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“Eat the Rude”:

A manifestação do mal em Hannibal

Eat the Rude:


The manifestation of evil in Hannibal

RESUMO
Segundo Georges Bataille, o mal só pode existir como uma transgressão da ordem
social, seja ela como um obstáculo à perpetuação da espécie ou como uma quebra voluntária
de tabus. Sabendo disso, este artigo propõe uma análise do seriado americano Hannibal,
criado por Bryan Fuller e exibido pelo canal NBC entre os anos de 2013 e 2015. O objetivo
consiste em analisar o conceito de mal apresentado pela série e como ele se manifesta na
narrativa e nos personagens, em seus desejos de soberania, em suas paixões, e em suas
representações do divino, diferenciando-se assim de outras produções audiovisuais. Para este
estudo nos basearemos nos pressupostos da teoria semiótica francesa.

Palavras-chave: Hannibal, séries, audiovisual, semiótica

ABSTRACT
According to Georges Battaile, the evil can only exist as a trangression of social order,
be it as an obstacle to the perpetuation of the species, be it as a voluntary tabboo breaking.
Having this in mind, this article aims to analyze the American series Hannibal, created by
Bryan Fuller and aired by NBC between the years od 2013-2015. The goal is to analyze the
concept of evil presented by the series and how it is manifestated in the narrative and in the
characters, in their desires for soberany, in their passions, and in their representations of
devine, making the series be different from other audiovisual productions. For this study we
are going to be based on the pressupostes of the French semiotics theory.

Keywords: Hannibal, series, audiovisual, semiotics

1. Introdução

1.1. Sobre a proposta

Hannibal, criado por Bryan Fuller, é um seriado americano do gênero thriller1-horror


psicológico que foi exibido pelo canal NBC entre 4 de abril de 2013 e 29 agosto de 2015. A série
possui três temporadas com 13 episódios cada, e é baseada nos personagens do livro O Dragão
Vermelho, de Thomas Harris. Esse livro foi publicado em 1986 e possui duas continuações: O
Silêncio dos Inocentes em 1988 e Hannibal em 1999. Todos os livros receberam adaptações
cinematográficas em diferentes momentos, com diferentes elencos.
O primeiro livro conta a história a partir do momento em que o protagonista Will Graham já
se encontra afastado do FBI e vive com sua esposa e filho adotivo. A série, no entanto, conta
eventos originais que acontecem anos antes desse momento, como forma de expansão narrativa.
Nela, somos apresentados ao protagonista e criminal profiler2 Will Graham, que possui uma
1
Narrativa ficcional, peça de teatro ou filme caracterizado por uma atmosfera de suspense geralmente assente numa
intriga de crime, mistério ou espionagem. Thriller in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em
linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-04-02 00:18:46]. Disponível na Internet:
http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/thriller
2
Profissional que produz as análises das características psicológicas e comportamentais de uma pessoa, para avaliar
se é possível que eles tenham cometido o crime que está sob investigação.
habilidade de empatia fora do comum3. Tal habilidade é o que o faz ser convidado por Jack
Crawford para trabalhar como um investigador especial para o FBI para investigar um serial killer
que caça jovens garotas com as mesmas características físicas. Por causa disso, a pedido de sua
colega de trabalho e amiga Dra. Alana Bloom, ele é apresentado ao psiquiatra Dr. Hannibal Lecter,
que aceita o pedido de Jack Crawford de cuidar para que a mente de Will não seja prejudicada
durante o trabalho.
A série se destaca ao ter como temas o questionamento sobre o que vem a ser a humanidade,
a partir da isotopia temática do “mal” e sua relação com o amor e beleza retratados através de lentes
obscurecidas pelo sombrio e pelo canibalismo. Embora o tema da malignidade seja recorrente em
produções atuais, tais como Breaking Bad e House of Cards, Hannibal se diferencia delas ao
apresentar o mal como inerente em cada um, como já dito, com a característica de que aqueles que o
praticam são sujeitos que possuem a coragem de aceitá-lo. Isso é explorado diferentemente em três
personagens: Hannibal Lecter, Will Graham e Bedelia DuMaurier.
Hannibal aceitou completamente o mal dentro de si, após uma experiência extrema vivida
enquanto jovem4. Will, entretanto, aparenta sempre ter sido consciente de seu mal, mas reluta em
aceitá-lo - como tentativa de se manter nas normas sociais, já que desde criança sempre foi
considerado fora do grupo por seus comportamentos derivados da empatia, que o tornavam
“estranho” - vindo a aceitá-lo apenas nos últimos momentos do seriado, após diversos conflitos
éticos consigo próprio, e pessoais com Hannibal Lecter. Bedelia, por sua vez, apresenta um
comportamento diferenciado dos dois: ela sente-se fascinada pelo mal e não o nega, mas ao mesmo
tempo sente-se aterrorizada pelo potencial que esse mal representa em pessoas como Hannibal
Lecter.
Na série, a paixão do mal é tratada como uma quebra voluntária de tabus (Bataille 1989) por
meio da prática do canibalismo5, exacerbada pela relação entre sagrado e profano, e a beleza
estética.
Considerando que essa produção seriada televisiva trata dessa paixão de forma diferenciada,
como já afirmamos, neste artigo objetivamos identificar as caracteristicas de manifestação do mal
por meio da análise dos papeis figurativos, temáticos e patêmicos com base nos pressupostos da
teoria semiótica greimasiana.
Apesar de reconhecermos o potencial existente nos personagens Will Graham e Bedelia
DuMaurier, neste primeiro momento, nos focaremos exclusivamente no personagem principal
Hannibal Lecter.

