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Para Rudi, Deisi e Manu.

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Sumário

Prefácio desinteressantíssimo.................................................................. 7

E tudo ficou tão claro............................................................................... 9

Arte de infantilizar lagartixas................................................................. 12

Poesia rude........................................................................................... 29

Poemas no parque................................................................................ 33

Surto..................................................................................................... 39

Cura pelo verbo..................................................................................... 52

Spiritual Enlightenment.......................................................................... 79

E o que era claro escureceu................................................................... 81

Posfácio................................................................................................ 86

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Prefácio Desinteressantíssimo

Seja através do sonho ou de qualquer manifestação estética e/ou inconsciente


feita em vigília e visando o bem de sua própria sanidade mental, cada um deve
construir o seu próprio manicômio individual. Com esse propósito, utilizando o
método paranoico-crítico de Salvador Dalí e a escrita automática de André Bre-
ton, componho este meu diário do futuro escrito no passado e me manifesto:

contra as aparências pela Nudez; contra a lógica pelo Inconsciente; contra o


argumento pelo Delírio; contra o espaço pelo Vazio; contra o tempo pelo Nada;
contra o concreto pelo Inexistente; contra a política pela Arte; contra a ideologia
pelo Egoísmo; contra a utopia pela Orgia; contra as regras pela Individualidade;
contra a lei pela Verdade; contra os outros pelo Narcisismo; contra a beleza pelo
Toque; contra a ética pela Vontade; contra o templo pelas Ruas; contra o céu
pelo Chão; contra as montanhas pelos Vales; contra o grande pelo Ínfimo; contra
os prédios pelas Ocas; contra as máquinas pelas Pedras; contra a multidão pela
Intimidade; contra a realidade pelo Prazer; contra o ego pelo Id; contra a morte
pela Vida; contra o suicídio pelo Homicídio; contra as drogas pelos Enteóge-
nos; contra a metrópole pelo Xamanismo; contra as portas pelas Janelas; contra
a grama pela Terra; contra o limpo pelo Sujo; contra as flores pelos Espinhos;
contra as árvores pelas Sementes; contra os oceanos pelas Poças d’água; contra
o sol pela Chuva; contra o homem pelo Indivíduo; contra todos pelo Si-mesmo!
Rudi Renato Jr.
Porto Alegre, 1994

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E tudo ficou tão claro
É do alto do Everest, que faço estes versos.
Não porque sou maior que os que lá embaixo estão.
Não porque sobrevivi à subida.
Não porque estou no alto.
Mas, porque quero que o morro desabe.
Quero que a superfície seja plana.
Que estejamos lado a lado.
O vento, a chuva, as pessoas escalando,
Tudo contribui para que minha escada se desgaste.
O tempo a deixa enferrujada.

Estou cada vez mais baixo,


Em verdade, não sou eu que diminuo,
E sim a humanidade que cresce.
Estes versos não têm valor algum. Assim como, nenhuma palavra tem.
Mas, quem visita um jardim do Éden não pode voltar sem uma foto.
Trago este rascunho,
Não como uma mensagem, não como uma obra de arte,
Mas como uma lembrança.
É como um mapa, que trago este rascunho.

9
Um mapa que não me mostra o caminho,
Mas que me lembra que é possível,
Que eu já estive lá.
Para que, ao olhar esta fotografia feita em tinta azul,
Desperte em mim o desejo de se desprender deste próprio despertar
E de cair dentro de mim para chegar ao topo.
Mais que ao topo do mundo, ao topo de mim mesmo.

E como todo o bom álbum,


Convido as visitas a apreciarem cada página
Para compartilharmos essa jornada.

Quero sentar no telhado do mundo, mas não quero estar sozinho.


Quero que o próprio mundo suba em cima de si mesmo.
E meus versos em cima de quem os lê.
E também, de quem os escreve.

Não que palavras sejam maiores que pessoas.


Mas, que o caminho que as palavras seguiram
Sirva para ser seguido por quem as ler.

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E que; se for preciso,
Que se leia de novo, que se viva de novo
E que se morra tantas vezes quanto for preciso.
Mas, que toda a humanidade entenda o mapa
Que leva qualquer um a lugar nenhum,
Ao vazio, ao silêncio,
À paz que é ser si mesmo,
Que é ser NADA.

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Arte de infantilizar lagartixas
1
Gostaria de propor a desforma ortográfica.
Isso seja, retirar todo o alfabeto com sua ortografia
E deixar apenas o silêncio necessário à palavra chão,
À palavra azul,
À palavra barro.
Deixar como base da língua
Um silêncio tão silencioso
Que nem mesmo se consiga escrever a palavra silêncio.
Mas que, com as poucas letras que ficarem,
Que se faça muito.
No espaço em branco.
Que se faça muito
Como os verdadeiros concretistas fazem.
Digo como verdadeiros concretistas,
Aqueles que lidam com concreto,
Com obra, com chão.
Sim, o chão deve ser a base do idioma.
Senão o idioma não pega esquadro.
Em Barros, em Rosa, em Ondjaki,

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Ah, em Ondjaki o idioma vive de pegar esquadro
E de sair voando pra dentro das pedras
Num silêncio que até o oceano ouve.
Rosa-branco,
Azul-infinito.

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Fui programado para restos.
Como pelas beiradas.
Fico sempre com as sobras.
Recorto as letras desimportantes dos jornais.
As demais, as jogo fora.
Aquelas que escolhi atiro ao vento.
Depois, as aves me trazem de volta no seu canto.
Aí com descuidado, eu ponho em cima do papel o seu silêncio.
Gosto do branco das linhas,
Mas sempre o apago com palavras quaisquer.
Não tenho dons para a poesia,
Tenho dons para os pássaros.
Coloquei asas na minha caneta.
Ela passou a voar de qualquer jeito pela folha.
Sempre desengonçado,
Eu gostei do cheiro do papel.

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Tenho coleções desse perfume.
Livros vazios ocupam minha estante.
O silêncio ocupa minha mente.

3
Tenho medo de de repente virar lúcido,
De ver que a poesia é um inutensílio,
Mais inútil que tentar pescar numa nuvem.
Uma vez eu voava num avião
E joguei a vara de pescar pela janelinha.
Eram uns quatro mil pés,
Mas o céu não estava pra peixe.
Aí agora, resolvo que faço um poema sobre isso.
Pra quê?
Pra nada.
É só que vi uma gaivota pescar numa nuvem.
A nuvem desceu no mar
E a gaivota foi lá e pescou.
Foi bem ali no fundo,
Onde não dá pé mais.
Ali onde as palavras se terminam,
E abandonado, o poeta se afunda.
Nevoeiro.

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Vivi,
Vivi,
Vivi,
E finalmente cheguei a ser ninguém.
E quanto tive de desaprender pra isso..
(Desaprendi, por exemplo,
Que os deslimites da alma
Estão todos
No corpo das lesmas,
Quando, num êxtase só,
Engosmam toda parede do quarto.)
…é que a gente nasce cheio de certezas.
Com o tempo, vamos despetalando as certezas,
Até que sobra a última pétala de certeza.
Então, quando só há essa última pétala, ela cai,
A gente engosma a parede do quarto
E, então, finalmente,
Nos anoitecemos para o dia.

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Na primeira série,
A professora me mandou fazer caligrafia.

15
Por sorte, ou por azar, ou por qualquer coisa nenhuma,
Não o fiz.
Mal sabia ela,
Que eu passaria a vida inteira a desendireitar as palavras,
Sempre fora das linhas,
Sempre fora dos dicionários,
Sempre fora delas mesmas.
É que, em algum momento,
Acabei por descobrir,
Que, na poesia,
Onde está uma palavra escrita,
Seu significado já descera embora,
Pelos farelos da borracha que nunca uso.

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Certa ida, me chamaram poeta.
Eu fiquei ofendido,
Mas, por desagradecimento,
Presenteei o ofensor.
Dei a ele um brinquedo de entulho.
Era um reciclador de lixo orgânico.
Daqueles bem adubados,

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Que só precisam de um pouco de mijo
Pra fertilizar os restos.
O ofensor soube aproveitar o brinquedo,
Aí ele próprio virou poeta.
Eu só assisti, anotando o que via.
Depois, me fui dormir
Com um caderninho cheio de silêncios.

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Para se chegar a ignorante,
Tive de me ignorar muito.
Uma vez quis fazer tratado científico,
Estava cheio de hipóteses de menino,
Cheguei até sonhar com ser astronauta.
Só depois de me ignorar bastante,
Que caí no chão da realidade.
Aí, virei ignorante:
Quis ser lixeiro.
Depois de bem crescido, consegui,
Virei lixeiro de palavras.
Agora, vou juntando os lixos do idioma.
Depois, jogo tudo no caminhão da poesia.

