e que vivenciou muita tristeza, solidão e pobreza, sendo
obrigado a trabalhar em uma fábrica de tecidos. Em conflito com a mãe após o
segundo casamento dela, foi acolhido por outra família, onde era chamado de “o
poeta”. Trabalhou em teatro e, aos 15 anos, procurou o cantor lírico italiano Siboni
que, acreditando em seu talento, lhe deu assistência e completou sua educação.
Após o abandono, solidão e pobreza da infância e juventude, alcançou a
glória ao ser imortalizado com suas maravilhosas histórias. De acordo com Castro
(2008), algumas histórias de Andersen são consideradas autobiografias, como O
patinho feio e Fábula de minha vida.

Em seus 168 contos, publicados entre 1835 e 1872, diferentemente dos


contos de Grimm, onde predomina o mundo maravilhoso, é na realidade
concreta do cotidiano que o maravilhoso é descoberto [...] E mescladas ao
maravilhoso, muita crueldade e violência que seu humanismo tenta
atenuar [...] (Coelho, 2010, pp. 158-159)

Na análise de Coelho (2010), o mundo fantástico de suas histórias se prende


ao cotidiano que ele mesmo viveu e testemunhou: uma época em que a ascenção
econômica condicionada à expanção da indústria e da classe operária nascente,
contrastava sua abundância organizada ao lado da miséria sem esperanças.
Norteado por ideais românticos, exaltando valores simples como a
fraternidade e a generosidade humana, Coelho (2010) considera que Andersen
revela-se como uma das vozes mais singelas e puras da literatura infantil,
valorizando mais as emoções do coração que as forças do intelecto.
32

Entre os títulos mais divulgados de sua obra estão O patinho feio, Os


sapatinhos vermelhos, A rainha da neve, O rouxinol e o imperador da China, O
soldadinho de chumbo, A pastora e o limpador de chaminés, A pequena
vendedora de fósforos, Os cisnes selvagens, A roupa nova do imperador, O
homem da neve, João e Maria, Nicolau grande e Nicolau pequeno.
Sua importância é tanta que se comemora o Dia Mundial do Livro Infantil na
data de seu aniversário, 2 de abril. Também leva seu nome o prêmio internacional,
conhecido como o Nobel da Literatura Infantil, Prêmio Hans Christian Andersen,
conferido pelo International Board on Books for Young People - IBBY, a
escritores e ilustradores vivos.

1.2.2 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL

Todo o acervo da literatura infantil europeia, traduzida para o português,


juntamente com os contos e lendas da própria tradição portuguesa, chegaram ao
Brasil com os colonizadores, a princípio através da comunicação oral, mas segundo
Coelho (1987), após a independência, em 1822, também passaram a chegar através
de livros.

[...] as crianças, os jovens e os adultos brasileiros entraram no mundo da


Literatura, da Cultura ou das Ideias, através das traduções e,
evidentemente, através das obras estrangeiras, lidas no original. [...] Foi,
portanto, através de traduções portuguesas que as crianças brasileiras
conheceram o prazer de suas primeiras leituras literárias e começaram a
conviver com os grandes personagens, com os ideais de vida e os padrões
morais que estavam na base da sociedade romântica/liberal/cristã, de que
somos herdeiros e continuadores/transformadores (Coelho, 1987, pp. 4-5).

Segundo Coelho (1987, p. 5), a maior influência na leitura e na formação


cultural dos brasileiros desde o século XIX é principalmente francesa, através de
Portugal. Nessa época os livros aqui vendidos “apresentavam-se em versão original
(de autores franceses), em tradução francesa (de autores estrangeiros) ou em
traduções portuguesas (basicamente de livros franceses ou de outras línguas já
vertidas para o francês)” Também a literatura portuguesa original estava sempre
presente nos catálogos dos livreiros da época.
Coelho (1987), a partir da análise de antigos catálogos de livrarias do século
XIX, aponta como gêneros preferidos dos pequenos leitores brasileiros da época os
33

romances de aventura, os contos jocosos, os contos exemplares, as narrativas


religiosas, as fábulas e os contos de fadas, citando alguns exemplos dos títulos mais
populares no Brasil naquela época: As Fábulas do grego Fedro e do francês La
Fontaine, as populares Histórias de Trancoso e as inúmeras facécias publicadas
pela literatura de cordel. Os contos jocosos, entre os quais estavam Astúcias do
Bertoldo do italiano G. Cesare Croce, Aventuras de Gil Blas do francês Alain-René
Lesage e Juca Chico (Max e Moritz, do alemão Wilhelm Busch, traduzido por Olavo
Bilac, sob o pseudônimo de Fantástico). Os clássicos contos de Perault, Grimm e
Andersen, e os contos orientais de As mil e uma noites (traduzidas para o francês
por Galland). As aventuras de Robinson Crusoé, do inglês Daniel Defoe (que
teve inúmeras traduções em português, inclusive feitas por brasileiros) e Viagens de
Gulliver do irlandês Jonathan Swift, que foram os primeiros romances de aventura
traduzidos para o português. As aventuras do Barão de Munchausen dos alemães
Burger e Rasper; Alice no país das maravilhas do inglês Lewis Carroll; Pinóquio
do italiano Collodi; João felpudo e O menino verde do alemão H. Hofmann; e toda
a série de livros de Julio Verne, com o novo maravilhoso, trazido pela Ciência.
A literatura religiosa ou "edificante", como os inúmeros títulos da Biblioteca
da juventude cristã; Resumo do Novo Testamento; e Catecismo para infância,
era lida nas escolas. E eram muito populares os livros exemplares cujo conteúdo era
considerado ideal para o bom convívio “familiar e social numa sociedade civilizada”
(Coelho, 1987, p. 6), tais como as traduções portuguesas do cônego alemão
Cristoph von Schmid: A cestinha de flores; O canário; Os ovos de páscoa; os
livros da Condessa de Ségur: As meninas exemplares; Os desastres de Sofia;
Memórias de um burro; O alforje do contador e os livros da Biblioteca moral
portuguesa, com cerca de 100 pequenos volumes, traduzidos do francês por R.
Câmara Bittencourt); também o Tesouro das meninas de Mme. Beaumont;
Tesouro Dos Meninos de P. Blanchard; e a Coleção de contos filosóficos - para
instrução e recreio da mocidade portuguesa, traduzidos por Francisco Luiz Leal.
Coelho (1987), também se refere às obras de divulgação, enciclopédicas,
adaptadas aos pequenos leitores, como: Museu pitoresco ou História natural dos
3 reinos da natureza, do francês Houbloup Duval; História natural, para meninos e
meninas, extraída das obras de Buffon, Cuvier e outros naturalistas, traduzida por
Luis Napoleão Chernoviz; A Mythologia da mocidade, histórias dos deuses,
semideuses, divindades alegóricas e da fábula, por Caetano Lopes de Moura.
34

Também no século XIX chegaram ao Brasil os primeiros Albuns de gravuras


traduzidos para o português, do autor francês Benjamin Rabier, precursores das
atuais histórias-em-quadrinhos. Entre seus títulos mais vendidos estão: Os animais
se divertem; Os animais em liberdade; Escutem! o fundo do saco.
Os exemplos acima foram as leituras das crianças e jovens brasileiros do séc.
XIX e início do séc. XX sendo, pois, “muito grande a importância da tradução em
nossa formação cultural e, de uma maneira geral, na difusão das ideias ou ideais
que marcam a marcha da civilização” (Coelho, 1987, p. 7). Porém aos poucos,
principalmente junto às crianças, essa mediação portuguesa foi se tornando
inconveniente; na medida em que a linguagem do Brasil se distanciava da de
Portugal, os textos oferecidos tornavam-se quase ilegíveis, devido às diferenças de
vocabulário e sintaxe, provocando uma reação nacionalista contra a predominância
lusitana em nossa cultura, tendo Monteiro Lobato à frente, quanto à Literatura Infantil
a Tradução e a Imagem.
José Bento Monteiro Lobato nasceu em 1882, na cidade de Taubaté, São
Paulo. Mais conhecido no Brasil como autor de livros de literatura infantil, também foi
tradutor e editor. Segundo Oliveira (2011), formou-se em Direito, em 1904, ano em
começa a escrever artigos para a Revista do Brasil, periódico que visava uma
tomada de consciência da nova geração de intelectuais e políticos, tornando-se o
veículo cultural mais importante do país.
Em 1918, após uma experiência como fazendeiro, decepcionado com a
política agrícola do Brasil, inicia sua carreira de editor fundando a Monteiro Lobato
& Cia, o que dá um impulso decisivo à indústria livreira nacional, já que, até então,
os livros que circulavam no Brasil eram publicados em Portugal. Segundo Lamarão
(2002, p. 58) “Lobato revoluciona o sistema de distribuição, integrando à rede de
vendas padarias, armazéns e farmácias”.
Seu livro Urupês, publicado pela nova editora, marca a transição entre o
velho romantismo e a atitude realista não só diante do caboclo como de todas as
coisas nacionais. A crise de energia elétrica acaba por provocar a falência da
Monteiro Lobato & Cia, em 1925. Mendes (2002) conta que em seu lugar Lobato
funda a Companhia Editora Nacional.
De acordo com Lamarão (2002) em 1931, após quatro anos residindo nos
Estados Unidos como adido comercial, voltou convencido de que a instalação da
siderurgia e da indústria petrolífera eram fatores essenciais para o desenvolvimento
35

econômico brasileiro. Então investe em uma companhia de exploração do petróleo,


empreendimento que malogrou também em função da proibição da exploração
mineral aos estrangeiros feita pelo governo de Vargas em 1934, que atingiu também
as pequenas empresas privadas nacionais que, como a de Lobato, estavam
associadas a capitais externos. Lobato acusa o governo de “falso nacionalismo”,
escrevendo um artigo: O Escândalo do Petróleo, o que lhe valeu três meses de
prisão.
Pressionado pela falência nos negócios, necessitando sobreviver, mas ainda
com o objetivo de fazer o Brasil evoluir, Lobato volta-se para as traduções e para a
literatura infantil, inaugurando o gênero no Brasil. Segundo Lamarão (2002) entre
1932 e 1943, escreve 14 livros, entre os quais O Poço do Visconde, um livro de
geologia para crianças onde prevê a descoberta de petróleo em Lobato, localidade
próxima a Salvador - fato que realmente acontece em janeiro de 1939.

No público infantil, Lobato escritor reencontra as esperanças no Brasil.


Escrever para crianças era sua alegria [...] Achava que o futuro deveria ser
mudado através da criançada, para quem dava um tratamento especial,
sem ser infantilizado. O resultado foi sensacional, conseguindo transportar
até hoje muitas crianças e adultos para o maravilhoso mundo do Sítio do
Picapau Amarelo (Oliveira, 2011).

Sua obra é considerada o maior clássico da literatura infantil brasileira “não


somente por ter escrito para as crianças, mas também por ter criado um universo
para elas. Misturando a imaginação com o cotidiano real, mostra, como possíveis,
aventuras que normalmente só poderiam existir no mundo da fantasia” (Castro,
2008, p. 38). Esse universo onde o cotidiano é subitamente invadido pelo
maravilhoso com a mais absoluta naturalidade e onde, como observa Oliveira
(2011), seus personagens “reais” (Dona Benta e sua família) têm o mesmo valor que
os personagens "inventados" (Emília, Visconde de Sabugosa e outros). Todos eles
convivem com os clássicos personagens dos contos e fábulas tradicionais, da
mitologia grega, da literatura e da história universal e também do nosso folclore, em
narrativas marcadas pela intertextualidade.

No mundo de Lobato nada faltou. Ele removeu o tempo e o espaço.