1.2. Sobre a semiótica

A semiótica é uma das teorias que se preocupam com o estudo de textos e seus efeitos de
sentido. Ela preocupa-se em “descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que
diz” (BARROS, 1999). Segundo ela, o texto é composto por um plano de conteúdo e um plano de
expressão. Este último pode ser manifestado através de diferentes linguagens: visual, áudio,
audiovisual, verbal, sincrético, etc. Tanto o plano de conteúdo quanto o plano de expressão são
manipulados de forma a produzir determinados efeitos de sentido no texto.
No final da década de 60, baseado nas teorias linguísticas de Saussure e Hjelmslev, o lituano
Julien Algirdas Greimas (1917-1992) propõe que os efeitos de sentido de um texto organizam-se
através de um percurso gerativo de sentido que parte de um ponto mais simples e abstrato e percorre

3
Na obra, essa habilidade empática consiste na habilidade de Will de se colocar no lugar dos assassinos, recriando
com perfeição, em sua mente, os acontecimentos, e experimentando as emoções e paixões do assassino em questão.
4
Em 1944 Hannibal e sua irmã mais nova, Mischa Lecter, ainda vivendo na Lituânia, são capturados por um grupo
de incursões alemãs. Ambos são separados e, eventualmente, os membros do grupo assassinam Mischa e usam sua
carne para alimentar Hannibal, sem o conhecimento deste.
5
Segundo o dicionário online Dicio, o termo “canibalismo” e refere a “1. Característica, particularidade ou condição
de canibal; que tem como hábito alimentar ou ritual a ingestão de carne humana; antropofagia. 2. Comportamento
de canibal; antropofagia. 3. [Figurado] Ação ou maneira comportamental que denota e expressa brutalidade;
ferocidade.”
todo um caminho até se tornar mais complexo e concreto. Esse percurso “é uma sucessão de
patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se
produz e se interpreta o sentido.” (FIORIN, 2002, p. 17). Ou seja, nesse percurso gerativo são
estabelecidas três etapas que podem ser explicadas separadamente, embora o sentido do texto
dependa da relação existente entre as três.
O primeiro nível, mais simples e abstrato, chama-se nível fundamental e nele é estabelecido
o sentido do texto através de uma oposição semântica mínima, sendo que um desses termos sempre
será eufórico (positivo) enquanto que o outro será disfórico (negativo). Aqui ocorrem as
transformações fundamentadas em relações de contrariedade, contradição e implicação, que são as
principais responsáveis pela articulação de uma narrativa, por mais simples e mínima que ela seja.
Por exemplo, essa oposição semântica poderia ser “vida vs. morte”. É importante ressaltar que não
cabe ao leitor estabelecer qual termo é eufórico ou disfórico para o texto – tal papel cabe apenas ao
autor, que pode escolher celebrar a morte ao invés da vida, tornando então “morte” o termo eufórico
enquanto que sua oposição“ vida” é o termo disfórico.
O segundo nível, intermediário, chama-se nível narrativo e nele organiza-se a narrativa, do
ponto de vista do sujeito – a sintaxe narrativa. Há uma estruturação mínima que serve de base para
qualquer enunciado, baseada nas relações estabelecidas entre sujeito (o ator) e objeto-valor (aquilo
que modalizará o sujeito para que este deixe de ser um sujeito de estado e passe a ser um sujeito do
fazer, ou seja, o objetivo de conquista do ator). De acordo com Fiorin (2000) essa relação entre o
sujeito e seu objeto-valor é estabelecida através de uma junção, que pode vir a ser uma conjunção
(posse) ou uma disjunção (privação). Por exemplo, na frase “a gata está dormindo” há uma relação
de conjunção entre o sujeito “gata” e seu objeto-valor, “sono”. Já na frase “a gata não está
dormindo” há uma relação de disjunção entre o sujeito e seu objeto-valor.
Através da estruturação do texto, fica implícito a presença de quatro fases transformadoras