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Eu vi construírem uma ruína sobre a palavra amor.
Ela ficou por si só toda desabitada,
Expulsou todas as baratas e camundongos
E foi dormir abandonada.
É que ninguém mais mora na palavra amor.
Foi aí que resolvi habitar nela,
Então entrei na palavra amor
E saí de lá todo habitado,
Mas na palavra casa.
E o amor me seguiu.
Agora, a palavra casa está bem cheia,
Bem cheia de palavras vazias,
Como o amor e suas ruínas.

9
Andorinhas me disseram que o sol do inverno tem um perfume de gelo.
Para verificar, eu me pendurei no horizonte.
Por precaução, levei um frasco bem grande de vidro.
Capturei o perfume do sol, quando ele veio.
Fiquei extasiado e voltei pro chão com o frasco cheio daquele perfume.
Não tive coragem de abrir,

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Mas já podia sentir o cheiro frio.
Fiquei então por um tempo admirando o azul daquele cheiro,
Até que juntei coragem.
Abri o frasco e o seu perfume me lagarteou como bergamota.
Agora, estou imóvel para cheiros
Bem como jasmins para beija-flor.

10
Jesus beijava os pés de seus discípulos.
Eu beijo os pés das árvores,
Os pés das pedras,
Beijo os pés das formigas.
Muito mais inútil, não?
As árvores, as pedras e as formigas
Não farão testamentos,
Não construirão lugares de rezar,
Só seguirão emprestando suas almas aos verbos.
Muito mais inútil, não?
Vai ver por isso tão belo.

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Quando piá,
Ia jogar futebol.

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No futebol, não conseguia nem achar a bola.
Aí, saía do jogo, pegava um lápis
E driblava um alfabeto inteiro,
Até deixar as letras de pernas tortas.
O professor do futebol
Viu o menino fazendo finta com o lápis
E lhe aconselhou:
“Guri, larga a bola e vai fazer brinquedos com palavras.”
Quando crescesse, o piá viraria poeta.

12
Inventasse um metrônomo para voo de garças.
Pudesse pegar na cor do seu timbre.
De intuição, é azul o seu timbre.
Sei por tirada a cifra de ouvido.
É que sou bom de tirar de ouvido.
Outro dia, descobri que o canto de um pássaro era em sol maior.
Se bem que herdei uma surdez de um anoitecer
E confesso nunca ter sabido de música.
Mas, já me disseram que o voo das garças
Segue um ritmo de vento
E disso tenho certeza.

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13
Sonhei que era uma criança ainda,
Como em todos meus sonhos.
Sonhei que inventei a primeira piada,
Era o princípio da palhaçada.
Sonhei que tinha inventado um desobjeto,
Se chamaria abridor de sorrisos.
Sonhei que fiquei desmilionário,
Acumulei milhões de gargalhadas.
E fui dormir pra acordado,
Com meia dúzia de charadas.

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Duas palavras discutiram.
O substantivo ficou tão triste que quis se matar,
Mas o substantivo era tão pedra que não se moveu.
Já o verbo, que nem tinha tanto essa vontade,
Foi todo ação.
Pegou a corda de amarrar o tempo
E tentou enforcar seu próprio pescoço.
Só que o verbo não tinha um pescoço,
Pelo que foi salvo.

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15
Pra brincar com palavra,
Tem de fazer o alfabeto pegar doença,
Fazer a letra se delirar,
Fazer da linguagem um hospício,
Fazer da sensatez a loucura
E da seriedade o erro.
Pra brincar com palavra,
Tem de saber errar por propósito.
Assim consiste o desaprender do poeta.

16
Se minha preguiça fosse um cachorro,
Prendia ele na coleira e saía de passeio.
Mas, como não é,
Ela me acompanha e me persegue.
E é por isso que escrevo,
Porque tenho preguiça de fazer algo que possui um serve.
Serve pra isso, serve praquilo.
E se não serve pra nada,
Ou é poeta ou é poesia.

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Eu queria mesmo era ser alguém outro:
Um sapo, uma rã, uma lebre,
Quem sabe uma tarde, uma manhã
Ou até um arãquã.
Queria mesmo era ser alguém outro,
Alguém que não fosse eu,
Mas que, como também já sou,
Fosse ninguém.

18
A mais sábia das portas me disse:
“O abandono deve ser o sentir daquele que se propõe a fazer versos”
E explicou:
“As coisas estão cansadas de serem esquecidas,
Cansadas de apenas terem funções.
Eu só queria não ter uma maçaneta.
Invejo os poetas.
Os poetas são aqueles que não têm maçanetas”

19
Transvi, no olho duma mosca,
Que a poesia é um grande saco de lixo,

23
Daqueles bem cheios de chorume.
Transvi, no olho duma mosca,
Que tudo aquilo que o mundo descarta,
O poeta vai lá, absorve e caga pra fora.
E então, se limpa com o papel,
E, no papel, fica a poesia.

20
Eu abria os braços pra fazer aviãozinho.
A palavra veio.
Pousou numa mão. (a direita)
Avaliou avaliou.
Pousou noutra mão. (a esquerda)
Fez o ninho.
Agora as palavras me surgem sem aviso.
Problema que fiquei canhoto pra elas.

21
Ser árvore pode ser que seja
Envelhecer para pedra
E depois se enterrar a si próprio,
Cavar tão fundo até criar raízes

24
E se espreguiçar pra cima da terra.
Ser árvore pode ser que seja
Vencer a morte
E não saber comemorar.

22
Na beira do Guaíba,
O sol estava se pondo,
Quando teve um de seus raios
Enroscado, preso ao horizonte.
Em vez de ajudar,
Eu congelei tudo num poema.
Agora, sempre é seis da tarde em Porto Alegre.

23
Não sou poeta,
Sou lixeiro do idioma.
Isto é, varro bem os restos de palavras dos jornais
E, depois de varrido tudo,
Finalmente, reciclo com papel de poesia.
Material para reciclagem:
Kgs de lixo + 1 lápis bem apontado.

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24
Peguei na voz do oceano e a levei na minha prancha.
A voz do oceano possuía um timbre de concha.
Coloquei a concha da voz do oceano de pé sobre a prancha
E dei um empurrãozinho bem no momento da onda,
Só que ela não se equilibrou.
A voz do oceano tomou caldinho,
Teve água no ouvido,
Virou surda-muda.
Agora, até que tem um timbre de silêncio naquela voz azul do oceano.

25
Outro dia, vi uma centopeia se ajoelhar na entrada da igreja.
A centopeia caiu.
A centopeia não tinha fé.
Mas, eu vi a fé da centopeia.
Ela estava lá fora no mundo,
E eu já tinha ido embora dali,
Mas anotei mesmo assim.

26
A mosca queria que dessem um banho nela.
Estava cansada de ser olhada de lixo.

26
Ela voou até o hospício.
No hospício, encontrou umas frases enlouquecidas.
Ouviu de uma delas:
“Vou lavar a bunda das moscas.”
Aí a mosca carregou felicidade pelas asas.

27
Peguei a palavra pedra e coloquei uma chuva nela.
Depois, sequei com o secador.
Então, penteei a palavra pedra.
Aí, a palavra pedra até que ficou bonita.
Por isso, resolvi guardá-la na estante
Para que todos a possam ler.

28
O sol diz olá quando amanhece.
As pedras nem respondem.
Pedras não gostam do sol.
O sol as dá ardências.
Um dia, vou ensinar pedras a passarem protetor solar.
Aí, elas ficarão como a sombra das árvores.

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29
Os amigos usavam pé no chão como calçado.
Eu usava pé no vento,
Pé no ar,
Pé na liberdade.
Que meus pés sempre tiveram asas como calçado.

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Queria infantilizar uma lagartixa.
Pingou um pouquinho de água no coração dela.
Não deu certo.
Vai ver só funciona com formigas.

28
Poesia Rude
Todo poema é rude.
Ele conhece o segredo último
da alma de quem o lê
E joga isso na tua cara,
Sem piedade,
Sem te preparar.

Todo poema é sádico.


Ele te amarra,
Te agride e te bate.
Ele te faz sofrer
E sabe te excitar com isso.

Todo poema surpreende.


Ele te pega desarmado,
Te embala no seu colo
E, quando menos esperas,
Te rouba a chupeta,
Te joga no berço,
Apaga a luz,

29
Faz voz de monstro
E desaparece.

Todo poema te deixa ansioso.


Tu te preparas pra lutar ou pra fugir,
Mas o poema te congela.

Todo poema te promete o mundo.


Tu sonhas que terás a mulher amada,
Tu pensas poder ser feliz,
Mas logo vês que todo amor é platônico
E que toda felicidade é falsa.
Todo poema incita emoções.
Tu pensas estar numa montanha-russa,
Mas logo vês
que na poesia não te colocam o cinto
E que mesmo assim
ele te vira de cabeça pra baixo
Sem medo de te derrubar.

Todo poema mente


E te faz acreditar na mentira.

