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O dia em que eu apaguei uma estrela.

É, para mim, extremamente, deslumbrante a vista que se tem do céu à noite na orla de
Copacabana. Quase sempre lotada de carros e luzes, pouco se pode ver a imensidão
escura dali, mas com o esforço de no máximo vinte e um passos largos em direção ao
mar, as luzes artificiais vão ficando pequeninas e se pode ver com mais clareza o brilho
das estrelas tocar-lhe à areia. É neste ponto da orla de Copa, onde o céu fica
deslumbrante. Costumava deixar-me ali todas as quartas, a esperar pelos pequenos
pontos que iam tecendo à noite carioca. Eu era apaixonado por estrelas. Em uma destas
quartas, eu saí do trabalho despretensiosamente, pensando que faria o mesmo trajeto,
porém sem muitas ganas de viver algo novo. Ao caminhar os passos necessários, olhava
no horizonte mantendo a tradição de todo homem que encontra o mar daquela região.
No ponto de sempre, parei, respirei fundo, deixei as águas tocarem o céu em minha
frente enquanto torcia o pescoço suavemente para o alto. Estranhei. Havia algo de luz
que dantes não estivera ali. Reparei-o bem, tentando entender como aquela estrelinha
poderia ter surgido em uma semana. Sufoquei-me com o ar que puxava fundo como
quem em um inspirar descobre o mundo. Sentei-me, pois o peso daquele novo brilho
parecia cair sobre as minhas pálpebras. Admirava-o. Tal cintilar fez com que meus
olhos se fixassem em um único espaço do imenso vazio, era como se não houvesse
estrela alguma além daquela nem brilho algum além daquele. Ela parecia distante, não
se aproximava, gostava de manter-se longe, insistia na distância. As nuvens do Rio de
Janeiro eram uma espécie de armadura àquela ponta incandescente, afinal, ora ou outra
elas passavam e não se podia vê-la. Era árduo o trabalho de mantê-la visivelmente
acessa. Contudo, eu não pude sair dali, eu não conseguia não deixar que seus raios
penetrassem em mim; por mais que desaparecessem por detrás das nuvens vez ou outra,
quando surgiam eram feitos do material mais intenso que há no cosmos. Valia a pena
esperar. Foram várias outras quartas ali. Mesmo em dias de chuva, esperava o céu
colapsar em lágrimas para vê-la outra vez. Em uma quarta tortuosa, cheguei à mesma
posição, fiz o mesmo movimento com o pescoço a deixar o horizonte no mesmo lugar,
conquanto ao mirar na negra imensidão deparei-me, por um descuido, com outra estrela,
numa tentativa estúpida de entender que jamais tocaria aquela outra como queria tocá-
la. Não respeitei o tempo do seu brilho. Em um golpe, percebi a bobice que era a ação
cuja marca me custara caro. Quando voltei a procurar pelos seus purpurinares, um oco.
Um vazio no vazio. Ela já não estava mais ali, enquanto perdia-me erroneamente em
outra faísca qualquer. Hoje é quarta. Estou em Copacabana. Deixei o mar no horizonte,
torci o pescoço e agora olho para o alto. Hoje o vazio deixado por aquele brilho me
lembra do dia em que apaguei uma estrela. É sobre essa história que você vai ler agora.
CAPÍTULO 01

CHUVA

Chuá. Chuá. Chuá. Vai sair nessa chuva? Chuá. Chuá. Mas eu deveria de esperar
a próxima então? Chuá. Chuá. Chuá. Espere até que ela se acalme pelo menos, você está
a pé hoje, não está? Chuá. Chuá. Chuá. Chuá. Mas se ela está ficando cada vez mais
forte, eu não posso esperar, além do mais, são seis quadras até a minha casa e com a
quantidade de árvores que há neste bairro, digamos que eu vá me molhar pouco. Aqui é
o Rio de Janeiro, meu amigo. A chuva é a nossa companheira inevitável. Você não pode
evitar que ela venha e quando vem, se você olhar do lado correto do prisma, vai
perceber que ela traz acalanto e não temor. Você vai perceber que se molhar nela é uma
chance para refazer-se. Chuá. Chuá. Chuá. Você sempre tão poético, meu amigo. Vá,
então, mas avise-me quando chegar, por favor. Chuá. Chuá Chuá. Chuá. Isso não é
poesia, meu caro. Isso não é poesia. Isso é perspectiva de vida. Os dois sorriram alto.
Chuá.
A chuva, pensando bem, se tivesse local de nascença, ela seria carioca. Afinal, a
chuva está na fala do homem que nasce nesta região. O “x” que rouba o lugar do “s” é a
prova para esta minha hipótese. A fonética unida à licença poética me permitiria esta
afirmação. Quem nunca se perdeu ao ouvir um carioca da gema contar até dez. O doix,
o trex, o seix, o deix. A sensação é a de que se você continuar muito tempo ali, ouvir-se-
ão trovões no meio da fala. Aquele era um dia bastante carioca. Chovia muito e foi a
vez do céu contar até dez, pois o barulho do chuá era ele quem fazia. Era costume meu
sair sempre um pouco mais tarde que todos os outros professores daquele colégio. Às
quartas-feiras, eu terminava o dia com uma sala de segundo ano do Ensino Médio. Eu
era professor de literatura. Era novembro, época em que os trabalhos pedagógicos estão
a terminar, afinal, com as provas finais concluídas poucos alunos param para ler sonetos
de Fernando Pessoa ou ainda menos são aqueles que se debulham ao ler qualquer
crônica de Clarice. Ainda assim, neste dia, a sala esteve cheia. Comentamos alguma
coisa sobre o poema Ismália de Alphonsus Guimarães, trazia-me grande satisfação olhar
para aqueles olhos gigantes fixados em mim, enquanto eu, em uma tentativa drástica,
lia-o com ares de Fernanda Montenegro. Cada encavalgamento era uma espécie de
conexão que a lua do céu fazia com a lua do mar. Depois disso, pedi a eles que
escrevessem sobre a impressão que tiveram ao ouvi-lo, comparando-a à impressão que
tiveram quando o leram. Para mim sempre foi muito importante entender sobre como os
alunos recebiam a poesia. Eu tenho guardado em meus conceitos que ler um poema não
é a mesma coisa que ouvir um poema, ainda menos poderia ser descrita de forma igual a
sensação de declamá-lo. A sala, enquanto saía, deixava em minha mesa os papéis com
seus escritos. Eu, bastante curioso e ansioso, sentei-me para começar a leitura dos textos
entregues, deixei-me ali por algum tempo, resultou-me isso na perda do horário de
fechamento da escola. O dançar das águas na janela da sala de aula e a pouca luz que
vinha lá de fora me lembraram de que já era a hora de estar em casa. Somado a isso, um
muito amigo meu, dedicado à gramática da língua, parou juntou a porta olhando-me
com severidade como quem quisesse dizer alguma sentença com conteúdo de
repreensão, não pôde segurar a má feição por muito tempo, no próximo segundo,
olhava-me com cara de sorriso a dizer palavras que me encorajaram a terminar aquilo
no dia seguinte. Chuá. Chuá. Chuá. Estávamos já no portão de saída quando ele se dera
conta do toró que caía lá fora. Oscilava ele outra vez. Agora me dizia que eu deveria
esperar um pouco mais no colégio para não sair naquela chuva, falamos algumas coisas
sobre poesia e perspectiva de vida. Sorrimos. Eu não pude evitar, permiti molhar-me e
fui dançando de sombra em sombra, a esperar que a copa corpulenta das árvores
pudesse me proteger das gotas frias que me fizeram lembrar-me de uma das partes que
lera em um dos trabalhos entregues pelos alunos. Quando eu ouvi o poema, imaginei a
Ismália como uma gota de chuva que queria estar no céu, mas que também queria estar
no mar, a torre dela seria uma nuvem. Aquela ideia não escapava da minha mente, dei
voltas e voltas nela, tentando entender o que causara esta sensação na imaginação do
garoto. Qualquer crítico literário estudioso da poesia diria que esta interpretação é
pouco verdadeira, afinal, é-nos claro que Ismália está em seu universo onírico; partindo
disso faríamos uma breve citação de Platão para refutar. Universo Onírico. Onírico.
Universo. Universo Onírico. Se for parte do universo onírico da perspectiva poética, por
que eu impediria o sonho do garoto ao entender Ismália como uma gota de chuva?
Pingos mais grossos começaram a cair, as folhas das árvores já não eram capazes de
servir-me como escudo. Comecei a banhar-me em Ismálias. Aquela imagem não
deixava minha mente em paz. Para cada vez que sentia uma gota de chuva a tocar-me o
corpo, imaginava uma nuvem como uma extrema fortaleza que prendia a pobre
sonhadora. Ao sentir-me todo molhado, decidi trocar o caminho. Cambiar el rumbo. Era
passagem minha obrigatória, o posto nove de Copacabana. Morava na Siqueira Campos.
Costumava chamar-lhe de rua rio, afinal, ela começava no morro e desaguava no mar. O
morro era sua nascente. O mar, o seu ponto de despedida. Onde a Siqueira Campos dizia
adeus, eu me encontrava. Já encharcado pela água que vinha dos céus, parei na orla de
Copa, olhando o horizonte, molhando-me. Refazendo-me. Ressignificando Alphonsus
Guimarães. Deixei que a chuva me desfizesse para me refazer. Eu estava na orla, na
verdade, eu ainda estou na orla de Copacabana. Deixei-me ali e não pretendo voltar para
buscar-me.
Logo, o cinza foi dando lugar ao preto. As fortalezas foram indo embora, tantas
Ismálias já se misturavam à infinitude das águas para encontrar a lua no mar. A
quantidade de carros aumentava, a quantidade de pessoas também. Sempre me
perguntei sobre o porquê do enorme apreço que tinham os turistas por aquele ponto da
praia. Nunca houve contestação. Alguém quer uma fotografia? Não querem um retrato?
Olha a caipirinha de frutas. Caipirinha de frutas, como assim? Caipirinha não era só de
limão? Claro, senhora, aqui a gente tem de limão também, mas tem de morango, amora
e abacaxi. Amora? Ela nunca tinha visto caipirinha de amora. O rio de janeiro tem
coisas que só o Rio de Janeiro tem. Algumas vezes, podia-se também ouvir um sotaque
diferente em um pedido de bebida alcoólica. Eu gostava de estar ali. A calçada era
bastante atrativa, os homens que ofereciam as bebidas tinham um poder de persuasão
que qualquer professor de argumentação invejaria. Além disso, trocar algumas palavras
com argentinos e colombianos nunca era impossível. Para quem tinha formação em
espanhol, aquele era o local ideal para importantes trocas de intercâmbios linguísticos.
¿Nos llevamos un llavero? Pon tus cosas sobre la cama, mañana ya vendrá la señora que
cambiará todo. Fui afastando-me, afinal, toda aquela conversação me nublava a vista e
me fazia perder os pensamentos que importavam de verdade. A ideia de que Ismália
poderia ser uma gota de chuva ainda me perturbava a mente. Olhei para o horizonte, fui
caminhado em direção a ele como se meus pés ansiassem achar o mar. Vinte e um
passos largos foram necessários para que eu me sentisse longe de toda aquela multidão,
foram o essencial para que minha vista ficasse longe de tudo aquilo que era artificial
para que enfim eu me deparasse com aquilo que era natural. Pouca gente sabe que se
pode ver estrelas no céu do Rio de Janeiro; há quem ache que o céu daqui imita o céu de
São Paulo, mas não é assim. Diferente do céu de lá, acá, facilmente se pode ver as
estrelas desde que você esteja no lugar correto. O posto nove da praia de Copacabana,
no final da Siqueira de Campos, é um bom lugar para isso.
Ninguém espera muito de uma quarta-feira. Naquele dia, percebi que naquele
lugar era possível encontrar um Rio de Janeiro que pouca gente conhecia. Comecei por
sentir como as bravas marolas da sereia do mar eram capazes de afundar meus pés na
areia. Conforme elas iam e vinham, sentia-me afundar-me mais, era como se parte de
mim fosse levada junto à senhora das águas salgadas. O homem demora a pensar sobre
os mistérios do divino em si. Seria Iemanjá alguma espécie de gota, ou melhor, uma
espécie de Ismália que desceu para buscar a lua do mar? O excerto daquele aluno me
batia forte na cabeça, era difícil apagar aquela imagem depois de um dia de chuva.
Pensei: se há Ismálias no mar, haverá ainda outras no céu; foi a partir deste pensamento
que deixei o horizonte no seu devido lugar e caminhei meus olhos até o céu a esticar a
pele do meu pescoço totalmente, aí então, encontrei-me com o céu. Aquela espécie de
lona preta era todo o teto que me cobria. Nenhum sinal de nuvens carregadas. Qualquer
um que olhasse para o céu naquele momento desde onde o via eu, jamais iria dizer que
há pouco tempo chovera na proporção em que realmente choveu. De repente, comecei a
perceber vários pontos de luz na vasta imensidão escura, percebi que alguns daqueles
pontos eram de uma cor bastante nítida enquanto outros me faziam duvidar; comecei a
contar quantas estrelas eu fosse capaz. Olhei minuciosamente para cada uma delas,
enquanto Ismália voltava para os meus pensamentos, afinal, se há Ismálias que quiseram
descer, transformando-se em gotas para encontrar-se com a lua do mar, existiriam
Ismálias que escolheram a lua do céu, transformando-se em estrelas? Guardei aquela
pergunta em algum recôncavo da minha inóspita mente para na quarta seguinte
perguntar ao garoto o que ele pensaria sobre esta nova possibilidade de personificação.
Guardei-a. Não podia deixar o céu, não podia ir embora. Dei-me conta de que as águas
já haviam tragado minhas pernas até os tornozelos. Arranquei-os daquela areia molhada
e ao olhar para o chão, dei-me conta de ainda outra coisa, dei-me conta de que o brilho
das estrelas lá de cima podia-se ver refletido acá embaixo. O brilho das estrelas a tocar-
lhe a terra tendo como auxiliar as águas de minha mãe. O reflexo poderia ser Ismália. O
céu podia tocar a terra, mas pobre era a terra, pois não lhe deram a ela a chance de
mesma viagem, ou seja, não lhe é possível viajar ao céu, ainda que este busque alguma
forma ou algum meio para visitá-la.
Dei dois passos para trás, tirei os sapatos que ainda tinha nos pés, voltei para a
calçada, agora muito mais tumultuada que outrora. Pedi licença a um ou dois
transeuntes e fui caminhando em direção a minha casa. As ruas ainda lotadas, os carros
que não me deixavam passar com facilidade por aquele espaço e a quantidade de luzes
que faiscavam em meu olhar me impediam de ver o céu que via há poucos minutos.
Quis voltar, mas lembrei-me de que na quinta tenho o primeiro horário com uma turma
de primeiro ano. Melhor voltar para casa e deixar o céu a me esperar ou deixar-me a
mim a esperar por ele. Lembrava-me da quantidade de estrelas que vira e angustiava-me
por não poder vê-las dali de onde estava agora, angustiava-me ainda mais a ideia de que
mesmo da varanda de casa não se poderia ter a mesma vista que tinha de lá, da orla de
Copa, no posto nove. Se eu quisesse vislumbrar àquilo novamente, seria necessário
levar-me de novo àquele lugar.
Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar. Foi lá e é ainda lá que eu
hei de ouvir cantar um sabiá. Onde deixaram a minha taça de vinho? Mas como alguém
poderia ter deixado ela em algum lugar se eu sempre estou sozinho? É quase que um
pecado ouvir Chico Buarque sem uma taça de Vinho. Vou voltar, sei que ainda vou
voltar. Não vai ser em vão que fiz tantos planos de me enganar. Onde deixei o meu
vinho? É questionável a experiência de um homem que vive sozinho e que ainda assim
tem a capacidade de perder as coisas a que ele mesmo guardou. Onde deixei a saca
rolhas? Como fiz enganos de me encontrar. Como fiz estradas de me perder. Achei.
Seria um pecado deixar esta noite acabar sem uma taça de Vinho. Afinal, ainda que haja
estrelas por aqui, pouca gente consegue encontrá-las. Há quem tope estrelas no Rio de
Janeiro, assim, por casualidade. Há quem procure estrelas no Rio de Janeiro e não as
encontra. Há quem sempre tenha querido encontrar uma. Há quem nunca vira nenhuma,
pois já se perdeu. Há quem esteve em ponto de se perder e encontrou uma estrela.