que devem ser identificadas pelo leitor: manipulação, competência, performance e sanção. Na
manipulação, um sujeito manipula outro a fazer algo, seja através de uma ordem, um pedido, uma
chantagem, etc. O manipulador não precisa ser um personagem, mas pode ser uma moral, uma
ética, um conceito, entre outros. Para que a manipulação seja eficiente, é necessário que o sujeito
manipulado tanto queira ou deva fazer o estabelecido quanto tenha condições de o fazer. Essas
condições de fazer o estipulado constituem a competência. Já a performance estabelece-se sempre
como uma relação de ganho ou perda que acontece após os acontecimentos estipulados pela
manipulação. Por último, há a sanção, que pode ser negativa ou positiva. A sanção nada mais é do
que a consequência, para o sujeito, de seus atos após ser manipulado.
O terceiro nível, mais complexo e concreto, chama-se nível do discurso e nele a narrativa é
assumida pelo sujeito da enunciação. É aqui onde a narrativa será enriquecida pelo ponto de vista
do sujeito, pelas projeções de tempo e espaço quanto pela aplicação de temas e figuras. E é através
desses temas e figuras que estudaremos os papéis figurativos, temáticos e passionais do ator
Hannibal Lector.
Segundo o dicionário de semiótica copilado por Greimas e Courtés (1979), um tema é a
disseminação dos valores de um texto durante sua narrativa, enquanto que as figuras seriam suas
“coberturas”, que tornam os temas concretos. Já em uma entrevista a Cristina Sampaio ( ), José Luiz
Fiorin define as paixões como “um arranjo de modalidades, que são moduladas”, e dá o exemplo de
paixões voltadas para o passado, tal como o remorso, e paixões voltadas para o futuro, como o
medo. É importante notar que a noção de paixão em semiótica não se relaciona aos estados de alma
dos sujeitos ‘reais’, mas deve ser entendida como efeito de sentido inscrito e codificado na
linguagem.
Assim, a semiótica interessa-se pela dimensão discursiva do fenômeno passional,
distinguindo-se das abordagens filosófica e psicopatológica. Portanto, os papéis temáticos,
figurativos e passionais são aqueles que caracterizam, identificam e aprofundam o ator,
possibilitando o cumprir de seu papel na narrativa e o desenvolvimento da mesma. A estrutura
passional é também controlada pela moralização, ou seja, a sociedade determina a circulação de
valores. Desse modo, ao percurso do “fazer” do sujeito, associado à narratividade, associa-se um
percurso do “ser”.

1.3. Sobre a série Hannibal

O seriado Hannibal é uma releitura da série de livros do autor Thomas Harris. As diferenças
entre ambas as séries acontecem em âmbitos maiores do que os esperados de uma tradução
inersemiótica. Buscando atualizar a obra, onde a esmagadora maioria dos personagens principais
são homens brancos, Bryan Fuller nos apresenta a personagens com raça e gêneros diferentes dos
apresentados no livro, além de aumentar seu papel na trama audiovisual: Pode-se citar como
exemplo Alan Bloom, professor do Departamento de psiquiatria da Universidade de Chicago e
consultor do FBI, que não possui um papel de destaque na narrativa literária, enquanto que sua
contraparte da série, Alana Bloom, assume um papel muito mais proativo e de destaque.
O cuidado de Fuller para com a série vai além dessas mudanças físicas. O diretor é
particularmente cuidadoso na construção de suas metáforas, tanto na narrativa quanto visualmente.
Pode-se traçar um paralelo entre a série e as obras de William Blake, cujo quadro “O grande dragão
vermelho e a mulher vestida no sol” foi a inspiração tanto para o primeiro livro de Thomas Harris
quanto para o arco narrativo da terceira e última temporada da série. Tanto Blake quanto Fuller são
caracterizados pela indiferença às regras comuns, ao uso de cores violentas, a violência sendo
envolta pela estética.
Observe a figura 1.