Reconstruiu o Mundo para seus guris. Levou-os a todas as partes;
conduziu-os aos céus, ao mar e às mais longínquas paragens.
Transportou-os às civilizações mais remotas, numa viagem maravilhosa,
até nossos dias, fazendo mais, preparando-os para os dias futuros, quando
eles tivessem que caminhar sozinhos. (CARVALHO, 1982, p. 67).
36

Oliveira (2011) enfatiza que Lobato sempre recusou o sentimentalismo em


seus textos e, em seu lugar, fez usos da irreverência gaiata, do humor e da ironia.
Também em suas adaptações de clássicos da Literatura Infantil, eliminou o
sentimentalismo piegas.
A obra de Lobato percorre a seguinte trajetória conforme Carvalho (1982 p.
139): “[...] a realidade como premissa, a fantasia como meio, a verdade como fim,
para atingir o bem supremo, que é a liberdade”.
Emília, seu personagem mais importante, é exemplo de liderança e de
obstinação, insistindo em seus objetivos e em suas opiniões, sempre curiosa e
aberta para o novo. Para Oliveira (2011), a intenção de sátira dos desmandos
sociais, apresenta-se no consciente despotismo com que Emília age em certos
momentos.
Castro (2007) observa que ao se apropriar do conto de tradição popular, o
autor brincou de forma inovadora com os personagens. Suas adaptações de obras
estrangeiras, principalmente européias, mesclam-se ao contexto maravilhoso do
sítio, onde são narradas de maneira espontânea e coloquial. Ressalta a autora que,
após Lobato, a oralidade e o coloquial tornam-se características dos livros infantis.
Segundo Castro (2007) a obra de Lobato se compõe de 23 livros, publicados
no período de 1921 a 1947 e se divide em livros originais, adaptações e traduções,
na Tabela 6, alguns exemplos:

Tabela 6: Obra de Monteiro Lobato, alguns exemplos.


Originais A menina do nariz arrebitado, O saci, Aventuras do príncipe, Noivado de
Narizinho, Reinações de Narizinho, As caçadas de Pedrinho, Emília no país
da gramática, Memórias da Emília, O poço do Visconde, O picapau amarelo
e A chave do tamanho.
Traduções Contos de Grimm, Novos contos de Grimm, Contos de Andersen, Contos de
fadas de Perrault, Alice no país das maravilhas, Alice no reino do espelho,
Robinson Crusoé, Robin Hood, O lobo e o mar, Pollyana e Pollyana moça.
Adaptações D. Quixote das crianças, O minotauro e Os doze trabalhos de Hércules.

Em suas adaptações de clássicos da literatura e da mitologia, o autor teve um


duplo objetivo, segundo observação de Oliveira (2011): transmitir às crianças o
conhecimento da tradição e do acervo que lhes caberá transformar, como também
questionar com elas as verdades estabelecidas e os valores cristalizados pelo tempo
que cabe ao presente redescobrir e renovar.
37

Lobato foi inovador, revolucionário e irreverente conseguiu “sair dos


trilhos”, rompendo com modismos europeus e dando vida nova e um “rosto”
próprio e singular à literatura brasileira [...] No plano da fantasia e da
imaginação, Lobato está para nós como Andersen, Perrault e Grimm estão
para suas pátrias. [...]. (CASTRO, 2008, p. 39).

Sua obra já foi traduzida para o francês, o inglês, o espanhol o italiano,


alemão e também para o ídiche, o árabe, o japonês e o russo.
Falecido em São Paulo, em 1948, aos 66 anos de idade, vítima de um
derrame, foi homenageado com a comemoração do Dia Nacional do Livro Infantil em
18 de abril, data do seu aniversário.
Monteiro Lobato influenciou toda uma geração de escritores que vieram a
escrever para o público infantil. Oliveira (2011) cita: José Paulo Paes, Ana Maria
Machado, Lygia Bojunga Nunes, Sylvia Orthoff, Elias José, Bartolomeu Campos de
Queirós, Sérgio Caparelli, Roseana Murray, Ruth Rocha e Ziraldo. Escritores cujos
textos são um convite para partir "do mundo da leitura para a leitura do mundo"
(Lajolo, 2007 apud Oliveira, 2006, p. 1).
O período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) foi particularmente fértil
para a literatura infantil que, por ser considerada um gênero menor, não ameaçava o
poder, não sendo, por isso, alvo da censura. Segundo Oliveira (2006), nesse
momento muitos autores brasileiros usaram o espaço da literatura infantil para
questionar e até protestar contra a repressão vigente e, com isso, formar um senso
crítico em muitos leitores. A escritora Ana Maria Machado, com seu livro Era uma
vez um tirano, publicado em 1982, enfoca e questiona a relação de poder político
que se impõe pela força, centralizando o poder e anulando os direitos dos seus
governados, situação que muito se assemelha ao que se vivia no Brasil naquela
época. No início do livro a autora enfatizando a idéia de que os fatos narrados
podem ocorrer em qualquer lugar ou época:

Uns dizem que esta história aconteceu há muitos anos, num país muito
longe daqui. Outros garantem que não, que aconteceu há poucos e poucos
dias, bem pertinho. Tem também quem jure que está acontecendo ainda,
em algum lugar. E há até quem ache que ainda vai acontecer (MACHADO
apud Oliveira, 2006)

Ana Maria Machado e Lygia Bojunga foram as duas únicas brasileiras


laureadas com o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado como “Pequeno
Prêmio Nobel”, nos anos de 2000 e 1982, respectivamente.
38

Ana nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de dezembro de 1942. Estudou na


escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, começando sua vida profissional como
pintora. Enquanto cursava Letras na Universidade Federal, fazia exposições
individuais e coletivas de seus quadros. Segundo Machado (2011), depois de
formada ela trabalhou como professora em colégios e faculdades, escreveu artigos
para revistas e trabalhou como tradutora. Ressalte-se que a autora foi uma das
principais colaboradoras da revista Recreio no começo dos anos 70, participando da
mudança do tratamento dado aos textos infantis, numa continuidade à proposta
lobatiana.
No final de 1969 foi presa por participar de reuniões e de manifestações
contra a ditadura, juntamente com vários amigos. Machado (2011) conta que, após
ser solta, ela exilou-se na França, levando consigo cópias de algumas histórias
infantis que estava escrevendo, a convite da revista Recreio.
Já em Paris, trabalhou como jornalista na revista Elle e na BBC de Londres,
também ensinou na Sorbonne, onde concluiu sua tese de doutorado sob a
orientação de Roland Barthes, em Linguística e Semiologia, no livro Recado do
Nome, que trata da obra de Guimarães Rosa. Conforme Machado (2011), nesse
período, Ana Maria continuava escrevendo histórias infantis, que vendia para a
Editora Abril.
De volta ao Brasil, no final de 1972, trabalhou no Jornal do Brasil e na Rádio
JB. Em 1976, suas histórias, antes publicadas em revistas, passaram a sair em
livros. Em 1977, ganhou o prêmio João de Barro por seu livro História meio ao
contrário. Seguiu-se, conforme Machado (2011), um grande sucesso, com a
publicação de muitos livros e prêmios ganhos. A escritora também criou e dirigiu por
18 anos, com duas sócias, a primeira livraria do país especializada em livros infantis,
a Malasartes; e foi uma das sócias da Quinteto Editorial. Exerce atualmente intensa
atividade na promoção da leitura e fomento do livro, dando consultorias e seminários
pela UNESCO em diferentes países, além de ter sido vice-presidente do IBBY
(International Board on Books for Young People).
Tendo abandonado o jornalismo em 1980 para dedicar-se a escrever livros,
adultos e infantis, com imenso sucesso, tanto que em 1993 ela se tornou hors-
concours dos prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Conforme Machado (2011), além do prêmio Hans Christian Andersen, ganho em
2000, a autora recebeu em 2001, da Academia Brasileira de Letras, o maior prêmio
39

literário nacional, o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra. Sendo eleita
em 2003 para ocupar a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, honra
pela primeira vez conferida a um autor de literatura infantil.
Escreveu mais de 100 livros infantis, recebendo incontáveis prêmios.
Machado (2011) cita algumas de suas obras premiadas: Abrindo o caminho, Aos
quatro ventos, Bento-que-bento-é-o-frade, Beijos mágicos, Bisa Bia, bisa Bel,
Contracorrente, O cavaleiro do sonho: as aventuras e desventuras de Dom
Quixote de la Mancha, Era uma vez três, Isso ninguém me tira, e A jararaca, a
perereca, a tiririca, entre tantas outras.
Lygia Bojunga nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 26 de agosto de
1932, onde morou até os oito anos de idade, quando sua família mudou-se para o
Rio de Janeiro. Segundo Bojunga (2011), tornou-se atriz aos 19 anos, sendo
contratada por uma companhia de teatro que viajava muito pelo interior do Brasil.
Durante essas viagens, Lygia se impressionou com o grande analfabetismo,
lavando-a a fundar uma escola para crianças pobres do interior, a Toca, que dirigiu
durante cinco anos. Trabalhou durante muito tempo para o rádio e a televisão, antes
de debutar como escritora de livros infantis em 1972.
Após abandonar sua carreira de atriz, Lygia ainda escreveu para o rádio e
para a TV durante 10 anos.

[...] naquele tempo escrever/criar personagens era, pra mim, uma forma de
sobreviver [...] só depois, quando eu abracei a literatura, é que eu me dei
conta que escrever/criar personagens era muito mais que um jeito de
sobreviver: era – e agora sim! – o jeito de viver que eu, realmente, queria
pra mim [...] (BOJUNGA, 2011).

Seus textos, segundo Alma (2011), baseiam-se fortemente na perspectiva da


criança. Em seus livros o mundo é visto através dos olhos brincalhões da criança, e
nesse mundo nada é impossível. As fantasias, em suas histórias, são um meio de
superar experiências pessoais difíceis, como a personagem de Corda bamba, de
1979, que usa uma corda para entrar em uma estranha casa do outro lado da rua,
sendo esta a maneira de curar sua tristeza por ter perdido os seus pais. Em A casa
da madrinha, de 1987, as experiências fantásticas de Alexandre em sua busca pela
casa de sua madrinha são a concretização das fantasias de felicidade e amparo de
um menino da rua abandonado. Suas obras se caracterizam pelo realismo mágico e
pela fantasia psicológica.
40

Alma (2011) destaca o papel social de Lygia, que começou a escrever


durante a ditadura militar no Brasil, época em que se utilizou da literatura infantil
para dirigir mensagens contra o regime, já que, segundo Bojunga apud Alma
(2011)10 “os generais não lêem livros destinados às crianças”. Em seus livros, galos
de briga têm o cérebro costurado com arame e implantam-se filtros de pensamento,
removíveis com saca-rolhas nos pavões. Em seus livros a autora prega a liberdade e
a igualdade entre os sexos. Sendo a seriedade de suas mensagens sempre
equilibrada pela brincadeira e pelo humor absurdo. Os sonhos inflados de Raquel
em A Bolsa Amarela, 1976, são literalmente perfurados por um alfinete, e
transformados em pipas de papel que voam para bem distante à mercê dos ventos.
Bojunga (2011) enfatiza o fato de a autora ter sido a primeira escritora fora do
eixo Europa - Estados Unidos a receber a medalha Hans Christian Andersen.
Naquela ocasião - 1982 - Lygia tinha apenas seis livros publicados: Os colegas,
Angélica, A bolsa amarela, A casa da madrinha, Corda bamba e O sofá
estampado. Em 26 de maio de 2004, Lygia Bojunga recebeu da Princesa Victoria, da
Suécia, o Prêmio ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award), o maior prêmio
internacional instituído em prol da literatura para crianças e jovens. Também ganhou
o Prêmio Jabuti, em 1973, e o Prêmio de Literatura Rattenfänger, em 1986.
Tendo suas obras traduzidas para várias línguas, entre as quais francês,
alemão, espanhol, norueguês, sueco, hebraico, italiano, búlgaro, checo e islandês,
Lygia Bojunga, casada com um inglês, reside atualmente na Inglaterra, dividindo seu
tempo entre Londres e o Rio de Janeiro.

