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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – FFLCH

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS – DLM

TEORIA E PRÁTICA DA TRADUÇÃO:


Diálogos (Im)possíveis

Monografia de Encerramento da disciplina Tópicos


da Teoria da Tradução
Curso de Especialização em Tradução – Alemão
Prof. Francis Henrik Aubert
Aluno: Peterso Roberto Rissatti

São Paulo
2004/2005
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Aos meus pais, que sempre acreditaram em mim.

Aos que me acompanham diariamente, seja de longe ou

de perto, nessa paixão que é a tradução.

A Dinaura Julles, tradutora competente e anjo da guarda.


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La dernière translation (Homenagem à Sociedade

Brasileira de Tradutores): Quando morre um velho

tradutor / Sua alma, anima, soul, / Já livre do

cansativo ofício de verter / Vai direta para o céu, in

cielo, to the heaven, au ciel, in caelum, zum himmel,/

Ou pro inferno, Holle, dos grandes traditori?/ Ou um

tradutor será considerado / In the minute hierarquia do

divino (himm’lisch) / Nem peixe nem água, ni poisson

ni l’eau, / Neither water nor fish, nichts, assolutament

niente? / Que irá descobrir de essencial / Esse mero

intermediário da semântica / Corretor da Babel

universal? / A comunicação definitiva, sem palavras? /

Outra vez o verbo inicial? / Saberá, enfim!, se Ele fala

hebraico / Ou latim? / Ou ficará infinitamente no

infinito / Até ouvir a Voz, Voix, Voce, Voice,

Stimme, Vox, / Do Supremo Mistéiro partindo do

Além/Voando como um pássarobirduccelopájarovogel

/ Se dirigindo a ele em... / E lhe dando, afinal, / A

tradução para o Amém?

Millôr Fernandes
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SUMÁRIO

Introdução.......................................................................................................................................6

1. A Teoria sem a Prática...............................................................................................................8

2. A Prática sem a Teoria.............................................................................................................11

3. O Diálogo entre Teoria e Prática............................................................................................13

4. Atuais Rumos da Teoria e da Prática da Tradução..............................................................16

4.1. Desconstrução, (In)fidelidade e Tradução Estrangeirizadora: novas discussões de antigos

problemas...................................................................................................................................16

4.1.1 Desconstrução....................................................................................................................16

4.1.2 A questão da (in)fidelidade...............................................................................................18

4.1.3 Estrangeirização X Domesticação.....................................................................................19

4.2. Mercado de Tradução, Memórias de Tradução, Agências................................................21

Conclusão......................................................................................................................................24

Bibliografia....................................................................................................................................25
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Introdução

Desde o início da teorização e dos estudos tradutológicos uma pergunta assola tanto aos mais
ferrenhos teóricos do processo tradutório quanto aqueles que exercem a profissão de tradutor sem
levar em consideração o que se discute sobre a tradução: há alguma possibilidade de teóricos e
práticos trabalharem em conjunto, em busca do ideal de tradução (se houver esse ideal)? Ou
mesmo, há alguma possibilidade de diálogo entre teoria e prática, diálogo esse que se faz cada
vez mais necessário?
Seria por demais ingênuo tentar responder a essas questões em um trabalho
despretensioso como o presente. Essas são questões que as novas gerações de tradutores e
pesquisadores herdam de seus predecessores, ainda sem respostas consistentes. Assim, é objetivo
deste trabalho a discussão dos diálogos (im)possíveis entre a teoria e a prática da tradução, que
deveriam ser lados da mesma moeda, porém são ainda tratadas quase como antagonistas no
cenário da tradução.
Os cursos de tradução, nos formatos hoje conhecidos, dão margem ao crescimento da
distância entre prática e teoria. Durante o curso de tradução, seja ele em nível de graduação ou
em nível de pós-graduação, nos deparamos com discursos diversificados sobre o árduo processo
de tradução e também sobre os diferentes métodos e diretrizes para se colocar em prática o fazer
tradutório. Em ambos os níveis, há geralmente um tratamento desvinculado de teoria e prática. Os
egressos de faculdades de tradução reconhecem que são duas disciplinas tratadas de maneira iso-
lada, sem uma convergência necessária para a conscientização da produção de tradução. E o pró-
prio estudo da tradução, que poderia ser uma disciplina independente, é tratado marginalmente
como uma subdisciplina enquadrada entre “lingüística e estudo de línguas” ou “estudos literários
e culturais” (Venutti, 2002).
Grande parte deste ‘legado’ das escolas de tradução se deve ao conceito ainda vigente de
teoria pela teoria, ainda sem vínculos e aplicação, que não é de todo gratuito, pois a Tradutologia
ainda se encontra em um estágio de identificação, de reconhecimento como disciplina indepen-
dente e de consolidação no mundo acadêmico. Esses esforços muitas vezes causam o desestímulo
daqueles que buscam o alento no embasamento teórico, pois não levam a respostas prontas ou
fórmulas mágicas de como se traduzir. Não sendo esse o objetivo primeiro da teorização, e sim o
de levantar questões, provocar a reflexão e a subseqüente conscientização sobre o processo tra-
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dutório, muitos dos alunos dos cursos de tradução e de pós-graduação em estudos tradutórios que
já são tradutores profissionais não prosseguem seus estudos, pois estes não os levam à panacéia
da tradução pronta.
Por sua vez os tradutores, sempre pressionados de maneira cruel por prazos, ainda com a
elevada exigência pela qualidade e a remuneração nem sempre satisfatória, não encontram o já
mencionado alento na teorização. Por vezes o efeito é de repúdio à teoria, como se esta não fosse
também uma ferramenta de aprimoramento de seu trabalho. Sem a teorização sobre a tradução e
de todo o seu processo, dificilmente o tradutor conseguirá aceitar reais desafios em sua profissão,
e seu instrumental resume-se “na melhor das hipóteses, (a) um acúmulo correspondente de “ma-
cetes”, de generalização sempre duvidosa” (Aubert, in Benedetti & Sobral, 2003).
Em uma análise superficial do apresentado acima, poderíamos dizer que a grande solução
seria aproximar a teorização da prática da tradução. Entretanto, por mais que os esforços para que
essa aproximação seja realizada, ainda não se colocou em evidência o quão benéfico ela seria
para ambos os lados. Tarefa árdua seria fazer essa convergência, pois ainda existe um grande
conflito entre aqueles que primam pela compreensão da arte/ofício tradutória/o e de seus desdo-
bramentos e aqueles que vivem o dia-a-dia da tradução. A teorização sobre como chegar a uma
produção mais eficaz da tradução, partindo não do princípio que o texto de partida é intocável,
mas da necessidade de um esforço de absorção, recodificação e reestruturação de um discurso já
existente, traz a conscientização para que os problemas do processo tradutório sejam avaliados e
discutidos. A aplicação ou o reconhecimento das diversas teorias no decorrer do ato tradutório
traz a segurança necessária e os parâmetros adequados para que o tradutor possa enfrentar os de-
safios inerentes à profissão.
A presente monografia, exigência da disciplina Tópicos da Teoria da Tradução, serve-se
de leituras e apontamentos feitos em sala de aula sobre o eterno embate entre prática e teoria,
numa tentativa de buscar, na breve experiência como tradutor e também na retomada da reflexão
como aluno, caminhos para uma cooperação produtiva entre os teóricos e os tradutores práticos.
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1. A Teoria sem a Prática