30
Todo poema finge e te engana,
E tu gostas de ser enganado,
Porque sabes que aquela mentira
No fundo é uma verdade negada.

Todo poema é metafísico,


Está além da matéria,
Além do mundo e da verdade.

Todo poema é um nada,


É vazio de existência,
Por isso te atinge,
Porque também o és.

Todo poema cospe na tua cara,


Zomba de ti,
Te chama de inseto,
E inseto és
E cusparadas mereces.
No fundo, sabes disso.

Todo poema é morte,


Desintegra algo em ti,

31
Te faz em pedaços,
E a tarefa de se recompor é tua.

Todo poema é finito.


Por mais que os poetas não admitam,
Ele acaba.

Todo poema cria asas,


Voa pra longe,
Te leva junto
E não te trás de volta.

Todo poema te abandona,


Te rejeita e te castra.

Todo poema é mau,


Te deixa sozinho,
E, só quando se vai,
Você o entende, afinal,
Saber estar sozinho é o caminho.

32
Poemas no parque
I
no Ritmo do Tambor do Xamã
você Blake pega o Vento pela Mão
e saem os três
o Ritmo
o Vento
a Mão
saem pelos esconderijos do Tempo
nos portais de Heidegger
onde a Eternidade arromba as portas do Ser
& o teu Futuro é uma utopia sem janelas

II
eu ouvi você recitar teu tratado Hesse
numa música dos Cascavelletes você estava lá
Santo Lobo da Solidão
teus olhos vermelhos de fogo derretem a Geada
o País viaja todos os dias pra São Paulo
e você não sai de Porto Alegre Harry Haller
você está ao Sul
ninguém mais liga pros teus olhos vermelhos

33
Lobo
mas eu ainda me importo
você está chapado Hermann?

III
estava lendo teus manifestos Piva
na Esquina da Gonçalo de Carvalho
enquanto a Juventude com suas pernas torneadas
saía de suas aulas pro Vestibular
me diga Piva de que valem os vestibulares
de que valem as universidades & os empregos
me diga Roberto que você quer ressuscitar em Porto Alegre
vamos vadiar bêbados pela Minha Capital
quero te mostrar a Cidade & suas coxas
você Piva vai querer fazer poemas sobre nossas coxas

IV
eu corro alucinado pela Praça da Alfândega
enquanto vejo tua Estátua Mario Quintana
ela e o Drummond fazem um sarau no meio da Praça
onde as pessoas passam ignorantes
onde as pombas se reúnem para ouvir

34
no Momento em que a Praça carrega os poemas debaixo dos seus bancos
& as pombas carregam as rimas junto aos farelos de pão
& as pessoas carregam o Livro de Bronze das tuas mãos
eu corro alucinado e me pergunto Mario
foi o teu Livro ou o do Drummond?

V
o Ciclone dos Sentidos me carrega
pelo Portal dos teus aforismos Malcolm de Chazal
bem no Meio duma orgia numa página do Manoel de Barros
eu te encontrei tirando o Sutiã dos seios de uma árvore

VI
hoje decidi Dalí que vou te colocar no Liquidificador
é que o Tempo me disse que não ficou satisfeito
com a Forma como você derreteu seus relógios
está decidido Salvador
vou tentar tornar o Tempo um líquido
já fui no Brique e comprei uns quadros teus
aproveitei pra passar na Feira Orgânica
quero teus sonhos com gosto de maçã
e ainda vou moer teu Bigode um dia

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VII
te vi Sartre vestido de mulher
passeando na marcha das vadias
o Amor apareceu por lá só pra criar confusão
e a Liberdade te pergunta Sartre
você brigou com a Simone?

VIII
vou ser a Sombra debaixo do teu Chapéu mestre Caeiro
vou ficar deitado no Chão sob tua Cadeira de Balanço
vou ser o Balanço
o Embalo dos teus versos
como as crises histéricas do Campos
tuas comparações me acordam com pedradas
Mestre dos Heterônimos você faz chover a Realidade sobre o meu Sonho
tuas palavras são o Chão
teus versos meus cinco sentidos
a Única Realidade do Mundo visível

IX
Tagore
Rumi
Kabir

36
minha Alma
não são todos o Universo cantando sozinho no Vácuo?

X
te vi abraçado no Pôr do Sol
o Horizonte aos poucos puxando as cobertas sobre ti
o Lago Guaíba engolindo o teu Corpo
as nuvens tomando chimarrão
a Paisagem assistindo tua Alma descendo ao Inferno de Porto Alegre
Dante Alighieri quem diria
jamais pensei te ter ao meu Lado
passeando pelo Iberê Camargo
assistindo ao Milagre Porto-alegrense

XI
às vezes sinto uma fome de algo que ainda não existe
queria que inventassem uma sobremesa capaz de saciar a minha Alma
gostaria de preencher de doces o meu Espírito
a Sensação de Falta me chama para a Cozinha
eu abro os armários
eu abro a Geladeira
eu abro o meu Peito
e sempre encontro
aquele mesmo Vazio de todo o dia

37
XII
Estou tonto.
Levei um soco na alma.
A distância era perfeita,
A proteção .. a esquiva.
E teus olhos .. o sonho .. os meus.
Mas teus dedos..

(Eu ainda ouvia o piano.


Ele estava fora de si.
Eu estava dentro do som.)

.. na janela esquerda do meu corpo:


golpe baixo

38
Surto
Setembro de 2311
No Monte Pisanino na Toscana

do alto do mundo o amor via a morte Queimar seu próprio caixão / espinhos Cresciam na sua
face / os gases de Ouro roubavam sua dentadura / do alto do mundo o amor via Dante vestido
de Noiva cortar os cabelos de Eros com uma Navalha / ao passo que as janelas do universo se
fechavam numa claustrofobia / do alto do mundo o amor via meninos brincando de médico
com suas irmãs-putas / e os anjos tendo suas asas Arrancadas com um grito / do alto do mun-
do o amor via a morte queimar seu próprio caixão / enquanto Baudelaire dormia para Sempre
abraçado num pai-suicídio & CONVERSAS BANAIS

(Amor: fantasia química..


Como um pensamento-posse. numa fábrica de prazer,
Tortura)

Outubro de 2932
Numa Drugstore em Montevideo

aqui atrás deste balcão o jovem desejo pensava no quanto estava sendo levado pelo Tempo para
lugares distantes da memória / refletia sobre a falta de cabelos brancos dos carecas à volta /
acendia cigarros alucinógenos no crânio duma máquina metida e esperta / enquanto longe deste
balcão e distante de Chronos uma criança voava nas peças de Lego e quebra-cabeças perdidos

39
debaixo dos sofás / aqui atrás deste balcão o jovem desejo ouvia as cores aquáticas de Hendrix
/ delirava nos olhos do Robô à frente duma floresta de algas assadas ao molho de tomate sub-
mersas no jazz de sala de espera & Lester Young / no mesmo momento em que a melancolia
declamava versos de Blake num diário com asas e serafins / aqui atrás deste balcão a Caneta era
azul e o Papel guardava algumas escamas de submarino amarelo / para o exato segundo em que
o Garoto abrisse a porta e pedisse com voz grave um cigarro vagabundo qualquer

(Tempo: malabarismo com réguas..


Como um brinquedo-palavra. num pedaço de guardanapo,
Limpo)

Janeiro de 3021
Numa Piazza em Atenas

Átis casava-se com a vida eterna numa igreja concreta e barroca / anunciava o fim do mundo
líquido / e via os anjos jogarem pôquer com seus sorrisos horizontais / passeava nas cordas-
-asas de Bach pelas dobras do espaço-tempo num violino-robô / enquanto Eurípedes anunciava
o fim da sua nova composição / uma tragédia da alma feminina conquistava por fim a liberda-
de andrógina e a Orgia das minorias / com a ilustre participação do garoto Leo que descia de
helicóptero através dos olhos da Mona Lisa / discursava delirante e veloz sobre uma caixa de
tomates fálicos importados do Louvre / e deletava para sempre sua conta nas redes sociais

(Orgia: liquidificador de gente..


Como um camelo-fazenda. dentro dum shopping-center,
Mistura)

40
Setembro de 3791
Numa Quizumba em São Paulo

sonhos desciam escadas cubistas / ampulhetas de sereias dadaístas / Breton-Freud & suas re-
vistas / onde Sérgio Lima escrevia epígrafes aos posfácios surrealistas / enquanto Willer .. De
Franceschi .. Bicelli & o Piva / traduziam mosaicos de espermas anarquistas / nas paredes das
casas-corpo de uma donzela & suas vísceras: / PELE ANDRÓGINA

(Relógio: prisão do mundo..