1.2.3 ZIRALDO E SEU UNIVERSO LITERÁRIO

“Um grande artista é um grande homem numa criança grande”. (VICTOR


HUGO apud SAGUAR e ARAUJO 2007)

Versatilidade foi a palavra escolhida por Cascarelli (2007) para definir a


personalidade e o estilo de Ziraldo Alves Pinto, mineiro de Caratinga, nascido em
1932. Formado em Direito no ano de 1957, graças ao seu talento para o desenho e
à sua grande criatividade, iniciou, na década de 1950, uma carreira ligada às artes e

10
ALMA, 2011. Biografia de Lygia Bojunga. [on line].
Disponível em: <http://www.alma.se/upload/alma/pristagare/2004/biobibliography_portugese.pdf>
Acesso em: 20 abr. 2011.
41

ao jornalismo, começando como cartunista nos jornais Folha de Minas e Jornal do


Brasil e nas revistas O Cruzeiro e A Cigarra. Mas a diversidade de sua obra
extrapola o limite das artes gráficas, sendo hoje reconhecido como pintor, cartazista,
jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista, escritor e, como ele gosta de dizer,
colecionador de piadas (ZIRALDO, 2010).
Já nos anos 1960 seus personagens Jeremias, o Bom, a Supermãe e o
Mineirinho eram muito populares. Reconhecido e admirado nacionalmente, sua
vasta obra ainda faz parte do nosso cotidiano.
A política sempre foi alvo de suas preocupações, estando presente no seu
humor, o que o levou a lançar, em 1969, juntamente com alguns amigos, o periódico
O Pasquim, um tablóide de oposição ao regime militar (1964-1985), onde publicava
caricaturas políticas. O Pasquim sobreviveu até 1992 (SAGUAR e ARAUJO, 2007).
Ziraldo havia sido preso no ano anterior, em 14 de dezembro de 1968, dia seguinte
ao da promulgação do AI-511, vítima, assim como tantos outros intelectuais, do
autoritarismo vigente.
Conforme Saguar e Araujo (2007 p. 38-43), Ziraldo, após sua prisão, foi
levado ao Forte de Copacabana, onde permaneceu encarcerado durante o Natal e o
Ano Novo, período em que desenhou compulsivamente a amendoeira que
conseguia ver através das grades. Sua segunda prisão aconteceu um ano depois,
no final de 1969, tendo sido preso ainda uma terceira vez em novembro de 1970,
ocasião em que todos os integrantes d’O Pasquim também foram presos:

Homens fardados, com metralhadoras, foram buscá-lo em casa. Ficou


detido na Vila Militar, no Rio de Janeiro, durante três meses, pois não
localizavam quem havia dado a ordem de prisão. Seu paradeiro era
desconhecido, e a família não tinha qualquer informação. Só foi encontrado
com o auxílio do capitão Sérgio Miranda de Carvalho [...] Nos períodos em
que esteve preso, Ziraldo desenhou muito. Não chegou a ser torturado
fisicamente, mas sofreu diversos tipos de humilhação.

De acordo com Schmidt (2005), o regime militar, ou ditadura militar, iniciou-se


no Brasil com o golpe de 31 de março de 1964, que destituiu o presidente João
Goulart (Jango), resultado de uma conspiração tramada entre militares e civis,

11
Em 13 dezembro de 1968, durante o governo de Artur da Costa e Silva, foi instituído o AI-5 (Ato Institucional no 5), quinto
decreto emitido pelo governo militar brasileiro que dando poderes quase absolutos ao regime militar, provoca o mais duro golpe
na democracia. Redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama em represália ao discurso do deputado Márcio Moreira
Alves, que pediu ao povo brasileiro que boicotasse as festividades de 7 de setembro de 1968, protestando assim contra o
governo militar. A Câmara dos Deputados negou a licença para que o deputado fosse processado por este ato.
42

políticos conservadores, grandes empresários e banqueiros, que acreditavam que as


reformas sociais prometidas por Jango poderiam nos levar ao regime comunista.
Ainda conforme Schmidt (2005), o golpe, chamado de “revolução” pelos
partidários do regime militar, esforçou-se em conservar o status quo vigente no país,
preservando a burguesia, como classe dominante, sob sua proteção, conservando a
profunda desigualdade existente em nossa sociedade e, ao interromper o processo
de reformas, conduzindo o país a um imenso retrocesso em relação aos direitos
democráticos. A ditadura militar prendeu sindicalistas, proibiu greves e fechou
jornais de esquerda
Em junho de 1999, Ziraldo, juntamente com os antigos companheiros de O
Pasquim, Millôr e Jaguar, lançou a polêmica revista Bundas, que falava de coisas
sérias com humor; seu título era uma oposição brincalhona ao título da revista
Caras, de conteúdo mais fútil. No mesmo ano, edita e publica a revista Palavra,
dedicada à produção artística das regiões que se localizam fora do eixo Rio-São
Paulo. Saguar e Araujo (2007) relatam que ambas, passaram por problemas
financeiros e tiveram vida curta; mas Ziraldo ainda insistiu no jornalismo político-
satírico, lançando, em 2002, O Pasquim-21, com seu irmão Zélio e alguns dos
antigos colaboradores, mas este periódico também teve vida curta, deixando de ser
publicado em meados de 2004
Sem nunca deixar de lado as preocupações com o Brasil e com a política, o
autor se expressa através das mais diversas maneiras e para os mais diversos
públicos, inclusive o infanto-juvenil, lançando, em 1960, a primeira revista em
quadrinhos brasileira feita por um só autor, a Turma do Pererê, com personagens
ligados ao folclore brasileiro, que também foi a primeira história em quadrinhos em
cores totalmente produzida no Brasil. Segundo relato de Saguar e Araujo (2007),
embora alcançando uma das maiores tiragens da época, a Turma do Pererê foi
cancelada em 1964, logo após o início do regime militar no Brasil, tendo sido
relançada nos anos 70, pela Editora Abril, sem obter o mesmo sucesso.
Seu primeiro livro infantil, lançado em 1969, foi Flicts, cujos 40 anos foram
festejados, segundo Rezende (2009), com uma Edição Comemorativa lançada na
Bienal do Livro em 2009.
Mas seu maior sucesso como autor de livros infanto-juvenis, foi O Menino
Maluquinho, um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos no Brasil,
43

que, conforme Ziraldo (2010a) já foi adaptado com grande sucesso para o teatro, os
quadrinhos, a ópera infantil, o videogame, a Internet, o cinema e a televisão.
Como desenhista de humor e cartazista, Ziraldo obtém reconhecimento
internacional a partir de 1968, quando suas produções foram publicadas na revista
suíça Graphis, uma espécie de panthéon das artes gráficas (PINTO, 2009).
Ganhou vários prêmios internacionais, entre eles o Oscar Internacional de
Humor no 32o Salão Internacional de Caricaturas de Bruxelas, o Merghantealler,
prêmio máximo da imprensa livre da América Latina, da Associação Internacional de
Imprensa (PINTO, 2009). Tendo sido indicado, por três vezes consecutivas (em
1988, 1990 e 1992) pela FNLIJ12 para o prêmio internacional Hans Christian
Andersen, com seu livro Flicts (FNLJ, 2011).
Pinto (2009) relata que sua vida e suas obras são temas de estudos, e até de
sambas-enredos: Flicts foi homenageado por uma escola de samba em Juiz de
Fora, Maluquinho foi tema da carioca Unidos da Pedra e a escola de samba
paulistana Nenê de Vila Matilde o homenageou com o enredo: É melhor ler... O
mundo colorido de um maluco genial.
Foi convidado a desenhar o cartaz anual do Unicef, honra concedida pela
primeira vez a um artista latino. Além de ter feito um mural para a inauguração do
Canecão13, numa parede de mais de cento e oitenta metros quadrados, que,
segundo conta Ziraldo (2011b) foi reproduzido em várias revistas do mundo.
Sua arte gráfica está presente em nosso cotidiano, em logotipos, ilustrações e
cartazes do Ministério da Educação, camisetas e símbolos de campanhas públicas
ou privadas. Também podemos ver Ziraldo aos domingos, na TV Brasil,
apresentando o programa ABZ do Ziraldo, dirigido ao público infantil (ZIRALDO,
2011a).
Assim como Monteiro Lobato, Ziraldo sonha melhorar o Brasil através da
leitura; além disso, Ziraldo propõe um novo modelo de escola fundamental para o
nosso país, “formativo” e não “informativo” (O ASPITE, 2005).
Questionado por uma professora sobre a sua conhecida frase “ler é mais
importante do que estudar”, o autor responde:

12
FNLJ: Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, criada em 23 de Maio de 1968. A cada dois anos, como seção
brasileira do International Board on Books for Young People - IBBY, a FNLIJ indica um escritor e um ilustrador brasileiros, que
estejam vivos e que tenham uma obra merecedora de concorrer ao Prêmio Hans Christian Andersen do IBBY, um prêmio
internacional, conhecido como o Nobel da Literatura Infantil.
13
O Canecão, tradicional cervejaria, casa de shows e espetáculos localizada no Rio de Janeiro, inaugurada em 1967.
44

A frase, professora, é uma frase de efeito, feita para despertar as pessoas


para a questão da leitura no ensino básico, uma frase feita para inquietar,
mesmo. Com um detalhe: ela não precisa explicação, meu Deus! Como é
que um menino pode estudar se ele não sabe ler, não é capaz de entender
um texto, não consegue se expressar escrevendo? [...] É o impasse
filosófico do ovo e da galinha: qual dos dois é mais importante? Parece-me
que a resposta é óbvia, não? (PINTO, 2005, p.51).

Sua bibliografia infantil é vasta, Turma do Pererê, O menino maluquinho, O


bichinho da maçã, A fábula das três cores, O joelho Juvenal, O planeta lilás,
Uma professora muito maluquinha, O menino e seu amigo, O menino
quadradinho, Vovó delícia, são alguns dos seus livros.
Ziraldo também ilustrou livros de outros autores, como Chapeuzinho amarelo
de Chico Buarque; Planeta vassorinha, de Fernando Lobo; História de dois
amores, de Carlos Drumond de Andrade; Noções de coisas, de Darcy Ribeiro;
Olha o olho da menina, de Marisa Prado; O fazedor de amanhecer, de Manoel de
Barros; Ponto de vista, de Ana Maria Machado; Papo de sapato, de Pedro
Bandeira; e Um cantinho só para mim, de Ruth Rocha.
Saguar e Araújo (2007) destacam que o autor tem sido um incentivador das
artes gráficas e literárias no Brasil e que sua trajetória se confunde com a própria
história da imprensa brasileira. Como ilustrador, seus trabalhos são reconhecidos
não apenas pelo público, mas por renomadas instituições nacionais e internacionais
através de inúmeros prêmios. Como autor, seus livros e personagens têm o carinho
do público e já fazem parte do imaginário brasileiro.
Seu grande interesse pelos mais variados assuntos, lhe renderam o título de
“assessor de palpites” ou “Aspite”, dado por um amigo. Título esse que também deu
nome ao livro O aspite, lançado em 2005, uma coletânea de crônicas publicadas em
um jornal de Minas Gerais a partir de 2002.
Em suas crônicas, com a sensibilidade e a honestidade que fazem dele um
respeitado formador de opiniões, Ziraldo fala sobre a sua preocupação com alguns
dos mais sérios problemas brasileiros, sempre propondo soluções inteligentes e
criativas para temas como segurança, saúde, desemprego e educação, entre outros.
45

CAPÍTULO II – METODOLOGIA

2.1 CORPUS

Nesta pesquisa foi utilizado um corpus documental que se constitui a partir de


duas edições do livro Flicts, de Ziraldo e de sua tradução, além dos artigos, livros e
material pesquisado na internet e citados nas referências bibliográficas.
Esclarecendo que em ambas as edições o texto de Flicts é o mesmo,
havendo uma única diferença na ilustração referente “aos países mais bonitos”, que
na edição mais antiga mostra a bandeira da Inglaterra e, na mais recente, mostra a
bandeira do Brasil. São elas: a 4a reimpressão da edição de 1976, da Editora Primor,
utilizada na tradução; e a 68a Edição de 2005, reimpressa em 2010, pela Editora
Melhoramentos de São Paulo, escolhida como referência para esta análise pelo fato
de já estar revisada segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa14.

