Você está na página 1de 264

John Rawls

om ª?~is~s claras e me~~losas das doutrinas do contr~t~~~~.;e;J~::: Edit. Samuel Freeman


do utihtansmo e do soctahsmo - e de seus representantes . ::ç.;·:'.'\11
mais influentes como Hobbes, Rousseau, Hume, Mant . , ·
e Stuart MiII -, este livro ocupa um luqar crucial nas tradtçõe5
nele comentadas. Marcadas pela paciência e curiosidade
características de Rawls e escrupulosamente orqanizadas
por Samuel Freeman, seu aluno e assistente académico,
estas conferências são um acréscimo final. e oportuno à obra
de Rawls, bem como à história da filosofia política.
PALESTRAS
SOBRE,
A HISTORIA
JOHN RAWLS, filósofo norte-americano, nasceu em 1921,
em Baltimore, e frequentou as Universidades de Oxford
e de Harvard, tendo mais tarde lecionado nesta última.
DA FILOSOFIA
,
Asua obra é, essencialmente, uma reflexão sobre os domínios
da ética e da teoria política. Faleceu a 24 de novembro de 2002.

POLITICA
rl'
1[·

1.14;

PALESTRAS/

SOBRE HISTORIA
/

DA FILOSOFIA POLITICA
PALESTRAS ~

Título original:
Lectures on the History of Political Philosophy
(Edit.: Samuel Freeman)
SOBRE HISTORIA ~

Autor:
JohnRawls
Coleção:
Pensamento e Filosofia
DA FILOSOFIA POLITICA
Direção de António Oliveira Cruz
Tradução:
Sandra Campos
Capa:
Dorindo Carvalho
© By President and Fellows of Harvard College, 2007
JOHNRAWLS
Direitos reservados para a língua portuguesa: Edit.
INSTITUTO PIAGET
Av. João Paulo II, lote 544, 2.º -1900-726 Lisboa SAMUEL FREEMAN
Telef. 21 831 65 00
E-mail: info@ipiageteditora.com
Paginação:
Mário Félix - Artes Gráficas
Impressão e acabamento:
Tipografia Tadinense
Depósito legal n.º 353 850/2013
ISBN - 978-989-659-060-4

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida


ou transmitida por qualquer processo eletrónico, mecâ-
nico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou
gravação, sem autorização prévia e escrita do editor.
e
Instituto
PIAGET

l
Para os meus estudantes
JOHN RAWLS
PREFÁCIO DO EDITOR

Estas palestras resultam de aulas e apontamentos escritos preparados por


John Rawls para a disciplina de Filosofia Política Moderna (Filosofia 171)
que lecionou na Universidade de Harvard desde os anos 1960 até se reformar
em 1995. No final dos decénios de 1960 e 1970 Rawls ensinou a sua própria
teoria de justiça, enquanto equidade, em conjunção com outras obras con-
temporâneas e históricas. Por exemplo, em 1971, para além de A Theory of
Justice, lecionou obras de Locke, Rousseau, Hume, Berlin e Hart. Alguns
anos mais tarde, e no início do decénio de 1980, esta disciplina baseava-se
inteiramente em palestras sobre a maior parte dos grandes filósofos políticos
da história deste volume. Em 1983, o último ano em que ensinou somente figu-
ras históricas sem A Theory of Justice, Rawls discursou sobre Hobbes,
Locke, Hume, Mill e Marx. Em anos anteriores, Sidgwick era discutido com
frequência (1976, 1979, 1981), como também acontecia com Rousseau, mas
nesse caso o mesmo não se passava com Hobbes e ou Marx. Em 1984, Rawls
lecionou mais uma vez partes de A Theory of Justice em conjunção com
Locke, Hume, Mill, Kant e Marx. Pouco tempo depois, retirou Kant e Hume
da sua disciplina de filosofia política e adicionou as palestras sobre Rousseau.
Durante este período escreveu versões finais das palestras apresentadas aqui
a respeito de Locke, Rousseau, Mill e Marx, juntamente com as que foram
publicadas em 2000 em Justice as Equity: A Restatement. (Isto explica as
comparações ocasionais com a justiça enquanto equidade encontradas nestas
palestras.) Visto terem sido lecionadas regularmente durante os últimos dez
a doze anos da carreira de docente de Rawls, as que se encontram neste volume
sobre Locke, Rousseau, Mille Marx são as mais acabadas e completas. Rawls
transformou-as em ficheiros de computador, ajustando e refinando-as ao longo
dos anos, até 1994. Em resultado disso, não necessitaram de ser muito, editadas.

9
Relativamente menos acabadas estão as primeiras palestras sobre Hobbes económico desatualizado que é nela descrito do que considera ser o seu prin-
e Hume de 1983. Não parecem ter sido escritas como um conjunto contínuo e cipal objetivo. Elabora-a como uma resposta poderosa à Teoria. da ~rod~ti­
completo (à exceção da maior parte da primeira a respeito de Hume). As de vidade Marginal de Distribuição Justa e a outras conceções clássicas liberais e
Hobbes e Hume apresentadas aqui resultaram principalmente de transcrições libertárias da ala direita que encaram a posse de propriedade como um contri-
de aulas gravadas para aquele período, tendo sido complementadas pelas buto para a produção. (Ver Marx, Palestra II.)
notas manuscritas de Rawls e fichas de trabalho distribuídas nas aulasl. As palestras sobre o bispo Joseph Butler e Henry Sidgwick não foram
Normalmente Rawls fornecia aos alunos sumários que delineavam os aspetos dadas como terminadas como as restantes apresentadas neste volume. No
principais das suas aulas. Antes do início dos anos 1980 (quando começou a entanto, Rawls concordou com a sua publicação pouco tempo antes da sua
digitá-las num processador de texto), as referidas fichas eram manuscritas morte, em novembro de 2002, e foram incluídas no apêndice deste volume.
numa letra muito pequena que, sendo digitada, enchia mais de duas páginas Rawls lecionou Sidgwick durante alguns anos (nomeadamente 1976, 1979 e
formatadas em espaço simples. Têm sido usadas para complementar as aulas 1981) na sua disciplina de filosofia política, juntamente com Hume e J. S.
sobre Hobbes e Hume e também fornecem a maior parte do conteúdo das pri- Mill, no sentido de dar aos alunos uma ideia das obras dos três maiores filó-
meiras duas acerca de Sidgwick que se encontram no apêndice. sofos utilitários (assim considerava ele). Na sua opinião, Sidgwick represen-
Uma grande vantagem destas palestras é que elas revelam a forma como tava o culminar da tradição utilitária clássica que começara com Bentham.
Rawls concebia a história da tradição do contrato social, e sugerem como enca- Também considerava o método comparativo de Sidgwick em The Methods
rava o seu trabalho em relação ao de Locke, Rousseau e Kant, e, até certo ponto, of Ethics como fonte de um padrão a ser imitado pela filosofia moral.
ao de Hobbes também. De igual modo, Rawls discute e responde à reação utili- As duas primeiras palestras sobre Sidgwick incluídas aqui (oram na. su~
tária de Hume relativamente à doutrina do contrato social de Locke, incluindo maior parte retiradas das notas manuscritas que Rawls duplicava e distri-
a argumentação do primeiro quando diz que o contrato social é superficial e buía aos estudantes. Ele usava estas fichas como apontamentos das aulas que
uma «Confusão desnecessária» (Rawls), a qual estabeleceu um padrão de crítica lecionava, e depois trabalhava-as oralmente enquanto dava as palestras. Por
que perdura até aos dias de hoje. Uma outra vantagem considerável deste este motivo, as duas primeiras sobre Sidgwick não podem de modo algum ser
volume é a sua discussão acerca do liberalismo de J. S. Mill. Sugere muitos consideradas completas. A terceira (1975) revê o mesmo material tal como na
paralelismos entre a sua própria visão e a de Mill, incluindo não só as seme- breve discussão do utilitarismo em Sidgwick, Palestra II, mas analisa com
lhanças palpáveis entre o princípio de liberdade deste último e o primeiro prin- mais pormenor as suposições e implicações da posição utilitária clássica. Há
cípio de justiça de Rawls, mas também as analogias menos tangíveis entre a muito material sobre utilitarismo nesta e na quarta palestra (1976), que se
economia política de Mill e a perspetiva da justiça distributiva e da democracia apresenta mais curta, material esse que não está disponível em ne~huma da.s
com base na posse de propriedade. outras análises publicadas sobre utilitarismo em A Theory of Justice, «Uni-
Provavelmente, as palestras sobre Marx evoluíram mais do que as outras dade Social e Bens Essenciais»2, ou noutro sítio qualquer.
ao longo dos anos. No início do decénio de 1980, Rawls defendeu a posição As cinco palestras sobre Butler encontravam-se entre as notas manuscri-
(tomada por Allen Wood, entre outros) de que Marx não tinha uma conceção tas de Rawls. Foram usadas na disciplina de História da Filosofia Moral na
de justiça mas via-a como um conceito ideológico necessário para sustentar a primavera de 1982, na mesma época em que lecionou Kant e Hume. Ele jul-
exploração da classe trabalhadora. Ele revê essa posição nas palestras incluí- gava que Butler dava a maior resposta não u~ilitári~ de um fil?sofo .inglês a
das aqui, sob a influência de G. A. Cohen e outros. Com a sua interpretação Hobbes. Também incluía Butler entre as maiores figuras da filosofia moral
acerca da Teoria do Valor-Trabalho de Marx, pretende separar o sistema moderna. Entre os manuscritos pessoais (não incorporados nas palestras)
encontra-se o seguinte: «Aspetos importantes em Butler: (Hobbes e Butler, as
1 O editor colaborou com Rawls enquanto seu assistente (juntamente com Andrews
duas grandes fontes da filosofia moral moderna: Hobbes levanta o problema -
Reath) no período da primavera de 1983, e gravou as palestras sobre Hobbes e Hume o escritor a refutar. Butler fornece-lhe uma resposta profunda).» Para além
transcritas aqui. As referentes a Locke, Mille Marx também foram gravadas em 1983.
Estas gravações, bem como as das aulas de 1984, foram guardadas em formato di-
gital e depositadas nos Arquivos Rawls na Biblioteca Widener, Universidade de Har- 2 Ver John Rawls, Collected Papers, ed. Samuel Freeman, Cambridge, Mass: Harvard
vard. University Press, 1999, capítulo 17.

10 11

___i.......___
disso, Rawls encontrou uma ligação entre a doutrina de consciência de Kant de Kant era normalmente incluída numa disciplina à parte juntamente com
e de Butler e isto talvez lhe tenha dado motivos para acreditar que a perspe- outros escritores, que mudava de tempos a tempos, mas que cobria frequen-
tiva não naturalista e não intuicionista da moralidade de Kant não era cara- temente Hume e Leibniz enquanto exemplos de doutrina~ totalmente dife-
terística da Filosofia Idealista Alemã3. rentes sobre as quais Kant sabia certamente alguma coisà~ Outros autores
Finalmente, as palestras sobre Butler sugerem o papel central· da ideia de ocasionalmente tidos em conta eram Clarke e o bispo Butler e outros britâni-
uma «psicologia moral razoável» na conceção da filosofia moral e política cos do século XVIII, como Shaftesbury e Hutcheson. Às vezes, usava Moore e
Ross, Broad e Stevenson como exemplos modernos.
de Rawls. (Também há este tipo de paralelismos nas palestras sobre. Mill e
Quando falava acerca destas pessoas tentei sempre fazer duas coisas em
Rousseau.) Uma das principais ideias subjacentes ao seu trabalho é que a especial. Uma delas era apresentar os seus problemas filosóficos tal como os
justiça e a moralidade não são contrárias à natureza humana, mas fazem encaravam, à luz da sua perceção do estado da filosofia moral e política da
parte dela e, na verdade, são, ou pelo menos podem ser, essenciais ao bem época. Assim tentei discernir o que eles julgavam ser os seus maiores proble-
humano. (Ver A Theory of Justice, capítulo 8, «O Sentido de Justiça», e mas~ Citei muitas vezes a observação de Collingwood na sua obra An Auto-
capítulo 9, «0 Bem da Justiça».) É de assinalar que a discussão de. Rawls biography, com o propósito de mostrar que a história da filosofia política não
sobre a reconciliação da virtude moral com a «autoestima» de Butler asseme- é uma série de respostas à mesma pergunta mas uma série de respostas a ques-
lha-se ao seu próprio argumento pela congruência do Justo e do Bom. tões diferentes, ou, como ele disse, é «a história de um problema mais ou
Entre os seus documentos, encontra-:se um pequeno texto sob o título de menos em constante mudança, cuja solução o acompanhava» 5 .
«Algumas observações acerca do meu ensino» (1993), o qual aborda as pales- Esta observação não é totalmente correta, mas remete-nos para um ponto
tras sobre filosofia política. Vejamos os seguintes excertos mais releva,ntes4: de vista do autor sobre o mundo político daquela época para percebermos como
e por que razão a filosofia política evolui ao longo do tempo. Eu verifiquei o
Na maior parte do meu percurso, ensinei filosofia moral e política, contributo de cada autor para o desenvolvimento das doutrinas defensoras do
administrando um curso para cada todos os anos ao longo do tempo . pensamento democrático, Marx inclusive, que sempre incluí na disciplina
. .. Comecei gradualmente a concentrar-me cada vez mais em filosofia polí- de filosofia política.
tica e social, e cheguei a falar sobre partes de justiça enquanto dita equidade, . Outra coisa que tentei fazer foi apresentar o pensamento de cada um deles
juntamente com autores anteriores que tinham escrito acerca desta matéria, no que entendisera sua forma mais sólida. Levei·muito a sério a observação de
começando com Hobbes, Locke e Rousseau, e ocasionalmente Kanti apesar de Mill na revisão que fez de.[Alfred] Sidgwick: «Uma doutrina só é julgada na
este último ser muito difícil para trabalhar naquela disciplina. Incluí por sua melhor forma» (CW: X, p. 52). Assim, tentei fazer mesmo isso. Contudo,
vezes Hume e Bentham, ]. S. Mille Sidgwick. No entanto, a filosofia moral não disse, pelo menos não intencionalmente, o que a meu ver deveriam ter dito,
mas o que realmente disseram, baseando;,,me no que considerava ser a interpre-
tação mais razoável do texto de cada um deles. Este último tinha de· ser conhe-
3 Os meus agradecimentos a Joshua Cohen por esta sugestão. Confirma-se através de cido e respeitado, e a doutrina apresentada na sua melhor forma. Pôr de lado o
notas pessoais de Rawls. Entre as referências a Kant nos apontamentos sobre Butler texto parecia ofensivo, uma espécie de fingimento. Se eu me desviasse dele
·encontram-se as seguintes entradas:
~ o que não era problemático - tinha de o dizer. Ao ensinar assim, acreditava
(4) Egoísmo contra Hobbes: Butler detém projetos morais como uma parte do eU: que o pensamento do autor ficava mais forte e conv.incente, e para os estudan-
bem como outras partes do eu: os nossos desejos naturais, etc. Kant aprofunda isto tes seria um objeto de estudo mais relevante.
relacionando ML [Moral Law] [Lei Moral]· com o eu sendo R + R · [Racional e Várias máximas serviram de guia neste meu trajeto. Sempre assumi,
Razoável] ...
por exemplo, que os autores que estudávamos eram sempre mais espertos
(9) Relacionar isto com Kant; incluindo a sua noção de fé razoável.
1 do que eu. Se o não fossem, por que razão desperdiçaria o meu tempo e o do
4 Uma versão parcialmente sem~lhante à perspetiva de Rawls sobre o seu ensino é . estudantes a fazê-lo? Se eu visse um erro nos seus argumentos, supunha
citada no prefácio do editor no compêndio Lectures on the History ofMoral Phtlosophy, que eles [os filósofos] também o tivessem visto e lidado com ele, ·mas aonde?
ed. Barbara Herman, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2000, pp. xvi-xviii. Por isso, procurei a sua solução, não a minha. Por vezes, era histórica:. na
Essa perspetiva resulta das suas observações publicadas acerca deste assunto em sua época a questão não precisava de ser levantada; ou não aparecia ou era pro-
John Rawls, «Burton Dreben: A Reminiscence», em Future Pasts: Perspectives on the
Place of the Analytic Tradition in Twentieth-Century Philosophy, ed. Juliet Floyd e Sanford
Shieh, Nova Iorque: Oxford University Press, 2000. 5 R G. Collingwood, An Autobiography (Oxford: Clarendon Press, 1939), p. ~2.

12 13
dutivamente discutida. Ou, então, havia uma parte do texto a que eu não (editado por Barbara Herman e publicado pela Harvard University Press em
tinha prestado atenção, ou não tinha lido. 2000), e de esse volume estar substancialmente completo, é que ele também
Ao fazer isto, seguia o que Kant diz em First Critique em B866. Ele diz concordou com a publicação das palestras sobre história da filosofia política.
que a Filosofia é a mera ideia de uma possível ciência e em lado algum existe in Finalmente, na sua conclusão, «Algumas observações acerca do meu en-
concreto. Por isso, como podemos reconhecê-la e aprendê-la? « ... não conse-
sino», disse (e o que diz de Kant aqui, diria também, com toda a sua modéstia,
guimos aprender filosofia, pelo sítio onde está, por quem está na sua posse, e
como iremos reconhecê-la? Só podemos aprender a filosofar, isto é, a exercitar o dos filósofos deste volume):
talento da razão, de acordo com princípios universais, em tentativas realmente No entanto, como já disse, nunca me senti satisfeito com a compreensão
existentes na filosofia, reservando sempre, contudo, o direito da razão investi- que poderia tirar da conceção geral de Kant. Isto deixa-me um pouco infeliz
gar, confirmar, ou rejeitar, estes princípios nas suas próprias fontes». Assim e faz-me recordar uma história sobre John Marin, um grande aguarelista
sendo, aprendemos filosofia política e moral, e, na verdade, qualquer outra americano juntamente com Homer e Sargent. Os seus quadros, que a maio-
parte da filosofia, estudando os exemplares - essas figuras assinaláveis que fize- ria de vocês já deve ter visto, são uma espécie de expressionismo figurativo.
ram tentativas preciosas - e tentamos aprender com eles, e, se formos afortuna- No fim dos anos 1940 ele era altamente apreciado como sendo talvez o nosso
dos, encontrar um caminho para além deles. A minha tarefa era explicar melhor artista, ou fazendo parte dos poucos bons artistas. Ao olharmos para
Hobbes, Locke e Rousseau, ou Hume, Leibniz e Kant tão clara e convincente- as suas aguarelas conseguimos distinguir o que representam: um arranha-
mente quanto podia, tendo sempre em atenção o que eles realmente diziam. céus na cidade de Nova Iorque, as montanhas Taos do Novo México, ou as
O resultado era a minha relutância em levantar objeções aos exemplares escunas e portos de Maine. Durante oito anos, no decénio de 1920, Marin ia
- isso é muito fácil e falha no que é essencial - apesar de ser importante assina- a Stonington, Maine, para pintar; e Ruth Fine, que escreveu um livro
lar algumas que quem veio depois na mesma tradição procurou corrigir, ou esplêndido a seu respeito, fala em ir lá para ver se encontra alguém que o
apontar para perspetivas consideradas erradas por quem estava noutra tradição. tenha conhecido então. E encontra finalmente um pescador de lagostas que
(As duas tradições mencionadas são a perspetiva do contrato social e o utilita- diz, «Sim, sim, era conhecido por todos. Ele saía num pequeno barco para
rismo.) Fora disso, o pensamento filosófico não consegue progredir e seria estra- pintar dia após dia, semana após semana, verão após verão. E, sabe, coitado,
nho porque é que escritores posteriores fizeram as críticas que fizeram. esforçava-se imenso, mas nunca conseguiu fazê-lo bem.»
No caso de Locke, por exemplo, insisti no facto de a sua visão ter permitido Esta frase sempre me disse muito, depois de todo este tempo: «Nunca
uma espécie de desigualdade política que não aceitaríamos - desigualdade nos conseguiu fazê-lo bem»6.
direitos básicos de voto - e que Rousseau tinha tentado ultrapassar isto, e eu
analisei o modo como ele o tinha feito. No entanto, assinalaria que Locke no seu Mardy Rawls fez grande parte do trabalho ao editar estas palestras e
liberalismo estava à frente do seu tempo e opunha-se ao absolutismo real. Ele sem a sua ajuda e conselhos eu não teria conseguido terminá-las. Princi-
não se retraía perante o perigo e era leal ao seu amigo Lord Shaftesbury, palmente a partir de 1995 (após o primeiro ataque de Jack), Mardy assumiu
seguindo-o até na participação, assim se consta, na conspiração Rye House um papel incalculável ao concretizar muitos projetos. Leu cada uma destas
para assassinar Charles II no verão de 1683. Fugiu para a Holanda e mal esca- palestras cuidadosamente e trabalhou arduamente para esclarecer e destacar
pou à sua execução. Locke tinha a coragem de dizer o que pensava, e era, prova- frases que pudessem ser mal interpretadas. Antes de Jack me pedir em 2000
velmente, a única das grandes figuras capaz de se arriscar tanto. para ser o editor deste volume, Mardy já tinha mais ou menos terminado a
edição das palestras sobre Locke, Rousseau, Mille Marx. Jack reviu-as com
Nenhuma destas palestras foi escrita com o intuito de serem publicadas. cuidado e aprovou o trabalho. Anne Rawls transcreveu (em 2001) das casse-
De facto, quando discutia Kant no parágrafo imediatamente a seguir às suas tes as palestras de 1983 sobre Hobbes e Hume. Em seguida, Mardy transfor-
observações acerca de Locke citadas acima, Rawls dizia: «A última versão das mou-as em material legível, sobre o qual fiz mais revisões e aditamentos
palestras [de Kant] (1991) é, sem dúvida alguma, melhor do que as anterio- retirados das notas e fichas de trabalho digitadas e manuscritas de Rawls.
res mas eu não toleraria tê-la publicado tal como está (como algumas pessoas As palestras sobre Sidgwick e Butler foram digitadas a partir das notas
insistiram). Não começa por fazer justiça a Kant nessas questões, ou por medir
até que ponto outros poderão fazê-lo agora.» Como esta frase indica, Rawls
6 [Nota de Mardy Rawls: Pensando nas muitas ocasiões em que Jack contou aquela
resistiu à publicação destas palestras durante anos. Foi só depois de se ter história às suas turmas, escolhemos o quadro de Marin, «Deer Isle, Islets», para a
deixado convencer a publicar Lectures on the History of Moral Philosophy capa do livro Justice as Fairness: A Restatement.}

14 15
manuscritas. Fiz acrescentos à primeira de Sidgwick, baseando-me noutros
apontamentos sobre este autor nos documentos de Rawls. De um modo
geral, qualquer correção nestas palestras implica o reposicionamento de
parágrafos e frases escritas pelo próprio.
Os meus agradecimentos a Mark Navin pela decifração e digitação dos
manuscritos sobre Sidgwick e Butler, e também pela inserção de emendas NOTAS PRÉVIAS
editoriais feitas às palestras sobre Locke, Rousseau, Mille Marx. Estou tam-
bém especialmente agradecido a Kate Moran, que digitou os manuscritos
acerca de Hobbes e Hume, verificou cuidadosamente as citações de todos os
filósofos, e preparou o original para entrega final. Matt Lister, Thomas
Ricketts e Kok Chor Tan ajudaram de várias formas também. Obrigado a
Warren Goldfarb e Andy Reath pelos conselhos úteis relativamente ao pro-
grama curricular de Rawls. T. M. Scanlon e, especialmente, ]oshua Cohen
deram-me muitas sugestões úteis na edição das palestras, nomeadamente no
que diz respeito ao material a incluir e a não incluir para publicação, e, por
isso, estou muito agradecido a ambos.
Por fim, estou, mais uma vez, agradecido à minha mulher, Annette
Na preparação destas palestras, desenvolvidas ao longo de anos
Lareau-Freeman, pelo seu aconselhamento sensato e apoio constante na con-
cretização do processo de publicação destes documentos importantes. de ensino de Filosofia Política e Social, debrucei-me sobre o modo
como seis autores, Hobbes, Locke, Rousseau, Hume, Mill e Marx,
SAMUEL FREEMAN
tratam determinados tópicos discutidos nas minhas próprias consi-
derações escritas sobre filosofia política. No início, dediquei cerca
de metade das palestras do curso a assuntos relevantes como
A Theory of ]usticel. Mais tarde, enquanto trabalhava no texto de
Justice as Fairness: A Restatement2, aquelas palestras diziam respeito
ao trabalho mais recente, e disponibilizei à turma fotocópias do
manuscrito.
Visto que Restatement já foi publicado, não estou a incluir essas
palestras neste livro. Há só alguns lugares onde tenho destacado de
modo explícito a ligação entre as obras e as ideias discutidas e o meu
próprio trabalho; mas quando a justiça como equidade é mencionada,
as referências às secções do livro encontram-se nas notas de rodapé, e
onde necessário, ideias e conceitos importantes são definidos ou
explicados nessas mesmas notas. Uma palestra introdutória,
incluindo algumas observações gerais sobre filosofia política e alguns
pensamentos sobre as ideias principais do liberalismo, pode ajudar a
criar as bases para uma discussão acerca dos seis autores.

1 John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971;
edição revista, 1999.
2 John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 2001.

16 17

i
L
Vou tentar identificar as caraterísticas mais centrais do liberalismo
como conceção política de justiça quando encarado através da tradi-
ção do constitucionalismo democrático. Uma vertente desta tradição, a
doutrina do contrato social, é representada por Hobbes, Locke e Rous-
seau; uma outra, a do utilitarismo, é representada por Hume e J. S. Mill;
enquanto a socialista, ou social-democrata, é representada por Marx, TEXTOS CITADOS
que eu vou ter em grande conta como crítico do liberalismo.
As palestras focam-se em alguns aspetos, tanto por um ponto de
vista histórico como sistemático. Não apresentam uma introdução
equilibrada às questões de filosofia política e social. Não incluem ne-
nhuma tentativa de avaliação das diferentes interpretações dos filóso-
fos discutidos; as interpretações propostas parecem ser razoavelmente
adequadas aos textos que estudamos e férteis para os meus propósitos
reduzidos ao apresentá-las. Além disso, muitas questões importantes
de filosofia política e social não são de todo discutidas. Espero que esta
limitação da matéria seja desculpável se nos conduzir a uma forma ins- BuTLER, Joseph, The Works of Joseph Butler, ed. W. E. Gladstone (Bristol, Ingla-
trutiva de abordar as questões incluídas e nos permitir ganhar uma terra: Thoemmes Press, 1995).
maior compreensão que de outro modo não seria possível. HOBBES, Thomas, De Cive, ed. Sterling P. Lamprecht (Nova Iorque: Appleton-
-Century-Crofts, 1949).
JOHN RAWLS - , Leviathan, ed. C. B. MacPherson (Baltimore: Penguin Books, 1968).
HuME, David, Enquiries Concerning the Human Understanding and Concerning
the Principies of Morals, 2.ª ed., ed. L. A. Selby-Bigge (Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 1902).
- , Treatise of Human Nature, 2.ª ed., ed. L. A. Selby-Bigge (Oxford: Oxford
University Press, 1978).
KANT, Immanuel, Groundwork of the Metaphysics of Morals, trad. e ed. H. J.
Paton (Londres: Hutchinson, 1948).
LocKE, John, A Letter Concerning Toleration, ed. James H. Tully (Indianapolis:
Hackett, 1983 ).
- , Two Treatises of Government, ed. Peter Laslett (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960).
MARX, Karl, Capital: A Critique of Political Economy (Nova Iorque: Interna-
tional Publishers, 1967).
MILL, John Stuart, Collected Works (citado como CW) (Toronto: University of
Toronto Press, 1963-1991).
RoussEAU, Jean-Jacques, The First and Second Discourses, ed. Roger D. Masters,
trad. Roger D. e Judith R. Masters (Nova Iorque: St. Martin's Press, 1964).
- , On the Social Contract, with Geneva Manuscript and Political Economy, ed.
Roger D. Masters, trad. Judith R. Masters (Nova Iorque: St. Martin's Press,
1978).
Smcw1cK, Henry, The Methods of Ethics (Londres: Macmillan, 1907).
TucKER, Robert C., ed., The Marx-Engels Reader, 2.ª ed. (Nova Iorque: W. W.
Norton, 1978).

18 19
INTRODUÇÃO
NOTAS SOBRE FILOSOFIA POLÍTICA

§ 1. QUATRO QUESTÕES SOBRE FILOSOFIA POLÍTICA

1. Começamos por colocar várias perguntas gerais sobre filosofia


política. Por que motivo ela nos poderá interessar? Quais as razões que
nos levam a pensar nela? Se for esse o caso, o que esperamos ganhar
ao fazê-lo? Neste espírito revejo mais algu:nfas questões definidas que
se poderão revelar úteis.
Primeira pergunta: Que tipo de público é o da filosofia política?
A quem se dirige? Visto que varia de uma sociedade para a outra de-
pendendo da sua estrutura social e problemas prementes, de quem se
trata numa democracia constitucional? Assim, começamos por analisar
o nosso próprio caso.
De facto, numa democracia a resposta para esta pergunta é: todos
os cidadãos de um modo geral, ou cidadãos enquanto corpo coletivo
de todos aqueles que, pelos votos, exercem a derradeira autoridade ins-
titucional sobre todas as questões políticas através de revisões consti-
tucionais, se necessário. O facto de o público da filosofia política numa
sociedade democrática ser um grupo de cidadãos tem consequências
importantes.
Significa, por um lado, que uma filosofia política liberal que, clara-
mente, aceita e defende á ideia de democracia constitucional não deve
ser vista, por assim dizer, como uma teoria. Aqueles que escrevem so-
bre determinada doutrina não devem ser vistos como especialistas de
um determinado assunto, como pode acontecer com as ciências. A filo-
sofia política não tem nenhum acesso especial a verdades fundamen-

21
tais, ou ideias razoáveis, sobre justiça e o bem comum, ou a outras soa na sua normalidade plena para além da idade da razão, isto é, por
noções básicas. O seu mérito, se é que tem algum, é que através do qualquer cidadão adulto normal. Suponhamos que concordamos com
estudo e da reflexão pode elaborar conceções mais aprofundadas e isto e que dizemos que a filosofia política realmente invpca esta auto-
instrutivas de ideias políticas básicas q~e nos ajudam a clarificar os ridade. Mas de igual modo o fazem todos os cidadãos que falam ra-
nossos juízos acerca das instituições e políticas de um regime demo:- zoável e conscientemente quando se dirigem a outros acerca de questões
crático. políticas, ou, na verdade, sobre qualquer outro assunto. Procurar o
2. A segunda pergunta é a seguinte: Ao dirigir-se a este público, que chamámos de autoridade da razão humana significa tentar apre-
quais são as referências da filosofia política? Que reivindicações faz à sentar as nossas visões com os seus fundamentos de um modo razoá-
autoridade? Uso aqui o termo «autoridade» porque se diz que autores vel e claro para que outros os possam julgar com inteligência. O es-
de filosofia moral e política reivindicam uma certa autoridade, pelo forço pela obtenção das referências da razão humana não distingue a
menos implicitamente. Tem-se dito que a filosofia política transmite filosofia política de outro tipo de discussão racional sobre qualquer
uma reivindicação para saber, e que esta última é uma reivindicação tópico. Todo o pensamento racional e criterioso procura a autoridade
para governarl. 1
da razão humana.
Esta asserção é, a meu ver, completamente errada. Numa socie- A filosofia política, tal como é encontrada numa sociedade demo-
dade democrática pelo menos, a filosofia política não tem nenhuma crática em textos que perduram e continuam a ser. estudados, pode
autoridade, se por autoridade se entender uma determinada posição com efeito ser expressa em afirmações invulgarmente sistemáticas e
legal e posse de influência .autorizada sobre determinadas matérias completas de doutrinas e ideias democráticas fundamentais. Estes tex-
políticas; ou se, alternativamente, diz respeito a uma autoridade san- tos poderão ser melhor discutidos e mais claramente apresentados do
cionada por costumes e práticas duradouros, e tratada como. deten- que aqueles que não perduram. Neste sentido, poderão invocar com
tora de força comprovada. mais sucesso a autoridade da razão humana. No entanto, esta última
Filosofia política só pode dizer respeito à tradição da filosofia é um tipo de autoridade muito especial. Pois se um texto sobre filosofia
política; e numa democracia esta tradição é sempre· o trabalho con- política fizer bem este apelo é um julgamento coletivo, feito ao longo
junto de autores e dos seus leitores. Assim acontece, visto serem autores do tempo, na cultural geral de uma sociedade, enquanto cidadãos indi-
e leitores que juntos produzem e apreciam obras de filosofia política viduais, um por um julgam estes textos passíveis de estudo e reflexão.
ao longo do tempo e cabe sempre aos eleitores decidir se incorporam Neste caso não há autoridade no sentido de um serviço ou tribunal
as ideias daqueles em instituições de base. ou corpo legislativo autorizado a dar a última palavra, ou mesmo uma
Assim, numa democracia, escritores de filosofia política não têm palavra comprovativa. Não cabe aos órgãos oficiais, ou órgãos autori-
mais autoridade do que qualquer outro cidadão, e não devem reivin- zados pelos costumes e práticas de longa data, avaliar o trabalho da
dicar mais por isso. Entendo isto como algo muito óbvio e sem precisar razão.
de qualquer tipo de comentário, mesmo que o contrário seja ocasio- Esta situação não é peculiar. O mesmo se aplica à comunidade de
nalmente afirmado. Menciono este assunto tão-somente para pôr de todos os cientistas, ou, mais especificamente, de todos os físicos. Não
lado dúvidas que possam existir. há um órgão institucional entre eles com autoridade para declarar,
Claro que se poderá dizer: a filosofia política deseja as referências da, digamos, que a teoria da relatividade geral é correta ou incorreta. Em
e implicitamente invoca a autoridade da, razão humana. Esta última matéria de justiça política numa democracia, o corpo de cidadãos é
consiste s.implesmente nos poderes partilhados do pensamento, julga- semelhante ao de todos os físicos nesta área. Este facto é caraterístico
mento e inferência racionais visto serem exercitados por qualquer pes- do mundo democrático moderno e tem raízes nas ideias de liberdade
política e igualdade que preconiza.
1 Ver a interessante abordagem de Michael Walzer ao livro de Benjamin Barber, The
3. Uma terceira pergunta: Até que ponto e de que forma a filosofia
Conquest of Politics: Liberal Philosophy in Democratic Times, Princeton, N. J.: Princeton política invade e afeta o resultado da política democrática? Como é
University Press, 1988, na New York Review of Books, 2 de fevereiro de 1989, p. 42. que a filosofia política se deve posicionar a este respeito?

22 23
Temos pelo menos duas perspetivas: a Platónica, por exemplo, o efeito da política democrática quotidiana. Desde que a democracia
defende que a filosofia política verifica a verdade acerca da justiça e exista, a única forma para que a filosofia liberal pudesse fazer bem
~o bem comum. Em seguida, procura um agente político para concre- isso seria influenciar alguns agentes políticos legítima e constitucio-
tizar essa verdade em instituições, independentemente de ela ser nalmente estabelecidos, e depois persuadi-los a ultrapassar a vontade
livrem:nte aceite, ou até mesmo compreendida. Por este prisma, o das maiorias democráticas. Para isto acontecer seria preciso que os
conhecimento da verdade na posse da filosofia política autoriza-a a autores liberais de filosofia influenciassem os juízes no Supremo
modelar, ou mesmo controlar, o efeito da política, através da persuasão Tribunal num regime constitucional como o nosso. Escritores liberais
e da força, se necessário. Vejamos o exemplo do rei filósofo de Platão e académicos, como Bruce Ackerman, Ronald Dworkin e Frank Mi-
ou a vanguarda revolucionária de Lenine. Entende-se aqui a reivindi- chelman, poderão dirigir-se ao Supremo Tribunal, mas também o
cação da verdade contendo o direito de saber, mas também de contro- fazem muitos conservadores e outros pensadores não liberais. Poder-
lar e agir politicamente. -se-á dizer que estão envolvidos na política constitucional. Dado o
Numa outra perspetiva, a democrática, digamos, encara a filosofia papel do Tribunal no nosso sistema constitucional, o que poderá pare-
política como parte da cultura geral de base de uma sociedade demo- cer uma tentativa de rejeição da política democrática é, na verdade, a
crática, embora em determinados casos certos textos clássicos façam aceitação da revisão judicial e da ideia de que a Constituição coloca
parte da cultura política pública. Frequentemente citados e aludidos, determinados direitos e liberdades fundamentais fora do alcance das
fazem parte do acervo público e constituem um fundo das ideias políti- maiorias legislativas habituais. Deste modo, a discussão académica
c~s d:
base da sociedade. Assim sendo, a filosofia política pode con- prende-se muitas vezes com o âmbito e os limites da regra da maioria
tnbmr para a cultura da sociedade civil na qual as ideias básicas e e o devido papel do Tribunal na especificação e proteção básica das
respetiva história são discutidas e estudadas, e em alguns casos tam- liberdades constitucionais.
bém poderão entrar na discussão política pública. Muito depende, portanto, da possível aceitação da revisão judicial
Alguns autores 2 que não gostam da forma e do estilo da maior e da ideia de a constituição democrática dever colocar determinados
parte das correntes académicas da filosofia polítiCa veem-na a tentar direitos e liberdades fundamentais para lá das maiorias legislativas
evitar e a tornar desnecessária a política quotidiana da democracia - 0 da política quotidiana, por oposição à constitucional. Inclino-me a
grande jogo da política3. aceitar a revisão judicial no nosso caso, mas há bons argumentos dos
,,
Dizem eles que a filosofia política académica é, na verdade Pla-
• I
dois lados e esta é uma questão que deve ser tida em conta por cida-
tomca: tenta fornecer verdades e princípios básicos para responder dãos democráticos. O que está em jogo é uma decisão entre dois con-
ou, pelo menos, resolver as principais questões políticas, tornando a ceitos de democracia, a constitucional e a maioritária. Em qualquer um
política habitual desnecessária. Críticos relativamente à filosofia, os dos casos, mesmo os que apoiam a revisão judicial tomam como certo
mes~os aut?res também julgam que a política quotidiana prossegue que, na política quotidiana, as maiorias legislativas estão normalmente
por s1 própria, sem o benefício da filosofia, ou sem se preocupar com a governar.
as suas controvérsias. Dizem que assim seria caminhar para uma vida A nossa terceira pergunta era: até que ponto e de que forma a filo-
pública com mais vida e dinamismo e para um coletivo de cidadãos sofia política invade e afeta o resultado da política democrática? A isto
mais empenhado. podemos dizer: num regime com revisão judicial, a filosofia política
Dizer que uma filosofia política liberal é Platónica (conforme defi- tende a ter um papel público mais abrangente, pelo menos em casos
~ição ~present~da ~nt:riormente) é certamente incorreto. Visto que 0 constitucionais; e assuntos políticos frequentemente discutidos são
hberahsmo ap01a a ideia de governo democrático, não iria tentar rejeitar questões constitucionais relativas a liberdades e direitos básicos da
cidadania democrática. Para além disto, a filosofia política tem um pa-
pel educativo como parte da cultura de fundo. Este último é abordado
2 Por exemplo, Benjamin Barber conforme referência prévia. na nossa quarta pergunta.
3 «The Great Game of Politics» era o nome de uma coluna no jornal Baltimore Sun de 4. Uma visão política é uma visão sobre justiça política e bem
Frank R. Kent nos decénios de 1920 e 1930.
comum e sobre que instituições e políticas melhor os promqvem. Os

24 25
. ::::1.
'1

cidadãos devem de algum modo adquirir e compreender estas ideias É seguro chamá-los valores políticos. Pensarei numa conceção
se quiserem ser capazes de fazer juízos a respeito de direitos e liberda- política de justiça quando tentar dar uma descrição razoav:l~ente
des básicas. Por isso, coloque-se a seguinte pergunta: Que conceções sistemática e coerente e explicar como são ordenados ao aphca-los a
básicas relativas à pessoa e à sociedade política, e que ideais de liber- instituições de base política e social. A grande maioria dos trabalhos
dade e igualdade, de justiça e cidadania, os cidadãos trazem inicialmente sobre filosofia política, mesmo os de curta duração, pertence à cultura
para a política democrática? Como é que se ligam a estas conceções e geral de fundo. No entanto, obras frequentemente citad~s em casos do
ideais, e que formas de pensamento sustentam estas ligações? De que Supremo Tribunal e em debates públicos sobre ques~~es fu__nd.amen-
forma aprendem sobre governação e que visões dela adquirem? tais podem ser vistas como pertencentes à cultura pohb~a publica, ou
Vêm para a política com uma conceção de cidadãos livres e iguais, perto disso. De facto, algumas - tais como Second Treatzse de Locke e
e capazes de participar na razão pública e de expressar através de voto On Liberty de Mill- parecem fazer parte da cultura política, pelo menos
as suas opiniões consideradas acerca do que é requerido pela justiça nos Estados Unidos.
política e bem comum? Ou a sua visão da política não vai para além Tenho sugerido que seria melhor os cidadã~s aprenderem da
do pensamento de que as pessoas elegem os seus próprios interesses sociedade civil os seus principais ideais e conceçoe~ antes de e~t~a­
económicos e de classe e os seus antagonismos religiosos ou étnicos, rem na política democrática. Caso contrário, um regime ~e~ocrat~co
apoiados por ideais de hierarquia social, em que se considera a infe- a acontecer poderá não ser de longa duração. Uma das vanas razoes
rioridade por natureza de algumas pessoas relativamente a outras? pelas quais a constituição Weimar falhou prendeu-se com o facto de
Poderá parecer que um regime constitucional não dure muito a que nenhuma das correntes intelectuais da Alen:anha est~va p~ep.a­
não ser que os cidadãos entrem desde o início na política democrática rada para defendê-la, incluindo os filósofos e escritores mais notaveis,
com conceções e ideais fundamentais que apoiam e fortalecem as tais como Heidegger e Thomas Mann. . . ..
suas instituições políticas de base. Além disso, estas últimas ficarão Para concluir: a filosofia política não tem um papel msi~m~ic~nte
mais seguras quando, por sua vez, os sustentarem. Contudo, os cida- como parte da cultura geral de fundo no fornecimento de prm~ipios e
dãos devem certamente adquirir esses ideais e conceções em parte, ideais políticos essenciais. Desempenha um pa~~l no forta~ecimen_:o
embora só parcialmente, a partir de textos sobre filosofia política per- das raízes do pensamento e atitudes democraticos. Re~hza-o nao
tencentes à cultura geral de fundo da sociedade civil. Eles deparam- tanto na política diária mas na educação de cidadãos r:lahvame~t~ a
-se-lhes nas conversas e leituras, nas escolas e universidades e nas determinadas conceções ideais sobre a pessoa e a sociedade pohhca
escolas profissionais. Há editoriais e discussões a debater estas ideias antes de entrarem na política e nos seus momentos de reflexão ao longo
em jornais e revistas de opinião.
da~d~. .
Alguns textos atingem um estatuto que os coloca na cultura política s. Haverá alguma coisa na política de uma sociedade que enc?raJe
pública, por oposição à cultura geral da sociedade civil. Quantos de apelo genuíno a princípios de justiça e ao bem comun:? Po:qu: e que
0
nós tivemos de memorizar partes da Declaração de Independência, o a política não é simplesmente a luta pelo poder e pela mfluencia ~em
Preâmbulo da Constituição, e o Discurso de Gettysburg de Lincoln?
Apesar de estes textos não constituírem a autoridade - o Preâmbulo q ue todos tentam alcançar o que pretendem?" Harold Lasswell disse:
«A política é o estudo de quem consegue o que e com~» 5 · ,,
não faz parte da Constituição como lei -, podem influenciar a nossa
Porque é que ela não se resume a isso? Seremos. mgenu?s, co~o
compreensão e interpretação da Constituição de determinadas formas.
dizem os cínicos, se pensarmos que poderá ser outra c01sa? Se sim, e~ta~
Além disso, nestes textos, e noutros do mesmo estatuto (se é que
porque é que toda a discussão à volta da justiça e do bem comum nao e
existe algum), os valores manifestos são, por assim dizer, políticos. Isto
não é uma definição, só uma indicação. O Preâmbulo da Constituição,
por exemplo, menciona: uma união mais perfeita, justiça, tranquili- 4 A minha resposta a esta pergunta segue a de Michael Walzer, referida anterior-
dade doméstica, defesa comum, o bem-estar geral e as bênçãos da mente na nota 1.
liberdade. A Declaração de Independência acrescenta o valor da igual- 5 Harold Lasswell, Politics: Who Gets What, When, and How, Nova Iorque: McGraw-
dade e associa-a a direitos naturais iguais. -Hill. 1936.

26 27
somente a manipulação de símbolos que criam o efeito psicológico de 6. Uma questão importante é então: que particularidades, no caso
levar as pessoas a seguir a nossa visão, não por boas razões, obvia- de existirem, das instituições políticas e sociais tendem a impedir o
~ente, mas a ficar de algum modo deslumbrados por aquilo que apelo genuíno à justiça e ao bem comum, ou a princípios justos de
dizemos? cooperação política? Neste ponto conjeturo que podemos aprender
O que os cínicos dizem sobre princípios e ideais políticos não pode alguma coisa com o fracasso da Alemanha na obtenção de um regime
ser correcto6. democrático constitucional.
. Porque se fosse, a linguagem e o vocabulário de costumes e polí- Se atentarmos na situação dos partidos políticos alemães na Ale-
hc~ ref~rentes e apelando a esses princípios e ideais já há muito não manha Wilhelmine da época de Bismarck, verificamos que havia seis
sena~ mvocados. As pessoas não são estúpidas a ponto de não con- caraterísticas a salientar do sistema político:
segmrem perceber quando é que essas normas estão a ser invocadas 1) Era uma monarquia hereditária com grandes poderes mas
por ~lgun~ grupo~ e respetivos líderes numa tendência puramente não absolutos;
~ampu~atr:a e de ii:teresse coletivo. Isto não nega, é claro, que princí- 2) A monarquia era de caráter militar visto que o exército (cujos
pios de justiça e eqmdade e o bem comum são muitas vezes solicitados oficiais pertenciam à nobreza prussiana) a protegia de uma
de um .mod.o manipulativo. Tal apelo anda bastas vezes a reboque, vontade popular adversa;
por assim dizer, do facto de esses mesmos princípios serem genuina- 3) O chanceler e o gabinete eram funcionários da coroa e não
mente invocados por quem os quer e em quem se pode confiar. do Reichstag, como seria no caso de um regime constitucional;
Duas ~ois.as, aparentemente, constituem uma diferença impor- 4) Os partidos políticos estavam fragmentados por Bismarck,
tante nas ~~eias que os cidadãos têm quando entram pela primeira que apelava aos seus interesses económicos em troca de
vez na,, pohtica; uma é a natureza do sistema político em que crescem; a apoio, transformando-os em grupos de pressão;
o_utra e o conteúdo da cultura de fundo, até que ponto lhes dá conhe- 5) Visto que não eram mais do que um grupo de pressão, os
cimento de ideias políticas democráticas e os leva a refletir sobre o seu partidos políticos nunca aspiraram ao governo, e detinham
significado. ideologias exclusivas que dificultavam o compromisso com
. A --n~tureza,. ~o siste~a político ensina formas de conduta política e outros grupos;
prmcip10s pohhcos. Digamos que num sistema democrático os cida- 6) Não era considerado impróprio que os oficiais, nem mesmo
dãos notam que os líderes políticos, quando formam maiorias funcio- o chanceler, acusassem determinados grupos de inimigos do
nais, estão sujeitos a determinados princípios de justiça e ao bem comum, império: católicos, democratas sociais, minorias nacionais:
~elo menos no que respeita à clareza pública do seu programa polí- Franceses (Alsácia-Lorena), Dinamarqueses, Polacos e Judeus.
tico. S?br~ ~ste a:p~to, o cí~ic~ poderá também dizer que estes apelos
aos prmcipios pubhcos de JUShça e ao bem comum são egoístas, visto Considerando a quarta e a quinta caraterística, no que diz respeito
que para permanecer relevante um grupo deve ser reconhecido como ao facto de que os partidos políticos não eram mais do que grupos de
«~e~tro do sistem~»~ e isso significa que a sua conduta deve respeitar pressão, e porque nunca tinham aspirado a governar - formar um
vanas,. normas sociais coerentes com esses mesmos princípios. A ver- governo - não estavam dispostos a comprometer-se ou a negociar
~ade e esta, mas esquecemo-nos de um pormenor: num sistema polí- com outros grupos sociais. Os liberais nunca revelavam vontade em
tico. razo~velmente bem sucedido, a seu tempo os cidadãos acabam por apoiar programas requeridos pelas classes trabalhadoras, enquanto
se hgar aqueles, e tal como com o princípio de tolerância religiosa, a os democratas sociais insistiam sempre na nacionalização da indús-
sua leal~a~e não é puramente, ainda que o seja em parte, por inte- tria e no desmantelamento do sistema capitalista, o que assustava os
resse propno. liberais. Esta incapacidade de trabalharem juntos para formar um
governo foi fatal para o fim da democracia alemã, porque passou para
o regime Weimar com resultados desastrosos.
6 Ver Jon Elster, The Cement of Society, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, Uma sociedade política na posse de uma estrutura deste tipo criou
pp. 128 e segs. uma enorme hostilidade interna entre as classes sociais e os_ grupos

28 29
económicos. Estes nunca aprenderam a cooperar na formação de um fundamente disputadas e ver se, apesar das aparências, alguma
governo sob um regime devidamente democrático. Agiram sempre base subjacente de acordo filosófico e moral pode ser desco-
como se fossem forasteiros solicitando ao chanceler o favorecimento berta, ou se diferenças poderão pelo menos ser reduzidas de
dos seus interesses em troca de apoio dado ao governo. Alguns grupos, modo a que a cooperação social numa base de respeito mútuo
como os democratas sociais, nunca foram encarados de forma alguma entre cidadãos poderá ainda ser mantida;
como apoiantes do governo; estavam simplesmente fora do sistema, b) O segundo papel, que eu chamo de orientação, tem a ver com
mesmo quando obtinham o maior número de votos, como consegui- raciocínio e reflexão. A filosofia política pode contribuir para o
ram antes da Primeira Guerra Mundial. Em virtude de não haver par- modo como um povo encara as suas instituições políticas e sociais
tidos políticos genuínos, não havia políticos; pessoas cujo papel não é como um todo, a si próprios enquanto cidadãos, e os seus objeti-
agradar a um grupo em particular, mas constituir uma maioria fun- vos e propósitos básicos enquanto sociedade com uma história
cional por detrás de um programa político e social. - uma nação - em contraste com os seus objetivos e propósitos
Para além destas caraterísticas do sistema político, a cultura de base enquanto indivíduos, ou como membros de famílias e associações;
e o teor geral do pensamento político (bem como a estrutura social) c) Um terceiro papel, destacado por Hegel na sua obra intitulada
traduziam-se no facto de que nenhum grande grupo estava disposto a Philosophy of Right (1821), é o da reconciliação: a filosofia política
empreender esforços políticos para atingir um regime constitucional; poderá tentar acalmar a nossa frustração e raiva contra a nossa
ou se realmente apoiasse um, como muitos dos liberais, a sua vontade sociedade e respetiva história mostrando-nos o modo no qual as
política era fraca e poderia ser subornada pelo chanceler através da suas instituições, quando devidamente compreendidas, numa
concessão de favores económicos7. perspetiva filosófica, são racionais, e se desenvolveram ao longo
do tempo como fizeram para obter a sua atual forma racional.
Quando a filosofia política age no âmbito deste papel, deve sal-
§ 2. OS QUATRO PAPÉIS DA FILOSOFIA POLÍTICA vaguardar-se perante o perigo de simplesmente constituir
defesa de um status quo injusto e indigno. Isto torná-la-ia numa
1. Na minha opinião, a filosofia política poderá desempenhar quatro ideologia (um falso esquema de pensamento), de acordo com
papéis ao fazer parte da cultura política pública de uma sociedade. Marxs;
Estes são amplamente discutidos no § 1 de Restatement. Por isso, aqui só d) O quarto papel é o referente à examinação dos limites da possibili-
irei fazer-lhes uma breve abordagem: dade política praticável. Neste domínio, consideramos a filosofia
a) O primeiro é o seu papel prático resultante de conflitos políticos política realisticamente utópica. A nossa esperança para o
divisores quando a sua tarefa é concentrar-se em questões pro- futuro da nossa sociedade reside na crença de que o mundo
social proporciona pelo menos uma ordem política respeitável,
7 Ver os seguintes textos para as questões (1)-(5) acima mencionadas: Hajo Holborn,
History of Modern Germany: 1840-1945, Nova Iorque: Knopf, 1969, pp. 141 e segs., 268- 8 Para Marx uma ideologia é um falso esquema de pensamento que às vezes ajuda a
-275, 296 e segs., 711 e segs., 811 e segs.; Gordon Craig, Germany: 1866-1945, Oxford: obscurecer o seu funcionamento dos que fazem parte do sistema social, tornando-
Oxford University Press, 1978, caps. 2-5, e ver os seus comentários sobre Bismarck, -os incapazes de penetrar por debaixo da aparência superficial das suas institui-
pp. 140-144; Hans-Ulrich Wehler, The German Empire: 1871-1918, Nova Iorque: Berg, ções. Neste caso, reforça uma ilusão, tal como a economia política clássica ajudou,
1985, pp. 52-137, 155-170, 232-246; A. J. P. Taylor, The Course of German History, l.ª ed., na perspetiva de Marx, a obscurecer o facto de que um sistema capitalista é um sis-
1946, Nova Iorque: Capricorn, 1962, pp. 115-159; e o seu Bismarck: The Man and the tema de exploração. Ou então uma ideologia serve para fixar uma ilusão necessá-
Statesman, i.a ed. 1955, Nova Iorque: Vintage Books, 1967, caps. 6-9; D. G. Williamson, ria: os capitalistas decentes não querem acreditar que o sistema é abusador; por
Bismarck and Germany: 1862-1890, Londres: Longman, 1986. Sobre a questão (6), e rela- isso acreditam na doutrina clássica da economia política, garantindo-lhes ser um
tivamente a judeus: Peter Pulzer, Rise of Política[ Anti-Semitism in Germany and Austria esquema de trocas livres em que todos os fatores de produção - propriedade, capi-
before WWl, 2.ª ed., Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1988; Werner tal e trabalho - recebem apropriadamente o que contribuíram para o rendimento
Angress, «Prussia's Army and Jewish Reserve Officer's Controversy before WWl», social. Neste caso, a ideologia reforça uma ilusão. [Ver Marx, Palestra III, neste
ensaio incluído em Imperial Germany, ed. J. T. Sheehan, Nova Iorque: Watts, 1976. volume, para uma discussão de consciência ideológica. - Ed.]