CAPÍTULO 02

O HORIZONTE

Ao pensar no oceano e no céu, eu percebi e me dei conta de que eles sempre


estiveram separados pela gravidade ou coisa assim. Há um mundo todo entre a água e o
ar; tantos caminhos, voltas, trilhas, bifurcações, encontros e desencontros, tantos pontos
e acontecimentos físicos que os mantiveram assim, afastados. Conquanto, há um ponto,
um único ponto em toda a vasta imensidão que consegue unir céu e mar. Há um ponto
entre tantos pontos que faz com que as suaves águas encostem seus estreitos lábios
molhados na esperteza e agitação do ar. Este ponto é único. A intersecção entre o
celeste e o marítimo é o horizonte. Estar na orla e olhar ao longe é poder ver este suave
encontro e ali, ambos são inseparáveis. O vento toca o mar e as águas respingam no ar.
Entre tantos e tortuosos caminhos, eu te achei no horizonte. Eu encontrei você naquele
único espaço de possibilidades. O teu amor faz descer o céu e transbordar os mares. A
gravidade não mais afasta, não há mais um mundo entre nós. Encontrei-te no horizonte
e serei sempre c(s)éu.
Professor. Professor. É comigo? Por mais que seja, este vocativo, quase um
segundo nome para todos que se dedicam a docência, qualquer um concordaria comigo
que em um colégio com muitos professores é difícil saber se realmente estão falando
com você, ainda que seja inevitável olhar diretamente quando gritam este chamamento
pelos corredores. Preciso falar com você no intervalo da manhã, passe na minha sala,
por favor? Mesmo que ela estivesse olhando fixamente para mim, eu ainda duvidava se
realmente era comigo que ela estivesse falando. É comigo? Sim, é com o senhor
mesmo. Não se esqueça, por favor. Não há outra coisa que consiga me tirar à paz mais
que esta. Uma mania estranha esta do ser humano de dizer que precisa falar-lhe algo a
alguém, mas ter de sempre deixar para depois. As pessoas acham que temos todo o
tempo do mundo no presente para perdê-lo com preocupações do futuro. Esse tipo de
coisa é que pode esperar, eu não. Se precisarem falar comigo às 10h30 que me avisem
às 10h30, afinal, é nesta hora que quererão falar o que quer que seja o conteúdo. Qual a
necessidade do aviso prévio? Qual a necessidade da proclamação antes da ação?
Antecipar o futuro é tornar o caos precoce. Não já basta a cada momento o seu mal? É
ainda, mesmo, preciso adiantar o caos das 10h30 para as 07h00? Não deveriam fazer
isso a quem sofre com ansiedades. Fui para a sala de aula com uma corda, tentando
puxar o tempo para que ele fizesse a mim o favor de aproximar-se com rapidez. Queria
que fosse ágil duas vezes. O primeiro motivo é este: quero saber o que terão para dizer-
me. O segundo é este: Quero voltar à orla de Copa para apaixonar-me uma vez mais por
aquela imensidão enegrecida e seus pontos de purpurinas.
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no
mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se
perguntado por que não faz alguma coisa, responde: Estou fazendo. Estou pensando.
Nem sempre nós estamos preparados para ler Clarice. Ler Clarice é uma experiência
única na vida de qualquer pessoa, acho que até deveria ter um verbo próprio para isso:
Claricear. Pois o fato de ler qualquer coisa sua, causa-nos uma estranheza em relação ao
mundo. É como se singularizássemos alguma coisa nele e detivéssemo-nos a olhar para
aquilo horas a fio em uma besta tentativa de construir alguma imagem. Impossível.
Claricear é muito mais que ler. Entrar em contato com seus escritos é vivenciar algo
único sem nenhum outro verbo que o explique sem nenhum adjetivo que o qualifique.
Claricear. Professor? Novamente, o vocativo. Agora, fazia mais sentido ser um
chamamento a mim, afinal, no recinto, eu era o único com tal alcunha. Professor?
Demorava a responder, pois tinha em mim ainda a sensação de que a mesma senhora
que me chamara pela manhã me chamava agora. Ouvi-lo me trazia a memória o fato de
que às 10h30 eu deveria falar com ela. Professor? Diga. O bobo é um inocente, uma
pessoa ingênua? O bobo é aquele tipo de pessoa que fica horas a fio olhando para o
mesmo lugar porque sabe que do nada pode surgir alguma coisa nova. Há desvantagens
em ser bobo, mas há muito mais desvantagens em ser um espertalhão. Tenho para mim
que a essência de um bobo é o não saber que se é um bobo. Se se sabe que é um bobo, já
não o é. Ela demonstrava no rosto uma expressão de incompreensão. Professor? Ainda
outro que me chamava. Às vezes tenho a impressão de ter perdido o meu nome. A não
ser em algum posto ou em alguma fila de um banco específico, ninguém me enunciava
pelo nome que me dera minha nobre mãe no batismo forçado do qual eu nunca quis
participar. Água benta para mim é aquela que vem de Iansã. Água benta é água de
tempestade. Professor? Outra vez me perdia em meus pensamentos enquanto alguém me
forçava a acreditar que aquele era o meu nome. Diga. Pode querer ser bobo? Ou só
existem bobos de berço? E só o amor faz o bobo.
Que barulho irritante tem o sinal desta escola, não poderia ser como o de todas
as outras? Não poderiam deixar tocar qualquer música de Bethânia para que saíssemos
felizes de uma aula para a outra? Conquanto, naquele dia faltaram-me os pensamentos
para repudiar a campainha azucrinante. Eram 10h30. Era a hora de descobrir o que
queria a senhora de vocativo coordenadora. Com licença? A senhora precisava dizer-me
algo. Só um minuto, por favor? Mais um minuto? Mais um minuto, por favor? Eu já não
havia esperado o tempo suficiente para que todas as hipóteses fervilhassem em minha
mente? Era preciso ainda mais um minuto? O senhor tem todas as aulas no período da
tarde hoje não é mesmo? Perguntas. Queria afirmações. Sim. A nossa professora de
literatura das turmas do noturno não poderá vir nem hoje nem amanhã por conta de uma
febre esquisita que não souberam diagnosticar. O senhor poderia substituí-la. Odiei-a
profundamente naquele momento. Ela sabia que eu não poderia dizer-lhe que não;
avisando-me assim tão perto da hora, afinal quem seria se não eu que sou o único outro
professor de literatura daquela instituição. As estrelas me esperariam? Eu poderia
esperar pelo céu por mais duas noites? Ele esperaria por mim? Odiei-a mais uma vez.
Tentei fazer com que meus olhos a queimassem ali mesmo, fazendo-a ser cinzas, o que
a impossibilitaria de dar-me esta ordenança. Posso. Guardei um pouco mais de rancor,
pois poderia ter me tido ás 07h00 o que guardara até agora para dizer. Não era nada
realmente paciente que precisasse esperar até agora para ser dito. Não era nada que
exigisse tempo. Como range esta porta não? Muito obrigado, professor. Quis gritar-lhe
o meu nome. Eu não sou o professor, eu estou professor agora, mas e quando eu estou
em casa sem os livros, seria eu ainda um professor ou estaria ali quem eu realmente
sou? Na cama, eu deveria ser o chorão, já que pela lógica dos vocativos, os fazeres
definem o seu epíteto. O seu nome define quem você é. O seu nome tem a sua história.
Ele é o professor de literatura do colégio. E o tanto de coisas que eu sou longe dali?
O ruído estridente do sinal agora deveria ser-me algo que se possa comparar a
sensação de alívio, mas foi-me o contrário. Hoje, ele não avisava o momento de partida.
Hoje, ele vinha como uma espécie de cartaz com os dizeres: Respire, ainda não acabou.
Eu ainda estava enfurecido com a imagem da coordenadora na minha mente. Contudo, a
solidão também veio avisar-me de algo, disse-me que se eu estivesse em casa agora
mesmo, estaria sozinho forçando-me a acreditar que o silêncio era boa companhia. Ao
passo, lembrei-me de algo com que pude refutá-la. Eu não estaria sozinho. Eu estaria
entre as estrelas. 05h35. Tantos avisos encheram minha cabeça imparável. Pensei que
deveria sair um pouco dali para voltar depois, decidi que iria até a orla, afinal, eram seis
quarteirões. Trinta minutos seriam o suficiente para que eu ao menos visitasse o lugar
de minha alegria da noite passada e me sobrariam ainda vinte minutos para voltar para o
colégio e cumprir com as minhas obrigações noturnas. Fui caminhando até o posto nove
da praia de Copacabana no final da rua rio. Caminhei os sete passos largos necessários
e, pronto, estava no mesmo ponto da noite anterior. Estranhei as minhas pegadas ainda
gravadas naquele lugar. A água não tocara aquela parte da praia? Era como se aquele
lugar quisesse esperar por mim. Estiquei o pescoço até as nuvens esperando encontrar
alguma estrela. Em vão. As nuvens manchavam o céu, porém a cor que lhe davam não
era a mesma cor que se veria ali às 12h30. As nuvens estavam tingidas de um alaranjado
quase amarelo ouro. Esta palheta me fez lembrar-me da hora da despedida do sol; fiz o
caminho contrário. Em lugar de ir do horizonte ao céu, fui do céu ao horizonte. Um
novo encontro inesperado. Daqui, a estas horas, deveria ver várias sombrinhas que
tentassem guardar as gentes do sol. Quem iria querer guardar-se daquele espetáculo
todo. O sol já não ia por cima, senão já ia perdendo o seu egocentrismo, dando espaço à
noite que viria após seu espetáculo diurno. O sol era o pintor que tingia tantas nuvens
com uma belíssima cor de laranja. Tinha vontade de comer o céu. No horizonte percebi
uma conexão entre a terra e o céu. Seria ali o seu ponto de encontro? Seria ali o ponto
em que o céu deixava-se visitar pela terra? O sol fazia com que seus raios fossem uma
espécie de alarido a quem viria depois dele. O pôr-se do sol. O seu deixar-se ir embora
era uma forma de anunciação. O ser sol dava espaço com sua intensa luz a vários outros
pontinhos de luz que chegariam depois dele. Em poucos momentos da vida, entendemos
o sol como um ser gentil e benevolente, afinal, sempre nos foi ensinado que metáforas
ao sol vêm acompanhadas de adjetivos de grandeza, de realeza. O sol como um astro
egoísta que empresta seu brilho à lua. Hoje, encontrei no sol uma espécie do ser bobo. O
bobo não reclama, mas em compensação como exclama! Lá vai o sol, lá vai ele
deixando-se ir. Lá vai ele abrindo espaço para aquelas outras que virão. Os bobos com
suas palhaçadas devem estar todos no céu. A cortesia do sol a oferecer o céu às estrelas
fez-me amá-lo. É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca.
O despontar da noite, avisou-me que eu deveria voltar ou chegaria tarde. Infinita
era naquele momento a minha tristeza, afinal de contas, eu não queria sair dali. Dei-me
a perceber que o céu todo é um grande espetáculo que se tivera roteiro, ele estaria
escrito por Federico García Lorca. O poeta das cores ensinar-nos-ia sobre como o
laranja é uma marcha real, sobre como os raios amarelos estendem um tapete para a
rainha preta chegar com suas filhas de todas as cores. O verde? O verde está no mar. O
verde está nas águas.
Professor? Outra vez o vocativo impertinente e inevitável. O senhor vai para a
sala de oitavo ano. Eu vou para qualquer sala, desde que esta imagem possa permanecer
na minha cabeça, fazendo-me criar esperanças de que o céu que está lá fora possa existir
aqui dentro. Serei sempre s(c)éu.