Como um espaço-regra. dentro dum túnel,
Vivo)

Agosto de 3916
Na Plaza de Santa Ana em Madrid

a estátua de Garcia Lorca era levada pela Pomba crucificada nas suas Mãos / em sua volta tapas-
-bars assistiam sua ascensão ao oceano-vácuo de papel / onde Rob Gonsalves boiava sobre
um rio de estrelas & a Noite pintava um quadro com nuvens-tinta + aquarelas & planetas / no
momento em que a Terra era uma ilusão feita de céu & cores + jornal / e as pedras-tortas de
arco-íris faziam Poemas com suas lágrimas de mel / enquanto a Lua descascava suas fases numa
cebola / e os ciclos da Plaza desmaiavam sobre garotos nus & anjos com Sexo / oh nosso fu-
turo .. profecias de um Xamã .. lagoa de estrelas desenhadas numa parede oculta / ¿ PRA QUE
LADO LEVARAM NOSSO CÂNONE ?

(Planeta: pedaço de céu..


Como uma estrela-chão. dentro dum rio,
Mergulho)

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Dezembro de 4910
Num cinema em Lisboa

o sol surgindo sobre a cena & Ginsberg + Willer tomando Café num mar português / por onde
passam discos voadores carregando Camões & suas Ninfas + Garotos bolinando num megafo-
ne .. / o sol surgindo sobre a cena & os marcianos uivantes declamando Mensagem & histórias
verdadeiras do século passado .. / o sol surgindo sobre a cena & vozes geladas ecoando nos
corredores de Bleecker Street jamais destruirão o mar & sonhos luminosos numa convergente
subway + trilhos concêntricos / cujos Poemas praticam auto-felação sagrada num eterno retor-
no dos estranhos jardins apocalípticos de Saturno & o sol surgindo sobre a cena

(Sol: lâmpada a céu aberto..


Como montanha-lampião. viajando entre a voz do vento,
Socorro)

Maio de 5424
Numa Fazenda na Escócia

sobre um oceano-mesa surgia do Rosto de uma mosca uma Falta / um cesto vazio-bebê .. um
céu Quebrado por um Louco .. um Dente cravado de Nariz no Chão .. / no fundo do oceano-
-mesa uma igreja confessava seus Pecados a uma montanha e pinguins formavam o vento de
Gala numa pintura-traição & Bocas Infinitas de Millet: / PARANÓIA

(Silêncio: 90% do que digo..


Como um som-incógnita. nas páginas dum desdicionário,
Sobra)

42
Dezembro de 5933
Num Satellite Launch na Rússia

Por Aí procurou procurou procurou sua Cartola procurou & um moinho-mundo debaixo de
transparentes rosas de plástico & Metralhadoras de Ratos procurou Por Aí procurou / isso foi
no mês que vem / exatamente quando Vitor Ramil desabou do Vigésimo Andar segurando uma
Ramilonga de Chimarrão e não-céu / sim ... Chão .. Muito Chão / Chão Duro ... Pesado ... Chão-
-Pedra / Chão-Nu / Chão-Estrela / Não .. Nunca Foi Céu No Mês Que Vem / Nem Nunca Será
A Terra O Ano Passado / e jamais saberemos afinal ¿ continuará Por Aí procurando?

(Futuro: passado rebobinando..


Como uma visão-memória. sob uma multidão de déjà vu,
Arrepio)

Novembro de 5961
Na Praça Castro Alves em Salvador

¿ e se do céu uma Kombi ? / helicóptero sem motor / planador + turbo / Eliane Marques de
paraquedas numa asa-delta / ¿ e o parapente o morro abaixo ? / abaixo do chão Maldoror /
mais abaixo Sade & Lautréamont / Ducasse & o Marquês / no Oceano uma esfinge / DNA de
Marte enterrado na Areia / e do Sol + Queda: / RIMBAUD DORMIA

(DNA: memória carnal..


Como um papai-mamãe. num instrumento de martírio,
Transa)

43
Dezembro de 6119
Numa Ponte Sobre o Rio Paraguai

ali onde pássaros-pederastas embebidos em verde-musgo debaixo de pedras-mictórios em que


passavam os anjos de Rilke compondo desobjetos e silêncios desúteis / ali onde Jovens Barbu-
dos perseguidos pela polícia dormiam em internatos escondidos debaixo dos Livros e das santas
despiedosas e sem dentaduras / ali onde Maiakovski Bêbado baixava as calças de uma nuvem e
posava para a foto de Adriana Lafer / que por sua vez Silenciava paranoicas arquiteturas poéti-
cas & Wesley Duke a Lee

(Metáfora: palavra em surto psicótico..


Como um brinquedo-invenção. junto a um desobjeto,
Funda)

Junho de 6666
Na Biblioteca Apostólica no Vaticano

ouvindo Chatterton a chuva Suicidava-se com um fio do teu cabelo / e o sol assistia a tudo
Comendo pipocas + gotas de diabetes de dentro das cortinas fatigadas dos teus Olhos / e os
roteiros de cinema tinham ataques de Riso no Velório da lua / e os padres Bêbados de Vinho
& cristo batizavam os Mictórios com a urina-benta de Zeus / ouvindo Chatterton as igrejas &
as cruzes tocavam Violão com as cordas e as harpas dos Corpos fiéis / e debaixo dos bancos
ouvindo Chatterton a fé ajoelhada engolia o Sêmen do papa Bento num sermão coberto de
dízimos e Pó

(Sagrado: sexo sublimado..


Como um deus-puta. no sermão da montanha,
Falo)

44
Julho de 6748
Na Orla do Guaíba em Porto Alegre

a liberdade Mergulhava num lago / o vento criava Ondas / o oceano Mijava no ar / na beira:
lembravam da tua voz / (Cantavas: / trilha sonora da tua pesca / redes .. iscas .. & a sorte jogada
no mar) / encontrava-se no Chão / UM OBJETO-METAMORFOSE: / PRISÃO

(Saudade: passado no presente..


Como um pássaro-infância. nos braços duma árvore,
Abraço)

Outubro de 6969
Num Dionysian Festum em Roma

Poesia: ¿ expressão ? ¿ comunicação ? / ! Falso ! / Poesia é desejar-se numa Orgia com o univer-
so / Poesia é sedução / é Delírio .. é imagem .. é de concreto .. / Poesia é Corpo / ¿ o Corpo
fala ? / o Corpo sente .. o Corpo toca / o Corpo flui / flui também a Poesia / Poesia: fluidos
trocados com o Todo / bacanal de palavras

(Delírio: visão do futuro..


Como um pensamento-Deus. dentro da sua cabeça,
Escuta)

45
Novembro de 6994
Numa Pirâmide no Egito

num sonho de outono a solidão abria seu Corpo / te puxando pelo zíper de seus Cabelos /
que envolviam seu Peito Nu / coberto pelas cortinas de Ouro / arregaçadas pelas suas Mãos
desérticas / exposta à Transparência búdica dos seus Olhos / a solidão encontrava num sonho
de outono / meio Lótus sobre um Coração pintado na Aura da sua Mão / & a Luz do Mundo
/ num sonho de outono saía de dentro de ti

(Deserto: minha alma..


Como um peixe-helicóptero. sobre a sombra de um alfinete,
Sobrevoo)

Abril de 7312
Numa runway em St. Maarten

no ar dum dia cruel o vento subia dilatado pelas aceleradas Pupilas do teu coração de brinquedo
e aterrissava doméstico na planície da tua Pele de gelo / no ar dum dia cruel ansiosas gerações
futuras aguardavam pelo Coito Eterno das mentes platônicas que não se tocam / e os batons-
-desertos no ar dum dia cruel pintavam de transparente as beiras de praia e as paredes de raios
laser / enquanto uma andorinha no ar dum dia cruel desfazia teu figurino e se deitava para o
último sono debaixo dos teus Rins aquáticos e mortais

(Pele: máscara do corpo..


Como uma fronteira-toque. dentro dum arrepio,
Fantasia)

46
Janeiro de 7314
Numa RollerCoaster na Califórnia

pássaro-moinho & roda-gigante comiam grãos de deserto nos Bigodes de Dalí / Raquel Trein
se espreguiçava Nua segurando um guarda-chuva de Sonho sobre um Caracol Antigo / onde
fusca + dança & o oriente faziam acrobacias com suas falsas Harpias / enquanto Anna Apo-
linário passava invisível lendo Joyce Mansour / e as caravelas da Anita Garibaldi pulavam de
trampolim sussurrando Obscenidades nos três Ouvidos do lago-rio que desaguava no céu / E
AS NUVENS A DANÇA

(Sonho: pão dormido com açúcar..


Como um fogo-perfume. numa nuvem de cristal,
Desejo)

Maio de 7919
Numa Valtari em Reykjavík

anjos sem asas & solos de guitarra / Poetisas Excomungadas nas Casas de Swing / freiras es-
tupradas na sala de jantar / Nanda Prietto num filme do Von Trier / ao som de Björk + Kurt
Cobain o amor-abscesso cortando os Pulsos da melancolia / esmalte de Lilith enterrado na
cruz / cacos de gilete rasgando a Próstata / tua virgindade amarrada num poste / o Santo Falo
de Drummond se balançando na coleira / a rosa o povo & a escritora um suicídio / a internet
assistia

(Abuso: suicídio feito à força..