A tradução é uma das profissões mais antigas das quais se tem notícias, miticamente explicada
pela passagem bíblica da Torre de Babel, um símbolo da importância do ofício do tradutor e
também do seu enorme fardo: fazer a passagem de não somente dois (ou mais) idiomas, como
também duas (ou mais) culturas e nações, fazendo com que elas possam usufruir da
multiplicidade proporcionada pela variedade imensa de expressões dos povos. Nessa empreitada,
o tradutor enfrenta uma infinidade de problemas, dúvidas e temeridades, depara-se com conceitos
e preconceitos, vê-se às voltas com inúmeras possibilidades e também com o fantasma ainda não
desmistificado da ‘fidelidade’.
Entretanto, pouco ainda se estudou sobre a tarefa do tradutor. Essa árdua tarefa ainda é
considerada uma novidade, pois muitas vezes erroneamente se apresenta como um estudo vazio,
uma teoria pela teoria. A definição do campo no qual a tradução deve se encaixar, ou se deve ser
um estudo totalmente independente e interdisciplinar, abrangente, faz com que a teoria ainda
engatinhe, sem muita força para andar com as próprias pernas. Esse engatinhar ainda é lento, pois
se depara com a barreira da aplicação prática das teorias ou, sob outro prisma, da aceitação
daqueles que têm a tradução como profissão.
Dos vários motivos pelos quais a teoria e a prática ainda não dialogam com clareza é
como o teorizar a tradução é tratado no seu mais famoso meio de divulgação: a academia. As
faculdades de tradução, com seus cursos voltados para a formação de tradutores e intérpretes,
tratam teoria e prática não como complementos, mas sim como duas disciplinas separadas,
distantes, que não servem uma a outra. A teoria se encastela em torres de babel, e suas estruturas,
as postulações dos teóricos e estudiosos da tradução, são frágeis e permanecem sempre
escondidas sob uma espessa muralha que é a superficialidade dessa disciplina nas faculdades da
tradução. Obviamente, um ano de estudos dentro dos quatro anos da graduação não são
suficientes para cobrir tudo o que já se produziu sobre tradução. Porém, já nos primeiros passos
como futuros profissionais, se deveriam apresentar as postulações e obras dos teóricos e mostrar
onde e quando elas se aplicam (ou onde os fenômenos e problemas se apresentam) na prática da
tradução. Como egresso de uma faculdade de tradução, posso dizer que essa lacuna somente foi
preenchida quando do meu ingresso no curso de pós-graduação em tradução, no qual a retomada
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das teorias da tradução foi o ponto de partida para a reflexão e conscientização sobre os
problemas encontrados e dos variados fenômenos dentro do ato tradutório.
Esse é um ponto crucial na discussão da teoria sem a prática: a conscientização. De
acordo com Francis Aubert, em Conversa com Tradutores:

Da teorização nasce a conscientização (awareness). É a


partir da conscientização que se faz uma prática realmente
profissional, não escolar. É a teoria que permite encurtar o
caminho (...) e chegar mais rapidamente – e mais
articuladamente – àquelas percepções que a prática
desassistida da teorização somente tem como cristalizar os

aludidos macetes. (Aubert, in: Benedetti & Sobral, 2003)