30 31
de modo a tornar possível um regime democrático razoavel- Por exemplo, enumeremos aqui cinco reformas necessárias nos Esta-
mente justo, embora não perfeito. Assim sendo, colocamos a dos Unidos: reforma financeira das campanhas políticas para ultrapas-
seguinte pergunta: Como funcionaria uma sociedade democrá- sar o sistema atual de o dinheiro comprar acesso ao poder; igualdade
tica justa sob condições históricas razoavelmente favoráveis justa nas oportunidades educativas; alguma forma de assistência mé-
mas ainda possíveis, condições essas aprovadas pelas leis e ten- dica garantida para todos; alguma forma garantida de trabalho social-
dências do mundo social? Que ideais e princípios tentaria essa mente útil; e justiça equitativa e igualdade para as mulheres. Estas
sociedade realizar dadas as circunstâncias de justiça numa cultura reformas mitigariam grandemente, senão eliminariam mesmo, os piores
democrática tal como as conhecemos? aspetos de discriminação e racismo. Outros autores terão a sua lista de
reformas essenciais cuja importância é também inegável.
2. Expresso em termos latos, o conteúdo de uma conceção política
§ 3. IDEIAS PRINCIPAIS DO LIBERALISMO: liberal de justiça tem três elementos principais: uma lista de direitos e
ORIGENS E CONTEÚDO liberdades fundamentais equitativos, uma prioridade para estas liber-
dades e uma garantia de que todos os membros da sociedade têm
1. Visto que uma boa parte destas palestras se debruça sobre con- meios adequados a todos os efeitos para fazer uso desses direitos e
c~ções de liberalismo e sobre quatro das suas principais figuras histó- liberdades. Saliente-se que estas últimas são dadas por uma lista.
ricas e um dos seus maiores críticos, devo dizer alguma coisa sobre o Posteriormente tentaremos definir mais estes elementos.
modo como o perceciono. Não há nenhum significado estabelecido Dando uma ideia mais geral: as liberdades fundamentais equitativas
acerca de liberalismo; tem muitas formas e muitas caraterísticas, e os incluem as liberdades políticas equitativas - o direito ao voto e a candi-
autores caracterizam-no de várias maneiras. datar-se a um lugar público, e o direito a livremente fazer discursos de
As três principais origens históricas do liberalismo são as seguin- qualquer natureza política. Também incluem as liberdades cívicas - o
tes: a Reforma e o facto de as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII direito ao discurso livre não político, o direito à livre associação e, é
terem acabado com, primeiro, a aceitação relutante do princípio de claro, à liberdade de consciência. A estas acrescentam-se a igualdade de
tolerância e liberdade de consciência; a atenuação gradual do poder oportunidades, a liberdade de ação, o direito individual à integridade
real pela ascensão das classes médias e pelo estabelecimento de regi- física e mental, o direito à propriedade privada, e, finalmente, as liber-
mes constitucionais de monarquias limitadas; e a obtenção das classes dades cobertas pela força da lei e o direito a um julgamento justo.
operárias quanto à democracia e governação por maioria9. Esta lista das liberdades fundamentais é, naturalmente, familiar.
Estes desenvolvimentos ocorreram em diferentes países da Europa A parte difícil reside na sua especificação mais exata e na ordenação
e da América do Norte em períodos divergentes; no entanto, no caso de de uma relativamente a outra em situação de conflito. Neste momento,
Inglaterra, é de certa forma verdade que a liberdade de consciência já o essencial é sublinhar a grande importância que o liberalismo associa
estava a caminho de ser alcançada no fim do século XVII, o governo a uma determinada lista de liberdades, em vez de o fazer à liberdade
constitucional durante o século XVIII, e a democracia e governação por enquanto tal. Tendo isto em conta, o segundo elemento do conteúdo
maioria com sufrágio universal durante o século XIX. Este movimento do liberalismo é o facto de que às liberdades são atribuídas uma certa
não está, obviamente, terminado. Alguns aspetos importantes ainda prioridade, isto é, uma certa força e peso. Isto significa, na verdade,
h.oje não foram alcançados, e outros parecem estar a uma longa distân- que não podem normalmente ser sacrificadas de modo a obter um
maior bem-estar social, ou a favor de valores perfeccionistas; e esta
1

cia de o ser. Todas as democracias alegadamente liberais existentes são


altamente imperfeitas e ficam muito aquém do. que a justiça democrá- restrição é, praticamente, absoluta.
tica parecia requerer. Conforme indicado acima, o terceiro elemento do conteúdo do
liberalismo é que os seus princípios atribuem a todos os membros da
sociedade exigências para adequar meios materiais a todos os efeitos
9 Esta é a versão esquemática de história especulativa por parte de um filósofo, e para utillzação das suas liberdades, tal como foi detalhado e dada
deve ser reconhecida enquanto tal. prioridade pelos elementos precedentes. Estes meios de uso variado

32 33
inserem-se no que eu chamarei de bens primários. Além das liberdades Esta condição de uma justificação para cada raciocínio de cidadão
fundamentais e das oportunidades equitativas, incluem: rendimento está ligada à tradição do contrato social e à ideia de que uma ordem
e riqueza, e, conforme apropriado, reivindicações a bens em géneros, política legítima reside em consentimento unânime. O objetivo de
por exemplo, educação e assistência médica. uma justificação contratual é mostrar que cada membro da sociedade
Ao referir que o conteúdo das perspetivas liberais contém estes tem razão suficiente para concordar com aquela ordem, e reconhecê-
três elementos, quero dizer que o conteúdo de qualquer perspetiva -la, na condição de que outros cidadãos também o farão. Isto produz
liberal familiar se adequaria a esta ampla descrição. O que distingue consentimento unânime. As razões invocadas devem partir do ponto
liberalismos diferentes é o modo como especificam estes elementos e de vista de cada pessoa razoável e racional.
os argumentos gerais que usam para o fazer. Há visões, frequentemente «Sendo todos os indivíduos, como se diz, por Natureza, livres,
descritas de liberais, por exemplo, as libertárias, que não exemplificam iguais e independentes, ninguém pode ficar excluído deste Estado, e
o terceiro elemento de garantir aos cidadãos meios de uso variado ade- estar sujeito ao Poder Político de outro, sem o seu próprio Consenti-
quados à utilização das suas liberdades. Mas não fazê-lo é, entre outras mento. A única forma pela qual alguém poderá despojar-se da sua
coisas, o que faz da visão libertária e não liberal. O libertarianismo não Liberdade Natural e vincular-se à Sociedade Civil é juntarem-se e uni-
faz parte do terceiro elemento. Claro está que isto não é um argumento rem-se numa Comunidade concordando com outros indivíduos, a fim
contra, mas simplesmente um comentário sobre o seu conteúdo. de viverem confortável, segura e pacificamente em conjunto, em pleno
Gozo das suas Propriedades e em maior Segurança contra quem não
fizer parte dela». Locke: Second Treatise on Government, <J[95.
§ 4. TESE CENTRAL DO LIBERALISMO Nesta passagem de Locke parece que o consentimento é algo que
os cidadãos realmente fazem a determinada altura; de qualquer modo
1. Há, sem dúvida, vários candidatos à tese central do liberalismo esta interpretação não está excluída. Em Kant verifica-se uma ideia
- a garantia das liberdades fundamentais é certamente um deles - e os diferente. Ele diz que não podemos assumir o facto de o contrato ori-
autores terão opiniões diversas. Um elemento central é indubitavelmente ginal resultar de uma coligação verdadeira de todos os indivíduos
o seguinte: existentes, porque isto não pode ser possível.
Um regime legítimo é tal que as suas instituições políticas e sociais [O contrato original] é na verdade meramente uma ideia de
são justificáveis a todos os cidadãos - a todos e a cada um - ao dirigir-se razão, que, apesar de tudo, possui uma inquestionável realidade prá-
ao seu raciocínio, teórico e prático. Por outras palavras: uma justificação tica; pois pode obrigar o legislador a enquadrar as suas leis de tal
das instituições do mundo social deve estar, em princípio, disponível forma que poderiam ter sido criadas pela vontade unida da nação
para todos, e assim justificável para todos os que vivem sob o seu domí- inteira ... Este é o teste da legitimidade de qualquer lei pública. Pois
se a lei é tal que um povo inteiro poderia possivelmente não estar de
nio. A legitimidade de um regime liberal depende de tal justificaçãolO.
acordo com ela (por exemplo, se afirmasse que uma determinada
Apesar de o liberalismo político (de que é exemplo a justiça como classe de sujeitos deveria ser a privilegiada classe governadora), é por-
equidadell) não rejeitar ou questionar a importância da religião e tra- que seria injusta; mas se for pelo menos possível que um povo con-
dição, insiste no facto de que as condições e as obrigações políticas im- corde com ela, é nosso dever considerá-la justa, mesmo que o povo
postas pela lei devem responder ao raciocínio e juízo dos cidadãos. se encontre atualmente numa determinada posição ou atitude que o
levasse a negar o seu consentimento se consultado. Kant, Theory and
Practice (1793: Ak: VIII:297 (Reiss, 79)12.
10 Para uma discussão desta matéria, ver o ensaio instrutivo de Jeremy Waldron, «The
Theoretical Foundations of Liberalism», Philosophical Quarterly, abril de 1987,
pp. 128, 135, 146, 149.
11 Justiça como equidade é a designação que dei à conceção política de justiça desenvol- 12 Immanuel Kant, Political Writings, ed. H. S. Reiss e H. B. Nesbit, Cambridge: Cam-
vida em A Theory of Justice e em Justice as Fairness: A Restatement. bridge University Press, p. 79.

34 35
,111

2. Agora assinalo algumas distinções que nos permitem compreen- Evidentemente, uma doutrina do contrato social poderá efetuar
der o significado de diferentes perspetivas do contrato social e separar ambas as coisas; mas a distinção entre elas é significativa: por um
umas das outras. lado, a ideia do contrato social funciona de modo divergente nos dois
Em primeiro lugar, a distinção entre acordos verdadeiros e não histó- casos, e pode ser bastante satisfatória num e não no outro 1 ~.
ricos: os primeiros encontram-se, assim parece, em Locke (teremos Penso que a crítica de Hume relativamente à perspetiva do con-
oportunidade de o verificar quando analisarmos Locke). Os últimos trato social aplica-se à descrição de Locke acerca de obrigação política15,
encontram-se em Kant, que tem em mente um acordo que poderá so- mas não aborda o aspeto da legitimidade analisado por este último,
mente aparecer a partir de uma coligação entre todas as vontades; mas ou assim creio.
visto que as condições históricas nunca o permitiram, o contrato ori- Num contrato social há outras distinções e aspetos a ter em conta.
ginal é não histórico. Por exemplo, quem são as partes envolvidas? São todos os cidadãos
Em segundo lugar, a distinção de como o conteúdo é determinado: uns com os outros, ou todos os cidadãos com o soberano? Ou haverá
se pelos termos de um contrato efetivo, ou se por análise (isto é, perce- dois ou mais contratos: primeiro entre cidadãos e depois cidadãos com
bendo através da situação dos que efetuam o contrato com o que o soberano? Em Hobbes e Locke, as partes são todos os cidadãos a
poderiam ou iriam concordar), ou por alguma forma de combinação estabelecer contratos uns com os outros; o soberano não constitui de
entre os dois métodos. Em parte, Kant designa o contrato original de todo parte envolvida. E não há nenhum segundo contrato. Mas esta e
uma ideia de razão porque é só pela razão - tanto teórica como prá- outras distinções poderão ser abordadas à medida que formos avan-
tica - que podemos compreender com o que as pessoas poderão con- çando.
cordar. Neste caso o contrato é hipotético.
Uma terceira distinção é se o conteúdo do contrato social diz
respeito ao que as pessoas poderiam fazer - ou possivelmente não pode-
riam fazer - ou o que elas fariam. São duas perspetivas muito dife-
§ 5. SITUAÇÕES INICIAIS
rentes: é frequentemente mais difícil entender o conteúdo de um
1. Em qualquer doutrina do contrato social é necessário explicar a
contrato hipotético dizendo o que as pessoas fariam em vez do que
poderiam fazer, ou possivelmente não fazer. Assim, quando Locke situação em que o contrato social, quer seja histórico ou não histórico,
ataca Carlos II, está principalmente interessado em mostrar que, ao irá ser feito. Passemos a falar dela como a situação inicial. Para desen-
estabelecer uma forma de governo, o povo não poderia ter concor- volver com clareza uma doutrina contratual que seja, vários dos seus
dado com o absolutismo real. Por isso, o comportamento do rei aspetos têm de ser expressamente preenchidos. Senão, serão inferidos
enquanto soberano detentor desses poderes faz da sua conduta ile- através da natureza do que é concordado, ou a partir do que é pressu-
gítima. Locke não precisa de mostrar com o que as pessoas teriam con- posto se o raciocínio for sólido, e isto arrisca-se a ser mal interpretado.
cordado, para além de inferir o que não fariam através do que possivel- Temos vários itens para especificar. Por exemplo: Qual é a natu-
mente não poderiam fazer. (Neste ponto ele baseia-se em: se não reza das partes envolvidas na situação inicial, e quais são as suas
podíamos fazer X, não faríamos X13.) capacidades intelectuais e morais? Quais são os objetivos e desejos
Uma quarta distinção é se o conteúdo do contrato social é visto das partes? Quais são as suas crenças em termos gerais, e o q~e.saberão
como especificativo quando uma forma de governo é legítima, ou se acerca das suas circunstâncias particulares? Que alternativas enca-
esse conteúdo é visto como condicionador das obrigações (políticas) que ram; ou quais são os vários contratos em que poderão entrar? As res-
os cidadãos têm para com o seu governo. A ideia do contrato social postas a estas questões e a muitas outras devem de algum modo ser
pode servir dois propósitos distintos: quer criando uma conceção de fornecidas. E para cada caso há várias possibilidades.
legitimidade política, quer descrevendo as obrigações políticas dos cidadãos.
14 Sobre este aspeto, ver Waldron, «Theoretical Foundations of Liberalism», pp. 136-
-140.
13 Assim: não poder fazer X implica não fazer X; mas, poder fazer X não implica fazer X. 15 Ver a obra de Hume, Of the Original Contract (1752).

36 37
11'
1

2. Consideremos em primeiro lugar a natureza das partes envol- A explicação é que o tipo de conhecimento que normalmente as pessoas
vidas. São pessoas num estado natural, tal como em Locke? Fazem têm pode conduzir a discussões intermináveis e permitir que alguns
todas parte da sociedade, tal como em Kant? Não são nada disto mas levem as coisas demasiado a sério, criando condições para que os
sim representantes dos cidadãos individuais da sociedade, tal como piores indivíduos obtenham mais do que aquilo a que têm direito.
enunciado em Justiça como Equidade? É fácil ver como isto acontece observando casos em que as pessoas
Que tipo de acordo é o contrato original? Trata-se do mesmo tipo têm demasiada informação. No exemplo de Elster sobre o jogo de
de acordo de uma forma legítima de governo, tal como em Locke? Ou ténis, começa a chover depois do terceiro set, estando o primeiro joga-
é, como em Kant, um entendimento que todos os membros da socie- dor à frente com 2 sets para 1. Como irão eles dividir o prémio visto que
dade coletivamente poderiam desejar, e que é para ser usado pelo o jogo tem de acabar neste momento? O primeiro jogador reclama o
legislador como um teste de lei justa? (Em Kant este teste é para ser prémio todo para ele; o segundo diz que deve ser dividido em partes
seguido pelo soberano na criação de leis.) Ou é talvez, como em Rous- iguais, alegando encontrar-se em excelente forma e com energia sufi-
seau, um acordo acerca do conteúdo do que ele chama vontade geral, cientes para fazer o quarto e quinto sets ainda melhor; os espetadores
isto é, o que é que a vontade geral deseja? dizem que o prémio deve ser dividido em terços em que o primeiro
Ou será, segundo a justiça como equidade, um acordo acerca do recebe 2 / 3 e o segundo 1/3. Nitidamente a questão devia ter ficado
conteúdo de uma conceção política de justiça - os princípios e ideais esclarecida antes de o jogo começar, quando ninguém conhecia as ca-
de justiça e do bem comum - a ser aplicado à estrutura básica da racterísticas das circunstâncias actuais17.
sociedade enquanto sistema unificado de cooperação social? E para Mesmo assim, no entanto, poderá não ter sido fácil, visto que o
além disto, conforme a justiça como equidade, será um entendimento segundo jogador vai certamente preferir dividir o prémio em partes
acerca das restrições de raciocínio público referentes a questões políticas iguais, tendo em conta os factos mencionados anteriormente, e espe-
fundamentais e ao dever de civilidade? Qualquer doutrina de contrato cialmente ambos sabendo que o primeiro jogador é mais velho e tende
social tem de decidir acerca destas questões e adotar uma abordagem a cansar-se mais rapidamente. De igual modo, se o prémio for bastante
que as mantenha ligadas numa unidade consistente. elevado, saber que um jogador é rico e o outro pobre irá criar mais
3. Em seguida, consideremos a questão daquilo que as partes sabem. dificuldades. Assim, os jogadores precisam de imaginar uma situação
Poder-se-á pensar que a resposta mais razoável é supor que as partes em que ninguém tenha conhecimento das suas capacidades, condição
sabem tudo o que lhes é familiar na vida habitual. Podemos pensar: ob- física, ou riqueza, e outras tantas coisas, e estabelecer as regras inde-
tém-se certamente um acordo pior para todos quando as pessoas estão pendentemente da particularidade das circunstâncias, tendo em conta
privadas de informação! Como poderá a falta de conhecimento levar os jogadores em geral. Deste modo, são levados a algo que os aproxima
a um acordo que é mais razoável e melhor para todos? do véu da ignorância da justiça como equidade.
Agora, perante uma conceção de justiça previamente aceite edis- 4. Assinalo agora dois casos de verdadeira importância política
ponível, queremos habitualmente toda a informação que estiver ao para ilustrar os mesmos pontos. Consideremos o caso da falsificação
nosso alcance. Se assim não for não poderemos aplicar devidamente do recenseamento eleitoral (gerrymandering), através da qual se mani-
os seus princípios e padrões16. pularam as áreas de voto estatais, regionais ou locais de modo a obter
Mas fazer um acordo ou adotar à partida uma conceção de justiça um determinado predomínio político. O termo teve origem em 1812
é uma outra questão. Quando o objetivo é atingir consenso, o conhe- quando apoiantes Jefferson do governador Elbridge Gerry de Massa-
cimento total coloca-se frequentemente no caminho de o conseguir. chusetts (um antifederalista) tentaram manter o seu controlo político
do estado. Para o conseguir replanearam as áreas de voto de forma a
16 Um exemplo de exceção reside num tribunal criminal onde as regras de evidência
incluir os enclaves antifederalistas. O resultado foi grotesco, tendo um
podem excluir alguns tipos de informação disponível, quando os cônjuges poderão
não testemunhar um contra o outro. Isto serve para ajudar a garantir um tribunal
justo. 17 Ver Jon Elster, Local Justice, Nova Iorque: Russell Sage Foundation, 1992, pp. 295 e segs.

38 39

\_o<"
cartoonista de então interpretado a situação através de uma salaman- cidadãos conhecerem as suas ambições e aspirações. Eu só menciono
dra - e daí a palavra «Gerrymander». estas perspetivas, mas elas poderão conduzir a diferentes conclusões20 .
Aqui está um caso claro em que regras rígidas acerca de áreas elei- Também deveria mencionar que muito do mesmo efeito criado pelo
torais devem ser previamente adotadas. Também ilustra a distinção véu de ignorância pode resultar da combinação de outros elementos.
crucial entre o tipo de conhecimento apropriado para adotar regras e Assim, em vez de excluir informação, podemos levar as pessoas a saber
o que se deve adequar à sua aplicação. Mais num caso do que no 0 que quer que saibam agora e todavia tornar perpétuo o vínculo con-
outro é preciso haver informação diferente e em menor quantidade. tratual e levar as partes a preocuparem-se com os seus descendentes,
O mesmo ponto explica o motivo pelo qual é tão difícil criar leis indefinidamente ao longo de um futuro remoto 21 .
que reformem o sistema de eleições e estabeleçam financiamentos pú- Ao protegerem os descendentes bem como a si próprios, encaram
blicos. Nesta instância, é óbvio que o partido que consegue angariar uma situação de grande incerteza. Por conseguinte, os mesmos argu-
mais dinheiro vai querer menos reformas deste tipo e se estiver no mentos aproximadamente, e ligeiramente modificados, relacionam-se
poder, poderá bloquear esforços reformistas deste género. Se ambos com um denso véu de ignorância.
os partidos num sistema bipartidário forem corruptos e conseguirem Finalmente, chamo a vossa atenção para a ideia de ética do discurso
recolher fundos avultados, tais esforços poderão ser praticamente im- defendida por Jürgen Habermas e para uma ideia relacionada de Bruce
possíveis sem uma grande mudança política através, por exemplo, de Ackerman22 .
um terceiro partido. O pensamento aqui manifesto é que com algumas regras de dis-
Destaco também o tratamento médico de Daniels e o esquema de curso que restringem os participantes numa situação discursiva ideal,
seguros de Dworkinl8. apenas as normas detentoras de um conteúdo moral adequado pode-
Aqui a ideia geral é a de que as pessoas deveriam decidir o quanto rão ser geralmente apoiadas por todos. Uma norma válida é aquela que
a sociedade deveria fornecer em termos de cuidados médicos numa pode ser estabelecida, ou resgatada, segundo Habermas, na tal situação
situação em que ninguém sabe a idade delas, mas apenas que irão discursiva ideal. Não há nenhum véu de ignorância, ou outras restri-
viver fases diferentes - da juventude à velhice - durante as quais a
ções para além das regras do discurso ideal. São estas últimas que ser-
necessidade de cuidados de saúde é variável. Elas devem avaliar essas
vem para filtrar todas as normas que não podem ser geralmente aceites
necessidades em determinado momento da vida comparativamente a
e, neste sentido, não prolongam interesses generalizáveis.
outros, bem como as necessidades da sociedade relativamente a outras
A razão para mencionar estas diferentes perspetivas é indicar o
coisas. A minha abordagem é semelhante quando discuto a flexibilidade
quão abrangente é a ideia de uma situação inicial. De facto, não é uma
de bens essenciaisl9.
ideia estranha, um devaneio de filósofo, mas uma ideia muito comum
5. Todos estes exemplos sugerem a necessidade de haver algo como
o chamado véu de ignorância. Contudo há muitos, uns mais densos do e creio que até altamente intuitiva. Está claramente pressuposta, julgo,
que outros (excluindo mais informação) e alguns excluindo tipos dife- em Rousseau e Kant, e sem dúvida noutros autores clássicos também.
rentes de informação. A assinalar o véu de ignorância meritocrático de
Elster, o qual dá lugar à informação acerca das capacidades e aptidões 20 Ver Elster, Local Justice, pp. 206 e segs.
naturais dos cidadãos, e as restrições de Dworkin, que permite aos 21 Esta foi na verdade a forma adquirida pelos limites sobre a informação nos meus
primeiros artigos acerca de justiça como equidade. Ver «Justice as Fairness»~ em
Rawls, Collected Papers, ed. Samuel Freeman, Cambridge, Mass.: Harvard Umver-
18 Ver Norman Daniels, Am I My Parent's Keeper?, Nova Iorque: Oxford University sity Press, 1999, pp. 47-72.
Press, 1988, com resumos nas pp. 63-67 e 81e segs.; e Ronald Dworkin, «Ü Plano de 22 Ver Jürgen Habermas, Moralbewusstsein und Kommunikatives Handeln, Frankfurt am
Clinton Será Justo?», New York Review of Books, 13 de janeiro de 1994 [publicado uma Main: Suhrkampf, 1983, esp. 3, intitulado «Diskursethik - Notizen zu einem Be-
segunda vez como «Justice and the High Cost of Health Care», cap. 8, em Ronald gründungsprogramm. Erlauterungen zur Diskursethik», Suhrkampf, 1991, e esp. 6:
Dworking, Sovereign Virtue, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2000. 119-222. Ver também Bruce Ackerman, Social Justice and the Liberal State, New Haven:
19 Ver Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, Cambridge, Mass.: Harvard University Yale University Press, 1980; «What is Neutral about Neutrality?», Ethics, janeiro de
Press, 2001, pp. 168-176. 1983; «Why Dialogue?», Journal of Philosophy, janeiro de 1989.

40 41
11
1!'11 1'
''li~
1
1

Refiro-me à situação inicial de justiça como equidade como «a po-


sição original». É caracterizada de modo a que o acordo atingido pelas
partes, que são vistas como representantes dos cidadãos, expresse o
conteúdo - os princípios e ideais - da conceção política de justiça que
especifica os termos corretos de cooperação social.
Para concluir, sublinho que a posição original, como já o disse várias
vezes, é um instrumento de representação. Se analisássemos a história
da tradição do contrato social, verificaríamos que a situação inicial tem HOBBES
sido usada para representar várias coisas diferentes, mesmo que a ideia
de um instrumento de representação não se tenha tornado clara, ou,
possivelmente até, compreendida pelo autor. Tem sido assim usada,
sendo igualmente compreendida ou não.

42
. 1r:11111
:f
1

HOBBES I
O MORALISMO SECULAR DE HOBBES
E O PAPEL DO SEU CONTRATO SOCIAL

§ 1. INTRODUÇÃO

Porque é que dou início à disciplina de filosofia política com Hobbesl?


Não que ele tenha sido o precursor da doutrina do contrato social,
é claro. Isso remonta aos Gregos clássicos, e posteriormente, no século
XVI, sofreu um desenvolvimento fantástico através dos Escolásticos tar-
dios, desde Suarez, de Vittoria, a Molina e outros. Na época de Hobbes
já é uma doutrina bastante bem desenvolvida. Na minha perspetiva e
na de muitos outros, Leviathan de Hobbes é a maior obra individual
sobre o pensamento político escrita na língua inglesa. Ao dizê-lo, não
significa que se aproxima da verdade, ou que é a mais racional. De facto,
pretendo dizer que juntando tudo - incluindo estilo e linguagem, o
âmbito, a acuidade e a interessante clareza de observação, estrutura
intricada de análise e princípios, e apresentação do que eu penso ser
uma forma assustadora de refletir sobre a sociedade que é quase ver-
dade e, ao mesmo tempo, uma possibilidade bastante aterradora - jun-
tando tudo isto, Leviathan provoca, em mim, uma sensação avassaladora.
Vista como um todo, pode criar um efeito avassalador e muito dra-
mático no nosso pensamento e sentimentos. Há outros escritores que
merecem mais os nossos elogios. De certo modo, tendo a superiorizar
o trabalho de J. S. Mill relativamente ao de Hobbes, mas não há uma
única obra de Mill que se compare ao Leviathan. Não há nada que ele

1 [Transcrição da palestra de 11 de fevereiro de 1983, com partes adicionadas a partir


dos apontamentos manuscritos de John Rawls datados de 1979 a 1983. - EdJ

45
tenha feito que comece a ter este efeito global. A obra Second Treatise bem dos outros, e também capazes de agir a partir de princípios de
de Locke pode ser mais racional, mais sensata, em alguns aspetos, e moralidade eterna e imutável por si próprios; enquanto Hobbes, con-
mais próxima de ser precisa, ou verdadeira. Mas digo, mais uma vez, forme pensavam, presumia que as pessoas eram psicologicamente
que lhe falta o âmbito e o poder de apresentação de uma conceção egoístas e só se preocupavam com os seus próprios interesses.
política na linha de Hobbes. E apesar de haver outros autores assina-
láveis como Kant e Marx, estes últimos não escreveram em inglês. Na Cudworth e ortodoxia Hobbes
língua inglesa, esta é, creio eu, a obra individual mais impressionante.
Teísmo. Ateísmo.
Por isso, seria lamentável dar uma aula sobre filosofia política e não Dualismo (mente e corpo). Materialismo.
tentar lê-la. Livre arbítrio. Determinismo.
Uma segunda razão para começar com uma abordagem ao traba- Conceção corporativista do estado e da Conceção individualista do estado e da
sociedade. sociedade.
lho de Hobbes é o facto de ser útil refletir sobre a moral moderna e a
Moralidade eterna e imutável. Relativismo e subjetivismo.
filosofia política como se tivessem começado com ele e com as reações Pessoas capazes de sensibilidade moral Pessoas consideradas egoístas racionais
que provocou. Hobbes escreveu Leviathan durante um período de e benevolência. e incapazes de benevolência.
grandes tumultos políticos. Publicou-o em 1651, durante a época
de transição entre a Guerra Civil Inglesa (1642-1648), que destronou FIGURA 1
Carlos I, e a restauração da monarquia com a coroação de Carlos II
em 1660. O seu trabalho suscitou uma forte reação intelectual e o Não me parece que esta imagem de Hobbes, esta interpretação da
autor era visto pelos seus críticos como o principal representante da sua perspetiva, seja particularmente correta, mas menciono-a porque
infidelidade moderna às crenças cristãs. Vivia-se uma era cristã e a orto- era o que as pessoas da sua época, mesmo um número de indivíduos
doxia de então opunha-se a Hobbes a par de um conjunto de linhas sofisticados, presumiam que ele defendesse. Assim se explica a razão
muito importantes e acutilantes (ver figura 1). pela qual ele era tão severamente atacado e até detestado. Em alguns cír-
Por exemplo, a ortodoxia tinha, claramente, uma visão teísta, culos, era uma questão de insulto pessoal se alguém fosse considerado
enquanto consideravam Hobbes ateísta. Tinha uma visão dualista, um «hobbista». Isso era uma acusação da qual muitos sentiram que
fazendo uma distinção entre alma e corpo, enquanto viam Hobbes tinham de se proteger, tal como aconteceu neste país em 1950 quando as
como materialista. Também acreditava no livre arbítrio, liberdade da pessoas tiveram de se defender contra a ideia de serem consideradas
alma e mente, mas considerava Hobbes um determinista que reduzia comunistas. Locke pensava que Newton o tomava por hobbista, e isto
a vontade a uma sequência de apetites ou a algum tipo de mudança era algo que eles tiveram de esclarecer antes de poderem ser amigos.
cultural. Detinha igualmente uma conceção corporativa da sociedade Era um assunto muito sério quando terceiros nos viam por este prisma.
humana (não seria correto chamá-la «orgânica»). Para os ortodoxos, a O que se verifica é que imediatamente a seguir a Hobbes há duas
sociedade era intrinsecamente um aspeto da natureza humana, en- linhas de reação contra ele. Uma é a ortodoxa através dos filósofos da
quanto Hobbes tinha uma conceção individualista da sociedade. Ele moral cristã, daqueles que pertenciam ou eram simpatizantes da igreja.
ainda é visto como detentor de uma perspetiva muito radicalmente Os mais importantes entre eles eram talvez Cudworth, Clarke e Butler.
individualista. Os ortodoxos também tinham uma visão de morali- Atacavam o que entendiam ser as perspetivas principais de Hobbes, a
dade eterna e imutável. Isso quer dizer que havia determinados prin- saber:
cípios morais baseados na razão de Deus que nos era possível, em
virtude do nosso intelecto, apreender e compreender, e não havia senão 1) O seu suposto egoísmo psicológico e ético;
uma interpretação destes princípios. Os princípios morais eram como 2) O seu relativismo e subjetivismo e a negação do livre arbítrio;
os axiomas de geometria, pois só podiam ser entendidos pela razão. 3) E o que entendiam ser o resultado da sua doutrina: a ideia de
Hobbes, por outro lado, era visto como relativista e subjetivista, o que que a autoridade política torna-se legítima através de poderes
consistia num ângulo completamente oposto. Para concluir, a ortodoxia superiores ou então por acordos feitos quando confrontada por
considerava as pessoas capazes de benevolência e preocupadas com o esses mesmos poderes.

46 47
Também rejeitavam a ideia de que a autoridade política se pudesse preender em que consiste o sistema secular. De facto, é precisamente
basear em qualquer coisa como um contrato social. porque, ou em parte porque, o podemos fazer que a doutrina de Hobbes
A outra linha de reação era a utilitária: Hume, Bentham, Hutcheson, era uma ofensa à ortodoxia daquela época. No pensamento ortodoxo,
Adam Smith e assim sucessivamente. Eles não discordavam de Hobbes a religião deve desempenhar uma parte essencial na compreensão do
por razões ortodoxas, e, como um todo, à exceção de Hutcheson, assu- sistema político e moral de ideias. Se não o fizer, então esse é em si
miam uma posição secular. Os utilitários pretendiam atacar o egoísmo próprio um assunto problemático.
de Hobbes. Queriam argumentar que o princípio de utilidade é um A religião, o pensamento ortodoxo, não desempenharam nenhum
princípio moral objetivo, e dessa forma atacar o suposto subjetivismo papel essencial na perspetiva de Hobbes. Julgo, portanto, que todas as
ou relativismo de Hobbes. E também defendiam que o princípio de noções que ele usa, por exemplo a noção de direito natural, o estado da
utilidade era um princípio que podia decidir, justificar e explicar as natureza, e assim sucessivamente, podem ser todas definidas e expli-
bases da autoridade política. Um dos modos em que ele era interpre- cadas independentemente de qualquer base teológica. E o mesmo se
tado era que baseava a obrigação e a autoridade políticas em poderes aplica no que respeita ao conteúdo do sistema moral, em que com con-
superiores. Mais uma vez digo que não estou a afirmar que qualquer teúdo quero dizer o que os seus princípios realmente dizem. Isto sig-
1 I
uma destas coisas corresponde ao que Hobbes realmente disse, mas nifica que o conteúdo das leis da natureza, que a razão justa nos manda
ao que lhe era largamente atribuído. seguir, e também o conteúdo das virtudes morais, tais como as de jus-
Assim, Hobbes era atacado por todos os lados - pelos ortodoxos e tiça, honra, e outras do mesmo tipo, poderão ser todas explicadas sem
não ortodoxos - e pelo facto de o Leviathan ser uma obra extraordinária, recorrermos a suposições teológicas e podem ser todas compreendidas
iniciou-se uma espécie de reação: o seu sistema de pensamento era dentro do sistema secular.
algo a respeito do qual uma pessoa tinha de decidir como se posicio- Hobbes encara uma lei natural como «Um Preceito, ou Regra geral,
nar. Dadas as circunstâncias, é útil atribuir a Hobbes e à reação por si descoberto pela Razão, pelo qual um homem está proibido de fazer
criada o início da filosofia política e moral moderna da Grã-Bretanha. isso, que é destrutivo para a sua vida ou afasta os meios de preservar
a mesma» (Leviathan, p. 64 na edição original de 1651)2 .
Estes preceitos, quando geralmente aceites, permitem alcançar
§ 2. O MORALISMO SECULAR DE HOBBES paz e concórdia, e são necessários para a «conservação» e defesa dos
«homens em massas» (Leviathan, cap. 15, p. 78). As leis da natureza
De modo a termos tempo para discutir alguns dos pontos essen- podem ser todas compreendidas sem se mencionarem suposições teo-
ciais deste livro, irei debruçar-me sobre o que designarei de «Ü Sistema lógicas. Isto não significa, todavia, que não possamos acrescentar
Moral Secular de Hobbes». Vou omitir algumas coisas, e passo a ex- determinadas hipóteses teológicas ao esquema secular de Hobbes; e
plicar as razões que residem por detrás dessa omissão. O primeiro quando isso acontecer elas poderão levar-nos a descrever partes deste
aspeto que vou ignorar são as suposições teológicas de Hobbes. Por esquema secular de um modo diferente. Por exemplo, Hobbes diz que
vezes fala como se fosse um crente cristão, e eu não questiono ou nego no sistema secular (o termo é da minha autoria) as leis naturais verbali-
que o era de alguma forma, embora à medida que se vai lendo o traba-
lho compreende-se porque é que alguns o negavam. Em todo o caso, 2 As referências das páginas são da primeira edição de Leviathan de Hobbes, da edi-
interrogavam-se sobre o modo como ele falava nas coisas que fazia e ção Lionshead (ou «Head») de 1651 [estas estão incluídas no texto da edição
contudo acreditava, em qualquer sentido ortodoxo. Por isso, ponho Penguin feita por C. B. MacPherson, que foi usada por Rawls na sua disciplina].
de lado estas suposições teológicas ortodoxas e assumo que há no livro A paginação da edição Head está incluída nas margens de todas as principais edi-
ções modernas de Leviathan. «As principais edições modernas (as de A. R. Waller
um sistema político e moral secular. Este sistema é completamente inte- em 1904, da Oxford University Press em 1909, de Michael Oakeshott em 1946, e C. B.
legível no que diz respeito à sua estrutura de ideias e ao conteúdo dos MacPherson em 1968) basearam-se, corretamente, na edição Head», tal como fez
seus princípios quando estas suposições teológicas são postas de parte. Molesworth na sua edição de 1839. Richard Tuck, p. xviii da sua edição de Leviathan,
Por outras palavras, não precisamos de as levar em conta de forma a com- Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

48 49
111

e 11111111!1:1

11111111;1111 zam corretamente «ordens de razão», conclusões ou «teoremas» refe- último diz, entre outras coisas, que a felicidade segura e perpétua do
rentes ao que é necessário para a nossa conservação e para a paz da paraíso pode ser alcançada sem manter co1:1"promissos !por exempl~,
1
sociedade. São devidamente designadas de «leis» apenas quando pen- com hereges). (Era comum dizer-se naquela epoca que ~ao somos obn-
samos nelas como mandamentos de Deus que por direito tem legítima gados a manter os nossos compromissos com hereges) pois são uma
autoridade sobre nós (Leviathan, cap. 15, p. 80). Mas o aspeto crucial exceção.) Hobbes responde dizendo que esta ideia é frívola. Diz que
aqui é: considerar estas ordens de razão Leis de Deus não altera de para atingir a salvação não há outra forma possí_vel sei:~º honr~r_os
forma alguma o seu conteúdo - o que elas nos mandam fazer; elas ainda nossos compromissos (Leviathan, p. 73 ). Em segmda, reJeita as vrnoes
nos dizem exatamente a mesma coisa acerca do que temos de fazer daqueles que julgam que acordos com hereges e outr~s não s~o vincul~­
como diziam anteriormente. Como também não muda o conteúdo das tivos, e que pensam que os ditames da razão, ou seJa, as leis naturais,
virtudes. E nem considerá-las leis de Deus altera a forma como estamos podem ser ultrapassados por fins religiosos (Leviathan, pp. 73-74). Para
sujeitos a segui-las. Já somos obrigados pela justa razão a segui-las (pelo Hobbes, então, tal quebra de acordo não teria justificação. Assim, a pro-
menos in foro interno) e justiça e compromisso é uma virtude natural3. cura da nossa salvação não muda de forma alguma, em sua opinião, o
Como leis de Deus, as ordens da razão adquirem simplesmente conteúdo das Leis Naturais vistas como ditames da razão. As suposi-
uma sanção peculiarmente convincente (cf. Leviathan, cap. 31, pp. 187 e ções teológicas podem fazer aplicar este sistema secular adicionando-
segs.). Por outras palavras, há uma outra razão convincente e persua- -lhes as sanções de Deus, e poderão ajudar-nos a descrevê-lo de forma
siva, a ameaça do castigo de Deus, pela qual as leis têm de ser segui- diferente para que os ditames da razão passem a ser chamados «leis»,
das. Mas a sanção não afeta o conteúdo e as noções que estão em jogo. mas não alteram a estrutura fundamental de conceitos e o conteúdo dos
O sistema de base teológica só mudaria o conteúdo e a estrutura seus princípios, ou o que eles requerem de nós. Em suma, é nesses fun-
formal do esquema secular de Hobbes se o que for necessário para a damentos que proponho pôr de lado as suposições teológicas.
nossa salvação numa perspetiva religiosa fosse diferente e entrasse, Um outro aspeto da visão de Hobbes que vou pôr de lado é o cha-
de algum modo, em conflito com as ordens de razão sobre o que seria mado materialismo. Não acredito que isto tenha tido alguma influên-
necessário para a paz e concórdia da sociedade. Se a visão teológica cia significativa no conteúdo daquilo a que estou a chamar de sistema
nos obrigasse a fazer determinadas coisas que entrariam em conflito secular. A psicologia de Hobbes derivou principalmente da observa-
com os preceitos das leis da natureza, ou ordens da razão, para nos ção do senso comum, e da sua leitura dos clássicos, tais como Tucí-
salvarmos, então teríamos um conflito. Mas creio que Hobbes não acre- dides, Aristóteles e Platão. O seu pensamento político, isto é, a sua
dita nisto. Ele diria que qualquer visão religiosa que seja incompatível conceção da natureza humana, formou-se provavelmente aí. Não re-
com as ordens da razão, vistas como teoremas para o que é necessário vela sinais de, na verdade, ter sido pensada e construída na base de
tendo em vista a conservação dos homens em grupos, é uma supers- princípios mecânicos d.o materialismo, o chamado método científico.
tição e irracional. No capítulo 12 (pp. 54-57) discute religião, e aqui A pesar de ser mencionado ocasionalmente, não afetou realmente a
observa como os primeiros fundadores e legisladores da Common- sua explicação acerca da natureza humana e das paixões, e afins, que
wealth entre os anciãos tiveram dificuldades em fazer crer publicamente a motivam4•
que o que é necessário para a paz e união da sociedade é também Podemos permitir que o materialismo de Hobbes, e a perspetiva
aprazível aos deuses, e que as mesmas coisas eram desagradáveis para de haver um princípio mecânico que explica causação, lhe tenha dado
os deuses que eram proibidos pelas leis. É nítido que Hobbes aprova maior confiança na ideia do contrato social enquanto método analítico.
esta política e pensa que isto é o que eles deviam ter Jeito.
Posteriormente, no capítulo 15, Hobbes responde ao chamado louco
que acredita na inexistência de justiça (Leviathan, pp. 72 e segs ). Este 4 Assim, o que Robertson afirmou há muito tempo parece estar bastante correto:
«Ü conjunto da sua doutrina política[ ... ] tem pouca aparêneia de ter sido pensada
a partir de princípios fundamentais desta filosofia[ ... ] estipulou indubitavelmente
3 «As Leis da Natureza obrigam in foro interno; o que quer dizer que obrigam a um as suas principais linhas quando [Hobbes] ainda era um mero observador de
desejo a que deviam dar lugar, mas in foro externo; isto é, pondo-as em ação, mas homens e costumes, e não um filósofo mecânico». George Croom Robertson,
nem sempre.» Leviathan, p. 79. Hobbes, Philadelphia: J. B. Lippincott, 1886, p. 57.

50 51
Poderá ter sentido que os dois podiam ser combinados. Por exemplo: interpretar o contrato social como um acordo que realmente teve lugar.
em De Cive, que é um primeiro trabalho, menos completo e elaborado Não há dúvida que este autor supõe que algo como o estado de natu-
do que Leviathan, que apresenta mais ou menos a mesma visão, ele reza realmente ocorreu a determinada altura, e diz que agora existe
começa com uma discussão da «própria matéria do governo civil» e em algumas partes do mundo, e que tamb~m existe entre Esta.dos-nação,
depois continua a discutir a sua conceção, a forma e os primeiros pas- príncipes e reis no momento atual (Levzathan, p. 63). Por isso, nesse
sos da justiça, ao que adiciona a expressão «tudo é melhor compreen- sentido, o Estado de Natureza é uma realidade. Mas não me parece
dido através das suas causas constituintes»s. que Hobbes tenha a preocupação de dar um~ explicação histó~ica de
Para compreender a sociedade civil, isto é, o grande Leviathan, como a sociedade civil e o seu governo surgiram. A sua doutrina do
devemos pô-lo à parte, dividi-lo em elementos separados, ou na sua contrato social é melhor entendida, não a explicar a origem do Levia-
matéria - ou seja, seres humanos - e vê-los como se estivessem dissol- than e como apareceu, mas a tentar dar «conhecimento filosófico» deste
vidos. Fazer isto ajuda-nos a compreender o que são as qualidades da último para podermos compreender melhor as nossas obrigações P?lí-
natureza humana, e de que forma nos tornam aptos ou inaptos a viver ticas e as razões pelas quais devemos apoiar um Soberano efetivo
em sociedade civil, e ver como os homens devem estar de acordo entre quando essa Soberania ~xiste. . . . ,,
si se quiserem formar um estado com solidez (id.). A sua perspetiva é Perto do fim de Levzathan, Hobbes diz, «A filosofia e [ ... ] o Conhe-
que ver a sociedade civil como se estivesse dissolvida, ou dividida cimento adquirido pelo Raciocínio, da Maneira da Conceção de qual-
nos seus elementos, leva à noção do Estado de Natureza. Tendo esta quer coisa para as Propriedades, ou das Proprie.dades, para algum
noção, depois sugere o contrato social como modo de conceção da modo de Conceção possível do mesmo; para o fim de ser capaz de
unidade de um estado consolidado. Noções e princípios mecânicos de produzir, tanto quanto a matéria e a for~a humana pen~üt~m: tais
materialismo causal podem ter reforçado os raciocínios de Hobbes, e Efeitos, como a vida humana requer» (Levzathan, p. 367). A ideia e que
poderão até tê-lo levado a eles. Mas essa base mecânica não é claramente teríamos conhecimento filosófico de alguma coisa quando compreen-
essencial e não afeta o conteúdo dessas ideias. As noções de Estado demos como poderíamos criar a partir das suas partes as proprieda-
de Natureza e de Contrato Social mantêm-se por si próprias. E foram des dessa coisa enquanto tal. Nesse sentido, o objetivo de Hobbes em
abraçadas por inúmeros escritores que rejeitaram a noção de meca- Leviathan seria dar-nos conhecimento filosófico da sociedade civil.
nismo como de materialismo. Para o conseguir Hobbes considera a sociedade dividida, dissolvida
Em conclusão, vou discutir o sistema moral secular de Hobbes en- em elementos que a constituem, isto é, seres humanos num estado de
quanto essencialmente autónomo e independente de suposições teoló- natureza. Em seguida, examina ao pormenor como seria esse estado
gicas e de princípios de mecânica (materialismo). natural, dada a propensão e caraterísticas desses seres humanos, as
paixões ou desejos inatos que motivam as suas açõe~, ~o n:odo c~mo se
comportariam quando estão nesse estado. O º?Jehvo ~' entao, v~r
§ 3. INTERPRETAÇÕES DO ESTADO DE NATUREZA como a sociedade civil com o seu governo poderia ser criada e surgir,
dado o Estado de Natureza conforme foi descrito. De acordo com
E DO CONTRATO SOCIAL Hobbes, se conseguirmos explicar o modo como a sociedade civil e o
Soberano conseguiram aparecer a partir de um estado de naturez~,
Antes de abordar o problema de como poderemos interpretar o então temos conhecimento filosófico a seu respeito. Isto é, consegm-
contrato social, irei começar com a explicação que Hobbes dá do Estado
mos compreender a sociedade civil quando enten~ermos um mod?
de Natureza. Não devemos interpretá-lo como um estado real, nem possível da sua conceção que explica as suas propriedades reconheci-
das e observáveis. Sobre esta interpretação, a ideia de um Contrato
5 Thomas Hobbes, De Cive, ed. Sterling P. Lamrecht, Nova Iorque: Appleton-Century- Social apresenta uma forma na qual a sociedade civil poder.ia ter ~ido
-Crofts, 1949, pp. 10-11. Hobbes diz que parte da «própria matéria do governo civil» criada - não como realmente teve origem, mas como poderia ter tido.
e continua para «sua geração e forma, e os primeiros passos da justiça; pois tudo é Existem propriedades de sociedade reconhecidas e requisitos de so-
melhor compreendido através das suas causas constituintes». ciedade - por exemplo, os poderes necessários do Soberano, o facto

52 53
de que o Soberano deve ter determinados poderes para a sociedade ter em discórdia e guerra civil, apesar de numa sociedade «bem consoli-
coerência; essa é uma propriedade do grande Leviathan. Reconhecemos dada» ser muito improvável. Como o Estado de Natureza é na verdade
essas propriedades e explicamo-las como coisas que pessoas racionais um estado de guerra, a possibilidade constante de um Estado de
num estado natural considerariam essenciais para o Contrato Social Natureza fornece a todos razões suficientes para querer que um Sobe-
atingir a sua intenção de estabelecer paz e concórdia. Assim, o Contrato rano efetivo continue a existir. Todos temos motivos fortes para temer o
Social atribui estes poderes necessários ao Soberano. Hobbes considera colapso dos nossos acordos atuais, pensa Hobbes, e isto cria motivos
que tudo isto fornece conhecimento filosófico acerca da sociedade civil. suficientes para que todas as pessoas os apoiem. Assim, sobre esta inter-
Por isso, repete-se a ideia de que devemos considerar o Contrato pretação, o Estado de Natureza não é um estado de coisas do passado,
Social uma forma de reflexão acerca do modo como o estado de natu- ou com efeito uma condição real, mas uma possibilidade sempre presente
reza podia ser transformado em sociedade civil. Explicamos as proprie- a ser evitada.
dades atuais do estado, ou o grande Leviathan, e compreendemos os A segunda interpretação do contrato social é a seguinte: Suponhamos
motivos pelos quais o Soberano tem de ter os poderes que tem, perce- que são todos totalmente racionais e compreendem a condição humana
bendo porque é que pessoas racionais num estado natural concorda- tal como Hobbes a descreve. Vamos supor também que um Soberano
riam com o facto de o Soberano os ter. É assim que compreendemos efetivo existe agora com os poderes requeridos para manter os acor-
as propriedades do estado, desde o processo da sua conceção, e tam- dos atuais. Então Hobbes pensa que todos têm razões suficientes ba-
bém porque é que os seus poderes são o que são. Sobre a definição de seadas na sua própria autopreservação e interesses fundamentais para
conhecimento filosófico que depois fornece conhecimento filosófico entrar num contrato com todos no sentido de autorizar o Soberano a
do estado de natureza, ou do grande Leviathan. Trata-se de uma defi- continuar a exercer perpetuamente os seus poderes. Fazer parte de um
nição mais abrangente de filosofia ou do conhecimento filosófico que tal contrato é racional para todos; é (por assim dizer) coletivamente ra-
agora existe. Depois passou a incluir ciência, ou «filosofia natural» cional visto ser racional para cada um e para todos.
como era então chamada. Vendo nesta perspetiva, não precisamos de considerar o contrato
Passemos agora a uma segunda perspetiva de análise acerca do con- social concebido no Estado de Natureza. Por isso, não precisamos de
trato social de Hobbes. No capítulo 13 de Leviathan (p. 63), Hobbes reco- considerar se um contrato social é suficiente para transformar o estado
nhece a possível objeção, de que nunca houve um estado de natureza. natural em sociedade civil. (Por exemplo, como podemos ter a certeza
(«Nunca existiu essa época, nem condição de guerra como esta.») A isto de que as promessas das pessoas serão honradas?) Em vez disso, po-
responde dizendo que pelo menos Reis e Soberanos estão num demos considerar o contrato social um acordo que serve para assegurar
Estado de Natureza respeitando-se entre si: o Estado de Natureza é e tornar seguro um governo estável já existente. A questão de Hobbes
obtido entre Estados-nação. Além disso, indica que é suficiente para o é que dadas as condições normais de vida humana, e dado o perigo
seu argumento que o Estado de Natureza seja um estado que aparece- sempre presente de conflito civil e colapso no Estado de Natureza, cada
ria agora se não houvesse nenhuma autoridade soberana para intimi- pessoa racional tem interesses suficientes e fundamentais em apoiar
dar o povo6. uni Soberano efetivo. Perante este interesse, cada pessoa racional faria
Deste modo, o estado natural é uma condição que existiria sempre parte do Contrato Social quando surgisse a ocasião.
se o exercício efetivo de soberania se dividisse. Assim concebido, o É caso para perguntar: tem de haver um verdadeiro contrato social
Estado de Natureza é uma possibilidade sempre presente de degeneração na opinião de Hobbes? Não bastará pensar no contrato social desta for-
ma hipotética, em que todos os membros de uma sociedade existente
com um Soberano efetivo teriam razões suficientes para fazer parte de
6 «Poder-se-á porventura pensar que nunca existiu essa época, nem condição de guerra
como esta; e acredito que nunca foi de um modo geral assim, em todo o mundo: mas
um acordo para lhe dar autorização, etc.? Enquanto puramente hipo-
há muitos lugares, onde se vive assim agora [... ] Contudo, é possível percecionar tética, esta sugestão diz respeito ao próprio Contrato Social, bem como
que modo de vida haveria, aonde não havia Poder comum para recear; pelo modo ao Estado de Natureza: isto é, como acordo teríamos razões suficientes
de vida, que os homens que terão vivido no início sob um governo pacífico usaram para participar nele se fosse possível, etc. Mas certamente Hobbes não
para degenerar numa guerra civil.» Leviathan, p. 63. explicita a sua doutrina de Contrato Social desta forma. E devemos

54 55
r' 11''1.11\ f'
'i'

1 i

ser cautelosos com a aplicação de palavras em seu nome. No entanto, Digo «poderia aparecer», ou como poderia ter surgido, e não como
poder-se-á considerar a questão da possibilidade desta interpretação realmente aconteceu. Queria dar-nos conhecimento filosófico do estado,
hipotética do Contrato Social ser suficiente para expressar o que é dissolvendo-o em partes e representando seres humanos tal como são
essencial para a visão de Hobbes. No fim de contas, o Contrato Social, psicologicamente constituídos, e depois mostrando como o estado de
quando entendido deste modo, dá efetivamente uma conceção de natureza poderia ser transformado no grande Leviathan, ou numa so-
unidade social e explica como a sociedade civil poderia manter-se unida ciedade de pessoas sob um estado. Finalmente, uma terceira interpre-
e porque é que havendo um Soberano efetivo os cidadãos poderiam tação possível que sugiro é a seguinte: suponhamos que o grande
apoiar acordos atuais, etc. Apesar de poder não explicar o modo como Leviathan já existe realmente. Então devemos pensar no estado de natu-
a sociedade civil pode ser gerada a partir das suas partes, poderá expli- reza como uma possibilidade sempre presente que pode surgir se o
car porque é que não degenera de volta às suas partes. O Contrato Social Soberano efetivo deixasse de o ser. Dada essa possibilidade, e tendo
fornece um ponto de vista para mostrar os motivos pelos quais todas as em conta o que ele considera ser os interesses fundamentais de todos
pessoas têm um interesse primordial e fundamental em apoiar um em autopreservação, os seus «afetos conjugais» e o seu desejo pelos
Soberano efetivo. Porque é que para os objetivos de Hobbes não é meios de uma vida confortável, Hobbes explica porque é que todas as
suficiente considerar o contrato social desta forma? pessoas têm razões suficientes e primordiais para querer que o Le-
Isto depende, obviamente, dos objetivos que ele tinha. Julgo que viathan continue a existir e a ser efetivo. Sobre esta interpretação, está a
tencionava apresentar um argumento filosófico convincente para a tentar pressionar-nos a aceitar um Soberano efetivo existente. Po-
conclusão de que um Soberano forte e efetivo - com todos os poderes demos compreender esta intenção à luz do clima dos tempos e da Guerra
que Hobbes atribui a um Soberano - é o único remédio para o grande Civil inglesa.
mal da guerra civil que todos devem querer evitar por ser contrária Estas duas interpretações são sugestões de como compreender o
aos seus interesses fundamentais. Hobbes quer convencer-nos que contrato social. Sugiro-as com alguma hesitação. Nunca estou inteira-
a existência desse Soberano fornece o único caminho para a paz e a mente satisfeito com a afirmação de que o que digo sobre estes livros
concórdia civil. Perante esta conclusão, e visto que a Lei Fundamental é correto. Trata-se de uma visão muito vasta e complicada e há várias
da Natureza é «procurar Paz, e segui-la» (Leviathan, p. 64) e que a hipóteses de leitura. Devemos suspeitar de qualquer explicação opor-
segunda Lei da Natureza é «ficar satisfeito com tanta liberdade contra tuna de como supostamente deva ser considerada.
outros homens, como [nós] deixaríamos outros homens contra [nós]»
todos temos a obrigação (não baseada no Contrato Social) de obede-
cer às leis do Soberano. O foco do pensamento de Hobbes é o conflito HOBBES PALESTRAI: APÊNDICE A
e a luta civil do seu tempo; é isto que o preocupa de imediato. Ele
julga que a compreensão dos poderes necessários do Soberano e uma FICHA DE TRABALHO: CARATERÍSTICAS DA NATUREZA HUMANA
QUE TORNAM INSTÁVEL O ESTADO DE NATUREZA
visão clara das Leis de Natureza baseadas nos nossos interesses fun-
damentais podem ajudar a resolver esta situação. O Contrato Social,
interpretado de modo puramente hipotético, ajuda Hobbes a formular A. Duas observações prévias
a sua argumentação. Para este propósito, a interpretação hipotética 1. Irei apenas discutir Leviathan e nenhum outro trabalho de Hobbes;
parece realmente suficiente. e parto do princípio que a sua doutrina do Contrato Social tal como é
Resumindo, há três interpretações possíveis em torno do contrato apresentada neste trabalho pode ser totalmente compreendida inde-
social. Primeiro, é uma explicação do que realmente aconteceu e pendentemente de qualquer perspetiva teológica ou religiosa. Nem a
de como o estado estava efetivamente formado. Esta não é a intenção estrutura formal nem o conteúdo material da doutrina de Hobbes é
de Hobbes tal como o interpreto. Uma segunda e mais plausível inter- afetada por estas noções de base. Isto é obviamente questionável; e não
pretação, sobre a qual há muitas evidências no texto, é que ele estava a discuto a questão. Dever-se-á considerar cuidadosamente os capítulos
tentar dar uma explicação filosófica de como o estado poderia aparecer. 12 e 31.