Como uma eutanásia-estupro. num trauma da infância,
Desonra)

47
Maio de 8276
No Reserve Bank of India em Mumbai

sobre uma montanha-money o Flerte-Fatal desjejuava com um chá de cogumelos + Natasha


Felix / sobre uma montanha-money o Flerte-Fatal via a fúria dançando abraçada com a chuva
& assistia ao strip-tease da lua que segurava uma vela psicodélica anos 60 / enquanto sobre
uma montanha-money duas rosas & coroas de espinhos pintavam o sol da Dinamarca / onde
Kierkegaard sonhava com Priscila Merizzio caindo completamente despida de uma ponte de
oito andares na avenida das saudades lotada de mosaicos & caleidoscópios invisíveis avistados
sobre uma montanha-money / ¿ mas e após tudo isso ? / ¿ SERIAM SUAS CINZAS LAVA-
DAS NO GANGES + ÁLCOOL OU SOBRE UMA MONTANHA-MONEY?

(Queda-livre: mergulho na areia..


Como um castelo-buraco. debaixo da terra,
Salto)

Fevereiro de 8749
Numa Tribo na Amazônia

o Verbo era seguido pelas janelas sem cortinas das Donzelas Nuas / seus Olhos iluminavam os
abajures dos sem-teto / e as estrelas e a noite e os contêineres e os Ossos quebrados da manhã
cegavam os girassóis perdidos no meio das Florestas desmatadas de outdoor / onde setenta e
oito mil tochas apagadas derrubavam a hidrelétrica Indígena com uma única Flecha & Bomba H
de Átomos e nuvens-cogumelos cobrindo cidades-cânceres + DSTs Virgens / enquanto escato-
lógicas criaturas zombeteiras de acrílico-cera + Massinha de Modelar Amassada caíam no Vácuo

48
e nas Pedras e no Solo de todo o território de um Sub-país / onde eram enterradas as múmias ..
as santas .. as escórias .. / (do outro lado da morte batizados de achocolatado bento e a Fúria das
novas gerações de Onças faziam passeatas usando cartazes molhados com Lisergia) / quando
o automatismo dos jornais preparou a banheira e A ARTE ENTROU EM BANHO MARIA

(Arte: suprema manifestação da vida..


Como um dinossauro-leão. no nascimento do universo,
Reino)

Fevereiro de 9221
No Parque Ibirapuera em São Paulo

era Noite na Pauliceia Desvairada / era Noite e o Mário de Andrade escondia Poemas debaixo
dos gramados e da lagoa / era Noite .. / no Parque Ibirapuera era Noite / era Noite e as ár-
-vores voavam fora de suas asas para longe do parque / era Noite e o Mário acordava-se para
dentro sonhando com Porto Alegre e a Praça da Alfândega / era Noite quando o Sol surgia e o
horizonte se espreguiçava com Braços de torniquete / e então já não era mais noite / já não era
mais noite naquele parque / e aquele parque já não era mais o ibirapuera .. / é que a pauliceia
acordara um país / ¿ E SE O PARQUE O MUNDO ?

(Noite: pesadelo do sol..


Como uma coruja-dia. no meio dum sonho lúcido,
Vigia)

49
Agosto de 9876
Numa Expedition na Bulgária

a lua veio da Ásia nos contar uma Piada / parou para visitar Campos de Carvalho & maestros
de Charles Ivens / em três segundos matou um dia / um professor de lógica ressuscitou uma
pomba sutil e imóvel / a lua veio da Ásia e foi internada num Hospício Nazista / a lua veio da
Ásia nos contou uma piada e fugiu num Led Zeppelin Dodecafonista

(Sorriso: sabedoria infantil..


Como um olhar-pureza. no rosto da manhã,
Canto)

Novembro de 9981
No Hôpital de la Salpêtriére em Paris

o medo tomava Choques de abacate nos dois hemisférios do coração / tentando a todo custo
assoviar junto aos pássaros-deus / ouvindo as vozes de Charcot + ½ dúzia de histéricas X 1000
/ num pedaço rasgado de Papel o medo desenhava círculos coloridos .. Mandalas .. Arrepios /
imobilizado junto aos Dançarinos de Nietzsche o medo enviava cartas ao Malcolm de Chazal
+ Ginsberg Allen ouvindo Jupiter Apple / tirava dos armários da razão tortas-cucas fatiadas
sobre uma paleta de pictures and paintings a óleo num Resto de jornal / escondia seus Testícu-
los numa Seringa Vazia e dobrava a Angústia num megafone quebrado & de Papel / enquanto
mademoiselle marchava Nua num carnaval-Prabhupada & Freud carimbava um DSM bem no
meio da ânima de Jung / e então calado O MEDO TINHA QUE SE CONFORMAR

(Poesia: hospício da linguagem..


Como uma palavra-loucura. fora da realidade,
Surto)

50
Dezembro de 9999
No Apokálypsis na Ilha Patmos

os habitantes da Luz adiavam o amanhecer enquanto costuravam os minutos e as horas num


tecido de Avestruz / onde a noite estralava os Dedos da escuridão ouvindo o samba das mon-
tanhas / e os sete mares dançavam Extasiados tendo Convulsões / e as enguias e as águas-vivas
eram devoradas pelas soluções Mágicas dos seres elementares / e as florestas com seus Pulmões
Apodrecidos de Tabaco faziam orações aos deuses Pagãos/ e o sofrimento contava histórias de
fadas e de Sereias para nos fazer Dormir / enquanto a verdade sonhava com Mulheres de Vagi-
na Colorida e Dentes de diamantes / e os garotos se Masturbavam sobre as pedras da solidão /
onde as beiras de praia e os desertos e os Cemitérios tomavam Porres e amanheciam de Ressaca
/ enquanto cobertos pela geada nossos Corpos Convulsionavam até a Morte / quando então o
próprio Verbo resolveu sair de seu Ovo e vir pessoalmente iluminar as nossas Almas perdidas
debaixo dos Lençóis Vermelhos do Umbral

(Magia: paradoxo real..


Como uma formiga-elefante. debaixo do vazio,
Samba)

51
Cura pelo verbo
1
Tua liberdade está cheia de muros.
Me dê a mão.
Vamos derrubá-los?
As lesmas e os caracóis que sobrarem,
A gente põe um pouquinho de sal neles.
Coitados?
Sim,
Coitados.
Mas sejamos menos sérios,
Sejamos crianças de novo.
Vamos apontar uma formiga para o sol com uma lupa.
Vamos apontar o sol contra o muro
Até que ele derreta.
Me dê a mão,
Só pra se divertir.
Sejamos livres de novo.

2
Sinto que ando tendo atrapalhamentos na hora de entortar as palavras.
Me culpo por isso.
Mas a verdade é que as palavras têm fechado muito os roupões pra mim.
Eu bem que queria ser as palavras,

52
Mas não posso sem consentimentos.
Tenho de ser redesejado,
Como quando podia apalpar as letras à vontade.
Elas se abriam pro meu ser letral,
E o meu ser letral gostava de se aproveitar disso.
E se aproveitava,
Até ficar feliz com as palavras.
E ficavam felizes.
Ah!
E fumar um cigarro.

3
Outro dia me perguntaram por que quase tenho personagens.
É que a solidão me tira os alteregos.
É como comer terra que me tira os anticorpos ao contrário.
Só que comer terra me tira pra bizarro.
Bizarrices me completam.
Depois me esvazio virando nada.
O nada seria meu melhor personagem,
Só que ele quase ainda não nasceu.
Como eu que certa vez nasci com 72 semanas,
Com 72 árvores no estômago,
E com uma floresta na fala.
Tudo isso me dispõe a versos.
Ser meio árvore meio pedra me versifica.

53
4
Agora veja a palavra janela.
Essa antítese quase perfeita,
Fronteira entre a paisagem e o quarto,
Passagem entre o ato e a fuga,
Lugar de acumular as chuvinhas,
De acumular os sonhos.
Vejamos bem a palavra janela e a tatuemos na nossa alma,
Só para que possamos pular para dentro dela
E cair dentro de nós mesmos,
Como nosso deus quando pisca os olhos das estrelas.

5
Pela revirginação das palavras,
Adoeci o canto de um pássaro.
O que o fez mais humano,
Mais criança.
Depois pude fazer de conta com o pássaro.
E fizemos de conta,
Até chegar em cem.
Aí tranquei sua respiração,
E ele desmaiou.
Asfixiofilia.