2.2 FLICTS

Primeiro livro infantil de Ziraldo, lançado em agosto de 1969, pela editora


Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, de acordo com Saguar (2007) resultou de um
acordo entre o autor e o editor Fernando de Castro Ferro. Ziraldo queria publicar um
livro com as histórias de seu personagem Jeremias, o Bom, mas o editor lhe pediu
um livro infantil. Ziraldo teve apenas uma semana para criar uma história, inventou
então uma narrativa sobre cores, pois assim não precisaria criar novos desenhos
para personagens, economizando tempo. Assim nasceu a publicação que inovou a
linguagem gráfica dos livros infantis.

O título Flicts, uma interjeição inventada pelo autor, apareceu pela primeira
vez em um desenho da Supermãe, publicado no Jornal do Brasil [...] Mais
tarde, Ziraldo reaproveitou a interjeição que criou para dar nome ao seu
personagem (SAGUAR e ARAUJO 2007, p. 253).

14
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, firmado entre os países da CLP (Comunidade de países de Língua Portuguesa)
em 1o de janeiro de 2009, unifica algumas regras de ortografia, havendo um prazo até 2012 para adequação às novas regras.
46

O sucesso de crítica e de público foi imediato, já recebendo, em 1970, o


prêmio Santa Rosa do Instituto Nacional do Livro destinado ao mais belo livro de
cada temporada. Pinto (2009) relata que sua primeira edição teve uma tiragem de 10
mil exemplares, sendo reimpressa apenas 6 meses depois. A segunda edição veio
já em fevereiro de 1970, com tiragem superior a 10 mil exemplares, desta vez
trazendo um texto de Carlos Drumond de Andrade15 intitulado Flicts: O Coração da
Cor e um autógrafo do astronauta Neil Armstrong16.
Assim como Drumond, o astronauta encantou-se como o livro quando em
outubro de 1969, foi presenteado pelo chanceler Magalhães Pinto com um exemplar
em inglês, durante visita ao Brasil, em que juntamente com os outros astronautas da
Apolo 1117, acompanhava o presidente americano Lyndon Johnson. Segundo Pinto
(2009) Armstrong fez questão de conhecer o autor e, nesse encontro, confirmou em
um exemplar do livro que a lua é realmente Flicts.
Cascarelli (2007) considera que Flicts inovou e surpreendeu, revolucionando
o livro infantil quanto à sua concepção gráfica, que já não separa o texto verbal das
imagens. Também quanto à sua leitura: já não se lê apenas em linha reta, horizontal
e a palavra escrita não está sozinha na narrativa, as imagens, signos não verbais,
também são lidos e compreendidos. O leitor, que até então focava a palavra para a
construção dos significados, numa percepção apenas lingüística, abre-se à
interposição de códigos, ao acasalamento de signos, geradores da leitura em mais
de uma direção, recepcionando o texto a partir de uma percepção semiótica. Relata
a autora (p. 08):

As interpretações que Flicts suscita entre jornalistas, articulistas, escritores


– Carlos Drummond de Andrade, Millôr Fernandes, Raquel de Queiroz,
Dom Marcos Barbosa, Jayme Maurício, Lago Burnett, Norma Pereira Rego,
entre outros é muito interessante, pois proporciona uma abertura do lirismo
à poesia e ao humor; outros a comparam como fábula à obra O pequeno
príncipe, ao conto clássico O patinho feio, ou reconhecem até
semelhanças com o gênero policial; outros ainda, evidenciam o caráter
lunar da personagem e da sua viagem astronáutica às modernas
conquistas do homem no espaço; conotações místicas também são dadas
e, ainda sociais, ligadas à exclusão.

Embora, tradição continue rotulando este tipo de narrativa como fábula, a


obra Flicts se encaixa na definição de apólogo dada por Coelho (2008), possuindo

15
Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro (1902 - 1987), também foi cronista, contista e tradutor.
16
Neil Alden Armstrong, astronauta norte-americano, foi o primeiro homem a pisar na Lua, em 20 de julho de 1969.
17
Apollo 11 foi a quinta missão tripulada do Programa Apollo (conjunto de missões espaciais coordenadas pela agência
espacial dos EUA, Nasa) e primeira a pousar na Lua.
47

suas características: os personagens, as cores, são seres inanimados que falam e


possuem características e sentimentos humanos; o protagonista, uma cor solitária,
que insiste em buscar o seu lugar no mundo; e a moralidade implicita: não se deve
desistir dos sonhos, mesmo diante das maiores dificuldades.
Sendo uma cor, o personagem Flicts deseja e busca cumprir o papel que a
natureza lhe destinou: colorir algo e assim existir, mas, segundo Cascarelli (2007,
p.66) “sua existência se condiciona à sua aceitação no mundo”. Para tanto busca
ajuda entre seus pares, as outras cores, mas cada uma delas já tem sua função
definida e todas elas se mostram indiferentes, incomodadas e até zangadas com os
seus apelos, demonstrando emoções muito humanas. Na escola, na paisagem, nas
brincadeiras infantis, não há lugar para Flicts, muito menos nos jardins ou nos
brasões, nem nas bandeiras. Também na natureza tudo já tem sua cor: o mar, o
céu, a lua... Flicts, que não consegue um só amigo ou companheiro. Um dia
desaparece. Apenas os astronautas conhecem o seu paradeiro, pois eles, ao
observar a lua bem de pertinho, viram que ela é Flicts. Ao final da história, graças ao
seu próprio esforço e à sua incansável busca, o personagem se realiza, encontrando
uma uma razão para existir.
Para Castro (2008), Flicts evolui durante a sua busca: no inicio, ainda criança,
tenta participar das brincadeiras; mais tarde busca, sem sucesso, um trabalho; e,
finalmente, amadurecido, volta-se para a natureza, onde se encontra.
Todo a narrativa se faz através de imagem e texto, integrados nesta obra, que
associa o verbal e o visual numa só linguagem e num só sentido. O texto, de acordo
com o seu posicionamento na página ou com o tamanho de sua fonte, transmite
uma mensagem a mais, funcionando também como imagem.
Desde 1969, ao longo de 40 anos, o livro Flicts foi publicado por várias
editoras e em diversos formatos. É importante lembrar, segundo informa Pinto
(2009), que a ditadura militar não permitia o uso dos símbolos nacionais fora dos
documentos e/ou das solenidades oficiais, por este motivo Ziraldo não pode
concretizar sua intenção de ilustrar com a bandeira brasileira a página com a frase
pelos países mais bonitos, optando por usar a bandeira da Inglaterra. Nossa
bandeira só passou a ilustrar essa página a partir da edição de 1984, na durante o
processo de abertura política18.

18
Abertura política é o processo de liberalização da ditadura militar que governou o Brasil, esse iniciado em 1974 e concluído
em 1985, com o fim da ditadura.
48

Figura 1: Bandeira do Reino Unido, usada nas edições de Flicts durante a


ditadura militar, sendo substituída pela bandeira brasileira a partir da edição de 1984.

O livro pode ser encontrado atualmente nas livrarias brasileiras seja em


português, espanhol, inglês e esperanto. Embora de possuia publicações em 14
países, não foi identificada nem encontrada, até o presente, sequer uma tradução
em língua francesa. Na Tabela 7, conforme Pinto (2009), é apresentada a trajetória
editorial de Flicts no exterior:

Tabela 7. Trajetória Editorial de Flicts no Exterior

Ano País Editora

1973 Inglaterra Roger Schlesinger London Ltd.


1973 Itália Emme Edizioni
1975 Holanda e Bélgica Deltos Elsevier’n Frank Fehmers
Produktie
1984 Alemanha, Estados Melbooks
Unidos e Espanha
1984 Argentina Emecé Editores
1986 Equador Libreria Selecciones
1987 Argentina, Chile e Emecé Editores
Paraguai
1990 Portugal Editoras Melhoramentos Portugal
1993 Argentina
Emecé Editores
1994 Alemanha Melbooks
1996 Argentina Emecé Editores
2003 México Libros del Rincón / Secretaria de
Educación Pública
2003 Itália
Editora Riuniti
2006 Espanha This Side Up
2009 Japão Editora Ofusha

O livro também foi transformado em um curta-metragem de animação em


1972, e possui duas adaptações para o teatro, uma, em 1972, por Aderbal Freire
Filho, com o nome de Flicts - Era Uma Vez Uma Cor; e outra, em 1998 pelo Grupo
49

Camaleão de Teatro de Bonecos, de Porto Alegre. Pinto (2009) relata que ambas
são encenadas com sucesso ainda hoje. Em 1973, a adptação de Aderbal foi
escolhida para representar o Brasil no Festival Internacional de Teatro Infantil,
realizado em Paris.

Há uma diferença na literatura infantil, um fenômeno que é muito curioso e


que dá uma sobrevida aos livros. Os pais que tiveram a infância marcada
por alguma obra querem que seus filhos leiam as mesmas coisas que eles
leram quando eram crianças, por isso dão de presente para eles os
mesmos livros (Ziraldo apud REZENDE, 2009).

A beleza de Flicts, um livro lançado por Ziraldo em 1969, reside na


simplicidade de sua narrativa, inexistindo problemas de diacronia. Seu vocabulário é
perfeitamente compreensível para o leitor infantil brasileiro de hoje ou de 40 anos
atrás, dispensando assim as adaptações de uma tradução intralingual.
Mas, numa tradução interlingual19 as adaptações serão necessárias, pois ao
traduzir uma obra para outro idioma devem ser consideradas a cultura e a visão de
mundo do público alvo, que na presente tradução é a criança francesa.