56 57
2. Também colocarei de lado o materialismo de Hobbes e as suas xões tentam-nos para ações altamente perigosas, tanto para
outras teses metafísicas salvo na medida em que observações ocasio- eles como para outros.
nais possam ajudar a clarificar o seu Contrato Social e como pode ser ii) Não têm, aparentemente, nenhuns desejos originais ou natu-
constituído. rais de associação, ou formas naturais de simpatia. O que
aparenta ser é que estes sentimentos derivam da nossa auto-
B. Duas formas de considerar o Estado de Natureza em Hobbes preocupação. Por outro lado, não nos atribui malícia, isto é,
não acha que sejamos capazes de gostar de ver os outros
1. Primeiro, como o estado de coisas que surgiria se não houvesse
sofrer só por isso mesmo.
autoridade política efetiva, ou Soberano, com todos os poderes que,
na perspetiva de Hobbes, é necessário que um Soberano efetivo
5. Defeitos e tendências do raciocínio humano:
tenha.
2. Como ponto de vista que as pessoas em sociedade podem assu- i) Os que surgem por falta de um método filosófico (científico)
mir e do qual cada uma pode compreender porque é que seria racio- adequado: 5: 20-21. Assinale-se aqui o ataque de Hobbes às
nal estabelecer um acordo com cada uma das outras pessoas para Escolas (Aristóteles via escolástica).
estabelecer um Soberano efetivo (como Hobbes o descreve). Neste ii) A tendência do raciocínio humano, mesmo quando, pre-
sentido o Contrato Social é coletivamente racional; do ponto de vista sumivelmente, um filósofo apropriado é conhecido, é ser
do Estado de Natureza, as condições que refletem caraterísticas per- distorcida e minada pela nossa propensão ao orgulho e van-
manentes (e por isso presentes) da natureza humana, cada membro glória: 17: 86-87.
da sociedade tem agora razões suficientes para querer que o Soberano iii) A natureza frágil da razão prática quando é relativa à conduta
efetivo continue a existir e, portanto, assegurar a estabilidade e viabi- de seres humanos em grupos e às instituições sociais adequa-
lidade de instituições existentes. das. Esta forma de razão prática é frágil porque Hobbes julga
que se lhe deve dar uma base convencionalista. Isto é, todos
C. Desestabilizando caraterísticas da natureza humana (quando juntas devem acordar quem é que decide o que é para o bem comum
num Estado de Natureza) e todos devem obedecer às decisões desta pessoa. Não há
1. Os seres humanos são suficientemente iguais em dons naturais nenhuma possibilidade de todos reconhecerem livremente
e poderes mentais (incluindo a prudência), e também suficiente- pelo exercício da razão o que é certo e errado, ou para o bem
mente vulneráveis à hostilidade entre eles, para dar lugar ao comum, e obedecerem a este conhecimento. A cooperação
medo e à insegurança. 13: 60-62. social para o bem comum requer um Soberano efetivo.
2. As necessidades e os desejos humanos são tais que, juntamente
com a escassez de meios para os satisfazer, as pessoas devem
encontrar-se a competir umas com as outras. 13: 60-62. HOBBES PALESTRAI: APÊNDICE B
3. A psicologia humana é de diferentes maneiras centrada e con-
centrada em si própria e quando as pessoas pensam com cau- [A versão desta palestra de 1978 de Rawls continha a seguinte dis-
tela todas tendem a dar prioridade à sua própria preservação e cussão, que suplementa a secção 2, «O Moralismo Secular de Hob-
segurança, e a ganhar meios para uma vida confortável. bes», pertencente à palestra de 1983. - Ed.]
4. Os seres humanos são de várias formas inaptos para uma asso- Simplificações: Proponho fazer duas simplificações na minha dis-
ciação pacífica em sociedade: cussão acerca de Hobbes:

i) Têm uma tendência para o orgulho e a vanglória, cuja asso- 1. Primeiro, irei assumir que podemos considerar que a estrutura
ciação com outros desperta o que é irracional. Isto é, esta forma essencial e o conteúdo da filosofia política de Hobbes (enquanto
tendência leva-os muitas vezes a agir contrariamente aos conceção de um Contrato Social) se dirigem a seres humanos racio-
princípios da razão correta (as Leis da Natureza), e estas pai- nais que são capazes de compreender o seu sentido e interpretação

58 59
através do uso correto da sua razão natural. Assim, suponho que a Não há nenhuma razão imediata, contudo, para que a visão de
visão de Hobbes é totalmente inteligível, no que diz respeito à sua Hobbes não possa ser complementada por doutrinas teológicas. Mas se
estrutura e conteúdo no âmbito de uma visão secular por oposição a tais suposições forem introduzidas, existem duas possibilidades:
uma teológica ou religiosa.
i) O primeiro caso é o que se segue: quando estas doutrinas são
Deste modo, vou pôr de lado, em grande parte, a questão contro-
versa da interpretação de Hobbes que é levantada pela tese de Taylor- associadas ao sistema de estrutura formal e conteúdo material as
-Warrender. Esta última diz que a explicação de Hobbes acerca da conclusões retiradas não são inteiramente compatíveis com as con-
autoridade e obrigação políticas está no fundo ligada a leis naturais clusões retiradas apenas do sistema secular. (Isto acontecendo, as
enquanto leis de Deus, que tem autoridade legítima sobre nós7. condições materiais do sistema não seriam independentes (num
Por caráter secular da filosofia política de Hobbes pretendo dizer sentido adequadamente forte) da doutrina teológica. A tese (b)
aproximadamente o seguinte: mas não a (a) iria precisar de revisão.)
ii) O segundo caso é o seguinte: quando as doutrinas teológicas são
a) A estrutura formal de conceitos e definições da explicação de associadas as conclusões retiradas são as mesmas das do sistema
Hobbes do Soberano, etc., de direitos e liberdades, etc., é inde- puramente secular (sem pressuposições teológicas). Isto aconte-
pendente das pressuposições teológicas. Esta estrutura mantém-se cendo, tanto (a) como (b) manter-se-iam (cf. o que Hobbes diz:
por si própria. Por exemplo, enquanto definição de direito natu- Leviathan, Livro I: cap. 12, 96-97; I: 15, último parágrafo, pp. 57, 80).
ral, podemos dizer:
Neste momento, a questão importante é que Hobbes aceita o caso
a tem o direito natural de fazer x df a está a fazer x de acordo
=
(ii). No sistema secular as conclusões retiradas dependem do que se
com (inicialmente, por exemplo, antes de acontecimentos ou requer das instituições, etc., para a paz e concórdia das pessoas que
ações que limitem o direito) a razão correcta8. vivem em sociedade. No sistema teológico as conclusões dependem
não só do que é requerido para a paz e concórdia mas também do que
b) O conteúdo material da conceção política de Hobbes e da sua é necessário para a salvação humana. O primeiro caso (i) manter-se-ia,
filosofia moral de apoio é de igual modo independente das então, apenas se o que é necessário para a paz e concórdia na socie-
pressuposições teológicas. Este conteúdo também se mantém dade for diferente do que é necessário para a salvação.
por si próprio e pode ser entendido pela razão natural dada a Creio que Hobbes negaria a verdade de qualquer doutrina teoló-
explicação psicológica da natureza humana. Por exemplo, con- gica que tornasse os pré-requisitos da salvação incompatíveis com con-
sidere-se a definição material de direito natural: dições da preservação de pessoas em grupos. Uma visão religiosa que
as declara incompatíveis (segundo Hobbes) é uma superstição e como
a tem o direito natural de fazer x =(material df) a está a fazer x
tal irracional. Baseia-se num medo irracional resultante da falta de
é (conscientemente acreditado por a para ser) vantajoso ou
conhecimento verdadeiro das causas naturais das coisas. (Ver a sua
necessário para a preservação de a.
inteira discussão das sementes naturais de religião em I: 12 - «De
Religião».)
7 A. E. Taylor, «The Ethical Doctrine of Hobbes», Philosophy 53, 1938; reimpresso em No capítulo 12 do Livro I, Hobbes analisa como «OS primeiros Fun-
Hobbes Studies, ed. Keith Brown, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1965; dadores e Legisladores de Estados entre os Pagãos, cujas finalidades
e Howard Warrender, The Political Philosophy of Hobbes, Oxford: Clarendon Press, eram só para manter as pessoas obedientes, e a paz» se esforçavam
1957. O ponto de vista que sigo aproxima-se do de David Gauthier, The Logic of Le- «para fazer crer que as mesmas coisas eram desagradáveis para os
viathan, Oxford: Clarendon Press, 1969.
Deuses, que eram proibidas pelas Leis» (Leviathan, p. 57). Tudo leva a
8 [«= df» é um padrão usado para introduzir equivalências de definição; devia ser en-
tendido como «define-se para significar». A frase de Rawls acima transcrita deve ser supor que Hobbes aprova esta política do antigo mundo (dos Gregos e
lida da seguinte forma: «'a tem o direito natural de fazer X» define-se para significar: Romanos) de usar a religião para fortalecer as condições necessárias à
'a está a fazer x de acordo [... ] com a razão correta.'» - Ed.] preservação da paz e concórdia sociais. Neste sentido, a dou!rina de

60 61
Hobbes é secular. (Ver também II: 31, 528 e segs. a respeito de obediên- Irei mais ou menos pôr de lado o resto da filosofia de Hobbes, e até
cia às Leis da Natureza enquanto culto) [1.ª edição, 192 e segs.]. que ponto a filosofia moral e política que defende se adequa a sua
É preciso cautela, todavia, para não questionar a faceta de Cristão metafísica global.
crente e sincero de Hobbes (tanto quanto se sabe). Devemos interpretar
a sua Cristandade para que não se torne incompatível com a estrutura
secular e o conteúdo da sua conceção moral e política. Em conclusão, HOBBES PALESTRAI: APÊNDICE C
toda a ordem da exposição de Hobbes parece sugerir que a estrutura e
conteúdos seculares da sua doutrina são considerados básicos por ele. Se PASSAGENS RELEVANTES PARA O IDEAL DE NATUREZAS GENEROSAS
as pressuposições teológicas fossem fundamentais, ele teria, aparente- [Referências à ed. Head]
mente, começado com elas.
Dito isto, parece correto focarmo-nos na visão de Hobbes dirigida A. Possibilidade de afetos
a seres humanos racionais, etc. Hobbes afirma a possibilidade de benevolência e parece atribuir ao
2. A segunda simplificação (sobre a qual serei breve) é a que pode homem em geral; quanto a homens, geralmente é «bom coração:> (26 ).
(talvez) interpretar o método de Hobbes no Leviathan (e nas suas Reconhece várias paixões de amor, incluindo amor por determinadas
outras obras políticas) como a aplicação a uma conceção moral e polí- pessoas (26). .
tica de uma doutrina mecanística geral das operações da natureza. Reconhece afetos conjugais, em segundo lugar na ordem de impor-
Muitas vezes se considera que Hobbes tenta elaborar uma ciência uni- tância depois de autopreservação e antes de riquezas e meios de sobre-
ficada (unificada não só na metodologia geral mas também nos seus
primeiros princípios). vivência: 179.
Assim, podíamos interpretá-lo como precursor do estudo de cor-
B. Relacionado com o anterior: não é para tirar prazer com as desgraças
pos e seus movimentos em geral (explicado de algum modo mecanís-
dos outros (disse relativamente a crueldade): 28.
tico) e depois tomando o estudo daquele tipo particular de corpo - o
dos seres humanos individuais - para finalmente começar com o de A curiosidade como deleite na criação contínua de conhecimento;
corpos artificiais, nomeadamente governos civis que são obra hu- distingue o homem dos animais: 26, cf. 51, 52.
mana. São o resultado do artifício humano. O Leviathan é o Estado, um
artifício humano. C. Atitude generosa expressa nas virtudes
Ao estudar corpos artificiais - estados e governos cívicos, etc. - o
método de Hobbes é observar as partes destes corpos que ele toma por 1. Sobre o «gosto» de justiça: quando um homem se recusa a ser
seres humanos (indivíduos com faculdades e desejos, etc.). Em De Cive, reconhecido por fraude e quebra de promessa para contentamento da
diz que tudo é melhor entendido através das suas causas constituintes e sua vida: 74.
ilustra esta observação notando que compreendemos o funcionamento 2. Para grandes mentes um dos trabalhos ~dequados /é ajudar as
de um relógio ao perceber como as suas várias partes são colocadas jun- pessoas, e libertá-las do escárnio dos outros; tais mentes so se compa-
tas e trabalham mecanicamente. De forma semelhante, para compreen- ram com os mais capazes: 27.
der um estado, não é realmente necessário separá-lo (até porque seria 3. Duas formas para assegurar que os homens honrem o se~ .com-
quase impossível, ou poderia ser feito a custos muito elevados), mas promisso: medo das consequências pela sua quebra; ou: «glo:1~ ou
devemos considerá-lo como se estivesse dissolvido: Estado de Natureza. orgulho na aparência de não precisar de o quebrar». Ma~ «este ultimo
Ou seja, queremos perceber o que são as caraterísticas dos seres é uma Generosidade raramente encontrada para ser presumida [... ]» (70).
humanos e de que forma estas caraterísticas (qualidades, etc.) tornam 4. A honra de grandes pessoas deve ser valorizada pela sua bene-
as pessoas aptas ou inaptas para um governo civil. Também queremos ficência, e as ajudas que prestam a pessoas de posições in~eri~re~; ou
compreender como as pessoas devem estar de acordo entre si se quise- nem por isso. A grandiosidade torna piores as nossas v10lencias e
rem realizar a sua intenção e objetivo de se tornarem num estado con- opressões, pois precisamos menos de as praticar: cap. 30 (180).
solidado (EW, p. xiv; ed. Lamprecht, pp. 10 e segs.).

62 63
HOBBES II

A NATUREZA HUMANA
E O ESTADO DE NATUREZA

§ 1. NOTAS PRELIMINARES

Hobbes defendia a tese geral, muito importante para a sua visão,


de que um estado natural tende a passar muito rapidamente para um
estado de guerra. Fala muitas vezes de um estado de natureza (que é
um estado em que não há nenhum Soberano efetivo para intimidar os
homens e manter as suas paixões na ordem) como sendo essencial-
mente um estado de guerra. É importante notar aqui que, para Hobbes,
um estado de guerra consiste «não apenas na batalha, ou no ato de
lutar [ ... ] mas, além disso, na disposição conhecida, durante todo o
tempo de que não há certezas do contrário» (Leviathan, p. 62). O que
eu vou chamar de «Tese de Hobbes» é a tese de que um estado natu-
ral é, essencialmente e para todos os propósitos práticos, um estado
de guerra. Porque é que Hobbes pensa desta forma?
Hobbes observa que nos pode parecer estranho «que a Natureza
devia assim dissociar-se, e tornar os homens aptos a invadir e a des-
truírem-se uns aos outros» (isto é, pode parecer-nos estranho que o
Estado de Natureza se torne tão rapidamente num Estado de Guerra).
Mas, diz que conseguimos compreender porque é que isto acontece
através do que ele chama uma «Inferência, feita a partir das Paixões»
(Leviathan, p. 62). Podemos confirmar que fazemos esta inferência
através das paixões olhando para a experiência real do quotidiano,
reparando na nossa conduta como fazemos agora, na sociedade civil,
quando o Soberano efetivamente existe e há leis e oficiais ptJ_blicos

65
[
I'
armados. Ele diz que quando viajamos armamo-nos, quando vamos
§ 2. PRINCIPAIS CARATERÍSTICAS
dormir trancamos a porta, mesmo em nossa casa trancamos o nosso
peito, e assim sucessivamente (Leviathan, p. 62). Com estas ações acusa-
DA NATUREZA HUMANA
mo-nos uns aos outros e mostramos que aceitamos, por assim dizer, Vou mencionar e comentar quatro caraterísticas da natureza hu-
esta inferência a partir das paixões, a qual diz: Se um estado de natureza mana tal como Hobbes as carateriza e, em seguida, abordar rapida-
subsistir, então um estado de guerra também subsistirá, tendo em conta todos mente o argumento básico do que anteriormente designei de «Tese de
os propósitos práticos. Hobbes».
Assim, o que Hobbes diz, creio eu, é que se entendermos a natu- A primeira caraterística é o facto da igual?-ade humana em do~s
reza humana deste modo, podemos inferir que o Estado de Natureza naturais, robustez corporal e rapidez mental. E claro que ~ob?es nao
se torna num Estado de Guerra. O que a natureza é Hobbes assume considerou estes dons naturais literal ou rigorosamente 1gua1s; mas,
ser demonstrado pelas caraterísticas, capacidades, e desejos essenciais defende que são suficientemente iguais. Assim, até o(s) mais fraco(~)
bem como outras paixões de pessoas tal como as observamos agora na em robustez de corpo tem ainda força suficiente para matar o(s) mais
sociedade civil; e, assim, supõe que, para os propósitos da sua dou- forte(s), quer por meios secretos ou por conluio com outros que são
trina política, estas caraterísticas essenciais da natureza humana são de forma semelhante ameaçados por este(s) último(s ). Assinale-se que
mais ou menos atribuídas ou fixas. Hobbes não nega que as institui- «suficientemente iguais» não se traduz em igualdade rigorosa, mas
ções sociais, a educação e a cultura podem mudar de forma significa- suficientemente igual para sustentar esta inferência das paixões, em
tiva as nossas paixões e alterar os nossos objetivos, pelos menos em que as pessoas se sentem ameaçadas e são levadas a ata~arem-se umas
alguns tipos de casos muito importantes. Mas supõe que, para os pro- às outras. Isto é suficiente para dar lugar aos medos e pengos do estado
pósitos da sua doutrina política, isto é, do que eu chamo o seu sis- de natureza. Repare-se também que Hobbes pensa que em rapi~ez
tema moral secular, os principais contornos e caraterísticas essenciais mental as pessoas são ainda mais identicamente dotadas, em mmtos
da natureza humana são mais ou menos fixos ou atribuídos. A existên- aspetos, do que em robustez corporal. Os atributos aqui em. questão
cia de instituições sociais e, em particular, de um Soberano efetivo são a perspicácia e a prudência, que Hobbes pensa terem denvado da
muda as nossas circunstâncias objetivas, mudando, portanto, o que é experiência; e aqui todos os indivíduos têm, segundo ele, a mesma
prudente e racional fazermos. Por exemplo, com o Soberano estamos oportunidade de adquirir experiência e aprender. "
agora protegidos e não temos nenhuma razão para não honrar os nos- Repito, Hobbes não é da opinião de que todas as pessoas tem a
sos compromissos. Supondo que o Soberano existe efetivamente, mesma rapidez mental. Mas as diferenças surgem, segundo ele, das
temos razões que não tínhamos anteriormente para honrar os nossos divergências em costumes, educação e constituição corporal. que, p~r
compromissos, cumprir as nossas promessas, e assim sucessivamente. seu turno, causam discrepâncias nas paixões, isto é, no deseJO por n-
Contudo, não se pensa nas instituições sociais como se mudassem os quezas, glória, honra, conhecimento, e assim sucessiv~mente. Na
aspetos mais essenciais da nossa natureza. Elas não mudam os nossos doutrina política, Hobbes tende a reduzir todos estes deseJOS qu.e cau-
interesses mais fundamentais em domínios como autopreservação, sam diferença de perspicácia num só: nomeadamente, o deseJO i:or
afetos conjugais e meios de vida confortável. Assim, considerando «poder após poder», em que poder neste caso repres~nta os ?1-e1os
esses elementos mais ou menos fixos, para o propósito da sua dou- para atingir o nosso bem ou o objeto dos nossos deseJOS (Levzatha_n,
pp. 35, 41). Diferentes tipos de coisas, os que cr~mos que nos far.ao
trina política, o que Hobbes faz é inferir como seria um estado de natu-
felizes, são formas de poder para Hobbes, no sentido em que nos ªJU-
reza, vendo as pessoas como elas são, ou como pensa que são;
dam a atingir o nosso bem. São os diferentes pontos fortes dos desejos
e descreve um estado natural como um estado de «medo contínuo e
das pessoas por poder que determinam, na sua opinião, a rapidez
perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitário, pobre, mau,
mental. Sendo estas diferenças suficientemente iguais, também o é a sua
bruto e baixo» (Leviathan, p. 62), mas provavelmente ainda durante
rapidez mental. Mais uma vez afirmo, suficientemente igual significa
muito tempo sob estas condições. De que caraterísticas de seres humanos suficientemente igual para tornar o estado de natureza num estado de
(reais) é feita esta inferência das paixões?
guerra.

1;·1.il
I'
66 67 11

!:j
'I
,1
i:I
~l l'i

Uma última observação relativa a dons de igualdade é que Hobbes quanto o que desejam, não restará nada para nós. Por isso, num estado
presume que se, de facto, houvesse desigualdade natural substancial, de natureza devemos estar prontos para demarcar e defender as nos-
de modo a que uma pessoa ou algumas pessoas conseguissem domi- sas reivindicações.
nar as restantes, então essa pessoa governaria tão simplesmente. Diz ele A sociedade civil, segundo Hobbes, não elimina esta relação de
que governariam por direito natural. Ora, se isto parece irreal, e tendo escassez. Ele acredita, ou pelo menos presume, que a escassez é uma
em conta que poderiam ficar unidos e ter a mesma opinião, então um caraterística permanente da vida humana. É relativa e pode ser mais
grupo dominante de pessoas também poderia governar. Hobbes fala ou menos urgente, de modo a que as necessidades e os desejos que
disso ao discutir os direitos pelos quais Deus reina sobre nós. Deus permanecem por satisfazer na sociedade civil são menos prementes,
não detém este direito por virtude do Direito de Criação, que Locke, menos urgentes do que aqueles que permanecem por satisfazer num
que iremos discutir mais tarde, assume como princípio moral. Isto é, estado de natureza. Assim, o estado civil aonde exista um Soberano
se Deus nos criou, como Locke acredita, então, sendo criados por efetivo é mais agradável.
Deus, temos a obrigação moral de obedecer, a qual depende do prin- Hobbes diz no fim do capítulo xm que «As Paixões que dirigem o
cípio de que tendo A criado B então B tem uma obrigação para com homem à Paz, são o Medo da Morte; o Desejo de tais coisas que são
A. Em Hobbes não encontramos esse Direito de Criação. Não encon- tão necessárias para uma vida confortável; e a Esperança através da
tramos uma obrigação para com Deus baseada tanto na Sua criação sua Indústria de as obter» (Leviathan, p. 63). A existência de um Sobe-
como na nossa gratidão, mas simplesmente no Seu poder irresistível. rano efetivo retira o medo de morte violenta; e através do estabeleci-
Hobbes diz, «Enquanto se tivesse havido algum homem de Poder mento das condições em que a indústria é recompensada e segura, a
Irresistível; não tinha havido nenhuma razão para ele não ter gover- existência do Soberano estimula os meios para uma vida confortável.
nado através daquele Poder [ ... ] de acordo com a sua própria discri- Sobre isto, Hobbes diz no início do capítulo xxx que o fim, ou propó-
ção. Portanto, para aqueles cujo Poder é irresistível, o domínio de sito, que é confiado ao cargo do Soberano com poder soberano é a
todos os homens é aceite naturalmente pela sua excelência de Poder; «procuração da segurança do povo; à qual ele [o Soberano] está obri-
e consequentemente é desse Poder, que o Reino sobre os homens [ ... ] gado pela Lei da Natureza, e disso prestar contas a Deus, o Autor dessa
pertencia Naturalmente a Deus Todo-Poderoso; não como Criador, e Lei, e mais ninguém senão a ele. Mas, por Segurança entenda-se aqui
Gracioso, mas como Omnipotente» (Leviathan, p. 187). não uma mera Preservação, mas também todos os outros Prazeres da
O que Hobbes tem de mostrar, então, é que dado o estado de igual- vida, que qualquer homem por legítima Iniciativa, sem causar perigo,
dade, entre outras coisas, no estado de natureza, a tendência é cami- ou danos à Commonwealth, irá adquirir para si próprio» (Leviathan,
nhar para um estado de guerra; e para evitar que isso aconteça o grande p. 175).
Leviathan com o seu poder comum efetivo ou soberano torna-se ne- Assim sendo, uma coisa que a sociedade civil faz, e uma coisa que
cessário. faz dela coletivamente racional, é que ela apresenta condições
A segunda caraterística ou elemento da natureza humana tem a que facilitam a criação de frutos do trabalho, ou de meios para uma
ver com o facto de que a escassez de recursos e a natureza das nossas vida confortável. Isto realmente altera, ou torna menos urgente, a
necessidades introduz competição. Podemos explicar da seguinte forma: escassez de recursos naturais. Ela ainda existe. O Soberano não a eli-
Perante a natureza das necessidades e desejos das pessoas, e dada a mina, mas produz as condições objetivas, na opinião de Hobbes, para
tendência de estes últimos mudarem e expandirem (apesar de não ne- o exercício da legítima iniciativa e para a tomada de propriedade, tor-
cessariamente sem limites), há uma tendência permanente para estas nando-a segura, e assim sucessivamente.
necessidades e desejos requererem mais para a sua realização do que A terceira caraterística da natureza humana que apoia a inferência a
aquilo que a natureza disponibiliza. Isto contribui para uma escassez partir das paixões, a seu ver, é o facto de a constituição psicológica
de recursos naturais, que é, obviamente, uma relação em que a quan- dos seres humanos se centrar larga, ou predominantemente, em si
tidade, ou conjunto total, de necessidades e desejos é maior do que a própria. Em particular, quando as pessoas deliberam sobre assuntos
quantidade de recursos disponíveis. Hobbes acredita que esta escassez políticos e sociais básicos, tendem a dar prioridade nos seus pensa-
cria competição entre as pessoas. Se esperarmos que outros levem tudo mentos e ações à sua própria preservação e segurança, e às das suas

68 69
famílias, e, usando esta expressão outra vez, aos «meios para uma se Gonseguirmos, temos de basear a unidade da sociedade civil. Com
vida confortável». Pode ser difícil encontrar este aspeto diretamente afinidades relativamente a determinados interesses fundamentais, o
em Hobbes, e vale a pena passar algum tempo a fazê-lo. Ele não diz seu ponto de vista defenderia, portanto, a radicalização das institui-
em Leviathan que as pessoas são egoístas psicológicos, ou que perse- ções políticas: primeiro, no nosso interesse em preservar a nossa vida,
guem ou só se preocupam com o seu próprio bem. Chega realmente a em seguida no de assegurar o bem daqueles que nos são próximos
dizer no capítulo VI que somos capazes de benevolência; de desejarmos (o que Hobbes chama de «afeto conjugal»), e, finalmente, no de
o bem ao outro, ou de boa vontade; e de caridade (Leviathan, p. 26). adquirir os meios para uma vida confortável (Leviathan, p. 179). A esta
Ele diz que somos capazes de amar as pessoas e no capítulo xxx clas- lista de três itens chamo de «interesses fundamentais» naquela ordem de
sifica afetos conjugais em segundo lugar de importância depois da importância. E é a esses que ele recorre. Dizer que atribuímos muito
nossa própria autopreservação e antes dos meios para uma vida con- peso a estes interesses em assuntos políticos, e que a explicação da socie-
fortável (Leviathan, p. 179). Deste modo, julga com efeito que as pes- dade civil deveria focar-se neles, não é negar que somos capazes de
soas são capazes de benevolência e de afeto genuíno para com os outros desejos e, frequentemente, agimos de acordo com os mesmos
outros, ou de mostrar preocupação pelo seu bem. Também diz noutras circunstâncias. Provavelmente, nessas outras circunstâncias
que algumas pessoas são virtuosas, ou que são capazes de virtude - poderão ser extremamente fortes.
que elas fazem o que é justo, nobre ou digno porque querem ser, e ser Assim, parto do princípio que a explicação amplamente egoísta,
reconhecidas como, alguém que age daquela forma. Um exemplo ou focada em si própria, de Hobbes relativamente à natureza humana
importante disto encontra-se no capítulo xv, onde Hobbes escreve enfatiza, com efeito, os propósitos de uma conceção política. Trata-se
sobre a virtude da justiça e da forma de agir em conformidade com de realçar o desejo pelo poder, em que o poder de uma pessoa está
ela. Equaciona justiça com cumprimento de promessas, honrando os definido como os meios atuais para obter no futuro um certo bem
nossos compromissos, e diz, «0 que atribui às Ações humanas o pra- aparente (Leviathan, p. 41). Estes meios incluem todo o tipo de coisas.
zer da Justiça, é uma certa Nobreza ou Ousadia (raramente encon- Incluem faculdades naturais do corpo ou da mente, ou coisas que são
trada) que um homem se recusa observar para o contentamento da adquiridas por essas mesmas faculdades. Estas últimas incluem
sua vida, para o engano ou quebra de promessa» (Leviathan, p. 74). riquezas, reputações; até chegam a incluir «Amigos, e a função secreta
Esta é uma afirmação importante. Há muitas outras em Leviathan, de Deus, a que os homens chamam de Boa Sorte» (Leviathan, p. 41). Não
onde Hobbes afirma claramente que temos a capacidade de agir justa- é de admirar, portanto, com esta definição abrangente de «poder»,
mente por si só. Ele não nega, portanto, essa capacidade, nem sequer que o desejemos ter.
que somos capazes de benevolência e afeto. Muitas vezes, contudo, O peso que Hobbes atribui à nossa autopreservação na sua teoria
parece fazê-lo. Poder-se-á dizer, talvez, que os seus pontos de vista são política é usado por ele para explicar os motivos pelos quais determi-
inconsistentes quando rigorosamente lidos. Mas penso que é melhor nados direitos, na sua opinião, são inalienáveis. Ele diz que ninguém
dizer que realça determinados aspetos da natureza humana em formas pode ser entendido deliberada e intencionalmente a fazer alguma coisa
que se adequam aos seus propósitos, ou seja, à sua doutrina política. contrária à sua autopreservação. Os contratos (a transferência ou re-
Ele quer descrever o que mantém a sociedade civil junta e explicar o núncia de direitos a favor de outro direito ou bem) são deliberados, atos
motivo pelo qual um Soberano efetivo é necessário à paz e concórdia. voluntários, e como tal, diz Hobbes, devem ter como objeto algum
Preocupa-se principalmente com política, com questões políticas, e bem para o agente. E continua dizendo, «Por isso há alguns Direitos,
com tipos básicos de estruturas institucionais de governação. que nenhum homem pode ser compreendido por quaisquer palavras,
A política, obviamente, só faz parte da conduta humana; e Hobbes ou outros sinais, de ter abandonado, ou transferido». Dá como exem-
não precisa de negar que podemos ser, e muitas vezes somos, benevo- plo o direito a resistir àqueles que realmente nos agridem. E diz, «E fi-
lentes, e que somos capazes de virtudes de justiça e fidelidade, e assim nalmente o motivo, e fim para o qual esta renúncia, e transferência de
sucessivamente. A sua questão é que uma pessoa não devia confiar Direito é introduzida, não é nada mais senão a segurança da pessoa
nestas capacidades humanas tendo como base a sociedade civil e a de um homem, na sua vida, e no processo de assim a preservar, para
unidade social. Isto é, há outros interesses fundamentais sobre os quais, não se cansar dela. E assim, se um homem, por palavras, ou .outros

70 71
sinais, parece despojar-se do Fim, para o qual aqueles sinais estavam ses fundamentais em autopreservação, afetos conjugais, e nos meios
destinados, ele não deve ser entendido como se fosse isso o que que- para uma vida confortável. Hobbes quer pôr todos os outros interes-
ria, ou essa a sua vontade, mas que ele desconhecia como essas pala- ses de lado e ver o tipo de argumento que teria para um Soberano efe-
vras e ações deviam ser interpretadas» (Leviathan, p. 66). tivo baseado apenas nestes interesses. A questão é que· Hobbes não
Hobbes está mais ou menos a considerar este aspeto um princípio está a dizer que outros interesses importantes, os religiosos por exem-
de interpretação legal no âmbito da sua doutrina política em que as plo, não existam ou não sejam importantes para as pessoas. Ele sabe
pessoas devem supostamente pretender o seu próprio bem e assim perfeitamente que existem e são importantes. Vê-os a todos à sua volta.
preservar as suas vidas. Contudo, pelo menos de coisas que diz nou- Mas está a tentar estabelecer uma base sobre a qual as pessoas pode-
tros lugares, ele sabe muito bem que as pessoas às vezes fazem coisas rão concordar que um Soberano efetivo está acima de todos, e de
irracionais; e acredita que algumas pessoas, com total conhecimento, tudo, algo desejável a ter - pensando no contrato social no terceiro
preferem a morte à desgraça ou desonra. Diz que a maior parte dos sentido discutido anteriormente (como argumento da razão pela qual
homens preferia morrer a sofrer calúnias; e que um filho preferia morrer as pessoas deveriam aceitar a existência de um Soberano para evitar o
do que obedecer a ordens para matar o pai, com a justificação de que retorno degenerativo ao estado de natureza se o Soberano perdesse
se tivesse de lhes obedecer iria parecer infame e seria odiado por todos; o seu poder).
e isso, vergonha ou desonra, não é capaz de tolerar (esta parte encon-
tra-se no primeiro livro, De Cive ).
Provavelmente o que Hobbes está a dizer é que o desejo por auto- § 3. O ARGUMENTO PARA A TESE DE HOBBES
preservação é o mais forte de todos os desejos naturais, mas enquanto
isso explica a primazia que lhe dá na sua teoria política, não implica Irei agora reunir tudo isto e abordar, de uma forma mais concisa, o
que este seja sempre o mais forte de todos os desejos, quando tudo é argumento para a tese de Hobbes de que o estado de natureza conduz
tido em consideração. Por outras palavras, e bem vistas todas as coisas, a, e de facto é, um estado de guerra. Primeiro, contudo, recordemos
estou a estabelecer um contraste entre dizer que algo é o mais forte que no estado de natureza não há nenhum Soberano efetivo para inti-
dos desejos naturais e dizer que algo é o mais forte de todos os nossos midar os homens e disciplinar-lhes as paixões, e que um estado de
desejos. Assim, diz em De Cive que procuramos evitar a morte devido a guerra é uma condição na qual a vontade de lutar através de batalhas
um determinado impulso natural, tal como uma pedra se move na é publicamente reconhecida. Mais a mais, conforme citei Hobbes ante-
direção descendente. Mas, como sabemos, as pedras também se mo- riormente, um estado de guerra consiste «não só na batalha ou no ato
vem para os lados, ou são atiradas para cima. As instituições sociais, de luta[ ... ] mas numa disposição conhecida para além disso, em que
os costumes sociais, a educação e a cultura, podem, por assim dizer, durante todo o tempo não há segurança do contrário. Todo o outro
influenciar-nos de uma certa maneira, de modo que enquanto pessoas tempo é PaZ» (Leviathan, p. 62). Presumo que «publicamente reconhe-
civilizadas agimos não naturalmente ou contrariamente à natureza, se cida» signifique que todos têm conhecimento, e que todos sabem que
preferirem, afetados por instituições e pela cultura tanto quanto pela os restantes sabem, que se trata de um estado de guerra; trata-se de
palavra da razão. conhecimento público.
Hobbes parece ter esta opinião e chega a dizê-lo em vários lugares. O argumento para a Tese de Hobbes pode resumir-se nos pontos que
Contudo, na sua conceção política quer dar ênfase a coisas muito se seguem:
básicas. Tem consciência de que vive numa época em que as pessoas a) Igualdade de dons naturais e poderes mentais leva à igualdade
recorrem a muitos diferentes tipos de interesses - religiosos, políticos, de esperança na realização dos nossos objetivos, tendo em conta
interesses que, segundo ele, se baseiam afinal em orgulho e vanglória o lugar central na doutrina política de Hobbes do desejo pela
e no amor pelo domínio - e tenta introduzir uma classe de interesses autopreservação e pelos meios de uma vida confortável. Perante a
comum a todas as pessoas. Isto é, apesar de divergirmos em termos das escassez de meios naturais e produzidos para a manutenção da
nossas visões religiosas e políticas, e podermos ter outros interesses vida, a igualdade de esperança coloca as pessoas em competição
que nos são importantes, partilhamos contudo determinados interes- umas com as outras e faz delas potenciais inimigas;

72 73

' ~
b) Em virtude da grande incerteza relativamente aos objetivos de No ponto d) assume-se que é possível que algumas pessoas
outros e à possibilidade de formarem alianças e coligações sejam movidas por orgulho e vanglória no sentido de terem
contra nós, a competição dá lugar à «insegurança», que em domínio sobre os outros, e que esta possibilidade deve ser levada
utilização moderna significa um estado geral de desconfiança em conta nas deliberações de uma pessoa. Pode acontecer que
mútua; esta situação não se aplique a ninguém; o que é importante é que
c) Alargada pela possibilidade de alguns serem movidos por orgu- muitas pessoas acreditam que se aplique a algumas. Se não
lho e vanglória para dominarem outros, a insegurança, juntamente pudermos excluir essa possibilidade, temos de tê-la em con~a- e
com o facto de nenhum acordo ou contrato poder fornecer segu- protegermo-nos contra ela. Trata-se. de uma base par~ suspe1çao
rança na ausência de um Soberano que os aplique, faz a indústria mútua. Por exemplo, no caso de d01s poderes nac1ona1s em com-
produtiva parecer menos vantajosa e a caça mais produtiva, o petição, naturalmente tendem a desconfiar um do outr~. Pode
que leva as pessoas a acreditar que a sua segurança fica mais acontecer que nenhum dos dois esteja motivado para dommar ou
protegida através de ataque antecipado; tenha algum desses tipos de paix~es que infh-.1enci~m o~ que?
d) Como estado de coisas em que a disposição para atacar primeiro governam. Mas o outro lado tambem pensa assim, e isso e o sufi-
surge quando as circunstâncias parecem propícias, a antecipação ciente para exacerbar o estado de natureza e transformá-lo nu~
é geral e publicamente conhecida e é, por definição, um estado estado de guerra. É assim que interpreto a ênfase que Hobbes atn-
de guerra. bui a orgulho e vanglória. Para os seus propósitos, não precisa de
basear a sua teoria política nela, tal como alguns intérpretes pode-
Passo agora aos comentários sobre este resumo do argumento de rão pensar. Podemos dizer que se o orgulho e a vanglória e a von-
Hobbes: tade de dominar são uma possibilidade, então isso é suficiente
para os seus propósitos. Assim, a dificuld~d~ no E~tado ~e Na-
i) Repare-se no significado de «diffidence» (insegurança). Hoje em
tureza é a grande incerteza acerca dos obJehvo~ e mtençoes,. ~e
dia parece timidez, acanhamento ou falta de autoconfiança.
outros. Desde que, então, o amor pelo domímo e a vanglona
Mas a derivação do latim é: diffidere, que significa não ter con-
sejam psicologicamente possíveis, estas paixões são um fator pertur-
fiança em. E é este o significado utilizado por Hobbes. [Com-
bador no Estado de Natureza. Um estado geral de incerteza acerca
pare-se a utilização de Hobbes de «mediocridade das paixões»
dos objetivos e intenções de outros carateriza o Estado de Nat_:i-
(Leviathan, p. 80) no seguinte e até ao último parágrafo do capí- reza, de modo a que a preocupação pela nossa autopreservaçao
tulo 15, cujo significado é moderação das paixões.]
nos force a considerar os piores cenários;
ii) Reparemos com atenção que, conforme afirmei, no argumento iii) Hobbes também não precisa de presumir que as pessoas geral-
da tese de Hobbes assume-se que todas as pessoas no Estado de mente desejam mais «poder» (como meio de atingir o seu bem =
Natureza se orientam a si próprias de uma maneira perfeitamente = significa realizar o seus desejos) sem limites. A maioria das
racional. (Discutirei esta questão mais detalhadamente daqui a pessoas pode estar satisfeita com meios moderados (para um~
pouco.) Na verdade, não se parte do princípio de que as pes- vida confortável). Enquanto alguns lutam realmente pelo dorm-
soas sejam movidas pelo amor ao domínio, que as suas delibe- nio, todos devem lutar pelo domínio dos meios que garanta~ a
rações sejam realmente distorcidas por orgulho e vanglória. Neste sua própria segurança. Gibbon disse: «Roma conquistou o antigo
argumento não se espera que as pessoas ajam irracionalmente. mundo em autodefesa.» (Disse-o sarcasticamente.)
Com efeito, dada a oportunidade, o ataque antecipado é uma iv) O significado do argumento de Hobbes reside em parte no
das respostas mais racionais às circunstâncias. Nem se crê que facto de depender de hipóteses bastante plausíveis acerca das
as pessoas tenham desejos ilimitados por meios cada vez maiores condições normais da vida humana. Por exemplo, não pre-
com vista a uma vida confortável. Tudo o que se espera é que sume mais uma vez que todos sejam realmente movidos por
desejem ter o suficiente para assegurar as necessidades e as orgulho e vanglória no sentido de obterem domínio s?bre os
carências do presente e do futuro. outros. Tratar-se-ia de uma suposição questionável. Sena. a sua

74 75
conclusão, mas muito mais facilmente. O que faz do seu argu- as pessoas num Estado de Natureza se encontram num Estado
mento assustador, dando-lhe significado e poder dramático, é de Guerra, apesar de a sua psicologia se focar menos em si pró-
que ele pensa que pessoas normais, até bastante simpáticas, pria, e são mais virtuosas, ou movidas por ligações e afetos
podem ser colocadas neste tipo de situação, e que irá degene- mais abrangentes. Por exemplo, suponhamos que somos todos
rar num estado de guerra. Perde-se o significado da visão se se motivados de acordo com a explicação de Hume acerca de
der demasiada ênfase ao desejo pelo poder e domínio. A força altruísmo limitado. Considere-se aqui o caso das guerras religio-
d~ .tes~ de Hobbes, e o motivo pelo qual se trata de algo tão sig- sas, por exemplo, nos séculos XVI e xvn. Podemos supor que
nificativo (apesar de Hobbes não a enquadrar dessa forma tão são todos devotos e fiéis à sua conceção de obrigação religiosa
cuidadosa e rigorosa), é que as premissas dependem apenas de e que ainda podem ser lançados para um Estado de Guerra.
circunstâncias normais e mais ou menos permanentes da vida Lembremo-nos que Hobbes escreve contra o contexto desta
humana tal como muito provavelmente seriam num Estado de história e a Guerra Civil inglesa.
Natureza. A questão é: não temos de ser monstros para nos
~ncontrarmos em apuros;
Finalmente, como aparte, deixem-me dizer que ao olharmos para
v) E de relembrar que as suposições psicológicas de Hobbes, bem um texto deste tipo, que é tão vasto, e com tantos elementos, se tentar-
como as de outro tipo, não precisam de ser rigorosamente ver- mos retirar dele tanto quanto possível, devemos tentar interpretá-lo da
dadeiras de toda a conduta humana. Como já vimos, ele não é melhor e mais interessante forma. Não vale a pena tentar derrotá-lo ou
nenh~m egoísta psicológico minucioso. As suas suposições mostrar que o autor estava de algum modo errado, ou que não se tiram
sobre mteresses humanos básicos só precisam de ser suficiente- conclusões acerca do seu argumento. O importante é aproveitá-lo ao
mente corretas para representar as grandes influências sobre a máximo e tentar captar um sentido de como poderá ser a visão geral, se
conduta humana nos tipos de situações sociais e políticas com vista do melhor ângulo. Caso contrário, julgo ser uma perda de tempo
que se preocupa. Sobre a interpretação proposta, o sistema lê-lo, ou ler qualquer um dos filósofos importantes.
moral secular de Hobbes destina-se a ser uma doutrina polí-
tica; .e' como tal, é apropriado que realce determinados aspetos
da vida humana. O que é relevante questionar é: as suas supo-
HOBBES PALESTRA II: APÊNDICE A
sições são verdadeiras o suficiente para modelar algumas das
forças psicológicas e institucionais que influenciam o compor-
FICHA DE TRABALHO: RESUMO DA REIVINDICAÇÃO DE HOBBES
tamento humano nas situações políticas?
DE QUE O ESTADO DE NATUREZA - UM ESTADO DE GUERRA
vi) Hobbes tenta transmitir-nos que, apesar de todos sermos movi-
dos por carências normalmente moderadas e sermos pessoas 1. Estado de Natureza = df. estado de coisas em que não há poder
perfeitamente racionais, ainda corremos o perigo de um
Soberano para intimidar todas as pessoas. Estado de Guerra = df. estado
Estado de Guerra na ausência de um Soberano efetivo com de coisas em que a vontade de lutar através de batalhas é publicamente
todos os poderes que ele diz que o Soberano deve ter para o reconhecida. Um Estado de Guerra não consiste em luta efetiva mas
ser. Por piores que alguns Soberanos possam ser, o Estado de
numa disposição conhecida durante um período de tempo em que não
Guerra é ainda pior. Cobiça, amor pelo domínio, orgulho e
há nenhuma segurança do contrário. Qualquer outro tempo é paz.
vanglória podem ser elementos seriamente complicados; mas
2. Argumento para a Reivindicação de que o Estado de Natureza -
não são verdadeiramente necessários para levar o Estado de
Estado de Guerra:
Natureza a tornar-se num Estado de Guerra. Na melhor das
hipóteses, a possibilidade de que alguns sejam assim movidos é a) Igualdade (de dons naturais e poderes mentais)- tendo em conta
suficiente; o lugar central na doutrina política de Hobbes do desejo pela
vii) Um exercício útil é ver até que ponto a suposição da tese de autopreservação e pelos meios de uma vida confortável - leva a
Hobbes pode ser ainda mais enfraquecida no sentido de que igualdade de esperança na realização dos nossos objetivos;

76 77
b) Igualdade de esperança - perante a escassez de meios de vida é, por exemplo, um egoísta psicológico. As suas suposições só
naturais e produzidos - coloca as pessoas em competição umas precisam de ser suficientemente corretas para ~odelar ~s gr~n­
com as outras e faz delas potenciais inimigas; des influências sobre a conduta humana nos tipos de sltuaçoes
e) Competição - em virtude da grande incerteza relativamente aos sociais e políticas com que se preocupa. Não esqueçamos que,
objetivos de outros e à possibilidade de formarem alianças e sobre a interpretação proposta, o sistema moral secular de
coligações contra nós - dá lugar à insegurança, isto é, a um estado Hobbes destina-se a ser uma doutrina política e, como tal, é
geral de desconfiança; apropriado que realce determinados aspetos da vida humana.
d) Insegurança - alargada pela possibilidade de outros serem mo-
vidos para obterem domínio através de orgulho e vanglória,
juntamente com o facto de que nenhum acordo pode fornecer
segurança - faz a indústria produtiva parecer menos vantajosa
(a caça mais produtiva) e leva as pessoas a encontrar a sua segu-
rança através de ataque antecipado;
e) Antecipação - como estado de coisas em que a disposição para
atacar primeiro surge quando as circunstâncias parecem propí-
cias, sendo geral e publicamente conhecida, é, por definição, um
estado de guerra.

3. Observemos os pontos que se seguem:


i) Neste argumento não se espera que as pessoas ajam irracio-
nalmente. Nem se crê que as pessoas tenham desejos ilimi-
tados por meios cada vez maiores com vista a uma vida
confortável;
ii) No ponto d) assume-se que é possível que outras pessoas
sejam movidas por orgulho e vanglória no sentido de serem
dominantes, e que esta possibilidade deve ser tida em consi-
deração; mas na verdade pode haver alguém que não seja
assim movido. (Dever-se-ia considerar a questão sobre a hipó-
tese desta possibilidade ser necessária para o argumento de
Hobbes.)
iii) O significado do argumento de Hobbes reside em parte no
facto de depender de hipóteses bastante plausíveis acerca das
condições normais da vida humana. Por exemplo, não pre-
sume que todos sejam realmente movidos por orgulho e van-
glória no sentido de serem dominantes sobre os outros. Esta
suposição questionável seria a conclusão, mas torná-la-ia
muito menos interessante;
iv) Devíamos relembrar que as suposições psicológicas de Hobbes,
bem como as de outro tipo, não precisam de ser rigorosamente
verdadeiras para toda a conduta humana. Já vimos que ele não

78 79
HOBBES III

A EXPLICAÇÃO DE HOBBES
SOBRE RACIOCÍNIO PRÁTICO

§ 1. O RAZOÁVEL E O RACIONAL
Hoje vou analisar a descrição que Hobbes faz de raciocínio prático
visto que se insere no âmbito do que designo de sistema moral secular,
ou no da sua doutrina política. Ele encara a razão prática como uma
espécie de racionalidade e tem a visão, que irei atribuir a Locke, de
que a razão prática implica um tipo de razoabilidade. Isto é, na minha
opinião podemos distinguir entre duas formas de raciocínio prático.
Podemos considerá-lo racional ou razoável. Neste momento «racional»
e «razoável» não passam de palavras, rótulos, e nós não sabemos qual
poderá ser a diferença entre elas. Em linguagem comum ambas signi-
ficam, de algum modo, ser consistente com ou baseado na razão. Mas,
no discurso do quotidiano não parecemos ter noção da diferença que
existe entre elas. Normalmente não usamos estes termos como sinóni-
mos. Podemos dizer, por exemplo: «Ele estava a conduzir uma nego-
ciação muito difícil e a ser pouco razoável, mas devo admitir que na
sua perspetiva estava a ser perfeitamente racional.» Nesta situação,
conseguimos, em certa medida, fazer a distinção. Tendemos a usar «ra-
zoável» no sentido de justo, judicioso e capaz de ver outros pontos de
vista, e assim sucessivamente; enquanto «racional» tem mais o sentido
de ser lógico, ou agir pelo bem próprio, ou pelos interesses próprios.
No meu trabalho, e nesta discussão, o razoável implica termos corretos
de cooperação; enquanto o racional implica favorecer o bem ou o pro-
veito próprio, ou o de cada pessoa cooperante.
Hobbes ilustra a visão de que o raciocínio prático é deliberativo rela-
tivamente à coisa racional a fazer (em que racional* razoável). ~uitas

81
das Leis da Natureza são classificadas por Hobbes sob o que intuiti- para não obedecer às leis naturais. Mas a dificuldade, que julgo ter
vamente consideramos de Razoável. As Leis da Natureza formulam sido Hobbes o primeiro a detetar, é que no âmbito do próprio estado
preceitos de cooperação correta, ou induzem-nos para virtudes e de natureza é difícil ver de que modo essa agência poderia existir tor-
hábitos mentais e de caráter favoráveis a tal cooperação. Por exemplo, nando-o racional fazer ou seguir nos nossos acordos. Assim sendo, um
a primeira lei é procurar a paz e segui-la para nos defendermos sem- dos argumentos básicos do livro é que assumimos estes princípios
pre que necessário; a segunda diz que um homem deve estar dis- razoáveis de cooperação social e justificamo-los no que diz respeito ao
posto, quando outros também estiverem, a sacrificar o direito a todas racional.
as coisas, e ficar satisfeito com tanta liberdade contra outros homens Vou tentar explicar mais aprofundadamente o contraste entre prin-
tal como permitiria outros homens contra si próprio; a terceira diz cípios racionais e razoáveis. Há duas formas para o fazer:
respeito ao cumprimento dos seus compromissos. Da quarta até à
décima, todas têm a ver com uma ou outra virtude envolvendo coo- a) Através do seu papel distintivo no raciocínio prático e na vida
peração: gratidão, adaptação aos outros, piedade e perdão; não mos- humana; e
trar desprezo pelas outras pessoas, reconhecer os outros como iguais b) Pelo seu conteúdo, ou o que realmente dizem ou nos mandam
e afins. A 10.ª Lei da Natureza diz para não nos reservarmos um fazer, que podemos intuitivamente atribuir ao Racional ou ao
direito que não queiramos que outros também o tenham e assim suces- Razoável.
sivamente. Todas têm a ver com os preceitos de cooperação necessá-
ria à vida social e a uma sociedade pacífica (Leviathan, capítulos 14 e A distinção que o papel destes princípios desempenha é a seguinte:
15). Mas estes princípios razoáveis, alerta Hobbes, são racionais no sen- considero as conceções de cooperação social bastante diferentes de
tido de os seguirmos, sob a condição de que outros também os sigam. outra noção, que seria meramente coordenação eficiente e produtiva de ati-
O papel do Soberano é, em parte, garantir que outros (em número vidade social, por exemplo, abelhas numa colmeia, ou trabalhadores
suficiente) os sigam, de modo a que seja racional para cada um fazê-lo. numa linha de montagem de uma fábrica. Estão envolvidos numa ati-
Hobbes justifica assim princípios Razoáveis (com conteúdo razoável) vidade coordenada, produtiva e, certamente, social. Mas não se trata
em termos do Racional. necessariamente de cooperação. É socialmente coordenada, e talvez haja
Contudo, ele alerta que é racional para nós seguirmos estes prin- regras públicas de algum tipo que as pessoas sabem que devem
cípios razoáveis, apenas sob a condição de que outros também os seguir, mas não estão a cooperar no sentido normal do termo. Qual é,
sigam. Eles irão ajudar-nos a realizar o nosso próprio bem. Por outras então, a noção de cooperação que a distingue da atividade socialmente
palavras, o autor está a tecer um argumento com o intuito de que este coordenada e até produtiva?
grupo de princípios que poderíamos aceitar como razoáveis, no meu Cada conceção de cooperação social (contrariamente à atividade
sentido desse termo, são princípios racionais para nós seguirmos, social meramente eficiente e produtiva) tem duas partes:
baseados nos nossos interesses fundamentais, desde que outros tam- a) Uma define a noção de vantagem racional para os envolvidos em
bém os sigam. O atrativo é o que é conducente à nossa autopreser- cooperação, uma ideia de bem ou bem-estar de cada indivíduo
vação, afetos conjugais e meios para uma vida confortável, ou, por ou associação, etc. Uma enumeração de princípios de escolha racio-
outras palavras, ao nosso próprio bem essencial. O papel do Soberano nal é vista aqui como elemento essencial, mas não o único, na
é, então, em parte, garantir que outros em número suficiente sigam as definição de vantagem racional. Esta última implica uma ideia
leis naturais para que também seja racional para nós segui-las e assim do que cada indivíduo ou associação envolvidos em cooperação
assegurar a paz. vai ganhar ao participar nesta atividade. Partimos do pri!lcípio
Iremos posteriormente analisar o contrato social e o que realmente de que são racionais e que refletiram sobre o assunto. E uma
alcança, nomeadamente a implantação de um Soberano com poderes ideia acerca do seu próprio bem que não lhes foi imposta por
suficientes para atingir efetivamente as condições necessárias à reali- outras pessoas, mas a que se agarram por iniciativa própria,
zação dessa garantia. A existência do Soberano altera as circunstâncias após reflexão, o que as conduz a aceitar o segundo aspeto da
de tal forma que já não há mais fundamentos razoáveis, ou racionais, noção de cooperação;

82 83
1

b) Esta segunda parte define termos corretos de cooperação social, ou ção relativamente limitada, e é nesse sentido que Hobbes apresenta
termos justos de cooperação, de acordo com o que for mais apro- uma explicação baseada em autointeresse da natureza humana, tendo
priado. Estes termos implicam uma noção de mutualidade ou reci- em conta a finalidade da sua visão política. Dois pontos acerca destas
procidade e como especificamente esta última deve ser
finalidades ou desejos:
interpretada na prática. Isto não quer dizer que haja uma única
interpretação de reciprocidade ou de mutualidade. Poderá haver Primeiro (a) estas finalidades ou desejos estão todos relacionados
várias apropriadas a situações diferentes. Estas serão expressas entre si, e dependentes de objetos, tal como os entendo. Dizer que são
em termos das limitações que termos corretos impõem sobre dependentes de objetos significa que podem ser todos descritos sem
atividades sociais eficientes e produtivas de modo a que estas fazer referência ou menção a qualquer princípio razoável ou racional
últimas constituam também cooperação social correta. Deno- ou, geralmente, a quaisquer noções morais. Por exemplo, vejamos o
minamos de razoáveis os princípios que definem estes termos desejo de comer e beber; ou o de ter amigos e companhia. Consigo
de cooperação social correta. O seu papel é interpretar essa noção de descrever um estado de coisas que me interessa no que diz respeito a
razoabilidade. estes e outros «objetos» num sentido lato; como um em que tenho
tudo o que quero comer, ou o que quero beber, em que estou seguro,
Repare-se também que uma conceção de cooperação social tam- ou a minha família está segura, e afins. Não há referência a noções de
bém parte do princípio de que as pessoas são capazes de a usar e hon- como ser tratado corretamente, ou a direitos ou outras noções que
rar os seus termos, e tem alguma visão do que torna a sua cooperação tenham um caráter moral. (b) Na visão de Hobbes, as finalidades ou
possível. Mais tarde iremos discutir o papel do sentido do certo e do desejos mais importantes que as pessoas têm são não sociais, isto é,
errado, de um sentido de justiça, permitindo às pessoas envolverem- são desejos que as pessoas supostamente têm num estado natural,
-se em cooperação social. e não como membros da sociedade cívica. Iriam permanecer como
Os preceitos ou princípios que especificam os termos corretos de caraterísticas dos seres humanos mesmo se víssemos a sociedade dis-
cooperação em qualquer caso particular serão razoáveis. Por isso, solvida ou a degenerar de volta aos seus elementos. O que isso signi-
quando descrevemos alguém como pouco razoável enquanto negoceia fica é que a teoria social de Hobbes, ou a sua explicação acerca da I'
com outra pessoa, apesar de perfeitamente racional a partir do seu doutrina política, não vai, no conjunto, depender das finalidades e ! '

ponto de vista, o que queremos dizer é que de algum modo esse alguém desejos que foram criados pelas instituições sociais. Ele considera
tirou partido de uma posição afortunada, talvez acidental, da sua parte estes desejos mais básicos, como partes dos elementos, os seres huma-
para impor termos não razoáveis (incorretos ou injustos) na negocia- nos, que constituem a sociedade. Estas finalidades são caraterísticas
ção. Tendo em conta a situação e vistas as coisas pelo seu prisma, tal- das partes - dos indivíduos - das quais o estado é, por assim dizer,
vez tenha sido racional (promover o seu próprio bem) fazê-lo. mecanicamente montado como um corpo artificial (cf. extrato em De Cive
Já abordei algumas das caraterísticas da descrição que Hobbes faz EW ii, p. xiv ). (Recordemos aqui as três partes do esquema de Hobbes:
de raciocínio prático como racional, no sentido em que discutimos a corpo, homem, cidadão - cada um construído a partir do anterior.)
natureza dos objetivos dos seres humanos em que ele se concentra. Em segundo lugar, segundo Hobbes, as pessoas também têm, para
Recorde-se que esses objetivos eram os da nossa autopreservação, afe- além destes desejos dependentes de objetos, determinados desejos
tos conjugais e meios para uma vida confortável. Passo agora a ana- dependentes de princípios. Trata-se de desejos de ordem superior e pres-
lisá-los de modo mais aprofundado. supõem desejos de ordem inferior tais como os dependentes de objetos
No sistema moral secular de Hobbes, ou na sua conceção política, discutidos anteriormente. Em Hobbes, os únicos desejos dependentes
os objetivos finais das pessoas são os estados de coisas e atividades de princípios são os definidos pelos princípios da escolha racional
por que lutam e de que gozam em seu próprio benefício. Estas metas por oposição aos da conduta razoável. Denomino-os dependentes de
focam-se no eu, preocupando-se com os nossos anseios relativamente princípios porque, para os descrever, temos de citar um ou outro
à nossa saúde, força e bem-estar; com o bem-estar da nossa família; ou princípio. São racionais contrariamente a razoáveis porque são dese-
com a obtenção de meios para uma vida confortável. É uma preocupa- jos para agir de acordo, ou deliberar em conformidade, com um prin-

84
85
cípio de racionalidade que conseguimos descrever e afirmar. Por exem- movem-nos e expressam-se em ações tal como os outros desejos o
plo, um princípio racional poderá ser o facto de termos de usar os fazem.
meios mais efetivos para atingir os nossos fins. O desejo de deliberar
e agir de acordo com esse princípio seria um desejo racional. Também Hobbes descreve os homens como detentores de um «desejo per-
considero estes últimos desejos finais ou finalidades no sentido em que pétuo e inquieto de Poder após poder, que só terminou na Morte.
desejamos agir a partir de tal princípio e deliberar de acordo com ele E a causa disto, nem sempre um homem espera por uma satisfação
e por sua causa. mais intensa, para além daquilo que já atingiu; ou que não se con-
tenta com um poder moderado: mas porque não consegue assegurar
Recordemos agora o que Hobbes diz no cap. 11, p. 47 (1.º pará- o poder e os meios para viver bem, que tinha no presente, sem
adquirir mais» (Leviathan, p. 47). Assinale-se que «O Poder de um
grafo): «. . . o objeto do desejo do homem não é gozar tudo de uma
Homem [... ] traduz-se nos seus meios do presente, para obter um
vez, e por um instante; mas garantir para sempre o trajeto do seu
futuro aparentemente Bom» (Leviathan, p. 41). O desejo de «poder
desejo futuro. E portanto as ações voluntárias, e tendências de todos
após poder» sugere que não há objetivo extremo que, sendo alcan-
os homens, viram-se não só para a obtenção mas também para a
çado, nos permita descansar e supormos que estamos completa-
garantia de uma vida satisfeita.» Assim, cada um de nós tem uma
mente satisfeitos.
inclinação geral que Hobbes descreve como: «... um desejo perpétuo e 2. O segundo ponto é o seguinte: a inclinação geral que se mani-
inquieto de Poder após poder que só terminou na Morte». Não há festa como um desejo de poder após poder (dadas as circunstâncias
nenhum objetivo extremo que, sendo alcançado, nos permita descan- da vida humana) é um desejo dependente de princípios no sentido em
sar na tranquilidade de uma mente satisfeita. ~que para descrever o objeto deste desejo, o que se esforça para alcançar,
Vários pontos merecem aqui a nossa atenção: é necessário referir determinados princípios de deliberação racional (ou
1. Primeiro, julgo que Hobbes também diz que, devido à nossa escolha racional) na construção dos nossos planos e intenções. Os
capacidade de raciocínio, temos uma conceção de nós próprios desejos de ordem superior são desejos para formar e seguir um
enquanto indivíduos a viver uma vida ao longo do tempo e vemo-nos esquema de conduta que é racional enquanto definido por certos prin-
a ter um futuro e talvez um futuro muito longínquo. Não só determi- cípios. Desejos básicos, egoístas (de 1.ª ordem ou mais baixa) não con-
nados desejos finais nos movem agora, mas também prevemos e com- seguem explicar estes desejos de ordem superior, ou explicar a conduta
preendemos a possibilidade de toda uma série interminável de na qual são manifestos.
desejos a moverem-nos no futuro. Estes desejos futuros não são os Alguns exemplos poderão ajudar-nos nesta questão: considere-
que temos agora. Não estão neste momento psicologicamente ativos, mos estes princípios de escolha racional. Provavelmente só conseguimos
mas prevemos agora que iremos ter, ou muito provavelmente teremos, defini-los através de uma lista.
esses desejos em determinadas alturas do futuro. Por exemplo, sei i) Princípio de Transitividade, etc.: (Ordenação Completa) apli-
que no futuro vou querer ter comida, e posso querer assegurar que cada a Preferências (ou sobre alternativas);
consigo armazenar provisões para encher a despensa; mas esse desejo ii) Princípio de meios efetivos;
não se baseia num estado presente de fome. Há um desejo de ordem iii) Princípio de Preferência pela Grande Probabilidade relativa-
superior que temos agora e teremos sempre, na medida em que somos mente ao resultado mais preferido;
racionais, e esse é o nosso desejo de nos assegurarmos agora, através iv) Princípio da alternativa Dominante.
de alguma conduta apropriada no presente, baseados em algum prin-
cípio racional conforme descrição anterior, que fazemos provisões Um ser racional compreende e aplica estes e outros princípios racio-
para estes desejos futuros. Não são os desejos futuros, mas sim os nais; e os seus desejos de ordem superior definidos por aqueles podem
desejos de ordem superior que nos movem agora; e para descrever o ser vistos como o desejo de regular a procura da totalidade dos seus
seu objeto, isto é, o que tenta fazer, é necessário referir determinados desejos dependentes de objetos (e naturais) através destes mesmos
princípios de deliberação racional. Os desejos de ordem superior princípios.