Essa conscientização do ato tradutório e da ferramenta poderosa que é a teoria ainda não atinge
uma parcela significativa de tradutores, pois muitos não vêem na teorização uma arma contra o
fazer tradutório automático. Muitos se perguntam para que serve a teoria, a não ser para
escarafunchar problemas já resolvidos. Essa visão, que não se restringe aos práticos, mas também
aos estudantes de tradução, e penaliza todo o desenvolvimento da teoria, obrigando-a a crescer,
florescer e morrer na academia.
A Tradutologia é um campo ainda muito fértil para pesquisas e explanações, e também
uma área de estudo que precisa mostrar todo o seu valor não só entre aqueles que a produzem,
mas também àqueles que, de uma forma ou outra, estão ligado à tradução. Porém, a procura pelos
cursos de formação de tradutores, e até mesmo os de pós-graduação, geralmente atraem as
pessoas não por meio do conhecimento teórico e prático que se pode adquirir ao freqüentar esses
cursos, mas pela ilusão de que lá todos as dúvidas e problemas de tradução serão sanados. Em sua
conhecida obra Oficina de Tradução: A teoria na prática, Rosemary Arrojo dá um recado
àqueles que iniciam na longa jornada dos estudos tradutórios, e que deveria ser um aviso
obrigatório que todos os professores deveriam dar a seus alunos:

Ao considerarmos a tradução uma atividade essencialmente


produtora de significados, e ao considerarmos o trabalho do
tradutor pelo menos tão complexo quanto o do escritor de
textos “originais”, fica evidente que não pode haver
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fórmulas mágicas nem atalhos fáceis para se aprender a


traduzir. (Arrojo, 1992)

Assim, válida é toda a teoria que possa, de alguma maneira, induzir o tradutor, o leitor de
tradução ou todos aqueles que têm a tradução como objeto de estudo a essa conscientização, e
que possa ser um instrumento não só de conscientização própria sobre o ato tradutório, mas
também de força contra os ditames econômicos, culturais e sociais que assolam os profissionais,
contras as dificuldades da aceitação de uma justiça com relação ao trabalho do tradutor, não
somente no âmbito financeiro, como também no âmbito do respeito profissional. As novas
ferramentas de tradução, como os programas tradução auxiliada por computador (Computer
Aided Translation – CAT), que objetivavam facilitar e aumentar a capacidade de produção dos
tradutores tornam-se cada vez mais um vil algoz da capacidade de desenvolver estratégias
eficazes para enfrentar os desafios que se apresentam na profissão. O mercado, muito mais
competitivo, se apresenta hoje de forma bastante diferente do que há alguns anos. O cliente,
muito melhor preparado, sabe hoje avaliar, ainda que de forma precária, o trabalho. Dessa forma,
resta cada vez menos espaço para amadores no mercado de tradução. Não que eles irão se
extinguir, muito pelo contrário. Entretanto, o grau de exigência dos clientes cresce, na medida em
que os clientes que conhecem os idiomas traduzidos e também a tipologia textual podem, em
certa medida, avaliar o desempenho do tradutor. Por conseguinte se faz mais que necessário que o
tradutor possa defender o seu trabalho e suas escolhas, e ele não conseguirá facilmente se
proteger contra qualquer acusação de displicência ou falha no seu trabalho sem a conscientização.
O conhecimento da teoria, e não somente isso, a conscientização sobre o seu trabalho, são
pressupostos para que o profissional consiga esclarecer possíveis dúvidas que surgirem no texto
produzido por ele.
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2. A Prática sem a Teoria


Como o outro lado da moeda, a prática da tradução sem sua teoria apresenta-se como uma
constante entre os profissionais da tradução. A discriminação contra o tradutor ainda é muito
forte, pois pouco se conhece e se divulga sobre a profissão. Conhecidos como traidores ou como
simples conhecedores de um idioma que praticam o traslado de palavras de uma língua para
outra, os tradutores precisam provar a todo o momento que sua capacidade vai além do uso de
dicionários e de programas de auxílio de tradução. E, conforme já citado anteriormente, é muito
mais difícil mostrar ao leigo sem a teoria que o trabalho de tradução é árduo, permeado de
decisões complexas.
Entre os tradutores não há muita mudança deste quadro. Muitos deles, que na verdade se
dizem tradutores, conseguem ganhar muito com um trabalho descuidado, tecnicamente
despreparado e sem fundamentação suficiente para praticar o ato tradutório. Muitos profissionais,
mesmo agora sendo esse tipo de prática raro, fazem “bicos” como tradutores, pois são
especialistas nas áreas de conhecimento específicas e conhecem bem a terminologia do idioma de
partida daquela área. Alguns desses profissionais hoje procuram escolas de tradução, sejam elas
faculdades ou cursos preparatórios, para se equipar com algo que a vivência não proporciona:
uma visão consciente do ato tradutório. E ainda assim o esforço do tradutor em se aperfeiçoar e
buscar solidez para sua formação é bastante negligenciado pelo preconceito ainda vigente no
mercado. O trabalho do tradutor “poucas vezes é devidamente reconhecido (e muito menos
recompensado) embora, conforme já atestou Goethe, o tradutor seja o mediador perfeito entre as
culturas” (Theodor, 1976).
O mote “tradução se aprende na prática” acompanha muitas e muitas gerações de
tradutores. Inegável, esse fato se faz claro quando se experimenta o mercado, as exigências e
ditames dos clientes. Porém, com o advento das escolas e cursos preparatórios de tradução, o
acesso às teorias que, se não melhoram o desempenho e capacidade do tradutor, aumentam
significativamente o que o tradutor tem de mais precioso, o conhecimento, tornou-se muito mais
simples. Muitos tradutores não se interessam pela teoria, ou sequer têm conhecimento dela, pois
ainda há muito que progredir nesse âmbito.
Explicação plausível para esse desinteresse está no foco principal dos estudos
tradutológicos mais conhecidos: os textos editoriais, no sentido mais amplo da palavra (literatura,
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livros-texto para cursos de variadas ciências, textos filosóficos, de ciências políticas etc.). Esse
estudo restringe-se, se muito, a 5% da tradução efetivamente produzida, se comparada ao grande
volume de traduções técnicas e comerciais que são fornecidas diariamente às grandes empresas e
aos grandes escritórios de advocacia. Entretanto, há hoje uma convergência aos estudos
tradutológicos com o viés da tradução não-editorial, esta feita sob a pressão de um mercado
competitivo e da urgência que se impõe ao profissional que, por sua vez, precisa entregar um
trabalho com rapidez e qualidade.
Essa mudança de perspectiva se dá pelos estudos que se fazem para provar que, mesmo
fora do âmbito dos “textos sagrados e de literatura”, há muito que se discutir na Dolmetschen1, na
tradução mais pragmática, pois