CAPÍTULO 03

SOLidão

Caro professor, estou escrevendo para avisar que. Era o máximo que
conseguia ler na caixa de notificações que aparecia na tela de bloqueio do meu aparelho
celular. Não vou abrir. Ela, outrora, me fizera esperar, pois agora que espere ela. Não é
nenhuma birra. Estou atrasado para os compromissos de hoje. Eu tinha deixado todas as
velas aqui nesta sacola. Que mania a minha de esconder as coisas de mim mesmo. Eu
não esperava todo este atraso, não chegarei a tempo se não me apressar. Estou sem
carro, preciso descer a pé, é certeza que chegarei e já terão começado a girar. Onde
deixei as velas? Estavam todas em uma sacola no canto da sala, lugar, onde
costumeiramente deixo as coisas que preciso levar depois ao terreiro. Pois desta vez,
havia deixado em cima do sofá da sala. Que mania a minha de esconder as coisas de
mim mesmo.
Dói. Dói. Dói dói dói. Um amor faz sofrer, dois amor faz chorar. Dói. Dói. Dói
dói dói. Um amor faz sofrer, dois amor faz chorar. Te dei amor. Te dei carinho. Te dei
uma rosa. Tirei os espinhos. Te dei amor. Te dei carinho. Te dei uma rosa, tirei os
espinhos. Era incrível como desde a esquina de cima se podia ouvir o som do atabaque
unido às saudações de meus irmãos. Chegar atrasado não era meu costume, eu gostava
de participar dos primeiros rituais, mas naquele dia perdera-me com as velas que
deveria levar para o centro. Deu meia noite, a lua se escondeu. Ao passo em que me
aproximo da porta de entrada do terreiro o som vai ficando mais alto, as batidas mais
fortes e o meu pulsar mais acelerado. Era noite de senhoras e senhores, por isso, agora
já era possível ouvir suas gargalhadas, eles estavam chegando a terra e este era o meu
momento favorito, sorte a minha foi ter chegado bem neste momento. Laroyê. Já com os
pés descalços, falei com a senhora que ficava sempre a porta a entregar as senhas para
que a ordem de atendimento fosse mantida. Deram-me o número 43. O prazer de chegar
atrasado é que se sabe que se poderá passar mais tempo ali. Tinha pensado passar para
ver as estrelas depois da gira, mas vi ali meus planos frustrados, afinal, em um sábado à
noite, todo e qualquer professor está definhando-se já e precisa das cinzas do final de
semana para renascer-se na segunda. Esquecera-me de deixar as velas com a mesma
senhora que me dera a senha. Onde está a minha sacola? Alguém a viu? Vocês, por
acaso, não viram uma sacola branca que estava aqui no banco, ou a viram? Não tinha
nenhuma sacola por aqui. Foi o tempo de buscar a senha para perder a sacola. Que
mania a minha de esconder as coisas de mim mesmo. Não seria aquela ali no canto do
banco detrás? Pois muito obrigado! É aquela mesmo. Quem foi que tirara a minha
sacola daqui para pô-la ali? 4. Começaram os atendimentos e eu estava esperançoso de
poder ser atendido por uma senhora, não sei, exatamente, o porquê, porém me sentia
mais livre e bastante mais à vontade para falar com elas. Os senhores me eram muito
importantes, contudo guardavam uma feição sisuda que prendia as minhas palavras
quando eu as queria soltar. Com as senhoras, eu me sentia abraçado pelo perfume doce
delas, as saias rodadas traziam-me uma espécie de aconchego e as flores no cabelo me
davam a sensação de estar em um imenso jardim florido. O meu desejo naquela noite
era sentar na frente de uma delas, pedir-lhe, com muito respeito, licença e colocar-me
deitado em seu colo, a deixar rolar as lágrimas que guardava há muito tempo. A quem
pense que estar sozinho é uma permissão para deixar-nos a chuva cair pelos olhos, mas
quem passa a maior parte dos dias, solitário, sabe que, na realidade, acontece todo o
contrário. O estar só é um cadeado estranho que aprisiona os nossos sentimentos na
imbecil tentativa de provar-nos que somos fortes o suficiente para estar só. O choro que
deveria ser um remédio passa a ser uma debilidade. Quem quer ser fraco? Assim, há
algum tempo, guardava cada gota lá dentro e queria agora poder soltá-las todas no colo
de Quitéria ou Padilha. Que mania a minha de esconder as coisas de mim mesmo! 35. Já
é quase a minha vez. Segura o choro. Segura o choro. Está tudo bem. Sofrer é um mal
inerente ao estar vivo. Mostre suas forças ao mundo, não as suas fraquezas. Eu havia
lido estas frases em alguma capa de algum livro que meus alunos me apresentaram em
alguma aula. Eles costumavam ler coisas que lhes impulsionasse a alguma autoajuda.
Nunca lhes foi o suficiente este tipo de leitura. Eles continuavam fracos. Afinal, ser
fraco é um problema? Estar fraco é um problema? Sentir-se fraco é um problema? Estar
fraco não é o mesmo que não estar forte. Todos sentimos dores e assumir que dói,
assumir que se perdeu forças é a maior fortaleza que um homem pode ter, só
reconhecendo a dor se pode conseguir a cura. Tem uma gota no canto do meu olho
agora, ela me molha a face deixando-se cair na minha roupa branca, criando um ponto
que me lembrava de todas as outras que queriam vir depois desta. Que mania a minha
de esconder as coisas de mim mesmo. 43.
Boa noite, minha senhora. Boa noite, moço. Me dá um cigarro. Anda
preocupado demais, não é? Trouxe um rosto aflito hoje e parece que tem o olho de
quem quis chorar. Não é nada, minha senhora. Na verdade, eu vim por um motivo
específico, não tinha motivo nenhum, estava criando qualquer pretexto bobo para não
ocupar-lhe tempo à toa. Quero que a senhora abra os meus caminhos no trabalho. No
trabalho? Meu filho, não são os seus caminhos no trabalho que precisam ser abertos; é o
seu coração quem anda fechado demais. Você precisa aprender o que Dama da Noite
aprendeu com muito custo, você precisa aprender a dar um sentido novo para as coisas
da sua vida, você precisa olhar para as tribulações e ver nelas uma chance de criar novas
possibilidades, precisa parar de pensar tanto no que poderia ser isto ou aquilo e viver
mais o que de verdade as coisas são. O filho precisa deixar os pensamentos de cabeça
mais de lado e sentir mais com os pensamentos do coração. Entende o que sua mãe tá
dizendo? Sim, eu entendo. Sabe do que sua mãe tá dizendo? Eu não sei muito bem, mas
entendo. Filho precisa ser menos pé no passado e aprender a colocar os pés para frente.
As dores que foram, já foram, não tem como você voltar e mudar isso, o único que você
pode fazer é dar um sentido novo a essas coisas que tanto te fizeram mal. Ela estava
querendo dar-me as lições necessárias para a compreensão e aceitação da dor de uma
perda. Um luto. Filho precisa aprender a olhar mais para cima, tem tanta coisa para
aprender lá no alto. Deixa as coisas detrás, para trás. Está tudo bem, minha senhora.
Está tudo bem. Está tudo bem mesmo? Está tudo bem de verdade? Sim, tudo está
perfeito. No canto do olho mais uma gota que queria brotar, forçando-me a interromper
os ensinamentos da bela dama, pois eu não queria que as gotas rolassem em sua frente.
Filho pode chorar, se filho tiver vontade. Está tudo bem. Boa noite, minha senhora.
Muito obrigado. Filho tá indo, levando coisas que precisava deixar aqui. Está tudo bem.
Eu estou bem. Que mania a minha de esconder coisas de mim mesmo. Sentei-me outra
vez no banco, enfim deixei a lágrima descer, a fazer-me outra marca na roupa branca.
Segurei todas as outras que queriam vir depois dela. Não era momento nem lugar. Juntei
as coisas que estavam substituindo-me no banco, enquanto ouvia de dama da Noite o
que queria ter deixado guardado em algum canto da minha mente. Fui-me embora, a
forçar os olhos, a criar-lhes barragens e comportas. A água não viria. Que mania a
minha de esconder as coisas de mim mesmo.
No caminho de volta, fui deixando que minhas memórias revisitassem o
passado, eu não era alguém que dava permissão a memórias de outra época. Sempre fui
bastante presente ou futuro, nunca pretérito. Não por ânsias de parecer-me a qualquer
poeta árcade de lema “Carpe Diem”. O ontem era um terreno bastante escuro e lançar-
lhe luz era tarefa árdua e sinistra, eu, nunca estive pronto para isso. Ainda que não
quisesse, fui deixando que minhas memórias revisitassem meu passado. O olho
esquerdo começava ceder, sentia-o lacrimejar. Forcei-o outra vez. Segurava minhas
mãos firmes uma a outra como se as forças que impunha nelas pudesse ajudar-me a
segurar o pranto que insistia em querer descer. Senti o plástico da sacola nas palmas,
dei-me conta de que trouxera de volta o que devia ter deixado ali. Justo, neste momento,
cruzava uma encruzilhada bastante propícia para deixar uma vela, fazia-o, pois queria
de alguma forma agradecer a dama que me atendera no terreiro, pois saí tão sem aviso
que nem devo ter dado a ela a minha mão para um beijo de despedida. Minha mente
agora borbulhava culpa e medo, enquanto imagens do passado tentavam recriar-se no
meio de tudo aquilo. Deveria ter deixado a sacola no centro, deveria ter dado a pombo
gira a devida atenção merecida. Deveria ouvi-la mais. Deveria ter deixado a sacola no
centro. Deveria ter feito tanta coisa. Como forma de reconciliação, decidi que lhe
acenderia uma vela naquela encruzilhada. Detive-me. Peguei uma das velas que trazia
na bolsa plástica. Firmei-a no chão. Mais uma insistente lágrima forçava minha visão.
Trazia o isqueiro na outra mão. Acendi-a. Que luz tão forte era aquela, tão forte que
quase fizeram com que o fogo encontrara-se com a água inapropriada dos meus olhos.
Era tarde. Para um sábado à noite, poucas pessoas passaram por ali, enquanto eu rendia-
lhe alguma prece. A chama daquela vela reluzia, tinha um brilho tão ardente e tão
intenso que não pude tirar os olhos dela durante algum tempo. Aquela luz foi
penetrando os meus globos oculares, arderam-me a vista e chegaram à minha mente. Eu
só queria estar sentido debaixo dos pés o chão arenoso da praia de Copacabana. Queria
que o céu baixasse e me envolvesse em um abraço. Queria sentir as estrelas. Aquela luz
pareceu-me tão sozinha quanto à luz do sol. Aquela luz pareceu-me tão sozinha quanto
eu mesmo. Quando se encontrou com meus pensamentos, foi bem mais forte que eu.
Clareou aquilo que eu tanto queria manter na escuridão. Todo Leme fora se desfazendo
de minha volta. Aquela luz me levava de volta a um passado que eu nunca visitava. Um
leito de hospital, minha mãe estendida nele. Com os lábios entreabertos como quem
acabara de pedir socorro e os olhos fechados como quem não vira ninguém entrar pela
porta para socorrê-la. Eu estava tão atarefado durante aquele ano, tão cheio de coisas
para fazer, eu não acreditava que minha mãe pudesse precisar de mim. Ela sempre se
queixava de tanta coisa e os médicos sempre diziam que não era nada. Eu sempre
acreditei mais neles que nela. Eu me senti tão insuficiente quando me lembrei de que a
última vez que vira minha mãe foi no momento que ela já havia partido. Por que a gente
sempre precisa perder para saber o quanto era importante ter? Corroia-me a ideia do
ultimo beijo que eu não dei, do último abraço que eu não, do último carinho que eu não
fiz. Eu nunca fui bom em levar flores aos vivos. Sua boca meio aberta sussurrava
alguma coisa que eu já não podia ouvir. Quando veio a enfermeira, ela dera-me o
recado: Sua mãe deixou um pedido a você antes de deixar este mundo, pediu para que
você nunca se esquecesse de passar pela casa dela à noite para cuidar das plantas. Eu
não disse que a amava. Eu não disse que a queria como nunca quis a ninguém nem a
nada. Sobraram-me as chances. Negligenciei a todas elas. Nunca mais entrei em sua
casa. Suas flores devem estar como ela. Neste momento, as lágrimas já haviam rompido
com as barragens que criara. Eu estava sentado em frente à vela. Aquela intensa chama
iluminava a minha culpa, o meu remorso e a minha contrição. Forcei-me a guardar todas
aquelas imagens outra vez em algum canto escondido de minha mente. Eu não queria
achá-las outra vez. Que mania a minha de esconder as coisas de mim mesmo. Aquela
vela parecia-me tão sozinha quanto o sol, parecia-me tão sozinha quanto a mim mesmo.
Ela era forte, intensa, viva, mas queimava sozinha. Eu, naquele momento, queimava
sozinho, enquanto o meu cérebro usava minhas lembranças como lenha para todo este
fogaréu. Chorei. A vela já estava pela metade quando percebia as casas do Leme em
volta de mim. Eu nunca fui bom em levar flores aos vivos. Eu nunca fui bom em
perceber as coisas que tenho antes de perdê-las. Eu nunca fui capaz de regar as flores da
casa de minha mãe, pois eu não sabia onde ela tinha as flores postas. Negligenciei-a.
Porque a gente tem o estranho costume de entender o que tem depois de já não ter mais.
Porque a gente acha que sempre vai poder abraçar depois. Porque a gente se acha tão
donos do tempo que acha que sempre vai ter tempo. Porque a gente não percebe quanto
tempo se perde em achar que se tem tempo. Onde deixei a minha sacola com as outras
velas? Onde deixei a minha sacola? Que mania a minha de sempre esconder as coisas de
mim mesmo.

CAPÍTULO 04

TORMENTAS

Caro professor, estou escrevendo para avisar que. Era o máximo que conseguia
ler na caixa de notificações que aparecia na tela de bloqueio do meu aparelho celular.
Eu não poderia retardar mais tornar sabido o conteúdo da missiva digital. Caro
professor, estou escrevendo para avisar que a professora de literatura do noturno. Que
mania não dar nome a pessoas. Está enferma, por isso, o senhor deverá assumir suas
aulas, assim, seu horário será este que lhe envio em anexo, às quartas-feiras à noite
serão livres, porém, por pelo menos dois meses, infelizmente, o senhor não terá hora
vaga nos dias restantes. Grata. Grata? Agradecida estaria ela por tirar de si o peso de ter
de encontrar outra pessoa que lhe fizesse tal serviço. Eu não tenho mais o direito a
decidir se quero ou não? A decisão não deveria ser minha? Afinal de contas, são dois
meses entrando na escola pela manhã e saindo à noite. Enclausuraram-me. Livre às
quartas-feiras. Que espécie de liberdade é esta? Eu não quero ser livre às quartas-feiras.
Eu quero ser livre todos os dias.
Depois de um final de semana ensurdecedor, em que milhares de memórias
gritaram na minha cabeça, a fazer-me sentir o medo de um passado presente, aquela
segunda-feira foi a tortura mais desgastante que nenhum suplício poderia descrever. Eu
nunca havia lido qualquer coisa de Rosa com tamanha má vontade. Passara o dia todo a
repetir estas palavras: vá embora tempo, passe logo. O correr da vida embrulha tudo; a
vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que
ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria,
e ainda mais alegre no meio da tristeza. E uma merda! Refutei-o em tom audível.
Quando voltei os meus olhos para a sala, os alunos me olhavam com uma espécie de
olhar recriminatório, mas que ao mesmo tempo denunciava as mais estranhas perguntas
que agora eles formulavam em suas cabeças. O que será que aconteceu com o professor
hoje. Por que o professor estava com a cara tão fechada hoje. Eu queria poder dizer-lhes
que a má cara seria companheira inevitável em minhas aulas nos próximos dois meses,
este era o resultado de uma obrigação não quista. Tentei evitar os comentários sobre
minha interjeição falando-lhes qualquer coisa sobre a terceira geração moderna. O
relógio insistia em marcar 11h, já era a oitava vez que meus olhos o encontravam e ele
ainda não se havia movido. O dia seria longo. A semana seria longa. Dois meses longos.
A busca por refrigério seria o ponto certo na praia de Copacabana, minha mente ainda
insistia naquele lugar; era como se estar ali fizesse com que todas as outras coisas
fossem se diminuindo no mundo até que não mais existissem e fôssemos eu e as
estrelas, como trilha sonora, o bater das águas nas pedras.
Era uma tarde ensolarada, isso quer dizer que era uma tarde cheia de sol,
daquelas em que se dá para ver os diferentes tons dos verdes da natureza; era uma tarde
daquelas em que se pode ouvir os sons dos pássaros e sabe-se distingui-los, porque a luz
do sol traz consigo, à nossa memória, a luz da vibrante e viva consciência. Contudo, o
clima lá de fora não refletia o clima daqui de dentro. Há tormentas que atormentam. Por
dentro a água já começava a descer e o mais escuro céu tapa-lhe a vista. O sol lá de fora
não pode penetrá-lo, tão formidável luz é insuficiente frente à escuridão que o consome.
Chovia-lhe tanto lá dentro que começava a escorrer-lhe pelos olhos. Estava inundado.
Renomados meteorologistas dizem que a causa de tão horrorosa tormenta foram seus
tormentos. Suas indecisões, suas dúvidas, suas inseguranças, seus medos e seus meios.
O mundo parecia-lhe raro. Seu mundo enegreceu hora para outra sem que se desse
conta. Sem perceber. (É assim, os fenômenos climáticos acontecem, sem precedentes,
sem que percebamos - há quem perceba, mas ele não é destes). De pressa, ocorreu-lhe a
pergunta: "Como quem tira sorrisos arranca lágrimas?" A tal indagação faltou-lhe
contestação. Chovia e fazia frio. Não havia sentimentos cálidos que pudessem acalentá-
lo porque ao que parece, ao menos é o que vejo daqui, as esperanças escorrem-lhe do
coração junto ao sangue que se esvai. O vermelho fulguroso de seus olhos mostra que
ainda irá chover um pouco mais. De longe, percebe-se que ele transborda, mas na
mesma proporção, é possível notar que não lhe basta. Ele não para de inundar.
Choveram-lhe. O caos que já havia é agora ainda pior, afinal, não há quem o abrace, não
há quem o seque, não há quem o beije, não há quem o conserte. Ele vai morrer outra
vez. Tudo isso acontecera. Ele, ainda, dentro da sala de aula.
As horas que se passaram entre as 11h da manhã e as 10h40 da noite foram as
mais cansativas horas. Chegar a casa é o único propósito a partir de agora. Ainda sem
carro. Sem praia. Sem Chico. Sem vinho. Uma única vontade fazia-me companhia,
dormir para não lembrar. A terça repetiu a segunda.