86 87
! -
Assim, parece adequado chamar a estes desejos de desejos racionais. -Debrucemo-nos agora sobre o que Hobbes diz acerca de ações
Tent~rei não definir «racion~l» ou «racionalidade». Em vez disso, pros- voluntárias:
segmmos com exemplos e listas. Para isso é preciso considerar os prin-
cípios que acabámos de enumerar. Contrastar princípios racionais com a) Ele afirma que o objeto das ações voluntárias de seres humanos,
outros tipos de princípios, por exemplo, os razoáveis. Tendo em conta quando são completamente racionais e têm tempo para deliberar,
o princípio que Hobbes usa para afirmar um tipo de diretiva para dis- é sempre algum bem aparente para si próprios. Hobbes diz:«[ ... ]
cernir a força das leis naturais: e dos atos voluntários de cada homem, o objeto é algum Bem para
si próprio» (Leviathan, p. 66). Por outras palavras, nós não agimos
«Não faças aos outros o que não farias a ti próprio.», I: 15: p. 79 (Isto voluntariamente no sentido oposto ao nosso próprio bem. Quando
aparece depois da 19.ª e última Lei de Natureza L: 79). o bem aparente acaba por não se tornar uma realidade, pondo de
lado os casos em que as pessoas são motivadas por orgulho e van-
Isto pode ser dado como exemplo de um princípio razoável: alguém glória, ele supõe que há alguma espécie de erro ou azar na situa-
que não usa os meios efetivos para fazer avançar as suas finalidades ção que, apesar de a ação ter corrido mal, não deve ser atribuída
está a ser (digamos) irracional (sem alterações); enquanto aqueles que aos próprios agentes (Leviathan, p. 66). Hobbes admite que alguns
fazem aos outros o que não fariam a si próprios (talvez por pensarem atos voluntários são contra a razão. As nossas deliberações chegam
9ue conseguem escapar da situação) estão a ser pouco razoáveis ou ao fim a determinada altura e o último desejo (efetivo) nesse
insensatos. Isto não significa que estejam a ser irracionais, dados os momento é definido por Hobbes como vontade; e as nossas delibe-
obj~tivos que procuram seguir. Mas ao violar este princípio estão a rações e, portanto, a nossa vontade podem ser distorcidas por
ser insensatos.
orgulho e vanglória, por exemplo. Mas Hobbes julga, creio eu, que
Todos os princípios que Hobbes designa de «as Leis de Natureza» em qualquer dos casos os atos voluntários têm como seu objeto
podiam de modo plausível ser denominados de princípios razoáveis. tácito algum bem aparente de nós próprios. Mesmo alguém
Vejamos especialmente o seguinte:
movido por orgulho e vanglória ainda luta por algo que pensa ser
i) Leviathan, p. 64, a primeira parte da primeira Lei da Natureza: para o seu próprio bem, apesar de o seu raciocínio estar incorreto.
todos devem lutar pela paz, desde que tenham esperança de a Hobbes faz esta reivindicação acerca de ações voluntárias no
alcançar; contexto de explicar como alguns direitos nunca podem ser aban-
ii) Leviathan, pp. 64-65, a segunda Lei da Natureza: que estejamos donados ou transferidos. Por exemplo, temos sempre o direito de
dispostos, quando outros assim estão também, a sacrificar o resistir ao Soberano em autodefesa e fazer o que pensamos neces-
nosso direito a todas as coisas e ficar satisfeitos com tanta liber- sário para preservar a nossa própria vida. Ele diz que «A transfe-
da.de contra outros como permitiríamos outros contra nós pró- rência mútua de Direito é o que os homens chamam de Contrato»
prios. Trata-se do princípio da reciprocidade. (Leviathan, p. 66), e em contratos alguns direitos básicos estão sem-
pre reservados para nós;
E assim sucessivamente: repare-se no número 10 até ao 19 das Leis b) Então, ao definirmos um ser humano racional, visto que o raciocí-
de Natureza. nio de alguém também pode estar incorreto, temos, por exemplo,
Podemos não aceitar estes princípios tal como Hobbes os declara, uma conclusão falsa. A diferença reside na explicação para a incorre-
mas, ainda assim, conforme afirmado, ou modificado acima, parece ção do seu raciocínio, do porquê do bem aparente não ser o verda-
ª.dequado ch~má-l~s de princípios razoáveis e ao desejo de agir a par- deiro bem para ele. Se a explicação é a sua incapacidade de
tu destes prmcíp10s, por sua causa, desejos razoáveis. Os desejos disciplinar e dar azo a tendências de vanglória, etc., então não são
razoáveis também são desejos dependentes de princípios no mesmo (totalmente) racionais. Se, todavia, a explicação se prende (por
s:ntido en: .que são os desejos racionais. Desejos de ambos os tipos exemplo) com falta de informação que não pode ser evitada e não se
sao especificados através de referência a princípios racionais ou trata de nenhuma falha do agente, a pessoa ainda age de modo per-
razoáveis. feitamente racional, apesar de a conclusão a que chegue ser incorreta.

88 89
Para resumir, na Conceção Política de Hobbes: relação entre deliberação racional de indivíduos, por um lado, e, por
outro, as leis de natureza cujos conteúdos são intuitivamente razoáveis
i) O objeto das ações voluntárias de pessoas perfeitamente racionais visto formularem preceitos de cooperação justa ou nos atribuírem há-
é sempre visto por estas últimas como bem aparente para si próprias bitos mentais favoráveis a essa cooperação. Tradicionalmente, as Leis
(enquanto indivíduos). Este bem é identificado pelos princípios da Natureza são entendidas da maneira que se segue:
da deliberação racional em conjunção com a série dos nossos
desejos (que nos pertencem enquanto indivíduos) relacionados a) As Leis da Natureza são (normas) promulgações (legislativas)
entre si e dependentes de objetos, tendo em consideração desejos daquela pessoa, nomeadamente Deus, que tem autoridade legí-
do presente como do futuro previsível. (Recordemos aqui os nos- tima sobre o mundo e todas as suas criaturas, incluindo os seres
sos interesses fundamentais, por ordem de prioridade: autopre- humanos;
servação, afetos conjugais, riquezas e meios de vida.); b) As promulgações desta autoridade legítima são ordens, sendo,
ii) Quando o bem aparente não se transforma num bem real, a expli- portanto, leis em sentido rigoroso (vs. princípios), já que, J?ºr
cação, no caso de indivíduos racionais, não reside em alguma definição, uma «lei» é entendida como uma ordem profenda
falha ou incapacidade de raciocínio que lhes é devidamente atri- por alguém com legítima autoridade;
buível (não é, por exemplo, o resultado de orgulho e vanglória). c) Estas leis são leis naturais (vs. reveladas) porque o que ordenam, e
Mas prende-se com uma falta de informação ou qualquer outra tratando-se de ordens, pode ser verificado pelo uso correto dos
circunstância inevitável; poderes naturais da razão, que são possuídos pelos seres huma-
iii) Os atos voluntários de pessoas racionais são movidos em parte nos enquanto seres racionais quando usamos os nossos poderes
por desejos de ordem superior e dependentes de princípios e para refletir sobre os factos da natureza que estão perante os nos-
não somente de desejos dependentes de objetos. Numa pessoa sos olhos e tecer inferências adequadas. Ou seja, é possível atra-
perfeitamente racional estes desejos de ordem superior são vés da razão natural perceber que Deus existe, e que Deus deve
totalmente reguladores - totalmente efetivos e em controlo. ter querido que as pessoas fossem felizes, e que vivessem em
sociedade, e assim sucessivamente. Portanto, se determinados
Assim, a deliberação racional pode atingir uma conclusão falsa e sob preceitos são necessários a esse propósito fundamental, então
ação pode acabar em desastre. Mas a conclusão ser falsa e acabar em serão leis da natureza, leis naturais, e teriam a força da lei.
desastre é o resultado do azar e não é responsabilidade da pessoa: não
Compreendido desta forma Hobbes diz: As ordens de Deus, que
havia erros no raciocínio ou distorções através das paixões, etc.
tem legítima autoridade sobre nós, são as Leis da Natureza quando
estas ordens são proclamadas para nós, por assim dizer, pela e através
da nossa razão natural tendo em conta a realidade natureza, por exem-
§ 2. A BASE RACIONAL DOS ARTIGOS RAZOÁVEIS plo os factos da nossa natureza humana, etc.
DE CONCÓRDIA CÍVICA Hobbes tem em mente esta interpretação das Leis da Natureza (ou
uma interpretação semelhante) quando diz no fim do capítulo 15, p. 80:
Uma conceção de cooperação social é uma conceção de quão coor- «Estes ditames da Razão, os homens costumam chamar pelo nóme de
denada a atividade social pode ser planeada para promover o bem Leis, mas indevidamente; porque não são senão Conclusões ou Teore-
(racional) de todos de formas que são corretas (razoáveis) para cada mas relativos ao que conduziu à conservação e defesa de si próprios;
um. Implica uma noção de termos corretos de cooperação (o razoá- enquanto Lei, é propriamente a palavra dele, que por direito tinha
vel) e uma noção do bem ou vantagem de cada pessoa cooperante (o comando sobre outros. Contudo, se considerarmos os mesmos Teore-
racional). Na conceção política, a forma como Hobbes vê os seres mas, conforme proferido na palavra de Deus, que por direito ordenou
humanos determina mais aprofundadamente como a noção de coope- todas as coisas; então são corretamente chamadas de Leis».
ração social e as noções de racionalidade e razoabilidade devem ser No início da última palestra expliquei porque é que acredito que a
entendidas. O nosso problema é descobrir como Hobbes entende a ·interpretação secular do sistema de Hobbes é a primária. A interpreta-

90 91
sé os nossos desejos são ou não satisfeitos. Para que esta explicação
ção teológica suplementar não afeta nem a estrutura formal da explica-
ção que Hobbes apresenta sobre instituições políticas nem o seu con- faça sentido em Hobbes, substituímos o ,.fin:1- da felicidade ~om o ~a
teúdo substantivo: o que é requerido para a autopreservação de cada um nossa agora entendida como a nossa proprza auto-preservaçao e meios
no mundo não entra em conflito com o que é necessário para a sua sal- para uma vida sem necessidades. .
vação. Assim interpretado, o argumento de Hobbes dirige-se a pessoas A distinção entre um Imperativo Hipotético e um Imperativo Cate-
racionais que usam a sua razão natural. A referência que Hobbes faz às órico reside no modo como o princípio correspondente ou diretiva
Leis de Natureza como leis de Deus também, vistas por outro ponto de ~e justifica e não na sua forma ou mo~o ~e. expre~sã~. Assim, supo-
vista, pode ter o seguinte significado: a introdução de preocupações nhamos que escrevemos sempre um principio ou diretiva c~mo: Fazer
teológicas não afetará ou mudará estas leis, nem mesmo a criação do assim e assim. Se as diretivas: «Honrar os seus compromissos>: ou
estado. «Manter-se saudável» são Imperativos Hipotéticos ou Imperativos
Assim, sugiro que encaremos as Leis da Natureza como essencial- Categóricos para uma pessoa é decidido pelos fundamentos sobre os
mente conclusões sobre que princípios e padrões de cooperação social quais estão afirmados. Uma pessoa pode ~nterpreta; ~orno un: Impe-
seria racional para todos seguirem de modo a preservarem-se e a atingir rativo Hipotético, outra como um Imperativo Categonco. Alguem que
os meios para uma vida sem necessidades. Este cumprimento é racional honra os seus compromissos alegando a necessidade de preservar a sua
para cada pessoa atendendo a que, de igual modo, outras o façam. Assim, boa reputação, etc., encara esta diretiva como um Imperativo Hipoté~co,
quando geralmente cumpridas por todos e quando isto passa a ser do visto que a reputação é um tipo de poder. Enquanto manter-se saud~vel~
conhecimento público de cada uma das pessoas, as Leis da Natureza porque é necessário se uma pessoa cumprir os seus ~everes morais, e
são coletivamente racionais. Ou, se recuarmos à discussão sobre raciocí- defender que essa injunção é um Imperativo Categórico. . ,. .
nio prático, podemos dizer: as Leis da Natureza definem um grupo de · Assim, na ética de Kant há mais dois procedimentos de raciocmio
princípios razoáveis, desde que o seu conteúdo e papel se distingam, prático: Um é definido pelo modo c~mo det~rm!n.ados Imperativos Hip?-
cujo cumprimento geral é racional para cada uma das pessoas. téticos são justificados, o que implica o prmczpio geral de escolha racio-
O que se segue é uma outra forma de descrever as Leis da Natu- nal e a ideia da nossa própria felicidade, e o outro é definido pela forma
rezal. Estas últimas são em grande parte o que Kant designa de impe- como Imperativos Categóricos são justificados, invocando o procedimento
rativos hipotéticos assertórios. Trata-se de Imperativos Hipotéticos que CI3.
são válidos para todos em virtude do facto de termos, como seres Este último expressa os requisitos de razoabilidade: isto é, restrições
racionais, um determinado fim, nomeadamente, a nossa própria felici- para a especificação de princípios aos quais to~os de~em . º~edec:r
.
dade (que, para Kant, é a realização regular dos nossos muitos e varia- desde que a sua conduta seja social. Os Imperativos Hipotetico~ s~o
dos objetivos)2. Para este autor, o fim da nossa própria felicidade, justificados para cada uma das pessoas tendo em conta as suas proprzas
enquanto seres racionais, é o que temos como necessidade natural. Não finalidades particulares, que variam de indivíduo para indivíduo. Os
tenho a certeza acerca do que Kant quer dizer com isto. A ideia de feli- Imperativos Categóricos são justificados como requisitos que todos
cidade, segundo ele, implica alguma conceção de organização e pla- devem seguir, independentemente das suas finalidades mais particul~res.
neamento da satisfação dos nossos vários desejos ao longo do tempo. Portanto, a interpretação das Leis da Natureza como Imperativos
Por isso, a este respeito, a explicação de Kant acerca de raciocínio prá- Hipotéticos (na visão de Hobbes) resume-se ao seguinte: as Leis da
tico é semelhante à de Hobbes tal como já foi descrito anteriormente. Natureza têm o tipo de conteúdo que intuitivamente associamos a princí-
O facto de a nossa própria felicidade ser um fim para nós pode sim- pios razoáveis, ou seja, prindpios aos quais julgamos que todas as pess?as
plesmente significar que, enquanto seres naturais, só nos resta saber devem obedecer (apesar das suas finalidades mais particulares). Assim,

1 Esta interpretação de Kant é proposta por J. W. N. Watkins, Hobbe's System of Ideas, 3 Para uma explicação detalhada de Kant e do seu Procedimento Imperativo Categó -
Nova Iorque: Barnes and Noble, 1968, pp. 55-61. rico, ver John Rawls, Lectures on the History of Moral Philosophy, ed. Barbara Herman,
2 Immanuel Kant, Groundwork of the Metaphysics of Morais, trad. e ed. H. J. Paton,
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2000, pp. 162-181.
Londres: Hutchinson, 1948, II: 21, Ak. 4: 15f.

93
92
as Leis ~a --~atur:z~ sã? princípios razoáveis. No entanto, para Hobbes (in foro interno), mas sem o colocar sempre em ação (in foro externo),
estes pnnap1os sao_;ustificados para cada indivíduo atendendo ao objetivo porque se um homem desempenha tudo o que promete mas mais
d~ au~~preservaçao. E, portanto, são justificados como Imperativos ninguém o faz, «está-se a tornar numa presa para outros, e a garantir
Hipoteticos e, com efeito, como Imperativos Hipotéticos assertórios. Em a sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as Leis
suma: os princípios razoáveis são coletivamente racionais. da Natureza» (Leviathan, p. 80).
Assim sendo, resumindo a visão de Hobbes por contraste, por exem- Finalmente, Hobbes dá uma definição de filosofia moral quando
plo, com a de Kant, deparamo-nos com o seguinte: diz, «A Paz é benéfica, e por isso também o modo, ou os meios para
a) O que tradicionalmente era considerado Leis da Natureza (con- atingir a Paz, que [... ] são Justiça, Gratidão, Modéstia, Equidade, Miseri-
forme definido no início desta secção) tem o conteúdo e papel córdia [... ] quer dizer, Virtudes Morais; e os seus Vícios opostos, o Mal.
que ~ss?cia--~os ao Razoável. Vamos chamá-los de Artigos de Então, a ciência da Virtude e do Vício é a Filosofia Moral; logo, a ver-
Concordza. Czvzca (ou paz). Estes últimos podem ser interpretados dadeira Doutrina das Leis da Natureza é a verdadeira Filosofia Moral»
como ~rhgos para a conservação de seres humanos que vivem (Leviathan, p. 79). Deste modo, ele está a definir filosofia moral como a
em sociedade. Para Hobbes, estes artigos constituem a matéria ciência destes ditames da razão, as Leis da Natureza, que é necessário
da ciência moral - a ciência do bem e do mal. A virtude destes que todos sigam se quiserem alcançar a paz. Ou, explicando de outro
pri~~ípios ~~nsiste no facto de serem meios para uma vivência
modo, Hobbes considera a filosofia moral a ciência do que é necessá-
pacífica, soczavel e confortável, em que a paz é considerada bené- rio para preservar o bem dos homens em grupos. Alega que o objeto
fica por comum acordo de todos os seres humanos (quando da filosofia moral é perceber e explicar o conteúdo destes preceitos, as
racionais); Leis da Natureza - explicar os motivos pelos quais se baseiam na
b) Apesar do conteúdo e papel dos artigos de concórdia cívica racionalidade. A explicação que poderíamos dar, então, para o facto
serem suficientemente padronizados, os fundamentos sobre os de serem princípios razoáveis é que eles se transformam nos tipos de
quais Hobbes os justifica caem apenas sob o Racional: estes arti- preceitos que são necessários para tornar possível a vida social.
go~ justificam-se para cada pessoa apelando à sua deliberação
Hobbes vê-se a explicar a base destes princípios, não como as escolas
racwnal conforme descrição anterior. Julgo ser esta a intenção de fazem através de Aristóteles (mediocridade, paixões), nem por um
Hobbes quando os chama «senão Conclusões, ou Teoremas apelo à religião ou à revelação, etc.; nem recorrendo à história, ex. Tucí-
rela~ivos ao que levou à conservação e defesa de si próprios» dides. Enquanto ditames da razão, as Leis da Natureza não são formu-
(Levzathan, p. 80). Tornam-se leis quando vistos sob o aspeto de ladas por indução, por um levantamento da história das nações, etc.
ordens de Deus. Portanto, para Hobbes o fundamento do Ra- Chegamos a elas através da ciência dedutiva: regressando aos primei-
zoável é o Racional; ros princípios do corpo e da natureza humana, e percebendo como a socie-
c) Por esta razão, não acredito (o que certamente pode ser questio- dade política deve (o cidadão ou o Leviathan) funcionar, considerando
n~d~) que n~o haja espaço algum em Hobbes para a noção de as partes que a constituem quando se encontra, por assim dizer, dis-
d1relto e obngação moral, tal como é normalmente entendida. solvida. Ele analisa os elementos básicos de sociedade, os seres huma-
A estrutura formal de direitos e obrigações e afins está lá; mas se nos, tentando identificar interesses fundamentais através dos quais
o direito e a obrigação moral implicam um fundamento dife- todos se movem. Em seguida, baseando tudo nessa análise, conclui
rente do Racional, como acredito que assim seja, Hobbes não que para realizar esses interesses fundamentais é necessário que esses
t~m lugar para essa noção na sua visão oficial. Isto explica par-
ditames da razão, ou leis da natureza, sejam seguidos por todos. Para
cialmente o ataque que faz à doutrina tradicional. (Ver apêndice A que isso aconteça, obviamente, deve haver um Soberano. O Soberano,
deste capítulo.) ou o Leviathan, é uma pessoa artificial que deve desempenhar uma
determinada finalidade. Como veremos na próxima ocasião, a tarefa do
Quanto à nossa obrigação de obedecer às leis da natureza Hobbes Soberano é tornar razoável a todos nós o cumprimento destes ditames
diz que estas últimas associam-se a um desejo que deveria~ realizar porque sabemos que a existência de um Soberano efetivo vai garantir
que outros também os homem. Na ausência dessa garantia não seria

94 95
razoável ou racional para ninguém homá-los. O Soberano é a condição alguém que viole o seu acordo ou declara com efeito a sua pronti-
necessária do facto de ser racional para cada um de nós agir sobre e dão para a infidelidade (torna a sua duplicidade pública, por assim
seguir estes princípios razoáveis. Se é para esta pessoa artificial desem- dizer), o que quer dizer que não pode esperar a ajuda e o auxílio de
penhar esta finalidade ou papel efetivamente, a sociedade política outros; ou então, se rompe o seu compromisso em silêncio (e
deve ser construída, por assim dizer, de um determinado modo. E do outros ficam sem conhecimento disso), é aceite pelos seus confede-
que se trata, cabe à Razão enquanto Ciência (filosofia moral) discernir. rados por engano, ou por falha, o que em ambos os casos não quer
dizer que não serão razoavelmente descobertos, com os prejuízos
consequentes para a segurança individual. Assim, a violação de
HOBBES PALESTRA III: APÊNDICE A (1979) acordos válidos, quer aberta ou secretamente, apresenta-se razoa-
velmente para nosso eventual detrimento: devíamos assumir que a
EM CASO DE HAVER OBRIGAÇÃO MORAL EM HOBBES infidelidade é sempre um meio necessário à nossa autopreservação;
c) Hobbes argumenta ainda que considerações teológicas (a respeito
Irei começar a discussão desta questão debruçando-me sobre a da nossa salvação e felicidade eterna) não podem ser invocadas
resposta que Hobbes dá ao louco que diz não haver justiça: S: 120-130 para dar uma conclusão diferente. Não há nenhum conhecimento
em I: cap. 15 [1.ª ed., 72 e segs.]. natural da nossa vida após a morte e, portanto, uma quebra de
1. A tese de Hobbes é a seguinte: no caso de acordos em que a outra compromissos na base de tais considerações (nomeadamente,
parte já cumpriu, ou em que há poder para obrigar a outra parte a cum- infidelidade para com os detentores de outras crenças considera-
prir (ou a prestar compensação), então estará sempre de acordo com a dos hereges) opõe-se à razão.
razão correta homarmos o nosso compromisso. (Partamos do princípio
que a realização do acordo foi racional para ambas as partes.) Tal como 3. Resumi o argumento de Hobbes contra o louco que diz não haver
dissemos anteriormente: nestas condições, é (sempre) racional ser razoá- justiça apenas para reforçar a ideia de que nesta passagem muito cru-
vel. Manter acordos (válidos) é sempre um ditame da razão correta. cial o apelo prende-se só com o nosso interesse primário pela nossa
2. Hobbes assinala três pontos que sustentam a sua tese: segurança e autopreservação (incluindo aqui o desejo por uma vida
confortável). Hobbes sustenta que:
a) Não nega que se poderá violar um acordo e, com o desenrolar
dos acontecimentos, aproveitar-se bastante disso; mas Hobbes Nunca é razoável esperar tirar partido (tendo em conta a nossa
defende que nunca podemos esperar tirar partido razoavelmente. autopreservação) da quebra de acordos válidos, apesar de que, às
Dada a forma como a vida social se apresenta, a única expectativa vezes, acontece a infidelidade ser, de facto, proveitosa.
razoável é a de perda para nós próprios. O facto de a infideli- Hobbes faz o argumento transformar-se numa questão de facto e no
dade às vezes ser bem sucedida não prova o contrário. E aqueles que é razoável esperar dadas as condições permanentes da vida humana
que ganham com ela ainda agem contrariamente à razão cor- e as propensões da psicologia humana.
reta, visto que não podiam ter esperado ganhar razoavelmente.
Isto passa-se, segundo Hobbes, no caso de uma rebelião bem O seu argumento pode ser reforçado dando ênfase a dois aspetos
sucedida que depõe o Soberano e instala eventualmente um que ele próprio assinala noutro lugar:
governo ativo. Acontecimentos deste tipo não são desconheci-
dos, mas quem se envolve em rebeliões age todavia contraria- a) Primeiro, a enorme incerteza da vida humana sempre que as con-
mente à razão; não tinham nenhuma razão para esperar que dições de paz e segurança são ameaçadas ou minadas. Perante
seriam bem sucedidos, ou, tendo tido sucesso, o seu exemplo esta incerteza e as perdas graves que são possíveis sem paz, uma
não encorajará outros a arruiná-los por fim; pessoa racional irá corretamente descontar as perspetivas dos
b) O outro argumento de Hobbes é que dependemos plenamente da ganhos imediatos e do presente das quebras de confiança, dadas
ajuda de confederados para nos defender contra terceiros; e as condições de paz;

96 97
b) Segundo, uma pessoa racional irá também admitir que orgulho e para serem [cumpridas] mesmo que causem algum prejuízo, com
vanglória constituem muito provavelmente o que nos incita à infi- o desenrolar dos acontecimentos, a alguém, tratando-se até de
delidade (quando a paz se alcança e os acordos válidos se man- uma determinada perda total;
têm). O orgulho e a vanglória distorcem a nossa perceção e b) Segundo, uma pessoa razoável tem algum interesse por aquilo
enviesam as nossas deliberações que, quando corrigidas, pode- que, vagamente falando, se denominam de considerações de jus-
mos ver que são erróneas e destrutivas da nossa autopreservação. tiça e pelas distribuições de ganhos e prejuízos entre, por exem-
plo, as partes de um acordo. O importante aqui é o equilíbrio de
4. Muitos de nós poderão ainda, sem dúvida, considerar o argu- vantagens na altura em que o acordo foi feito, o que poderemos
mento de Hobbes pouco persuasivo acerca dos factos da matéria. Os chamar de capacidade de negociação das pessoas. Uma negociação
exemplos do Dilema do Prisioneiro em assuntos políticos podem apa- razoável é a que satisfaz determinadas condições de justiça de
recer para refutar as suas reivindicações. Mas devemos resistir à ideia, fundo. Mais tarde tentaremos discutir o que poderão ser estas
creio eu, de que Hobbes não conhece estes tipos de casos, de que é condições em determinadas perspetivas. Mas é assinalável que
menos perspicaz do que nós e não considerou as possibilidades mais na sua resposta ao louco Hobbes não menciona este elemento; e
complicadas. de facto o teor da sua conceção política opõe-se-lhe. Hobbes diz
Conforme definido na sua explicação acerca de razão prática, o que uma promessa é vinculativa mesmo quando se é coagido a
meu palpite é que a ideia básica de Hobbes ao tentar mostrar que é fazê-la (I: cap. 14, p. 69), ou não se tem nenhuma outra alternativa
racional ser razoável tanto o levou a não prestar atenção a estes casos genuína; porque ainda é um ato voluntário, e, como todos esses
ou, na verdade, a considerá-los pouco importantes. O seu erro a este atos, feito na perspetiva de nos ser vantajoso.
respeito, se é que se pode chamar assim, não é certamente estupidez;
mas resulta da sua ideia subjacente. Hobbes quer recorrer apenas ao Assim, concluo que a visão de Hobbes, assim expressa na sua res-
nosso interesse por autopreservação porque quer somente apelar aos posta ao louco, não cria espaço à noção habitual de obri~aç~o m?ral (a
interesses mais fundamentais que, segundo ele, ninguém irá pôr em respeito de promessas, por exemplo) porque esta noçao 1mphca ter
causa. Assim, ele simplifica drástica mas intencionalmente. alguma preocupação por justiça (nomeadamente, as circunstâncias
5. O argumento contra o louco mostra, julgo eu, que Hobbes de sob as quais as promessas são dadas) e pelo cumprimento de promes-
facto não recorre à noção de obrigação moral (como é normalmente sas mesmo quando poderíamos fazer melhor. E se considerarmos rigo-
entendida) neste argumento. Mas já teremos nós demonstrado que a rosamente a explicação de Hobbes acerca de razão prática, parece que
sua conceção de razão prática não iria permitir que o fizesse? O que é tanto uma como a outra situação estão excluídas.
que a sua conceção de racionalidade parece excluir? Digamos que é a
noção do razoável no sentido que se segue:
HOBBES PALESTRA III: APÊNDICE B
a) Primeiro, há diferentes tipos de razões que podemos ter para vio-
lar acordos. Hobbes não argumenta contra o louco alegando que AS LEIS DA NATUREZA DE HOBBES: LEVIATHAN, CAPÍTULOS 14-15
este último recorre ao tipo errado de razões; ele disputa as suposi-
ções de facto do louco. Contrastivamente, uma pessoa razoável não Lei da Natureza= definida como Preceito encontrado pela Razão
pensa que é uma [razão] suficiente violar a sua promessa com a que nos proíbe de fazer o que é destrutivo para a nossa vida, etc.
qual pode ganhar alguma vantagem permanente e a longo prazo. (Leviathan, p. 64).
Talvez a situação tenha sofrido uma mudança que se tivesse pre- l.ª Lei da Natureza: l.ª secção: procurar paz; 2.ª secção: defen-
visto a promessa não teria tido lugar; um compromisso diferente dermo-nos (64).
ter-lhe-ia sido mais vantajoso. No entanto, isto não é suficiente 2.ª Lei da Natureza: estarmos dispostos, quando outros também
para recuar na promessa. Deste modo, uma caraterística do pen- estiverem, a renunciar ao direito a todas as coisas, em nome da paz
samento de uma pessoa razoável é a seguinte: as promessas são (64 e segs.)

98 99
3.ª Lei da Natureza: cumprir os acordos realizados (64 e segs.) foro interno), mas nem sempre colocando-as em ação (in foro externo),
4. ª Lei da Natureza: Gratidão: não levar ninguém a rejeitar a sua porque se um homem cumpre tudo o que promete, ao co.ntrário dos
boa vontade (75-76). outros, está-se a «tornar numa presa para eles, e a garantu decerto a
5.ª Lei da Natureza: Adaptação mútua (76). sua ruína, contrariamente ao fundamento de todas as Leis da N atu-
6.ª Lei da Natureza: Perdoar ofensas, após arrependimento (76). reza» (Leviathan, p. 79).
7.ª Lei da Natureza: Punir para o bem futuro, não por vingança Hobbes julga que cada lei natural é para o bem racional de cada
(76). indivíduo. Portanto, temos efetivamente um argumento de que as
8.ª Lei da Natureza: Não mostrar desprezo e ódio para com os caraterísticas razoáveis da vida social se justificam pela vantagem
outros (76). racional de cada pessoa. No argumento que constrói, ele pretende jus-
9.ª Lei da Natureza: Reconhecer os outros como iguais por natu- tificar todos os preceitos que surgem sob as leis da natureza como
reza, contra o orgulho (76-77). imperativos deste tipo, mas isso só acontece se todos os outros indiví-
10.ª Lei da Natureza: No momento do Contrato Social, ninguém se duos os seguirem.
reserva nenhum direito que não está disposto a que outros se reser-
vem igualmente, contra a arrogância (77).
11.ª Lei da Natureza: Que os juízes devem julgar de igual modo
entre os homens (77).
12.ª Lei da Natureza: Uso de Comida (77).
13.ª Lei da Natureza: Uso de Terra (78).
14.ª Lei da Natureza: Uso de terra natural: primogenitura (78) (11-
-14 referente a distribuição de justiça).
15.ª Lei da Natureza: Os Mediadores devem usufruir de salvo-
-conduto (78).
16.ª Lei da Natureza: Submeter as controvérsias à mediação (78).
17.ª Lei da Natureza: Nenhum homem julga no seu próprio caso
(78).
18.ª Lei da Natureza: Nenhum homem julga quem é parcial por
causas naturais (78).
19.ª Lei da Natureza: Julgar em controvérsias de facto, não valori-
zar mais uma testemunha do que outra, etc. (78) (15-19 referente a
Justiça Natural).
Resumo das Leis da Natureza: Não façamos aos outros o que não
faríamos a nós próprios (79).
As Leis da Natureza vinculam in foro interno (79).
Def. Filosofia Moral: Ciência do bem e do mal na sociedade dos
homens (79 e segs.).
Argumento para as Leis da Natureza a partir de Condições Ne-
cessárias de Paz (80).
Leis da Natureza desadequadamente denominadas de Leis: elas
são ditames da Razão, teoremas referentes à nossa conservação (80)
[1983] Quanto à nossa obrigação de obedecer às leis da natureza,
Hobbes diz que estas se associam a um desejo que devem realizar (in

100 101
HOBBES IV

PAPEL E PODERES DO SOBERANO

Analisei os fundamentos que levaram Hobbes a pensar que um


estado de natureza se transforma na altura própria num estado de
guerra, de tal modo que, efetivamente, são a mesma coisa. O estado
de guerra é um estado que é mutuamente destrutivo, e admitamos que
o é na globalidade para todas a gente. Tanto quanto sejam racionais,
as pessoas irão, então, querer evitar ter coisas a ter de voltar para um
estado de natureza. O que tentei fazer foi tecer uma interpretação mais
instrutiva do argumento de Hobbes, realçando esses seus aspetos que
só apelam às caraterísticas normais e permanentes da vida humana, e
evitando recorrer a alguns dos elementos mais dramáticos que enfati-
zam o orgulho e a vanglória e outros elementos desse tipo. Apesar de,
obviamente, termos de admitir que se tratam de possibilidades contra
as quais temos de nos proteger; mesmo não sabendo que é esse o caso
devemos tê-las ainda em consideração.
Com sinceridade, parece, então, que na visão de Hobbes o papel do
Soberano é estabilizar, e, com isso, manter aquele estado social em que
todos, normal e regularmente, aderem às Leis da Naturezq., e a que Hob-
bes chama de «Estado de Paz». O Soberano estabiliza a sociedade
impondo efetivamente sanções que «intimidam» toda a gente. É do
conhecimento público que o Soberano é efetivo quando toma racional para
cada pessoa obedecer às leis da natureza. Ele fornece a todos a garantia
de que as Leis da Natureza serão postas em prática. A maior parte das
pessoas obedece, sabendo que os outros também lhes irão obedecer.
Gostaria agora de dizer algumas coisas acerca da estrutura formal
da situação no estado de natureza, e pretendo fazê-lo comparando-a

103
ao jogo do Dilema do Prisioneiro, uma ideia que parece ter sido inven- 2. ºprisioneiro: não confessa 2. ºprisioneiro: confessa
tada em 1950 por um matemático de Princeton, A. W. Tucker. O Dilema
do Prisioneiro é o cas? de um jogo para duas pessoas, não cooperativo 1.º prisioneiro:
e de soma não nula. E não cooperativo porque os acordos não são vin- Não confessa 2,2 10
culativos (ou aplicáveis), e de soma não nula porque não se trata do
caso em que o que uma pessoa ganha a outra perde. É frequentemente 1.º prisioneiro:
confessa O, 10 5,5
discutido no contexto das instituições políticas, e também no âmbito
de noções morais. Muitos de vocês já terão provavelmente ouvido falar
dele. FIGURA 2 - Dilema do prisioneiro n. º 1
Um exemplo padrão do Dilema do Prisioneiro é a seguinte matriz
compensatória (ver figura 2). Imaginem que dois prisioneiros foram
detidos por um crime, levado para interrogatório, e levados à presença máximo de cinco anos de encarceramento, conforme indicado no par
separadamente do Procurador Público, cujo objetivo é obter as suas '5, 5'. Não confessando, um arrisca-se a uma sentença de dez anos na
confissões. Para o conseguir, o PP dá a conhecer, em separado, as se- esperança de só apanhar dois. Por isso, a ação de confessar domina a
guintes opções e consequências: se nenhum dos dois confessa, vão os ação de não confessar, para ambos e de igual modo.
dois ser acusados de uma ofensa menor e ficar na prisão durante dois Se escolherem a alternativa dominante, o resultado para ambos os
anos. Se ambos confessarem, ficarão presos durante cinco anos. Se um prisioneiros é um equiltbrio estável. Ou seja, cada prisioneiro arrisca-se
confessar e o outro não, o primeiro será libertado e o segundo ficará a perder se não confessar e o outro o fizer. Por isso o par do sudeste é
preso durante dez anos. Tudo isto está indicado na figura 2. Em cada um ponto estável no sentido em que não compensa a nenhum deles
quadrado há dois números: o primeiro é o número de anos na prisão desviar-:-se dele. Por outro lado, se ambos agirem racionalmente e con-
para o primeiro prisioneiro; o segundo é o número de anos na prisão para fessarem, sucederá todavia que ambos estarão pior do que se conseguis-
o segundo prisioneiro. sem de algum modo estabilizar a atitude mais razoável - se pudessem
O dilema dos prisioneiros é saber pesar e equilibrar as consequên- fazer e depois aplicar um acordo prévio de não confissão. Os dois pri-
cias infelizes para cada um deles nesta situação. A ação «Confessar» sioneiros estão isolados, porém, mesmo podendo juntar-se antes de
domina a ação «não confessar» para ambos. O que isto significa é que partirem e dizerem, «Prometo não confessar», nenhum dos dois poderia
a coisa mais racional para cada um fazer é confessar, independente- confiar no outro no sentido de manterem uma promessa. Por isso, só
m~nte do que o outro fizer. Por isso, compensa ao primeiro prisio- vale a pena fazer promessas se existirem entre eles laços prévios de
neiro em cada caso ocupar a segunda linha; isto é, confessar. Porque se amizade ou afeto ou relações de confiança. Ou se pertencessem a um
1 o segundo prisioneiro não confessar, então o primeiro fica totalmente grupo ou a um gang, cujo líder se certificaria de que o primeiro a denun-
livre, conforme indicado pelo par 'O, 10' na segunda linha. Enquanto ciar o outro seria «lançado aos tubarões». Caso contrário, ambos serão
se não confessar e o segundo prisioneiro também o não fizer, então o tentados a confessar e essa é que é a questão.
primeiro teria de passar dois anos na prisão (conforme indicado pelo A relevância disto para Hobbes é que as pessoas que contemplam
par '2, 2' na primeira linha). Para além disso, confessar e apanhar a realização de promessas no Estado de Natureza encaram de certa
cinco anos é melhor do que ter o outro a protestar e fazê-lo passar dez forma a mesma situação (apesar de não ser de modo algum exata-
anos na prisão. E é simétrico para cada um deles, logo têm um incen- mente a mesma). Uma diferença é que o estado natural será um jogo
tivo para confessar tendo em conta que a segunda linha domina a pri- recorrente. Por outras palavras, um indivíduo envolve-se normalmente
meira e que a segunda coluna também domina a primeira. A ação nesta situação com confederados não só uma vez, mas repetidamente,
mais razoável para ambos - nenhum devia confessar - é instável, pois o que será diferente de quando só há um único encontro. Ainda assim,
nenhum dos dois pode confiar que o outro faça o mesmo; e a conse- penso que a visão de Hobbes é que a condição geral da humanidade
quência de alegar inocência enquanto o outro confessa é dez anos na só permite dois estados estáveis, sendo um deles o estado da natureza,
prisão. Ao confessar, um garante tanto a liberdade ou um período no que é um estado de guerra. O outro pode ser designado de «_estado

104 105
do Leviathan», no qual, como Hobbes diz às vezes, há um Soberano - Nação 2: obedece Nação 2: não obedece
absoluto que aplica as leis da natureza, e certifica-se de que todos as
seguem. Nação 1:
A razão pela qual o estado da natureza se transforma num estado Obedece P, p S, 1
de guerra, e o motivo pelo qual é um estado estável, o que significa
que é difícil sair dele, é que não há nenhum Soberano efetivo. Os pac- Nação 1:
tos não têm utilidade nenhuma, porque, de acordo com Hobbes, pala- Não obedece 1, s G,G [D, D]
vras desse tipo não produzem efeito visto que ninguém pode confiar
noutra pessoa no sentido de as cumprir. A razão é que a pessoa que o FIGURA 3 - Dilema do prisioneiro n. º 2
faz em primeiro lugar não tem forma de assegurar que a outra parte
vai cumprir na ausência de um Soberano. Num pacto, a participação
re9ue:ida é hab~tualmente dividida no tempo. Uma pessoa participa Se 'D, D' forem demasiado agressivos poder-se-á dar o caso de se
pnme1ro, e depms, algumas semanas ou meses mais tarde, é a vez de a implementar uma força de dissuasão [nuclear]. Então podemos nunca
outra desempenhar a sua participação. Entre o desempenho das duas querer violar o acordo. Mas, contrariamente, num caso de um acordo
a _situação pode alterar-se e o segundo participante terá razões para de armamento, teríamos a mesma situação como no Dilema do Prisio-
nao honrar o pacto. Sabendo isso, a primeira pessoa não tem meios neiro; ou seja, o acordo para desarmar, ou para reduzir armamento, é
para manter o pacto de pé. Por isso, normalmente não faria sentido muito instável. Se ambas as partes conseguirem honrá-lo, então esta-
algum fazer pactos nesse estado. A forma como Hobbes vê a situação ríamos no canto superior esquerdo e estariam todos melhor. Mas existe
é a seguinte: «Portanto aquele que participa em primeiro lugar, trai-se a sempre o perigo de não podermos confiar que a outra parte cumpra o
si próprio perante o inimigo; contrariamente ao Direito (que nunca seu compromisso. Assim, trata-se de um caso em que o violador apa-
poderá abandonar) de defender a sua vida, e meios de subsistência» nha todos os berlindes e nessa situação vamos acabar, ou tender para
(Leviathan, p. 68). acabar, no canto inferior direito, com guerra ou, pior ainda, com des-
~a:a c~mpreender o motivo pelo qual Hobbes entende a primeira truição mútua.
partic1paçao num pacto como um caso de autotraição, vejamos nova- O problema, então, como Hobbes o vê, é como nos havemos de libertar
mente o Dilema do Prisioneiro. A tese de Hobbes é que o estado natu- do estado de natureza e passar para o estado de sociedade-Leviathan.
ral, que é um estado de guerra, é um estado estável, de modo muito Como iremos fazer isso, visto que no estado natural acordos entre
semelhante ao canto inferior direito do Dilema do Prisioneiro. Não indivíduos estão sujeitos ao tipo de instabilidade que acabámos de
compensa a ninguém partir dessa escolha. Portanto, na ausência de discutir? Hobbes encara este problema como uma questão de defini-
alguma mudança nas condições de fundo, será um estado estável. Isto é, ção do que é preciso para nos libertar do estado de natureza.
se não houver alguma sanção externa como as que já foram discutidas O que temos de fazer em primeiro lugar será definir um estado
que esteja fora de toda a situação em que os prisioneiros se encontram, social mutuamente benéfico, que inclua concórdia e paz civil estáveis
então ambos irão confessar, apesar de ser melhor para eles se não o e seguras. Que estado é esse e quais são os preceitos que o caraterizam?
fizerem. Na opinião de Hobbes, seria, em primeiro lugar, caraterizado pelos
Como exemplo de uma situação real em que o estado de natureza preceitos dos ditames da razão, que são as Leis da Natureza (Leviathan,
ainda existe, Hobbes menciona a relação entre Estados-nação (Levia- p. 63), e, em segundo lugar, pela ideia de que essas leis são efetivamente
than, p. 63). Consideremos esta matriz (figura 3.) para representar esse aplicadas por um Soberano ou poder comum que tem todos os poderes
estado. No canto superior esquerdo inserimos um P para paz, no infe- necessários para o fazer. Assim, os preceitos de base resultariam das
rior esquerdo 'I, S', sendo T império e 'S' submissão. E colocamos no leis naturais e depois surgiria o Soberano com estes poderes necessários
superior direito 'S, I', que representam submissão e império; e assim e efetivos, e, em seguida, obviamente, acima de tudo isso haveria as
se inverte. Em seguida, no inferior direito pomos 'G, G' que deveria ser leis particulares do Soberano, ou seja, a lei civil.
'guerra-guerra', ou, sendo demasiado agressivo, podemos pôr 'D, D', Depois a terceira coisa a fazer seria estabelecer este estado mutua-
que seria 'destruição-destruição'. mente benéfico. Para Hobbes este último é feito pelo Contrato Social,

106 107
pelo qual se pretende o estabelecimento de um Soberano por «insti- :que os outros estariam a fazer o mesmo. Mas, na sociedade mais abran-
tuição», ou por autorização. Assinale-se que ele julga que um Soberano gente poder-se-á argumentar: «Não sei se os outros estão a pagar os
pode surgir através de conquista, ou por «aquisição», segundo as suas seus impostos e não quero ser enganado por eles. Não quero que a
palavras. Trata-se de um ponto muito importante a mencionar, nomea- minha honestidade seja lesada por aqueles que se recusam a pagar.»
damente o facto de o Soberano ter os mesmos poderes em qualquer :Trata-se de um caso em que apesar de todas as pessoas serem hones-
um dos casos, tendo vindo por conquista, ou por autorização, ou ins- tas, e apesar de todos estarem preparados para pagar os seus impos-
titucionalmente através de contrato social. Hobbes menciona que se tos se outros o fizerem, ainda seria razoável que concordassem com o
temos dois países governados pelo mesmo Soberano, mas num deles estabelecimento de um Soberano com os poderes necessários para
o poder do Soberano resulta de aquisição ou de conquista, e no outro garantir que efetuassem esse pagamento. É perfeitamente racional
através de um contrato social por via de autorização ou instituição, o que todos nós concordemos com a situação de ter um ~oberano, por-
Soberano tem precisamente os mesmos poderes em ambos os países que, caso contrário, ninguém tem uma forma de garantir que o outro
(Leviathan, p. 102). Não há diferença. Será efetivamente o mesmo re- faça o pagamento relativo ao imposto.
gime constitucional. (Estou a usar o termo 'constitucional' aqui de modo Neste exemplo não presumi que haja na verdade intrujões. Parti
bastante lato, sem implicações formais de um acordo constitucional ou do princípio que ficam todos felizes por pagarem os seus impostos,
qualquer coisa do género.) mas só se souberem que os outros o vão fazer de igual modo. O que o
O que acontece a seguir é que este estado mutuamente benéfico Soberano realmente faz, então, é estabilizar este esquema para que
deve ser estabilizado através da instituição de uma agência que asse- todos façam o que lhes é mutuamente vantajoso. Encontram-se muitos
gure que cada pessoa tenha normalmente motivos suficientes para agir exemplos deste tipo na vida comum. A ideia é que se torna racional
de acordo com as regras e que estas últimas sejam habitualmente para cada um de nós querer que alguma forma de sanção coerciva seja
seguidas. O Soberano não faz isto mudando o caráter das pess~as, por imposta, apesar de não haver ninguém que não esteja realmente dis-
assim dizer, ou alterando a natureza humana. O que realmente faz é
ponível para fazer o que supostamente deve, fazer. Julgo que Hobbes
alterar as condições de fundo contra as quais as pessoas argumentam e
é um dos primeiros a ter um entendimento claro acerca destas situações.
vão fazer contratos e decidir honrá-los e aderir aos outros preceitos
Vejamos agora a noção de autorização e prossigamos com alguns
da razão ou leis naturais. Com efeito, dada a existência do Soberano,
c'omentários acerca de leis justas e boas. A noção de autorização é dis-
torna-se agora racional fazer o que, no estado natural, não é racional
cutida no capítulo 16 no fim do Livro 1 de Leviathan. Aqui Hobbes
fazer, nomeadamente aderir às leis da natureza. Portanto, em jeito de
escreve sobre a criação do estado como forma de ultrapassar o estado
repetição, o que o Soberano faz não é reformar seres humanos, ou alte-
rar o seu caráter, mas mudar as condições de fundo contras as quais eles de natureza em que o comportamento de todos é, como acabámos de
argumentam. descrever, contraproducente. Hobbes inicia o capítulo 16 com uma
Possivelmente, um bom exemplo poderá ser um conhecido. Veja- definição de «pessoa»: Uma pessoa, é aquele cujas palavras ou ações são
mos o caso do pagamento voluntário do imposto sobre os rendimen- consideradas, quer próprias, quer representativas de palavras ou ações de
tos de uma pessoa. Faço agora suposições sobre o facto de pensarmos outro homem, ou de qualquer outra coisa a quem lhe seja atribuída, verdadeira
que os impostos são gastos sensatamente em coisas de que todos pre- ou ficticiamente. Quando são consideradas próprias, então o indivíduo é
cisamos, e também que o imposto sobre rend~mentos é aplicado justa- designado Pessoa N aturai. E quando são consideradas representativas
mente, para que as pessoas não tenham várfos tipos de motivos que de palavras e ações de outro, então é uma Pessoa Artificial ou Falsa.
poderão ter para não os querer pagar. Partamos então do pressuposto O Soberano, ou a assembleia, é visto por Hobbes como uma pessoa
que o imposto sobre rendimentos que é recolhido está a ser gasto em .artificial, porque o Soberano é alguém que foi autorizado por membros
coisas de que as pessoas precisam, para benefício comum, e que o da sociedade para agir em seu nome. Tendo-lhes dado autorização, nós
período de aplicação do imposto é justo. Se tivéssemos um esquema detemos as ações do Soberano e reconhecemo-las como nossas. Diz-se
voluntário do imposto sobre rendimentos, podia ser que todos ficas- que representantes e agentes são atores nessas suas palavras e ações
sem contentes ao efetuar o pagamento do seu imposto se pensassem que estão na posse por aqueles que representam. O Soberano, eptão, é