(...) os textos são formas híbridas expostas à ação de um


número elevadíssimo de variáveis e a terminologia, longe de
ser estática, é dinâmica e admite uma margem de
subjetividade no tratamento de seu objeto. (Azenha, 1999)

A antiga visão da dita técnica se alterou, visto que até então era tratada como um paradoxo à
teoria da tradução, pois esta trabalha, hoje, com a subjetividade e a busca dos múltiplos
significados do discurso visto por vários prismas: do estudo dos gêneros, da psicanálise, da
política, dos preconceitos e, até mesmo, do ponto de vista do ato tradutório e de suas implicações
intrinsecamente lingüísticas. Crescem os estudos com tipologia textual específica, e com isso
também cresce o interesse dos tradutores técnicos pelo contato com essas teorias. Esse é um
passo importantíssimo para o até então impensado diálogo entre teoria e prática, pois começa
florescer uma nova visão de teoria da tradução e, por conseguinte, uma nova conscientização dos
tradutores que estão fora do eixo editorial.

1
Friedrich Schleiermacher (1768-1834), tradutor e ensaísta alemão, faz a diferenciação entre übersetzen, que seria a
recriação na língua-mãe, e dolmetschen, que seria a simples interpretação de um texto. Para maiores detalhes, v. John
Milton, Tradução: Teoria e Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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3. O Diálogo entre Teoria e Prática

Até agora, com a breve exposição sobre alguns dos motivos pelos quais a prática e a teoria são
ainda tão díspares e conflitantes, ainda não levantamos a questão à qual se propõe este trabalho:
como seria um diálogo entre teoria e prática e até que ponto a teoria deveria influenciar a prática
e vice-versa? Quais serão os moldes (se houver) desse diálogo tão esperado e tardio? Onde deve
começar esse diálogo?
Valho-me da feliz citação de Henrik Ibsen “Indago apenas, minha missão não é a de dar
respostas” (Aubert, in: Benedetti & Sobral, 2003), para começar a refletir sobre essas questões,
que não se apresentam para solucionar o problema do embate prática versus teoria, mas para
levantar mais indagações sobre esse problema, indagações estas que levarão paulatinamente a
rumos produtivos da cooperação entre teóricos e tradutores.
Uma das premissas para que esse diálogo funcione é a de que não pode haver
subordinação na relação entre teoria e prática. A inferência de uma deve ser, no mínimo, igual a
interferência da outra no ato tradutório. O trabalho acadêmico deve servir não só de apoio à
prática da tradução, uma vez que muitas traduções também são frutos da pesquisa dentro da
academia. E a prática, por sua vez, não deve regrar e normatizar a teoria, pois isso a empobreceria
de tal forma que ela se tornaria inócua aos problemas e dificuldades que assolam os tradutores.
De acordo com Aubert,

Será pura soberba acadêmica acreditar que o mercado e a


profissão deverão ater-se aos parâmetros da academia.
Representará um empobrecimento intolerável subordinar a
atividade da academia apenas à demanda por soluções
prontas para o exercício profissional. (2004?)