CAPÍTULO 05
ESTRELAS

Se existiam gotas que quiseram descer, existiriam estrelas com a mesma


vontade? Uma semana. Uma semana guardando esta pergunta em minha mente,
enquanto esperava de forma ansiosa para reencontrar-me com aquele aluno que me
levara, de certa forma, ao posto nove de Copacabana na semana passada. Ao ouvir tal
indagação, olhou-me como quem não entendia a pergunta. Na aula passada, quando
pedi para que vocês escrevessem suas impressões sobre o poema surrealista Ismália,
você disse que a via como uma gota de chuva presa em uma nuvem. A nuvem era sua
torre. Seria o céu uma espécie de torre outra? Seriam as estrelas Ismálias? Eu não
consigo pensar em tudo isso não, professor. E num desvario seu, na torre pôs-se a
cantar, estava perto do céu, estava longe do mar. E se nós fôssemos espécies de Ismálias
que ficamos presos aqui na terra, professor? Poderíamos bem o ser, por que não? É
incrível como um aluno consegue remexer nas minhas teorias, forçando-me a vasculhar
qualquer coisa dentro da minha mente estranha. Mas, quanto às estrelas? Elas seriam
Ismálias? Eu acho que Ismália, professor, é tudo aquilo que quer duas coisas. Eu, não
sei, mas acho que a gente vira Ismália quando a gente não consegue escolher uma coisa
só e deixa a nossa mente ser uma prisão que impede a gente tanto de alcançar uma coisa
quanto de alcançar outra afinal, quem quer tudo acaba sem nada não é? Sorriu. Afinal,
quem quer tudo acaba sem nada. A interrogativa deu espaço à afirmativa. O eco agora
era outro. Já não me perguntava se as estrelas pudessem ser Ismálias, pois já me fora
dada a resposta. Sim, as estrelas podem ser Ismálias. As gotas são Ismálias. Nós somos
Ismálias. Ismália é tudo aquilo que quer duas coisas. Como continua irritante o som do
sinal desta escola, porém, nada poderia causar-me maior satisfação que ouvi-lo. Hoje
era o único dia da semana em que eu poderia sair às 5h, possibilitado, assim, para ver as
estrelas no final da rua rio. Professor, professor. Quem me chama desta vez? Será um
novo comunicado que anunciará o meu encarceramento também ás quartas? Professor.
Eu tenho uma dúvida e queria perguntar ao senhor. A chata mania de não saber o meu
nome. Diga. O alívio de ser só mais uma aluna tranquilizou-me o coração e a mente. O
senhor acha que o desvario da Ismália foi causado pelo amor? Todo mundo fica um
pouco louco quando ama. Mas o senhor não acha que ela poderia estar apaixonada por
duas pessoas ou dois seres diferentes? Quanta imaginação tinham estes alunos. Quantas
interpretações, contudo meu papel não era impossibilitá-los, senão encorajá-los. É isso
que você entende quando lê Ismália? Um pouco sim. Pois então, é um pouco isso. Mas
professor, o que é o amor? Minha mente esvaziara-se de qualquer conteúdo em um
piscar de olhos. Eu não sei. O senhor não consegue explicar o amor? Não sei se o amor
deva ser explicado. Mas como as pessoas podem escrever sobre o amor nos poemas que
o senhor lê em sala de aula, se não é possível explicar o amor. Vi-me encurralado. Sou o
professor e preciso manter certa postura. Rebusquei em minha mente qualquer palavra
que lhe satisfizesse na intenção de não desmoralizar-me, afinal de contas o amor é a
matéria prima da poesia e eu estou feito dela. Comecei: Desde sempre o amor é objeto
de inquietação de filósofos e, mais recentemente, de psicólogos, sociólogos e
psicanalistas. Amor sobre o qual Platão escreveu na sua obra “O Banquete” em que
Sócrates expõe a teoria que ficaria conhecida como “amor platônico”. Quando somos
jovens e ignorantes em filosofia, tendemos a nos apaixonar por pessoas fisicamente
atraentes. Com o passar do tempo, a fixação quase maníaca por um corpo em particular
diminui e passamos a amar a beleza interior. Somos capazes de aprender que a beleza da
alma é muito mais valiosa do que a beleza física. Aristóteles nunca escreveu
especificamente sobre o amor, mas sobre a amizade. Ele achava que uma boa amizade,
na qual duas pessoas se unem no amor pela verdade, era o que podia haver de melhor
entre os homens. Para Shopenhauer, filósofo do século XIX “o sentimento amoroso
radica exclusivamente no impulso sexual”. O amor é apenas um nome inventado que
damos a um impulso de reprodução da espécie. Conforme cita Schopenhauer “(O
amante) imagina que se esforça e se sacrifica por seu próprio prazer, mas tudo que faz,
na verdade, é guiado pela reprodução da espécie”. Em sua obra máxima, “O Mundo
com Vontade e Representação”, Shopenhauer explica porque o amor é um tema eterno:
“O amor” é o objetivo último de quase toda a preocupação humana; é por isso que ele
influencia nos assuntos mais relevantes, interrompe as tarefas mais sérias e por vezes
desorienta as cabeças mais geniais. Ele não hesita em interferir nas negociações dos
homens de Estado e nas investigações dos sábios. Ele sabe como insinuar seus bilhetes
de amor e seus anéis de cabelo nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos”.
Jean–Paul Sartre, filósofo mais recente, dizia que o amor é um “ideal irrealizável”. Isso
porque queremos algo impossível das pessoas que amamos: somos atraídos pela
liberdade e independência que detectamos nelas. No entanto, ficamos tão apavorados
que tentamos privá-las desses atributos quando estabelecemos uma relação amorosa. “O
amante quer ser amado pela liberdade, mas exige que essa liberdade, como liberdade,
não seja mais livre”. Muitos outros filósofos tentaram traduzir em palavras o sentimento
amoroso, mas parece ter sido os poetas aqueles que melhor conseguiram expressá-lo,
conforme os versos de Quintana: “O amor é quando a gente mora um no outro.” Ela
olhou-me de soslaio, como quem se perdeu um pouco em tantas palavras. Olhei
fixamente com medo de que ela tentasse outra pergunta. Ela sorriu. O senhor sabe como
fazer a gente se interessar por algumas coisas, professor. Foi a primeira vez que me
senti feliz por chamar-me assim.
Troquei de acompanhante. Os pingos que me ajudaram no trajeto da escola ao
posto nove, hoje não vieram; em compensação, o sol com seus ardidos raios fez com
que a água brotasse em minha fronte. Quando ia chegando ao local desejado, a água
ainda me molhava, a obrigar-me a lembrar daquela quarta passada quando, também,
estava encharcado, ainda que estivesse mais fresco. Deixei a bolsa que carregava cair
sobre a areia, enquanto firmava o olhar no horizonte. Mais uma vez o espetáculo ia
ganhando forma. O céu fora trocando de cor. O amarelo ia criando espaço para um
alaranjado fosco, que forçado a misturar-se ao azul, reluzia violeta, formando um belo
tapete para a rainha noite que viria. Daqui, o horizonte está mais perto. Sai já daí,
menino. Carla, o ônibus da lapa já vai passar. Corre! A gente não tem dinheiro para
carro nem moto. A mamãe disse que não era pra subir depois das seis. Amendoim,
senhor? Óculos, senhor? Toalha de praia? Carla, ele já vem lá, corre. Junto com o dia,
iam as pessoas. Ninguém gosta do mar à noite e eu nunca fui capaz de entender muito
bem o porquê. Eu te disse que a gente iria perder o ônibus, Carla. Mas eu estava
subindo. Não subiu na velocidade necessária, Carla. Quando a gente vai devagar demais
a gente perde e se vai rápido demais, perde também. É preciso ir na velocidade certa,
Carla. A gente não tem dinheiro pra carro nem moto. Amendoim, senhor? Ismália é
tudo aquilo que quer duas coisas. As palavras daquele aluno não paravam de bagunçar
meus pensamentos. Outra vez. É evidente que ele tenha uma capacidade bastante boa
para formular suas hipóteses. As gotas são Ismálias. Junto com a minha mochila, deixei
o corpo cair sobre a areia. Eu tinha entradas para a primeira fila. O espetáculo lorquiano
continuava sobre mim. Em alguns instantes, a sonoplastia trocou o ruído humano pela
fala do mar. Baixaram as luzes e o segundo ato já começava. A realeza solar dera sitio a
constelações. A cenografia trocara as cores pela ausência delas. Admirava. As estrelas
foram entrando, alardeando a senhora prateada que chegava para fazer-lhes companhia.
Carla, olha o táxi.
Esta não estava aqui na semana passada. Que diferente brilho o seu. Não, ela não
estava aqui na semana passada, eu saberia, eu a perceberia. Ser-me-ia, totalmente,
impossível não a ter notado na semana passada, se eu não notara beleza tal, é,
simplesmente, pelo fato de que ela não estava aí. Que diferente brilho o seu. Naquele
momento, foi como se todas as outras estrelas sumissem, dando-lhe espaço a esta
somente. A sensação é a de que os contrarregras lançaram sobre ela todos os focos deste
imenso teatro de rua. Ela é a protagonista. As outras entrarão em algum momento para
dar linha à trama, porém, o roteiro precisa ser seguido. Ela é a protagonista. Ela é a
única capaz de sustentar qualquer proposta de Rei Lear que lhe faça o diretor noturno.
Ela é a única capaz de interpretar ao mesmo tempo Julieta e Romeu, Estragon e
Vladimir, ou ainda, se lhe propusessem ser Godot, que bem faria o papel. Mas Godot
não vem. Mas estão sempre à espera dele e eu estive sempre à espera de um brilho como
este. Eu estive sempre à espera dela. Que diferente brilho o seu. Era uma estrela feita de
muitas outras estrelas, pois tanto brilho vinha dela que quase ofuscava a lua. Era uma
estrela feita de estrelas. Toda pontilhada e em cada ponto uma estrela. Detive-me. Por
um momento, quis que o mundo parasse ali. Nada me atraia mais que olhar para aquele
ponto incandescente na imensidão. Tal beleza precisa ser singularizada, precisa ser dado
a ela qualquer substantivo próprio, que lhe seja próprio a ela, pelo qual atenda sempre e
quando eu a chamar. Não me basta dizer-lhe estrela, pois só isto ela não é. Ela é
diferente, é uma estrela feita de outras estrelas. Um ser feito de outros seres. Um si
mesmo feito com um montão de outros sis. Ela não é comum. Ela é Ismália. Afinal, ela
responde à minha pergunta. Como eu não a notei na semana passada, claro, ela não
estava aí na semana passada. Quem sabe soube que eu viria hoje e estava a me esperar.
Quem sabe soube de minhas dúvidas e a mim veio contestar. Quem sabe soube que me
faltava brilho e veio a dar-me um pouco do seu. Seriam as estrelas Ismálias que
escolheram a lua do céu, enquanto as gotas seriam as Ismálias que escolheram a lua do
mar? Ela ostentava seu brilho como toda protagonista ao perceber que a plateia lhe
lança certo olhar de desejo, forçava-se a brilhar mais na tentativa de chamar-me ainda
mais a atenção. Parecia soltar certo ar de soberba e arrogância, mas a quem oxalá deu
tanto brilho deu-lhe também direito a ser soberbo, pois sabe que é único e estampa o
que é. Eu não pude deixar de olhar, meus olhos não viam mais o céu. Meus olhos não
viam mais as outras que em volta dela forçavam algo mais de luz para atrair minha
atenção. Meus ouvidos já não ouviam mais o mar. Meu corpo já não sentia mais a areia.
Eu estava inerte. Éramos só nós dois. Ismália e eu. Que diferente brilho era o seu. Era
uma estrela feita de outras estrelas. Toda pontilhada e em cada ponto uma estrela. Era
única. Nenhuma como ela. Era Ismália.
Levanta a barraca, Zé. Traga as bebidas, daqui a pouco os gringos começam a
chegar e tudo precisa estar pronto. Zé, levanta a barraca. Eu não dera conta de que o
espetáculo havia terminado. Ismália dava sinais de que voltaria na quarta seguinte para
uma próxima sessão. Zé, tu tá pensando o que? Deixa já de corpo mole e levanta essa
barraca. Quarta-feira será conhecida como o dia em que conheci uma estrela. Ela era
única. Que diferente brilho o seu. Uma estrela feita de outras estrelas. Toda pontilhada e
em cada ponto uma estrela. Era o tempo de passar em casa, trocar o material e voltar
para o colégio. Tu tá ficando sem tempo, Zé. Levanta essa barraca.

CAPÍTULO 06
Outro céu

Você parece muito mais feliz hoje. E por qual razão deveria de estar triste, meu
amigo? É difícil ver um sorriso nos seus lábios e hoje parece que eles nunca saíram daí.
Só se sorri quando se tem motivos, meu caro. Pois, qual é então o motivo que te muda a
cara e te faz espalhar vontade de risos a qualquer um que cruze com você?
Incandescente é a cor da minha felicidade, Ismália é a sua alcunha com a qual fora
batizada esta noite. Agora tudo é mais claro. Ele sorriu. Mulheres? São as mulheres que
te fizeram aparentar os dentes hoje? Ora, pois por quem me tomas? Acaso eu sou de
mulheres? Mas se foi uma Ismália quem te plantou o riso na cara. Gramáticos se perdem
tanto em regras tolas que normativizar coisas passa a ser um hábito. Sorriram. Ismálias
são gotas, meu caro. Ismália são estrelas. Ismália é tudo aquilo que quer duas coisas.
Ismália é poesia. Ismália são estrelas. Ismália são estrelas. Sorriram.
Que sinal irritante o desta escola, eu repetiria essa frase centenas de vezes até
abrir um livro de poesia na próxima turma. Este seria o meu agir costumeiro. Hoje não.
Hoje, eu poderia ouvi-lo horas a fio, poder-me-iam pôr em qualquer sala vazia com duas
caixas de um som bastante grave em volume máximo, repetindo este estridente som e eu
não me queixaria. Amanhã talvez eu me queixe, mas hoje não. Hoje era um daqueles
dias em que você não quer dormir para depois não ser forçado a acreditar que tudo tenha
sido um sonho.
Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro É o sussurro o que me
impressiona. Professor, porque é tão difícil entender as coisas que o senhor lê? Não são
coisas difíceis, são apenas coisas que exigem as ferramentas necessárias. Imaginem um
homem marceneiro, pois agora, imagine-no com um saco de cimentos, um balde com
água, certa quantidade de areia e outra de pedras; há no fundo uma voz que impera
dizendo a ele que construa um suntuoso banco rústico para um bonito jardim com o que
lhe fora dantes entregue. O pobre homem, especialista em talhar madeira, vê-se um
tanto angustiado por não conseguir cumprir com o que lhe pediam. Ele seria capaz de
fazer o banco mais bonito que já se pudera ver em todo o mundo, mas lhe faltavam as
ferramentas necessárias. Ele sabia o que fazer, ele sabia como fazer, mas não poderia
pô-lo em prática, pois com o cimento não faria bem o seu trabalho. Ler poesia é como
construir um bonito banco rústico para um belo jardim, contudo, se não lhes puserem
nas mãos as ferramentas necessárias, se não lhes derem o estudo fonético preciso, as
artimanhas da semântica e da morfologia necessárias, será como haver-lhe dado cimento
ao marceneiro, ainda digo a vocês que também pouco será útil a vocês o material
preciso, se não souberem manuseá-lo. Aqui há dois pontos bastante importantes, um é o
material que vão usar para a leitura do poema, aquilo a que comumente chamamos de
conhecimento ou teoria, o outro é a sua capacidade manusear o que lhe é oferecido por
aqui, por mim. Porém, guardem bem o que eu vou dizer a vocês, não é sempre que
conseguiram fazer-lhe à poesia o que faz a primavera a cerejeiras. Entender as
entrelinhas de um poema pode ser como achar estrelas em um dia bastante chuvoso, ou
seja, o fato de você não encontrar sentido em tudo aquilo não quererá saber que ele não
está lá, pode ser que esteja, mas você não terá maturidade o suficiente para compreender
o que lhe estará a dizer e, então, por isso e só, por isso, a poesia se esconde de nuvens
para você.
Quando você fala sobre isso, professor, a gente chega a pensar que o senhor está
apaixonado por tanta paixão que vai na fala do senhor. O olho dele chega a brilhar.
Risos soltos entre eles. Os meus olhos brilhavam? Os meus olhos ressoavam o brilho
que lhes impreguinara na noite anterior? Ou será que era Ismália que houvera baixado
até eles e resolvera morar em mim ou neles? Ao ouvir o tilintar dos sinos da escola, saí
pelos corredores a olhar fixamente nos olhos de todos aqueles que passavam por mim,
obrigando-os a fitar-me. Forçando-os a olhar para mim, mesmo que não quisessem afim
de que me dissesse outrem que guardava brilho no olhar, reforçando assim, a ideia de
que Ismália poderia estar morando dentro de mim. A ânsia de que me dessem um
espelho para constatar o que me dizia aquele aluno me obrigou a que fosse ao banheiro
da sala de professores, pois se assim o fosse, bastaria olhar para mim que eu a veria, já
não seria mais tão necessário esperar a que viesse a noite, já não seria mais preciso odiar
as noites nubladas nem as chuvosas, afinal, bastaria buscar por Ismália em meu reflexo.
Acelerou-me o coração em uma frequência bastante inóspita, a ideia de que pudera ela
ter escolhido os meus olhos como morada, suaram-me as mãos. Faltou-me aos pulmões
o ar exigido para a respiração. Passei bem depressa pelos demais que assuntavam sobre
um ou outro problema de turmas na sala que se tornava mais imensa a cada passo que
eu dava. Está tudo bem com você? Por que a pressa? Voltem a seus assuntos
corriqueiros e deixem-me visitá-la. Ao chegar à porta do banheiro, aliviei-me. Entrei.
Forcei os olhos no espelho buscando por ela em meus reflexos e para minha frustração,
ela não decidira por morar em mim, senão dera-me um rastro do seu brilho que me
alumbrava a visão. Não me fez casa, mas deu-me a chance de ser sua terra e fizera-me
em mim pegadas. Eu não seria o seu outro céu, mas tive a chance de ser sua primeira
terra, ou ao menos quis acreditar que escolhera a mim para ser seu primeiro pedaço de
céu no chão. Quisera ser seu primeiro e forcei minha mente a criar a imagem que
massageava o meu ego ao repetir dentro dela esta máxima, se viera Ismália a morar no
mar, sou eu a sua água.
CAPÍTULO 07
BROMÉLIAS