108 109
uma espécie de ator, e as suas ações são detidas por nós, visto que ele .Um segundo aspeto é o uso de direitos de muitas pessoas de que
nos representa. 0 Soberano goza ter-lhe sido conferido por um pacto entre si. Isto é, para
A noção de autoridade foi introduzida da seguinte forma. Uma ação Hobbes, o pacto original, ou soberania por instituição, é um pacto entre
do Soberano é feita através de autoridade quando desempenhada por todos os membros de uma sociedade, mas não com o Soberano.
uma pessoa pública autorizada com esse mesmo direito. Por outras As pessoas pactuam entre si, exceto com o Soberano, para autorizar
palavras, uma determinada pessoa, A, comete a ação x através da este último como seu agente e conferir-lhe o uso dos seus direitos.
autoridade de B se B tiver o direito de fazer x e tiver autorizado ou con- A relação que se estabelece entre o Soberano e os membros da socie-
cedido o direito a A para fazer x. Por isso autorizar alguém como nosso dade é de autorização, e não de pacto. O Soberano é o ator e cada cida-
representante ou agente é dar a essa pessoa o uso dos nossos direitos. dão é o autor dos atos do Soberano, ou o detentor das suas ações.
Significa que lhes demos a autoridade de agir, de algum modo, em nosso O Soberano é o seu agente, e não há, segundo Hobbes, um contrato
nome. Assim, o Soberano é a pessoa que todos autorizaram a agir em entre ele e os membros da sociedade. Não acredito que se trate em si
sem nome de determinadas maneiras; nesse sentido, o Soberano é nosso mesmo de um aspeto muito importante, porque no caso do ato de
agente, e age com autoridade. submissão, em que a soberania é por aquisição ou conquista, há um
Irei agora tecer alguns comentários acerca de autorização. Primeiro, pacto entre os que se submetem e o Soberano. Não há o mesmo tipo
autorização não é simplesmente a renúncia de um direito em meu nome. de acordo como no caso da autorização, mas há uma forma de
Permite, na verdade, que outra pessoa use o meu direito de agir de acordo. Ainda assim, para Hobbes, no caso da instituição do Sobe-
uma determinada maneira. Assim, não renunciamos ou abandona- rano por autorização, o pacto não se efetua com este último mas entre
mos os nossos direitos ao autorizar o Soberano; autorizamo-lo a usar todos os membros na sociedade.
os nossos direitos de certas formas. l Até agora esta explicação é deveras informal e diz somente respeito
Segundo, a pessoa que detém o uso do meu direito e que é meu à noção de autorização. O relato que Hobbes faz no seu livro anterior
agente tem agora um direito que antes não tinha. Isto é, se autorizar- De Cive (1647) é diferente, visto que o Soberano se torna Soberano pela
mos o Soberano a usar os nossos direitos, então o Soberano tem direi- renúncia de todos ao direito de lhe resistir. Logo, não se trata de o
tos que antes não tinha. Soberano não ser autorizado em De Cive; é só que todos os indivíduos
Terceiro, a autorização pode ter uma duração mais longa ou mais renunciam a certos direitos que lhes dariam algumas condições para
curta e isso, obviamente, depende da atribuição de autoridade, do seu resistir ao Soberano. Em Leviathan todos conferem o uso do seu direito
propósito e afins. No caso do Soberano, será claramente um longo ao Soberano por intermédio de um contrato entre si, para que o Sobe-
período de tempo. Segundo Hobbes, a longevidade da autorização rano se transforme em seu agente; e Hobbes acredita que assim se crie
será perpétua. um sentido diferente e mais forte de comunidade social do que aquele
Isto conduz-nos, então, à autorização do Soberano. Hobbes diz, que se tem em De Cive.
«A Essência do Estado [... ]é Uma Pessoa, de cujos Atos uma grande Multi- Em seguida, é um exercício útil tentar perceber o que supostamente
dão, por Pactos mútuos entre si, fez de cada um o Autor, e que para o fim pode consta do contrato social. Se considerarmos A e B como quaisquer
usar a força e meios deles todos, conforme julgar oportuno, para a sua Paz e membros da sociedade, e se tentarmos redigir um contrato hipotético,
Defesa Comum» (Leviathan, p. 88). Hobbes explora mais alguns aspetos os termos poderão ser os seguintes:
acerca disto, sendo que um deles defende que o Soberano deve ser o A primeira cláusula seria: «Eu, A, pelo presente acordo contigo, B,
único ator a quem estes direitos são conferidos. Ou seja, não pode a autorizar F (que é o Soberano, ou algum organismo soberano) a ser
haver dois ou mais soberanos. Todas as partes no pacto original auto- o meu único representante político, e, portanto, comprometo-me dora-
rizaram igualitariamente a mesma pessoa, ou a mesma assembleia de vante a deter todas as ações do Soberano tanto quanto seja compatível
pessoas, como o ator que tem autoridade para usar os seus direitos. com o meu direito inalienável de autopreservação e as minhas liber-
E esta pessoa ou assembleia soberana tem o uso de direitos que não dades naturais e verdadeiras» (ver Leviathan, pp. 111-112; ver também
tinha antes de o pacto ser realizado. p. 66). No capítulo 21 Hobbes menciona algumas liberdades q11e não

110 111
podemos alienar; por isso, o que fiz aqui foi dizer que me comprometo quências se nos considerarmos autorizados a desobedecer a leis que
a deter e a apoiar todas as ações do Soberano exceto nestes casos pensamos não serem justas ou boas. Contudo, comprometer-me a nem
especiais. sequer colocar a hipótese de ajuizar uma lei a não ser que seja incom-
A segunda cláusula seria: «Comprometo-me a manter contínua e patível com alguns dos meus direitos inalienáveis e firmes como o de
perpetuamente esta autorização do Soberano como meu único repre- autopreservação é uma condição muito forte. Há, no entanto, afirma-
sentante político e não fazer nada que seja incompatível com esta ções nos capítulos 29 e 30 em que Hobbes declara isto mesmo.
autorização». Mesmo podendo ser errado caraterizar de totalitária a visão de Hob-
A terceira: «Comprometo-me a reconhecer todos os poderes neces- bes (por ser um termo que só faz sentido num governo dos séculos XIX
sários do Soberano enumerados abaixo, e que, portanto, todos os ou xx), o que Hobbes requer é, todavia, e em grande medida, um re-
poderes relatados são justificáveis e reconhecidos como tais.» E neste gime absoluto, tendo em conta a dureza das condições que impõe e do
ponto podemos analisar o Leviathan e fazer uma lista de todos os facto de dizer que o Soberano deve ter poderes muito fortes para poder
poderes que Hobbes diz que o Soberano deve ter. Como podemos ver, ser efetivo. O que se pretende com a análise das obras de Hobbes é
a lista é bastante extensa. tentar perceber quão plausível é o seu argumento para atribuir ao Sobe-
A quarta cláusula seria: «Comprometo-me a não te libertar, B, da rano todos estes poderes, e que suposições tece para tornarem plausí-
tua autorização semelhante de F realizada no teu pacto comigo, nem vel para ele a necessidade de todos estes poderes.
te pedirei, B, que me libertes.» Por outras palavras, estamos a pren- Quero agora dizer algumas coisas acerca da relação entre o Soberano
der-nos a isto. Não vamos pedir ao outro que nos liberte e nós tam- e as noções de leis justas e boas. Hobbes diz frequentemente que as leis
bém não o iremos fazer relativamente a ele. Poderá haver alguns do Soberano são necessariamente justas. Mas é possível que o Soberano
enigmas lógicos acerca disto, mas não irei analisá-los nesta fase. promulgue leis que não sejam boas - leis que são más. Assim, levanta-
Como penúltima cláusula: «Comprometo-me a renunciar ao meu -se o problema de sermos capazes de compreender a noção de justiça
direito de exercer a minha discrição em matérias do bem comum do para que se dê o facto de as leis do Soberano serem necessariamente
estado e ao direito de juízo privado, quer as promulgações do Soberano justas, mas poderem não ser boas. E como iremos compreender a noção
sejam boas ou más, e de reconhecer que todas estas leis são boas ou de bem que também tenha isso em conta? Algumas pessoas pensam
más desde que isto seja compatível com o meu direito inalienável de que Hobbes diz que o Soberano tem todo este poder e que na verdade
autopreservação e afins.» esse poder faz justiça - a razão pela qual as leis do Soberano são sem-
E para finalizar: «Realizo tudo isto pela finalidade de instituir o pre justas tem a ver com o facto de o Soberano ter todo o poder. Creio
Soberano, pela preservação da minha vida, pelos objetos dos meus que isto se trata de uma distorção bastante má do que Hobbes pretende
afetos, e pelos meios para uma vida confortável.» Segundo Hobbes, dizer. Se consideramos a sua ideia de como o estado é construído, o
estas limitações são-nos obrigatoriamente impostas para que exista seu pensamento é que todas as pessoas concordaram entre si, através
um Soberano efetivo, e, portanto, todas estas condições são considera- de um pacto, a autorizar o Soberano; e pela terceira lei natural de Hob-
das necessárias. bes sabemos que os pactos são a fundação da justiça. Qualquer coisa
Assinale-se que a penúltima cláusula, acerca da renúncia ao exer- considerada justa neste autor está normalmente relacionada de alguma
cício de discrição quanto a decidir se as leis do Soberano são boas, é forma com a noção de pacto (Leviathan, pp. 71-75).
1

'1

uma cláusula muito forte. Isto é, o que normalmente se faria seria acei- Julgo, portanto, que para Hobbes as leis do Soberano são justas
tar obedecer às leis do Soberano. Seria uma coisa razoavelmente nor- porque este último é a pessoa a quem todos conferiram o uso dos seus
mal de se fazer neste tipo de pacto. Mas, para adicionar àquilo que não direitos para determinados fins, entre os quais se encontra o de fazer
irei ajuizar, nem sequer refletir sobre se as leis do Soberano são ou não leis. Hobbes diz que a lei é feita pelo poder soberano, e que tudo o que
boas - essa é uma condição muito mais forte. Digamos que partimos é feito por esse poder é garantido e detido por cada um dos indivíduos;
do princípio que tenho obrigação de obedecer à lei apesar de não pensar e o que cada homem possuirá, nenhum outro poderá dizer que é injusto.
necessariamente que se trata de uma lei excecional - ou possivelmente Por isso, sendo o Soberano a pessoa autorizada por todos para fazer
não pensar sequer que é uma lei justa; podemos antever más canse- leis, entende-se que as suas leis sejam justas. Ele também comenta: «Nas

112 113
'I
'1
1

Leis de um Estado, tal como nas Leis do Jogo, o que quer que todos os OBSERVAÇÕES FINAIS SOBRE HOBBES E DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL (1978)
Jogadores acordem entre si, a nenhum deles se poderá atribuir Injus- A conceção política de Hobbes irá provavelmente parecer~nos
tiça» (Leviathan, p. 182). Por conseguinte, se todos concordámos em muito pouco satisfatória: somos obrigados a escolher entre absolutismo
fazer do Soberano a pessoa que detém todos os nossos poderes, então e anarquia: um Soberano sem restrições ou o estado natural. E Hobbes
as suas leis são justas.
Claro que Hobbes tem uma ideia completamente diferente acerca insiste:
do bem. Diz que num estado natural cada um de nós designa de boas a) A única forma de escapar ao Estado de Natureza é estabelecer u~
aquelas coisas que favorecem os nossos interesses. Poder-se-á dizer, Soberano que possa ser tão absoluto quanto possível (em confornu-
sumariamente, que num estado natural, quando dizemos que algo é dade com os nossos direitos inalienáveis à autopreservação, etc.);
bom, queremos dizer que é favorável às nossas preocupações racio- b) O Estado de Natureza é a pior de todas as calamidades que nos
nais tal como as encaramos. Hobbes acredita que as pessoas não têm podem atingir.
uma noção consensual acerca do que é bom. A mesma pessoa em épo-
É essencial perceber que estas duas teses não são requeridas p~l.a
cas diferentes irá dizer que coisas diferentes são boas. Pessoas diferen-
teoria formal de Hobbes, mas resul~am das sua~ vi~õ~s _substa~~zazs
tes na mesma época irão também dizer que coisas diferentes são boas. sobre psicologia humana,. e de como Julga que as mshtmço:s pol:ticas
Não se trata de os homens serem como os animais quando, digamos, irão realmente funcionar. E claro que se pode enganar quanto a coesao da
também atingem o bem comum na perseguição dos seus interesses sua própria teoria visto esta poder apresentar inconsi:tências int~rnas.
próprios (Leviathan, pp. 86-87). Não somos tão afortunados e não há No fim de contas, como sabemos, creio eu, a teoria substancial de
nenhum bem comum que reconheçamos através da razão. Não temos Hobbes não pode ser, em geral, correta; visto tere~ realmente exi~t~do
nenhum conhecimento comum de uma noção desse tipo. Necessitamos instituições constitucionalmente democráticas que v10lam .ªs condiç~es
de agência, de um árbitro ou juiz imparcial, para decidir o que consta de Hobbes para haver um Soberano e não terem sido regimes notoria-
do bem comum. Quando Hobbes diz que algumas leis são más e não mente menos estáveis e ordeiros do que o tipo de absolutismo que o
boas, creio que tem uma noção muito simples acerca do bem que po- autor favorecia. Irei concluir com algumas observações acerca deste
demos caraterizar da seguinte forma: O que consta do bem comum tema fazendo a transição para Locke e a sua teoria de Contrato Social.
são esses decretos e essas leis que irão assegurar as condições de base 1. Primeiro, consideremos alguns dos traços distintivos de um regime
para que todos julguem ser razoável ou racional aderir às leis naturais. constitucionalmente democrático (com ou sem propriedade privada
Supondo que existisse um estado civil, boas leis seriam então promul- em matéria de produção) ilustrado tanto quanto possível através de
gações específicas que na globalidade favoreceriam os interesses da referências ao nosso próprio regime:
grande maioria dos membros da sociedade. a) A constituição é considerada a lei suprema e escrita que regula o
Sendo isso correto, se descrevermos as noções de justiça e virtude esquema de governo como um todo e define os poderes das su~s
desta forma, creio que· então é fácil ver como Hobbes diz que as leis várias agências: executiva, legislativa, etc. Trata-se de urr:a ~oça?
feitas pelo Soberano são sempre justas mesmo que também as possa diferente da da constituição como apenas o esquema de leis e msti-
fazer más, como assim fizeram com frequência os soberanos. O Sobe- tuições que formam o sistema de governo. Possiv:elrr:ente q:1alquer
rano é o legítimo árbitro ou juiz do que é justo e injusto visto que os regime tem uma constituição neste âmbito; mas a ideia d~ lei funda-
súbditos concordaram autorizá-lo a exercer esses poderes e também mental escrita é distintiva, pelo menos quando combinada com
renunciaram ao seu direito de questionar a discrição do Soberano; outros aspetos: revisão judicial, por exemplo (uma agência ~oi:s~~~
ainda assim o Soberano pode de facto causar danos ou fazer más leis e cional com determinados poderes para interpretar a constituiçao) ,
não boas, conforme assim for decidido pelos interesses racionais dos
súbditos.
Finalmente, Hobbes defende que más leis nunca são tão más como 1 Cf. Gordon Wood, The Creation of the American Republic, Chapei Hill: University of
num Estado de Guerra. North Carolina Press, 1969, pp. 260 e segs.

114 115
b) Um propósito de uma constituição escrita (interpretada, por exem- retrocesso, mas aparentemente não consegue fazer duas distin-
plo, por revisão judicial) é assegurar que determinados direitos ções que são cruciais:
básicos não sejam anulados pela mais elevada agência legislativa.
Leis da legislatura que violem determinados direitos e liberdades i) Entre, por exemplo, um poder legislativo supremo (ou final)
podem ser consideradas inválidas ou inconstitucionais, etc., por e um ilimitado. Assim, o Congresso pode ser a autoridade
um tribunal supremo, por exemplo, ou outra agência; legislativa suprema para a produção de leis normais, mas não
c) Vamos assumir (para os nossos propósitos neste livro) alguma é ilimitada: está sujeito a veto, à revisão judicial, a limitações
forma de revisão judicial (tal como a encontramos no nosso sistema constitucionais, etc.
constitucional). E finalmente ii) Entre a ideia de um Soberano ou agência pessoal a quem todos
d) A ideia de uma convenção constitucional e de vários procedimentos obedecem e quem, por sua vez, não obedece a ninguém
constitucionais para corrigir a constituição. Uma convenção cons- (definição de Soberano proposta por Bentham) e a ideia de
titucional é detentora de poder regulador para adotar ou colocar um sistema legal definido por um esquema de regras que
em adoção pelo povo (através de ratificação, etc.), ou para corri- especificam um regime constitucional. Este esquema terá
gir, etc., a constituição; e é superior ao processo normal de legisla- determinadas regras básicas ou fundamentais que servem para
ção pela legislatura mais elevada. A convenção constitucional definir as que são válidas; e estas regras básicas são aceites e
e os poderes reformadores expressam em instituições operativas seguidas, deliberada e publicamente, pelos vários órgãos
a chamada soberania do povo. Esta última não precisa de ser constitucionais. Assim, temos de distinguir entre a ideia de
expressa através de resistência e revolução mas tem disponível um Soberano pessoal (ou órgão soberano) identificado por
uma expressão institucional. hábitos de obediência e que, por sua vez, não obedece a nin-
guém, e a ideia de um sistema constitucional revelado por cer-
2. Num regime constitucional com estes quatro aspetos não há ne- tas regras básicas que todos (ou pessoas suficientes) aceitam e
nhum Soberano absoluto no sentido de Hobbes. Presumivelmente, usam para orientar a sua conduta2.
este último não negaria isto, visto considerar que a ideia de governo
misto com um equilzôrio de poderes viola o seu princípio de bom b) A finalidade destas distinções é que nós conseguimos perceber
governo (cf. Leviathan II:29:S:259 [1.ª ed., 170]; e II:18:S:150 [1.ª ed., (ao aplicá-las) que num regime constitucionalmente democrá-
92]: os direitos e poderes do Soberano deveriam estar nas mesmas tico (do tipo dos Estados Unidos) não há nenhum Soberano pes-
mãos e ser inseparáveis. soal (no sentido de Hobbes ou de Bentham), nem um órgão ou
a) Por vezes, contudo, Hobbes usa um conhecido argumento de retro- agência constitucional que seja supremo e ilimitado em todas as
cesso para o Soberano: esse poder ilimitado deve existir, pois se o matérias. Há poderes e agências diferentes a que são atribuídos
suposto Soberano for limitado, deve sê-lo por alguma agência diferentes tarefas e autoridades, e que são colocados numa posi-
superior e depois essa agência será ilimitada. Este argumento é ção em que se podem controlar uns aos outros de determinados
sugerido em dois lugares: primeiro (p. 107) onde Hobbes diz, «E modos (através do equilíbrio de poderes, etc.).
quem quer que pense que o Poder Soberano é grandioso de mais,
procurará diminuí-lo; deve sujeitar-se, ao Poder, que o possa limi- 3. Para funcionar, um sistema constitucional deste tipo requer uma
tar; ou seja, a algo maior.» E segundo, ao argumentar que o espécie de cooperação institucional, e a conceção desta última deve ser
Soberano não está sujeito a leis, Hobbes diz que é um erro pensar- compreendida e aceite por aqueles que participam nestas instituições
-se que o Soberano está sujeito à lei (p. 169). «Que erro, porque esta- e as constroem. Isto remete-nos para o que dissemos anteriormente
beleceu Leis acima do Soberano, também estabeleceu um Juiz
acima dele, e um Poder para o castigar; é fazer um novo Soberano.» 2 Para estas distinções, ver H. L. A., The Concept of Law, Oxford: Clarendon Press,
Não é claro que Hobbes tencione aplicar aqui um argumento de 1965, pp. 64-76, 97-114.

116 117
(na Palestra III) acerca do facto de a conceção política de Hobbes não HOBBES PALESTRA IV: APÊNDICE A
ter lugar para a noção de obrigação moral; o significado disto poderá
ser que: FICHA DE TRABALHO: O PAPEL E OS PODERES DO SOBERANO

i) Hobbes não tem espaço para a noção de autocontrolo razoável no


A. O Papel do Soberano
sentido de haver vontade para renunciar a benefícios a longo
prazo e permanentes assim ajuizados pelo próprio autointe-
1. O Papel do Soberano é o de estabilizar a vida civil enquanto
resse racional de um indivíduo (no sentido de Hobbes); e que
ii) Hobbes não tem lugar para um sentido de justiça, conforme ilus- estado de paz e concórdia; e apesar de as leis do Soberano nem sem-
trado pela falta de registo de condições de base justas para pac- pre serem boas, podendo ser muitas vezes más, o estado da paz civil
tos vinculativos. Hobbes chega quase a dizer: Para cada um de é sempre melhor do que o Estado de Natureza, que rapidamente cai
acordo com a sua vantagem ameaçadora (racional). num Estado de Guerra mutuamente destrutivo.
2. Há algumas analogias entre a descrição de Hobbes sobre o motivo
Estas duas noções - a de autocontrolo razoável e a de justiça - são pelo qual a realização de acordos não pode remover a instabilidade
essenciais para a noção de cooperação social, em que esta última é con- destrutiva do estado de Natureza e o atualmente bem conhecido pro-
siderada distinta da mera coordenação social e atividade social organi- blema do Dilema do Prisioneiro. Trata-se de um exemplo para ilustrar
zada. A ideia de cooperação implica mutualidade e reciprocidade (outra os problemas que podem aparecer num jogo para duas pessoas, não
forma de nos referirmos a justiça), e uma vontade para desempenhar a cooperativo, de soma não nula, de informação perfeita e não recorrente
(ver figura 4).
nossa parte, esperando que os outros (ou em número suficiente) façam
a deles (outra forma de nos referirmos a autocontrolo razoável). a) Repare-se que a ação de confessar prevalece sobre a ação de
4. Perante estas observações, podemos interpretar a partir da doutrina negar. Isto significa que o primeiro prisioneiro age melhor se
de Hobbes que as pessoas não se enquadram na sociedade desta forma: confessar, independentemente daquilo que o segundo prisio-
isto significa que as pessoas não são capazes de cooperação social no sentido neiro fizer. E de modo semelhante, o segundo prisioneiro age
definido acima. Enquanto Hobbes argumenta que é racional para cada um melhor se confessar, independentemente daquilo que o pri-
ser razoável, isto é, obedecer às Leis da Natureza (como artigos de paz) meiro prisioneiro fizer;
quando outros o fazem de igual modo, parte do princípio que as pessoas b) As duas ações de ambos os prisioneiros que confessam consti-
não têm nenhuma ligação, desejo, etc., para agir a partir de princípios de tuem um par estável no sentido em que quando cada um
autocontrolo razoável ou mutualidade Gustiça) para o seu próprio bem. conhece a ação (de confessar), esse prisioneiro age melhor se
Estes desejos razoáveis (como lhes poderemos chamar) não têm qualquer confessar. Assim a cela SE é a única que é estável;
participação no seu relato da psicologia humana, pelo menos na medida c) Contudo, o resultado do facto de os prisioneiros seguirem as suas
em que estão em causa questões políticas. Hobbes não precisa, talvez, de estratégias racionais e, portanto, confessarem leva-os a uma
negar a existência destes desejos; pode dizer que são muito fracos e duvido-
sos para terem importância. De qualquer modo, a sua descrição acerca de
razão prática enquanto racionalidade não lhes dá lugar. 2. ºprisioneiro: não confessa 2. ºprisioneiro: confessa
Se rejeitarmos a doutrina de Hobbes, uma coisa que podemos fazer 1.º prisioneiro:
é ver como a visão do Contrato Social poderá ser relançada de modo a
Não confessa 2,2 10
não fornecer meramente uma perspetiva a partir da qual as instituições
políticas podem ser consideradas coletivamente racionais, mas também 1.º prisioneiro:
um enquadramento dentro do qual o conteúdo das noções essenciais à Confessa O, 10 5,5
cooperação social - autorrestrição razoável e equidade - pode ser defi-
nido ou delineado. E isto leva-nos a Locke.
FIGURA 4 - Dilema do Prisioneiro n. º 3

118 119
situação em que ambos se encontram em condições piores. 2. Este processo de abandono, se for bem sucedido, deve resolver
Estariam melhor se pudessem chegar ao acordo de não confessar três problemas:
e de algum modo ver esse compromisso reforçado;
a) Deve definir um estado social mutuamente benéfico e pacífico
d) O motivo de este último precisar de ser reforçado é ilustrado
que é reconhecidamente melhor para cada um do que o Estado
pelo facto de que ambos os prisioneiros sentem-se pelo menos
da Natureza. Isto é feito pelas Leis da Natureza e pela ideia de
tentados a quebrá-lo; e a tentação é maior ou menor depen-
um Soberano efetivo; se este último for racional, e reconhecer o
dendo, obviamente, dos riscos envolvidos.
seu próprio bem, irá criar leis boas ou razoavelmente boas;
b) Como já fora mencionado, caso exista, ele estabiliza o estado da
3. A explicação de Hobbes para o facto de os tratados no Estado paz cívica, o Estado do Leviathan. Fá-lo sendo um Soberano
da Natureza serem de modo geral inválidos (14:68) remete-nos para efetivo: pois quando um tal Soberano existe, os cidadãos têm
uma situação do Dilema do Prisioneiro. Pois se a parte que age pri- razões suficientes para confiar noutros no sentido de respeitar
meiro, honrar o compromisso, a outra parte, sabendo disto, tem um as Leis da Natureza e as suas promulgações. A natureza geral
incentivo para não o fazer. A tentação para agir assim pode ser muito dos motivos humanos não se alterou; em vez disso, tendo em
grande, como demonstra o problema dos acordos de limitação de conta estes motivos, os cidadãos têm agora boas razões para
armas. O país que consegue agir incorretamente pode ganhar um aderir aos seus compromissos. O conhecimento público de que
império; e o outro, tendo conhecimento disto, tem receio de, racional- existe um Soberano efetivo resolve o problema de instabilidade.
mente, limitar os seus armamentos. O Soberano faz com que fiquemos na caixa Noroeste e não seja-
4. Assim, a visão de Hobbes é a de que a condição geral da huma- mos encurralados na caixa Sudeste;
nidade é tal que só pode haver dois estados estáveis: o Estado da Natu- e) O processo de abandono deve levar-nos para um Estado do
reza (que é um Estado de Guerra) e o Estado do Leviathan: um estado Leviathan. Hobbes encara este acontecimento de duas manei-
de paz cívica mantida por um Soberano efetivo munido de todos os ras. Uma é a de que um Soberano efetivo poderá vir a existir
poderes que, segundo Hobbes, o Soberano deve ter. As razões pelas por conquista, ou por aquisição; ou por algum processo seme-
quais o Estado da Natureza (que é um Estado de Guerra) e o Estado lhante. A outra é a de que um Soberano efetivo pode ser criado
do Leviathan são os únicos estados estáveis são explicadas por Hobbes pelo Contrato Social, ou por instituição.
de formas análogas às caraterísticas das situações do Dilema do Pri-
sioneiro. Exige-se cautela, no entanto, para reconhecer que o Estado 3. Mas como poderá ter sucesso o processo de abandono do
da Natureza é muito mais complicado tal como uma discussão mais Soberano por instituição, por Contrato Social? Ou é puramente uma
abrangente o demonstraria. Por exemplo, considera o Estado da Natu- questão conceptual na visão de Hobbes, e por isso delineada apenas
reza como um jogo do Dilema do Prisioneiro recorrente (repetido), o como um ponto de vista que leva os cidadãos a compreender os moti-
qual introduz outras considerações. Acerca disto, ver a sua resposta vos pelos quais têm razão suficiente para querer que um Soberano
ao louco, 15:72 e segs. efetivo continue a existir, e portanto a respeitar as leis deste último
quando de facto existe?
4. Possivelmente Hobbes julga que o processo de abandono via
B. O problema por resolver Contrato Social poderá funcionar do seguinte modo:
a) Visto que num Estado de Natureza todos reconhecem que ores-
1. Na perspetiva de Hobbes o que devemos fazer, caso exista um peito geral pelas Leis da Natureza é coletivamente racional,
Estado da Natureza, é abandonarmos este último e entrarmos num logo racional para cada indivíduo, e que um Soberano efetivo é
Estado do Leviathan. E devemos fazê-lo apesar do facto de que no necessário para um Estado do Leviathan (estável), cada pessoa
Estado da Natureza os acordos entre indivíduos colocam as partes compromete-se com qualquer outra (exceto o Soberano) no sen-
num dilema análogo à situação do Dilema do Prisioneiro. tido de autorizar o Soberano (conforme designado) e de ter

120 121
f

il

posse sobre todas as ações deste último, na condição de que


i
mente justas e de ele não poder prejudicar os seus súbditos, pode criar
outros também o façam; normas que são más e não boas, e que pode dar lugar à iniquidade?
b) Visto que o Contrato Social deu entrada e foi publicamente reco- Devemos distinguir nitidamente entre a justiça e o bem das leis do li
nhecido numa ocasião, qualquer pessoa que contemple a hipó- Soberano para que as afirmações referidas anteriormente não sejam
tese de não adesão não pode partir do princípio de que, dali em incompatíveis. . ,I
diante, não se seguirão sanções suficientemente severas para 2. Quando Hobbes diz que as leis do Soberano são necessariamente 1
'I
garantir o respeito geral. A reputação de poder é poder: isto é, o justas, não está a dizer, creio, que é o facto de o Soberano ter po~er
reconhecimento geral e público de que o Contrato Social foi feito efetivo que faz das suas leis justas. A existência de um Soberano efetivo
pode, segundo Hobbes, dar a todos razões suficientes para acre- não altera o conteúdo das Leis da Natureza. Estas são imutáveis e
ditar que, a partir daquele momento, o Soberano designado será enraizadas nos factos profundos e gerais da natureza humana e nas
efetivo, ou provavelmente será efetivo. Quando a probabilidade é circunstâncias normais da vida humana. O papel do Soberano (ver acima
suficientemente elevada, o respeito geral acontece; e com a passa- em A) é estabilizar a vida cívica e tornar mais seguro para nós honrar
gem do tempo, como é demonstrada a realidade do Soberano, os nossos compromissos; e isto faz deles válidos. A terceira Lei da
esta probabilidade aumenta. No fim de contas, todos têm fortes Natureza, a fundação da justiça, que serve para honrar compromissos,
sinais para acreditar que o Soberano é e será efetivo. (Será esta
não é ela própria criação do Soberano.
linha de raciocínio plausível?)
3. As leis do Soberano são justas, e ele não pode prejudicar os seus
súbditos, porque surge por autorização ou por pacto de submissão,
5. É de assinalar que o Soberano não constitui uma parte para o
dando-lhe tanto um como outro todos os poderes necessários para
Contrato Social tal como Hobbes o descreve. Mas, na verdade não se
torná-lo efetivo. Assim, em qualquer um dos casos, os poderes do
trata de um aspeto crucial porque quando o Soberano é estabelecido
Soberano são sancionados através de um acordo válido que autoriza
por aquisição, é uma parte para o pacto de aquisição: 20:103 e segs.
tudo quanto ele faz. Deste modo, pela terceira Lei da Natureza, as nor-
O que é crucial é que tanto na autorização pelo Contrato Social e no
mas e as ações do Soberano são justas. Ver 30:18 e segs.
pacto por submissão perante um vencedor, os que se tornam sujeitos
4. Todavia o Soberano pode criar leis que não são boas e fazer coi-
aceitam a discrição do Soberano e relegam para este último o direito
de se governarem, ou seja, de exercerem o seu julgamento, por exem- sas que prejudiquem o Estado, ou o bem comum. Pois o bem comum
plo, de julgarem a possibilidade de as leis e as políticas do Soberano é, de uma maneira geral, o desenvolvimento dessas instituições e con-
serem boas, e de emitirem as suas opiniões em conformidade. dições sociais sob as quais cidadãos racionais poderão agir para asse-
6. Assim, será talvez melhor dizer (será mesmo?) que em Hobbes gurar a sua autopreservação e os meios para uma vida confortável.
o Contrato Social é puramente conceptual: o resultado final das duas E obviamente, sendo humano, o Soberano poderá cometer erros ou
formas de estabelecer o Soberano é praticamente o mesmo. Indepen- danos graves relativamente a essas instituições e condições sociais de-
dentemente de ter sido historicamente estabelecido, os cidadãos estão vido a ignorância, ou, claro está, por causa de orgulho e vaidade, e
igualmente sujeitos à discrição do Soberano, e têm agora e daqui em assim sucessivamente.
diante as mesmas razões para respeitarem a sua autoridade, nomea-
damente, as perspetivas seguras de um Estado do Leviathan estável e
as formas de evitar os perigos do Estado de Natureza. HOBBES PALESTRA IV: APÊNDICE B

CONTRASTE ENTRE DE CIVE E LEVIATHAN RELATIVAMENTE


C. A relação entre justiça e bem comum À INSTITUIÇÃO DO SOBERANO

1. Como poderemos compreender as afirmações constantes de 1. Conforme indicado anteriormente, Hobbes descreve o Contrato
Hobbes que dizem que apesar de as leis do Soberano serem necessaria- Social que institui o Soberano de forma diferente nas duas obras. Na

122 123
primeira diz que rendemos os nossos direitos; na outra que autoriza- APÊNDICE: ÍNDICE DE HOBBES
mos o Soberano como nosso agente. Assim, o sistema formal de
noções é diferente. [As referências das páginas são da edição Schneider]3.
2. Numa primeira instância, a mudança parece afetar a conceção
de Hobbes sobre unidade de sociedade; aparece a fornecer mais LIBERDADE
unidade visto que a mesma pessoa pública é o nosso agente autori-
zado. 1. Liberdade - Conceito físico de ausência de impedimentos exter-
3. Mas, enquanto as noções formais usadas para descrever o nos ao movimento, designado por Hobbes de liberdade natural: 170 e
acordo são diferentes, e produzem realmente, de um modo geral, segs., cf. 212.
uma maior unidade, Hobbes estica então a noção habitual de autori- e deliberação: 59.
zação - tendo um representante como nosso agente - dizendo que e livre arbítrio: 171 e segs.
não há nenhuma diferença material ou substantiva entre as duas homem livre Def.: 171.
explicações. relação para com o poder, ausência de impedimentos internos: 171.
4. Isto explica-se porque: a liberdade é verdadeira só da pessoa, o homem: não para a vontade
ou qualquer outra coisa não uma pessoa, homem: 171.
a) A autorização é muito vasta: nós entregamos o direito de nos 2. Liberdade e Direito: contraste com Lei e Obrigação: 228 e segs.
governarmos ao Soberano, o que funciona bem para além de ter- 3. Liberdade de Sujeitos: 170-180, 212 e segs.
mos outro representante;
b) Porque é permanente e irrevogável, o que nunca acontece (normal- i) Liberdade de Silêncio, liberdade de isenção de leis: 172 e segs.,
mente); 228 e segs., cf. 211esegs.,228, algumas enumerações 173.
c) Porque até desistimos do nosso direito de julgar independente-
ii) Liberdades Verdadeiras do Sujeito Def.: 175; ver 117 e segs.
mente de o Soberano estar a agir corretamente (racionalmente) - pode resistir ao castigo do Soberano: 176 (cf. 117 sobre con-
tratos para vazio contrário).
no âmbito em que tem autorização; o que mais uma vez não
acontece com nenhuma autorização; - pode resistir à exigência para confessar: 176 (cf. 117 sobre
contratos para vazio contrário).
d) Porque na verdade, tal como Hobbes descreve, a autorização do
Soberano é submissão (e?) um pacto mútuo além disso; submete- - pode recusar missão perigosa quando o estado não está
em jogo: 177, 289 e segs.
mos cada uma das nossas vontades à vontade do Soberano, os
nossos julgamentos ao seu julgamento. - rebeldes em autodefesa individualmente ou juntos não
(Citação para a-d: cap. 17, p. 142.) cometem mais atos injustos: 177 e segs.
- inclui direito a ser honrado pelos próprios filhos, pois esse
e) Porque a autorização tem todas as mesmas consequências for-
direito não requer um soberano: 267.
mais e cria no Soberano os mesmos Poderes, como pacto de
submissão para com um conquistador vitorioso; Liberdade da Commonwealth :;t: liberdade de sujeitos: 174 e segs.
As liberdades incompatíveis com poder Soberano não podem ser
j) Tanto no caso de um Soberano por Autorização como por
atribuídas (são nulas): 179.
Aquisição, o motivo é medo, no primeiro medo do outro, no
A Liberdade da Natureza retorna depois de o Soberano renunciar
segundo medo do conquistador que é vitorioso. Assim, na prá- à Soberania: 180.
tica, o Contrato Social, apesar da descrição, é um Pacto de Sub-
missão. A obrigação dos Súbditos dura enquanto o Soberano for capaz de
os proteger: 179 e segs.
(Citação para d-e: cap. 20:2, p. 163.)

3 Hobbes, Leviathan, Partes I e II, ed. Herbert W. Schneider, Nova Iorque: Library of
Liberal Arts, 1958.

124 125
1 ~1
i'

O objetivo da Lei é limitar as liberdades naturais para que se auxi- Justiça como razão justa confia em padrão convencional: 46 (cf. rela-
liem mutuamente: 212 e segs. tivamente a bom: 53, 54).
Liberdade e Equidade: é a equidade que não é absolutamente regu- Justiça em arbitragem: 125.
lada; cada igual goza de liberdade natural: 228. Justiça definida por lei (existente):
Liberdade de consciência: 17-20 (reinquisição, etc.) Justo= aqueles que nas suas ações observam as leis do seu país: 39.
Direito do Soberano limitar: 18 e segs. As leis são regras justas e injustas: 211; 7; 15.
Direito a Educar os próprios filhos: 267. A obediência à lei civil é justa desde que requerida por acordo: 212.
Será que limita o Soberano? Ou será que Hobbes quer dizer que um Justiça e Propriedade: ambas pressupõem poder Soberano: 198,
Soberano que faz boas leis o permite: 267 120 como dando a cada o que lhe é devido: 198, 120.
4. Liberdades que não podem ser renunciadas por acordo: Lei justa ?f= lei boa 217 e segs.
i) Direito a ser honrado pelos próprios filhos: 267; A lei requer interpretação e isto é razão do Soberano e julgamen-
ii) Direito que os homens têm por natureza a se protegerem: 179 tos justos recorrem a ela: 214.
(daí que a obrigação ao Soberano cesse quando o poder Sobe- Justiça como um nome inconstante: e significa disposição e interesse
rano falhar [ou é renunciado] 180). de falante: 45.
Punição Natural de Injustiça enquanto violação das Leis da Natu-
5. Liberdade e medo consistente: 171. reza: a violência de inimigos: 287.
Justiça e Injustiça não são faculdades do corpo e da mente; são qua-
JUSTIÇA lidades que relacionam os homens em sociedade: 108.
Nenhuma justiça num Estado de Natureza: 108; nenhuma
Justiça, ciência natural de, apenas ciência necessária aos Soberanos injustiça num Estado de Natureza: 120.
para governar: 287. No Estado de Natureza os homens são juízes da exatidão dos
Justiça, fundação e original de: aqueles homens desempenham os seus próprios medos: 115.
seus acordos feitos: 3. ª lei da natureza: violação de renúncia de No Estado de Natureza as pessoas lutaram entre si e rouba-
direito por injustiça acordada e absurdo: 111; 119 e segs.; 122; ram-se umas às outras Justamente: 140.
212; Resposta ao Louco 120-123. O súbdito não pode acusar o Soberano de Injustiça pois é autor de
Porque é que a Injustiça pressupõe o levantamento do poder Sobe- todos os Soberanos e é impossível causar danos a si próprio:
rano: caso contrário, confiança mútua e acordos não são válidos: 146, cf. 173, 178 (cf. 212); 144; 149; 184.
120, cf. 115, em que nenhum poder comum, nenhuma lei, ne- O Soberano poderá causar danos mas não injustiça: 146, 173 e segs.
nhuma justiça 108. Num estado justiça e força devem residir numa mesma mão: 214.
Ao que todos terão não é injusto; justiça comparada às leis do jogo: A razão do Soberano decide a lei e os juízes devem respeitar isso,
272; cf: 146, 212. caso contrário os seus julgamentos são injustos: 214.
Justiça como guardiã dos tratados, uma Lei da Natureza: 122; 139; Justiça enquanto fim do Contrato Social: 150.
· Injusto jurar contrariamente às Leis da Natureza: 116; aquele que Resposta ao Louco: justiça (enquanto guardiã de tratados) não con-
cumpre as Leis da Natureza é justo: 131. trária à razão: 120-123.
Justiça aplicada a pessoas e ao seu caráter: 123 e segs.; 215. Rebeldes resistentes ao Soberano não cometem mais atos injustos:
Justiça aplicada a ações: 123 e segs. 177 e segs.
Justiça comutativa: 124 e segs. Injusto ter forças privadas: 191.
Justiça natural: 129 e segs.; 216, 190, 194 e segs. Os cobardes agem desonradamente, não injustamente: 177.
Justiça distributiva: 124 e segs; 225. A associação e ligas de homens privados para intenções perversas
Preço justo (valor): 125. é injusta: 191.

126 127
SOBERANO E PODERES DO SOBERANO
... mas pode provocar-lhes iniquidade: 146, 199.
... e pode errar em equidade: 219.
1. Objetivo do Contrato Social ao estabelecer um Soberano: 139, 143, Dever do Soberano fazer boas leis: 262, 271 e segs., 275 e segs.
147, 150, 159, 176, 262. Que boas leis: 271 e segs, cf. Def. bem e mal: 15, 53 e segs., 131
Estado de Natureza como pré-requisitos determinantes do e segs., 253 e segs.; e 46.
Soberano: 139-142. Fazendo da lei faculdade racional do estado: 259, 23, 214.
Contrato Social: Formal e material Def.: 142, 143 e segs. Soberano via lei civil é juiz do bem e do mal: 253, 259.
2. Direitos e Poderes do Soberano: 144-150 Fim das leis do Soberano segurança do povo: 262, e por provi-
(Gerais) dência geral: 267.
Grandiosos tanto quanto é possível imaginar 169, ilimitados é-lhe Bem do Soberano e Povo não pode ser separado: 272.
dada autoridade sem restrição: 135, 142, 181, 252, 151 e segs. Soberano árbitro adequado: tal como acordado no Contrato
Poderes do mesmo onde quer que esteja colocado: 151, 152. Social: 194; cf. 129, 46, 274.
Poderes e estabelecimento de não revogável: 144e segs.
Argumento de retrocesso pelo Soberano absoluto: 170, 225.
LEIS DA NATUREZA
Contrabalanço de Poderes (em const.): 259.
Direitos de sucessão: 159-162; 180.
O. Def. Leis da Natureza= preceito ou regra, encontrada pela razão e
Concessões de direito soberanas devem ser interpretadas como pela mesma proibida de causar destruição na nossa vida etc.: 14:3
consistentes com Poder Soberano: 179. 1. As Leis da Natureza ditam paz para os meios de conservação dos
3. Direitos e Poderes do Soberano homens em multidões. 1:15:25 (S. 130).
(Poderes Particulares) 2. Estas leis resumidas: Não faças ao outro etc. 1:15:26.
O Soberano não pode ser punido: 147; não está sujeito à lei 3. Leis da Natureza sujeitas in foro interno a um desejo que devem
civil: 211 e segs., 254 e segs. ser seguidas: 1:15:27-28.
O Soberano tem direito a meios de julgamentos de paz e guerra: 4. A Ciência das Leis da Natureza é a verdadeira e única filosofia
147 e segs. moral: 1:15:30.
O Soberano tem poder para regular discurso e livros: 147 e segs. 5. As Leis da Natureza são indevidamente designadas, sendo ape-
O Soberano determina regras e define justeza (propriedade): nas conclusões que dizem respeito ao que leva à nossa conserva-
148; 198 e segs.; e comércio e contratos: 200 e segs. ção: 15:30.
O Soberano tem autoridade judicial: 148.
O Soberano tem direitos de nomeação, compensação e honra:
CONTEÚDO DAS LEIS DA NATUREZA
149.
O Soberano é legislador de leis: 211 e segs.
1. 1.ª e 2.ª Lei: (i) procurar a paz e segui-la, (ii) renunciar ao direito
O Soberano julga direitos razoáveis: 212.
individual sujeito à regra da reciprocidade. Estes ramos da regra
O Soberano determina liberdades de silêncio: 173, 228.
geral para conseguir a paz: 14:6-7.
O Soberano determina o que deve ser obedecido como lei
2. 3.ª Lei: pôr em prática tratados realizados: 1.5:1-3.
divina: 226ss (quando não se opõe à lei moral 226).
Def. tratados e sua validade: 14:12-29; 15:3
4. Função e Deveres do Soberano
Justiça: 15:1-9.
O Soberano sujeito às Leis da Natureza: 158, 173, 182, 244, 262,
Resposta ao Louco: 15:4.
270, 199.
3. 4. ª-10. ª Lei: injunção a virtudes e disposições de associação
O Soberano não pode tratar os súbditos injustamente nem cau- razoável sociável: 15:10-18.
sar-lhes danos: 144, 146, 173, 178. 4. 11.ª-19.ª Lei: Preceitos de Equidade e Justiça Natural: 15:17-25.

128 129
LOCKE

130
LOCKEI
A SUA DOUTRINA DE LEI NATURAL

§ 1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

1. R. G. Colingwood, filósofo do início do século xx, afirmou o se-


.gl.linte: «A história da teoria política não é a história de respostas dife-
rentes a uma e mesma questão, mas a história de um problema mais ou
menos em constante transformação, cuja solução também se vai alte-
rando»1.
Esta interessante observação parece ser um pouco exagerada,
visto haver determinadas questões básicas que continuamos a colo-
car, tais como:
Qual é a natureza de um regime político legítimo?
Quais são os fundamentos e limites da obrigação política?
Qual é a base dos direitos, se houver, e afins?

Mas estas perguntas, quando colocadas em diferentes contextos


históricos, podem ser entendidas de várias maneiras e têm sido enca-
radas por diversos escritores com pontos de vista diferentes, tendo
em conta os mundos políticos e sociais em que viveram, as circuns-
tâncias e os problemas que testemunharam. Para compreender os seus
trabalhos, então, devemos identificar esses pontos de vista e o modo
como condicionam a forma como as questões dos autores são interpre-
tadas e discutidas.

1 R. G. Colingwood, An Autobiography, Oxford: Clarendon Press, 1939, p. 62.

133
Alicerçada nesta base, a observação de Collingwood ajuda-nos a trina do contrato social deste autor pode justificar ou admitir desigual-
procurar respostas que pensadores diferentes dão às suas (e não nos- dades em liberdades e direitos políticos básicos. Por exemplo, o direito
sas) questões. Para este fim, devemos tentar entrar no esquema mental ao voto está limitado por uma certificação de propriedade. A consti-
de cada escritor, tanto quanto possível, e tentar compreender os seus tuição que ele considera é a de um estado de classes: isto é, a governação
problemas e soluções partindo dos seus pontos de vista e não dos política é exercida. apenas por a~ueles que possuem uma deter~i~ada
nossos. Quando fazemos isto, acontece frequentemente que as respos- extensão de propriedade (o eqmvalente a 4.5 acres de terra cultivavel).
tas que dão às suas próprias questões parecem-nos ser muito melhores o modo como um estado de classes é permissível na doutrina de Locke
do que poderíamos, de outro modo, ter previsto. De facto, creio que, será analisado na terceira palestra sobre este mesmo autor.
dada a sua linha de pensamento e os problemas da época em que viviam, Mas antes de levantarmos esta questão devemos compreender o que
os autores aqui discutidos - Hobbes, Locke, Rousseau, Hume, Mill e há de melhor na sua doutrina. Recordemos aqui o aforismo de J. S. Mill:
Marx - dão respost,.as muito boas, talvez não perfeitas, aos assuntos «Uma doutrina só é avaliada quando o é no seu melhor»3.
que os preocupam. E por esta razão que continuamos a ler os textos que 3. Para este propósito, devemos perguntar com que problema Locke,
escreveram e encontramos neles o que têm de instrutivo. e cada um dos outros autores, está especialmente preocupado e porquê.
2. As críticas que farei não consistem em apontar falácias e incon- Hobbes, por exemplo, preocupa-se com o problema da guerra civil
sistências, por assim dizer, ao pensamento de Locke ou de Mill, mas entre fações religiosas contenciosas, agravadas por conflitos entre
sim em examinar alguns aspetos básicos nos quais, do nosso ponto de · interesses políticos e de classes. Na sua doutrina do contrato, Hobbes
vista e preocupados com as nossas próprias questões ou problemas, não alega que todos têm fundamentos racionais suficientes, enraizados nos
encontramos as respostas ou soluções por eles apresentadas aceitáveis seus mais básicos interesses, para criar, com o acordo de todos, um
e instrutivas como são. Por isso, quando discutimos estes escritores o estado, ou Leviathan, com um soberano efetivo com poderes absolu-
nosso primeiro esforço é compreender o que dizem, e interpretá-los tos, e para apoiar este último, no caso de haver um. Estes interesses 1
da melhor forma que nos é permitido fazer através do ponto de vista básicos incluem não só o nosso interesse em nos preservarmos e obter- 'I

de cada um. Só então estaremos prontos a julgar a solução que apre- ,j


mos os meios para uma vida confortável, como diz Hobbes, mas tam-
sentam através do nosso ponto de vista. Acredito que se não seguirmos bém, e isto é importante para este autor, que escrevia numa época :1

estas orientações na leitura das obras destes seis filósofos não seremos religiosa, o nosso interesse religioso transcendente na nossa salvação. 1

capazes de os tratar como escritores conscienciosos e inteligentes que (Um interesse religioso transcendente é aquele que pode sobrepor-se 1

i
são pelo menos iguais a nós em todos os aspetos essenciais. a todos os interesses seculares.) Entendendo estes interesses como
'1
Ao abordar Locke2, irei ter em conta uma grande dificuldade que básicos, Hobbes julga que é racional que todos aceitem a autoridade '1
'1
i
resulta do facto de que, conforme descrito em Second Treatise, a dou- de um soberano existente e efetivamente absoluto. Ele vê tal soberano 1

'!
como a única proteção segura contra as lutas civis destrutivas e o
colapso no estado de natureza, a pior de todas as condições.
2 Referimos aqui algumas fontes úteis de leitura secundária sobre Locke: Richard
Ashcraft, Revolutionary Politics and Locke's «Two Treatises of Government», Princeton:
Princeton University Press, 1986, e Locke's Two Treatises of Government, Londres: Unwin, Cambridge: Cambridge University Press, 1990, 2 vols., no vol. 1, pp. 183-198; Peter
1987; Michael Ayres, Locke: Epistemology-Ontology, 2 vols., Londres: Routledge, 1991; Schouls, The Imposition of Method: A Study of Descartes and Locke, Nova Iorque: Oxford
Joshua Cohen, «Structure, Choice and Legitimacy: Locke's Theory of the State», PAPA, University Press, 1980; John Simmons, The Lockean Theory of Rights, Princeton: Princeton
outono de 1986; John Dunn, The Política[ Thought of John Locke, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, e On the Edge of Anarchy, Princeton: Princeton University Press,
University Press, 1969; Julian Franklin, John Locke and the Theory of Sovereignty, 1993; Richard Tuck, Natural Rights Theories: Their Origin and Development, Cambridge:
Cambridge: Cambridge University Press, 1978; Ruth Grant, John Locke's Liberalism, Cambridge University Press, 1979; James Tully, A Discourse on Property: John Locke and
Chicago: University of Chicago Press, 1987; Peter Laslett, Introduction to Two Treatises of His Adversaries, Cambridge: Cambridge University Press, 1980; Jeremy Waldron, The
Government, Cambridge: Cambridge University Press, Student Edition, 1988; Wolfgang Right to Private Property, Oxford: Clarendon Press, 1988, esp. cap. 8, e «Locke,
von Leyden, John Locke, Essays on the Law of Nature, Oxford: Oxford University Press, Toleration, and the Rationality of Persecution», em Liberal Rights: Collected Papers,
1954; C. B. MacPherson, Política[ Theory of Possessive Individualism, Oxford: Oxford Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
University Press, 1962; J. B. Schneewind, Moral Philosophy from Montaigne to Kant, 3 Ver revisão de Discourse de Sidgwick, em Collected Works de Mill, vol. x, p. 52.

134 135
O problema de Locke é completamente diferente, bem como as suas da monarquia absoluta na altura da Guerra Civil Inglesa. A maior
suposições, como seria de esperar: o seu objetivo é fornecer uma justi- parte das suas obras foi publicada entre 1647 e 1653, e republicada em
ficação para resistir à Coroa dentro do contexto de uma constituição 1679-1680, no mesmo período em que o seu manuscrito mais impor-
mista. Trata-se de uma constituição em que a Coroa participa na auto- tante, Patriarcha, foi publicado pela primeira vez. A sua escrita foi
ridade legislativa, e portanto, a legislatura (isto é, o Parlamento) não muito influente entre 1679 e 1681, quando Locke escrevia o seu livro
pode exercer sozinho a soberania total. Locke preocupa-se com este Two Treatises of Government. O objetivo filosófico confesso pelo autor
problema porque está envolvido na Crise de Exclusão de 1679-1681, (ver a página do título de First Treatise) é atacar a defesa que Robert
assim designada porque os primeiros Whigs, conduzidos pelo conde Filmer faz da posição real e o argumento de que o Rei tem poder
de Shaftesbury, tentaram excluir o irmão mais novo de Carlos II, absoluto vindo exclusivamente de Deus, e estabelecer que o absolu-
James, então duque de York, da sucessão ao trono. tismo real é incompatível com um governo legítimo. Muito sumaria-
James era católico, e os Whigs receavam que ele estivesse decidido mente, segundo Locke, um governo legítimo pode aparecer apenas
a estabelecer em Inglaterra o absolutismo real e a restauração da fé através do consentimento das pessoas que estão sujeitas a ele. Ele
católica, usando a força com ajuda francesa. Os Whigs foram derrota- considera estas pessoas por natureza livres e iguais, bem como razoá-
dos nesta crise, em parte porque estavam divididos quanto ao suces- veis e racionais. Daí que não consigam concordar com nenhuma
sor de Jaime (o duque de Monmouth, filho ilegítimo de Carlos, ou mudança a não ser que melhore a sua condição. Locke acredita que
Guilherme de Orange), e também porque Carlos foi capaz de governar um governo absoluto nunca poderá ser legítimo porque, por oposição
sem Parlamento com a ajuda de avultados subsídios secretos que lhe a Hobbes, crê que o absolutismo (real) é ainda pior do que o estado
foram conferidos por Luís XIV de França. de natureza. Ver 1190-94, especialmente o 191, onde Locke distingue
4. Com formação em medicina, Locke conheceu pela primeira vez entre o estado habitual e o estado descontrolado da natureza a que o
o conde de Shaftesbury quando foi chamado à cabeceira deste último absolutismo conduz6.
enquanto médico. Tornaram-se muito amigos, e durante vários anos, 5. Resumindo: em Hobbes, o conceito de contrato social é usado
a partir de 1666, Locke era frequentador da casa do conde. Tinha um como um ponto de vista a partir do qual pessoas racionais, preocupa-
apartamento em Exeter House (residência londrina de Shaftesbury) das com os seus interesses mais básicos (incluindo aqui o interesse reli-
na Strand, em Londres, e lá escreveu em 1671 o primeiro rascunho de
Essay on Human Understanding (Ensaio sobre a Compreensão Humana).
A obra Two Treatises foi escrita durante a Crise de Exclusão de 1679- para além das várias referências na introdução de Laslett a Two Treatises, ver Gordon
-1681 (e não mais tarde em 1689 como se constou) como folheto polí- Schochet, Patriarchalism and Political Thought, Oxford: Oxford University Press,
1975; John Dunn, no seu Political Thought of John Locke, cap. 6, considera o lugar de
tico a defender a causa Whig contra Carlos II. Esta data explica o tom Filmer no pensamento de Locke; ver também Nathan Tarcov, Locke's Education for
e as preocupações que revelavam4. Liberty, Chicago: University of Chicago Press, 1984, cap. 1, que refere muitos aspetos
Sir Robert Filmers, um absolutista real dedicado com ligações pes- acerca de Filmer e da sua relação com Hobbes e Locke.
soais à igreja e à corte, que tinha morrido em 1653, escreveu em defesa 6 Salvo aviso em contrário, todas as referências no texto são a parágrafos numerados
de Second Treatise. Apesar de na sua grande maioria as referências dizerem respeito
a Second Treatise, o First não deixa de ter interesse e contém um conjunto de passa-
4 Laslett pensa que a maior parte de Second Treatise tenha sido escrita durante o in- gens muito importante para a visão de Locke. A saber, propriedade não implica
verno de 1679-1680, incluindo os caps. 2-7, 10-14 e 19. No início de 1680, depois de autoridade, I: <JI<JI41-43; propriedade relacionada com liberdade de utilização, <JI<JI39,
ter aparecido Patriarcha de Sir Robert Filmer (ver nota 5 a seguir), First Treatise foi 92, 97; sobre paternidade e autoridade, em que a mãe tem igual parte, <JI<JI52-55;
escrito para dar resposta a esse outro livro. No verão de 1681, Locke acrescentou a Locke diz que para Filmer, os homens não nascem naturalmente livres, <JI6; e cita-o
Second Treatise uma parte do capítulo 8 e capítulos 16, 17 e 18. Finalmente, em 1689, quando diz que os homens nascem súbditos, <JI50; Locke argumenta contra primo-
antes da publicação, adicionou os capítulos 1, 9 e 15 a Second Treatise. Ver a introdução genitura, <JI<JI90-97; faz um resumo do sistema de Filmer, <JI5, e diz que se este falhar,
de Laslett a Locke's Two Treatises, p. 65. o governo deve voltar outra vez ao antigo método de ser feito através de estratage-
5 Acerca de Robert Filmer, ver as seguintes referências: Patriarcha and Other Writings, mas e do consentimento de homens em uso da razão para unir em sociedade, <JI6; e
ed. Johann Somerville, Cambridge: Cambridge University Press, 1991, que agora finalmente, que o bem público é o bem de qualquer membro individual da socie-
substitui a primeira edição de Patriarcha de Peter Laslett, Oxford: Blackwell, 1949; dade, desde que possa ser fornecido por regras comuns, <JI92.