54
6
Um prédio ficou preso numa borboleta.
Por duas tardes seguidas que não faz manhã.
Eu arranquei um matinho da ponta do pé do horizonte,
Mas ele segue de unha encravada.
Pela previsão do tempo,
Amanhã faz arco-íris.
Hoje, um sonho,
Na padaria do seu João,
Onde tem uma plaquinha que diz:
De que cor é deus?

7
Tá tão frio no inverno de Porto Alegre que resolvi beber um copo de sol de canudinho.
O canudinho derreteu.
Os raios escaparam.
E acabei por me queimar as calças.
Um guri viu o queimar das calças
E ficou impressionado com a imagem,
De modo que resolveu construir um poema com isso.
O poema era tão escaleno que virou brinquedo
E o menino se divertiu.

55
8
Eram quatro da manhã na avenida Goethe.
Uma metáfora passava correndo.
Estava pelada a metáfora?
“Corre lá.
Filma tudo.
Depois tu posta na rede.”
E postou na rede.
Agora é só guglar pela metáfora
E ela aparece peladinha na tela.

9
Quando descobri o pensamento de uma pedra,
Foi que me tornei coisal,
Pude ouvir as palavras nascendo,
Ausentes de significado,
Apenas um poema-pedregulho,
Que me deixou imóvel,
Apreciando
O absurdo que é o mundo.

10
Lia até o canto das águas.
Foi responsável por pintar o primeiro arco-íris.

56
Tinha nos dedos todas as cores.
Costumava errar bastante a iluminação das coisas.
Daí a beleza de suas imagens,
Daí a força de sua poesia.
Êxtase.

11
Busco o impossível,
Mas encontro apenas ilogismos.
Amo fazer imagens,
Como uma parede de vento.
Tento dar socos na parede,
Mas ela invariavelmente se esquiva.
E me derruba com um sopro.

12
Cheirei a cor de deus e ela me disse em língua de luz:
“Bem-aventurados os que ouvem a cor dos passarinhos.”
Eu ouvi a cor dos passarinhos,
Foi em Manoel.

13
O avô guardou alguns passarinhos nos bolsos.
Fechou os bolsos

57
E os passarinhos voaram o avô pro céu.
O pai disse que o avô virou estrela,
Mas ainda acho que ele já desceu com a chuva
E está escondido no brilho dum vagalume.

14
O menino já não fazia mais fintas com o lápis.
A mãe levou o menino no doutor
E o doutor diagnosticou o menino.
O menino estava com bloqueio criativo.
Então eras.

15
Precisava de um abraço.
Subiu uma montanha,
E lá no alto o vento o abraçou.
O vento era o único capaz de abraçá-lo.

16
Uma rã me violeta.
Eu fico redisposto para flor.
Sorrisos abrem o horizonte.
Peguei a vassoura e varri o vento.
Fui agraciado com a pena de uma ave.
A pena me molha no tinteiro.
Ontem te escreverei para rã.

58
Tu vai ficar toda argilosa.
Aí te moldo com meus dentes.

17
Fazia diligências para apreender o sublime.
Misturava o sol e o mar como o poeta Rimbaud misturara.
Desregrava seus sentidos.
Abraçava a manhã com suas pernas.
Era uma figura bastante perene,
Até que foi abastada para a morte.

18
Teu canto impulsiona o motor dos passarinhos.
Dessa tração se faz a poesia.
Vejo nos teus olhos um arco-íris
Cheio de borboletas adiposas.
Unto teus seios na manteiga
E faço vaginação com tua alma.
Irish cofee.

19
A formiga encontrou um sujeito insípido.
Ele agarrava as raízes do orgônio,
Enquanto anjos de Pasolini tiravam a roupa e expunham o sexo dócil das estrelas.
Os mictórios bêbados urinavam sangue,
E tudo o que a formiga queria era cessar de existir.

59
20
A água do lago tinha gestos de peixe,
Ia nadando em ondinhas sopradas pelo vento.
A água cansada de ser mexida
Deu um pontapé nas canelas do vento.
“O vento não tem canelas”, disse o peixe.
A água ficou entendida.

21
Árvores jubilosas,
Insumo da palavra,
Força poética do andarilho
Que se encosta nela,
Até grudar como lesma,
Até deixar gosma,
E até ser um com ela.

22
O vento me tira pra idiota.
Eu congraço nele.
Para a poesia pingar uma gota de azul num idiota serve.
A poesia pinga o azul em mim.
Eu sirvo.

60
23
Um peixe me pensou para alga.
Fui beato para as conchas.
Pude ver o som azul dos girinos.
Enverdeci o amanhã em uma hora.
Em duas, anoiteci o dia.
O relógio me amedronta.
O sol mais ainda.

24
No meu caminhar passa um vento inexistente.
As árvores me abraçam sem pudor.
Rãs querem ter comigo.
Os andarilhos me veem e me acompanham.
Quase que de imediato, eu me empedro quando anoitece.
E ainda com orvalho, sigo quando o dia nasce.

25
O tambor do xamã bate meu coração,
Com trejeitos de pássaros,
Sou capaz de sentir o gosto do gorjeio,
Tatear no escuro o orgasmo do sonho iniciático
E ter o falo decapitado imaginariamente,
Mas com muita dor mesmo.

61
26
Na tempestade,
O rio inunda meu ser.
O relâmpago corta o poente ao meio.
Fico noite na solidão de uma ilha.
O deserto habita minha alma.
E o vento transmuta o sonho do xamã.

27
Onça da noite,
Conversemos sem dizer palavras.
Quero teu olhar de árvore
Aumentando as estrelas com lupas de magia,
Teus sonhos me mostrando símbolos do amado,
E o ser nos pensando como pedras.

28
Tenho um dom de estrela em mim.
Carrego na minha voz a cor do silêncio.
Sou um ser incapaz até de morrer.
Sirvo pra quase nada,
Como uma lata,
Que apenas tem funções de guardar,
Eu guardo a poesia no meu corpo.
Ela só sai quando gozo nas palavras.

62
29
Ouvindo Bach,
Posso ver na sua música
Uma igreja do século XII
Sendo transportada
Pedra por pedra
Nas asas dum beija-flor,
Até lhe entortar as costas.

30
Sou sujeito arrevesado,
Tudo o que toco pega contrário.
Se toco numa árvore, ela pega gestos de gente.
Se toco num girassol, ele pega gestos de bicho.
Se toco num sapo, ele pega gestos de pedra.
E se toco em mim mesmo,
Pego gestos de palavra.
As palavras são o oposto de mim.

31
O garoto aprendeu com o avô,
Como se entorta o horizonte de lugar.
É só olhar pra lua e depois se deitar,
Esperar as conchas cobrirem o corpo

63
E ser apossado de um espírito xamânico.
Aí se chama pelo silêncio,
E quando ele vem,
Se abre o silêncio.
O lado do silêncio que se abrir primeiro,
A gente pinta de azul.
Aí vai se seguindo mais alguns passos,
Até se ficar tonto com tanta instrução.
Finalmente quando tiver bem tontinho mesmo,
O horizonte entorta por si só.
Outro caminho é fazer uma frase, como
“O horizonte está torto de lugar.”
Tanto um como o outro desensinam.

32
A caixa do céu
No topo dos hemisférios
Abandonada
Se abre
Para a entrada
Da nuvem santa
E o xamã
Antropófago
Assimila a lua.

64
33
O Cabeça de Minhoca sentou a funda no bem-te-vi coitado.
Mas foi de a dar com pau mesmo.
Do outro lado do Guaíba,
Ali pela Barra do Ribeiro,
Um guri viu o bem-te-vi caído e achou aquilo muito afudê.
Ah, para!
Aposto que, se fosse o guri a levar fundada, ele nem aguentava o tirão.

34
“Abriu o açougue!”
Gritou o Barriga de Traquinas.
E todos iam dando bomba pra tudo quanto é lado.
“Vai lá.
Acaba com a raça deles.”
O jogo tinha mais ausência de juiz que abundância de gols.
“Eu sou colorado.”
“Eu tricolor.”
Aí a coisa ficava séria.
Quando começou a chuva, ter ido jogar foi a pior viagem.
Saí descendo a ladeira,
À toda, feito um viamão lotado.
Quando acabei, tava a mãe em casa com uma porção de aipim.
Chamei os guri e a gente se empanturrou pra valer.

65
35
Acostumado a se bolinar sozinho,
Foi feita a dádiva.
Todos sabiam que ele ia afrouxar o garrão,
Então se precaveram.
Marcaram um puta-secreta.
Cada um ia presenteando o brother com uma prima.
Tipo amigo-secreto de natal,
Só que melhor.
O Cabeça de Minhoca se acocou pra trás.
Onde tava se metendo o guri?
Mal sabiam os parceiros que ele ainda era cabaço
E não estava muito a-fim.
Mas logo se meteu pro quarto com duas prima
E se acabou em meio segundo.
Voltou com a cara de um abobado.
Estava faceiro, faceiro, o Cabeça de Minhoca.