Isso mostra também o quanto é importante um trabalho conjunto, no qual as discussões sobre os
problemas de tradução merecem, para sua solução, uma visão prático-teórica, se isso for
possível. O que não significa que todo teórico deve ter como meta o exercício da profissão e, por
sua vez, nem todo profissional deve saber de cor os ensinamentos e teorias de Nida, Catford,
Campos e outros.
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Outra questão que se levanta: qual deveria ser a linha a seguir no diálogo entre teoria e
prática? Um grande passo para que a solução dessa questão começasse a tomar forma seria uma
união (efetiva) de teóricos e práticos, por meio de uma associação que realmente fizesse valer o
direito daqueles que vivem da profissão e proporcionasse àqueles que a estudam um ponto de
encontro de idéias e ideais. Sabemos que as instituições que se prestam a fazer isso hoje, se
muito, ditam algumas regras de preços e prazos, unem interesses próprios a belos discursos sobre
a prática de tradução, mas não lutam de maneira séria e compenetrada para que o verdadeiro
reconhecimento seja dado aos profissionais (e também aos teóricos) da tradução. A intenção
dessas instituições pode ser bastante honrada, porém pouco se faz para que realmente se faça
clara a importância do fazer tradutório para o dia-a-dia das pessoas. E as discussões e debates
poderiam começar nesse ambiente, onde teóricos e práticos se encontrariam não para um diálogo
de surdos e mudos, como ainda acontece hoje, mas para discussões realmente válidas, quiçá
mediadas por práticos que conhecem e/ou estudam e se interessam pela teoria, vendo-a como
uma ferramenta de trabalho tanto quanto dicionários e memórias de tradução, e por teóricos que
tenham como profissão também a tradução, seja ela literária ou não.
Na medida em que a tradutologia hoje encontra abrigo, ainda que incerto, nas faculdades
de letras e também nas escolas de tradução, estes seriam os lugares ideais para se incutir a
mentalidade de conscientização da prática pela teoria nos ingressantes destas instituições de
ensino, e também de enriquecimento da teoria por meio da prática. Os professores deveriam
proporcionar aos alunos, concomitantemente, a prática e a teoria como elementos
complementares, o que não é impensável nos dias de hoje, na era da informação. Os professores
de teoria e prática da tradução, trabalhando em conjunto, com trabalhos interdisciplinares e
atividades que levariam a reflexão, poderiam instigar a curiosidade dos futuros tradutores pela
teoria que fundamenta e auxilia na compreensão da produção de textos traduzidos. O convite à
reflexão pelos professores, se feito de maneira interessante e sólida, apresentaria novas
possibilidades de discussão em torno do ato tradutório e, com isso, profissionais mais bem
preparados (ao menos intelectualmente) entrariam no mercado.
Certamente, das questões acima apresentadas surgirão outras, que suscitarão mais e mais
indagações, e cada uma delas a reflexões a serem debatidas e implementadas. Para isso, é preciso
que também que os teóricos estejam sempre a par do desenvolvimento tecnológico que a
tradução hoje demanda, bem como os práticos mais afeitos das idéias e participantes nos debates
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em torno do que já foi discutido e encontrado no métier acadêmico. A convergência destes dois
pontos de vista pode ser a chave para um diálogo enriquecedor para a compreensão, primeiro, da
eterna luta entre prática e teoria, e depois para a utilização dessa visão para formação de futuros
profissionais de prática e ensino mais capazes.
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4. Atuais Rumos da Teoria e da Prática da Tradução


Na primeira parte deste capítulo, serão apresentadas de maneira breve algumas das discussões e
observações feitas durante o semestre na disciplina Tópicos da Teoria da Tradução, bem como a
retomada das teorias já aprendidas com as leituras indicadas e outras que envolvem a teoria da
tradução. A segunda parte será tanto uma visão como um depoimento de um aluno ingressante do
curso de Especialização em Tradução com experiência relativamente breve no agressivo e
incostante mercado da tradução mais pragmática ou estritamente comercial.
Vale ressaltar que esses apontamentos lidam com o reinício de uma reflexão sobre teoria
iniciada há alguns anos na Faculdade Ibero-Americana (atual UNIBERO) e uma exposição de
uma visão pessoal da prática de tradução e de trabalho com textos (revisão, copidesque etc.) em
agências e editoras.

4.1. Desconstrução, (In)fidelidade e Tradução Estrangeirizadora:


novas discussões de antigos problemas

4.1.1 Desconstrução

A desconstrução, movimento filosófico-literário criado por Jacques Derrida, foi também aplicado
na teoria da tradução para enfrentar o problema da invisibilidade do tradutor e do fardo que o
tradutor carrega pelos preconceitos que ainda rondam a profissão. No Brasil, uma das mais
famosas teóricas que se utilizam do conceito de desconstrução no âmbito tradutório é Rosemary
Arrojo. Em seu livro, Tradução, desconstrução e psicanálise ela mostra a que se presta o
movimento de desconstrução no campo da tradutologia e incita uma nova visão da tradução. De
acordo com Arrojo

Somente a partir da conscientização desses profissionais acerca do


poder autoral que exercem e da responsabilidade que esse poder
implica, as relações perigosas que têm organizado tradutores e
traduções poderão se tornar mais honestas. Da mesma forma,
dependerá dos pesquisadores e estudiosos da área o reconhecimento
da legitimidade de seu objeto de estudo e a abertura de espaços
próprios para ele em cursos universitários e de pós-graduação e
pesquisa (1993).
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O conceito de “original” ditado pelo denominado (por vezes pejorativamente) pensamento


logocêntrico, que é intocado e nunca poderá ser alcançado pelos esforços da tradução, é
confrontado pela impossibilidade de recuperar o “original”, a partir do momento que cada leitura
tem condicionantes culturais, psicológicos, temporais etc., e o próprio “original” não é o mesmo
a cada leitura. Sendo a tradução também uma leitura, o tradutor não deve carregar os epítetos
“infiel”, pois

Se toda tradução “falha” ao tentar reproduzir a totalidade de


seu “original”, é exatamente porque não existe essa
totalidade como uma presença plasmada no texto e imune à
leitura e à mudança de contexto (...) desestabilizando, assim,
a concepção logocêntrica de origem e plenitude (...).
(Arrojo, 1993)