136 137
gioso transcendente na salvação), podem ver que têm razão suficiente Reconto esta história sobejamente conhecida agora para vos dar
para apoiar um soberano efetivo (e para Hobbes significa um soberano uma ideia do homem cujo trabalho estamos prestes a discutir. É de
absoluto, porque só assim pode ser efetivo) sempre que exista um. assinalar que qualquer pessoa poderia escrever aquele trabalho razoá-
Em Locke, o conceito de contrato social é usado para defender vel, de um bom senso imperturbável, mas de grande risco pessoal,
como um governo legítimo pode basear-se apenas no consentimento enquanto ativamente envolvido no que terá sido traição.
de pessoas livres e iguais, razoáveis e racionais, partindo do estado 7. Chamo a vossa atenção para o que Locke diz na primeira frase do
de natureza visto como um estado de igual jurisdição política, em que prefácio a Two Treatises: nomeadamente, que tinha havido uma parte
todos são, por assim dizer, igualmente soberanos sobre si próprios. intermédia do trabalho, mais longa do que publica aqui em Two
Deste modo, Locke procura limitar o tipo de regime legítimo para Treatises. Ele diz que não vale a pena dizer-nos o que aconteceu a essa
excluir absolutismo real e assim justificar resistência à Coroa sob uma parte; mas, como era um homem cauteloso, talvez tivesse motivos para
constituição mista. a destruir. Provavelmente incluía doutrinas constitucionais que lhe
Este contraste entre Hobbes e Locke ilustra um ponto importante: poderiam ter custado a vida. A lista de livros na biblioteca de Locke
o que parece ser a mesma ideia (a do contrato social) pode ter um sig- sugere que para enganar os agentes do rei ele terá chamado o livro
nificado e uma utilização muito diferentes, em função do seu papel todo de De Morbo Gallico (a doença francesa), que era a designação para
numa total conceção política. sífilis daquela época. Locke e Shaftesbury efetivamente consideravam o
6. Ao lermos Locke devemos saber que estava envolvido no que absolutismo real uma doença francesa, e é certo que os franceses pade-
cada vez mais se tornou num negócio político perigoso. Como nos diz ceram dela com Luís XIV8.
Laslett, principalmente nas páginas 31 e 32 da introdução a Two Trea-
tises, quando a terceira Exclusão Parlamentar se encontrou em Oxford
em março de 1681, a resistência armada à Coroa poderia ter sido esta- § 2. O SIGNIFICADO DE LEI NATURAL
belecida se a Exclusion Bill (Projeto de Lei de Exclusão) não fosse
aprovada outra vez (como não foi). Locke teve um papel ativo; che- 1. Como contexto do que Locke chama de «A Lei Fundamental da
gou a ir de casa em casa à procura de alojamento para os apoiantes de Natureza» (LFN), devo primeiro tecer algumas considerações sobre o
Shaftesbury, incluindo um homem chamado Rumsey, chefe dos fací- significado de lei natural. Nesta tradição, a lei natural é aquela parte
noras de Shaftesbury. da lei de Deus que pode ser conhecida por nós pela utilização dos
Subsequentemente, depois de um período de encarceramento, nossos poderes naturais da razão. Estes poderes distinguem tanto a
quando Shaftesbury se envolveu em situações próximas de consultas ordem da natureza aberta à nossa visão como as intenções de Deus
traidoras, Locke alinhou com ele. Esteve com Shaftesbury durante todo que são reveladas através daquela ordem. E nesta perspetiva diz-se
o verão de 1682, e viajaram juntos para Cassiobury (assento do conde que a lei natural é promulgada, ou tornada conhecida para nós, por
de Essex), onde se encontraram com líderes Whig no auge do chamado Deus através da nossa razão natural ('IT57)9.
Insurrection Plot (Conspiração da Insurreição). E regressou lá mais Os pontos que se seguem explicam porque é que os termos «natu-
uma vez em abril de 1683, depois de Shaftesbury ter morrido no exílio ral» e «lei» em «lei natural» são apropriados:
na Holanda, quando os preparativos para o assassinato, ou Rye House
Plot (Conspiração da Rye House), estavam alegadamente a decorrer. a) Falando primeiro de «lei»: uma lei é uma regra dirigida a seres
Depois de ter sido descoberta, Locke tornou-se num fugitivo e viveu racionais por alguém com legítima autoridade para regular a
no exílio até 1689. Two Treatises, um livro contra o governo, tinha sido sua conduta. (Aqui podemos acrescentar à definição a expres-
escrito antes, provavelmente enquanto ainda estava com Shaftesbury,
muito tempo antes da Gloriosa Revolução Whig de 16887.
8 Ver introdução de Laslett, pp. 62-65, 76 e segs.
9 Ver também <[124 onde Locke diz que a lei da natureza é simples e inteligível para
7 Ver nota 4 acima. Para uma discussão interessante sobre quando e como Locke escre- todas as criaturas racionais; e <[136 onde diz que a lei da natureza não está registada
veu Two Treatises, ver a introdução de Laslett, pp. 45-66. e só se encontra na mente dos homens.

138 139
'1

são «para o seu bem comum», pois integrar-se-ia na visão de Do que se disse percebemos que a lei natural difere da lei divina. Pois
Locke, dada a sua definição de poder político no '113 enquanto a lei divina é aquela parte da lei de Deus que só pode ser conhecida por
direito para fazer e aplicar leis - «tudo isto só para o bem revelação. Precisar as exigências da lei divina ultrapassa os poderes da
público».) A lei natural é literalmente lei, isto é, é promulgada nossa razão natural. Para além disso, a lei natural também se distingue de
para nós por Deus que tem autoridade legítima e legislativa todas as leis humanas e assim da lei efetiva de estados, ou o que Locke às
suprema sobre toda a humanidade. Deus é, por assim dizer, o vezes chama de «lei municipal ou positiva». As leis de estados devem
soberano do mundo com autoridade suprema sobre todas as estar conformes aos princípios da lei natural (quando estes são aplicáveis).
suas criaturas; assim a lei natural é universal e associa a huma- Como Locke diz ('11135), as obrigações da lei natural mantêm-se em socie-
nidade numa comunidade com uma lei para a governarlü. dade bem como no estado de natureza, e a lei natural «posiciona-se como
Falar de lei natural como promulgada é, claro está, metafórico, uma Regra Eterna para todos os Homens, Legisladores e outros inclu-
visto que a lei natural não é literalmente promulgada como a lei sive». Assim, os princípios de lei natural são princípios fundamentais de
dos príncipes mundanos. Mas já que a lei natural é literalmente lei, direito e justiça aplicáveis às leis de estados e às instituições políticas e
deve ser de algum modo promulgada - isto, levada a público, ou sociais. Aqui está outra razão para o termo «lei» aparecer na designação
ao conhecimento - para aqueles a quem se aplica. Caso contrário, «lei natural»: a lei natural aplica-se a leis e a instituições legais.
não é lei. Isto explica a adequação de «lei» no termo «lei natural»; 2. Devemos finalmente realçar que o que Locke chama de Lei Funda-
b) Consideremos agora a adequação do termo «natural». Um argu- mental da Natureza não é para ser considerado como o princípio mais
mento a seu favor é que, conforme descrito acima, a lei natural é- fundamental da sua teologia filosófica como um todo; e o mesmo se
-nos transmitida, ou pelo menos pode ser, através do uso das nossas aplica a outras perspetivas:
faculdades naturais de raciocínio para tecer conclusões a partir de l a) A questão é a seguinte: deve haver outros princípios e ainda
factos gerais evidentes e da conceção da natureza. Incluídos entre mais fundamentais que expliquem a autoridade legítima de
estes factos gerais estão coisas como as necessidades naturais, pro- Deus. Na ausência desta última, as leis de Deus, apesar de pro-
pensões e inclinações dos seres humanos, as faculdades e poderes mulgadas para nós, não serão leis compulsivas. Diferentes escri-
através dos quais divergimos e nos relacionamos com os animais e tores explicam os fundamentos da autoridade de Deus de
outras partes da natureza. De uma maneira geral, a ideia é que, vários modos. No '116 (que irei citar mais tarde, em § 3), Locke
perante a fé que Deus existe (ou alternativamente, que a própria explica a autoridade de Deus sobre nós através do direito de
existência de Deus pode ser revelada através da razão), somos criação. Visto que Deus nos criou do nada e deve sustentar-nos
capazes de discernir as Suas intenções para connosco a partir da continuamente se a intenção é que continuemos a existir, então
ordem da natureza, e que é entre estas intenções que agimos par- a autoridade suprema que atua sobre nós reside em Deusn.
tindo de determinados princípios na nossa conduta recíproca para Hobbes, por outro lado, parece satisfeito ao traçar a autori-
com os outros. Perante a autoridade de Deus, estes princípios iden- dade na direção da omnipotência de Deus: o domínio pertence
tificados pela razão natural como intenções de Deus são leis para a Deus «[ ... ] não como Criador, e Gracioso, mas como Omni-
nós. Daí o termo «natural» na designação «lei natural». potente» 12.
b) Para concluir: mesmo quando o sistema legal é o da lei natural,
devemos ainda distinguir entre:
10 Locke diz: «Ü que o dever é não pode ser entendido sem uma lei; nem uma lei ser
conhecida, ou sugerida sem um legislador, ou sem recompensa e punição.» Essay i) Quem tem autoridade suprema naquele sistema;
Concerning Human Understanding, vol. I, Livro I, cap. 3, § 12. Ver também vol. 1, Livro II, ii) Porque é que aquela pessoa tem essa autoridade;
cap. 28, § 6, onde Locke diz: «Seria em vão para um ser inteligente estabelecer uma
regra para os atos de outro se não tivesse em seu poder a faculdade de recompensar o
respeito e punir o desvio da sua regra pelo bem e pelo mal que não é o produto e a
consequência natural da própria ação.» Nesse caso «funcionaria sem uma lei. Esta[ ... ] 11 Ver Essays on the Law of Nature, pp. 151-157.
é a verdadeira natureza de qualquer lei, corretamente assim designada». 12 Leviathan, p. 187.

140 141
iii) Os princípios que especificam o conteúdo das normas do sis- políticos, a cuja referência os nossos julgamentos políticos de justiça e
tema. Assim, a descrição de como Deus tem autoridade legí- bem comum são avaliados. Julgamentos corretos e sólidos são mere-
tima sobre a humanidade distingue-se da descrição do cedores, ou adequados a respeito, desta ordem, cujo conteúdo é em
conteúdo da própria lei natural e das várias normas e regras grande parte especificado pela lei fundamental da natureza enquanto
que se justificam por referência a ela13. lei de Deus. Assim, a visão de Locke contém uma conceção de justifi-
cação distinta da conceção de justificação pública em justiça como
3. Quando refiro lei natural entendo-a como acabo de explicar,
equidade enquanto forma de liberalismo político14.
nomeadamente, como a lei de Deus conhecida pela nossa razão natu-
Contudo, justiça como equidade não afirma nem nega a ideia
ral. Este é o sentido tradicional em que Locke a usa, e também é cen-
dessa ordem independente, ou justificação reveladora da veracidade
tral para ele; por isso, quando fala de lei natural ou direito natural, há
de julgamentos morais e políticos através de referência a esta ordem.
uma referência, direta ou indireta, à lei fundamental da natureza
entendida como a lei de Deus conhecida pela razão.
Há, no entanto, pelo menos uma exceção possível. Não é claro se
ou como a ligação à lei natural deve ser estabelecida a respeito do § 3. A LEI FUNDAMENTAL DA NATUREZA
princípio de fidelidade (que promessas e pactos devem ser mantidos):
Locke parece considerar isto como parte da lei natural (<Jil 4), mas não 1. Irei agora rever a declaração e a descrição da lei natural, o seu
tem em conta os fundamentos deste princípio. Porém, nos casos com conteúdo e várias cláusulas, bem como alguns dos direitos que Locke
que nos preocupamos, por exemplo, o direito natural dos indivíduos julga resultarem dela. Em primeiro lugar, atentemos a seguir numa
à mesma liberdade em que todos nascemos (em vista dos nossos po- declaração muito importante desta lei:
deres de raciocínio) e o direito natural de propriedade, a ligação à lei O Estado de Natureza tem uma Lei Natural para o governar,
fundamental da natureza é suficientemente clara. Voltarei a este assunto que sujeita todas as pessoas: E a Razão, que é essa Lei, ensina toda
mais tarde quando examinarmos o modo como os direitos naturais, a Humanidade, que só irá consultá-la, sendo todos iguais e inde-
mencionados agora, derivam da lei fundamental da natureza. pendentes, não devendo ninguém prejudicar o outro na sua Vida,
Vejamos, finalmente, que a conceção de Locke acerca de lei natural Saúde, Liberdade ou Posses. Pois os Homens são a obra de um
dá-nos um exemplo de uma ordem independente de valores morais e Criador Omnipotente e infinitamente sábio; Todos os Servidores
de um Mestre Soberano, enviados para o Mundo a seu mando e
13 Em Essays on the Law of Nature Locke diz que é «O grau da vontade divina discerní-
vel pela luz da natureza e indicando o que está e o que não está em conformidade para cumprir ordens, são propriedade dele, de quem são Criação,
com a natureza racional, e por esta mesma razão ordenando ou proibindo» (p. 111). feitos para durar enquanto durar o seu prazer, não durante o de
Em Essay Concerning Human Understanding (1690) ele refere os tipos de lei que usa- uns e de outros. E sendo fornecidos com Faculdades, partilhando
mos para julgar retidão moral como Lei Divina: «[ ... ] essa lei que Deus estabeleceu tudo numa Comunidade de Natureza, não poderá haver nenhuma
para os atos dos homens, promulgadas para eles pela luz da natureza, ou pela voz Subordinação desse género entre nós, que possa Autorizar-nos a
da revelação» (vol. r, Livro II, cap. 28, § 8). Há uma incoerência no relato de Locke
acerca da base do direito e da justiça: nomeadamente, querer justificá-los mantendo
destruirmo-nos uns aos outros, como se fossemos feitos para as
que os princípios relevantes disso são ordens de Deus; por outro lado, sermos obri- utilizações que os outros nos queiram impor, como as categorias
gados a obedecer às ordens de Deus pressupõe que Deus tem autoridade legítima inferiores de Criaturas são para as nossas. Cada um está sujeito à
sobre nós, um direito de criação, e que Deus é sensato e beneficente. O direito de
criação de um Deus sensato e beneficente, contudo, não pode ser ordenado por
Deus, como a validade de uma tal ordem pressuporia esse direito. Locke nunca 14 John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, ed. Erin Kelly, Cambridge: Harvard
resolveu satisfatoriamente esta questão e foi efetivamente criticado acerca deste University Press, 2001, § 9.2: «Uma caraterística essencial de uma sociedade bem
aspeto por Samuel Clarke. Uma discussão clara sobre estes assuntos encontra-se em ordenada é que a sua conceção pública de justiça política estabelece uma base par-
Michael Ayres, Locke: Epistemology-Ontology, Londres: Routledge, 1991, vol. 2, caps. tilhada para que os cidadãos justifiquem entre si os seus julgamentos políticos:
15-16. A doutrina de Locke é um exemplo da visão contraposta por Kant em cada um coopera, política e socialmente, com os restantes em termos que todos
Grundlegung ao dar a terceira fórmula do imperativo categórico: Ak: IV:431 e segs. podemos apoiar como justos. Este é o significado de justificação pública.»

142 143
sua própria preservação e não deve abandonar o seu Posto intencio- homem que entra em guerra com outro tendo «perdido a Razão,
nalmente; por isso, por idêntica razão, quando a sua própria que Deus tinha dado como Regra entre Homem e Homem, e o
Preservação não entrar em competição, deve ele, tanto quanto laço comum através do qual os seres humanos estão unidos
puder, preservar o resto da Humanidade, e poderá não fazê-lo a não numa irmandade e sociedade». No CJ[128 Locke diz que a Lei
ser que seja para fazer Justiça sobre um Ofensor, tirar, ou prejudi- Natural, comum a todos nós, faz-nos e ao resto da humanidade
car a vida, ou o que se destine à Preservação da Vida, Liberdade, ser «uma Comunidade, [a construir] uma Sociedade distinta de
Saúde, Membro, ou Bens de outro (CJI 6 ). todas as outras Criaturas».
A lei mais básica da natureza, ou o que Locke chama «a Lei Funda- A lei natural seria suficiente para nos governar se não fosse a
mental da Natureza», é que o «Homem [é] para ser preservado, o mais corrupção e a maldade de pessoas degeneradas. Não haveria neces-
possível» (CJ[16); ou, como diz no CJ[134, é «a preservação da Sociedade, e sidade de nos separarmos em sociedades civis, cada uma com a sua
(tanto quanto seja consistente com o bem público) de cada pessoa nela». autoridade política distinta, e assim dividirmos «esta grande e
A mesma coisa é sensivelmente repetida nos CJ[CJ[135, 159 e 183. natural Comunidade» (CJ[128). Deste modo, a lei fundamental da
2. A afirmação «Ü Estado de Natureza tem uma Lei Natural para natureza é uma lei para a comunidade da humanidade no estado
o governar», que dá início à definição no CJ[6, é complementada por de natureza. Este último, enquanto estado de liberdade, não é um
muitas passagens ao longo de Second Treatise que descreve essa lei estado de licença: está sujeito a uma lei natural e à razão (CJ[6);
natural: Assim: b) A lei fundamental da natureza é também o princípio regulador
para as instituições políticas e sociais das várias sociedades
a) Em concordância com o que disse antes, a Lei Natural é descrita
civis em que se divide a comunidade da humanidade. A lei
como uma «Declaração» da «Vontade de Deus» (CJ[135);
municipal (ex: civil) é correta e justa apenas quando se baseia
b) Relativamente à lei fundamental da natureza, Locke diz: «A Razão,
nela, ou concorda com ela. A lei fundamental da natureza não
que é essa Lei, ensina toda a Humanidade» (CJ[6). Locke descreve a
deixa de ser aplicada em sociedade, mas permanece como regra
lei fundamental da natureza como não só conhecida pela razão, mas
eterna para todos os homens, legisladores e outros. Nenhuma
como a lei «da razão e Equidade comum» (CJ[S); como «a Regra cor-
sanção humana é boa, ou válida, quando lhe é contrárials.
reta da Razão» (CJ[lO); como «a Lei Comum da Razão» (CJ[16), e
e) A lei natural é normativa e diretiva: é uma lei para guiar pes-
como «a Lei da Razão» (CJ[57);
e) No CJ[l36 a lei fundamental da natureza é descrita como algo «por
soas livres e racionais para o seu bem. Vejamos a seguinte decla-
registar e logo só poderá ser encontrada na mente dos Homens». ração importante no CJ[57, em que Locke diz: «Porque Lei, na sua
No CJ[12, é «tão inteligível e simples para uma Criatura racional, verdadeira Noção, não é tanto a Limitação mas a direção de um
como para um Estudioso dessa lei, enquanto Leis de Estados Agente livre e inteligente para o seu próprio Interesse, e não pres-
positivas, impossível ser mais simples; Tanto quanto a Razão é creve mais do que o Bem global dos que estão sob essa Lei.
mais fácil de ser entendida, do que [ ... ] Invenções de Homens Poderiam ser mais felizes sem ela, a Lei, como coisa inútil iria
intricadas». (Ver também CJ[124.) Tudo isto se adequa à ideia de desaparecer por si própria [ ... ] a finalidade da Lei não é abolir ou
que a Lei Natural é a vontade de Deus, «a ser promulgada ou limitar, mas preservar e aumentar a Liberdade [... ] onde não há Lei,
dada a conhecer apenas pela Razão» (CJ[57). não há Liberdade. Pois a Liberdade deve ser livre de limitações e a
violência imposta por outros não pode existir onde não há Lei».
3. Locke também escreve sobre o papel da lei fundamental da
natureza: 15 «As Obrigações da Lei da Natureza, não acabam em Sociedade [... ] [mas] [... ] [per-
a) Primeiro, a partir do CJ[6 vemos que a lei fundamental da natureza manecem] como Regra eterna para todos os Homens, Legisladores e outros.
agrega toda a humanidade numa grande comunidade natural As Regras que criam [ ... ] devem obedecer à Lei da Natureza [... ] e sendo a Lei
Fundamental da Natureza a preservação da Humanidade, nenhuma Sanção Humana
tendo a lei natural para a governar. No CJ[172 Locke fala de um pode ser boa, ou válida se lhe for contrária» (1135; ver também 1171).

144 145
Para Locke, então, as noções de razão e lei, liberdade e bem geral, 2. Começando com o estado de natureza enquanto estado de igual
estão intimamente relacionadas. A lei fundamental da natureza é liberdade, Locke está a rejeitar linearmente o ponto de partida de
conhecida pela razão; só prescreve para o nosso bem; procura aumentar Robert Filmer, que dizia que nós nascemos num estado de subordina-
e preservar a nossa liberdade, isto é, a nossa proteção das restrições e ção natural 16 .
violência dos outros. A liberdade submete-se à lei e distingue-se de Será que Locke apresenta um argumento para o seu ponto de par-
licença, que não se sujeita a nenhuma lei. Aqui lei é a lei da razão dada tida? Ou, como me inclino a pensar, está a elaborar uma determinada
pela lei natural. conceção da sociedade humana sob os auspícios de Deus? A explica-
ção que propõe acerca da sua visão (<JI4) é que Deus não designou
através de uma «Declaração manifesta» nenhuma pessoa detentora
§ 4. O ESTADO DE NATUREZA de um direito inquestionável de domínio (político) e soberania sobre
os outros. Deus poderia tê-lo feito mas não o fez. Com este facto his-
COMO ESTADO DE IGUALDADE tórico, nada é mais evidente do que pessoas do mesmo género natural
e todas detentoras das mesmas vantagens (relevantes) da natureza
1. Com o papel que acabámos de descrever vemos que a lei funda-
nascerem num estado de igual liberdade e jurisdição política sobre si
mental da natureza é a lei básica tanto do estado de natureza como da
próprias.
sociedade política (aplicando-se às suas instituições políticas e sócias).
Julgo que a visão de Locke expressa aqui é a seguinte: Ninguém
O estado de natureza é, para Locke, um estado de liberdade e igual-
podia ter autoridade política sobre outros a não ser que Deus tivesse
dade perfeitas (<JI 4): assim designado através de declaração manifesta, ou exceto se hou-
i) É um estado de liberdade porque todos são livres de ordenar os vesse diferenças relevantes entre essa pessoa e as restantes. Mas visto
seus atos e disporem das suas posses e de pessoas que julgarem que Deus não o declarou, e tendo em conta que somos do mesmo tipo
adequadas, dentro dos limites estabelecidos pela lei natural. natural e possuímos todos as mesmas vantagens (relevantes) da natu-
Não é necessário pedir autorização a outros, nem estar depen- reza, nascemos num estado de igualdade, ou seja, num estado de igual
dentes da vontade do outro; liberdade e jurisdição política sobre nós próprios. É certo que existem
ii) O estado de natureza é um estado de igualdade, ou seja, um desigualdades de idade, mérito, e virtude, e de propriedade (<JI54). Mas
estado de poder e jurisdição idênticos entre pessoas, todos não são, na opinião de Locke, diferenças relevantes para estabelecer
sendo, por assim dizer, igualmente soberanos sobre si próprios: autoridade política, que é (para abreviar) «Um Direito para fazer Leis
«sendo todos Reis», como Locke diz no <JI123. Igual poder signi- com Penas de Morte [... ] e para empregar a força da Comunidade, na
fica claramente igual liberdade e autoridade política sobre si Execução dessas Leis[ ... ], e tudo isto apenas para o Bem Público» (<JI3).
próprio. Poder não deve ser considerado força, ou controlo Talvez não seja surpreendente, portanto, que para Locke a autori-
sobre recursos, e menos ainda violência, mas direito e jurisdi- dade política pode surgir apenas através do consentimento dos deten-
ção. tores de igual jurisdição sobre si próprios. Ele simplesmente elabora
uma conceção diferente de sociedade política da de Filmer. É caso
No <J[54 Locke assinala o aspeto importante de que este estado de para perguntar: Trata-se de um defeito em Locke? Se sim, porquê?
igual liberdade é compatível com vários tipos de desigualdades, por
exemplo, das que resultam de diferenças de idade, mérito ou virtude
e, pelos vistos, as diferenças em propriedade (real) herdada ou adqui- 16 Nascemos todos numa subordinação política natural, exceto alguns que são desig-
nados por Deus para serem dominantes, e serem governantes absolutos (através
rida. Como observámos, a igualdade de que Locke fala é um estado de
do traçado das suas linhas pela regra de primogenitura até Noé, e daí até Adão).
igual direito à nossa liberdade natural, um estado de igual jurisdição Ver Filmer, Patriarcha. Locke' s First Treatise é dedicado à refutação do argumento
sobre nós próprios mas sob a lei natural. A liberdade em que nascemos de Filmer de que Deus deu derradeiros poderes a Adão, e de que todos os sobera-
em virtude da nossa capacidade de raciocínio, e é legitimamente nossa nos legítimos herdaram esse poder vindo diretamente de Adão. Locke reitera as
quando atingimos a idade da razão (<JI57). suas grandes questões no <[1 de Second Treatise.

146 147
§ 5. O CONTEÚDO DA LEI FUNDAMENTAL 2. Uma aplicação desta última cláusula é a autodefesa: se sou erra-
DA NATUREZA damente atacado por outro com o propósito de me tirar a vida, então
porque sou inocente (suponhamos), tenho direito a autodefesa.
1. E isto traz-nos finalmente para o conteúdo da lei fundamental da Outra aplicação da terceira, e também da segunda cláusula, é pro-
natureza, nomeadamente o que prescreve, incluindo os vários direitos teger as famílias (mulheres e crianças) desses homens violentos que
(naturais) que Locke considera estarem implícitos nela. Ao termos começam uma guerra injusta, à procura de conquistas. Visto que as
falado de igualdade anteriormente, mencionámos também alguma coisa suas famílias são inocentes - não estão envolvidas na culpa e destrui-
sobre esses direitos. O termo «Lei Fundamental da Natureza» é usado ção por eles causada - propriedades e bens suficientes devem ser-lhes
nos ':[':[16, 134, 135, 159, 183; e também há afirmações acerca da «Lei deixados pelo vencedor (justo) para que sobrevivam. (Ver ':[':[178-183.)
Natural» nos ':[':[4, 6, 7, 8, 16, 57, 134, 135, 159, 171, 172e181-183. Locke diz, no ':[183: «[ ... ] sendo a Lei Fundamental da Natureza, tudo
Duas cláusulas importantes da Lei Fundamental da Natureza isso, tanto quanto possa ser, deve ser preservada, acontece que, se não
estão incluídas na declaração que citei anteriormente, a partir do ':[ 6. houver o suficiente para satisfazer ambos, isto é, pelas Perdas do Conquis-
Ora vejamos: tador, e Sobrevivência dos Filhos, ele que tinha, e para dispor, deve
a) A primeira cláusula: «sendo todos iguais e independentes, nin- renunciar a alguma coisa da sua inteira Satisfação, e dar prioridade ao
guém deve prejudicar o outro na sua Vida, Saúde, Liberdade ou Título urgente e preferível daqueles que estão em risco de morrer sem
Posses»; ela».
b) A segunda cláusula: «Cada um está sujeito à sua própria preservação Locke também afirma que, às vezes, até os culpados também são
e não deve abandonar o seu Posto intencionalmente; por isso, por poupados: «sendo a preservação de todos a finalidade do Governo, tanto
idêntica razão, quando a sua própria Preservação não entrar em quanto possa ser, até os culpados devem ser poupados, provando-se
competição, deve ele, tanto quanto puder, preservar o resto da não haver prejuízo para os inocentes» (':[159). Neste parágrafo, o autor
Humanidade, e poderá não fazê-lo a não ser que seja para fazer sublinha que todos os membros da sociedade devem ser preservados
Justiça sobre um Ofensor, tirar, ou prejudicar a vida, ou o que e que o soberano (a Coroa), naqueles casos que a lei não pode prever,
tende à Preservação da Vida, Liberdade, Saúde, Membro, ou pode exercer a sua discrição (prerrogativa) ao preservar «tanto quanto
Bens de outro». lhe for possível», para usar a expressão de Locke.

Reparem na força de «por idêntica razão» na segunda cláusula. Eu


estou sujeito à minha própria preservação porque sou propriedade de § 6. A LEI FUNDAMENTAL DA NATUREZA
Deus; mas há outros que também são propriedade de Deus, e, por isso,
COMO BASE DE DIREITOS NATURAIS
pela mesma razão, também estou sujeito a preservá-los, pelo menos
enquanto a sua preservação não entrar em competição com a minha.
1. Os direitos naturais que iremos rever não resultam somente da
No ':[134 Locke diz: «a primeira e fundamental Lei natural, que deve até
lei fundamental da natureza (cujo conteúdo acabámos de analisar),
governar o próprio Legislativo, é a preservação da Sociedade e (tanto
quanto seja consistente com o bem público) de cada pessoa nela». mas dessa lei complementada por duas premissas:
i) O facto do silêncio de Deus: que Deus não designou ninguém
e) Uma terceira cláusula, no ':[6, diz respeito a uma prioridade para exercer autoridade política sobre o resto da humanidade; e
para os inocentes: ii) O facto da igualdade: que somos «Criaturas da mesma espécie
«Sendo os Homens preservados, tanto quanto possível, quando e por nascimento classificamo-nos promiscuamente com as mes-
nem tudo o pode ser, a segurança dos Inocentes deve ser prefe- mas vantagens da Natureza [com respeito a estabelecer autoridade
rida». política] e o uso das mesmas faculdades [poderes de vontade e
razão natural, e assim sucessivamente]» (':[4).

148 149
2. Como Locke analisa primeiro estes direitos nos <_[<_[7-11, são eles: Locke pressupõe que (i) já que a lei fundamental - que toda a
humanidade deve ser preservada, etc. - e (ii) que a abundância da
a) O direito executivo que cada um tem para punir transgressores natureza é para nosso uso, e (iii) que o consentimento (expresso) do
da lei fundamental da natureza; pois essa lei seria em vão se nin- resto da humanidade é impossível obter, deve ser intenção de Deus
guém tivesse o poder de executá-la (aplicar) e, por conseguinte, que nos apropriemos da abundância da natureza e que a usemos de
preservar os inocentes e controlar os ofensores. Visto que o acordo com as duas condições. Caso contrário, a humanidade toda, e,
estado de natureza é um estado de igualdade - igual jurisdição tanto quanto possível, cada um dos seus membros, não poderão ser 'I
11
(política) - todos têm este direito executivo de igual modo: deri- preservados.
vando ele do nosso direito de preservar a humanidade; Assim, o direito natural de propriedade (a liberdade para usar) no 1.1'
11 ·
b) O direito a procurar reparação, que resulta do nosso direito de estado de natureza é a conclusão de um argumento resultante da lei 11
!!
autopreservação. fundamental da natureza (complementada por outras premissas). Creio
que o mesmo se aplica a outros casos de direitos naturais, nomeada-
No contrato social desistimos do nosso direito pessoal de nos pre- mente os que se baseiam no princípio de fidelidade.
servarmos a nós próprios e ao resto da humanidade para ser regulado 4. O significado destas observações é que Locke não fundamenta a
pelas leis da sociedade, até onde a nossa preservação e a da sociedade sua doutrina do contrato social numa lista de direitos e leis naturais
sejam necessárias. Nós desistimos completamente do direito de punir e sem uma explicação acerca da sua origem. Apesar de a ideia de uma
passamos a assistir o poder executivo da sociedade tal como as suas lista como essa não ser implausível, ela não pertence a Locke. Este
leis assim poderão requerer (<_[130; ver também <_[<_[128-130). último diz, com efeito, que num estado de natureza os homens devem
3. É importante reconhecer que para Locke quase todos os direitos estar condicionados pelas suas premissas porque a «[ ... ] Verdade e
naturais têm uma derivação. Para além de direitos associados ao prin- manter a Fé pertence aos Homens, enquanto tal, e não como Membros
cípio de fidelidade, creio que os vê como resultado da lei fundamen- da Sociedade» (<_[14). Dizer a verdade e manter a fé fazem presumivel-
tal da natureza, juntamente com as duas premissas (os dois factos) mente parte da lei fundamental da natureza, mais um aspeto que
assinalados acima: o facto do silêncio de Deus, e o facto da igualdade, encerra em si, tal como a prioridade para a proteção dos inocentes.
também, obviamente, do facto da autoridade legítima de Deus exer- Talvez seja a parte da lei natural mais geralmente concebida. O direito
cida sobre nós. O exemplo que se segue ilustra o que se pretende dizer: da criação de Deus é também tratado como evidente, mas não é, certa-
mente, um direito natural.
Locke deseja argumentar, contra Filmer, que no estado de natureza Deste modo, Locke parte do princípio da lei fundamental da natu-
o homem tem um direito natural de propriedade privada (para ser reza e destes dois factos: o facto da igualdade, e o facto histórico (como
discutido na terceira palestra sobre Locke ). Este direito não depende argumenta em First Treatise) de que Deus não designou ninguém para
do consentimento expresso do resto da humanidade. No estado de ter autoridade política sobre os restantes. Em seguida, faz derivar vários
natureza o homem é livre para usar o que «ele tenha misturado com o direitos naturais a partir dessa base.
seu Trabalho», partindo primeiro do princípio que há o suficiente e que é Devemos clarificar que os nossos direitos naturais dependem dos
bom para os outros (<_[27) e, segundo, que não levamos mais do que nossos deveres prévios, nomeadamente, deveres impostos pela lei
aquilo que podemos usar, para que nada se estrague (<_[31). fundamental da natureza e pelo nosso dever de obedecer a Deus, que
tem legítima autoridade sobre nós. Portanto, na perspetiva de Locke,
Esta regra (que somos livres para usar o que tenhamos misturado vista como uma doutrina teológica, não estamos a autoautenticar fontes
com o nosso trabalho, sujeitos a estas duas condições) é, digamos, uma de reivindicações válidas, tal como usei esse termo na caraterização da
lei natural. Expressa um direito natural (liberdade de utilização) no conceção da pessoa na justiça como equidade17.
sentido em que é uma regra razoável para a primeira etapa do estado
17 Ver John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, p. 23, onde o termo é usado para
de natureza; e sob essas circunstâncias dá-nos liberdade de utilização.
descrever pessoas que se consideram no direito de reivindicar junto das suas insti-
Note-se, porém, que este direito resulta da lei fundamental da natureza. tuições, de modo a veicular as conceções do bem que preconizam.

150 151
Isto é assim porque as nossas reivindicações se baseiam, dentro da interpretações acerca do seu pensamento. Por isso, chamo a vossa aten-
conceção de Locke, em deveres prévios devidos a Deus. No entanto, ção para isso aqui.
numa sociedade política que garanta a liberdade de consciência, diga- Locke terá pensado que aquelas pessoas que não acreditam em Deus,
mos (que Locke confirma) que quando feitas por cidadãos, estas rei- e não receiam os seus julgamentos e castigos divinos, não merecem
vindicações serão autoautenticadoras, porque pelo ponto de vista confiança: são perigosas e capazes de violar as leis da razão comum
político daquela sociedade elas são autoimpostas. que resultam da lei fundamental da natureza, e tirar partido das mu-
5. Finalmente, é muito importante que a lei fundamental da natu- danças de circunstâncias de acordo com os seus interesses19.
reza seja um princípio distributivo e não agregador. Com isto quero
dizer que não nos obriga a lutar pelo maior bem público, digamos,
para preservar o maior número de pessoas. Na verdade, expressa
preocupação por cada pessoa: enquanto a humanidade tiver de ser
preservada, dentro do que for possível, assim será para cada membro
da humanidade (<]1134). Para além disso, conforme complementada
por outras premissas (o silêncio de Deus sobre autoridade política e o
facto da igualdade), a lei natural atribui determinados direitos naturais
iguais a todas as pessoas (que detêm os poderes da razão e são capazes
de serem donos de si próprios).
Além do mais, estes direitos têm um peso enorme. Locke argumen-
tará que, partindo do estado de natureza enquanto estado de igual
jurisdição política, a legítima autoridade política só pode surgir atra-
vés de consentimento. Isto fornece a base para a sua argumentação
contra o absolutismo real: a ideia é que uma autoridade política deste
tipo nunca poderia aparecer por consentimento.
6. Concluo assinalando que o pensamento subjacente desde o início
da discussão apresentada por Locke é que nós pertencemos a Deus
como sua propriedade; os nossos direitos e deveres resultam da posse
que Deus exerce sobre nós, bem como das finalidades para que fomos
feitos, que para Locke são claros e inteligíveis na própria lei fundamen-
tal da natureza.
Isto merece realce porque Locke é frequentemente discutido isola-
damente da sua formação religiosa; e na maior parte do tempo farei o
mesmo. Hoje em dia, muitas visões são chamadas «lockeanas», mas
na verdade relacionam-se pouco com Locke. Uma que estipula vários
direitos de propriedade sem o tipo de derivação que ele lhes dá - como
em Anarchy, State and UtopialB, de Nozick- é muitas vezes assim des-
crita. Contudo, para Locke e seus contemporâneos, esta formação reli-
giosa é fundamental, e negligenciá-la é correr o risco sério de fazer más 19 Ver Locke, A Letter Concerning Toleration, ed. James H. Tully, Indianapolis: Hackett,
1983. Também sobre esta questão, ver John Dunn, «The Concept of 'Trust' in the
Politics of John Locke», em Philosophy in History, Cambridge: Cambridge Univer-
18 Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, Nova Iorque: Basic Books, 1974. sity Press, 1984, p. 294.

152 153
1 1

LOCKE II
DESCRIÇÃO DE UM REGIME LEGÍTIMO

§ 1. RESISTÊNCIA SOB UMA CONSTITUIÇÃO MISTA


1. Recordemos que na Palestra 1 Locke foi contrastado com Hob-
bes. Este último preocupa-se com o problema da guerra civil destru-
tiva, e usa o conceito de contrato social para argumentar que perante
os nossos interesses básicos, incluindo o nosso transcendental interesse
religioso na salvação, todos temos razões suficientes (baseadas nos
nossos interesses) para apoiar, na perspetiva de Hobbes, um soberano
efetivo e necessariamente absoluto, sempre que ele exista (Locke Pa-
lestra 1: § 1.3 ).
O objetivo de Locke é muito diferente. Quer defender a causa dos
primeiros Whigs na Crise de Exclusão de 1679-16811.
O seu problema é reformular o direito de resistência à Coroa sob
uma constituição mista, como era considerada a Constituição inglesa
naquela época. O argumento de Locke é que Carlos II, usando abusi-
vamente a prerrogativa2 e outros poderes, fez de si próprio um
monarca absoluto e com isso dissolveu o regime, para que todos os
seus poderes, incluindo os do Parlamento, regressassem ao povo.

1 Durante muito tempo presumiu-se que a obra Second Treatise tinha sido escrita após a
revolução de 1688, como uma justificação. De acordo com Laslett, contudo, a parte
original de Second Treatise foi escrita em 1679-1680 e inclui os caps. 2-7, 10-14 e 19,
com outros capítulos adicionados posteriormente, alguns em 1681 e 1683, e outros
mais tarde, em 1689. Ver introdução de Laslett a Two Treatises of Government, p. 65.
2 O poder de agir de acordo com discrição, para o bem público, sem a prescrição da
lei, e às vezes até contra ela, é chamado a Prerrogativa. Ver 1160.

155
O governo é um poder fiduciário, um poder baseado na confiança e não sujeito a leis sem o seu próprio consentimento. Deste modo, num
das pessoas sujeitas ao contrato social; e quando essa confiança é vio- · «sentido tolerável», a Coroa pode ser chamada «Suprema» (<J[151). Esta
lada, o poder constitutivo do povo (como o designarei) voltará a era a visão Whig amplamente considerada na época e difere da dou-
entrar em cena. trina posterior da supremacia parlamentar.
2. Para explicar: vamos definir uma constituição mista como uma 3. Locke usa o conceito de compacto social (um termo que usa com
e~ que dois o~ mais agentes constitucionais partilham o poder legis- frequência) para vermos como um regime misto podia surgir legiti-
lativo; no caso mglês estes agentes são a Coroa e o Parlamento. Nenhum mamente. O compacto original, ou compacto de sociedade, une as
d_?s d_ois é supremo: são na verdade poderes coordenados. A legisla- pessoas numa sociedade e, ao mesmo tempo, estabelece uma forma
çao nao pode ser criada sem o consentimento da Coroa, como esta tem de regime com autoridade política.
de aprovar estatutos propostos antes de se tornarem leis. Por outro Dois aspetos acerca disto: primeiro, o compacto social é unânime,
lado, a Coroa não pode governar sem o Parlamento, do qual depende pois em virtude disso juntam-se todos numa sociedade civil com o
para dinheiro de impostos no sentido de dirigir a burocracia governa- propósito de estabelecer um regime político; segundo, o poder polí-
mental, apoiar o exército, e assim sucessivamente. E é dever da Coroa tico determinado na forma pela maioria é um poder fiduciário com
aplicar as leis criadas pelo Parlamento com a sua aprovação, bem como atribuições para determinados fin.s (<J[149). O compacto de sociedade
conduzir negócios estrangeiros e defesa. A Coroa combina o que Locke é, então, um compacto das pessoas entre si para estabelecer um
chama de poderes executivo e federativo. governo; não é um compacto entre as pessoas e o governo ou os seus
Assim, temos dois agentes constitucionais que, como poderes agentes. Sendo o poder legislativo um poder fiduciário, enfatiza o facto
coordenados, são idênticos neste sentido: nenhum deles é subordi- pe o poder constitutivo das pessoas existir sempre e de não poder ser
nado ao outro e quando há um conflito entre eles não há meios cons- alienado. No caso de um conflito entre poderes constitucionais, ou
titucionais, nem enquadramento legal na constituição, para o resolver. entre o governo e as pessoas, são estas que devem julgar (<JI168). Ao
Locke reconhece isto claramente no <J[168, um parágrafo importante fazê-lo, exercem uma vez mais o seu poder constitutivo. Se a Coroa
que encerra o capítulo 14. Aqui se afirma o direito de resistência por ou o Parlamento incitarem o povo a agir, Locke diz que a culpa será
parte do povo nessa situação. só deles. (<JI<JI225-230.)
A fonte da doutrina constitucional de Locke parece ser um trabalho
de George Lawson: Política sacra et civilis (Política Religiosa e Civil) de
1657 (publicada em 1660)3. § 2. A TESE FUNDAMENTAL DE LOCKE
A visão de Lawson é que numa constituição mista há um conflito SOBRE LEGITIMIDADE
persistente entre Coroa e Parlamento, o próprio governo é dissolvido
e todos os seus poderes retornam à comunidade política na totalidade. 1. Irei agora passar para a tese fundamental de Locke acerca do
As pessoas são, então, livres para exercer o seu poder constitutivo e modo como a doutrina do compacto social impõe limites na natureza
seguir os passos necessários para eliminar o conflito e restaurar a consti- dos regimes legítimos. A ideia básica da sua doutrina - o poder polí-
tuição tradicional, ou então estabelecer uma nova e diferente forma de tico legítimo só se pode basear em consentimento - repete-se ao longo
regime. A primeira afirmação de Locke sobre a visão de Lawson encon- de Second Treatise. A afirmação no <J[95 adequa-se aos nossos propósi-
tra-se no <J[149, que deve ser lido com os quatro parágrafos (<JI<J[150-153) tos. Ora vejamos:
que se se. guem.
. Note-se que Locke é muito cuidadoso quando diz que Sendo os Homens, como tem sido dito, por Natureza, todos
a Coroa e um poder coordenado com participação no poder legislativo livres, iguais e independentes, ninguém pode ser afastado deste
Estado, e submetido ao Poder Político de outro, sem o seu pró-
3 Sobre Lawson, uma figura inovadora, há um excelente estudo de Julian Franklin, prio Consentimento. A única forma através da qual uma pessoa
Locke's Theory of Sovereignty, Cambridge: Cambridge University Press, 1978, cap. 3. se priva da sua Liberdade Natural, e se sujeita à Sociedade Civil,
Sobre este assunto ver especificamente pp. 69-81. ·é acordando com outros Homens juntarem e unirem-se numa

156 157
Comunidade com vista a uma vida confortável, segura, e tran- não apoia o que podemos chamar geralmente de relato consensual (ou
quila entre outros, Usufruindo com segurança das suas Proprie- contratualista) de deveres e obrigações4.
dades, e uma maior Segurança contra quem quer que não faça Muitos dos deveres e obrigações por ele reconhecidos não resul-
parte dela. Qualquer número de Homens poderá fazer isto, por- tam de consentimento:
que não prejudica a Liberdade do resto [ ... ] Quando qualquer
a) Para começar com o caso mais óbvio: os nossos deveres para com
número de homens assim consente para formar uma Comunidade ou
Deus resultam do direito divino da criação; seria um sacrilégio
Governo, é desse modo presentemente incorporado, e constitui
- mesmo escandaloso - supor que resultam de consentimento.
um Corpo Político, em que a Maioria tem direito a agir e a concluir
O mesmo se aplica ao nosso dever de obedecer às leis da natu-
o resto.
reza e a todos os deveres e obrigações que dele derivam. Mais
especificamente:
É de notar que nesta passagem Locke descreve o que podemos
b) O nosso dever de honrar e respeitar os nossos pais (conforme dis-
chamar de consentimento «de origem» por oposição a consentimento
cutido no cap. 6 sobre Poder Paternal) não é consensual; para
«de união». O primeiro é aquele consentimento dado pelos que ini- além disso, este dever é perpétuo. Nem mesmo um rei está livre
cialmente estabelecem um corpo político através de um contrato social; do seu dever de honrar e respeitar a sua mãe (<[<[66, 68). Assim,
enquanto o segundo é o que é dado por indivíduos que atingem a idade ao alcançarmos a idade da razão termina a nossa sujeição à auto-
da razão e consentimento para se juntarem a esta ou aquela comuni- ridade parental, mas isso não afeta outros deveres e obrigações
dade política existente. Esta distinção é importante quando observa- que devemos aos nossos pais;
mos o criticismo por parte de Hume relativamente a «Of the Original c) O dever de respeitar a propriedade (real) de outro num estado
Contract» (1752). Locke parte do princípio que nos podemos sujeitar à de natureza - terra, frutos, etc. - não resulta do consentimento,
autoridade política através do nosso próprio consentimento. A sua tese mas dos preceitos da lei natural que se aplicam naquele estado
é na verdade que, considerando o estado de natureza um estado de de acordo com as leis da natureza, tal como discuti na pri-
liberdade igual, não nos podemos sujeitar à autoridade política de ne- meira palestra. Aqui assumimos que estes preceitos são geral-
nhuma outra forma. Assim, como veremos, um governo absoluto é mente seguidos e que as propriedades das pessoas, por
sempre ilegítimo. exemplo propriedades reais, são adquiridas legitimamente, e
2. Para desenvolver a visão de Locke, recordemos a sua definição que as várias condições (afirmadas por Locke no cap. 5) têm
de poder político: «O Direito de fazer Leis com Penas de Morte, e con- sido satisfeitas;
sequentemente todas as Penas menores, para a regulação e Preservação d) Finalmente, a lei fundamental da natureza impõe o dever de dar
de Propriedade, e de empregar a força da Comunidade, na Execução de especial relevância à segurança dos inocentes (os corretos ou
tais Leis, e na defesa do Estado contra Ofensas Externas, e tudo isto justos) (<[16). No <[183 Locke argumenta que um vencedor,
só pelo Bem Comum» (<[3). mesmo numa guerra justa de a:ütodefesa em que as ações do
Como demonstra esta definição, o poder político não se traduz em vencedor são inteiramente justificadas, deve reconhecer as rei-
força mas num complexo de direitos possuídos por um regime polí- vindicações das esposas e filhos daqueles que injustamente lhe
tico. É óbvio que para ser efetivo esse regime deve ter um poder coer- declaram guerra. Eles fazem parte dos inocentes; e o vencedor
civo ou sancionatório - isto é, o direito, adequadamente limitado, também deve reconhecer o que Locke chama o «direito nativo»
para exercer força e impor sanções para aplicar leis, e assim sucessi-
vamente. Mas, para Locke, o poder político é uma forma de autori-
dade legítima adequadamente relativo ao estado de liberdade igual e 4 Um exemplo desta visão, apesar de dever ser cuidadosamente interpretado, é o con-
sujeito à lei fundamental da natureza. tratualismo de T. M. Scanlon. Ver o seu ensaio em Utilitarianism and Beyond, ed. Amartya
Sen e Bernard Williams, Cambridge: Cambridge University Press, 1982; e também
3. É de assinalar que a tese de Locke de que a única base de governo o seu livro What We Owe to Each Other, Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
legítimo é o consentimento aplica-se apenas à autoridade política. Ele 1998.

158 159
dos vencidos a serem livres na sua individualidade e a continuar formas de associação têm diferentes formas de autoridade (ver Cf[83,
a possuir as suas propriedades e a herdar os bens do pai, par- última frase). Dão lugar a outros tipos de autoridade com diferentes
tindo do princípio que não auxiliaram incorretamente o vencido poderes e direi~~s. De~e_mos procurar outro modo de estabelecer uma
(Cf[Cf[190-194). Estes direitos que devem ser reconhecidos pelo autoridade pohhca legitima.
vencedor assentam na lei fundamental da natureza. 5. Para ilustrar, consideremos o caso da autoridade parental. Insere-
;..se num âmbito suficientemente vasto para se parecer em alguns aspe-
Existem muitos deveres e obrigações, portanto, que não resultam tos com o poder político. Filmer, em Patriarcha, defendeu que qualquer
de consentimento. À exceção de deveres e obrigações resultantes do autoridade política tem a autoridade paternal de Adão, concedida ori-
princípio de fidelidade (cumprimento de promessas individuais e de ginalmente por Deus, enquanto sua fonte. Contrariamente a Filmer,
outros compromissos), todos podem ser vistos, creio eu, como conse- Locke sustenta que a autoridade dos pais sobre os filhos é temporária.
quências da lei fundamental da natureza sob determinadas condi- Todos nascemos para um estado de liberdade e igualdade perfeitas
ções. E, claro, como já dissemos, o facto de estarmos sujeitos a essa lei mesmo não nascendo nele (Cf[55). Até atingirmos a idade da razão,
não provém do consentimento, nem tão pouco o nosso dever para alguém deve ser o nosso guardião ou provedor, e tomar as decisões
com Deus. necessárias para assegurar o nosso bem e preparar-nos para assumir-
4. Neste ponto pode parecer que Locke procede como se a sua mos a nosso direito à liberdade na idade da razão, em cujo momento
tese fundamental acerca de consentimento enquanto fonte de poder cessa o poder parental. O ponto que Locke tenta demonstrar, contra
político é óbvia. De facto, há algo de óbvio nela: caso contrário, Filmer, é o modo como o poder parental surge na sequência da nossa
podemos perguntar, como é que pessoas livres e iguais - sendo todas imaturidade e termina quando atingimos a maioridade, e que não pode
igualmente dotadas de razão e tendo igual jurisdição sobre si pró- dar lugar ao poder políticos.
prias - se poderão tornar nos sujeitos dessa autoridade a não ser por 6. Na próxima palestra irei discutir em pormenor o relato de Locke
livre consentimento? Comparemos o caso de nações soberanas livres acerca do direito de propriedade, mas assinale-se desde já que é essen-
e iguais: como é que se poderão sujeitar a alguma de entre elas a não cial para a sua visão que, tal como com o poder parental, o direito de
ser que deem o seu livre consentimento através, por exemplo, de um propriedade não pode ser a base do poder político. Para o demonstrar,
tratado? ele faz duas coisas (entre outras) no capítulo 5:
Por muito plausível que possa ser a sua tese, Locke não diz sim- a) Primeiro, contrariamente a Filmer, Locke mantém que apesar de
plesmente que é óbvia. O seu raciocínio no Second Treatise pode ser originalmente a terra e os seus frutos terem sido dados em
visto como um argumento por casos que se seguem: a lei básica é a comum, os indivíduos e famílias podiam e com efeito tomaram
lei fundamental da natureza, e devemos justificar cada poder e posse (real) de coisas sem o consentimento de toda a humani-
liberdade, cada direito ou dever, na nossa relação política tendo dade, começando nas primeiras épocas do mundo e muito antes
como referência aquela lei, juntamente com o princípio de fideli- da existência de autoridade política. A propriedade (real) pode
dade. existir anteriormente ao governo. Foi em parte para tornar esta
A ideia é enumerarmos os vários poderes e direitos que aceitamos
na nossa vida diária, e isso pode ser de repente a fundação da autori-
5 Uma caraterística da visão de Locke é que às vezes trata as mulheres e os homens
dade política. Por exemplo, o direito de propriedade (real), poder de igual forma, equipara, por exemplo, as mulheres aos maridos, tal como se pode
paternal, e o direito de um vencedor numa guerra justa, foi cada um ver no 165 em Second Treatise. Susan Okin, na sua obra Women in Western Política[
deles apresentado e analisado por Locke. Então, é evidente, julga Locke, Thought (Princeton: Princeton University Press, 1979, pp. 199 e segs., sustenta que
que nenhum destes poderes e direitos se adequa a determinados fins Locke só o faz quando assim lhe convém na argumentação contra o patriarcalismo
de Filmer. Assim, na família, quando marido e mulher entram em desacordo, é o
de diferentes formas de associação sob certas condições especiais, as
marido quem tem autoridade: «[ ... ] recai naturalmente na parte do marido, como
quais são por vezes exercidas no estado de natureza, noutras em so- mais apto e forte.» Two Treatises: II: 182; ver também I: 147. Não se põe sequer a
ciedade, e noutros casos ainda em ambos. A ideia dele é que diferentes hipótese de verificar se as mulheres têm os mesmos poderes políticos.

160 161
propriedade segura que as pessoas entraram na sociedade civil. 2. Primeiro, o que é um processo de ~udança histórica. c~n:renien­
Contrariamente ao vínculo feudal entre propriedade (real) e temente conduzido (ou história ideal)? E um processo histonco que
autoridade política, Locke defende que a propriedade precede o satisfaz duas condições bastante diferentes:
governo e não se encontra na sua origem;
b) Em segundo lugar, argumenta que enquanto a acumulação de
a) Uma das condições é que todas as pessoas ajam racionalmente
propriedades reais de diferentes dimensões, a introdução para fazer avançar os seus interesses .le~ítimos, ~u seja, interes-
de dinheiro, o crescimento da população e a necessidade de ses que são permissíveis dentro dos limites da lei natural. Estes
estabelecer fronteiras entre tribos, entre outras mudanças, interesses, na expressão de Locke, são os que as pessoas têm nas
levaram a um estado de desenvolvimento no qual se tornou suas vidas, liberdades e propriedades6;
b) A outra condição é que todas as pessoas ajam razoavelmente,
necessário haver uma autoridade política organizada. A pro-
priedade real não dá lugar por si própria à autoridade polí- isto é, de acordo com os seus deveres e obrigações sob a lei na-
tica, como acontecia nas sociedades feudais. Para que aquela tural.
exista, é necessário um contrato social. Os termos deste con-
trato são influenciados claramente pela existência e distribui- Em suma, todos devem agir racional e corretamente, ou razoavel-
ção de propriedade real, mas isso é uma outra questão; a mente.
propriedade precede o governo mas não constitui a sua base. Isto significa que na história ideal as mudanças institu~ionai~ (p?r
exemplo, a introdução de dinheiro, ou a fixação de fronteiras tnbais)
são acordadas:
§ 3. CRITÉRIO DE LOCKE Primeiro, só se os indivíduos envolvidos tiverem boas razões
para acreditarem que, perante as suas atuais e esp~rada.s circ~ns­
PARA UM REGIME POLÍTICO LEGÍTIMO tâncias futuras, estas mudanças são para seu benefício racional, isto
é, farão avançar os seus interesses legítimos; e . .
1. A perspetiva de Locke acerca de uma autoridade política legítima Segundo, só se ninguém coagir outra pessoa ou a SUJeitar a
e de obrigações para com ela é constituída por duas partes: ameaças de violência, ou fraude, cenários contrários à lei funda-
mental da natureza, e além disso, só se todos honrarem os seus
a) A primeira consiste numa descrição de legitimidade: determina
deveres uns para com os outros sob essa mesma lei.
quando um regime político, enquanto sistema de instituições
políticas e sociais, é legítimo;
A primeira condição insere-se no âmbit? _da ..racion.alid~de, tanto
b) A segunda parte estabelece as condições sob as quais estamos
individual como coletiva; a segunda condiçao e relativa a conduta
sujeitos, como indivíduos, ou cidadãos, para obedecermos a
correta, ou razoável, que aceita os limites impostos sobre a nossa liber-
esse regime. É uma descrição de dever e obrigação política.
dade natural pela lei fundamental da natureza.
Aqui devemos assinalar explicitamente que pa~a Locke f?rça e amea-
Estas duas partes devem ser cuidadosamente distintas.
ças de violência não podem ser usadas para extrair consentimento. Pro-
Na primeira, o critério para um regime legítimo pode ser formulado
messas feitas sob estas condições não são vinculadoras (11176, 186).
da seguinte forma: Um regime político é legítimo se e apenas se pudesse
Mais ainda, não se pode conceder ou ceder um direito a que não se tem
ter sido contratado durante um processo de mudança histórica conve-
nientemente conduzido, processo tal que tenha começado com o estado
de natureza como um estado de liberdade e igualdade perfeitas - um 6 Interesses deste tipo pertencem à visão padronizada de Locke acerca das pessoas na
estado de direito idêntico, sendo todos reis. Chamaremos a este pro- sua doutrina contratual. Já vimos que uma doutrina contratual deve conter uma
cesso de «história ideal». Esta formulação exige explicações e comen- visão padronizada deste tipo. Esta visão faz parte da .sua normal~zação das partes
relativamente ao contrato para formular uma base racional com vista a um consen-
tários consideráveis.
timento unânime.