2.2 DESCRIÇÃO DO PROCESSO DE TRADUÇÃO

O primeiro passo neste trabalho foi decidir, dentre tantas outras obras, aquela
que seria traduzida. Motivada por razões pessoais, Flicts foi a escolhida, já que a
tradutora é leitora do Ziraldo e fã do Flicts desde criança. O primeiro obstáculo
constatado foi o receio de não se conseguir traduzir claramente para o francês um
texto escrito originalmente em português. Saliente-se que o fato de o francês ser
uma língua estrangeira com a qual a autora desta pesquisa não guarda tanta
intimidade quanto guarda com sua língua-pátria – o português do Brasil – trouxe-lhe
alguma inquietação. Na verdade, decisão de enfrentar este desafio veio após uma
reflexão, quando foi considerada sua antiga ligação com a língua francesa através
de estudos, de leituras e da convivência com amigos franceses, além da experiência

19
Roman Jakobson distingue três maneiras de interpretar ou traduzir um signo verbal (JAKOBSON, 1999, pág.64): 1) A
tradução intralingual ou reformulação, que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma
língua. 2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita, que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de
alguma outra língua. 3) A tradução inter-semiótica ou transmutação, que consiste na interpretação dos signos verbais por meio
de sistemas de signos não-verbais.
50

adquirida neste curso de Especialização em Formação em Tradutores, através das


leituras especializadas e dos trabalhos práticos.
A esse respeito, Alves et al (2006) afirmam que nem todos os falantes nativos
de uma língua, por possuírem diferentes graus de conhecimento e proficiência, são
capazes de traduzir para sua língua-nativa. Para isso são necessários habilidades e
conhecimentos adquiridos através de uma formação qualificada, aliados ao domínio
de uma língua estrangeira, aos conhecimentos cultural e técnico, e à habilidade para
a recriação de um texto.
O público-alvo escolhido foi o pequeno leitor francês e, para chegar até ele,
foram utilizadas estratégias de tradução que priorizam a comunicação, buscando
reescrever o sentido mais próximo possível das idéias e dos valores da obra original.
Realizadas leitura e releituras da obra selecionada, momentos houve em que
se observou atentamente o estilo do autor. Este se expressa através das imagens,
das cores, do texto e também através da disposição desse texto junto às imagens,
bem como da variação de tamanho da fonte, recurso usado para enfatizar as
emoções do personagem. Nessas diversas leituras, observou-se que o livro aborda
variados assuntos, tais como as cores e suas personalidades, os nomes de
brincadeiras infantis, os termos de heráldica, as bandeiras dos países, as variações
de cor tanto da lua quanto do mar, os astronautas e outros aspectos. Percebeu-se
também que, nesse universo textual de Flicts, Ziraldo quase não utiliza pontuação.
Quanto às ilustrações, estas foram capturadas mediante o processo de
escaneamento das páginas do livro, apagando o texto em português; entretanto se
preferiu recriar no editor de imagens algumas ilustrações mais simples. Para
reescrever o texto em francês sobre as páginas escaneadas, utilizou-se um editor de
textos, fase em que foi observado o aspecto estético, ou seja, a proporcionalidade
entre tamanho do texto e/ou da letra, com relação às figuras, sempre repetindo o
posicionamento e as proporções do livro de Ziraldo. Nessa estratégia de
reconfiguração textual, ora adotada, visou-se trazer para o texto em francês a
intenção do autor de enfatizar determinada idéia ao longo do livro, aumentando ou
diminuindo o tamanho das letras; ou escrevendo o texto no sentido vertical ou
horizontal. Priorizou-se a configuração das imagens da 68a edição, muito embora
pequenos ajustes tenham sido necessários, ou nas figuras ou no tamanho das
letras, considerando que a língua francesa, em alguns momentos, utiliza mais
palavras do que a língua portuguesa para dizer a mesma coisa.
51

A primeira preocupação ao traduzir foi a de apresentar o texto de forma que


facilitasse a leitura e a compreensão no idioma francês. Por isso, muito embora não
exista e nem seja necessária a pontuação no texto fonte, decidiu-se reescrever o
texto em francês, acrescentando alguns pontos e algumas vírgulas.
Quanto às cores, sendo estas personagens, foram recriadas com suas iniciais
maiúsculas, omitindo-se, porém, os artigos definidos antes de seus nomes, já que
em francês o artigo definido não é usado antes de substantivos próprios.
Para substituir o título Flicts por Flictus na ilustração da capa em francês,
recorreu-se a um programa de edição de imagens. Neste, procedeu-se ao recorte do
"c" de "Flicts", invertendo em 270º, o qual foi alongado para cima e estreitado nos
lados, construindo assim a letra “u” que surge inserida entre o "t” e o “s”, conforme
apresentado na figura 1:

Figura 2: Processo de transformação do nome Flicts em Flictus.

Resumindo por itens, o trabalho se dividiu nas seguintes fases:


a) Leitura do texto-fonte Flicts e primeiras pesquisas;
b) Continuação das pesquisas e início da tradução;
c) Continuação da tradução: consultas a dicionários e à internet;
d) Decisões quanto à tradução;
e) Cópia das ilustrações e colagem no editor de texto;
f) Digitação e organização do texto em francês.
52

CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DA TRADUÇÃO DE FLICTS

3.1 TRADUZINDO O TÍTULO

Traduzir o nome de uma obra pressupõe entender a intenção do autor e


contextualizá-la na cultura de chegada Perrissé (2010, p. 52).

Quando se trata de traduzir o título de uma obra, seja livro, filme ou peça
teatral, a sua modificação costuma ser bem aceita. Esta modificação pode ser uma
pequena adaptação ou uma transformação completa. É costume no Brasil,
principalmente com relação a títulos de filmes, algumas traduções do tipo que “já
contam a história”. O mesmo aconteceria se, nesta tradução, o título houvesse sido
modificado para “Une Couleur Solitaire”, por exemplo. E neste caso, o novo título
fugiria totalmente da intenção do autor.
A palavra “Flicts”, criada por Ziraldo, sem tradução nem correspondência em
outro idioma, possui uma sonoridade instigante, que induz à curiosidade pela leitura
do texto, sendo, pois interessante manter este título. Observou-se, porém, que uma
palavra finalizada por três consoantes, algo impronunciável para um nativo de língua
francesa, talvez não provocasse no público alvo o encantamento pretendido. Após
tais considerações, optou-se manter o título, reescrevendo-o, com uma pequena
adaptação: acrescentou-se um “U” entre o “T” e o “S”, conseguindo assim uma
sonoridade semelhante à original. Esta versão em francês recebeu, pois, o título de
Flictus. Prática semelhante também foi utilizada na tradução de Flicts para o
japonês, que recebeu o título de Furicchisu. (Ziraldo, 2009).

3.2 TRADUZINDO A OBRA: ESTRATÉGIAS E IMPASSES

Será analisada a seguir a tradução realizada para este estudo, onde serão
vistas algumas das estratégias utilizadas, como: supressões, substituições e outras.
Apresenta-se o texto em duas colunas: à esquerda, o texto original, em
português; e, à direita, sua tradução em francês; seguidos de explicações e
comentários sobre as escolhas e decisões tomadas.
53

Na verdade, a primeira decisão tomada nesta tradução envolve o aspecto


visual, ou seja, a forma da disposição do texto na página. Considerando que a forma
visual do texto original – ora numa visível e expressiva verticalidade que evoca uma
coluna, como se fosse um poema; ora crescendo na horizontalidade como o texto
em prosa – decidiu-se que o texto seria reescrito em francês aproximando-se o tanto
quanto possível do aspecto visual do original.

Era uma vez uma cor Il était une fois une couleur
muito rara e muito triste très rare et très triste
que se chamava Flicts qui s’appelait Flictus

Logo na primeira frase do livro fica evidente a aproximação entre as culturas:


a de chegada (francesa) e a de origem (brasileira), dada a presença usual da
fórmula invariável de “Era uma vez” ou Il était une fois, quando se pretende iniciar
uma narrativa infantil. Esta é uma estratégia consagrada que visa conduzir o leitor
para o mundo encantado da fantasia. A origem comum e as semelhanças culturais
entre o francês e o português possibilitaram em vários momentos deste trabalho a
prática da tradução direta ou literal.

não qui
tinha n’avait
a pas la
força force
do de
Vermelho Rouge
não tinha a imensa luz do Amarelo ni la grande luminosité de Jaune
nem a paz que tem o Azul et n’avait pas non plus l’apaisement de Bleu

Em português, a frase prossegue, sem a necessidade de nenhum conectivo,


pois não é difícil compreender que se continua falando de Flicts. Já em francês, em
nome da clareza e por razões estilísticas, acrescentou-se o índice relativo qui na
primeira frase, que representa o personagem; o ni na segunda e, na terceira usou-se
a locução non plus, que atua de modo similar à função do elo conjuntivo “nem” no
texto de partida. Esclarece-se que em francês não se usa artigo definido diante de
nome próprio. Desta forma, nesta obra em que as cores são personagens
designados por nomes próprios, decidiu-se que o texto em língua francesa deve ser
articulado sem o artigo definido. Por conseguinte, não se utilizou, no trecho acima,
antes dos nomes das cores a forma contraída “du”, (de + le) utilizando-se somente a
preposição “de”, sem o artigo “le”.
54

Era apenas Ce n’était que


o frágil e le faible,
feio e aflito l’affreux et l’affligé
Flicts Flictus

No grupo de adjetivos “frágil, feio e aflito”, que ressaltam o som da letra “F”,
combinando assim com o próprio nome “Flicts”. Faible e affligé possuem a mesma
origem de “frágil” e “aflito”. Quanto ao affreux, foi encontrado no dicionário como
sinônimo de laid (feio) e considerou-se que possui a sonoridade necessária para
reproduzir em francês a aliteração20 do texto de partida, reescrevendo assim o jogo
de palavras, recurso tão apreciado pelas crianças.

Tudo no mundo tem cor Dans le monde tout a sa couleur,


tudo no mundo é tout dans le monde est
Azul Bleu
Cor-de-rosa Rose
ou Furta-cor ou Irisé,
é Vermelho ou Rouge ou
Amarelo Jaune,
quase tudo tem seu tom presque tout a sa tonalité
Roxo Grenat,
Violeta ou Lilás Violet ou Lilas.

No trecho acima, um tanto longo e sem nenhuma pontuação, o texto não


sofreu prejuízo para a compreensão do leitor em língua portuguesa. Porém em
língua francesa, julgou-se necessária a colocação de algumas vírgulas e pontos, em
nome da boa compreensão do leitor na língua alvo.
Apenas a palavra “Furta-cor” exigiu dois dias de pesquisa até chegar ao seu
correspondente irisé. As pesquisas em dicionários, internet, em sites de busca como
o Google foram fundamentais, não apenas neste impasse.
A intenção de reescrever no texto traduzido a correspondência entre o maior
número de palavras possível aportou na descoberta de que em francês não há
distinção entre “Roxo” e “Violeta”, uma vez que ambos são traduzidos por Violet.
Para compor a frase buscou-se, então, uma outra cor e a escolha recaiu em Grenat.

Mas não existe no mundo Mais,


nada que seja Flicts il n’existe rien de Flictus au monde,
– nem a sua solidão - rien d’aussi solitaire,
rien qui soit Flictus.

20
Aliteração: figura de linguagem que consiste na repetição de sons consonantais idênticos ou
semelhantes num mesmo verso ou numa mesma frase, destacando as sílabas tônicas.
55

Neste fragmento, optou-se por uma construção que revelasse, sem fazer uso
do travessão, presente no texto em português, o quanto é carregado de ausência o
mundo de Flictus. Para isso recorreu-se ao indefinido francês rien, que articulado
com a partícula negativa ne que o precede, exprime não somente a negação, mas a
ausência de algo. No texto traduzido, o insistente uso do rien e as pausas marcadas
pela vírgula vêm enfatizando a solidão do personagem.

Flicts nunca teve par Flictus n’a jamais eu de semblable.


nunca teve um lugarzinho Il n’y a jamais eu de place pour lui
num espaço bicolor dans un endroit bicolore
(e tricolor muito menos et pas davantage dans un endroit tricolore
- pois três sempre foi demais)
Non,
Não vraiment,
Não existe no mundo il n’existe rien de Flictus au monde,
nada que seja Flicts rien qui soit Flictus.