A tradução como Aufgabe, tarefa e impossibilidade (desistência), parte do princípio de que o


objeto tradutório ao qual anseia o pensamento centrado no logos, ou seja, uma transmissão
fidelíssima de original para tradução como se o original fosse escrito na língua de chegada, leva
a uma impossibilidade tradutória. Para que o tradutor pudesse produzir uma tradução como uma
“reprodução total do original, livre de qualquer suposta ‘infidelidade’ ou ‘desvio’ (idem), ele
teria que dispor de um conhecimento totalmente impossível de se obter e de uma
biculturalidade/um bilinguismo quase sobrehumano.
Essas reflexões sobre desconstrução são o primeiro passo (aliás, já uma grande
caminhada) para a conscientização do fazer tradutório e de uma real discussão acerca de
imposições práticas e teóricas feitas aos profissionais da tradução. Partindo do princípio que
nenhuma tradução é única e verdadeira, pois depende de infindáveis condicionantes na sua
produção, o peso do traduzir ficou um pouco menos sofrido. Não que seja possível abandonar
todos os pressupostos que até agora nos acompanharam, pois estes serviram (e ainda servem) de
base para inúmeras discussões bastante produtivas. Porém, a desconstrução abriu muitos
caminhos para a evolução da reflexão sobre a prática da tradução e de seus desdobramentos. Ao
saber que cada leitura deriva um novo texto, como o rio de Heráclito nunca será o mesmo, há de
se pensar e refletir antes de criticar um texto traduzido: quais os condicionantes que levaram o
tradutor àquelas escolhas? Qual a intenção do tradutor com aquela obra? A tipologia textual
18

atinge ao público-alvo da tradução? Essas e outras questões passam a ser fundamentais para que
possamos nos livrar do ranço da antiga teoria e dar vazão a um avanço da tradutologia.

4.1.2 A questão da (in)fidelidade

Ainda conhecido como problema central da tradução, especialmente para quem tem
conhecimento superficial ou nenhum das teorias da tradução, é a fidelidade com relação ao
original. Antiga questão, porém sempre em evidência, a fidelidade não é facilmente definida
entre os teóricos.
Tanto nas discussões em sala de aula quanto em seus textos, Francis H. Aubert discorre
sobre a (in)fidelidade da tradução partindo do princípio que o ato comunicativo é composto por
mensagens que se transformam de acordo com a emissão e recepção: “a mensagem pretendida,
que é aquilo que o emissor quis dizer; a mensagem virtual, que é o conjunto de leituras possíveis
a partir da expressão lingüística efetivamente produzida, e a mensagem efetiva, que se realiza na
recepção, na leitura pelo destinatário” (Mittmann, 2003).
Sendo o tradutor um instrumento múltiplo dentro do ato comunicativo
(Receptor/Decodificador/Emissor), deve ser levado em conta a sua influência (a) no momento da
recepção, ou seja, da leitura do texto, sobre a qual já são colocadas muitas das impressões que ele
tem do texto; (b) no momento da decodificação, ou seja, quando da realização da tradução, na
qual a escolha do léxico, das intenções percebidas do autor, dos condicionantes culturais, das
necessidades de ajustes e escolhas feitos pelo tradutor etc.; (c) na recepção dessa decodificação
(emissão) pelo leitor final, que, além das impressões do tradutor com relação àquela obra, terá
também suas próprias conclusões acerca daquela tradução.
Nesta reflexão chega-se ao ponto de que não se acreditar mais na existência da fidelidade,
pois a influência de terceiros sobre o texto “original” certamente já deturpou o texto do autor.
Porém, qualquer ato de comunicação é também um ato de tradução, de interpretação de um texto
(ou mensagem), que não está imune a interferências externas, a ruídos. Não podemos falar de
fidelidade ao “original” quando existem várias situações comunicacionais que trazem inúmeras
intempéries no seu trajeto, mas sim em fidelidade à

“mensagem efetiva que o tradutor apreendeu, experiência


individual e única, não reproduzível por inteiro nem mesmo
19

pelo próprio leitor/tradutor, noutro momento e/ou sob outras


condições de recepção” (Aubert, 1989 in: Mittmann, 2003)

O tradutor, por sua vez, deixa de ser um mero instrumento de transferência de palavras de uma
língua para outra, e torna-se um “agente, elemento ativo, produtor de texto, de discurso” (id.,
ibid.). O estigma de mal necessário e a obrigação de apagamento do tradutor sucumbem à
valorização de um profissional ainda mal remunerado, não reconhecido e subjugado pelo senso
comum. Ao reclamar seu posto de agente ativo, produtor do texto traduzido, o tradutor faz a
tentativa de reconquistar o respeito a sua profissão e de conscientizar o grande público da
importância de seu ofício em todas as áreas, desde o manual do microondas até os complexos
postulados acadêmicos.

4.1.3 Estrangeirização X Domesticação

Nesta parte do trabalho valho-me de apontamentos feitos para o trabalho de resenha feito durante
o semestre do curso Tópicos da Teoria da Tradução sobre o livro Escândalos da Tradução, de
Lawrence Venutti, bem como recorro à própria obra para o desenvolvimento desta subseção.
Ums questão que inflama discussões entre teóricos atualmente é a da domesticação e
apagamento do tradutor, um método pregado desde sempre pelos antigos teóricos, como
Alexander Fraser Tyler, que pregava três princípios básicos de tradução, a saber:

“I. A tradução deve dar uma transcrição completa da obra


original. II. O estilo e a maneira de escrever devem ter o
mesmo caráter do original. III. A tradução deve parecer
como se tivesse sido escrita originalmente naquela língua.”
(Milton, 1998) (grifo nosso).