Figura 1 – The Great Red Dragon And The Woman Clothed With Sun

Fonte: https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/4368

No quadro acima, de autoria de William Blake, é visível a exploração da dualidade do bem,


representado na forma da mulher, versus o mal, representado pelo dragão vermelho que a sobrepuja.
Podemos ver o detalhe da cauda do dragão se enrolando na mulher, como se quisesse convencê-la a
vir para seu lado.
Na série, o ator Francis Dolarhyde, outro serial killer, se apresenta como alguém obcecado
pelas pinturas de William Blake, e com o objetivo de tornar-se o próprio Grande Dragão Vermelho
exposto nas pinturas. Ainda que essa seja uma figurativização explícita, pode-se encontrar as
influências de Blake e sua pintura mesmo antes desse arco narrativo ser apresentado.
Como dito anteriormente, Hannibal apresenta o tema da dualidade através das figuras de
Hannibal Lecter e Will Graham. O ator Hannibal assume o papel temático do dragão, como um
agente interessado no mal pelo mal e particularmente engajado em corromper o bem. A figura da
força se apresenta diferente em ambos: o dragão é mostrado como altamente musculoso, uma clara
demonstração de poder físico, enquanto que Hannibal utiliza das figuras dinheiro e status. Isso é
possível devido aos mundos diferentes que ambos os atores vivem, portanto, seus objetos-valores
serão diferentes, ainda que os levem ao mesmo caminho.

1.4. Sobre o ator

Segundo o dicionário de semiótica copilado por Greimas e Courtés (1979), “o termo ator foi
progressivamente substituindo o termo personagem (ou dramatis persona) devido a uma maior
preocupação com a precisão e a generalização (um tapete voador ou uma sociedade comercial, por
exemplo, são atores), de modo a possibilitar seu emprego fora do domínio exclusivamente
literário”. O dicionário define ator como:

“O ator é uma unidade lexical, de tipo nominal, que, inscrita no discurso,


pode receber, no momento de sua manifestação, investimentos de sintaxe
narrativa de superfície e de semântica discursiva. Seu conteúdo semântico
próprio parece consistir essencialmente na presença do sema
individualização, o que o faz aparecer como uma figura autônoma do
universo semiótico. O ator pode ser individual (Pedro) ou coletivo (a
multidão), figurativo (antropomorfo ou zoomorfo) ou não-figurativo (o
destino). A individuação de um ato marca-se frequentemente pela atribuição
de um nome próprio, sem que tal coisa constitua, em si mesma, a condição
sine qua non da sua existência (um papel temático qualquer, “o pai” por
exemplo, muitas vezes serve de denominação do ator); a onomástica, que se
inscreve na semântica discursiva, é, desse modo, complementar à
actorialização (um dos procedimentos da sintaxe discursiva).”

No caso, o ator Hannibal Lecter trata-se de um ator individual que se apresenta o papel
temático de um elegante e aristocrático homem de meia idade, vindo da corte lituana.

Conforme figura 2:

Figura 2 – Hannibal Lecter

Fonte http://s1.trrsf.com/blogs/229/files/image/hannibal21.jpg
Conforme visto na figura acima, o ator apresenta o papel temático de um homem bem-
sucedido, representado através das figuras do terno feito sob medida, o banquete à sua frente, sua
posição à “cabeceira” da mesa (posição historicamente reservada para as pessoas mais ilustres), os
olhares de satisfação que recebe, as taças de vinho levantadas em brinde.
Na imagem acima, podemos notar também o tema da sofisticação presente nas figuras
descritas. A associação entre luxo/prazer e o mal também não é nova. Platão, apud Sócrates, disse
que “O supremo mal, o maior e mais extremo dos males, é ser afetado excessivamente pelo
prazer…” (Fédon, 83.). Podemos ver que mesmo os filósofos clássicos possuíam um conceito de
ligação entre o mal e o prazer. O ator Hannibal Lecter também demonstra essa ligação: sendo tanto
um serial-killer capaz de torturar e matar sem sentir remorsos ou culpa, quanto um psiquiatra
renomado que é conhecido por circular pelas casas de ópera e circuitos culturais da alta sociedade
europeia e norte-americana.