36
Aprendeu do pai o desencanto.
Se colocou a virar árvore desde cedo.
Parou ao lado duma bananeira e plantou uma muda com seus pés.
Conforme foi crescendo, foi virando poesia.
Até com seus frutos se mudar pra sabiá
E ir cantar em outros cantos.

66
37
Olhar de fixo na parede,
Eis um dom do vagabundo.
Ficar viajando em pensamento,
Até virem as imagens,
Até virar poesia.

38
Catei um poema no lixo.
Ainda estava em decomposição.
Devia ter uns cem duzentos anos.
Poemas levam séculos pra se decompor.
Homero ainda não se decompôs.
Camões também.
Virgílio, Dante, etc, etc.

39
Cheguei atrasado no aeroporto da vida.
Perdi a conexão com a realidade.
Dos meus atrasos retiro minhas derrotas linguísticas.
Retiro também meus delírios verbais.
Com palavras fracasso tanto a ponto de ser ninguém.
Poesia que é expressão do tédio,
Que é expressão de derrotas e das sobras dos seres,

67
Poesia é o hospício da linguagem.
Metáfora que é expressão da poesia,
Que é expressão do poeta,
Metáfora é a palavra em surto psicótico.
Poeta é aquele sem conexões do que loucuras.

40
Muitas palavras estão sendo esquecidas,
Deixando de serem usadas
E sendo substituídas por outras.
Quando eu era menor, por exemplo,
Se dizia que alguém amava outra pessoa.
Hoje se diz que a pessoa tem um crush.
Amanhã não sei.
Mas quero registrar que o amor um dia existiu,
Pra que, caso se esqueça dele,
Um dia alguém encontre estes versos
E vá pesquisar o que isso significava.
Quando vê, o alguém do futuro
Pode até voltar a amar
Como se amava quando eu era menor.

41
Com a parótida cheia
Da gosma

68
Dos caracóis,
O garoto
Bate o tambor
Dos quatro ventos,
E o silêncio do sonho
Acorda a noite
Descoberta.

42
Eu sou o abandono
Duma estrela
Sem constelação.
Finalmente,
Cresço para cogumelo.
A sabedoria
Me dá a gratidão
Por aquilo que sofri.

43
Ovni-feiticeiro
Com seu colar de conchas
Abre o coração do planeta
Com um alicate
Dentro dos teus olhos.

69
44
A imagem do sabiá saiu voando pelo espelho do rio.
Eu acompanhei a nado.
O nada fazendo estripulias.
E o sabiá mergulhando na água.
Saindo da atmosfera.
Rumo ao espaço.
Aquele sabiá queria virar estrela.
E virou.
Quando foi atropelado pela turbina do avião.
A imagem afundou.

45
Vejo a palavra ave
Voar pela página
Carregando sua pena,
Banhando-se no tinteiro
E mergulhando fundo nas linhas azuis.
Vejo a palavra ave
Entregue ao milagre poético.

46
Amar as lesmas sobre todas as coisas
E os caracóis como a mim mesmo.

70
Entortar o horizonte de lugar
Como o canto do sabiá entorta.
Se diz que o canto do sabiá está de porre.
Amar então o porre do canto do sabiá.
Eis meu mandamento.

47
O poeta trabalha no escuro,
Vendo pelos olhos de coruja
Do tempo.
Retira a esperança nua,
Jovem e fria
E goza nas palavras
Seus mais profundos anseios.
O poeta é uma noite coberta de girassóis mortos.

48
O suicídio vivo acorrentado a um muro.
O arãquã vai e bate nele
Até quebrar,
E a morte o acompanha até o outro lado da rua,
Onde ele atravessa feliz
E com um sorriso de quem nunca tiraria a vida.

71
49
Encostei as orelhas numa nuvem,
Só para ouvir os números divinos
Caírem como cachús nos nossos caracóis,
E debaixo deles adivinharmos o futuro.
Encostei as orelhas numa nuvem
Só para sentir a água entrar no ouvido
E pra perder o ar numa distância longínqua.
Eis como é correr mais que quinze minutos.

50
Abro a porta da alma.
Encontro pirilampos
+ pirilampos.
A luz dos vagalumes cega minha visão turva.
Eu caio acorrentado à minha pureza,
Desço ao inferno de Dante
E carrego as almas do umbral
Em direção à luz divina.
Dançamos extasiados
Músicas celestes, dionisíacas
E acordamos para a morte eterna
Crucificados com nossas cem virgens.

72
51
Vivo de impossíveis.
Sou mais inteligente que a felicidade,
Por isso carrego uma tristeza de pedra carregar.
O peso é como de uma pluma
Coberta de uma nevasca.
Eu quase tropeço,
Eu quase morro.
No caminho perco meus pelos.
Meus cabelos caem.
Minha alma cai.
No caminho perco a mim mesmo
E depois me encontro em ti.

52
Ando até meio que esquecido do silêncio.
Tenho parado pouco para observar meus nadas.
Os vazios me preenchem por inteiro.
Daí a pobreza nas minhas palavras.
Daí a miséria na minha mente
E a morte no meu pensamento.

53
Meu sonho virar vento.
Trabalho me desenvolvendo para árvore.

73
Crescer para pedra meu intento.
Para isso o silêncio me congraça.
Divindades me pungem.
Eu sou a natureza coberta de personificações.
Uma borboleta me disse que ela era farta de ter asas.
Eu compreendo sua indignação,
Pois estou farto de ser gente.
Coisificar o homem é tarefa de poeta.

54
Sou feito de abandono.
Faço parte da natureza como o céu faz.
As palavras me pertencem.
O reino delas me visita.
As árvores aproveitam minha sombra.
A chuva se refresca com meu ser.
E alguns até que gostam de minhas peraltagens verbais.

55
Gafanhotos me exercem.
Uma coruja me chama pra de noite.
O sol me faz chuva.
Adormeço à hora do nascer.
As nuvens me desnublam.
Eu sou uma formiga desdentada.

74
56
A palavra se suja de mim.
O poema é um acúmulo dos meus restos.
As memórias, o presente, as visões,
As imagens me desenfeitam.
Frases me pegam desprevenido.
Pedras, árvores, rios,
A natureza me assalta.
Do susto vêm o verbo.
Antes do começo, era o assalto da natureza.
Só depois é que veio o susto do poeta.
O que fez surgir o verbo.
De onde vêm os delírios verbais
Que compõem o mundo e a poesia.

57
Aprendi com uma açucena a calcular a cor das horas.
Amanheci numa hora azul.
Nasci numa hora anil.
Morri numa hora pedra-cor.
Neste momento pinto uma paisagem cor de árvore quando corre.
Os caracóis passam por sobre a paisagem.
Meus pincéis são comidos pelas traças.
Meu lápis é insignificante perto da borracha

75
Que a tudo apaga.
Eu mesmo sou apagado junto às letras.
Meu espírito se consome aos cardeais.
Eu sou uma pedra morta conversando com as deusas da manhã.

58
Falo em língua de silêncio.
Idioma nenhum outro o papel aceita.
A folha odeia ser tirada do seu branco.
Eu desgosto sair da inércia.
Escrevo por hábito.
Mancho as linhas por descuido.
Crio sons acidentalmente.
Minha intenção é escrever uma pedra,
Uma pedra de sonho,
Que fique quieta,
Invisível,
Morta,
Sem atrapalhar o poema,
Sem ritmar demais o leitor.

59
O meu chão fala em língua de gente.
Converso com ele na voz dos pássaros.

76
As conchas me inundam com seus oceanos.
O silêncio das pedras me divina.
O timbre de deus tem uma cor azul.

60
Tartarugas têm jeito azul de entrar no casco.
Formigas me fazem ninho.
As abelhas me colmeiam.
Compareci na festa dos cardeais.
Eles como sempre puxavam a manhã nas suas asas.

61
Uma vez conheci uma pedra que tinha virado gente.
Do chão aprendi a ficar parado para o tempo.
Sofro com a corrosão das horas.
Imóvel vou me despedaçando,
Virando areia aos poucos.
Como a pedra que virou gente,
Na velocidade de uma lesma.

62
Deus deitado ao meu lado
Na cama do jardim
Com suas folhas de grama

77
E sua paisagem de azul,
Com seus pássaros
E seus cantos,
Com suas nuvens
E os encantos.
Deus deitado ao meu lado
Na cama do jardim
Me ama,
Ele me ama
Ou seria ela?

