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Adeus

Eugénio de Andrade

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, 


e o que nos ficou não chega 
para afastar o frio de quatro paredes. 
Gastámos tudo menos o silêncio. 
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, 
gastámos as mão à força de as apertarmos, 
gastámos o relógio e as pedras das esquinas 
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras 


e não encontro nada. 
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! 
Era como se todas as coisas fossem minhas: 
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! 


e eu acreditava. 
Acreditava, 
porque ao teu lado 
todas as coisas eram possíveis. 
Mas isso era no tempo dos segredos, 
no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
no tempo em que os meus olhos 
eram peixes verdes. 
Hoje são apenas os meus olhos. 
É pouco, mas é verdade, 
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras. 
Quando agora digo: meu amor..., 
já se não passa absolutamente nada. 
E no entanto, antes das palavras gastas, 
tenho a certeza 
de que todas as coisas estremeciam 
só de murmurar o teu nome 
no silêncio do meu coração. 
Não temos já nada para dar. 
Dentro de ti 
não há nada que me peça água. 
O passado é inútil como um trapo. 
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio


E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver quem é,
Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas
Despertas;
Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãos de pais e mães,
Andarem acossados pelas ruas
Como matilhas de cães;
Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espanto
Rasgado pelo grito da sereia estridente;
Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;
Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade.

António Gedeão, Linhas de Força

Todas as Cartas de Amor são Ridículas


 
       Todas as cartas de amor são
       Ridículas.
       Não seriam cartas de amor se não fossem
       Ridículas.

       Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 


       Como as outras,
       Ridículas.

       As cartas de amor, se há amor, 


       Têm de ser
       Ridículas.

       Mas, afinal,


       Só as criaturas que nunca escreveram 
       Cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.

       Quem me dera no tempo em que escrevia 


       Sem dar por isso
       Cartas de amor
       Ridículas.

       A verdade é que hoje 


       As minhas memórias 
       Dessas cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.

       (Todas as palavras esdrúxulas,


       Como os sentimentos esdrúxulos,
       São naturalmente
       Ridículas.)

Romance ingénuo de duas linhas Fazendo o que estava escrito:


paralelas
Caminhando eternamente de infinito a infinito
Duas linhas paralelas
Seguiam-se passo a passo
Muito paralelamente
Exactas e sempre a par
Iam passando entre estrelas
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é E com ele ali à frente

Se podiam encontrar As duas a murmurar

Falar e tomar café. Olharam-se docemente

Mas farta de andar sozinha E sem fazerem perguntas

Uma delas certo dia Puseram-se a namorar

Voltou-se para a outra linha Seguiram as duas juntas.

Sorriu-lhe e disse-lhe assim: Assim nestas poucas linhas

"Deixa lá a geometria Fica uma estória banal

E anda aqui para o pé de mim...! Com linhas e entrelinhas

Diz a outra: "Nem pensar! E uma moral convergente:

Mas que falta de respeito! O infinito afinal

Se quisermos lá chegar Fica aqui ao pé da gente.

Temos de ir devagarinho

Andando sempre a direito

Cada qual no seu caminho!" José Fanha, Eu Sou Português Aqui

Não se dando por achada

Fica na sua a primeira

E sorrindo amalandrada

Pela calada, sem um grito

Deita a mãozinha matreira

Puxa para si o infinito.

Vivam, apenas

Vivam, apenas.

Sejam bons como o sol.


Livres como o vento

Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos

Que dão flores e frutos

Sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos

A transformar os espinhos

Em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

Que só são belos

Quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.

A morte é para os mortos.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I

Rifão Quotidiano

Uma nêspera

Estava na cama

Deitada

Muito calada

A ver

O que acontecia
Chegou uma Velha

E disse:

- Olha uma nêspera

E zás comeu-a

É o que acontece

Às nêsperas

Que ficam deitadas

Caladas

A esperar

O que acontece

Mário Henrique Leiria, Novos Contos do Gin

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.


Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente


o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,


e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

As Palavras

São como um cristal,


as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.


Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparados, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem


as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
in Até Amanhã

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