No fragmento transcrito anteriormente, na frase: “pois três sempre foi demais”,


Ziraldo faz uma referência ao ditado “Em casa de caboclo um é pouco dois é bom
três é demais”. Isso para o bom entendedor brasileiro seria suficiente, mesmo que o
leitor fosse uma criança, porém, esta alusão incompreensível é para o leitor francês.
Procurou-se, sem sucesso, encontrar um ditado correspondente em língua francesa;
provavelmente, houvesse este sido encontrado, seus termos não fizessem sentido
dentro do contexto de Flictus. Levar o ditado para a língua francesa, traduzindo-o
ao pé da letra e utilizando o recurso da nota de rodapé, também não seria
recomendável para um livro infantil, pois além de ser cansativo, quebraria o ritmo da
narrativa. Que Ziraldo foi muito criativo ao fazer esta alusão é um fato; entretanto,
para a boa compreensão do leitor na língua-alvo, foi adotado o processo de
supressão, privilegiando a clareza do sentido. No último parágrafo inseriu-se a
palavra vraiment e a vírgula que enfatizam a experiência solitária do personagem

Nada que seja Flicts rien qui soit Flictus

A página em branco e ao final a repetição da última frase da página anterior


em letras enormes, trazem a constatação da solidão e do desespero de Ficts/Flictus,
despertando no leitor um sentimento de solidariedade para com o personagem.

Na escola a caixa de lápis À l’école, il y a une boîte


cheia de lápis de cor pleine de crayons de couleur
de colorir paisagem pour colorier des paysages,
casinha e cerca e telhado des maisonettes, des haies,
árvore e flor e caminho et des toits;
56

laço de fita e ciranda des arbres, des fleurs et des chemins


des lacets, des guirlandes
não
et des rubans.
tem
lugar Là,
para il n’y a pas
Flicts de place
pour
Flictus

Também no trecho acima, voltado para o mundo da escola, um espaço que é


próprio da criança e do jovem, o texto em português se apresenta sem pontuação. E
todos os substantivos estão no singular – “lápis de colorir paisagem casinha e cerca
[...]” – embora o texto passe para o leitor a ideia ou a sensação de plural. Na
tradução utilizou-se a pontuação e a pluralização efetiva dos substantivos levando-
os para a língua francesa no plural. Foram inseridos ponto-e-vírgula e vírgulas para
pausar a leitura e fazer o leitor perceber que, mesmo em face das inúmeras
possibilidades que a escola pode oferecer, não acolhia Flictus.
No trecho em que termos campestres fazem parte do universo do desenho
infantil, como o diminutivo sintético maisonettes, a tradução se deu quase de forma
instintiva, não exigindo a busca de outras possibilidades fraseológicas. Mas ao
deparar com a palavra “ciranda”, o ritmo de automatismo tradutório desacelerou-se.
Assim, buscou-se em dicionários e na internet sem encontrar no contexto cultural da
língua francesa uma palavra lexicalmente próxima. A solução foi utilizar a palavra
guirlandes, considerando que, sonoramente é semelhante, e também traz a ideia de
círculo colorido. Apesar de ter o significado diverso do texto de origem, a
substituição não comprometeu a mensagem, conforme a interpretação feita neste
trabalho.
Quanto à segunda parte da referida página, o texto estruturado em formato de
coluna, está diretamente vinculado ao anterior, pois, mesmo sem pontuação alguma
e estando as duas frases separadas na página, sabe-se que na “caixa de lápis de
cor não há lugar para Flicts”. Em francês, iniciou-se a nova frase inserindo a palavra
là, para melhor conectá-la com a anterior. Quanto ao aspecto visual da reescrita, nos
dois parágrafos buscou-se uma forma similar à do texto original. A segunda parte do
texto foi reescrita de forma vertical, tal qual o original, com a diferença de que em
português há apenas uma palavra em cada linha e o texto está alinhado à esquerda
e, em francês, existem duas linhas com mais de uma palavra, havendo necessidade
57

de centralizar o texto para que ele se mantivesse abaixo da coluna, mantendo assim
a dramaticidade visual da afirmação.

Quando volta Quand revient


a primavera le printemps,
e o parque todo e le parc et
o jardim le jardin tout entier
todo se couvrent
se cobrem de de couleurs.
cores
Aucune de ces couleurs,
Nem uma cor ni personne,
ou ninguém ne veut
quer jouer
brincar avec le
com o pobre Flicts pauvre Flictus.

Na passagem em que é visualizada a volta da primavera, suprimiu-se a


repetição da palavra “todo”: “o parque todo e o jardim todo” foram traduzidos como:
le parc et le jardin tout entier. E, tout entier, concorda em número apenas com o
substantivo mais próximo – jardin –, embora se refira também ao substantivo parc.
Assim como em português, a concordância com os dois substantivos ou apenas
com o mais próximo é permitida.

Um dia ele viu no céu Un jour,


depois de uma chuva cinzenta après la pluie Grise,
a turma toda feliz il a vu
saindo para o recreio bande joyeuse de couleurs qui
e se chegou para brincar: sortaient en recréation.
Et il s’est approché
pour jouer aussi :

Nesta passagem que narra o encontro de Flicts com as cores do arco-íris, p


autor, em português usa apenas o substantivo “turma”, mas em francês houve a
necessidade de dizer que se trata de uma “turma de cores” ou une bande joyeuse de
couleurs. Também foi inserida pontuação na tradução.
Saliente-se que o artigo definido “a” de “a turma” pode inscrever no texto um
índice de aproximação, no sentido de que é um grupo já visto antes, como se fosse
já conhecido ou familiarizado com Flicts. Porém, na tradução, optou-se pelo artigo
indefinido une que exclui esse tom de familiaridade.

Deixa eu ficar na berlinda? Est-ce que je peux jouer au balon ?


Deixa eu ser o cabra-cega? Est-ce que je peux jouer à colin-maillard ?
Deixa eu ser o cavalinho? Est-ce que je peux jouer à cache-cache ?
Deixa que eu fique no pique? Est-ce que je peux jouer avec vous... ?
58

Na tradução dos nomes das brincadeiras, apenas colin-maillard corresponde


à brincadeira conhecida pelos brasileiros como “cabra-cega”. Ora, é lógico que se o
nome fosse traduzido literalmente (chèvre aveugle) haveria uma ruptura semântica,
que não levaria o sentido adequado para o texto de chegada. As outras brincadeiras
citadas na tradução fazem parte do universo infantil francês, embora não
correspondam às que foram mencionadas no texto em português, mas cumprem a
finalidade de comunicar o mesmo conteúdo dito no texto de partida.
Na fala de Flicts, quando ele pede para participar da brincadeira com as
cores, optou-se pelo tom formal est-ce que je peux jouer [...] com a intenção de
reafirmar a falta de familiaridade mencionada anteriormente.

Mas ninguém olhou pra ele Mais personne ne l'a vraiment regardé.

só disseram frases curtas Et chacun lui a dit tour à tour


cada um por sua vez: une courte phrase :

Ao traduzir a passagem acima, decidiu-se pela inserção da palavra vraiment,


na intenção de enfatizar a nuance de não aceitação pelo grupo do personagem que,
desde o princípio da história busca o convívio com o outro.

“Sete é um número tão bonito” « Il est beau le numéro sept »


disse o Vermelho vermelho a dit Rouge en rugissant
“Não tem lugar para você” « Il n’y a pas de place pour toi »
disse o Laranja a dit Orange
“Vai procurar um espelho” « Va chercher un miroir »
disse o Amarelo a dit Jaune
“Somos uma grande família” « Nous sommes une grande famille »
disse o Verde a dit Vert
“Temos um nome a zelar” « Il faut veiller à notre réputation »
disse o Azul a dit Bleu
“Não quebre uma tradição” « Ne bouscule pas les traditions »
disse o Azul-anil a dit Indigo
“Por favor não vá querer quebrar a « S’il te plaît, tâche de ne pas modifier
ordem natural das coisas” l’ordre naturel des choses »
disse violento o Violeta a dit Violet avec violence

Em resposta aos apelos de Flicts, no trecho acima, as cores falam como os


humanos e em seus discursos revelam suas personalidades, priorizando-se a
reescritura quase literal na forma e no sentido. Na tradução da última frase ficou-se
em dúvida quanto ao verbo a ser utilizado. O verbo tacher – esforçar-se por atingir
um objetivo, ou fazer algo –, ou seja, “trate de não quebrar a ordem natural [...]”, foi a
opção que veio adequar-se da melhor maneira à composição da referida frase.
59

Observe-se que a tradução privilegiou simultaneamente o recurso estilístico da


aliteração e da assonância21 do original em: a dit Rouge en rugissant e a dit Violet
avec violence. A repetição desses fonemas possibilitou recriar o tom expressivo do
texto de partida no texto de chegada. Quanto à configuração visual desta página,
esta foi levada para o texto em francês, como se fez em tantas outras passagens.

E as sete cores se deram as mãos e à Et les septs couleurs


roda voltaram se donnèrent la main
e voltaram et commencèrent
a girar une ronde.
a girar girar girar Et ils tournèrent en rond, en rond, en rond...
a girar girar girar et ils tournèrent, ils tournèrent, ils tournèrent
et ils tournèrent, ils tournèrent, ils tournèrent

Neste trecho utilizou-se passé simple, um tempo verbal essencialmente


literário e frequentemente usado em contos infantis de língua francesa, para
enfatizar e marcar a súbita atitude das cores de abandonar Flicts e também para
sintetizar, já que o passé composé utilizaria ainda mais palavras no trecho traduzido;
onde se pode observar claramente um número maior de palavras do que no trecho
em português. Também em função desta necessidade de expansão vocabular da
língua francesa, foi imprescindível que a tradução fosse tecida de forma mais ampla.
Assim, considerando, ampliou-se o número de linhas. Tencionou-se circunscrever
em Flictus o aspecto semântico de Flicts, ou seja, a ideia que encerra a repetição
insistente do verbo girar: alienação do grupo em relação ao personagem Flicts que
figura no texto como alguém repudiado pelo grupo. Para que esse tema do texto
brasileiro surgisse no texto francês com intensidade similar, insistiu-se na repetição
da forma verbal tournèrent.

e mais Et de nouveau
uma vez ils abandonnèrent
deixaram le faible,
o frágil e feio e aflito l’affreux et
Flicts l’affligé
na sua branca Flictus
solidão dans sa blanche
solitude.

No recorte seguinte, o verbo em terceira pessoa do plural – “deixaram” –


ressurge no texto em francês como ils abandonnèrent, ainda conjugando o verbo no

21
Assonância: figura de linguagem que consiste na repetição de sons de vogais em um verso ou em uma frase.
60

passé simple. Convém esclarecer que o pronome pessoal junto ao verbo (neste
caso, ils) é sempre imprescindível na língua francesa. Quanto à escolha semântica
do verbo abandonner flexionado em terceira pessoa do plural, fez-se com o intuito
de enfatizar o abandono do personagem. Atentou-se ainda para reescrever no texto
traduzido os sons aliterantes que se reproduziram de forma idêntica a do texto
original, ou seja, como um silvo, dada a função fricativa da consoante “f”. Também
foi levada a metáfora “na sua branca solidão” que figura assim: dans sa blanche
solitude.

Mas Mais
Flicts Flictus
não se emendava continuait
(e por que à chercher sa place.
se emendar?) Pourquoi pas?
não era bom Il n’est pas bon
ser tão só d’être aussi seul.
e um dia Et un jour
foi procurar il sortit pour
um trabalho chercher du travail,
pra fazer le travail pourrait
a salvação peut-être le sauver :
no trabalho:

Neste trecho foi necessário inserir, mais uma vez, pontuação no texto de
chegada. Traduziu-se “Flicts não se emendava” para Flictus continuait à chercher sa
place e, a frase para “fazer a salvação no trabalho” por le travail pourrait peut-être le
sauver. Convém frisar que nas frases: “Mas Flicts não se emendava (e por que se
emendar?)”, que registra a veemente decisão do personagem em perseguir seu
objetivo, mesmo diante das maiores dificuldades, vem reescrita no francês de forma
mais clara com relação ao seu objetivo, que é “encontrar o seu lugar no mundo”:
Flictus continuait à chercher sa place. Pourquoi pas?