As palmeiras gigantes do parque jardim botânico faziam sombra nas ruas do


bairro que tem o mesmo nome. Sempre achei curioso como tamanha era a importância
daquele lugar para que um bairro todo tornasse-se conhecido pela sua existência, até que
ninguém mais se lembrasse do seu nome, mas se lembrasse que aquela região era a
região do parque jardim botânico. Era o bairro do jardim botânico. Portanto, o próprio
jardim botânico lhe emprestara o nome a tudo que lhe rodeava, dando-lhes assim
alcunha aos quarteirões mais próximos. Certamente, o nome daquele bairro guarda certo
rancor. Criava-se aí uma metonímia inexplicável. Não se sabe se o jardim é a parte que
se refere ao todo ou se ele é o todo que se refere à parte. Andar por aquelas ruas,
correndo as mãos pelas grades que protegiam o parque de nome idêntico ao do bairro.
As grades não o privariam de ser parte do seu todo? Ou o seu todo de lhe fazer parte?
Andar por aquelas ruas, correndo as mãos pelas grades que protegiam o parque de
mesmo nome que o do bairro forçava minha mente a liberar memórias que até ali
pareciam intocáveis e de tão intocáveis, desvisitadas e, assim, quase inexistentes.

A porta fazia-se portal. Passar por aquele portão baixo de ferro desgastado,
inutilmente, pintado de um azul que tentava ser vibrante já causara em mim uma espécie
de retorno. Era como se aquele lugar não houvera avançado no tempo. Era como se
aquele quintal cheio de bromélias estivesse preso no passado. Era como se o tempo não
tivesse passado ali. Só minha mãe não estava mais ali. A cadeira de balanço ainda
estava ali. Continuava no canto esquerdo do alpendre. Aqui bate melhor a sombra da
tarde, ela dizia. Era passatempo preferido seu; sentar-se ao findar da tarde naquela
cadeirinha a olhar as bromélias em quanto o tempo insistia em não passar. A cadeira
de balanço estava ali. Só minha mãe que não estava mais ali. A janela da sala que dava
para a rua ainda estava ali. De uma madeira carcomida e de uma aparência colonial,
abria sempre para fora, como quem faz um convite ao vento para entrar e tontear a
cortina branca de um voal já envelhecido de que ela gostava tanto. Deixa a janela
aberta, o mundo precisa entrar e eu preciso entrar no mundo, ela dizia. Tinha ganas de
ser poeta. Não lhe deu tempo. A janela dava sinais de que o tempo não passara por ali.
Na esquina direita, no vão formado entre as abas e a moldura, via-se um pedaço de
papel que ela sempre deixava no mesmo lugar na esperança de que a janela não fechasse
quando o vento soprasse com mais furor. A janela ainda estava ali. O pedaço de papel
ainda estava ali. Só minha mãe que não estava mais ali. Neste momento me assombrou
a ideia de revisitar tantos passados que quis voltar, passar outra vez pelas bromélias,
pelo portão baixo e dar de cara logo com as palmeiras do jardim botânico. Não o fiz.
Era como se algo despertado em mim, mostrasse-me a necessidade de entrar e oferecer
uma xícara de chá aos fantasmas que me esperavam lá dentro. Estariam sentados no
tapete de crochê a encostar-se na mesa de centro que tentava imitar madeira. Estariam
sentados nas cadeiras da cozinha enquanto, no fogão, um outro deles esperasse pela
água que ferveria em breve para depois pô-la em uma xícara de porcelanato verde. Ao
tomar coragem e deixar a chave deslizar pela fechadura da porta, entre. Entrei e já não
era o eu de já. Era um eu de alguns tempos atrás para quem o tempo não passara. Entrei
e ainda ali sobre uma mesa de vidro estavam as chaves de casa com um pequeno
chaveiro que carregava uma pomba e uma lembrança de quando ela esteve em Natal.
Entrei e já não era o eu de já. O tapete ainda era o mesmo, a mesa de centro ainda fingia
muito bem ser de madeira. Ainda da porta, avistei as cadeiras da cozinha, a mesa com
algumas frutas de plástico que davam certo ar de adorno. O sol que entrava pela porta
de vidro da cozinha deixava o ambiente com uma luz meio baixa, que em contraste com
a madeira do chão, davam ao ambiente um tom marrom. Sépia. Era eu um eu de antes.
Eu não era o eu de já. Nos narizes, senti certo aroma infantil que me lembrou do gosto
do café. Na boca, a saliva era áspera, um tanto arenosa que me lembrou do bolo de fubá
com goiabada que ela sempre insistia em fazer às quintas-feiras. Quinta-feira é o meio
da semana, é um dia que tem sorte porque separa o inicio do final dele pra frente se
pode ser feliz dele pra trás se foi triste é um dia que anuncia descanso e alegria, ela
dizia. Meus ouvidos a ouviram dizer. O fogão fez barulho. A porta do forno bateu. Ouvi
o baixo, porém singular som de quando se acende uma de suas bocas. Deixe suas coisas
em cima do sofá, não se preocupe a mãe já vai pegar. Eu não estou com paciência para
conversas corriqueiras, estou extremamente exausto e preciso dormir, ouvi-me dizer.
Mas o bolo acaba de sair do forno, tem goiabada, fui de manhã buscá-la por que sei que
você ama bolo de fubá com goiabada. Mas se eu for comer, vou ter que me sentar na
cozinha e daí ouvi-la contar sobre coisas que não me interessam agora, ouviu-me
retrucar com grosseria. Ouvi-me. A mãe vai deixar tampado com um guardanapo no
forninho, depois que descansar, desce pra comer. Vi-a passar por mim e ir em direção à
porta, buscando sua cadeira de madeira a olhar bromélias. O eu de já entendeu o porquê
as bromélias eram tão importantes. Não eram flores. Era companhia. Eram amigas.
Davam-lhe a sensação de não estar só. De dentro ouvi-a sussurrar alguma coisa sobre
ter se assustado com um carro enquanto atravessava a rua para chegar à única vendinha
do bairro com uma goiabada cascão de qualidade digna de um bolo de fubá. É das que
ele mais gosta, dizia ela, encarando as flores. O eu de já quis chorar. As bromélias
estavam ali. Só a minha mãe que não estava mais ali. Tentei gritar. O eu de já foi para
cozinha procurar o bolo que estaria tampado com um guardanapo no forninho. O eu de
antes foi sisudo para o quarto. Quando a noite se apresentava, ela entrava. Tinha medo
dos perigos confinantes da noite carioca. Conversava tão pouco, pois perdera a
confiança no mundo e na vida depois que fora abandonada por um homem a quem em
certo momento chamei de pai. Conversava tão pouco, pois mal eu respondia ao seu bom
dia. Conversava tão pouco que o pouco que conversava era confiando segredos às
bromélias. Conversava tão pouco para não deixar de conversar, para não se esquecer das
palavras.
Você não tocou no bolo, disse ela. Eu acabei dormindo e não desci pra comer
nada. Come agora. Eu estou atrasado e não posso perder muito tempo. Espera dois
minutinhos que a mãe coloca numa vasilhinha e você come no seu intervalo. Eu não
quero levar. Mas você não gosta tanto de bolinho de fubá com goiabada? Eu não tenho
tempo. Foi nesse dia que o eu de antes decidiu que precisava estar sozinho, já não queria
viver ali. Sentia que tinha tempo de menos, espaço de menos, conselhos demais,
cuidados de mais. Quis sair de casa. Eram-lhe tantas as vozes diárias na cabeça que não
queria chegar a casa e ouvir mais uma. Queria o silêncio. Ofereceu ausência a quem
precisava de presença. O eu de já, agora, estava sentado com um de seus fantasmas no
tapete de crochê da sala ouvindo-o repetir em voz alta. Eu preciso de paz, eu preciso
estar sozinho. Ao passo que ouvia uma voz embargada dizer: a mãe fica quietinha.
Conversava tão pouco, que já não lhe fazia falta conversar. Só não queria a solidão.
Queixava-se sempre de tantas dores, mas os médicos diziam sempre não ser nada.
Acreditei mais nos médicos que nela. Vi-me sair pela porta com algumas roupas em
uma pequena mala, com a promessa de que passaria vez ou outra para vê-la. Não perca
a sua cópia da chave, ela é a garantia de que você tem permissão para voltar a qualquer
momento. Depois de então, vi-a com a boca entreaberta em um leito de hospital como
quem pedia: não se esqueça de regar as plantas. Não se esqueça das bromélias.
O eu de já saiu para fora deixando o passado lá dentro. Liguei a mangueira de
cor laranja que ficava catolicamente enrolada naquela que um dia servira como roda de
algum automóvel. Reguei as bromélias enquanto notava nelas certo ar de saudade. As
bromélias estavam ali. Só a minha mãe que não estava mais ali. Pedi licença aos meus
fantasmas, sentei-me na grama a esperar até que o canteiro estivesse cheio. Solucei. As
águas que me dobravam os olhos tinham a mesma força que as águas que saíam da
mangueira de cor laranja. Sussurrei às bromélias meus segredos, deixei com elas os
meus medos. Quando ela vier as visitar, digam que eu não comi mais bolos de fubá nem
goiabadas. Digam a ela que eu sinto muito e que estive aqui. Entre soluços e espasmos,
pedi que entregassem a verdadeira mensagem: Digam que preciso de perdão e que a
amo. Eu queria ter sido uma de vocês. Eu queria ter sabido o que lhe acontecera
enquanto eu estava fora. Eu queria ter sentado naquele dia para simplesmente olhá-la.
Eu queria ter sido uma bromélia. O tempo não passou por aqui. Enxuguei as lágrimas.
Bati o portão. O eu de antes ficou fazendo companhia ao passado. O eu de já decidiu
seguir em frente. Eu estava ali. Só a minha mãe que não estava mais ali.