Nas obras de Venuti e na visão daqueles que seguem a linha “estrangeirizadora” há um levante
contra a domesticação das traduções, visto que, de acordo com o autor de Escândalos, essa
domesticação retira do texto original a capacidade de enriquecimento da língua-alvo e também
faz com que o tradutor fique sempre à sombra do texto-fonte. O autor defende a necessidade da
inclusão de resíduos2 nos textos traduzidos, além da necessidade de uma articulação maior do
2
Resíduos são as marcas culturais, temporais, institucionais etc. deixadas em um texto traduzido com o propósito de
(i) mostrar ao leitor que aquela mensagem não foi produzida na língua materna dele e que deve ser considerada
20

tradutor com relação às obras que traduz. Levantam-se também daí questões bastante intrincadas,
como a de autoria, fidelidade, jogos de poder envolvendo a tradução e a nova onda de
globalização iniciada no fim do século passado.
Muitas das teorias e discussões levantadas por Venuti são válidas partindo do princípio
que ele vive a realidade da língua dominadora (no caso, o inglês) em contraposição às línguas
dominadas. Neste sentido, podemos questionar a validade de sua luta com relação ao crescimento
cultural que as traduções, sejam elas domesticadas ou estrangeirizadoras, proporcionam às
línguas não hegemônicas. No que concerne esse ponto de vista, vale citar dois trechos que
acredito serem os principais objetivos da tradução:

“(...) a questão-chave não é simplesmente a estratégia


discursiva (fluente ou resistente), mas sempre sua intenção e
seu efeito – i.e., se a tradução tem como objetivo promover
a inovação e mudança cultural” (Venuti, 2002, p. 353);
“As editoras que lançam traduções amplamente
domesticadas das literaturas hegemônicas, assimilando-as
aos valores locais por meio de revisões (a Odisséia Twi),
podem facilitar a transição das tradições orais para as
literaturas modernas, sem dúvida uma mudança cultura
significativa” (idem, p. 354).

Esse objetivo, promover o crescimento de uma cultura, seja ela hegemônica ou em

desenvolvimento, já é motivo suficiente para que a tradutologia avance para a conscientização de

métodos, estratégias e peculiaridades da tradução, sem perder essa visão venutiana de respeito às

culturas mais consumidoras de tradução e, por conseguinte, mais influenciadas por ela.

estrangeira, no sentido de enriquecedora; (ii) fazer com que o trabalho do tradutor seja percebido nas obras em que
existam tais resíduos, aplicados de maneira diligente, que despertam uma consciência com relação à tradução.
21

4.2. Mercado de Tradução, Memórias de Tradução, Agências

Atualmente, o mercado de tradução cresce de maneira estrondosa, à medida que as fronteiras se


tornam cada vez mais tênues, ao menos do ponto de vista comercial e de relações internacionais
diversas. Não há empresa ou profissional que hoje prescinda dos serviços de um tradutor para
transmitir mensagens importantes para suas subsidiárias, fechar acordos e contratos, distribuir
peças processuais para análise, exportar e importar produtos com instruções em outro idioma,
produzir páginas de Internet com o intuito de facilitar estes últimos, entre outros usos da
tradução.
Esse crescimento fez com que profissionais da tecnologia de informação aprimorassem os
antigos bancos de dados terminológicos e tradutores automáticos até chegarem aos chamados
Programas de Tradução Auxiliada por Computador (Computer Aided Translation – CAT), hoje
conhecidos também por Programas de Memória de Tradução (Translation Memory – TM). Esses
programas têm como objetivos o aumento da produtividade dos tradutores mais pragmáticos, ou
seja, dos tradutores que lidam com as àreas técnicas em geral, e a uniformização e padronização
dos termos utilizados por ele na tradução, sejam eles determinados pelo próprio tradutor ou
definidos pelo cliente. A customização da tradução também é possível com esses programas, pois
neles se pode definir o estilo, a terminologia adequada e até mesmo a formatação preferida do
cliente.
Com todas essas vantagens trazidas pelos programas CAT, existem desvantagens e, se há,
quais seriam elas? Na visão de tradutores profissionais, que lidam com prazos cada vez mais
curtos e exigência por uma qualidade cada vez maior, os programas de memória de tradução são
uma verdadeira revolução nos antigos moldes de trabalhos. Muitos deles hoje trabalham somente
com esse novo instrumento, que para eles se tornou tão imprescindível quanto o dicionário e o
próprio computador. De pequenas cartas a relatórios financeiros imensos, todos os textos são
traduzidos dentro de memórias de tradução. Cresce também um mercado para essas memórias,
hoje ainda todas importadas, com preços que variam de pequenas fortunas em dólares até
quantias razoáveis em euros. Uma verdadeira sensação entre os profissionais de tradução,
independente da área em que atuam, as memórias de tradução vieram para conquistar a todos os
profissionais.
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Entretanto, do ponto de vista, digamos, teórico-prático, há algumas ressalvas quanto às