"Será que eu « Est-ce que je


não posso ter ne peux pas avoir
um cantinho une petite place,
ou uma faixa un bandeau
em escudo sur un bouclier,
ou em brasão un emblème,
em bandeira ou un blason
estandarte?" sur un drapeau
ou un étendard ? »

A pergunta, talvez indignada, do personagem “será (possível) que eu não


possa ter um cantinho[...]?” é reescrita: est-ce que je ne peux pas avoir une petite
place[...]? Para concluir este trecho foram feitas algumas pesquisas de termos
61

relativos à heráldica, que costumam ser coloridos: “escudo” ou bouclier; “brasão” ou


blason; “bandeira” ou drapeau; “estandarte” ou étendard.

“Não há vagas” « Il n’y a pas de place »


falou o Azul a dit Bleu.
“Não há vagas” « Il n’y a pas de place »
sussurrou o Branco a chuchoté Blanc.
“Não há vagas” « Il n’y a pas de place »
berrou o Vermelho a crié Rouge.

Nesta passagem o autor enfatiza o simbolismo das cores. O azul, que


representa a paz, apenas “falou”. O branco, mais discreto, “sussurrou”. E o
vermelho, sempre nervoso, “berrou”. Convém informar que mencionado simbolismo
é compreendido da mesma forma tanto no Brasil como na França, em função dos
traços em comum das duas culturas. Convém também lembrar que com relação aos
artigos definidos que precedem os nomes das cores, cuja função particulariza a cor
no sentido de que não se trata de uma cor qualquer, não estão presentes na
tradução em virtude de a gramática francesa não agasalhar referido uso diante de
substantivos próprios, como já mencionado anteriormente.

Mas Mais
existem mil des drapeaux,
bandeiras il y en a beaucoup
trabalho et beaucoup.
pra tanta Et il y en a beaucoup
cor de travail
e Flicts pour
correu les différentes
o mundo couleurs
em busca et Flictus
do seu a parcouru
lugar le monde
en cherchant
e
sa place,
Flicts
correu et
o mundo: Flictus
a parcouru
le monde :

Neste recorte não houve problemas com o texto e sua reescritura. “Mas
existem mil bandeiras trabalho pra tanta cor [...]”, por Mais des drapeaux, il y en a
beaucoup et beaucoup. Et il y en a beaucoup de travail pour les différentes couleurs
[...]
Questionou-se quanto à escolha entre les e des: pour les difféntes couleurs
ou pour des difféntes couleurs. Optou-se por les para referir-se às diferentes cores,
62

considerando que o artigo definido traz para o texto um tom de particularização, de


aproximação do objeto referido. E, na verdade, as cores são familiares aos leitores,
seja na cultura de partida, seja na cultura de chegada, sobretudo como personagens
deste texto que ora se lê e se traduz. Observe-se que na tentativa de reescrever o
texto-coluna em francês, não se conseguiu refrear o seu alongamento.

pelos países mais bonitos il a vu les pays les plus beaux


pelas terras mais distantes les terres les plus lointaines
pelas terras mais antigas les terres les plus anciennes
pelos países mais jovens et les pays les plus jeunes

Neste trecho, a reescritura, quanto à construção fraseológica inteiramente


nominal no texto em português, não foi levada para a versão em francês, sendo
essa passagem tecida somente com um verbo, na primeira frase. As ilustrações das
bandeiras dos países ajudam na compreensão da história. Il a vu corresponde a
“percorreu”.

Mas nem mesmo as terras Mais même les pays


mais jovens les plus jeunes,
as bandeiras mais novas les drapeaux les plus récents,
e as bandeiras ni tous les autres drapeaux,
todas même ceux qui
que ainda vão ser criadas sont encore à créer,
se lembraram de Flicts n’ont pas pensé à Flictus
ou pensaram em pour qu’il leur donne sa couleur.
Flicts para ser sua cor On ne lui accordait ni une étoile,
não tinham para ele ni un bandeau, ni même
uma estrela une inscription.
uma faixa
Rien
uma inscrição
dans le monde est Flictus
Nada et rien ne veux l’être.
no mundo é Flicts
ou pelo menos
quer ser

“Mas nem mesmo [...] se lembraram de Flicts ou pensaram em Flicts para ser
sua cor” – a correspondência em francês resultou numa frase mais simples qual
seja: [...] n’ont pas pensé à Flictus pour qu’il leur donne sa couleur. Neste trecho
ainda são citados alguns termos referente à assunto heráldica, o que demandou
alguma pesquisa. No parágrafo final reescreveu-se “ou pelo menos quer ser” como
et rien ne veux l’être.

O céu Le ciel,
por exemplo par exemple,
é Azul est Bleu,
63

é todo et la mer
do Azul o mar appartient toute au Bleu.
“Mas que sabe o mar « La mer... peut-être ?
quem sabe?” qui sait ? »
pensa Flicts agitado pense Flictus agité.
“O mar é tão inconstante” « La mer, elle est si changeante. »
“É cinzento « Elle est Grise, comme
se o dia é un imense
Cinzento como lac de plomb,
um imenso si le jour est Gris. »
lago de chumbo”
« Elle change
“E muda avec le soleil
com o sol ou avec la pluie :
ou com a chuva Noire,
Negro salée ou
salgado ou Rouge »
Vermelho
La mer,
O mar est si
é tão changeante.
inconstante Elle
tem tantas a toutes
cores les couleurs,
o mar la mer

Várias páginas falando do mar e da inconstância de suas cores. A maior


preocupação neste trecho foi a de reproduzir, na tradução, a disposição do texto em
relação às figuras, o tamanho das letras, bem como a linguagem poética.
Aconteceram inversões na ordem de algumas palavras, nada que mereça destaque.
Observe-se que “Negro”/Noire e “Vermelho”/Rouge são escritos com letra maiúscula
por se tratarem de nomes de cores, e que as cores neste livro são personagens. Já
“salgado”/salée, permanecem com letra minúscula, por serem adjetivos; e com
relação à frase “tem tantas cores” optou-se por reescrever da seguinte forma: elle a
toutes les couleurs.

Mas Mais aucune


para o pobre ne cède
do Flicts sa place
suas au pauvre
cores Flictus.
não dão
Et le pauvre
lugar
Flictus
E o pobre Flicts cherche quelqu’un
procura alguém qui serait son semblable,
para ser seu par son compagnon,
um companheiro son ami, son frère
um amigo um irmão pour le compléter.
complementar
Il cherche partout, dans
em cada
tous les jardins, dans
praça ou jardim
toutes les rues et à
64

em cada chaque coin de rue :


rua e esquina: « Est-ce que je peux être
“Eu posso ser seu amigo?” ton ami ? »

Como em trechos anteriores houve a necessidade de inserir pontuação e de


separar as frases para melhor expressar a mensagem do texto.

“Não” « Non »
avisa o Vermelho interdit Rouge.
“Espera” « Attends »
o Amarelo diz dit Jaune.
“Vai embora” « Vas-t-en »
lhe manda o Verde ordonne Vert.

e mais uma vez sozinho o pobre Flicts et encore une fois Flictus s’en va tout
se vai seul...

Aqui cada uma das cores possui sua personalidade, de acordo com a sua
função nos sinais de trânsito, que são as mesmas, aqui ou na França. Facilmente
compreensível.

UM DIA FLICTS PAROU UM JOUR FLICTUS S’ARRÊTA


e il
parou cessa
de de
procurar chercher

As letras grandes enfatizam a mensagem de que algo importante acontece.


Na tradução, a súbita atitude do personagem é enfatizada também pela utilização do
passé simple, tempo verbal mantido na frase seguinte. Observe-se a supressão do
conectivo “e” e a inclusão do pronome “il”. Ressalte-se que o verbo arreter, neste
caso, é pronominal.

Olhou pra longe Un jour


bem longe Flictus
e foi subindo a regardé au loin,
subindo puis il a commencé
E foi ficando à s’élever.
tão longe
Il est monté,
e foi
monté
subindo e sumindo
de plus en plus
e foi haut,
sumindo et petit à petit
e il s’est eloigné
sumindo
et il a disparu
sumiu
Il a disparu
Sumiu et même
que o olhar mais agudo l’oeil le plus perçant
65

não podia advinhar n’aurait pu


para onde tinha ido le distinguer.
para onde tinha fugido
Personne ne sait
em que lugar
où est allé se cacher
se escondera
le faible,
o frágil e feio e aflito
l’affreux et
Flicts
l’affligé
Flictus.

O texto traduzido inicia-se por un jour, repetindo o início da página anterior na


intenção de continuidade da ação. O formato do texto com seus espacejamentos
entre as palavras e seu posicionamento entre as ilustrações respeitam o formato do
livro original, em busca de que o texto seja melhor apreendido pelo público-alvo, pois
a linguagem das cores e das ilustrações é muito significativa neste livro

E hoje Et aujourd’hui,
com o dia claro dans la journée, par temps clair,
mesmo com o sol muito alto quand les rayons de la Lune rivalisent
quando a Lua vem de dia avec l’éclat du soleil
brigar com o brilho do sol la Lune est Bleue.
a Lua é Azul
Quand la Lune
Quando a Lua apparaît
aparece au loin sur la
- nos dias das mer par une
tardes de outono - belle soirée
do outro lado do mar d’automne,
como uma bola de fogo telle une
ela é redonda boule de feu,
e Vermelha elle est ronde
et Rouge.
E nas noites
muito claras Quand la nuit sans
quando a noite é toda dela nuage lui appartient
a Lua é de prata e ouro toute entière,
enorme bola la Lune est d’or et
Amarela d’argent,
c’est un grand disque
Jaune.

Neste trecho, ao falar da variação de cores da lua, a preocupação foi


reproduzir na tradução a linguagem poética utilizada pelo autor no original.
Observando-se que o texto em francês á mais longo.

MAS MAIS
NINGUÉM PERSONNE
SABE NE
A CONNAÎT
VERDADE LA
(a não ser VERITÉ
os astronautas) (sauf les
astronautes)
que
de perto mais
66

de tout près,
pertinho tout près...
a Lua é Flicts la Lune est Flictus

Chegou-se ao final da tradução trazendo-se literalmente a surpreendente


revelação de que a lua é Flicts, fato confirmado por Louis Armistrong, o primeiro
homem a pisar na Lua:

Figura 5: Confirmação de Neil Armstrong de que a Lua é realmente Flicts.