CAPÍTULO 8
ROSAS
Se eu morresse amanhã viria ao menos fechar meus olhos minha triste irmã
minha mãe de saudade morreria se eu morresse amanhã. Falar de temas como a morte já
me causara mais dor que agora. Continua o poema, acenei em direção a uma menina
que toda aula me mirava com olhos fixos como quem tenta fazer um pedido. Era grande
o prazer que ela tinha em participar das aulas, porém, não lhe era muito comum pedi-lo.
Receio. Acho. Receio de que lhe fizessem piadas ou criassem com o seu nome algum
tipo de ofensa. Quanta glória pressinto em meu futuro. De novo ela. Se não ela, quem.
Pergunto de forma a talhar a outra garota que se contrapõe a que eu permita que aquela
leia. Silêncio. Continua. Que aurora de porvir e que amanhã. Enquanto em minha frente
via seus lábios a mexer, minha mente já me transportara a outro espaço. Se eu morresse
amanhã não estaria em Copa na próxima quarta. Se eu morresse amanhã não a veria
mais. Se eu morresse amanhã que miserável me haveria de ser a vida, afinal, haveria de
ter me dado à chance de vislumbrar Ismália sem a chance de vê-la de novo. E de novo.
E de novo. Se eu morresse amanhã que desgraça seria o meu porvir, talvez outrora fosse
grato a Exu por me fazer morrer amanhã, mas hoje não; hoje não. A ânsia de glória, o
doloroso afã. Recobrava os sentidos com a mesma velocidade que os havia perdido,
afastei de mim com rapidez a ideia de morrer amanhã, pois não posso. Não posso
morrer enquanto Ismália estiver a brilhar. Não há morrer amanhã se Ismália me
esperava fixa no céu, no mesmo ponto da vasta imensidão trevosa. Não há morrer
amanhã se Ismália estiver lá. O morrer é não estar diante dela. O morrer é não admirá-
la. O morrer é não deixar meu corpo entregue ao seu brilho como se nada em mim
existisse nem que seus finos raios de luz incandescentes me tocassem. Morrer seria estar
num tempo sem Ismália. Se não há Ismália tudo me vale como tudo me valia antes de
encontrar tamanha beleza celestial. Se eu morresse amanhã. Não há morrer amanhã.
Olharam-me assustados no tempo em que suas mentes buscavam algum sentido para
que irrompesse o silêncio para dizer tal coisa como quem teme a morte mais que tudo.
Sussurrei constrangido. Não há morrer amanhã. Com a escolha das palavras certas,
contornei a situação com algumas desculpas literárias e pedi que me fizessem que me
escrevessem qualquer coisa sobre o que acabaram de ler. Era só uma desculpa para que
eu pudesse calar-me e sentir em minha boca as maldições que eu mandava à vida caso
eu morresse amanhã. Tanto tempo para morrer, tanto hoje para morrer, tanto que o quis
e não pude. Amanhã não. Morrer amanhã é impossível a quem conheceu Ismália. A
quem provou do seu brilho cósmico sobrenatural e divino, morrer é uma desgraça fatal.
Morrer agora é opróbrio. Morrer agora é anátema. É fulminação, desonra. Com tantos
ontens para morrer. Amanhã não. Emma Bovary teria outro fim se houvera vislumbrado
o céu de Copacabana numa noite estrelada. Emma Bovary teria outro vem se houvera
vislumbrado Ismália. Trocaria o veneno pelo êxtase. Trocaria o copo pelo corpo.
Professor. A maldita alcunha me interrompia. Porque a figura da mulher é a de um ser
inalcançável para o homem romântico da segunda geração? Não é a mulher, menino. É
o amor. Pode-se alcançar o amor? Alguém já esteve de fato com quem verdadeiramente
amava? Ou estamos com quem cabe? A pessoa amada de fato, àquela a quem daríamos
a vida. Aquela a quem poderíamos chamar ar da própria existência. Aquela que
desejamos deste o primeiro pensamento da manhã até o último antes do transe noturno.
Essa, pouquíssimos puderam conquistar. O amor é vulto. Não é a mulher, menino. É o
amor.
Não corram. Não corram. Saiam com cuidado. Cuidado com as cadeiras.
Respeitem os limites dos seus amigos e do espaço físico. Não corram, estou a lhes dizer.
Digressões interrompidas pelo barulho irritante do sinal daquele colégio acompanhado
dos sons dos brutos que se jogavam uns nos outros em busca do quem chegaria antes
aos portões. Queria estar correndo com a mesma velocidade que eles, queria estar na
mesma pressa. Queria estar já nas calçadas da frente rumo a casa. Hoje era dia especial.
Hoje era dia de encontro. Era possível já sentir o cheiro dos perfumes das senhoras que
viriam a dar-nos conselhos. Era possível já perceber o toque forte do atabaque. Estava
nas calçadas da frente rumo a casa agora. Eu não posso me atrasar. Eu não posso me
atrasar como no outro dia. Hoje é dia de encontro. As rosas estavam em cima do balcão,
onde elas estão agora? Eu costumo deixar as coisas que devo levar para o terreiro
sempre em cima do balcão. As rosas, onde estavam as rosas? Claro, no sofá. Eu sempre
costumo deixar as coisas que devo levar para o terreiro em cima do sofá.
Desde a esquina se podia ouviu o som do atabaque e da macumba. Hoje, ouvia o
silêncio. Se parasse para tentar ouvir alguma coisa, ouviria o som dos carros, quem sabe
o sussurro das senhoras que iam caminhando por aquela região. Hoje, ouvia o silêncio.
Era bom sinal, afinal era sinal de que não haver me perdido totalmente para encontrar as
coisas que trouxe, deu-me a chance de chegar a tempo de ouvir as saudações a todos os
orixás. Cheguei a tempo de saudar o Exu da porta sem a pressa doutro dia. Cheguei.
Muitos lugares ainda vagos. Pude sentar e apreciar o balançar das saias que iam de lá
para cá como se limpassem o ambiente de toda energia que era negativa. Tragam as
velas da tronqueira, disse uma delas. Meu coração começava a bater mais forte, as mãos
iam suando, o olhar ficando denso, os pulsos forçavam o sangue a correr com rapidez.
Acelerava-me. Estava ansioso para estar diante delas. Desejava fitar seus olhos, sentir
seu perfume, receber seu afago, respirar profundo o cheiro do seu cigarro. Quem sabe
me ofereceria um gole de vinho? Trouxera vitórias e queria contar-lhe todas. Desejava
apertar-lhe a mão com blandícia enquanto ela acarinhar-me-ia o rosto com o toque
suave dos seus dedos esquerdos. Acelerava-me. À medida que as pessoas iam
preenchendo os espaços que dantes estavam vazios, sentou ao meu lado uma bonita
senhora, de olhos verdes, cabelos cor de noite e os lábios cor de rosas. As rosas. Onde
pusera as rosas que trouxera como agrado? As rosas. Sua senha é a de número 4 hoje,
você chegou cedo. São suas estas rosas esquecidas no banco da entrada? Haveria
deixado-as aí quando parei para saudar o Exu da porta. São minhas, obrigado. As rosas.
À medida que as pessoas iam preenchendo os espaços que dantes estavam vazios,
sentou ao meu lado uma bonita senhora, de olhos verdes, cabelos cor de noite e os
lábios cor de rosas. A pela lembrava o fim de tarde do Leblon, um tom alaranjado, mas
que não irrita os olhos porque não fora forçado pelo sol. É naturalmente seu. Sentou
com ar de gentileza, deu-me um sorriso de canto terminou de trazer os lábios de volta ao
centro da boca quando me disse boa noite. Respondi-a com a mesma educação.
Meu deus, só agora me lembrei que a gente morre. Tinha já deixado meus olhos
voltarem à posição inerte inicial, assim não pude perceber quando ela tirou um livro da
bolsa nem quando começou a lê-lo. Lia em voz baixa, mas era um tom baixo audível
para quem estivesse bem próximo de si. Eu estava bem próximo de si. Mas eu também?
Completei a frase antes que ela pudesse seguir com a leitura que até então, ela pensava
ser silenciosa. Sorriu. É mesmo uma boa leitura. Costumo ler nos espaços curtos de
tempo que a vida me dá para fazê-lo. É tão corrido o dia, é tão rápido o passar do tempo
que poucas vezes consigo parar para ler alguma coisa, pois que seja no banco de um
ônibus ou que seja no banco de uma praça enquanto espero o almoço. É tão corrido o
dia que às vezes nem sei em que diz estamos, quase todos eles têm a mesma cara que
fica difícil distinguir quem é segunda e quem é quarta. Os dias são terrivelmente iguais,
concordei. Só quem tem a sorte de achar Ismália no meio disso tudo pode diferenciar
uma coisa doutra. Ismália? Sim, aquele pedacinho de céu diferente que muda a vista,
que te muda a percepção dos momentos e te deixa fazer a vida mais fácil de passar. É
como criar motivos para estar vivo. Sempre quando leio Clarice, me pego no meio de
uma pergunta que até hoje não tem resposta: por que eu estou aqui. Não aqui
exatamente. Não em fevereiro no Rio de Janeiro. Mas por que eu estou aqui neste
espaço? Por que me trouxeram. E eu não sei quem me trouxe. Por que me trouxeram a
este planeta? Por que me tornaram pintura aqui neste mundo, por que me fizeram
conhecer estas pessoas as quais conheço? Por que me fizeram ser o que eu sou e por que
me deixaram estar viva até agora? Existe algum propósito? É preciso algum propósito
para manter-me viva? Realmente são muitas perguntas, interrompi-a. Interrompi suas
indagações porque causavam em mim certo desconforto, certo desassossego, pois, as
mesmas sensações que lhe saltavam aos olhos, ao trazer à boca aquelas palavras
elaboradas pelo cérebro perturbado, refletia em mim o mesmo estranhamento que sentia
ela. Existir não é mesmo uma resposta. Existir é uma pergunta. Existir é a graça de um
deus absurdo que talvez nos tenha feito a sua imagem e semelhança para gastar em nós
as piadas das suas frustrações por não ser humano. Ser humano é terrível, mas ainda
mais terrível deve ser o ser divino. Imagine não ter a permissão do erro já que todo errar
é humano. Existir não é uma resposta, minha cara. Existir é um ponto de interrogação
imenso que vem contorcido. Já reparou em como é um ponto de interrogação? Faz
curva, é espremido. Não é reto como é o de exclamação. O ponto de interrogação é uma
dor. É como contorcer-se de uma dor que te faz descer o rosto a barriga e comprimir as
pernas ao mesmo lugar, forçando certa posição fetal. O ponto de interrogação está em
posição fetal. Talvez o ponto que lhe escapa ao corpo e lhe cabe por debaixo seja
lágrima que lhe escorreu. Existir é uma pergunta. Existir não é uma resposta, minha
cara. É um ir e vir. É vir e querer voltar. Mas voltar pra onde? Não se sabe. Talvez se
soubesse já teria voltado. Eu agora não voltaria. Existir exige dor. Existir é um ponto de
interrogação. Acho que por isso estamos aqui, hoje, neste terreiro, inventar um deus nos
faz criar esperanças, nos faz criar a esperança de que temos motivos. Sorriu, esperando
de mim alguma resposta, porém, tanta conversação já não me apetecia. As rosas.
Percebeu que mudava o rumo do assunto. Calou-se e olhava fundo as páginas do livro.
É claro que só não punha para fora, mas a mente estava cheia de perguntas. Não podia
dar pé ao assunto, pois eu não tinha respostas. Eu era uma pergunta. Eu era um ponto de
interrogação. Existir é uma pergunta. Existir é um ponto de interrogação. Por um
momento, aquele tema clariciano fez-me esquecer das vitórias todas que trouxera para
deixar na barra das saias de alguma senhora. Sentia o aperto das perguntas. Sentia o
aperto do Existir. 4. Aliviei-me.
Boa noite, moço. Boa noite minha senhora. Senti o aperto dos seus dedos nos
meus. Não queria soltar-me a mão. Levou-a ao rosto, beijou-me as costas das palmas e
sussurrava algo que eu não pude ouvir. As mãos que até ali mantive secas, começavam
a dar sinais de que suariam. O sentimento de leveza que carregava dera lugar a uma
sensação de apreensão. Não queria soltar-me a mão. Beijou-a com um beijo forte como
quem quisesse despedir-se. Senti a mão molhar-se mais. Não eram as palmas que
suavam. Eram mesmo as costas das palmas que ganhavam umidade. Percebi, caíra uma
lágrima sua. Ela não queria soltar-me a mão. Moço. Ouvi-a dizer sem ainda deixar meus
dedos. Aproximei o rosto. Sempre achei bastante elegante a forma com que falavam as
damas da noite. Não gargalhavam alto, não rodopiavam, tinham certo ar de graça, mas
não escracho. Fazia jus ao nome. Era eloquente como a uma dama. Era misteriosa e
enigmática como a noite. Moço, repetiu. Conseguiu se livrar do passado e agora traz
perturbações do futuro, por que é tão difícil pra você viver no presente, moço? Meus
ouvidos estavam tão próximos aos seus lábios que podia sentir o ar fresco e doce do
vinho que acabava de beber. O que é que lhe dá tanto medo do agora, moço? Silêncio.
Mas eu estou feliz, disse a ela. Eu trouxe felicidades para contar a senhora. Venci os
meus fantasmas, entendo onde estou, gosto de estar aqui e pela primeira vez em muito
tempo, quero manter-me vivo. Moço tem motivo errado pra viver. Moço tá vivendo
buscando uma coisa que não vai alcançar. Não vai alcançar porque não é seu, moço. É
de tudo. É de todos. É do mundo. É do céu. Mas eu tenho motivos para estar feliz, eu
encontrei um ponto mágico que me trouxe felicidade. Eu quero acordar todo dia para
estar diante dela, para vê-la, estar com ela. Mas moço não percebe que tem dado tanto a
ela que nunca se lembra de dar a você mesmo. Quando você esteve aqui da outra vez,
precisava ver o passado porque não se via. Hoje, ainda não se vê, porque tem gastado a
energia em ver outra coisa. Moço, imagina que um homem entrega todo seu tempo para
cultivar uma planta, um tipo só de planta. Ela ainda não me soltara a mão. Ele se dedica
muito para isso, aprende muito sobre isso, só sobre isso. Chega o tempo de florescer e a
planta não floresce. A quem ele vai culpar? A ele mesmo, respondi intrigado, porque
não compreendia a metáfora. Deu sinal de concordância com a cabeça enquanto lhe
acendiam outro cigarro. Porém, moço, pra que uma planta cresça e floresça é preciso
verificar o ambiente, as condições do solo, do ar, a quantidade de água, pois por mais
que lhe ponham empenho, se aquele não for o ambiente para aquela planta, ela não vai
florescer. As rosas. Podem ser rosas. Não, as rosas que trouxe para senhora. Puxei a
minha mão numa tentativa estúpida de fugir dali, continuava sem entender as metáforas
de dona Dama da Noite, mas não conseguia permanecer ali. A conversação me causava
uma angústia, certo desconforto, certo desassossego. Pedi que me deixara buscar as
rosas. Deixei-as no banco. Quando peguei nas mãos as rosas, dei por perceber que
aquela moça não estava mais ali, o que me pareceu bastante estranho, pois a sua senha
era a de número 32, impossível seria que já houvessem chamado. As rosas. Devo levar
as rosas a pombogira que me espera. A sensação que sentia era a de pressa. Nunca
sentida antes. Conseguiu se livrar do passado e agora traz perturbações do futuro, por
que é tão difícil pra você viver no presente, moço? As rosas. Ela soprava três vezes no
ramalhete. Olhou-me profundamente nos olhos igual estivesse olhando-me a alma. Não
queria que fosse tão rápido, moço. Tenho prazer na tua presença e me dói não vê-lo
mais por aqui. Examina o ambiente moço, as condições, tentava voltar a metáfora
enquanto eu mostrava ânsias de ir embora e enquanto mais uma lágrima caíra de seus
olhos. Deu-me um aceno com a cabeça, sabia que aquele era o sinal de que eu poderia já
ir. Ao sair, olhei para a cadeira a procurar por aquela moça com quem havia trocado
meio dedo de prosa, ela não estava mais lá. Lembrei-me. Meu deus, só agora me
lembrei que a gente morre, mas eu também?

CAPÍTULO 9
ÍRIS DA PRAIA

Como pode alguém de tamanho igual ao meu ser tão oscilante e movediço?
Como pode alguém de estatura tão mediana quanto a minha carregar tamanha vacilação
e tanto desequilíbrio? Em um corpo tão estreito, tão fino, mas de uma frouxidão sem
tamanho. Móbil. Infixo. Inconsistente. Variável. Inseguro. Dormira com ares de quem
vence uma guerra, acordara com presságios certeiros de perda e desgraça. Sentia que
não cabia no mundo. Era como se o mundo todo me fosse ontem uma roupa larga, cheia
de espaço, mas que agora, depois de uma noite, encolhera tanto que não me entram os
pés pelos buracos das barras das calças. Eu não caibo. Sinto como se a vida tentasse me
tragar, como se os dias esperassem por mim para me ver passar como passam as nuvens.
A sensação que tenho agora é de que sou velho demais, a sensação que tenho agora é a
de que sou um corpo que se deita todas as noites esperando para morrer. Mas como
cheguei aqui? Não há contestação. Sou bambo. Sou lasso. Sou suxo. Dormira com ares
de quem vence uma guerra, acordara com presságios certeiros de perda e desgraça.
Troquem o meu nome, chamem-me frívolo. Que me chamem pelas ruas como Sr. Sem
Constância. Como pude chegar aqui se ontem mesmo eu me sentia tão feliz? Entendo
que somos todos natureza. Entendo que eu sou natureza. E como natureza eu também
sou ciclo. Sou cíclico. Mas mesmo a natureza tem lá suas estabilidades. Não se veria
neve durante os meses de primavera. O gelo esperaria as flores darem suas cores ao
mundo para depois de um longo período de verão pintar de branco os países que tem as
estações bem delimitadas. Isso não é coisa de Brasil. Mas é coisa de Natureza. Eu sei
que como Cecília, aprendi com a primavera a deixar-me cortar, porém corto-me
constantemente, mudo como se a mudança fosse o meu único modo permanente. Se há
de fato um deus. Começava a questionar o que antes lhe parecia imutável. Faz de mim
piada sua. Não suporta ver-me cultivar risos. Dera-me os olhos para molhá-los. Sinto-
me diferente de como me sentia antes. Sinto-me pedaços, sinto que nada é em mim,
senão tudo está. Tudo está neste instante, porém no instante seguinte não estará. O único
ser em mim é o ser infixo. Ser mutável. Ser movediço. Não quero estar assim, não quero
sentir-me assim. Quero prender-me em satisfações, quero fixar-me em momentos
considerados bons e deleitosos. Quero sentir o brilho que há horas me fazia
constrangido pela minha própria visão no espelho. Quero bonança. Quero sentir a vida
que me cerca. Quero sentir o homem que em mim vive. Quero o gozo de quem não
deseja a morte porque ama a vida. Quero os olhos abertos de quem espera o próximo
dia, porque sabe que dele se poderá tirar bom proveito. Quero por os pés no chão,
esfregar as solas no assoalho e sentir que sou eu uma parte deste mundo. Quero prender-
me onde me sinta feliz. Quero que meus olhos se encharquem sem que meu coração se
sinta apertado, sem que minhas mãos tremam e sem que meu rosto feche as janelas da
alma. Quero sentir o silêncio das crianças que riam e fazer qualquer graça de cara
frouxa para que voltem a sorrir. Não quero ouvir Chico. Não quero falar-lhes às
bromélias. Quero ao sol mais que à lua. Eu quero Tim Maia, eu quero Bethânia. Eu
quero Alegria, Alegria. Eu quero tropicália. Não quero ouvir Chico. Eu quero samba de
roda. Eu quero o amargo da Marrom. Não quero falar-lhes às bromélias, quero
vislumbrar as estrelas. As estrelas. É manhã, ainda não há estrelas. Mas haverá. A noite
chegará e com ela voltará Ismália. Claro. Se Ismália deu-me a força que sentia, se me
deu a alegria que me fazia vivo, com certeza outra vez o fará. Não vou à escola hoje.
Que se virem sem mim. Que aprendam que eu posso não estar lá, assim como hoje não
estarei. Colocar-me-ei frente a este relógio a esperar que o dia se despida para que a
noite venha e que eu possa assim descer a rua rio, encontrar-me com as areais de Copa e
vislumbrar Ismália. Dir-lhe-ei que venha comigo. Darei a ela ordens para que não me
deixe mais. Na espera de chances esporádicas para vê-la tenho perdido a essência que
ela mesma me deu. No tempo da espera, tenho perdido o seu brilho e me tornado outra
vez mero transeunte em um mundo que já não lhe cabe mais. Se fora Ismália quem me
dera alegria, que eu a tenha então, pois assim terei alegria. Se fora Ismália quem fizera
ver possibilidades, pois que esteja sempre comigo e já não perderei a visão. Sorria com
os lábios alargados como se quisessem tocar as orelhas. Não darei avisos de que não
irei. Se avisar, forçarão minha mente com meias palavras sobre responsabilidade e com
frases do tipo: estão te esperando, a lutar contra a minha vontade. Não darei avisos de
que não irei. Por-me-ei frente a este relógio a esperar que o dia decida se despedir.
Oxalá a força dos meus pensamentos transformem as horas em poeira e que assim o
vento sopre este dia para longe. Mas que assim também, o tempo pare quando a noite
chegar.
Amigo, algo aconteceu para que você não viesse hoje? Via a mensagem na tela
do meu aparelho celular. Não darei respostas. Não darei avisos de que não fui. Não
darei explicações. Minha mente agora é simplesmente capaz de uma só coisa. Só é
capaz de formular-lhe qualquer palavra a Ismália na tentativa de convencer-lhe de que
os restos dos meus dias deverão ser ao lado seu. Construirei a você um céu em minha
casa, usarei dos materiais mais nobres que há. Pedirei aos químicos que me contem
sobre a possibilidade de tornar o ônix uma espécie de solução aquosa que imite a tinta
para pintar o ambiente dela e dar-te o céu noturno mesmo durante o dia, mostrar-te-ei
que é possível esfarelar a calcedônia para dar-lhe o brilho que imitará as outras estrelas
que ainda que de brilho inferior ao seu, fazem-lhe companhia. Desistirei dos meus dias.
Desistirei de tudo que eu possa vir a fazer para gastar o tempo que ainda tenha para
admirar-lhe. Amigo, estou preocupado. Mais mensagens interrompiam a formulação de
um belíssimo e convincente discurso. Não responderei. Não darei contestações. Não
darei avisos. Não sou capaz agora de formular nenhuma palavra que não seja pensada
antes em ser dirigida a Ismália. Se fora ela quem me salvará, para não perder-me outra
vez, ela precisa estar comigo. Oferecer-lhe-ei toda a minha dedicação, pois minha
devoção já lhe dera quando vislumbrara tamanha beleza. Não há caminhos para um
momento feliz, sem que eles estejam cravejados dos purpurinares que de Ismália se
soltem para emprestar uma fração mínima de seu brilho a algum que antes disso era sem
nenhum valor.
Amigo, estamos todos preocupados, você não veio sem avisos. Não darei avisos.
Não há contestações. Não darei respostas. A minha mente não é capaz de preocupar-e
com nada mais além de esperar por Ismália. Ela virá e por complacente que é, aceitará
ser minha. Sol já dava demonstrações de despedidas. O laranja avisava que era hora de
descer. Naveguei apressadamente pela rua rio. Descia as correntezas dela para desaguar
no mar. Estou em Copacabana. É quarta-feira. Dei os vinte e um passos largos
necessários. Estou a lhe esperar.