78
Spiritual Enlightenment
There is an empty boat in my heart
It wants to sail over the world
It wants to conqueer our mind
There is an empty boat in my heart
I ask for truth
I ask for myself
I ask where am I
Who am I
And I found no answer
I found noself
I am nobody
I am
Just am
Just om
Just a sound that carryes a boat
There is a boat
There is an empty boat in my heart
And it wants to be full
And it wants to be infinite
And it is
It is full and it is infinite
My boat lives in silence
My boat lives in light
My boat carryes my heart
Through the waves of my body
My boat carryes my heart
Through the waves of my soul

79
My boat is my body
My body is my soul
And I ask
Where is my body
Where is my soul
Who am I
I am an empty boat here inside
Here inside there is an empty boat
It came from nothingness
It goes to emptyness
It came from my heart
It goes to my soul
And it fades whithin the sunlight
It fades within the death of an enlightened star
And I fade inside my heart
There is an empty boat inside my heart
And I fade as the boat sink
Into the waves of eternity
It came from nothingness
It goes to emptyness
It came from my heart
It goes to my soul
And it fades as I fade into existence
I am an empty boat travelling inside god’s heart
And I am the god’s heart
Who asks for you
And asks for all
Who am I

80
O que era claro escureceu
Acabo de descer da montanha e, daqui de baixo, grito estas palavras. Não tenho pretensão de
ser ouvido.
Estou já acostumado com a distância. Estive muitos anos no alto. Lá não havia ninguém.

Vivi solitário. Vivi como um louco. Fui feliz, mas loucos deliram.
E num desses delírios, pensei poder voar.
Quis sair andando nas nuvens até a montanha ao lado.
Fui ver se lá haveria alguém com quem conversar.
Queria contar as boas novas.
Havia feito uma grande descoberta.
Pensei que alguém que vivesse nas alturas pudesse me entender,
Mas caí.

As nuvens não eram sólidas o suficiente.


Aqui em baixo, posso contar o que sei sobre a vida e sobre o mundo.
Conheço cada pensamento que a mente humana é capaz de produzir.
Já sei o final de cada história, de cada mito.
Conheço todas as interpretações de cada obra de arte que será produzida nos próximos milê-
nios.
Sei de toda evolução.

Vivi anos nas alturas.


Lá construí um telescópio capaz de olhar em qualquer direção e olhei pra dentro.

81
Lá do alto vi cada segundo de bilhões de vidas. Posso solucionar cada problema da humanidade.
Sou capaz de levantar a bandeira branca e cravá-la na lua,
Ou em qualquer país.
Se for necessário, posso queimar todos os mapas.
Posso construir pontes em todas as fronteiras.

Sei como montar o quebra-cabeça dos continentes.


Sei como montar o quebra-cabeça do DNA e da sua mente.
Consigo explicar como o mundo começou e como vai terminar,
Mesmo que isso de fato nunca tenha acontecido, nem nunca acontecerá.

Sou um sonho acordado. Sou a morte viva. Sou um ser humano sábio. Sou todas as contradições.

Choro todos os dias, porque minha máquina do tempo ficou no alto.


Queria ir ao dia em que os homens se compreendem,
Não uns aos outros, mas a si mesmos e, assim, aos outros si mesmos.

Choro todos os dias, porque minha alma ficou lá em cima.


Era ela que sabia todos os idiomas.
Eu só sei de tudo, mas sou louco.
Ninguém me ouve.
Se soubesse falar, eu contaria o sonho que tive.

Estava andando pelo jardim e fui correndo atrás de uma borboleta,


Mas ela era branca e se confundiu com as nuvens.

82
Não liguei e segui em frente.
Então, desci pela janela do mundo até o inferno.
Acordei.
A montanha desabou e agora ninguém me entende.
Estou morto.

(silêncio)

Agora sou solidão criadora!


Estou perdido no deserto do meu quarto, trancafiado na cela de minha casa,
Naufragado na ilha da minha rua, esquecido na guilhotina do meu país.
Estou sozinho num planeta azul entre tantos outros planetas azuis solitários como eu,
Sozinho na multidão do universo.
Estou calado, na frente do microfone desligado,
Sem voz, na frente da plateia dormindo,
Em silêncio, na minha mente moderna.
Estou imerso no silêncio do outro mundo, infinito na escuridão do nada, pacífico na não exis-
tência.
Estou Deus que cria o mundo todo sozinho, morto, crucificado, traído pelo diabo,
Invejoso do sucesso do inferno, incapaz de se entregar a danças pecaminosas,
Tedioso com as mesmas músicas angelicais, quebrando harpas que produzem a falsa arte ce-
leste,
Raivoso contra os santos, que pensam em descer também ao inferno, mas que são covardes,
Triste por eu mesmo desejar ser o diabo.

83
Eu sou eterno, mas me mataram,
Preferiram o caminho errado, o caminho natural, o melhor caminho,
O que se afasta de mim,
Me deixa jogado, de lado,
Num canto qualquer de uma nuvem que aos poucos se despedaça,
Também querendo descer, como chuva, ao chão, para depois ser absorvida pelo solo,
Descer às profundezas da terra e encontrar um lençol freático poluído e à espera de mais lixo.

Enquanto sonho com tudo isso,


Minha deusa solidão assiste a meu corpo divino se contorcendo, gritando, tentando acordar do
pesadelo.

Dizem que criei o mundo, mas não me lembro de tê-lo feito. E se fui eu, foi sem querer,
Estava sonhando, inconsciente, refém de meus desejos, tomado, eu mesmo, pelo diabo.
E o sonho virou pesadelo.
Agora quero logo levar um tiro, quem sabe assim acordo, mas nem para me matar me procuram.
E se me atingissem, ainda assim não acordaria,
Meu corpo divino, ainda que em sonho, é infalível.
E mesmo que morresse e que o sonho acabasse,
Ainda teria de assistir ao diabo tendo o mesmo sonho que eu.
Sonhos se repetem em mentes diferentes e por mais que se saia deles, eles voltam,
Eles encontram outro sonhador, eles assustam, mas também eles criam montanhas,
Criam seres que vivem nelas, criam sonhadores, criam loucos,
Reproduzem-se, espalham-se, dominam o universo, que não passa de sua criação.
Por isso, desisto. não quero mais acordar.

84
Vou ficar aqui, sozinho, delirando, assistindo a tudo lá embaixo.
Mas, abro o olho e vejo que estou no chão.
Esqueci que fui atrás da borboleta.
Já estava sonhando de novo.
Não consigo parar de criar novos universos,
É o que sei fazer,
É o que faço enquanto minha outra metade faz o mesmo.
E nossos sonhos se entrelaçam neste momento,
Meu céu, seu inferno,
Nosso planeta Terra.

85
Posfácio por Carlo Mocellini
Tal qual um maníaco em surto, a obra de Rudi Renato Jr. se torna, em sua própria
essência, reflexo de um colapso: seus poemas expõem uma dicotomia, transitando
livremente entre a utopia e a distopia. Seus versos manifestam os castelos e ruínas
da mente do autor, a antítese transparecendo em cada parte do livro, algo que, se
comparado a uma obra de arte, (o que, ao longo das páginas vai se revelando ser) é
o equivalente ao admirar uma mistura de Basquiat com Salvador Dalí.
Assim como Manoel de Barros, Rudi redesenha os limites da linguagem e de seus
sentidos. A influência desse autor, aliás, se torna perceptível ao longo da obra, de-
monstrando estar tão impregnada de seu universo onírico criado através de técni-
cas surrealistas como o próprio autor sugere em seu prefácio desinteressantíssimo,
onde claramente se vê a intertextualidade com Mário de Andrade. Intertextualidade
que se vê em toda a obra principalmente com os poetas citados mas também com
diversos poetas malditos nas partes “poemas no parque” e “surto”, onde a poesia
leve e descontraída das outras partes dá lugar a um universo também de sonho e
delírio mas desta vez de uma forma mais densa e evidenciadora de sofrimento por
parte do eu-lírico. Rudi Renato Jr. em Mania se mostra um poeta versátil, trafegan-
do a linha tênue entre sanidade e loucura, com poemas leves e pesados, com textos
aparentemente surrealistas mas muito bem pensados.
Mania é uma obra para todo o tipo de gosto em poesia, mas principalmente para
aqueles que se interessam pela irracionalidade. Em um período de escuridão lite-
rária, Rudi Renato Jr. surge junto com sua obra como um lampejo de luz. E tudo
ficou tão claro...

86
Editor responsável Esta obra é uma publicação da
Zeca Martins Editora Livronovo Ltda.
CNPJ 10.519.6466.0001-33
Lilian Nocete Mescia www.editoralivronovo.com.br
Capa @ 2018, São Paulo, SP
Zeca Martins Impresso no Brasil. Printed in Brazil
Revisão
Equipe Editora Livronovo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

T337m
Tedeschi Jr, Rudi Renato.
Mania / Rudi Renato Tesdeschi Junior. – Águas de São Pedro: Livronovo, 2018.

88 p.; 21 cm
ISBN 978-85-8068-288-5
1ª edição

1. Literatura brasileira. 2. Poesia. 3. I. Tedeschi Jr, Rudi Renato. II. Título.

CDD – B869

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