Quando Neil Armstrong – o primeiro homem que Quand Neil Armstrong – le premier homme à
pisou na Lua - veio ao Rio de Janeiro, contei-lhe avoir posé le pied sur la Lune – est vennu à Rio
a história de Flicts e ele me confirmou que a Lua de Janeiro, je lui ai raconté l'histoire de Flictus et
era, realmente, FLICTS. il m'a confirmé que la Lune était, vraiment,
FLICTUS.
Ziraldo Ziraldo
67

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentou-se e analisou-se a tradução do livro Flicts, de Ziraldo, do


português do Brasil para o francês da França.
Preliminarmente, enfatizou-se a importância da tradução como instrumento de
comunicação e de transmissão do conhecimento, observando-se que, embora a
questão da fidelidade venha sendo discutida desde a antiguidade, apenas no século
XX a tradução passou a ser estudada cientificamente.
Mostrou-se que os primeiros a estudá-la pretenderam também normatizá-la e
que apenas mais recentemente, cientistas como Toury e Lefevère buscaram
entender e estudar a tradução sob outros aspectos. Lefevère vê a tradução como
uma reescritura que busca aproximar o texto original da cultura de chegada; também
a relaciona com as questões “poder”, “ideologia”, “instituição” e “manipulação”,
possibilitando assim uma compreensão mais ampla do contexto de cada tradução.
Em seguida traçou-se um breve histórico da literatura infanto-juvenil no
mundo e no Brasil, destacando alguns autores nacionais, em especial Ziraldo, o
autor de Flicts. Relatou-se que a literatura infantil nasceu no oriente, antes de
Cristo, conhecida como “lições de sabedoria”, e que chegou à Europa transformada
em “contos populares”, transmitidos oralmente, numa época em que não se
distinguia a criança do adulto. Mostrou-se também a mudança do papel da criança
na sociedade, em fins do século XVII e começo do século XVIII, o que fez nascer a
“literatura infantil”, através das penas de autores como Perrault e Grimm. Essa
literatura “atravessou” o oceano e chegou ao Brasil oralmente com os colonizadores
e, mais tarde, através dos livros portugueses, muitos deles traduzidos do francês.
Enfatizou-se que apenas no século XX nasceu a literatura infantil brasileira, através
de Monteiro Lobato, seu maior representante e que, após Lobato surgiram outros
grandes autores, como Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, as duas ganhadoras
do prêmio maior de literatura infantil, o Prêmio Hans Christian Andersen,
Destacou-se que Ziraldo foi indicado, por três vezes consecutivas (em 1988,
1990 e 1992) para o Prêmio Hans Christian Andersen, fato que já o consagra
como grande escritor do gênero. Além disso, fica claro no texto, que o autor destaca-
se também em várias outras atividades, como desenho, pintura, charge, jornalismo,
entre outras, além de ter desempenhado um importante papel na luta contra a
ditadura militar, sendo ainda hoje um respeitado formador de opinião.
68

Seguiu-se a análise do livro Flicts, destacando-se o seu conteúdo e sua


trajetória editorial no Brasil e no mundo; descrevendo-se em seguida o passo-a-
passo dos procedimentos da sua tradução.
A tradução, realizada de acordo com noção de reescritura de Lefevère,
orientou-se no sentido de aproximar-se da cultura-alvo, visando-se como público a
criança francesa.
Antes de analisar-se a tradução da obra, analisou-se a opção de não traduzir
o título, mas adaptá-lo para que ele pudesse vir a ser pronunciado por um falante de
língua francesa, considerando-se principalmente a intenção do autor ao dar ao livro
o título de Flicts, buscando-se contextualizar essa intenção na língua de chegada.
Em seguida, sempre comparando o texto em português com sua tradução em
francês, analisaram-se, explicaram-se e justificaram-se as escolhas feitas. A
aproximação entre as duas línguas e as duas culturas facilitou o trabalho, mesmo no
trecho onde necessariamente exigiu-se a aliteração em “F”, por exemplo. Houve
momentos, porém, em que a cultura de chegada desconhecia determinados termos
ou expressões, optando-se por supressões ou pela utilização de outros termos
sonoramente semelhantes ou não.
Em outubro de 2010 foi realizada uma seção de leitura desta tradução para
nove crianças francesas, sendo oito delas entre 6 e 10 anos e uma de cinco anos de
idade, na cidade de Évry, França. Sylvianne Bigan, a conteuse, considerou
satisfatório o resultado desta seção, conforme o trecho a seguir, extraído de seu
relato sobre a leitura do texto traduzido:

[...] quant aux enfants, ils semblent avoir « compris » selon leur sensibilité,
sans manifester une quelconque interrogation et sans perte d’intérêt [...]
L’intérêt des plus jeunes a été soutenue, car les enfants sont sensibles à la
solitude, à l’injustice, à la difficulté de trouver sa place [...] souvenir des
cours de récréation [...]

A partir das considerações de Mme. Bigan, embora tenha sido uma única
experiência e com um número pequeno de crianças, acredita-se que a tradução
cumpriu seu objetivo de ser compreendida por seu público-alvo. Pretende-se
verificar esta hipótese, dando continuidade aos estudos aqui iniciados, em um curso
de mestrado.
69

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Disponível em <http://www.tvbrasil.org.br/abzdoziraldo>. Acesso em: 5 fev. 2011.

ZIRALDO, 2011b. Blog do Ziraldo. Disponível em : <http://ziraldo.blogtv.uol.com.br>.


Acesso em: 5 fev. 2011.

ZIRALDO, 2010a. Site do Menino Maluquinho. Disponível em


<http://www.meninomaluquinho.com.br>.
Acesso em 02 set, 2010.

ZIRALDO, 2010a. Site do Ziraldo.


Disponível em <http://www.ziraldo.com>. Acesso em 02 set, 2010.

FNLJ. Site da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil


Disponível em:
<http://www.fnlij.org.br/imagens/primeira%20pagina/indicados%20hca.pdf>.
Acessível em: 20 abr. 2011.
72

APÊNDICE
73
74

Il était une fois une couleur


très rare et très triste
qui s’appelait Flictus
75

qui
n’avait
pas la
force
de
Rouge

ni la grande luminosité de Jaune

ce n’était que
le faible,
l’affreux
et l’affligé
et n’avait pas non plus
Flictus
l’apaisement de Bleu
76

Dans le monde tout a sa couleur,


tout dans le monde est
Bleu
Rose
ou Irisé,
Rouge ou
Jaune,
presque tout a sa tonalité
Grenat,
Violet ou Lilas.
Mais,
il n’existe rien de Flictus au monde,
rien d’aussi solitaire
rien qui soit Flictus.
Flictus n’a jamais eu de semblable.
Il n’y a jamais eu de place pour lui
dans un endroit bicolore
et pas davantage dans un endroit tricolore.
Non,
vraiment,
il n’existe de Flictus au monde.
rien qui soit Flictus.

Rien qui soit Flictus


77

À l’école, il y a une boîte


pleine de crayons de couleur
pour colorier des paysages,
des maisonettes, des haies,
et des toits; Là,
des arbres, des fleurs et des chemins il n’y a
des lacets, des guirlandes pas
et des rubans. de place
pour
Flictus.

Quand revient
le printemps,
le parc et
le jardin tout entier
se couvrent
de couleurs.

Aucune de ces
couleurs,
ni personne,
ne veut
jouer
avec
le pauvre Flictus.
78

Un jour,
après la pluie Grise,
il a vu, « Est-ce que je peux jouer au balon ?
une bande joyeuse de couleurs Est-ce que je peux jouer à colin-maillard ?
qui sortaient
Est-ce que je peux jouer à cache-cache ?
en recréation.
Est-ce que je peux jouer avec vous... ? »
Et il s’est approché
pour jouer aussi :

Mais personne ne l'a vraiment regardé

Et chacun lui a dit tour à tour


une courte phrase :
79

« Il est beau le numéro sept » a dit Rouge en rougissant

« Il n’y a pas de place pour toi » a dit Orange

« Va chercher un miroir » a dit Jaune

« Nous sommes une grande famille » a dit Vert

« Il faut veiller à notre réputation » a dit Bleu

« Ne bouscule pas les traditions » a dit Indigo Et les septs couleurs


se donnèrent la main
et commencèrent
« S’il te plaît, tâche de ne pas modifier l’ordre naturel une ronde.
des choses » a dit Violet avec violence Et ils tournèrent en rond,
en rond, en rond...

Et de nouveau
ils abandonnèrent
le faible,
l’affreux et
l’affligé
Flictus
dans sa blanche
solitude.

et ils tournèrent, et ils tournèrent,


ils tournèrent , ils tournèrent ils tournèrent , ils tournèrent
80

Mais
Flictus Mais
continuait des drapeaux,
à chercher sa place. il y en a beaucoup
« Il n’y a pas de place » et beaucoup.
Pourquoi pas?
Il n’est pas bon
a dit Bleu. Et il y en a
d’être aussi seul. beaucoup
Et un jour de travail
il sortit pour pour
chercher du travail, les différentes
le travail pourrait couleurs
peut-être le sauver : et
« Il n’y a pas de place » Flictus
« Est-ce que
je peux avoir a chuchoté Blanc. a parcouru
une petite place, le monde
un bandeau en cherchant
sur un bouclier, sa place,
un emblème,
et
un blason
Flictus
sur un drapeau
« Il n’y a pas de place » a parcouru
ou un étendard ? » « Il n’y a pas de place »
a crié Rouge. le monde :
a crié Rouge.
81

il a vu les pays les plus beaux les terres les plus lointaines

les terres les plus anciennes et les pays les plus jeunes
82

Mais même les pays


les plus jeunes,
Le ciel,
les drapeaux les plus récents par
ni touts les autres drapeaux, exemple,
même ceux qui est Bleu
sont encore à créer,
n’ont pas pensé à Flictus
pour qu’il leur donne sa couleur.
« La mer... peut-être ?
qui sait ? »
On ne lui accordait ni une étoile,
pense Flictus agité
ni un bandeau, ni même
une inscription.
et la mer
Rien appartient
toute
dans le monde est Flictus
au Bleu.
et rien ne veux l’être.

« Elle est Grise,


comme
un imense
lac de plomb,
si le jour est Gris »
« La mer, elle est si changeante »

Et le pauvre
La mer, est si Flictus
changeante. cherche quelqu’un « Non »
Elle a toutes les qui serait son interdit Rouge

« Elle change couleurs, semblable,


la mer. son compagnon,
avec le soleil son ami, son frère « Attends »
ou avec la pluie Mais aucune pour le compléter. dit Jaune
ne cède
Noire, Il cherche partout,
sa place au
salée ou pauvre dans tous les jardins,
dans toutes les rues
Rouge » Flictus
et à chaque coin de
« Vas-t-en »
ordonne Vert
rue : « Est-ce que je
peux
et encore une fois il s’en va être
tout ton ami ? »
seul...

et encore une fois il s’en va tout seul...


83

et
il
cessa
UN JOUR FLICTUS S’ARRÊTA de
chercher

Un jour
Flictus
a regardé Il a disparu
au loin, et même
puis il a l’oeil le plus perçant
commencé n’aurait pu le
à s’élever. distinguer.

Il est monté, Personne ne sait


monté où est allé se cacher
de plus en plus le faible,
haut l’affreux et
et petit à petit l’affligé
il s’est eloigné Flictus.

et il a disparu
84

Et aujourd’hui,
dans la journée, par temps clair,
quand les rayons de la Lune rivalisent
avec l’éclat du soleil
la Lune est Bleue.

Quand la
Lune apparaît
au loin sur la
mer par une
belle soirée
d’automne,
telle une
boule de feu,
elle est ronde
et Rouge.

MAIS
PERSONNE mais
tout près,
NE tout près...

CONNAÎT
LA
Quand la nuit sans VERITÉ
nuage lui appartient (sauf les
toute entière, astronautes)
la Lune est d’or et
d’argent, c’est un
grand disque
Jaune.
85

la Lune est Flictus

Quand Neil Armstrong – le premier homme à avoir posé le pied sur la Lune – est vennu à
Rio de Janeiro, je lui ai raconté l'histoire de Flictus et il m'a confirmé que la Lune était,
vraiment, FLICTUS (Ziraldo).
86

ANEXO
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91
92
93
94

B277d Barroso, Marta Maia Fernandes


De Flicts a Flictus: percursos e percalços de uma tradução /
Marta Maia Fernandes Barroso. - Fortaleza, 2011.
71p.

Orientadora: Profa. Ms. Gleyda Lucia Cordeiro Costa Aragão.


Monografia (Especialização em Formação de Tradutores). -
Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades.

1. Literatura infantil 2.Tradução 3.Reescritura. I.


Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades.

CDD: 418.02

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