CAPÍTULO 10
ESTRELAS

As areias daquele ponto da praia de Copacabana eram mais molhadas que o


restante das areias daquela região, isso se devia a quantidade de vezes que o mar ia e
vinha. Isso tinha a ver com a quantidade de vezes que o mar tentava tocar as calçadas
onduladas, que tentavam imitar-lhe ao mar, planejadas por um lusitano qualquer. O mar
não poderia chegar à calçada, mas ainda se o lograsse, retrocederia ao seu lugar
primeiro, pois tal imitação lhe causaria dor. Tão mal feita era a tentativa imitativa. As
águas molhadas davam indícios de que o mar havia passado por ali da mesma forma que
eu estar ali, naquele ponto, exatamente naquele específico ponto, dava provas de que
vinha por um motivo singular. Não ousei beber um gole d’água durante todo o dia, não
ousei comer nem mesmo um pedaço de pão. Beber ou comer exigiria que eu saísse da
frente do relógio em que via as horas passar e deixar-me ali durante todo o dia dava-me
a sensação de que os meus olhos fulminantes a fitar os ponteiros causavam a eles a
pressão que os forçava a correr. Se eu saísse dali, talvez o tempo me tivesse passado
mais lento. Ainda mais lento. Talvez, caso tivesse saído para saciar a sede ou estancar a
fome, os ponteiros voltariam para trás a atrasar o tempo numa tentativa desgraçada de
fazer-lhe piada a minha espera, e eu ainda estaria na sala do que costumava chamar de
lar a questionar ao Tempo o por que do tempo não transpor-se.
Trovadores a chamariam amigo, menestréis cantariam sua beleza, nostálgicos de
um amor que não pôde ser porque o mar os separaria. Vinicius nunca esteve neste ponde
Copacabana. Com certeza Vinicius nunca esteve aqui, se houvera estado, com certeza
lha teria deixado algum soneto gentilmente metrificado. Vasco da Gama não teve a sorte
de chegar aqui, caso chegasse seus camonianos seriam sobre ela, não sobre
aventuranças e desventuras marítimas. Quem se importa com o mar quando se tem a ela
para mirar. Machado não esteve aqui. Drummond desgraçadamente nunca esteve aqui,
se tivera estado aqui, praguejaria aos deuses, amaldiçoaria suas gerações passadas por
não ter nascido carioca. Ariano não esteve aqui, estivera estado aqui Ariano, não faria
comédias, debruçar-se-ia a escrever as mais tristes tragédias em cordéis, anunciando ao
povo do infortúnio que seria estar diante dela e não poder tocá-la. Don Diniz professaria
as mais vis palavras, a comer todas as vogais. Lusos detestam as vogais. Desejaria não
ser da corte, desejaria comer areia todo dia e beber da água com sal diariamente quatro
vezes ao dia, se em troca, pudesse vislumbrá-la. Álvares de Azevedo teria feito liras
antes dos 21, caso estivesse estado aqui. A sorte que tiveram os gregos com suas musas
e ninfas, tive eu em ser carioca. A sorte que tiveram os romanos com sua Vênus, tive eu
em estar aqui numa quarta-feira. A sorte que não tiveram os hebreus, tive eu. Far-lhe-ia
as mais lindas cantigas que nunca se viu em nenhuma trova. Far-lhe-ia cantigas,
cânticos, salmos, hinos, poemas, romances e crônicas. Far-lhe-ia versos. Far-lhe-ia as
prosas que não fizera Clarice por sair pouco de casa e nunca chegar ao posto 9 de
Copacabana no final da Siqueira Campos. Far-lhe-ia os contos que não fizera Lygia por
seu paulista. Ela é a única que seria capaz de romper-lhe o silêncio a Raduan, uma pena
o velho não deixar a fazenda. Com tanto a dizer, espreme-se tanto a calar. Ela é a única
que lhe causaria inspiração. A quem não causaria inspiração. Far-lhe-ia as mais lindas
cantigas que nunca se viu em nenhuma trova. Far-lhe-ia cantigas, cânticos, salmos,
hinos, poemas, romances e crônicas. Far-lhe-ia versos. Porém, tenho as mãos suadas,
porém tenho as mãos ansiosas. Tenho os dedos trêmulos, incapazes de segurar lápis ou
caneta. Todavia tenho os lábios molhados, pois se não posso escrever-lhe, poderei falar-
lhe.
As nuvens vão se dissipando. A palheta celestial já mudara totalmente. Nenhum
sintoma do tom azulado, nenhum vestígio do alaranjado. O sopro da maré já predizia o
frio que viria pela madrugada. Os olhos que outrora se firmavam em um relógio
madeira que tilintava na parede daquilo que costumo chamar de lar, agora, buscavam o
firmamento parar firmar-se, ainda que não fosse exatamente o firmamento o que
buscavam, mas um ponto na imensidão. Um ponto incandescente, brilhoso,
extravagante em si mesmo. Os olhos a esperavam. Os olhos sabiam exatamente onde
procurar, por conta de alguma inóspita memória ocular. Os olhos, naquele momento,
lembravam-se perfeitamente de onde ela estivera e onde ela estaria. Ela os causara
tamanho impacto que sua imagem ficara impregnada nas retinas. Não era tarefa difícil
saber onde ela estaria, ainda que o céu daquela noite fosse diferente do céu daquela
outra noite. Ainda assim, os olhos seriam capazes de achá-la facilmente. Tamanho fora
o impacto que ela os causara. Ela ficara impregnada nas retinas. Reconhecer-na-iam de
qualquer forma. Os olhos a esperavam. Achou estrelas no firmamento, nenhuma era ela.
Os olhos ainda fixados davam-lhe aspectos de estátua. Não se movia. Os olhos a
esperavam. Não conseguia piscar os meus olhos, pois no fechar das pálpebras, poderia
ser que perderia sua chegada. Brilhava tanto que não parecia estrela, parecia sol. Ao
passar os olhos outra vez. Ismália. Gritou, irrompendo o barulho das ondas que iam e
que vinham. Ismália. Gritou outra vez. Quem lhe vira ali, não saberia a quem chamava.
Olhava fixadamente. Imóvel. Fixo. Concreto. Tinha o pescoço esticado como se
tentasse beijar as estrelas. Talvez tentasse, mas lhe faltava estatura. Ismália. Sentia-me
triste, mas encontrar-te me fez feliz. Senti-me triste outra vez e por isso vim buscar-te.
Vim buscar-te, pois se deste a mim felicidade, preciso tê-la, desejo tê-la para que minha
felicidade seja plena. Estive sozinho. Estive esquecido. Deste-me a mim forças para
enfrentar meus fantasmas. Deste-me a mim coragem para enfrentar os meus medos.
Fizeste-me sorrir feliz no meio da alegria e ainda mais alegre no meio da tristeza. Estive
triste outra vez, tive medo outra vez. Faltou-me coragem de novo, por isso vim buscar-
lhe. Não se pode tirar o céu do seu lugar, mas serei para ti a imensidão que aí tu tens. Se
quiseres, pinto-me, faço-me trevas para que só o teu brilho se veja. Se quiseres, faço da
minha a tua morada. Dissera-me que viram brilho em meus olhos, conquanto não era
meu, eram pegadas tuas e como toda pegada com o vento se perdeu. Portanto, vim
buscar-te. Vim fazer-te minha. Vim trazer-te a mim e não me perder mais e não me ir
mais. Já não me dirão que ando perdido demais, pois me achei em ti e contigo não me
perder mais. Nem os orixás nem as damas nem os senhores me dirão que perco o
presente ansioso pelo futuro, pois se algo ansiava, ansiava a ti e contigo não me ir mais.
De longe se podia ver que as mãos acompanhavam a direção do pescoço numa tentativa
de alcançá-la. De longe se podia ver que agora os joelhos tomaram o lugar dos pés e
punha-se em suplício, punha-se a rogar, ainda mais, a implorar. Quem o visse de longe,
não entenderia com quem estava a falar. Silêncio.
De longe se pode ver água, água salgada, mas não de mar. Água salgada de
rosto. De longe se pode ver as mãos que vão baixando lentamente como quem acaba de
ver os planos frustrados. A mesma medida que as mãos abaixam, o pescoço acompanha
na mesma direção. Já não se pode ver os lábios tartamudearem qualquer palavra. Os
movimentos se perderam. Fez-se areia.
Na imensidão, fiz minha morada por já não ser pequenina. Por mais imenso que
seja você, nunca será tão imenso quanto à imensidão; vê-me ponto, porque estou longe,
porém se me aproximo vai ver que sou vastidão, não tão vasta quanto à imensidão, mas
mais vasta que você, sujeitar-me ao seu pedido, seria escolher diminuir-me, seria
quebrar-me para caber em si. Não estou disposta a fazer-me pedaços. Para caber em si,
preciso seria que me contorcesse até ser do seu tamanho e se o fizera, seria tão pequena
que já não brilharia. Perderia quem eu sou para ser sua. Não estou disposta a fazer-me
pedaços. É doce o escutar das bem-aventuranças que lhe fiz, é satisfatório o saber das
transformações que lhe dei. Você me dá ainda mais brilho. Você me enche com suas
palavras e faz-me ainda maior, mas contente-se em saber que seu chão está feito de
poeira minha. O que toca sua mão é poeira estelar. Outras já eclodiram para caber em si.
Eu. Eu? Não estou disposta a fazer-me pedaços para caber em si. Se aos seus olhos fui
tão linda, prefiro brilhar ainda mais noites em tantos outros diferentes lugares para que
palavras como as suas façam ainda maior o meu tamanho e ainda mais intenso o meu
brilho. Escolhi a imensidão por já não ser pequenina. Tenho um universo todo em mim
e não, não quero quebrar-me em pedaços para caber em si. Fizeram-me feliz suas
visitas. Vi-se e tive regozijo. Senti-me feita do que sou. Você deu-me louvações,
exaltações e gabações, porém não sou sua, não quereria sê-lo. Não estou disposta a
fazer-me pedaços. Acaso poderia pertencer a alguém, aquela que está feita para
simplesmente ser sem nunca pertencer? Acaso foram os seus deuses quem lhe
prometeram a mim como presente? Acaso fora quem me formou que lhe prometera a si
como sua? Pois nem mesmo assim seria. Forjei-me no tempo. Convivi com a física e
com a química, condensando-me em gases que se aglutinavam pela atração
gravitacional. Estive em uma nebulosa, saindo do seu interior com mil outras em nuvens
moleculares que deram origem a muitas de mim. Eu enfrentei o frio, o mais denso frio e
de toda a desgraça interestelar fiz-me intensidade. A alta densidade destas regiões
impedia qualquer brilho. Assim, antes de ser luz, eu fui escuridão. Antes de ser brilho,
eu fui um espaço oco do sem fim. mas eu, eu fiz-me estrela tal qual sou. Eu fiz-me
brilho. E depois de tudo isso, depois de fazer-me. Não quero quebrar-me em pedaços
para caber em si. Vê-se a si. Vê-se a si. Enfrentou suas baixas temperaturas, esteve no
meio da escuridão. Tantas vezes queixou-se e, ainda, foi capaz de achar motivo quando
já tudo era pergunta e não resposta. Tem estrela em si. Tem de mim em si. Mas eu ser
sua, não. Eu ser só sua, não. Se quiser, estarei aqui às noites que não for servir de
inspiração a outros povos. Estarei aqui para si e para ela, para si e para ele. Estarei aqui
para quem espere ver brilho no meio da imensidão. Eu escolhi a imensidão já por não
ser pequena. Eu escolhi a imensidão já por não ser pequena. Eu não quero me quebrar
em pedaços para ser sua. Faça canções sobre mim e me venha cantá-las, mas se lhe
escuto, também escuto a outros. Só sua não. Mas enquanto estiver aqui, serei a sua
estrela para si. Faz-me única, então para si serei única, mas só sua não. Não quero
quebrar-me em pedaços para caber em si. Eu escolhi a imensidão já por não ser
pequena.
Pois que saibas que és igual a tantas outras, achei-te única porque perdi todo o
tempo que tinha a olhar para ti que não me dei conta de tantas outras brilhosas que
brilhavam ao redor de ti. Teu brilho não é o único. Olha a tua volta. Esbravejava.
Gritava. Olha a tua volta. Solta a tua boca palavras cortantes que machucam como seria
capaz a espada mais afiada de cortar-me ao meio com só uma passada. Tuas palavras
pesam nos ombros como se eu sentisse que não pudesse jamais voltar a caminhar. Mas
tens palavras demais e visão de menos. Olha a tua volta. Esbravejava. Olha a tua volta e
vais perceber que só és única porque te fiz única, conquanto és igual a tantas outras que
agora já não sei mais distinguir quem és tu e quem não és. Esbravejava. Gritava como
quem quisesse convencer a si mesmo de uma coisa da qual não estava convencido.
Esbravejava. Gritava como quem precisa devolver a dor que lhe causaram porque não é
capaz de carregar sofreguidão tamanha, sozinho. Esbravejava. Gritava porque o silêncio
lhe faria escutar que estava só. Só e sem a ânsia do próprio ego satisfeita. Esbravejava
porque não era ele a liberdade escolhida, mas a prisão rejeitada. Eu, se fosse tu,
procuraria outra habitação que não o céu, faria só para mim outro tempo que não a
noite, pois no céu não te diferencias, na noite não te enxergam. Fiz-te única e por isso
eras diferente de todas as outras, mas longe de mim, és confundível, és uma mais.
Gastei meu tempo em favor de algo que platonicamente idealizei, mas que não és.
Esbravejava. Gritava. Gritava como se a palavra pressa causara-lhe falta de ar e agonia.
Gritava para sentir raiva e não dor. Esbravejava. Gritava. Chorava.
Estrelas. Ouçam-me bem todas. Entre as mais belas não podereis os distinguir
porque sois muitas, mas facilmente podereis achar a mais altiva e prepotente. Terminava
a frase quase sem dizer palavra. Soluçava. Falava entre dentes. Chorava.
Eu não quero quebrar-me para caber em si.
Mágico também é o fato de termos inventado deus e que por um milagre: ele
existe.