maravilhas proporcionadas pelas memórias de tradução. Em primeiro lugar, as memórias de
tradução somente serão efetivas se houver a disponibilidade de arquivo eletrônico, ou de um bom
escaneamente do documento enviado em hard copy pelo cliente. Muitos tradutores dizem que
esse tempo perdido com a digitalização dos textos em papel é compensado pela rapidez do
trabalho com a memória de tradução. Analisando financeiramente, poucos tradutores têm acesso
a uma gama tão grande de tecnologia, o que torna a maioria obsoleta. Ótimo tradutor, porém por
diversas razões incapaz de acompanhar os avanços tecnológicos, esse perfil é imediatamente
descartado do mercado “grande”, ou seja, do mercado das traduções comerciais.
Em segundo, a exigência feita pelas agência de tradução quanto ao uso das memórias de
tradução. Diversas empresas hoje somente aceitam tradutores que tenham um programa de
memória de tradução. O motivo é simples: a repetição das estruturas, construções e terminologias
de um texto enviado pelo cliente para o outro é a principal vantagem em matéria de tempo de
uniformização que estaria a favor do tradutor. Entretanto, as agências também possuem os
programas de memória de tradução que fazem um apanhado dessas estruturas e transforma em
dados estatísticos de repetição (matches), que são descontados do tradutor proporcionalmente à
similaridade do texto. O profissional de tradução hoje é pago geralmente por palavras (à exceção
de alguns escritórios e das editoras), e dessas palavras, sob as quais ele tem responsabilidade, são
descontadas as similaridades. Como profissional não filantrópico, o tradutor não irá também se
preocupar com aquelas incidências de similaridade, e seus esforços estarão centrados no que há
de novo em cada projeto. As inadequações de tradução nesse tipo de operação são bastante
provávais, visto que a revisão do texto ficará bastante prejudicada. Ao assumir, no segundo texto,
somente a responsabilidade pelo que é novo, o tradutor fica limitado a verificar somente alguns
trechos, sem se preocupar se aqueles trechos são pertinentes, se as construções já usadas ainda
são as mais adequadas e se o texto contém alguma incorreção terminológica para aquele caso.
Podemos dizer que isso é um caso extremo, mas com certeza bastante factível. Como
também são os erros nas gigantescas memórias de tradução usada por tradutores que, devido à
urgência sempre ser a palavra de ordem, não têm tempo suficiente para verificar as incorreções e
falhas em suas memórias, que se perpetuam na medida em que são utilizadas e reiteradas. Esse
exercício de reciclagem de memórias de tradução seria bastante proveitoso para ambos os lados,
caso o profissional de tradução pudesse ver proveito em deixar sua memória sempre afinada ao
23

seu próprio entendimento da área para a qual traduz e também às exigências de estilo. Porém é
sabido que isso pouco acontece, a não ser com profissionais de tradução conscientes de seu
trabalho e dispostos a mudar essa visão de ‘tradução de fábrica3’.
Diante do exposto, acredito que a teoria da tradução precisa hoje adequar sua visão para
os avanços tecnológicos. Todo o aspecto artístico da tradução foi, ao longo dos anos, se
transformando, dando lugar a uma profissionalização e a um desenvolvimento que não pode mais
ser deixado de lado. As discussões ideológicas e políticas acerca da tradução, se não se ajustarem
à visão tecnológica adquirida pelo trabalho do tradutor, acabarão por ser extintas ou relegadas
somente ao âmbito acadêmico, distanciando cada vez mais aqueles que pensam a tradução e
aqueles que realmente a praticam.

3
Para uma discussão mais aprofundada sobre a chamada tradução de fábrica, em especial no âmbito literário e
acadêmicos, ver MILTON, John. O Clube do Livro e a Tradução. Bauru: EDUSC. 2002, p. 88 et seq.
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Conclusão

Este trabalho teve como objetivo apresentar a questão dos diálogos (im)possíveis entre teoria e
prática da tradução que, a primeira vista, se mostram óbvios e necessários, porém, na realidade,
quando ele porventura se dá, acontece a duras penas.
Além de colocar a discussão sobre a prática e teoria, esta monografia trouxe algumas
reflexões sobre maneiras de realizar essa tarefa árdua de mostrar que teoria e prática são lados da
mesma moeda, ou seja, tanto o ofício se beneficia do que é discutido sobre ele como a teorização
cresce ao dar margem a discussões mais abrangentes da prática.
Também foram apresentadas algumas reflexões discutidas durante o semestre do curso
Tópicos da Teoria da Tradução, com a introdução de algumas abordagens teóricas sobre
conceitos que sempre geraram muitas discussões: fidelidade, desconstrução, estrangeirização.
Na esperança de suscitar reflexões sobre a união efetiva de prática e teoria, seja por meio
de uma nova visão de formação acadêmica de tradutores ou por uma renovação no enfoque dado
pelos teóricos (como analisar traduções mais pragmáticas, discutir o avanço tecnologico na área,
superar preconceitos e ranços passados, entre outros), este trabalho, como já mencionado, não
visa responder às questões concernentes à eterna luta entre teoria e prática, mas apontar alguns
pontos que poderiam ser considerados para esse objetivo.
Que este trabalho seja frutífero para futuras discussões (produtivas, esperamos) entre
teóricos e práticos, e que estes possam finalmente trabalhar em parceria
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Bibliografia
ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução. São Paulo: Ática, 2 ed., 1992.
_________________. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. São Paulo: Imago, 1993.
AZENHA, João Jr. Tradução Técnica e Condicionantes Culturais... São Paulo: Humanitas, 1999.
BENEDETTI, I.C. & SOBRAL, A. (orgs.).Conversas com Tradutores. São Paulo: Parábola,
2003.
FERNANDES, Millôr. Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos. Porto Alegre: L&PM, 2002.
MILTON, John. O Clube do Livro e a Tradução. Bauru: EDUSC, 2002.
_________________. Tradução. Teoria e Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MITTMANN, Solange. Notas do Tradutor e Processo Tradutório. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2003.
VENUTI, Lawrence. Escândalos da Tradução. Bauru: EDUSC, 2002. Trad.: Laureano Pelegrin,
Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo. R.T. Stella Tagnin.
THEODOR, Erwin. Tradução – Ofício e Arte. São Paulo: Cultrix, 1976.

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