2. Sobre o conceito de malignidade

A discussão sobre o conceito de mal sempre esteve presente nas civilizações, ainda que
possa conter divergências devido às diferenças culturais de cada lugar. Uma das mais antigas
religiões do mundo, o zoroastrismo persa, já procurava entender o que seria o mal ao catalogá-lo
como indispensável para sua doutrina dualista desde o século VI a.c. Pode-se traçar um paralelo
com o maniqueísmo: uma religião fundada pelo profeta iraniano Mani, que descrevia as
dificuldades entre o mundo espiritual de luz, essencialmente bom, e o mundo material de trevas,
essencialmente mal. O termo “maniqueísta” tornou-se tão popular que passou a descrever todo e
qualquer confronto entre bem e mal. Platão (428-347 a.C.), por sua vez, descrevia o mal como uma
espécie de ignorância, ao afirmar que “quem conhece o bem, não praticará o mal”.
Hannibal apresenta esse confronto entre bem e mal em suas três temporadas, personificado
em seus protagonistas Hannibal Lecter e Will Graham. Hannibal representa o mal, luxuosamente
embalado em ternos sob medida, ao som de música clássica e jantares suntuosos e exóticos. Will,
por sua vez, representa o bem, e sua luta interna consigo mesmo para não se render aos seus
impulsos mais selvagens é uma constante em todos os momentos da série onde a oportunidade de
um ato violento se apresenta a ele, sendo por si só uma perfeita representação maniqueísta.
Diversos outros autores dedicaram parte de seus estudos sobre o mal. Um exemplo deles
seria Georges Batailles, que, em seu ensaio A Literatura e o Mal nos apresenta com diversas
reflexões a respeito das obras de autores românticos e modernistas e suas visões sobre o mal
contidas em suas obras. Um ponto em comum que pode ser observado em todas essas obras é de
que o mal pode ser traduzido essencialmente como uma quebra voluntária de tabus.
Em O Morro dos Ventos Uivantes, Emily Brontë (1847) fala dessa quebra de tabus através
de um triângulo amoroso, enquanto que Hannibal o faz através do canibalismo voluntário. Em um
paralelo com a teoria do fato social de Émile Durkheim (2007) , Hannibal Lecter acredita que o que
diferencia pessoas de animais é a nossa capacidade de conviver educadamente em sociedade. A
partir que esse contrato é quebrado através da rudeza, aquela pessoa volta a seu status como um
animal qualquer e, portanto, tão apto a estar em sua mesa quanto um porco ou uma sombria. Há
vezes em que Hannibal recolhe apenas partes de suas vítimas e dispõe do restante do corpo como
um murder tableau, como pode ser visto na figura abaixo:

Figura 3 – The girl on the antlers6

6
“A garota na galhada”, visto no episódio 01 da primeira temporada da série, “Apéritif”.
Fonte: http://hannibal.wikia.com/wiki/Cassie_Boyle?file=Cassieboyle1.png

Hannibal Lecter acredita que, com isso, ele está elevando animais à condição de arte,
tornando-os superiores aos “porcos” que eram em vida. Com isso, Hannibal também acredita estar
se elevando da condição de simples humano para a condição de alguém com poder suficiente para
debochar do divino.
Há também um claro deleite da parte de Hannibal Lecter ao servir carne humana para seus
convidados sem que eles saibam o que estão ingerindo, satisfação essa que se traduz por sorrisos e
piadas ambíguas sobre canibalismo e consumo de animais. Novamente, esse deleite é entendido
como outra forma de sua equiparação com uma figura divina. A ideia de um deus longe do ideal
benevolente e misericordioso segue a humanidade em diversas religiões desde tempos remotos. No
próprio zoroastrismo podemos encontrar um deus que representa a pura personificação do mal,
Angra Mainyu. Na Bíblia cristã, em Deuteronômio 28:63, quinto livro bíblico cuja autoria é
creditada à Moisés, há a citação “Assim como foi agradável ao Senhor fazê-los prosperar e
aumentar em número, também lhe será agradável arruiná-los e destruí-los”.
No segundo episódio da primeira temporada, enquanto Will confessa a Hannibal que sentiu
prazer ao matar alguém, ainda que para salvar outras pessoas, Hannibal afirma: “Matar deve ser
prazeroso para Deus, também. Ele o faz o tempo todo. E não somos nós criados à Sua imagem?”.
Em seguida, questionado sobre se Deus realmente sentiria prazer nesse ato, Hannibal afirma que
“Ele sentiu-se poderoso”. Com isso, vemos que o conceito de malignidade nunca deixa de estar
atrelado a fatores como crenças e tabus a fim de se sustentar, ainda que no fim seja reconhecido não
é impossível que o mal exista unicamente por si só, e não como um tipo de distúrbio ou punição.
Com isso, podemos perceber que o percurso do “ser” de Hannibal está associado com as
paixões do “querer ser” -quando ele deseja desdenhar de Deus e se pôr como igual a ele- e outras
paixões que, segundo Barros (1990), são chamadas paixões relaxadas, como o gozo e o luxo.