CAPÍTULO 11
Um outro céu

Silêncio. O celular até chama, mas ninguém atende. Os alunos já começaram a


perguntar. Duas faltas seguidas sem nenhuma justificativa, não é do perfil dele. Outro
dia quando conversei com ele sobre as perspectivas da vida, sobre chuva; ele parecia
dentro do normal. Não era uma prosopopeia para felicidade, mas era ele. Bastante
incomum esta atitude, não é do perfil dele realmente. Eu mandei mensagens ontem. Ele
não me respondeu. Já já os alunos vão começar a perguntar e eu não vou saber como
responder. Ele comentou, qualquer dia, que estava cansado e que não tinha gostado da
maneira impositiva como lhe tinham outorgado as aulas da professora que se afastou,
mas rebelar assim, com certeza teria me dito alguma coisa. Sempre que se queixava de
alguma coisa, se queixava a mim, não era do perfil dele todo esse sumiço sem aviso.
Nunca me disse, onde mora sem mencionar sua rua como rua rio. Poxa vida, estamos no
Rio. Qualquer rua pode ser rua rio. Falava sempre por metáforas. Falava sempre
repetindo trechos de alguma obra ou fazendo mesa falar com alguma figura de
linguagem inapropriada, mas que seguramente fazia total sentido em sua mente. Eu
precisava lhe pedir alguns favores, tinha planos e projetos. Ele amava projetos que
incentivassem a leitura de clássicos. Detestava o fato de os alunos se aproximarem tanto
de literaturas de autoajuda e nunca dos clássicos. Achava um desperdício colocar as
palavras a serviço de tamanho desperdício. O celular está chamando. Chama, chama,
chama, ninguém atende. Eu não mando mais mensagens porque desde ontem ele não
responde as minhas tentativas de saber algo. É bastante estranho, porque isso não é do
seu perfil. Teve um dia em que ele chegou feliz da vida, contando sobre uma estrela que
havia encontrado. Ele entrou na sala dos professores todo entusiasmado, querendo me
contar qualquer coisa, depois de sair com a cara meio lavada do banheiro dos
professores. Eu estava corrigindo alguns trabalhos sobre preconceito linguístico. Ele
parou em minha frente, perguntou se via brilho nos olhos dele. Perguntou se eu podia
ver estrelas em seus olhos, mas pareceu referir-se a uma bastante específica. Fingi que
reparei, dei risos de canto, mas na verdade não via nada. Comentou alguma coisa
Ismália, mas eu não entendia muito bem todo aquele enredo. De tantas palavras que
guardava na mente, acho que se apressava demais em escolhê-las que saiam todas juntas
pela boca numa velocidade frenética que impedia que eu fosse capaz de entender todo o
contexto. Por saber que não era de muito agrado dele repetir o que já tivesse dito,
soltava um riso de canto dando demonstração de concordância. Estou realmente
bastante preocupado. Sempre foi bem evidente que não tinha motivos muito específicos
pra viver. Passava o tempo vivendo, mas não vivendo de forma a aproveitar os dias. Ele
não era do tipo que aprecia um café pela manhã nem uma boa companhia depois do
almoço. Acostumou a viver sozinho. Mas no dia em que me perguntou sobre os olhos e
alguma coisa sobre estrelas, nesse dia, parecia ter achado algum sentido inspirador.
Durou-lhe pouco, também é verdade. Acho que o problema é que vivia para trabalhar e
não o contrário. Não trabalhava para viver, mas todo o contrário. Acho que leu demais
sobre o amor e nunca viveu nenhum. Mas no dia em que perguntou sobre os olhos e
alguma coisa sobre estrelas, nesse dia, parecia ter achado algum sentido inspirador. Foi
ruim, pela manhã, chegar aos corredores do segundo andar e não o ver reclamando
sobre como eram irritantes os sinais desta escola. Sentia sua falta. Porém, o celular
ainda está a chamar, ninguém atende. Uma vez, me disse algo de que eu não pude
esquecer mais. Tinha as palavras corridas, mas sabia usar as palavras. Vivia pouco, mas
sabia falar sobre a vida. Era bom com as danadas. Me disse que sorte quem tinha era o
homem de lata, só era uma pena ele não ter sabido disso. Confesso que na hora, dei com
um riso frouxo fingindo concordância, mas a sua ausência me fez lembrar suas palavras
e lembrar delas é agora entender muita coisa. Ele tem desses costumes. Fazer a gente
pensar no que ele disse depois de algum tempo que já tenha dito. Acho que pensava isso
por ler demais sobre o amor e nunca viver nenhum. Sorte quem tinha era o homem de
lata, uma pena ele não ter sabido disso. O som estridente do qual ele reclamaria. O
telefone ainda está chamando, mas ninguém atende. Bastante estranho. Esse não é o
perfil dele. Seu perfil era fazer metáforas, mas nunca dar silêncio.

Silêncio. Quis fazer-me sua. Quis fazer-me caber em si, mas eu não estou
disposta a quebrar-me para caber em ninguém mais. De longe, eu o via chegar. Daqui
pude ver tanto descontentamento. Ainda que do alto, pude ver o quanto chorava naquela
quarta-feira quando chegou a Copacabana. Trazia a vida insatisfeita, mostrava nos olhos
a angustia que jamais eu vira em outro transeunte qualquer que pisou aquela areia. Eu o
vira em suplício. Vira-o e ao ver-lhe senti as dores que nunca havia sentido. Compadeci-
me. Na areia de Copacabana parecia desfazer-se com ela. Não ouvia altos sons, mas
ouvia o som que se pode ouvir a esta distância. Não ouvia altos sons, mas ouvi-o o
suficiente para entender que soluçava. Compadeci-me. Vi tamanha deslealdade da vida,
vi a força da desgraça feita lágrimas. Decidi oferecer-lhe o que tenho de mais precioso.
Ofereci-lhe o meu brilho. Quis dar-lhe motivos. Compadeci-me. Mas não quero
quebrar-me em pedaços para caber em si. Mirava-me a mim com olhar resplandecente.
Dissera-me palavras que me levaram pra mais perto. Clamou-me tanto que me deixei
estar ali a esperar-lhe. Fiz-lhe pensar-me sua. Tentava oferecer-lhe motivos para não
tornar-se areia. Ouvi seus poemas, deleitei-me em suas declarações, mas não o bastante
para quebrar-me nem para fazer-me sua. Se eu lhe dera tamanha felicidade, servira-lhe
como inspiração e dera-lhe motivos para voltar, como poderia ser só sua? Como poderia
privar aos outros, homens e mulheres, de sentirem-se em mim refeitos. Isso não é pensar
em mim, isso é querer o bem de todos. Se sou eu capaz de dar vida, pois que de vida a
quaisquer humanos. Se sou eu capaz de criar alegrias, pois que de alegria a muitos.
Escolhi a imensidão como morada porque não sou pequena, escolhi o infinito porque
não passo rápido demais. Escolhi-me a mim porque sou estrela e não cabe a mim
enclausurar-me, encarcerar-me, atar-me a um homem só, ainda que seja ele um homem
de boa vontade. Porém, se não posso dar-lhe o prazer que me pede. Se não quero dar-lhe
o prazer que me pede, que também não lhe dê tristezas. Que também não seja aquela
que um dia foi poesia, lamúria. Não seja a musa da destruição nem obrigue os cânticos a
tornarem-se lamentações. Pois se há uma imensidão inteira pra bilhar, pois que me dê o
céu espaço novo. Que me faça longe do posto 9 de Copacabana. Que me dê o céu
espaço em Sevilha, Madrid, Berlim, Paris. Mas que não me dê o céu o espaço carioca.
Porque se ao ver-me se tortura, que não o ceguem, mas que já não me veja. Antes fuja
eu que sou da imensidão. Há tantas como a mim. Disse. Pois que se regozije nelas. Que
mude o céu de lugar, que subam as nuvens e me cubram o brilho. Que o céu se
desloque. Que o céu ande. Pois se já não, que seja não. Sou intensa demais para ser sua.
Sou da imensidão para quebrar-me até caber em si. Que mude o céu de lugar, que
subam as nuvens e me cubram o brilho. Que o céu se desloque. Que o céu ande. Pois se
já não, que seja não. Sou intensa demais para ser sua. Sou da imensidão para quebrar-
me até caber em si.
Silêncio. Um oco no oco. Espaço negro sem luz. Silêncio. As águas a bater no meio da
arei de Copacabana. Há estrelas. Ela não. Silêncio. O vento é cortante. Faz-se dia. Faz-
se noite. Faz-se dia.
Silêncio. O celular até chama, mas ninguém atende. Já são dias sem aparecer. Os alunos
já começaram a perguntar. Ninguém para substituir, as coordenadoras já falaram em
desligá-lo sem aviso prévio, já que todo mundo liga e ele não atende. Estou bastante
preocupado. O celular até chama, mas ninguém atende.
Silêncio. Silêncio. Um oco no oco. Espaço negro sem luz. Silêncio. As águas a bater no
meio da arei de Copacabana. Há estrelas. Ela não. Silêncio. O vento é cortante. Faz-se
dia. Faz-se noite. Faz-se dia.
Silêncio. O celular já não chama. É uma pena perder a um amigo sem dizer Adeus,
principalmente quando não se sabe se se disse a ela até breve. Infelizmente o celular já
não toca. Acho que leu demais sobre o amor. Idealizou demais sobre o amor e não teve
tempo de viver o amor. Não sabe que o amor é sensível. É real. O celular já não chama.
Como era mesmo: sorte quem tinha era o homem de lata uma pena ele não ter sabido
disso.
Silêncio. Silêncio. Um oco no oco. Espaço negro sem luz. Silêncio. As águas a bater no
meio da arei de Copacabana. Há estrelas. Ela não. Silêncio. O vento é cortante. Faz-se
dia. Faz-se noite. Faz-se dia. Faz-se noite.

CAPÍTULO 12
HORIZONTE

É, extremamente, a mim, estranha, a sensação que me força, o corpo, a sentir.


Uma mistura de descontentamento e medo. Lutar contra ela, eu não consigo. Não querer
senti-la é sentir duas vezes mais. Buscar afastá-la é deixar com que se aproxime tão
rápido que me seria impossível vê-la chegar. Eu não a quero sentir, mas sinto. É-me
angustiante. Faz-me tortura. Eu não queria estar neste lugar de desespero, bom, na
verdade, eu não sei como eu vim parar aqui, porém, uma certeza eu tenho: Eu não
queria ter vindo parar aqui. Olhar para fora de mim me traz uma vontade persistente de
querer dormir, afinal, quando fecho os olhos, eu não a vejo; se não a vejo, não a sinto.
Não procurem por mim. Não me chamem. Não me acordem. Eu estou a dormir, eu
estou a dormir para não me por a lembrar. Não há nada que me motive. Se algo me é
motivador em um instante, logo no instante seguinte torna-se desanimador. É um
suplício olhar e ver-me: Ver-me é lembrar a sensação e eu não a quero lembrar. Eu não
a quero sentir. Talvez, seja-lhe difícil curar porque eu não consigo dar-lhe nome. Não
posso chamar tristeza, porque tristeza não é. Não posso dizer-lhe doença, pois doença
não é. É áurea, portanto vertiginoso. É flácido, não se pinta, não se faz música dela. Não
é matéria para poesia alguma. Será it? É coisa, mas não se materializa. Não é concreto.
Sente. Se sente, sente-se.
Eu não a quero sentir.
Descer a Siqueira Campos nunca ma pareceu tão trabalhoso como naquela noite.
A lua criava uma espécie de tapete aveludado e alvo na rua, até então, crua do Rio de
Janeiro. Caminhava por ela como quem caminha por nardos. Eu podia sentir o cheiro
deles, enquanto a lua expunha seus seios de duro estanho num céu cheio de estrelas.
Sem nenhuma nuvem. Num céu cheio de estrelas. Sem nenhuma Ismália. Eu a
reconheceria. Ela não estava lá. Eu a apagara como quem apaga a luz ao sair do quarto.
Sem dificuldades, sem nenhum grande esforço empenhado. Apenas um clique. Sutil e
leve, rápido e instantâneo clique. Tão fácil é apagar a luz do quarto ao sair. Tão fácil foi
apagar uma estrela. Quando a areia do posto 9 de Copacabana começou a incomodar os
meus pés, fazendo-lhes cócegas entre os dedos, foi que percebi que já não estava mais
na Siqueira Campos. Agora eu era parte da terra. Sentia o vento soprar com furor o meu
rosto, forçando certa expressão de desconforto. A luz neve da gorda e cheia lua, agora
se tornava mais espessa, ainda mais leitosa, tenebrosamente, atrativa. Fazia-me a mim
um tapete de brancos nardos. Era como se a lua me estendesse desde o céu uma
camisola de um tecido fino, porém rendado, quase tão transparente, mas não tão
transparente ao ponto de impedir-me ver o seu brancor engomado. La luna vino a la
frágua com su polisón de nardos. El niño la mira mira, el niño la está mirando. Lola
Flores recitara tão bem a Lorca. Sua voz ecoando fora interrompida quando meus pés se
deram conta de que agora já não lhes enraivecia só a areia, mas também a água fria do
mar daquela noite. O mar estava branco. Acabara a linha de areia por onde se via o
tapete de nardos, agora eles flutuavam sobre as águas geladas do mar daquela noite, o
tapete lunar tinha continuidade nas águas turvas do mar daquela noite. Subitamente,
olhei para o céu, numa tentativa ingênua e imbecil. Forcei a vista. Procurei-a. Obriguei-
me a imaginar que poderia ser que à Ismália, eu não a houvera apagado. Tentava
justificar a mim mesmo: E não poderia ser ela um tipo de Ismália arrependida?
Arrependera-se de haver escolhido a lua do céu e decidiu jogar-se para banhar-se na lua
do mar. Houvera de ter-se soltado do firmamento para conhecer as profundezas do céu
molhado? Afinal, o mar é o céu. O mar é imensidão. Enquanto a imagem da sala de aula
me levava a revisitar o dia em que então aluno me dera nova perspectiva de Alphonsus,
senti a mesma água, que incomodara meus pés, a incomodar minha cintura. A água
fazia-se Albiflora. Ao mesmo passo que as ondas tentavam empurrar meu corpo de
volta a areia, as mesmas ondas o puxavam para mais perto do horizonte enegrecido.
Eram brancas as águas do mar daquela noite. Inóspita era a sensação das águas que
roçavam o meu queixo, beijando-me os lábios. Quem sabe lha veria intacta, presa, plena
em seu fulgor, brilhante junto à lua do mar. Eram turvas as águas do mar daquela noite.
As asas que deus lhe deu ruflaram de par em par
E ele entrou no mar. E ele entrou no mar. Ele entrou no mar. Ele entrou no. Ele entrou.
Ele.
Seu corpo subiu ao céu. Sua alma desceu ao mar.

Fui ser horizonte.

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