162 163
acesso (<]1135).Assim, não nos podemos vender para escravatura atra- ~>uem quer que tenha poder deve governar através do estabelecimento
vés de contrato (<]123; ver também <]1141). de leis permanentes, e não através de decretos extemporâneos, « [ ... ]
Resumindo: para Locke, todos os acordos em história ideal são livres, rsendo tudo isto dirigido a nenhum outro fim, a não ser a Paz, a
sem coação, e tanto são unânimes como razoáveis e racionais na pers- ',segurança e o bem público do Povo». Para compreen~e~mos o papel da
petiva de todas as pessoas. "governação por leis para Locke, devemos contextualiza-lo desta forma.
3. Assinale-se, anteriormente, no§ 3.1, o uso da palavra «pudesse» . . Por outro lado, uma constituição mista poderia ser contratada. Para
ao afirmar o critério do contrato social para um regime legítimo. Diz •Locke, o facto de a Constituição Inglesa ser tanto mista como legítima
que um regime político é legítimo se e apenas se for uma forma de ,não está em causa. Assim, aceitando o seu critério, o absolutismo é ile-
governo que possa ser contratada fazendo parte de um processo de ~gítimo, e, por isso, um rei com pretensões a~so.11:_tista~ pode encontrar
mudança histórica convenientemente conduzido, ou daquilo a que . :resistência dentro do contexto de uma conshtmçao mista.
chamámos «história ideal». Parte-se aqui do princípio que a história - 4. Está implícito no que dissemos que o critério de Locke para um
ideal poderá incluir uma série de acordos durante um longo período regime legítimo é hipotético. Isto é, podemos dizer se uma forma de
de tempo. O seu efeito é acumulativo e reflete-se na estrutura institu- ·regime é legítima verificando se poderia ter sido contratada no decurso
cional da sociedade a qualquer momento. da história ideal. Não precisa de ter sido realmente contratada; um
Deste modo, não dizemos, segundo Locke, que um regime polí- regime pode ser legítimo mesmo tendo aparec~do de uma outra_ forma.
tico é legítimo se tivesse sido contratado em história ideal. Esta é , Para ilustrar: Locke reconhece que a conqmsta Normanda nao esta-
uma afirmação muito mais forte, uma que Locke não precisa de beleceu a legitimidade, digamos pelo direito de conquista, do domínio
fazer. O seu procedimento impõe determinadas restrições no que é Normando (<]1177). Mas várias mudanças institucionais desde essa
razoável e racional em história ideal. Presumivelmente diferentes \~poca têm transformado o regime Normando or~ginal n~ma coi:stitui-
tipos de regimes poderiam ser contratados, cada um em conformi- ção mista (tal como Locke a compreende); e ~ssim o regime exist~nte
dade com estas restrições. ,~Fttisfaz agora o critério do contrato social.,E uma forma de regime
Mas satisfaz os objetivos de Locke ao mostrar que o absolutismo que pode ser contratada, e, portanto, poderia ser, e é, aceite como
real não podia ser contratado desta forma: esta forma de regime l~gítima.
está excluída. A sua argumentação contra o absolutismo real é Contudo, apesar de ser hipotético, o critério de Locke não é não
demonstrada pelas várias ocasiões nas quais retoma esta questão histórico. Isto é, a história ideal é um trajeto possível de mudança his-
e pela veemência do que diz. Para ele, colocarmo-nos sob um tÓrica, partindo do princípio de que os seres humanos se orientam
monarca absoluto é contrário aos nossos deveres (naturais) e irra- razoável e racionalmente. Isto pode ser pouco provável, mas não é
cionalidade; porque fazer isso é colocarmo-nos numa situação que impossível. Por contraste, supus que na conceção política de justiça a
é pior do que o estado de natureza (<JI<JI13, 91 e segs., 137), algo q-qe .chamei «justiça como equidade», a posição original é não histó-
que seres racionais não farão7. rica; deve ser vista como, um instrumento de representação que modela
Acerca deste assunto, ver uma afirmação importante no <]1131, onde as nossas convicções consideradas mais gerais8.
diz que quando os homens desistem da igualdade, liberdade e poder 5. Para concluir: o critério de Locke para um regime político legí-
executivo que têm no estado de natureza para poderem entrar na timo é negativo: isto é, exclui determinadas formas de regime como
sociedade com as suas leis e restrições, fazem;-no «SÓ com a intenção de ilegítimas: as que não podiam ser contratadas por uma série de acor-
ser melhor para todos preservarmos a nossa Liberdade e Propriedade; dos na história ideal. Este critério não especifica os melhores, ou ideais,
(Pois, supostamente, nenhuma Criatura racional mudará a sua condi- ou até os regimes políticos superiores a outros. Para fazer isto Locke
ção com a intenção de mudar para pior)». Locke continua dizendo que teria de manter que só há um regime melhor, ou alguns igualmente
bons regimes, um dos quais seria contratado. Para manter esta posição,
7 Locke diverge aqui de Hobbes, que considera o estado da natureza a pior condição
de todas.
8 Ver Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, §§ 6.3-6.5.

164 165
precisaria de uma doutrina muito mais geral. Para além disso, ultra- partir de Adão, são todas natural e fisiologicamente relacionadas
passa o que Locke requer para os seus propósitos políticos. Muito sen- umas com as outras. Assim, Deus queria que a sociedade humana
satamente, este autor reivindica o que precisa e nada mais. fosse fundada em laços naturais e não consensuais: a sua forma deve
ser hierárquica e basear-se na subordinação natural.
2. Em parágrafos importantes como os 11113-122, Locke argu-
§ 4. A OBRIGAÇÃO POLÍTICA PARA INDIVÍDUOS menta contra a ideia de sujeição natural. No que respeita às obrigações
dos indivíduos, a sua visão é a de que nem a paternidade nem o local
1. Até agora discutimos o critério de legitimidade de Locke - a de nascimento ou residência são suficientes para determinar a nossa
forma que um governo legítimo pode assumir. É importante distin- obrigação política. Os pais não podem sujeitar os filhos (1116); e cada
guir entre uma descrição de legitimidade e uma de dever e obrigação pessoa deve, na idade da razão, dar algum tipo de consentimento. Este
política de pessoas individuais. Pensemos agora na segunda e colo- consentimento poderá ser do tipo «de união» que, tratando-se do que o
quemos a pergunta: Como é que nós - enquanto indivíduos - nos vin- autor chama de «consentimento expresso», nos incorpora numa socie-
culamos a um regime particular que pode existir a qualquer momento e dade política existente. Locke assinala que à medida que as pessoas
ao qual podemos estar sujeitos? atingem a maioridade, elas não dão o seu consentimento «numa mul-
O contraste aqui estabelecido com a visão de Filmer é acentuado9. tidão» (1117), mas fazem-no singularmente. Por isso, não nos damos
O ponto de partida de Filmer era a Bíblia como obra de inspiração. conta e concluímos erradamente que são naturalmente sujeitas. É tudo
Revelava a vontade de Deus em todas as questões essenciais e conti- isto que Locke direciona contra Filmer.
nha as verdades relevantes acerca da natureza do mundo e da socie- Agora a questão é: como é que indivíduos dão «Consentimento de
dade humana. Para Filmer, nós nascemos sob e devemos estar sempre união»? Neste ponto Locke introduz a distinção entre consentimento
sujeitos a algum tipo de autoridade. Este é o conceito de sujeição natu- «expresso» e «tácito» (11119-122). O seu texto neste campo não é muito
ral, que Locke menciona nos 11114, 116 e 117. A ideia da natureza como explícito; mas alguns pontos principais parecem ser os que se seguem:
um estado de direitos iguais, todos sendo igualmente soberanos sobre
si próprios, e a de que a autoridade política deve ser considerada como a) O consentimento expresso é dado por «Envolvimento posi-
resultante do consentimento são, para Filmer, completamente falsas. tivo, e Promessa e Contrato expressos» (1122), por exemplo
Para ele, a Bíblia mostra que a sociedade humana começou num ho- um juramento de fidelidade à Coroa 10 (que é mencionado nos
mem, Adão, e antes de Eva ser criada Adão possuía o mundo inteiro, 1162, 151), enquanto o consentimento tácito não é dado deste
a terra inteira e todas as criaturas que lá se encontravam. O mundo modo;
era sua propriedade, e ele estava somente sujeito a Deus. Assim, era a b) O consentimento expresso é dado com a intenção de incorporar-
vontade de Deus que o mundo começasse deste modo, com Adão mos a nossa pessoa no estado, e com a intenção de nos tornar-
sozinho, e não com dois ou mais homens, ou com uma multidão de mos membros dessa sociedade; um sujeito desse governo;
igual número de homens e mulheres. enquanto o consentimento tácito não é dado com essa intenção
Filmer pensava, então, que todos os seres humanos eram subordi- (11119, 122);
nados ao primeiro homem, Adão. Em virtude de ser o pai, ou patriarca, e) O consentimento expresso tem a consequência de nos tornar
da sua eventual e grande família (supostamente terá vivido mais de membros perpétuos da sociedade (1121 e segs.): sujeita-nos ape-
900 anos), era ele quem governava e todos lhe deviam obediência. nas a honrar as leis do estado desde que vivamos e usufruamos
À sua morte, o poder sobre a família, ou estado, passava para o seu filho da terra (etc.) deste último.
pelas regras da primogenitura. E como todas as pessoas nasceram a d) O consentimento expresso é como o de origem visto que incorpora
a nossa pessoa na sociedade; o tácito não o faz.

9 Robert Filmer, Patriarcha and Other Writings; ver também Palestra I, nota 5, para mais
referências. 10 Ver John Dunn, Political Thought o!John Locke, pp. 136-141.

166 167
Resumindo, a ideia de Locke é que através de consentimento ex- , aquando do exercício de autoridade política é uma condição necessária
presso e de união (normalmente enquanto nativos ingleses) tornamo- para que os seus súbditos se sujeitem a aceitar a sua legitimidade: esta
-nos cidadãos plenos do estado; enquanto, por consentimento tácito, tomada de consciência irá controlar o seu comportamento. Nada liberta
comprometemo-nos a obedecer às leis de um regime desde que resi- tanto os soberanos como a falsa crença de que os seus súbditos lhes
damos no seu território (como estrangeiros residentes). devem obediência incondicional.
3. Como temos visto, a doutrina de Locke tem duas partes: uma 4. Note-se, no entanto, que o facto de não termos obrigação política
descreve a legitimidade, a outra é uma descrição das obrigações e dos para com um regime ilegítimo não implica não estarmos sujeitos a agir
deveres políticos das pessoas. Ambas as partes se dirigem ao relato de acordo com as suas leis, ou a moderar a nossa resistência para com
de Filmer sobre a legitimidade da monarquia absoluta baseada em ele, por outras razões. Mas estas últimas não resultarão das nossas
direito divino e no poder paternal de Adão, com a sua ideia de sujei- obrigações e deveres políticos resultantes do nosso consentimento.
ção natural. Em vez disso, talvez devêssemos evitar resistir porque não seria
A questão agora prende-se com a relação entre estas duas partes eficaz; na verdade, poderia levar o regime a ser mais repressivo, e
da visão de Locke. Segundo este autor, um dos principais pontos é causar danos desnecessários aos inocentes. A questão é que há vários
que só nos podemos sujeitar através de consentimento expresso a um aspetos na visão de Locke para agir de acordo com um regime e as
regime legítimo e não a um injusto. (O consentimento tácito é menos suas leis, e muitas destas não se baseiam em obrigações ou deveres
importante para Locke.) Deste modo, a legitimidade de um regime é políticos. Entre estes últimos, creio, há o dever de não mostrar oposi-
uma condição necessária para termos uma obrigação política de obe- ção a um regime em vigor que seja legítimo e justo, quer no nosso ou
decer às suas leis. No <f[20 Locke diz que se a lei não é justamente noutro país. Mas, apesar de tudo, haverá o direito de resistir a um
administrada, «Guerra é feita sobre os Sofredores». Isto significa que regime ilegítimo e suficientemente injusto quando muito provavel-
não temos (na verdade não podemos ter) um dever ou uma obrigação mente essa resistência será eficaz e um regime legítimo será estabele-
políticos para com um regime que é claramente injusto e violento. cido em seu lugar sem grandes perdas de vidas inocentes.
Digo claramente injusto e violento, ou pelo menos suficientemente, Neste ponto, obviamente, temos de fazer algumas ponderações:
visto não ser razoável esperar qualquer regime humano ser perfeita- Quão provável será? Quão injusto o regime? - e muito mais. Estas
mente justo, e o devido espaço deve ser concedido aos erros normais, questões não têm respostas precisas e dependem, como se costuma
morais e de outra ordem, das pessoas que exercem poder político. , dizer, de julgamento. A filosofia política não consegue formular um
A legitimidade de um regime é condição necessária para uma procedimento preciso de juízo; e isto deveria ser expressa e repetida-
obrigação política que se adequa ao objetivo da doutrina de Locke: mente afirmado. O que poderá fornecer é um quadro de linhas orienta-
pois é preciso ter em mente que este último quer justificar resistência dor as para deliberação que seja testado através de reflexão. Tal
à Coroa sob a égide de uma constituição mista. Está de acordo com a quadro poderá incluir uma lista bastante definida das considerações
ideia de autoridade política enquanto poder fiduciário; e com a sua mais relevantes, bem como alguma indicação da sua importância
visão (declarada no <f[225) de que as pessoas têm relutância a opor-se relativa quando entram em conflito, como é de esperar que aconteça.
a um regime existente que exerce aquele poder razoavelmente, e que Não há como evitar, portanto, um estado complexo de juízo com mui-
não ameaça os seus direitos e liberdades essenciais. Locke também tos imponderáveis, sobre os quais pessoas razoáveis irão ter opiniões
pensa que é relativamente fácil para quem detém autoridade política diferentes. Isto é um caso paradigmático do que tenho chamado de
satisfazer esta condição necessária. Governantes injustos atraem rebe- «Os fardos do juízo»: as fontes de desacordo razoável entre pessoas
liões e revoluções sobre si próprios (<f[<f[227-230). razoáveis 11.
Assim, desde que esta condição seja satisfeita, ao atingir a maiori-
dade as pessoas irão espontaneamente dar o seu consentimento livre 11 Sobre a ideia de fardos do juízo, ver Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, pp. 35-36;
e expresso. Locke acredita que é aconselhável os soberanos estarem e também Rawls, Política[ Liberalism, Nova Iorque: Columbia University Press, 1993,
perfeitamente conscientes de que a prática de uma conduta razoável pp. 54-58.

168 169
§ 5. O PODER CONSTITUINTE acordo que as pessoas realizam umas com as outras enquanto
E DISSOLUÇÃO DO GOVERNO indivíduos: cada uma estabelece um acordo com as outras,
e este último é unânime. Todas concordam em agrupar-se
1. Há três ideias potencialmente radicais em Locke. Acabámos de numa sociedade governada por um regime político. A forma
analisar uma, designadamente a do estado de natureza como um deste regime será o que a maioria delas determine como apro-
estado de liberdade perfeita e igual jurisdição política, e a sua incor- priada, dadas as circunstâncias atuais e previsíveis da socie-
poração no critério de um regime político legítimo. dade;
A segunda é a do poder constituinte do povo para estabelecer a c) A maioria confia a este regime o exercício da autoridade política
forma institucional do poder legislativo, ao qual as pessoas confiam ordinária. Assim, é de realçar que o poder político em Locke é
a regulamentação da sua vida política para o bem público. Incluída um poder fiduciário, uma obrigação. Se se perguntar quem
nesta há ainda a ideia de que, numa constituição mista, sempre que é que decide perante a violação de confiança por parte das pes-
um dos agentes constitucionais coordenados - tanto a Coroa como o soas em exercício de poder ordinário, a resposta deve ser que é o
Parlamento - viola a sua confiança, o governo é dissolvido. Neste povo quem decide (CJICJI149, 168, 240-243).
caso, o povo tem o poder de constituir um novo governo e destituir
os elementos que violaram a sua confiança. 3. Finalmente, enquanto Locke pensava que Carlos II tinha de
2. Recapitulemos agora alguns pontos acerca do conceito de poder facto dissolvido o governo excedendo a sua prerrogativa e pode-
constituinte, visto estar na base do governo constitucional: res, nada refere sobre o modo como o povo (a sociedade como um
todo) deve agir, ou através de que instituições poderá exercer o
a) Um governo constitucional estabelece a distinção fundamental seu poder constituinte. Poderemos perguntar: «Quem é o povo e
entre poder constituinte e ordinário (ou, como Lawson afirmou como poderá agir?» Não há nenhuma menção de Locke acerca des-
em Política Sacra et Civilis, entre poder real e pessoal). Poder tas questões.
constituinte é o poder (o direito) que determina a forma de Lawson, novamente em Política Sacra et Civilis, defendeu que a
governo, ou seja, a própria constituição; poder ordinário é o comunidade como povo - nação - não é dissolvida pela guerra civil
poder (o direito) exercido por oficiais do governo sob a consti- desde que consiga manter vontade suficiente de restabelecer um
tuição no decurso diário dos assuntos políticos. A política cons- regime legítimo através do exercício do poder constituinte do povo.
titucional é o exercício do poder constituinte (mobilizando, por Ele parece ter considerado a hipótese de a comunidade agir através
assim dizer, o eleitorado a melhorar a constituição); a política dos tribunais a nível local para organizar uma reunião de representan-
ordinária é o exercício do poder ordinário (incentivando, por tes do povo no sentido de agir como uma convenção constitucional.
assim dizer, o Parlamento, ou Congresso, a emitir leis; ou juízes Tal convenção iria, claramente, fazer uso de formas e procedimentos
a julgar casos)12; parlamentares, mas não seria um parlamento. Enquanto convenção
b) Nesta doutrina não há nenhum contrato de governação, ou dos representantes da comunidade, teria poder constituinte para esta-
seja, um contrato entre a Coroa e o legislativo, por um lado, belecer uma nova forma de regime que, sendo aceite pela comunidade,
e o povo, por outro. O compacto social, para Locke, é um seria legítima13.
As perspetivas de Locke são presumivelmente semelhantes a esta,
12 Sobre a distinção entre política constitucional e ordinária, ver o importante trabalho mas em 1689 foram rejeitadas pelos seus companheiros Whigs que as
de Bruce Ackerman, We the People, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, consideraram muito radicais. Não irei prosseguir a análise destas ques-
1991; vol. 1, caps. 1-3, fornecem a ideia geral; o total do livro é bom. Na sua pers- tões aqui. A relevância para os nossos objetivos é que o conceito de
petiva, as três principais eras da política constitucional americana são o período
da Fundação, o período das emendas da Guerra Civil e o período do «New Deal»
(Novo Acordo). Tirando questões de interpretação, e apesar de relacionadas, existem 13 Julian Franklin, John Locke and the Theory of Sovereignity, Nova Iorque: Cambridge
estas três diferentes constituições. University Press, 1978, discute esta questão nas pp. 73 e segs.

170 171
poder constituinte do povo e da dissolução de governo deve perma- ·
necer indeterminado e na verdade bastante inquietante até ser incor-
porado definitivamente nas instituições.
Assim, consideremos a distinção na nossa Constituição entre os
poderes ordinários de oficiais eleitos e nomeados, e os poderes consti-
tuintes exercidos pelo eleitorado na criação de emendas à Constituição
LOCKE III
e por uma convenção constitucional, e em todo o procedimento a que
pertence esta última. Estes últimos preparativos servem para dar ex- A PROPRIEDADE
pressão institucional ao conceito de poder constituinte do povo e são
parte essencial de um regime constitucional completamente desenvol- E O ESTADO DE CLASSES
vido. Mas, historicamente isto acontece mais tarde. A primeira conven-
ção constitucional parece ter ocorrido em Massachusetts em 1780. É uma
invenção americana14.
Há uma terceira ideia potencialmente radical em Locke, nomeada-
mente a de que o direito de propriedade se baseia no trabalho. Falare-
mos sobre isto na próxima palestra. § 1. PROBLEMA IDENTIFICADO

1. Debruço-me agora sobre a descrição que Locke faz acerca de


propriedade e o problema que levanta. Este último pode ser identifi-
cado da seguinte forma: Locke pensava que a sua doutrina do contrato
social sustentava um estado constitucional com o domínio da lei e um
corpo representativo partilhando a autoridade legislativa suprema
com a Coroa. Contudo, neste estado só as pessoas que possuem uma
determinada quantidade de propriedades é que podem votar. Estes
proprietários são cidadãos, digamos, ativos (vs. passivos); sozinhos,
entre cidadãos, exercem autoridade política.
O problema agora surge perante o facto de este estado constitucio-
nal, embora de classes, ser consistente ou não com a doutrina de con-
trato social de Locke. Na nossa interpretação, questionamos se um
estado de classes poderia aparecer através de livre consentimento no
decurso da história ideal. Recordemos que esta última começa a partir
do estado de natureza enquanto estado de jurisdição igual no qual todos
agem razoável e racionalmente. Parece que para alguns, por exemplo,
para C. B. MacPhersonl, o estado de classes é inconsistente com a dou-
trina de Locke relativamente ao modo como uma autoridade política
legítima pode surgir.

14 Ver Leonard Levy, editor com introdução: Essays on the Making of the Constitution, 1 Ver C. B. MacPherson, The Political Theory of Possessive Individualism, Oxford: Oxford
2.ª ed., Oxford: Oxford University Press, 1987, pp. xxi. University Press, 1962.

172 173
Antes de continuar, deveria dizer que não faz parte das preocupa- - encontrar uma maneira para rever a doutrina no sentido de excluir as
ções de Locke justificar a propriedade privada. Isto explica-se porque desigualdades indesejadas em liberdades e direitos básicos. A justiça
no público a que se dirige não há nenhuma disputa acerca disso. A posse como equidade tem uma resposta para isto: usa a posição original como
de propriedade é justificada como dado adquirido. A tarefa de Locke mecanismo de representação. O véu de ignorância limita informação
é explicar o quão esta instituição largamente aceite pode ser justifi- sobre vantagens de negociação fora da situação contratual3.
cada, descrita como correta, no âmbito da sua doutrina do contrato É evidente que outras formas poderão ser superiores; ou talvez
social. Muitos dos detalhes do capítulo 5 de Second Treatise aplicam-se a nenhuma revisão da visão do contrato social se revele satisfatória,
esta matéria; para demonstrar, como o fez contra Filmer, que a pers- mesmo depois de as termos analisado exaustivamente.
petiva do contrato é acordada com opiniões comuns. Nestas palestras tento sempre refletir, se possível, através de algu-
2. Um comentário sobre MacPherson: ele acredita que direitos mas conceções políticas. Isto, e não os aspetos específicos que aborda-
políticos desiguais surgem em Locke apenas porque este último não mos (apesar de acreditar que não sejam triviais), justifica o nosso
concebe pessoas sem propriedade como partes do compacto original. âmbito reduzido de análise. A ideia de refletir sobre conceções políti-
Ele atribui a Locke a ideia de que tais pessoas sem propriedade, sendo cas é-nos menos familiar do que, digamos, conceções de matemática,
brutas e insensíveis, não são capazes de ser razoáveis e racionais, e, física ou economia. Mas talvez possa ser feito. Porque não? Só pode-
portanto, sem capacidade para dar algum tipo de consentimento. Muito mos saber se tentarmos.
pouco no texto de Two Treatises sustenta esta convicção, por isso por- 4. Deixemos de lado os comentários preliminares sobre o problema
que é que MacPherson a mantém? A resposta pode ser porque pensa do estado de classes em Locke. Vou primeiro delinear determinados
ser óbvio que se as pessoas sem propriedade fizessem parte do com- pontos principais acerca da sua análise sobre propriedade, chamando
pacto original, e assumindo que fossem razoáveis e racionais, não iriam a vossa atenção para alguns aspetos importantes em Two Treatises, e
consentir em direitos políticos desiguais do estado de classes. Deste realçando algumas secções no capítulo 4 do primeiro e capítulo 5 do
modo, ele pode julgar que Locke os terá excluído por incompetência e segundo. Feito isto, irei indicar como um estado de classes constitucio-
incapacidade de raciocínio. nal poderá aparecer no decurso da história ideal. O objetivo disto é
Sendo este o raciocínio de MacPherson, podemos dizer que ignora mostrar que tal estado é consistente com as ideias básicas de Locke.
um ponto central sobre todos os acordos, de compactos sociais a con- A intenção não é criticar Locke, que foi um grande homem - alguém
tratos na vida diária: nomeadamente que, em geral, os seus termos que, apesar de ser cauteloso, e até tímido, de acordo com algumas
específicos dependem das posições relativas de negociação das partes opiniões, correu enormes riscos de vida durante vários anos para
fora da situação na qual os termos do contrato estão a ser discutidos. ·defender a causa do governo constitucional contra o absolutismo real.
O facto de que as partes são iguais em determinados respeitos funda- Ele dizia o que pensava. Seria indecente usarmos um tom crítico e
mentais (com igual jurisdição sobre si próprias, soberanos iguais, por paternalista para com ele porque a sua visão não é tão democrática
assim dizer) não implica que todos os termos do compacto social devam como agora gostaríamos que fosse.
também ser iguais. Na verdade, estes termos podem ser desiguais, de- O nosso objetivo, portanto, é esclarecer se a formulação de Locke
pendendo da distribuição de propriedade entre as partes, bem como acerca da doutrina do contrato social não é satisfatória - por ser, diga-
dos seus objetivos e interesses ao participarem no acordo2. mos, compatível com o estado de classes -, como é que poderia ·ser
Isto é precisamente o que parece acontecer na visão de Locke acerca revista? Examinaremos como tal estado poderia surgir na história ideal
do contrato social. com o intuito de realçar determinados traços básicos da visão de Locke,
3. Se não estamos satisfeitos com o estado de classes de Locke, e esperando que obtendo uma ideia clara a seu respeito nos possa ajudar
ainda queremos afirmar algum tipo de doutrina contratual, temos de a fazer uma melhor revisão.

2 Estes pontos são levantados por Joshua Cohen, «Structure, Choice and Legitimacy:
Locke's Theory of the State», Philosophy and Public Affairs, outono de 1986, pp. 310 e segs. 3 Rawls, Justice as Fairness: A Restatement; ver § 6.

174 175

L
§ 2. CONTEXTO DA QUESTÃO devido princípio. Diz ele no <[158: «Se [ ... ] o Executivo, que tem o
poder de Convocar o Legislativo, respeitando a verdadeira proporção,
1. A questão do direito de voto não é levantada explicitamente em em vez do modo de Representação, regula, não só por costumes antigos,
Second Treatise. Apesar de ter havido controvérsia acerca da redistribui- mas por verdadeira razão, o número de Membros, em todos os lugares,
ção de distritos eleitorais durante a Crise de Exclusão de 1679-1681, 0 que têm direito a ser distintamente representados, a que nenhuma
direito de voto por si só não era um assunto central. O que nos leva a parte do Povo embora incorporada possa aspirar, mas na proporção à
pensar que Locke aceita o estado de classes - é o que ele diz em Second assistência, a qual [aquela parte do povo embora incorporada] é conce-
Treatise, <[<[140 e segs., onde parece aceitar como justificação que 0 dida ao público, ele [o executivo] não pode ser julgado, ter estabelecido
direito de voto está limitado àqueles que tinham propriedades no valor um novo Legislativo, mas [ ... ] ter retificado as desordens, que a passa-
de 40 xelins em vigência na altura (numa terminologia adequada,isso é gem do tempo tinha[ ... ] inevitavelmente introduzido».
aproximadamente 4,5 acres de terra arável). Embora não sendo uma Esta passagem, lida juntamente com o total dos <[<[157-158 e 140,
quantia elevada, vários cálculos indicam que excluía uma grande parte parece querer dizer que os «que têm direito a ser distintamente repre-
da população masculina, possivelmente tão elevada quanto 4 / 5 na sentados» (por oposição aos que têm direito a ser, digamos, virtual-
época da Crise de Exclusão. Outros pensam que era consideravelmente mente representados), são os que têm direito de voto. Contudo, não
menos e mais próximo de 3 / 5 ou menos4. devemos ler a passagem aceitando a posse de propriedade como a
Estas variações não são relevantes para os nossos propósitos de única base de redistribuição de distritos eleitorais. Em vez disso, deve-
análise da legitimidade do estado de classes na doutrina de Locke. mos ler os <[<[157-158 conjuntamente percebendo que a representação
A queixa de Locke contra a Coroa é que resiste à redistribuição dos «justa e igual» se baseia tanto na «riqueza como nos habitantes» (<[157),
distritos eleitorais para alinhar a representação no Parlamento com o a que cada um é dada um valor de um modo que Locke não especificas.
Assumo, portanto, que Locke aceita o estado de classes em confor-
midade com a sua visão. A nossa tarefa, como disse, é encontrar uma
4 Há vários cálculos sobre esta matéria. J. H. Plumb, The Growth of Political Stability in explicação de como ele poderia fazer isso, e rejeitar a de MacPherson.
England, 1675-1725, Londres: Macmillan, 1967, pp. 27 e segs., apresenta a estimativa
de 200 000 conservadores como dimensão do eleitorado na época de William II. Isto
era talvez tão pouco como 1/30 da nação incluindo mulheres, crianças, e os pobres
trabalhadores, dos quais ninguém era considerado merecedor de direitos políticos § 3. RESPOSTA DE LOCKE A FILMER: I: CAPÍTULO 4
(pp. 28 e segs.). J. R. Jones em Country and Court, Cambridge, Mass.: Harvard Uni-
versity Press, 1979, refere como tamanho de eleitorado no reinado da rainha Ana
cerca de 250 000 (p. 43). Richard Ashcraft no seu livro Revolutionary Politics and 1. Dedico-me agora ao First Treatise e à rejeição que Locke faz lá da
Locke's Two Treatises of Government, Princeton: Princeton University Press, 1986, faz propriedade enquanto base de autoridade política. Começo com um
uma descrição do eleitorado apontando para a tendência de aumento por duas resumo das visões de Filmer, seguindo Laslett, que na sua introdução à
razões: uma era a inflação estável da época, que baixava o valor real da qualificação edição que fez das obras escritas de Filmer as resume do seguinte modo6:
de propriedades; a outra era a tendência de o Parlamento ampliar o direito de voto
como forma de se proteger contra a Coroa (pp. 147 e segs.). Os Whigs sob o domínio Não há nenhum governo legítimo a não ser a monarquia.
de Shaftesbury pretendiam um eleitorado feito de comerciantes, artesãos, proprietá- Não há nenhuma monarquia legítima a não ser a paternal.
rios de lojas e mercadores, e pela maior parte de latifundiários que prosperavam à Não há nenhuma monarquia paternal a não ser a absoluta, isto é,
conta de proprietários médios e da pequena nobreza (p. 146). De igual modo, o elei-
torado variava de região para região no país; em Londres, por exemplo, Ashcraft
arbitrária.
pensa que havia sufrágio masculino virtual nas eleições dos representantes parla- Não existe nenhuma aristocracia ou democracia legítima.
mentares e oficiais da cidade (p. 148). Ashcraft cita Derek Hirst ao pensar que em Nenhum governo legítimo pode ser uma tirania.
1641 o eleitorado poderá ter sido tão alto quanto 2 / 5 da população masculina
(pp. 151 e segs.). Na sua obra Authority and Conflict: England, 1603-1658, Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1986, Hirst afirma que depois das propostas de 5 Sobre este ponto, ver John Dunn, Political Thought of John Locke.
Ireton de 1647-1649 a representação era mais justa do que era para voltar a sê-lo 6 Ver a introdução de Peter Laslett à sua edição de Patriarcha and Other Political Writings
outra vez até finais do século XIX (p. 330). of Sir Robert Filmer, Oxford: Blackwell, 1949, p. 20.

176 177
Não somos livres por natureza, mas nascemos sempre sujeitos à b) A outra é a sua utilização reduzida, em que os direitos envolvem
obrigação. tais coisas como: frutos da terra, <J[<J[28-32; ou terra, <JI<J[32-39, 47-
-50; ou propriedades, <J[<J[87, 123, 131, 138, 173; ou fortunas,
Para os nossos objetivos, a última afirmação é talvez a mais impor-
<JI<JI135, 221;
tante. E em First Treatise, <J[6, Locke parece estar de acordo. Diz ele que a
e) E depois há utilizações indeterminadas: não podemos dizer se
«[ ... ] grande Posição [de Filmer] é que os Homens não são naturalmente
algumas destas são latas ou reduzidas, por exemplo, <J[94, onde
livres. Esta é a Base sobre a qual se sustenta a sua Monarquia absoluta
Locke declara que: «[ ... ] Governo não tem outro fim senão a
[... ] Mas se esta Base fraqueja, toda a sua Estrutura se desmorona com
preservação de Propriedade.» Trata-se de uma afirmação muito
ela, e os Governos devem regressar ao hábito antigo de serem feitos
forte do objetivo do governo, mas parece cobrir ambas as utili-
através de estratagemas e do consentimento de Homens [... ] fazendo
zações de «propriedade». Outras são claramente bastante liga-
uso da sua Razão para se unirem em Sociedade». Assim, Locke afirma
uma diferença básica de origem entre si próprio e Filmer; e alega que a das a outras utilizações latas e reduzidas, de acordo com um
sua visão retorna a uma tradição mais antiga do contrato social. contexto mais abrangente.
/i,
2. Antes de discutir as perspetivas de Locke sobre propriedade,
'/f 3. Para continuar: recordemos que o objetivo do argumento de
deixo um comentário relativo à ideia de propriedade. Costuma dizer-
',
Locke partindo de casos é mostrar, por oposição a Filmer, que o direito
il•',,·.·. I;,

li -se que propriedade consiste num conjunto de direitos, com determi-


1
de propriedade não pode ser a base da autoridade política. Ele fá-lo
nadas condições impostas sobre a forma como esses direitos podem
! ser exercidos. Conceções diferentes de propriedade, privada ou não,
apresentando duas questões.
especificam o conjunto de direitos de maneiras variadas. a) No capítulo 4 de First Treatise, defende que posse de terra e de
Para Locke, propriedade - ou «propriedade em» (como diz fre- recursos tão-somente não dá lugar a autoridade política: o facto
quentemente) - é o direito a fazer qualquer coisa, ou o direito a usar de ter mais propriedade do que aqueles que não a têm não me dá
qualquer coisa, sob determinadas condições, um direito que não nos jurisdição política sobre eles;
pode ser retirado sem o nosso consentimento7. b) No capítulo 5 de Second Treatise, argumenta que a posse de terra
Devíamos distinguir o direito propriamente dito e os seus campos e recursos pode, e fê-lo, aparecer antes do governo; e de facto
de intervenção, do tipo de ação ou coisa a que temos direito de fazer uma razão para estabelecer governo é a proteção de propriedade
ou usar. Mesmo quando o direito é o direito a usar e a ter o devido já existente.
controlo sobre terra e recursos naturais, propriedade não significa terra
ou recursos, mesmo se Locke às vezes parece dizer isso. Há um signi- Por isso, para Locke, a propriedade não estabelece nem requer
ficado de propriedade enquanto conjunto de direitos: o direito (como autoridade política, em contraste com a visão feudal e a de Filmer.
um todo) não nos poder ser retirado sem o nosso consentimento. Di- Começo com o primeiro ponto. A sua afirmação mais clara está
reitos diferentes relacionam-se com tipos diferentes de ações e coisas em First Treatise: capítulo 4, <J[<J[39, 41-43. Filmer tinha alegado que
sobre as quais podemos ter posse. Deus dera o mundo a Adão como sua propriedade. Uma grande parte
Também devíamos distinguir pelo menos duas utilizações - não sig- destes capítulos é, como o resto de First Treatise, extremamente ente-
nificados - de «propriedade» de acordo com os tipos de coisas relacio- diante, mas algumas passagens são fundamentais para a visão de Locke.
nadas com o conjunto de direitos em questão. Após uma longa discussão, Locke diz em I: <J[39: «[ ... ] porque, con-
tudo, a respeito um do outro, os Homens podem ser proprietários nas
a) Uma é a utilização lata de Locke, na qual os direitos envolvem suas Porções distintas das Criaturas; todavia, a respeito de Deus
vidas, liberdades e propriedades, tal como se encontra nos Criador do Céu e da Terra, que é o único Senhor e Proprietário de
<J[<J[87, 123, 138, 173; todo o Mundo, a Posse do Homem sobre Criaturas nada mais é senão a
Liberdade de as usar, que Deus autorizou, e portanto a propriedade do
7 Ver James Tully, A Discourse on Property, Cambridge: Cambridge University Press, Homem pode ser alterada e alargada, como vemos que aqui foi, depois
1980, pp. 112-116, com definição na p. 116. da Inundação, quando outras utilizações delas são permitidas, e que

178 179
antes não eram. De tudo [o] que suponho, é evidente que nem Adão acima. Mas Locke continua a dizer que Deus não nos deixou à mercê
nem Noé tinham Domínio Privado, alguma Posse sobre as Criaturas, de outros; nem deu a ninguém propriedade que exclua outros, que têm
exclusivas da sua Posteridade, como deveriam sucessivamente cres- necessidades, de também terem direito ao excesso dos bens dos outros:
cer necessitando delas, e virem a ser capazes de fazer uso delas.» Esta «E portanto nenhum Homem poderia alguma vez ter um Domínio
passagem, juntamente com a passagem em I: <n: 41, contém várias cara- justo sobre a Vida de outro, por Direito de propriedade de Terra ou
terísticas centrais da conceção de propriedade defendida por Locke. Posses; visto que seria sempre um Pecado em qualquer Homem de
Por um lado, posse sobre algo (aqui, «posse sobre criaturas») é a Estado, deixar que o seu Irmão morresse por necessidade de Ajuda
liberdade de usar esse algo para a satisfação das nossas necessidades resultante da sua Abundância. Como a Justiça dá a cada Homem um
e requisitos. Deus é sempre o senhor e proprietário do mundo em si, Título pelo produto da sua Indústria honesta, e as justas Aquisições
das coisas vivas e recursos naturais. Mas, perante a lei fundamental que os seus Antepassados lhe passaram; então a Caridade dá a cada
da natureza, que visa a preservação da humanidade, e tanto quanto Homem um Título para retirar da Abundância de outro, para o afastar
possível, de cada um dos seus membros (incluindo a nossa própria pes- de necessidades extremas [... ] [Um] Homem não pode fazer mais uso
soa), temos dois deveres naturais: um, preservarmo-nos a nós pró- da necessidade de outro, para o forçar a ser seu Vassalo, retendo essa
prios, o outro, preservar a humanidade. Ajuda [ ... ] do que ele, que tem mais força, pode aproveitar-se de
4. Tendo em conta estes dois deveres, temos dois direitos naturais. alguém mais fraco, dominá-lo para sua Obediência, e com um Punhal
Trata-se de direitos de capacidade: isto é, direitos que temos para realizar apontado à sua Garganta oferecer-lhe Morte ou Escravatura» (I: '1]:42).
determinados deveres que são prioritários na ordem de fundamentos. Trata-se de uma afirmação forte, e I: '1]:43 aborda a mesma questão.
E desses deveres, também um terceiro direito natural. Este último Locke Pode parecer no início que o <n: 43 refere que mesmo nessas situações
descreve aqui como a «liberdade de usar» coisas inferiores e recursos extremas o consentimento é que está na base da autoridade política.
naturais enquanto meios essenciais para preservar a humanidade e nos Locke diz: «Se alguém fizer [uma] utilização tão perversa das Bênçãos
preservarmos como seus membros. De I: '1]:41: «[ ... ]é mais razoável pen- de Deus jorradas sobre ele por uma Mão liberal; se alguém for Cruel e
sar que Deus, que ordenou que a Humanidade aumentasse e se multi- Impiedoso a esse extremo, tudo isto não provaria que Posse sobre Terra,
plicasse, deveria ele próprio ter dado a todos o Direito de fazer uso da mesmo neste Caso, dava algum tipo de Autoridade sobre as Pessoas de
Comida e do Vestuário, e de outras Conveniências da Vida, os Materiais Homens, mas apenas esse Compacto daria; visto que a Autoridade
que ele lhes tinha fornecido em abundância; em vez de os fazer depen- do Proprietário Rico, e a Sujeição do Pedinte Necessitado, não partiu
der da Vontade de um Homem para a sua Subsistência, que deveria ter da Posse do Senhor [posse de propriedade], mas do Consentimento do
Poder [direito] para os destruir quando assim entendesse.» Homem pobre, que preferiu ser seu Súbdito do que morrer à fome.»
Outro traço da visão de Locke acerca de propriedade é que esta O facto de Locke descrever o homem de propriedade a fazer um uso
liberdade de utilização não é um direito exclusivo: isto é, não é um perverso das suas bênçãos, e sendo cruel e impiedoso, significa, creio
direito a que possamos recorrer para restringir a liberdade de utilização eu, que ele nega a força vinculativa do consentimento num caso como
daqueles que nos sucedem, quando precisam de usar ou ter ace~so à esse. Em vez disso, quer dizer que qualquer tipo de autoridade política
abundância da natureza pelos seus legítimos interesses. Resumindo, que possa existir (e pode não haver nenhuma) resulta do compacto: do
ninguém pode ser excluído da utilização ou do acesso aos meios neces- consentimento que o homem pobre concede. Relativamente ao grau
sários de vida fornecidos pelo grande comum do mundo, exceto de autoridade existente, Locke continua dizendo que se considerar-
daquilo a que sujeitámos a nossa propriedade sob as duas cond~çõ~s. mos esse consentimento válido, também podemos dizer que as nossas
Este terceiro direito natural aos meios de preservação é um duelto reservas de grão estão cheias em tempo de escassez e que temos
nosso, em conjunto com todas as outras pessoas, na utilização ou no dinheiro nas nossas algibeiras, quando outros estão a morrer à fome;
acesso ao grande comum. ou que estamos num barco no mar e somos capazes de nadar quando
Estas observações preparam-nos para I: '1]:'1]:41-42, em que Locke outros se estão a afogar e precisam da nossa ajuda; em todos estes e
rejeita completamente a ideia de propriedade como base de autori~ade noutros casos semelhantes, podíamos igual e adequadamente exigir o
política. Isto já parece bem claro através da passagem em I: '1]:41 citada consentimento de outros para exercermos autoridade política sobre

180 181
eles. Mas Locke não acredita nisso e conclui que, apesar do domínio :mente de como o uso destes últimos afeta outros. O nosso direito - a
privado que Deus terá dado a Adão (e diz que provou que Deus não nossa liberdade de uso - pressupõe que determinadas condições de
fez nada disso), isso nunca poderia dar lugar a soberania. Só o consen- base sejam satisfeitas. Estas condições são indicadas pelos três princí-
timento livre sob determinadas condições, violadas nos casos descri- ; pios de justiça, caridade e oportunidade razoável. Esta última implica
tos, pode fazer isso. que quem não tem propriedade deva ter uma oportunidade razoável
5. Do referido até agora podemos inferir mais três limitações sobre de emprego: a oportunidade para ganhar através do seu trabalho ho-
a história ideal: nesto os meios de vida e subir no mundo.
a) Práticas e costumes, por primitivos que possam ser, devem per-
mitir, ou assegurar, que todas as pessoas tenham direito ao pro-
duto do seu trabalho honesto. Isto é um princípio de justiça. § 4. RESPOSTA DE LOCKE A FILMER: II: CAPÍTULO 5
(Temos, portanto, um preceito de justiça: cabe a cada um o produto
do seu trabalho honesto.) 1. Falando agora de Second Treatise, o argumento de Locke contra
b) Salvo catástrofes, práticas e costumes não devem permitir que Filmer no capítulo 5 é aproximadamente o seguinte: O seu objetivo (tal
ninguém caia em necessidade extrema, ou se torne incompe- como afirma no <J[25) é mostrar como podemos nos primeiros tempos
tente e incapaz de exercer os seus direitos naturais e realizar do mundo, e antes da existência de autoridade política, vir a ter pro-
os seus deveres de uma forma inteligente. Este é o princípio da priedade legítima «em várias partes daquilo que Deus deu à Huma-
caridade; nidade em comum». Locke tem de responder a Filmer quanto a esta
e) O terceiro direito natural deve ser respeitado: todos têm liber- questão, visto que deve mostrar como a sua visão pode explicar, por
dade de usar ou ter acesso ao bem comum do mundo, para oposição a justificar, o direito de propriedade reconhecido em todo o lado.
que, em contrapartida pela sua indústria honesta, consigam Locke defende que Deus deu o mundo a toda a humanidade em
ganhar os meios de vida. Este é o princípio da oportunidade comum, e não a Adão. Mas esta concessão de propriedade é entendida
razoável. Aqui não podemos falar de oportunidade igual ou pelo autor não como um dádiva de propriedade coletiva exclusiva
justa; estes termos são muito fortes para aquilo que Locke tem - propriedade exclusiva pela humanidade enquanto corpo coletivo -
em mente. Contudo, esta oportunidade razoável tem um mas como uma liberdade que todas as pessoas têm para usar os meios
grande significado. necessários de vida fornecidos pela natureza e o direito de se apropria-
rem deles através de trabalho honesto de modo a satisfazer as suas
Partindo destas limitações, em história ideal, não pode simples-
necessidades e requisitoss.
mente acontecer que a maior parte da população adulta masculina
(a fração sem voto) seja tão bruta e indiferente a ponto de ser incom- Tudo isto é feito no sentido de exercer os nossos dois direitos natu-
petente, e portanto inapta - por não ser suficientemente razoável ou rais de preservar a humanidade e de nos preservarmos a nós próprios
racional - a constituir uma parte do compacto social. Porque se dize- como seus membros.
mos isto, também devemos dizer que o poder político pode partir de Há duas condições implícitas nesta conceção:
grandes desigualdades em termos de posse real (terra e recursos natu- a) Primeira condição: bastante e bom para os outros: <J[<J[27, 33, 379.
rais) sem haver consentimento, o que Locke nega; ou ainda que as Assim é porque o direito de utilização não é uma posse exclu-
limitações da história ideal são violadas: aos pobres são negados meios siva. Outros também têm o mesmo direito;
suficientes provenientes do excesso dos restantes para serem capazes
de exercerem os seus deveres para com Deus e inteligentemente desem-
penharem os seus direitos naturais. 8 Ver Richard Tuck, Natural Rights Theories, Cambridge: Cambridge University Press,
1979, pp. 166-172.
Para concluir: a visão de Locke em First Treatise é a de que o direito 9Locke diz: «Nenhum homem a não ser ele pode ter direito ao que isso [viz. o seu
de propriedade é condicional. Não é um direito para fazermos o que nos trabalho] se associa uma vez, pelo menos onde há suficiente, e bom, deixado para
aprouver com os nossos próprios direitos, tal e qual, independente- outr<?s.» Second Treatise, <][27, p. 288.

182 183
b) Segunda condição: cláusula de desperdício: 131, 36 e segs., 4610., retirar da abundância da natureza mais do que podemos usar
Assim é porque Deus é sempre o único proprietário da terra e antes que se estrague. Por enquanto, através de trabalho indus-
dos seus recursos. Ficar com mais peixe, por assim dizer, do que trioso podemos adquirir mais do que podemos usar mas trocar o
aquele que precisamos para comer é desperdiçar e destruir excesso por dinheiro (ou por coisas de valor de diferentes tipos),
parte da propriedade de Deus. e assim acumular cada vez maiores domínios de terra e recursos
naturais, ou o que quer que seja possível. O dinheiro permite-
2. A seguir chegamos a «a grande Base de Propriedade» (uma expres- -nos «possuir justamente» mais terras, por assim dizer, do que
são que Locke usa no 144) (ver os 1127, 32, 34, 37, 39, 44 e segs. e 51). os produtos que delas resultam e que podemos usar, «recebendo
Esta base é a posse que temos sobre a nossa própria pessoa, a que em troca o excesso, Ouro e Prata, que poderão ser acumulados
mais ninguém tem direito (127). O trabalho do nosso corpo, o produto sem prejuízo para ninguém» (150);
(o trabalho) das nossas mãos, são nossos por direito. Isto também b) Ao consentir tacitamente (sem haver um compacto) com a utili-
sugere um preceito de justiça: cabe a cada um o produto do seu traba- zação de dinheiro, as pessoas «concordavam com Posse de Terra
lho honesto (127). desproporcional e desigual» e faziam-no através de «consenti-
De novo no 144: somos senhores de nós próprios e proprietários da mento tácito e voluntário» (150);
nossa pessoa, e das ações e do trabalho por ela realizado, e por isso e) Tanto propriedade como dinheiro apareceram antes da sociedade
temos em nós próprios «a grande Base de Propriedade». O que conse- política e sem compacto social, e isto apenas através da «atribui-
guimos melhorar por nossa iniciativa é verdadeiramente nosso, e não ção de um valor ao ouro e à prata e concordando tacitamente com
propriedade comum. Por isso, no início, o trabalho deu direito às coisas. a utilização de Dinheiro» (150)11.
Nos 1140-46 Locke apresenta uma versão do custo do trabalho no 4. Assim, Locke faz, creio eu, uma descrição de propriedade divi-
âmbito da teoria de valor, por exemplo: o trabalho representa 90 a 99 dida em dois estádios. O primeiro é o da natureza nas suas várias
por cento do valor da terra. O objetivo destas secções é argumentar fases antes de haver sociedade política. Aqui podemos distinguir três
que a instituição da posse sobre a terra, devidamente limitada, é para fases:
1 benefício de todos. Os que não possuem terra não precisam de sofrer
1'
por causa disso. No 141 Locke diz que um rei num território grande e a) O período dos primeiros tempos do mundo: 1126-39, 94;
potencialmente frutífero na América, rico em terra ainda não traba- b) O período da fixação de fronteiras tribais por consentimento:
lhada, é alimentado, albergado e vestido em piores condições do que 1138, 45;
um jornaleiro em Inglaterra. A instituição da posse privada sobre e) O período do dinheiro e comércio através de consentimento:
terra, quando devidamente limitada pela história ideal, é tanto indivi- 1135, 45, 47-50.
dual como coletivamente racional: ele diz que nos beneficia mais do
que se não a possuíssemos. O segundo estádio é o da autoridade política e, aparentemente,
3. Chegámos finalmente à introdução de dinheiro e à transição tem três fases:
para a autoridade política. Locke discute estas matérias nos 1136 e a) O período da monarquia paternal: 1174 e segs., 94, 105-110, 162;
segs., 35, 47-50. b) O período do governo através de compacto social e a regulação
de propriedade: 1138, 50, 72 e segs.
a) Um ponto crucial aqui é que a introdução de dinheiro, de facto,
suspende a cláusula de desperdício, que diz que não podemos No segundo estádio, é principalmente o período do governo através
de compacto social com que Locke se preocupa. Neste estádio a propriedade
10 «Tanto quanto se possa fazer uso de qualquer vantagem de vida antes de se estra-
gar; o deve fazer ele através do seu trabalho fixar Posse sobre. O que quer que haja
para além disto, é mais do que a sua parte, e pertence a outros. Nada foi criado por 11 Como é que este consentimento tácito se relaciona, em caso afirmativo, com o dos
Deus para ser estragado ou destruído.» Second Treatise, 131, p. 290. 11119-122? Presumivelmente é diferente, mas como?