3. Sobre a estética, a ética e suas relações com o mal

Estética, do grego αισθητική ou aisthésis (percepção, sensação) é um campo da Filosofia que


permite a compreensão do mundo através do sensível. Na antiguidade, a estética era considerada
uma só com a lógica e a ética, principalmente por Platão, Aristóteles e Plotino. Para esses filósofos,
o belo, o bom e o verdadeiro se uniam para representar uma só coisa. Aristóteles, particularmente,
acreditava que o belo seria inerente ao homem, pois a arte é uma criação humana e portanto não
pode existir separado daquilo que é sensível ao homem. Foi apenas na Idade Média que a estética
passou a ser estudada independentemente.
Já a palavra “ética” vem do grego “ethos” e seu correlato no latim “morale” tem o mesmo
significado, ou seja, “conduta ou relativo aos costumes”. Contudo, ética e moral se diferenciam
pois a moral é fundamentada na obediência a costumes e hábitos ensinados, enquanto que a ética
busca fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão.
A busca pela relação entre estética e ética também não é nova. Como dito anteriormente, os
gregos associavam o belo ao bom: A pintura “Phryne” de José Frappa retrata o julgamento de Friné,
cortesã grega, por impiedade – a falta de respeito devido ao sagrado. De acordo com a pintura e
com o que é dito a respeito do famoso julgamento, Friné foi absolvida de seu crime ao mostrar os
seios para o juri. Seguindo o entendimento da época que associava o belo ao certo, o juri concordou
que alguém bela como Friné seria incapaz de praticar um ato ruim.
Hannibal rompe com essa ideia ao apresentar um personagem intrinsecamente atraído pelo
belo e pelo mal ao mesmo tempo. Hannibal Lecter é um psiquiatra, mas também é mostrado na
série como exímio desenhista, apreciador de artes plásticas e cênicas, detentor de uma alta cultura
erudita.
Na terceira temporada, a personagem Bedelia DuMaurier, antiga psiquiatra de Hannibal e
agora mantida sob vigilância do mesmo, em um misto de síndrome de Estocolmo com horror, diz a
ele “você não possui mais preocupações éticas, Hannibal. Você possui preocupações estéticas”, o
qual Hannibal responde com “Éticas se tornam estéticas”, retomando a antiga discussão sobre a
correlação entre os termos.
Bedelia se referia ao fato de que Hannibal, traído por Will, decidiu se livrar de seu “traje de
pessoa”, como ele se referia às máscaras que utilizava para não ser pego em seus assassinatos, para
assumir o “monstro” que havia dentro dele. Com sua frase, Bedelia buscava provocar Hannibal pelo
fato de que ele prioriza beleza à razão, e sentimentos ao racional. Contudo, a resposta de Hannibal
evidencia não só a filosofia do personagem – há razão no belo- como também a filosofia de toda a
série.
Em Hannibal, Bryan Fuller transforma a narrativa em estética. O ato de cortar partes do
corpo humano de alguém e forçá-lo a ingerir sua própria carne transforma-se na batalha ética que
Hannibal está travando consigo mesmo. Embalado por música clássica, a série mostra toda a
preparação do prato exótico, desde o tempero da carne até ela ser embalada em cerâmica e folhas
antes de ser levada ao forno. A cena se estende por todo o primeiro episódio da terceira temporada,
“Antipasto”, e não possui relação direta com a narrativa do último episódio da segunda temporada
ou com o cliffhanger utilizado nesse episódio em questão, mas possibilita que o telespectador veja
um novo aspecto de Hannibal – seu conflito de sentimentos e consciência.
Nessa transformação, somos apresentados à estética da série. Todo jantar provido por
Hannibal Lecter é exibido como elegante, quando não suntuoso. A preparação dos pratos é sempre
mostrada embalada por clássicos, e a apresentação dos mesmos era de tal importância para a série
que Janice Poon, uma renomada estilista culinária, foi contratada para preparar a imagem de cada
prato servido na série.
Aparece então o conflito sentido pelo telespectador: há o conhecimento prévio de que as
carnes ali expostas quase sempre são de origem humana. Entretanto, todo o cuidado estético faz
com que se tenha dúvidas, como “Seria eu capaz de comer isso?” ou “Se eu não soubesse a origem,
haveria problemas?”.
Aqui nos encontramos novamente com o embate clássico entre ética e estética. Ambas as
perguntas evidenciam a tentação provocada pela apresentação glamourosa dos pratos, fortificada
pelos aspectos visuais da cena: a luz baixa que remete a restaurantes de qualidade, o som do vinho
caindo nas taças, a visão de um personagem sorrindo ao apreciar o aroma vindo do prato em
questão. Entretanto, há o embate com a ética, sobre o canibalismo voluntário. Ainda que praticado
por diversas espécies animais, tais como aranhas, grilos, cães, tubarões, entre outros, a humanidade
atualmente rejeita o ato, que já foi considerado norma cultural em diversos locais do mundo, desde
motivos práticos, como a fome, como para fins religiosos. Atualmente, a maioria das sociedades
impõe um tabu no ato, que é quebrado apenas em situações extremas de guerras ou situações de
vida ou morte, mas ainda sem perder o estigma social. Apresentar a carne humana como uma
tentação pode ser visto como uma estratégia de adesão da série, ao tentar aproximar o telespectador
das visões de Hannibal Lecter, brincando com a discussão de éticas e estéticas, e transportando-o
para o mundo da série, promovendo assim uma maior imersão e aproveitamento da mesma,
aprofundando as discussões propostas pela série.

4. Conclusão
Através deste artigo, pudemos ter uma noção breve de alguns aspectos que envolvem a série
Hannibal.
Como um todo, ela se apresenta como uma nova proposta ao trazer temas que podiam ter
sido considerados como inadequados para a televisão, tais como o conceito de ética e de
malignidade. A exploração da estética possui mais de um objetivo: ela é capaz de trazer o
telespectador para mais próximo da realidade dos personagens, seduzindo-o como o próprio
Hannibal Lecter aparenta seduzir as pessoas a sua volta; ela funciona como uma ferramenta de
adesão, suavizando o processo para os telespectadores mais sensíveis quanto ao tabu do
canibalismo; ela funciona como uma nova forma de se explorar uma narrativa, tornando-a deleitosa
visualmente e provocando a catarse no telespectador.
A paixão do mal na série é vista como inerente ao ser humano, ao ser apresentada de
maneiras diferentes por personagens diferentes:
Hannibal Lecter a abraça ainda cedo, em sua juventude, após uma experiência extrema;
Will Graham sente-se tentado pelo mal, sentindo culpa ao ter prazer quando o pratica, até se
deixar levar pela estética-ética promovida por Hannibal no último episódio da série, “A Fúria do
Cordeiro”, em uma cena que mais uma vez provoca a estética e a ética, ao mostrar ambos satisfeitos
após o ato do assassinato -ainda que gravemente feridos- e embalados por sentimentos considerados
belos pela sociedade: aceitação, perdão, completitude, romance;
E, por fim, Bedelia DuMaurier apresenta sua relação com o mal como conturbada: ainda que
ela se sinta atraída por Hannibal a ponto de concordar segui-lo pela Europa em sua fuga e depois
gabe-se de ter estado ao lado dele “atrás do véu que o separa das outras pessoas”, ela se mostra
intimidada e até mesmo aterrorizada pelo mal que há nele, sendo considerada pelo próprio Hannibal
como uma “pobre substituta do Will”, ao não consegui aceitar completamente o mal que há em si
mesma e nos outros.
Com isso, pudemos perceber que Hannibal é uma série altamente complexa e inovadora, que
rompe tabus e explora temas inusuais para um programa de TV, como o mal relacionado ao
canibalismo e à estética. Dessa relação, neste primeiro momento, acreditamos que essa é a diferença
primordial da série, que garante a adesão a ela.

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