184 185
é co.nvencional: isto é, é especificada e regulada pelas leis positivas de enquanto estado de jurisdição igual, e sendo todos iguais soberanos
sociedade. Presumo que estas leis respeitam todas as limitações da lei por assim dizer, se faça parte de um compacto social que resulte num
fundamental da natureza que já discutimos. Que também respeitam 0 estado de classes.
~ue Locke cham~ de «Lei Fundamental de Propriedade» na sociedade polí- Poder-se-ia rejeitar este problema por não ser bem apresentado. Isto
tica: q1:1e a p~opnedad: ~ão pode ser retirada das pessoas, mesmo para é, poder-se-ia dizer que Locke não aceita de facto o estado de classes;
confenr ap010 necessano ao governo, sem o seu consentimento, ou 0 na melhor das hipóteses só aparenta fazê-lo. Não podemos lutar em
dos seus representantes (<_[140). todas as batalhas políticas ao mesmo tempo, por isso ele encara-as à
. Uma consequência importante da natureza convencional de pro- medida que vão aparecendo, começando pela mais urgente. Como pro-
pnedade (real) na sociedade política é que um regime socialista liberal12 blema mais urgente, Locke opõe-se ao absolutismo real. Assim sendo,
não é, julgo, incompatível com o que Locke diz. De facto, é imprová- não se deve dizer que aceita o estado de classes. Na verdade, ele não
vel que o Parlamento (os representantes) no estado de classes de Locke está a assumir nenhuma posição sobre esta questão, e nem sobre a igual-
criasse as leis definitivas de instituições socialistas. Talvez sim, mas isso dade das mulheres.
é um outro assunto. A questão é só que não há necessidade de viola- Eu simpatizo com esta resposta. Pode estar correta. Tendo em conta
ção de direitos de propriedade (real), tal como Locke os define nesse
• I
os nossos objetivos, assumo simplesmente que ele realmente aceita o
regime. estado de classes de um modo frágil: julga que esse estado podia, e de
Além disso, é perfeitamente possível que a partir do momento em facto pôde, aparecer e existir na constituição mista inglesa da sua época.
que partidos políticos se formem poderão competir uns com os Eu não digo que ele aceita o estado de classes se isto significar que ele
outro~ em matéria de votos, pressionando a expansão do eleitorado, apoia totalmente os seus valores e se sente satisfeito com ele.
reduzmdo, ou eliminando, a qualificação de propriedade. De facto, isto 2. Poder-se-ia rejeitar o problema uma vez mais não permitindo
aconteceu durante a época de Locke, visto que o Parlamento tendia a que Locke recorresse a razões de necessidade. Isto é, o seu pensa-
ver com bons olhos aumentos no direito de voto, particularmente nas mento ao aceitar o estado de classes, tanto quanto aparenta fazê-lo,
cidades, em parte para se proteger contra a Coroa13. poderá ser que mesmo em história ideal as condições sociais possam
Perante o desenvolvimento de condições políticas e económicas no ser bastante duras e limitadoras, de tal modo que um estado de clas-
ân:bi~o. da his~ória ideal, poderá haver boas razões para muitos pro- ses se justifique, e poderia surgir em conformidade com a sua visão,
p~ieta_nos. apo~arem essa legislação. Se aprovada, este tipo de legisla- só por causa dessas mesmas condições. À medida que as coisas vão
çao nao v10l.ana, tanto quanto observo, nada na explicação que Locke melhorando, um estado de classes já não será legítimo através dos
faz de propnedade. Com tempo, poderia então desenvolver-se do estado próprios princípios de Locke; só um regime baseado em direito de
de classes de Locke em algo semelhante a um regime democrático cons- voto e distribuição de propriedade mais igual satisfará os seus requi-
titucional moderno. E isso aconteceu realmente? sitos de legitimidade. Eventualmente, um estado constitucional justo
poderá aparecer para responder totalmente às ideias de liberdade e
igualdade na sua doutrina.
§ 5. PROBLEMA DO ESTADO DE CLASSES Como disse anteriormente, simpatizo com esta objeção. Não nego a
Locke a defesa por necessidade, pois a filosofia política deve reconhe-
cer os limites do que é possível. Não pode simplesmente condenar o
1. Chegámos por fim ao problema do estado de classes em Locke.
mundo. Nem pretendo negar que há ideias de liberdade e igualdade
Recorde1:11os que se trata da questão de como pode suceder que, em
em Locke que podem fornecer uma grande parte, e talvez não toda, da
conformidade com a visão de Locke, partindo do estado de natureza
base de uma conceção do que consideraríamos um regime democrá-
tico justo e igual.
12 Tal regime foi considerado pelo Partido Inglês Trabalhista e pelos Democratas Sociais Mais propriamente, a questão é a seguinte. Para Locke aceitar um
Alemães.
estado de classes, só é exigido que devam existir, na história ideal, algu-
13 Ver nota 4.
mas condições sob as quais, de acordo com a sua perspetiva, um estado

186 187
de classes pudesse surgir. Para demonstrar ser este o caso, tudo o que De acordo com Joshua Cohen, dizemos que o compacto social deve
p~e~i~amos é contar uma história plausível acerca dessas condições, satisfazer três critérioslS:
historia essa que responda a todas as restrições enumeradas. Poderemos a) Racionalidade individual: Cada pessoa deve acreditar razoavel-
então, conjeturar que tal é a forma que Locke terá atribuído à consti~ mente que estará pelo menos tão bem na sociedade do com-
tuição inglesa, apesar de obviamente isso não ter acontecido. (Relem- pacto social como no estado de natureza onde se encontra agora.
brem o que dissemos anteriormente acerca de William, o Conquistador.) O padrão usado para decidir se as pessoas estão melhor são os
O que estamos a fazer é a testar a explicação que Locke tece acerca de seus legítimos interesses, tal como se definiu anteriormente atra-
legitimidade. Dever-se-á assinalar que pode haver outras condições vés de referência às suas posses em sentido lato;
em que só um estado mais próximo dos nossos ideais atuais e não um b) Racionalidade coletiva: Não deve haver nenhum outro com-
estado de classes poderia aparecer. pacto social alternativo (incluindo a forma de regime que esta-
Precisamos de ter em mente o objetivo deste exercício: nomeada- belece) a ponto de todos o preferirem no lugar do acordo em
me~te, ilustrar como,. na doutrina de Locke, os termos do compacto
questão. Por outras palavras, não há nenhum outro acordo
social e a forma de regime dependem de várias contingências, incluindo que fosse benéfico para algumas pessoas sem ser prejudicial
as vant~gens de negociação das pessoas, externas ao compacto. Assim
para outras. (Tal como no princípio de Pareto.)
se explica porque o conhecimento destas não está excluído. As partes
e) Racionalidade de coligação: passando por cima de grandes
que determinam os princípios básicos do compacto social não estão por
complexidades, presumimos simplesmente que só há duas
detrás de um «véu de ignorância», tal como em justiça como equidade14.
coligações: uma inclui todos aqueles que têm propriedade
. O resultado é que as pessoas entram no compacto não somente
suficiente -para satisfazer a qualificação de voto (aproximada-
h.vres : iguais, razoáveis e racionais, mas também nesta ou naquela
mente 40 xelins de domínio de terra). Chamemo-los pessoas
s~tuaç~o com esta ou aquela quantidade de propriedade. Os seus legí-
com propriedade (suficiente). A outra coligação inclui quem
timos interesses formam-se em conformidade e poderão lançá-las em
discórdias. Se quisermos ter uma conceção política na qual os termos não é capaz de satisfazer aquela qualificação, apesar de terem
da cooperação social e a forma de regime são independentes dessas alguma propriedade inferior a 40 xelins. Chamemo-los pes-
contingências, temos de encontrar uma maneira de rever a visão do soas sem propriedade (suficiente). A racionalidade de coligação
contrato social. significa agora que ambas as coligações, e os seus membros
individuais, julgam conseguir fazer melhor sob o compacto
social proposto do que sob qualquer outro acordo mutuamente
§ 6. A HISTÓRIA EXATA DA ORIGEM aceite para elas. Os seus membros devem encarar melhor o
acordo do que se a sua coligação se deteriorar por si própria,
DO ESTADO DE CLASSES ou se separar.
1. Concluo com um breve esboço que mostra como um estado de
Ignorando algumas complexidades mais uma vez, presumimos que
classes podia aparecer na história ideal. Já vimos que supostamente
só há quatro alternativas:
todos agem tanto racional como razoavelmente. Ninguém viola os seus
deveres sob a lei fundamental da natureza ou é incapaz de agir racio- i) Estado de classes (com qualificação de voto no valor de 40 xelins
nalmente na apresentação dos seus legítimos interesses. Estes são inte- em domínio de terra);
resses nas suas posses em sentido lato, isto é, nas suas vidas, liberdades ii) Estado democrático com sufrágio universal;
e propriedades, por mais pequena que seja a sua posse de terra (pro-
priedade real).
15 Ver Joshua Cohen, «Structure, Choice and Legitimacy: Locke's Theory of the State»,
pp. 311-323. Juntas estas condições definem a parte central de um jogo coopera-
14John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement. Ver§ 6: «The Idea of the Original Position». tivo.

188 189
iii) Divisão em dois estados: Como ~oc~e teria requerido, suponhamos agora que o estado de
classes sahsfana os seguintes princípios:
a) Um estado daqueles com propriedade (suficiente);
b) Um estado daqueles sem propriedade (suficiente). a) Qualquer pessoa é um cidadão com as proteções do domínio da
lei (<]1120), incluindo, obviamente, cidadãos passivos (aqueles sem
iv) Estado de natureza, ou status quo. propriedade suficiente para votar);
b) A_ ~id"'ad~nia :eic~la ~ma opo~tunidade razoável de adquirir, com
Passando por cima de mais algumas complexidades (continuamos dihg~r:icia: mdustna, propnedade suficiente para satisfazer a
a ter de o fazer!), presumimos que não há preferências pela forma do quahftcaçao de voto. Isto significa que oportunidades para
estado enquanto tal: os regimes são julgados pelas pessoas apenas emprego remunerado devem ser garantidas;
por referência ao cumprimento esperado dos seus legítimos interesses e) ~lé~ disso, estas oportunidades são protegidas pelo princípio de
(os que são compatíveis com os seus deveres sob a lei fundamental da JUshça, que, entre outros preceitos, garante todo o produto do
natureza e especificados em termos da sua propriedade em sentido seu trabalho honesto;
lato). d) Finalmente, pelo princípio de caridade, o estado de classes reco-
2. Elaboremos um pouco agora: Tanto o estado de classes como o nhece a reivindicação pelo excesso da sociedade de modo a prote-
democrático são estados constitucionais. Ou seja, ambos cumprem ger todas as pessoas com necessidades extremas.
o domínio da lei, tal como Locke a define nos <]1<]1124-126, 136 e segs.,
142. Por isso, mesmo aqueles que não satisfazem a qualificação de pro- Estes princípios enc?ntram-se entre os termos que os proprietários
priedade podem esperar uma maior proteção para as suas vidas, oferecem a~s sem propn~dad~. Um.a vez aceites, presumimos que estes
liberdades e posses, embora pequenas, do que no estado natural. Por termos serao honrados: isto e, estntamente cumpridos e que todas as
racionalidade individual, portanto, o estado de classes é preferido ao pessoas os c~~hecem. Os sem propriedade não têm de se preocupar
estado natural. com a probab1hdade de os outros renunciarem, e assim sucessivamente.
Há, no entanto, um conflito de interesses entre o estado de classes e 3. Perante todas estas estipulações, podemos ver como o estado de
classes pode surgir do seguinte modo:
o democrático. Quem tem propriedade prefere o estado de classes, quem
não tem prefere o estado democrático. Os proprietários receiam que os . Condi~ões de aceitação: permitir que X seja o compacto social pro-
outros possam usar o direito de voto democrático para redistribuir a posto. X e acordado quando reúne as três condições que se seguem:
sua real riqueza.
a) Racionalidade Individual: todos os indivíduos preferem X ao
a) Partamos do princípio que quem tem propriedade não irá con- estado de natureza;
cordar com o estado democrático e sim preferir a divisão, ou b) Racionalidade Coletiva: não existe alternativa Y de modo a que
decadência por si próprios. Poderão fazê-lo sob a lei natural, todos os indivíduos prefiram Y a X;
desde que o princípio de caridade não seja violado. Entendo a visão e) Raciona.lidade de Coligação: com duas coligações A e B, não há
de Locke permitindo recusa de cooperação nestas circunstân- alternativa Y para que tanto A como B prefira Y a X, ou para que
cias (<]195); t~n~o .A como B pressione Y a deteriorar-se por si próprio, ou a
b) Os sem propriedade têm de decidir, então, se vão sozinhos div1dIT-se.
por um estado democrático ou se associam a um estado de
classes com os que têm propriedade. Se decidirem que asso- O compacto social conjeturado de Locke:
ciando-se ao estado de classes é de facto racional para eles, o a) O conjunto de alternativas é: Estado de Classes, Estado Demo-
estado de classes é racional de coligação. Ambas as coliga- crático, Divisão, Estado de Natureza·
ções o preferem a qualquer outra alternativa mutuamente b) Preferências dos Com Propriedad~: Classes, Divisão, Demo-
aceite. crático, Estado de Natureza;

190 191
e) Preferências dos Sem Propriedade: Democrático, Classes, Divisão,
gostaria de realçar que não estou a criticar o homem Locke, que,
Estado de Natureza. Ambas as coligações preferem um estado de
como disse, foi uma grande figura, e cujo compacto social foi bem
classes a uma divisão, e visto que os com propriedade podem enquadrado para os seus propósitos na época da Crise de Exclusão.
impor uma divisão, o compacto social escolhido é o Estado de Estamos a examinar a sua visão e a descobrir que não se enquadra
Classes; os sem propriedade não podem evitar uma divisão, por bem nos nossos objetivos. Isso não é surpreendente, visto que, como
isso associam-se ao Estado de Classes. Collingwood diria, os nossos problemas não são os mesmos que ele
encarava e pedem soluções diferentes.
4. Se esta história é correta e compatível com a história ideal, a
constituição mista de Locke com o seu direito de voto, no valor de
40 xelins, pode aparecer. Outras histórias, contudo, também são pos-
síveis. É um aspeto importante da visão de Locke que muitas dife-
rentes formas de regime pudessem ter lugar. A sua perspetiva não
requer um estado de classes; permite-o simplesmente. Cohen des-
creve outras condições, como as do século XIX, sob as quais é plau-
sível defender que a democracia seria aceite. O próprio Locke des-
creve nos 'IT'IT107-111 como a monarquia aconteceu no início da
«época dourada» quando as propriedades eram pequenas e aproxi-
madamente iguais e antes da ambição vazia ter corrompido as men-
tes dos homens.
O importante disto é que o que é básico para a visão de Locke é o
tipo de justificação proposto para instituições políticas. Quando as
pessoas concordam com o compacto social, ele considera-as indiví-
duos que conhecem os seus interesses sociais e económicos particula-
res, bem como a sua posição e estatuto na sociedade. Isto significa que
a justificação que os cidadãos se dão uns aos outros ao entrarem no
compacto social leva estes interesses em consideração.
Um objetivo da nossa história sobre o estado de classes era defen-
der Locke contra a interpretação errada de MacPherson. Mas, ao fazê-
-lo, descobrimos uma caraterística perturbadora da sua perspetiva.
Não só faz os direitos e liberdades dos cidadãos dependerem das con-
tingências históricas em situações que gostaríamos de evitar, mas
também levanta a questão da possibilidade de o acordo constitu-
cional não ser reconsiderado após cada mudança importante na
distribuição de poder político e económico. Talvez as liberdades e
oportunidades básicas de um regime constitucional devessem ser
estabelecidas de forma muito mais sólida do que essa, e não estarem
sujeitas a essas mudanças.
Deste modo, como dissemos, temos de encontrar uma maneira de
rever a doutrina contratual de Locke. Tanto Rousseau como Kant fazem
revisões, e justiça como equidade segue-lhes as pisadas. Em conclusão,

192
193
HUME
RUMEI

«DO CONTRATO ORIGINAL»

§ 1. NOTAS PRÉVIAS

Até agora falámos acerca de Hobbes e Locke, e fizemo-lo de forma


bastante rápida 1.
Isso é inevitável, dado o âmbito e o objetivo destas palestras, e por
isso não vou pedir desculpas. Só espero que tenham consciência de que
há, obviamente, muito mais para dizer sobre cada um deles. O pro-
blema que se nos depara hoje é conseguir ter algum tipo de transição
natural de Hobbes e Locke, que são dois pensadores da tradição do
contrato social, para Hume e Mill, que se incluem na tradição utilitá-
ria. Procuramos um ponto de vista que realce os principais pontos de
contraste entre eles e evidencie as diferenças filosóficas que os divide
acerca das quais o debate teve lugar.
Poderíamos dizer que qualquer tradição filosófica principal, quer
na área do pensamento político ou outra qualquer, baseia-se por vezes
em determinadas ideias intuitivas, e requer a elaboração e desenvol-
vimento destas últimas; e encontramos vários autores ao longo do
tempo que o fazem de diferentes modos, e por isso surgem variantes,
também elas diferentes. A ideia intuitiva da tradição do contrato social
é a noção de acordo - acordo entre pessoas iguais que são pelo menos

1 [As duas palestras sobre Hume resultaram de transcrições de gravações de aulas dadas
nos dias 4 e 11 de março de 1983 à turma de Rawls de Filosofia Política Moderna na
Universidade de Harvard. Algumas passagens relevantes dos seus apontamentos
manuscritos preparados para as aulas foram acrescentadas. - Ed.]

197
racionais, e que de algum modo concordam com o facto de serem go- terem sido estabelecidos com segurança, que todos tinham a obrigação de
vernadas de uma determinada maneira, quer, como no caso de Hob- respeitar o seu regime porque se tratava de um soberano efetivo.
bes, autorizando um soberano, ou no caso de Locke juntando-se a uma Enquanto um argumento baseado em Locke iria, com efeito, divergir.
comunidade e depois organizar a vontade da maioria no sentido de Partindo do prinópio que aplicávamos o seu argumento à mesma situa-
instalar o poder legislativo ou a constituição. A noção de acordo é, julgo, ção, dir-se-ia que o anterior regime tinha violado os direitos do povo.
intuitivamente atrativa. Se eu concordar com alguma coisa, então O poder político tinha então revertido a favor deste último, e através do
estou sujeito aos termos do acordo, e isso remete-nos, poderemos dizer, processo de revolução e restauração um novo regime tinha sido estabele-
à ideia básica de consentimento, ou promessa. Penso que Locke encara cido, respeitando os direitos do povo. «Respeitando os direitos do povo»
a noção de promessa como dado adquirido, como algo que todos com- significa que é um regime legítimo, um em que se poderia firmar um con-
preendemos. Não há qualquer tentativa da sua parte para extraí-la das trato a partir de um estado de direitos iguais. Assim, esses argumentos de
leis fundamentais da natureza. Hobbes e Locke são bastante diferentes, apesar de ambos terem um tipo
É claro que a visão do contrato social varia de várias formas, depen- de contrato social em mente, envolvendo a noção de acordo.
dendo de como a noção de acordo é redigida ao pormenor. Quais são A tradição utilitária tem um género diferente de ideia intuitiva. Im-
as condições do acordo? Quem está de acordo? Como são descritas as plica a ideia de interesse geral, ou bem-estar geral da sociedade, do
pessoas que fazem o acordo? Quais são as suas intenções? Quais são bem comum, interesse público - todas expressões diferentes que Hume
os seus interesses? Muitos outros aspetos terão de ser desenvolvidos e usa. E a doutrina utilitária parte da ideia de criar o maior bem social
pensados. Estabelecemos um contraste entre Hobbes e Locke quando, (ou público). Nesta perspetiva, tínhamos motivos para apoiar um go-
no caso do primeiro, sublinhei o aspeto de ele parecer estar preocupado verno ou um regime se, em linhas gerais, a sua existência continuada
em dar a todos razões convincentes, dirigidas aos seus próprios inte- e a sua eficiência promovessem a prosperidade do povo, ou propor-
resses, pelas quais é racional para eles querer que um soberano efe- cionassem um bem-estar maior do que qualquer outro regime que
tivo continue a existir. É uma noção, portanto, que iria tentar basear poderia ser estabelecido como alternativa na época. Assim, os utilitários
cri~m argumei:tos que apelam ao bem-estar geral ou ao bem geral da
obrigações nos interesses racionais e fundamentais das pessoas. Em
Hobbes, não há, no conjunto, um apelo ao passado. Se o soberano existir soCiedade. Mais uma vez digo que muitos aperfeiçoamentos terão de
agora, então todos têm interesse que continue a existir, e não importa ser efetuados relativamente à noção de bem-estar, e quando aprofun-
como realmente surgiu o poder soberano no passado. Somos obriga- darmos o estudo acerca de Hume e Mill veremos alguns dos problemas
envolvidos nessa tarefa. Será imperativo assinalar que a noção de pro-
dos, cada um de nós, nos termos dos nossos interesses fundamentais,
messa, ou de origem, ou de contrato, não entra de modo algum na
a apoiar um soberano efetivo agora.
perspetiva utilitária. O que o utilitário faz é olhar para o presente e
A perspetiva de Locke é claramente muito diferente. Começa com
para o futuro e perguntar simplesmente se a forma atual de regime, a
uma condição de direitos iguais no estado da natureza, e depois ima-
atu~l organização de instituições sociais, é capaz de promover a pros-
ginando que, através de uma série de acordos ao longo do tempo, e
peridade geral da melhor e mais eficiente forma.
tendo cada um deles de satisfazer determinadas condições, um regime
A visão utilitária difere da de Hobbes inter alia de três maneiras, a
seria estabelecido. Para este autor, um regime legítimo será aquele que saber:
poderá ter sido estabelecido de um certo modo e isso reúne determi-
nadas condições. Isto é real quer se possa ou não mostrar que qualquer a) O utilitarismo rejeita egoísmo psicológico [à exceção de Bentham],
regime tenha historicamente surgido assim. Por isso, no seu caso a legi- e insiste na importância dos sentimentos de afeto e benevolência.
timidade depende da forma do regime, e de como poderia ter surgido, Apesar de a teoria de Hume de generosidade limitada ser aqui
e a sua real proteção de determinados direitos legítimos. importante na descrição que faz de justiça e política;
Se explicássemos aqui os contrastes entre os argumentos de Locke e b) O utilitarismo rejeita o convencionalismo relativístico quanto à
os de Hobbes - a forma que assumiriam, digamos, em discussão pública distinção entre certo e errado, e insiste na razoabilidade e objeti-
em 1688 e 1699 - um apoiante de Hobbes diria, depois de William e Mary vidade do princípio de utilidade;

198 199
e) O utilitarismo rejeita a visão de Hobbes de que a autoridade po- dar a economia, e a economia da prosperidade ter historicamente uma
lítica reside na força. Defende, em vez disso, que a autoridade ligação próxima à tradição utilitária. Para além disso, desde 1900 que a
política se baseia no trabalho do governo em prol do bem da tradição se tem dividido em dois grupos que se ignoram mais ou
sociedade como um todo (para a prosperidade social), tal como é menos, os economistas e os filósofos, em detrimento de ambos; pelo
i definido pelo princípio de utilidade, que se define de diferentes menos na medida em que os economistas se preocupam com economia
maneiras de acordo com os vários apoiantes do utilitarismo. política e com a chamada economia da prosperidade, e os filósofos com
1

a filosofia moral e política. Esta divisão não é fácil de retificar dadas as


Antes de me debruçar propriamente em Hume, gostaria de assinalar pressões de especialização, entre outras. Também é muito difícil hoje em
que ele é um entre muitos autores utilitários, dos quais só alguns é que dia adquirir um entendimento suficiente acerca de assuntos em ambas
iremos discutir. O utilitarismo foi, e talvez ainda seja, a tradição mais as áreas para que uma pessoa possa discuti-los de forma inteligente.
influente e de duração mais longa na filosofia moral anglófona. Apesar de Como é óbvio, não tenho tempo para abordar todos os utilitários
talvez não conseguir reclamar um escritor do estatuto de Aristóteles e importantes, e, por conseguinte, vou apenas falar de Hume e Mill e ten-
Kant (sendo as suas obras éticas uma classe por si mesmas), vendo a tra- tar transmitir alguma coisa desta visão alternativa e da ideia intuitiva
dição como um todo, e reparando na sua dimensão e continuidade e que lhe subjaz. Relativamente a Hume, sugiro que leiam «Of the
melhoramentos crescentes em determinadas partes, o utilitarismo é talvez Original Contracb>, e Enquiry Concerning the Principies of Morals (1751),
único na sua excelência coletiva. Tem-se vindo a desenvolver desde a pri- dando especial atenção às secções 1-V, IX, e apêndice III (aproximada-
meira metade do século XVIII até à atualidade e tem sido marcado por mente 80 páginas na edição Oxford, e pouco mais de metade do total)2.
uma longa linha de autores brilhantes que têm aprendido uns com os Em primeiro lugar, algumas palavras acerca de Hume, o homem:
outros, nomeadamente Frances Hutcheson, Hume e Adam Smith; Jeremy a) As datas: 1711-1776;
Bentham, P. Y. Edgeworth e Henry Sidgwick, os utilitários mais clássicos,
b) Nasceu no seio de uma família da pequena nobreza escocesa em
e John Stuart Mill, cujas perspetivas incluem muitos aspetos não utilitá-
. Berwick, não muito longe a sul de Edimburgo;
rios. Como resultado, e ao fim de quase três séculos de evolução contínua,
e) Frequentou a Universidade de Edimburgo a partir dos 11 anos -
é provavelmente a tradição mais impressionante na filosofia moral.
durante alguns anos;
Não esqueçamos que o utilitarismo faz historicamente parte de uma
d) Aos 18 anos (1729) foi tomado pela ideia de escrever o Treatise;
doutrina de sociedade, e não é simplesmente uma doutrina filosófica à
e) Algumas datas significativas na vida de Hume:
parte. Os utilitários também foram teoristas políticos e tinham uma teo-
ria psicológica. Além disso, o utilitarismo exerceu uma influência consi- i) 1729-1734: Hume lia e refletia em casa;
derável em determinadas partes da Economia. Uma explicação parcial ii) 1734-1737: Hume vivia em França onde trabalhou no Treatise;
para isto é que se olharmos para os economistas mais importantes da iii) 1739-1740: Publicação do Treatise quando Hume regressava a
tradição inglesa antes de 1900 e para os filósofos utilitários mais conhe- Inglaterra;
cidos, vamos chegar à conclusão que são as mesmas pessoas; somente
Ricardo ficará de fora. Hume e Adam Smith eram ambos filósofos utili-
tários e economistas, e o mesmo se pode dizer de Bentham e James Mill, 2 [As notas para a palestra de Rawls de 1979 apresenta aqui o parágrafo que se segue.
John Stuart Mill (apesar de ser questionável por razões que irei discutir As palestras sobre Sidgwick referidas abaixo aparecem no apêndice deste volume.
-Ed.]
posteriormente) e Sidgwick, e Edgeworth, enquanto era principalmente
«Üs meus objetivos aqui são limitados: Irei debruçar-me inteiramente naquilo
conhecido como economista, era de algum modo um filósofo, pelo que chamarei de Tradição Histórica, e distinguir três variantes de utilitarismo:
menos um filósofo moral. Só a partir de 1900 é que esta sobreposição na
a) O de Hume, que discuto hoje e na próxima vez ...
tradição para. Sidgwick e o grande economista Marshall encontravam-
b) Depois passarei para a linha Clássica de Bentham-Edgeworth e Sidgwick;
-se no mesmo departamento em Cambridge quando decidiram fundar c) Finalmente, F. S. Mill.
um departamento à parte de economia, creio que por volta de 1896.
Desde então tem havido uma divisão, apesar de o utilitarismo influen- A nossa tarefa é relacioná-los de alguma forma à medida que avançarmos.»,

200 201
iv) 1748, 1751: Publicação de Enquiry Concerning Principies of apoiando essas instituições e práticas, e regulando a con-
Understanding and of Morals (respetivamente); duta humana;
v) 1748: «Of the Original Contract», que apareceu na terceira edi- iii) Hume quer averiguar os primeiros princípios que governam
ção de Moral and Political Essays, de Hume, como um novo e explicam estes fenómenos, com os morais - julgamentos e
ensaio nessa edição. aprovações, etc. - incluídos. Tal como Newton observou os
primeiros princípios das leis do movimento, Hume subli-
Que fio condutor do Treatise terá tomado a imaginação de Hume nhou determinadas leis de associação como primeiros princí-
levando-o a trabalhar nele isoladamente durante mais ou menos 10 anos? pios de conhecimento e crença; e delineou julgamentos
Só nos resta tirar ilações a partir da própria obra. morais no Treatise como resultado importante da nossa
a) A chave reside no subtítulo: A Treatise of Human Nature: Being an capacidade de compreensão - que é substituída em Enquiry
Attempt to introduce the experimental Method of Reasoning into pelo Princípio de Humanidade. A explicação de Hume
Moral Subjects; acerca do «espetador judicioso» é uma das ideias mais
b) Uma palavra sobre o significado de «moral» - não é o mesmo de importantes em filosofia moral (discutida mais abaixo na
hoje, pois incluía psicologia e aspetos relacionados com teoria Palestra II);
social; iv) Estes detalhes não podem ser abordados aqui: o ponto a real-
c) «Experimental» também mudou pelo facto de ser tornado mais çar é que a formação e o ponto de vista filosófico de Hume
específico. Para Hume significava métodos de ciência - um apelo à são ambos diferentes dos de Locke. Ele aborda o assunto da
experiência e observação, e experiências e teorias pensadas. moralidade pelo prisma de um naturalista observador.
Newton foi o grande modelo, como se torna claro na introdução Mesmo quando discutem o mesmo tópico, fazem-no por um
ao Treatise. Hume visa aplicar os seus métodos aos assuntos ponto de vista diferente. Não tentam, de um modo geral, res-
morais: isto é, assuntos relacionados com a compreensão dos ponder às mesmas questões.
primeiros princípios que explicam (l.º vol.) crenças e conheci-
mentos humanos; (2.º vol.) paixões humanas, ou seja, sentimen-
tos e emoções, desejos e sentimentos, caráter e vontade; (3.º vol.) § 2. A CRÍTICA DE HUME
os fenómenos humanos dos sentimentos morais (de modo mais AO CONTRATO SOCIAL DE LOCKE
restrito), incluindo a nossa capacidade de fazer julgamentos
morais e como o fazemos; em que medida conseguimos ser Viro-me agora para a crítica de Hume à visão de Locke sobre o con-
levados a agir a partir destes julgamentos, e assim sucessiva- trato social. Aparece pelo menos num sítio proeminente - no ensaio de
mente; Hume «Of the Original Contract», o qual surgiu em 1748 na terceira
d) Hume abordou estes tópicos de uma forma completamente
edição dos seus Moral and Political Essays. O ensaio encontra-se divi-
diferente da de Locke: dido em quatro partes. Por vezes, considero útil contar os parágrafos:
i) Locke é como um advogado constitucional a trabalhar dentro do 'IT'Jil-19 é a primeira parte; <J[<J[20-31 é a segunda; e <JI<J[32-45, a terceira
sistema da lei definido pela Lei Fundamental da Natureza; e parte, apresenta o argumento filosófico de Hume contrário ao contrato
defende o caso pela resistência à Coroa no âmbito de uma social de Locke. E, por fim, <J[<J[46-49 é a conclusão.
constituição dentro desse enquadramento. O argumento Pela forma como Hume organizou o ensaio não é claro onde se
segue dentro do sistema moral da LFN; é, tal como era, legal encontram as divisões e julgo que poderá ser útil ter uma ideia prévia
e histórico; acerca do seu conteúdo. Na parte 1, Hume começa por garantir que
ii) A visão de Hume é a de um naturalista a observar e a estu- tanto a visão Tory do direito divino dos reis como a visão Whig de
dar os fenómenos das instituições e práticas humanas, e o que o governo reside no consentimento do povo detêm alguma ver-
papel de conceitos, julgamentos e sentimentos morais, dade - mas não, é claro, na forma em que cada uma pretende. A ver-

202 203
dade que Hume assume dificilmente ser~a o tipo de verdade que os pro- todo o lado príncipes que reclamam os seus súbditos como sua pro-
ponentes de cada uma dessas visões haveriam de querer. Por exemplo, priedade [o que era uma prática corrente na época] e afirmam o seu
ele é muito conciso com a visão Tory, e de algum modo deliberadamente direito independente de soberania a partir da conquista ou da suces-
insultuoso, presumiria eu. Diz que a Coroa pode governar por direito são» ('IT7). Acrescenta que os magistrados mandariam encarcerar os
divino, mas não mais do que um ladrão que leva a minha carteira, por- defensores das teorias de consentimento por serem pessoas perigosas
que todos os poderes derivam do ser supremo ('IT3). É claro que isto não e rebeldes, «Se os nossos amigos não te fechassem antes por delírio
é seriamente intencional, mas suponho que se destine a acordar o leitor por propores estes absurdos» ('IT7). (Isto parece em certa medida uma
no decurso do argumento. observação extrema, mas esta é a sua visão acerca do assunto.) Se tais
A seguir, Hume faz troça da visão Whig, que, diz ele, supõe «que há doutrinas não são sequer aceites na maior parte dos lugares, e se agora
uma espécie de contrato original através do qual os súbditos reserva- não são compreendidas, como poderá o consentimento ser compul-
ram tacitamente o poder de resistirem ao seu soberano sempre que se sivo? O seu argumento é que para o consentimento ter o tipo de efei-
encontrarem lesados por essa autoridade que [... ] voluntariamente lhe tos que Locke disse que teria, teria de ser publicamente reconhecido e
confiaram» ('ITl). Presumo que Locke e a sua visão do contrato social compreendido para ser a base da obrigação política. Hume não nega
sejam o alvo, ou que se encontrem entre os alvos dos argumentos de de imediato essa possibilidade. Está só a dizer que aquelas não são as
Hume aqui expostos, apesar de o primeiro não ser efetivamente men- circunstâncias atuais. Logo, o consentimento não pode ser a base de
cionado quando o segundo diz ('IT4) que com contrato original se pre- um governo e da autoridade. De qualquer modo, prossegue dizendo
tenda dizer a primeira origem de governo, digamos que nas florestas e que sendo o consentimento original antigo, isto é, «muito antigo para
desertos quando as pessoas se associaram pela primeira vez, então não ser do conhecimento da geração atual» (<JI8), não pode ser compulsivo
se pode negar que todo e qualquer governo se baseie em primeiro agora. Pois os pais não podem amarrar os seus descendentes às gera-
lugar num contrato. Porque naquela época as pessoas eram quase ções remotas ('IT8).
iguais em força corporal e poderes mentais, não tendo a cultura e a Outra objeção que faz é a de que quase todos os governos que
educação dado lugar à desigualdade. Nessas circunstâncias, então, era existem atualmente foram fundados na usurpação ou conquista (Hume
necessário haver consentimento para a autoridade política bem como menciona William, o Conquistador, em 1066), e de qualquer modo sur-
para o sentido das pessoas relativamente às vantagens que a paz e a giram através da força e violência «sem nenhuma pretensão de con-
ordem social lhes trariam. No entanto, continua a dizer que «O seu con- sentimento justo ou sujeição voluntária do povo» ('IT9). Nalguns casos
sentimento foi por muito tempo imperfeito, e não podia ser a base de surgiram através do casamento, de considerações dinásticas e situa-
uma administração regular» ('ITS). Isso é o mesmo que dizer que a ideia ções semelhantes, fazendo o povo de um país pertencer a um dote ou
de contrato social, ou contrato original, tal como Locke o apresenta, herança ('ITll). Uma outra objeção é que as eleições não são muito
estava para lá da compreensão das pessoas naquela época. E visto que importantes porque muitas vezes são controladas por uma combinação
foi nesse período que apareceu pela primeira vez um governo, ele de algumas figuras grandiosas, e a ideia de consentimento do con-
pensa portanto que a doutrina de Locke - que, na sua opinião, afirma trato social, um consentimento de origem particular, não tem corres-
«que todos os homens ainda nascem iguais e não devem lealdade a pondência com os factos ('IT12). Nem o consentimento dado na
nenhum príncipe ou governo a não ser por obrigação ou sanção de Revolução de 1688 e 1689 seria de todo diferente, na perspetiva de
uma promessa» ('IT6) - é de difícil aplicação restrita, ou estritamente Hume. Ele diz que uma maioria de cerca de setecentas pessoas (mem-
adequada, mesmo no que respeita a esta primeira origem de governo. bros do Parlamento), e não a nação de cerca de dez milhões no seu
Apesar de realmente haver, como ele diz, alguma verdade nela. conjunto, determinaram o local onde a autoridade política iria residir
Em seguida, Hume continua a enumerar objeções que julga reve- naquela época ('IT15). Deste modo, e em conclusão, o consentimento
larem que o consentimento dificilmente poderá contar como um fun- raramente teve lugar, e quando isso acontece, segundo Hume, é tão
damento de governo e uma base de obrigação no momento atual. Diz, irregular e limitado a somente algumas pessoas que dificilmente pode
por exemplo, que a doutrina do contrato social não é reconhecida ou ter essa tal autoridade como Locke lhe atribui. Volto a dizer que
até mesmo conhecida pela maior parte do mundo. «Encontramos em Hume não menciona o nome deste último.

204 205
Começando na parte 2, '11'1120-31, este autor diz que deve haver dade ser mais voluntária do que a de uma sujeito nativo, o governo
outra base de governo para além do consentimento. Passo agora a espera efetivamente menos e depende menos dele ('1127).
explicar em linhas gerais este argumento. Ele não nega que o consen- Hume diz no '1128 que se uma geração morresse toda de uma vez,
timento é «Um fundamento justo de governo», e quando realmente e outra tomasse de imediato o seu lugar enquanto grupo, chegando
prevalece diz que é «seguramente o melhor e o mais sagrado de todos» rapidamente à idade da razão com suficiente sensatez para escolher o
('1120). Mas argumenta isso porque tão raramente é na verdade a base governo, então poderiam com consentimento geral estabelecer a sua
que não pode ser o único. Diz que para o consentimento ser compul- forma de regime civil sem ter em conta a tradição. Mas as condições
sivo e um fundamento do governo determinadas condições têm de da vida humana não são assim, e a partir das suas circunstâncias, em
ser tidas em conta, e dá uma série de razões porque não o são. Para que «a cada hora que passa um homem abandona o mundo, enquanto
começar, a visão do contrato social pressupõe um estado de conheci- outro entra nele», verifica-se que um novo consentimento para cada
mento e respeito pela justiça que as pessoas efetivamente não têm. Na geração é impossível de qualquer forma efetiva. No sentido de atingir
perspetiva de Hume, exige de mais da natureza humana. Exige um estabilidade (uma necessidade em governação) «a nova prole deve
tipo de estado de perfeição que é muito superior ao nosso passado ou conformar-se com a constituição estabelecida» e não provocar «inova-
estado atual. ções violentas» ('1128). Finalmente, Hume observa que dizer que «todos
Repito, a visão do contrato social pressupõe que as pessoas acredi- os governos legítimos surgem através do consentimento do povo» é
tem que a sua obrigação para com o governo dependa do seu consen- «dar-lhes [governos] mais honras do que realmente merecem ou até
timento. Mas, em lado nenhum o senso comum pressupõe isto. Com esperam e desejam da nossa parte» ('1130).
efeito, as pessoas pensam que a sua lealdade para com um determi- Começando com o '1131, Hume introduz o que chamo de crítica filo-
nado príncipe - que «devido a uma posse longa adquiriu um título sófica da visão de Locke. Começa por distinguir entre deveres natu-
independentemente da sua escolha ou tendência» ('1122) - é decidida rais, por exemplo deveres como amor de filhos, gratidão para com os
nossos benfeitores, etc., e deveres que estão fundados num sentido de
pelo seu lugar de nascimento. E é absurdo considerar que o consenti-
obrigação - isto é, deveres que pressupõem um reconhecimento dos
mento passado é uma base significativa de obrigação política quando
interesses e necessidades gerais da sociedade e a impossibilidade de
as pessoas que supostamente devem consentir não acreditam elas
uma vida socialmente ordeira se estes deveres forem negligenciados.
próprias que a sua lealdade dependa dos seus acordos ('1123 ). Depois,
A estes últimos chama-os de «deveres artificiais». O termo «artificial»
no '1124, um parágrafo frequentemente citado, e muito forte, Hume diz
tem obviamente vindo a mudar desde a época de Hume. Nesse período
que para supor que um camponês pobre tenha liberdade de escolha era um termo que significava artifício de razão, transmitindo a noção
para abandonar o país quando não conhece nenhuma língua estran- de que tais deveres são racionais de um modo importante. Quando
geira e não tem fundos para partir e para começar de novo fora, é o Carlos II foi pela primeira vez à Catedral de São Paulo depois de ter sido
mesmo que supor que alguém, pelo facto de permanecer num barco reconstruída por Christopher Wren a seguir ao incêndio, este último
no mar, consente livremente com o domínio do comandante, apesar colocou-se debaixo da cúpula esperando apreensivamente pela obser-
de ter sido levado a bordo enquanto dormia, e, para partir, deve saltar vação do rei. Ficou tremendamente aliviado quando Carlos olhou para
borda fora e afogar-se. Assim, o que Hume está a dizer é que supor cima e disse que era «horrível e artificial» - o que hoje em dia não seria
que camponeses ou outros trabalhadores - quaisquer outros mas tal- um grande elogio, mas na altura significava que tinha tanto de impres-
vez as poucas centenas que determinam a forma de regime - consin- sionante como de racional.
tam de qualquer modo que seja compulsivo, seria o mesmo que dizer Entre os deveres artificiais encontram-se (a) os de justiça, o respeito
que a pessoa levada a bordo do navio enquanto dormia tinha dado o pela propriedade dos outros; (b) os de fidelidade, o cumprimento das
seu consentimento para que isso acontecesse. O caso mais plausível nossas promessas; e (c) o dever cívico de lealdade para com o governo.
de consentimento passivo ou tácito, julga Hume, é o que sujeita um O argumento filosófico de Hume contra Locke é que estes deveres,
estrangeiro que se instala num país de cujo governo e leis tem conhe- justiça, fidelidade e lealdade explicam-se e justificam-se pela noção de
cimento antes do tempo. Nesse caso, segundo Hume, apesar de a leal- utilidade, ou seja, por referência aos «interesses e necessidades gerais

206 207
da sociedade». (Particularmente relevantes aqui são Cj[35-38 e CJ[45). Se Como podemos nós avaliar o criticismo de Hume relativamente a
os deveres de justiça e fidelidade não fossem globalmente reconheci- Locke? A sua crítica é assertiva e convincente, ou de qualquer modo
dos e honrados por membros da sociedade, então na perspetiva de altamente plausível em muitos aspetos, mas mais fraca noutros. Penso
Hume uma vida socialmente ordeira seria impossível. «A sociedade que podemos dizer que o ensaio de Hume (e o posterior de Bentham,
provavelmente não pode ser mantida sem a autoridade dos magistra- apesar de este último dizer essencialmente o mesmo que aquele já tinha
dos» (Cj[35). Segundo ele, trata-se da explicação filosófica de base des- referido) foi historicamente bastante influente no sentido de enfraque-
tes deveres. Assim sendo, é deveras inútil tentar justificar, ou explicar cer a visão do contrato social. A tendência é não haver, pelo menos em
a nossa lealdade para com o governo, através de um apelo ao dever Inglaterra, sucessores à doutrina como a de Locke. Perante essa evi-
de fidelidade, ou cumprindo promessas, ou seja, por referência a dência, o ensaio de Hume foi historicamente muito eficiente.
algum suposto ou real contrato social baseado no consentimento de Hume, no entanto, parece ler Locke dizendo que a nossa lealdade
1
indivíduos. Porque se perguntarmos as razões pelas quais devemos para com o governo tal como existe agora depende de consentimento
1

1: honrar qualquer contrato ou acordo que tenhamos feito, ou conside- original, ou de um contrato original, de algumas gerações do passado,
rar compulsivo um consentimento individual, Hume alega que não e que é a este consentimento que estamos sujeitos agora. Mas, na ver-
1
dade, Locke não diz isto. Ele não acredita que o consentimento dos
i

temos nenhuma alternativa senão recorrer ao princípio de utilidade


como explicação. Por isso, se nos perguntarem pelos fundamentos da antepassados pode sujeitar os descendentes, e di-lo explicitamente no
nossa lealdade para com o governo, em vez de darmos o passo extra de <JI116 de Second Treatise: «Quaisquer compromissos ou promessas que
1 recorrer ao princípio de fidelidade para um presumível contrato, por- um indivíduo tenha feito, ele está obrigado a eles, mas não pode por
que não recorrer diretamente ao princípio de utilidade? Nada se nenhum Contrato obrigar os filhos ou a posteridade.» De acordo com
Locke, cada pessoa nasce para a liberdade natural, mesmo agora. E só
ganha com a justificação filosófica de basearmos o dever de lealdade
podemos abandonar este estado através das nossas ações depois de
no de fidelidade. Neste sentido, Hume considera a visão de Locke
termos atingido a idade da razão. Por isso, Hume não repara em Locke
acerca do contrato social, podemos dizer, uma confusão desnecessá-
na noção do que chamo «Consentimento conjunto», que se opõe a «con-
ria, e mais, que tenta esconder o facto de que a justificação para todos
sentimento de origem».
os deveres deve recorrer às necessidades globais da sociedade, ou o
Recapitulando, Hume não nota em Locke o contraste entre con-
que Hume noutros contextos chama de «Utilidade». sentimento expresso e passivo ou consentimento tácito, uma outra
A conclusão de Hume, portanto, é que enquanto doutrina filosó- diferença que é importante assinalar. Locke diz que qualquer pessoa
fica o contrato social não é apenas implausível, e contraditório com o que tenha efetivamente dado consentimento através de acordo para
senso comum visto opor-se a todos os tipos de coisas em que as pes- ser sujeito de um governo deve permanecer assim; enquanto aqueles
soas realmente acreditam, e vai contra uma opinião política vasta, tal que se submetem a um governo simplesmente porque são proprietá-
como alegou nas primeiras partes do ensaio. Mas também é superfi- rios e gozam dessa posse sob a sua proteção (consentimento tácito),
cial já que não consegue revelar o verdadeiro fundamento da obriga- readquirem liberdade para se juntarem a outro governo se já não pos-
ção política, nomeadamente as necessidades e os interesses globais da suírem e gozarem das propriedades. Podem obedecer às leis e receber
sociedade. proteção das mesmas, mas não são com efeito membros do estado a
Hume comenta no fim do ensaio, no CJ[48, que em moral é impossí- não ser que tenham entrado através de consentimento manifesto
vel encontrar alguma coisa que seja nova, e que as opiniões que são (<JI<J[ll 9-122).
novas são quase sempre falsas. Acredita que em questões de moral é a Um aspeto mais importante e fundamental da doutrina de Locke
opinião e a prática geral da humanidade que é decisiva quando existe. em que Hume não repara, ou pelo menos não menciona nos seus argu-
Afirma ele, «Não se esperam novas descobertas nestas matérias». Por mentos, é que ela tem duas partes. Ao falar do critério do contrato
outras palavras, considera a perspetiva de Locke, que para ele é histo- social de Locke, mencionei que uma parte, a primeira, é que para ser
ricamente desadequada, uma nova doutrina descoberta, e que por- legítima uma constituição deve ser tal que cada pessoa pode ter ade-
tanto se opõe à prática e opinião geral da humanidade. rido a ela a partir de um estado de igual jurisdição política. Discuti o

208 209
que está implicado nessa noção de «aderir a» - que não é, obviamente, _Se tudo isto estiver correto, então a questão realmente substancial
uma noção muito precisa, mas um elemento importante da visão de em termos de importância entre Locke e Hume é se a doutrina do
Locke que não pode ser ignorado. contrato social do primeiro, aplicada à forma de um regime político, e
A outra parte do critério do seu contrato social aborda a questão sendo um critério que é hipotético, selecionaria como cbrreta e justa
do momento em que uma constituição existente e legítima sujeita exatamente a mesma família de regimes políticos ou constituições
determinados indivíduos, que são então plenos cidadãos e sujeitos do que seria selecionada pela noção de necessidades e interesses globais
regime. Locke discute neste ponto consentimento conjunto, e faz adis- da sociedade defendida por Hume, ou, por outras palavras, a sua
tinção, referida acima, entre consentimento expresso e passivo. Mas o noção de utilidade. Se o critério do contrato social de Locke, a pri-
aspeto importante é que se este consentimento conjunto é para ser meira parte dele, vai resultar nos mesmos tipos de regime considera-
compulsivo, então é porque o tipo de regime é legítimo (de acordo com dos legítimos, como irá o princípio de utilidade de Hume? Ou serão
a primeira parte do critério do contrato social). Locke revela cautela eles diferentes? Esta é uma forma de compreender a questão realmente
quando diz que as promessas extorquidas por forças superiores são substancial existente entre eles. E na verdade Hume nunca a discute,
inválidas. Isso é dito nos <JI<JI176, 186, 189 e 196 de Second Treatise. Pre- nem parece estar consciente desta matéria fundamental. Ele é muito
sumo que diria a mesma coisa no caso de regimes ilegítimos. O con- eficaz na crítica à noção de consentimento conjunto de indivíduos que
sentimento passivo, ou mesmo o consentimento expresso, se forem por faz parte da descrição geral de Locke acerca de obrigação política.
assim dizer forçados, integram-se sob os mesmos comentários que faz Ou pelo menos creio que se deva questionar se assim é. Mas Hume
nestes parágrafos sobre promessas. nunca discute efetivamente se o critério de acordo de Locke, a come-
Como parte consistente da visão de Locke, devemos acrescentar çar de um estado de direitos iguais, e os seus próprios critérios de
que os indivíduos têm o dever natural de apoiar um regime legítimo vantagem geral, conduzem ao mesmo tipo de regimes legítimos.
quando este existe e funciona eficientemente. Pode dizer-se que este Estes critérios imediatos parecem bastante diferentes. Certamente não
dever surge da lei fundamental da natureza e não depende do con- significam a mesma coisa, por isso podemos supor que teriam resul-
sentimento de ninguém. No relato da revolução, quando explica como tados diferentes. Poder-se-ia pelo menos assumir que são critérios
nos podemos opor à Coroa, Locke diz que derrubar ou alterar uma diferentes na ausência de muitos argumentos contrários e de explica-
constituição justa é um dos maiores crimes que se pode cometer. Pre- ções de ambas as visões, incluindo da noção de utilidade. Iremos
sumo que para se justificar isso haveria um apelo implícito à lei fun- abordar este ponto na próxima palestra. Por enquanto, devemos ficar a
dame1;ltal da natureza. Por isso, suponho que em Locke, perante um pensar sobre a possibilidade de estes dois critérios para um regime legí-
timo serem a mesma coisa, ou se a noção de direitos iguais irá ter
regime justo, haja o dever que todos temos, independentemente se con-
como resultado um cont~aste com a visão de utilidade de Hume.
sentimos ou não, de obedecer às suas leis; trata-se de uma consequên-
cia da lei fundamental da natureza.
Consideremos então o relato de Locke relativamente ao modo como,
em qualquer altura, o povo inglês podia estar sujeito a um regime
existente, mesmo tendo sido o resultado da força e violência num de-
terminado momento do passado. Capaz de o fazer, o seu relato seria
que o regime atual é legítimo se proporcionar uma adesão livre partindo
da posição de direitos iguais, mesmo que, na verdade, tenha alcançado
a sua forma presente quase por acidente ou através de várias mudan-
ças ao longo do tempo. Se agora tiver a forma correta ~ uma a que se
possa aderir - então as pessoas estão individualmente sujeitas a ela em
virtude do seu dever natural, resultante da lei fundamental da natureza,
de apoiar um regime legítimo.

210 211
HUMEII
UTILIDADE, JUSTIÇA
E ESPETADOR JUDICIOSO

§ 1. OBSERVAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DE UTILIDADE


Como dizia na última palestra, a questão realmente substancial
entre Hume e Locke que me ocorre ao ler o ensaio «Üf the Original
Contract» é saber se a doutrina do contrato social de Locke, quando
aplicada enquanto critério à forma de um regime político, irá selecio-
nar exatamente a mesma família de constituições ou regimes legítimos
ou simplesmente a que seria selecionada pelo princípio de utilidade
de Humel.
Tal como referi, este último nunca discute, e na verdade nunca
revela estar ciente desta questão fundamental. Além disso, a descri-
ção de utilidade que faz é muito vaga naquele ensaio; diz simples-
mente respeito aos interesses e necessidades globais da sociedade.
Agora, de algum modo, o critério de Locke incluiria esse princípio.
Isto é, se as pessoas seguem do estado da natureza para a sociedade
política através de consentimento, sem serem coagidas, etc., então su-
por-se-ia que esses acordos, de livre adesão, incluiriam o princípio geral
de Hume e promoveriam os interesses globais da sociedade. Por con-
seguinte, poder-se-ia perguntar, «Então, qual é a diferença?»
Recordemos que no sistema de mudança institucional de Locke,
partindo do estado de natureza, há um conjunto de compromissos que
as pessoas racionais consentem livre e voluntariamente. Cada uma des-

1 [Transcrição da palestra de 11 de março de 1983, com acrescentos feitos a partir dos


apontamentos manuscritos de Rawls.-Ed.]

213
tas mudanças, na visão deste autor, seria coletivamente racional, ex- um teste do tipo de regime. De forma muito semelhante, Locke por sua
ceto em caso de acidente e catástrofe e situações semelhantes. Assim, vez nega simplesmente o que Filmer afirma. (Ver Palestra I de Locke
presumimos uma espécie de processo idealizado de tais acordos con- sobre Filmer.) Locke presume que as noções de contrato, promessa e
tratuais. Locke está claramente a assumir que era coletivamente racio- outras noções não devem derivar, ou pelo menos ele não tenta fazê-lo,
nal para todos consentirem, por exemplo, com a introdução do dinheiro da noção de lei fundamental da natureza. Assim, estamos outra vez
e as muitas outras alterações que têm lugar. Portanto, começando com perante um caso em que não há efetivamente um confronto das duas
o estado de natureza, um estado bem ordenado com um regime legí- visões ao nível mais básico.
timo deve então, segundo Locke, melhorar a situação de todos no que Agora, antes de falar mais acerca de Hume, gostaria de especificar
diz respeito, primeiro, ao estado da natureza, e, depois, a cada uma das a visão utilitária de modo a que os seus princípios apareçam pelo menos
etapas subsequentes. Deste modo, o regime de Locke parecia satisfa- mais precisos do que a expressão geral usada por este autor, «OS inte-
zer a condição de Hume ao querer dar resposta aos interesses e neces- resses e necessidades globais da sociedade». Para fazê-lo vou pensar
sidades globais da sociedade. Assim, ambos os princípios, tanto de em utilitarismo no sentido clássico de princípios associados a Bentham,
Hume como de Locke, são afirmados de uma forma suficientemente Edgeworth e Sidgwick.
vasta e geral, tornando difícil perceber se e em que aspetos irão divergir. A ideia básica é que se vai definir a noção de bem que é indepen-
Apesar de, como já referi antes, não terem de todo o mesmo signifi- dente da noção de correto. Isto é, introduzimos uma noção de bem,
cado, e poder dizer-se que o seu fundamento básico é muito diferente. enquanto prazer, ausência de dor, algum tipo de sensação agradável,
Supondo que dávamos um sentido mais restrito ao princípio de ou enquanto satisfação de desejo, ou ainda a realização de interesses
utilidade, e lhe dávamos o significado de que um regime é legítimo se, individuais. Se quisermos, podemos idealizar isso e dizer que o bem é
e apenas se, de todos os tipos de regime que fossem possíveis, ou que a satisfação dos interesses racionais, ou das preferências racionais, dos
estão disponíveis em algum momento, ou em algum período histórico,
indivíduos. Ao dizer que isso é independente da noção de correto,
for aquele que muito provavelmente conduziria· ou produziria a soma
quero dizer que podemos explicar a noção de prazer, ou da de ausên-
líquida mais elevada de vantagens sociais (poderíamos também usar
cia de dor, ou da de sensação agradável, ou da de realização ou satis-
11
o termo «utilidade social») pelo menos a longo prazo.
fação de desejo, ou da de realização de preferência racional - podemos
Estamos a imaginar que podemos de algum modo definir a noção
de «soma de vantagens sociais». Em vez de falarmos dos «interesses e introduzir e explicar todas essas noções sem dizer nada sobre correto
necessidades globais da sociedade» de Hume, introduzimos a noção da e errado. Podemos introduzi-las independentemente de qualquer noção
soma líquida mais elevada de vantagens, tanto agora como no futuro. que intuitivamente seria caraterizada por ter a ver com correto e
Seria isto igual à visão de Locke ou não? Repito, não parece ser o mes- errado. Assim, se dissermos que vamos maximizar a realização de de-
mo. Vejamos o caso que mais o preocupa em Second Treatise, ou seja, o sejos, então isso quer dizer que incluiríamos tanto desejos maus como
caso do absolutismo real, ou regra arbitrária da Coroa numa monarquia bons. Não haveria nenhuma restrição vinda da noção de correto e
mista. Locke teve sempre a intenção de excluir tal regime como legí- errado sobre o que esses desejos poderiam ser.
timo, e o seu argumento é estabelecido para esse propósito. Ele alega O primeiro passo seria, portanto, introduzir independentemente a
que não se pode aderir àquela forma de regime. Será que o princípio de noção de direito; e o passo seguinte seria definir o direito como algo que
utilidade tal como acabámos de descrever permite o absolutismo real ou maximiza o bem. No sentido de obter uma visão utilitária tradicional, a
não? Poder-se-á dizer que de facto o faz, mas iria ser preciso argumentar ideia do bem assumiria a forma que já indiquei, ou seja, teria de ser pra-
mais. Iria depender de circunstâncias e de várias contingências, e não é zer, satisfação de desejos, ou satisfação de preferência racional. Se intro-
de todo óbvio que o absolutismo real fosse excluído ou permitido. duzirmos outra noção de bem, a de perfeição humana, ou excelência
Da última vez disse que ao argumentar contra Locke perto do fim humana, ou algo do género, então não teríamos uma visão utilitária tra-
do ensaio «Üf the Original Contract», e assumir que o recurso que ele faz dicional, mas sim o que chamaríamos de uma visão perfeccionista.
a promessas é desnecessário, Hume nega simplesmente o que Locke Se aplicarmos o princípio de utilidade às instituições sociais, tería-
afirma. Ele não encara a possibilidade de usar o contrato social como mos algo semelhante ao seguinte: que essas instituições e formas cons-

214 215
titucionais são corretas e justas visto que maximizam o bem, visto 'entido interno. Os julgamentos morais expressam uma resposta da nossa
pelo prisma utilitário como sendo prazer, ou realização de desejo, em ,sensibilidade moral à consciencialização de determinados factos por um
que somamos o bem de todos os indivíduos na sociedade, tanto no '.:'certo ponto de vista. (iii) Além disso, coincidimos nos nossos julgamen-
presente como no futuro. Estamos a começar partindo do tempo pre- ,,Jos morais, não porque sendo seres racionais e inteligentes àlcançamos a
sente, tendo em conta o que as instituições existentes poderão ser, e a ':.verdade que veiculam, como também entendemos a verdade, por exem-
somar o bem sobre todos os indivíduos desta maneira. É de assinalar ,plo, dos axiomas de geometria (tal como Cudworth e Clarke defende-
que deste modo não há nenhum princípio de igualdade construído, e / ram). Na verdade, concordamos nos nossos julgamentos morais porque
não há nenhum princípio de distribuição incluído, por isso nenhuma ·.·partilhamos da mesma sensibilidade moral.
limitação na forma como o bem pode ser distribuído, e não há Para comentar isto: em primeiro lugar, em Treatise of Human Nature
nenhuma noção de direito envolvida. Só se está a tentar maximizar . (1740), Hume explicou as operações da nossa sensibilidade moral via
essa soma. É assim que o utilitarismo é entendido no que estou acha- uma teoria complicada de simpatia, proposta no Livro II daquela obra.
mar de «visão de Bentham-Edgeworth-Sidgwick» (apesar de se con- Contudo, em Enquiry usa, em vez disso, o «princípio de humanidade».
seguir descrever mais e melhor a visão destes autores de forma a incluir .Vejam a explicação que dá acerca disto na secção v, <_[17, nota de rodapé.
uma caraterização mais hedonística da noção de' bem). Quando poste- [Iremos discutir o princípio de humanidade numa fase posterior.] Em
riormente chegarmos a Mill, gostaria de ver se o princípio de utili- segundo lugar, numa primeira abordagem a descrição de Hume da
dade que defende se integra nesta visão de utilitarismo ou se ele tem nossa sensibilidade moral é epistemológica. Explica como sabemos e
uma noção mais complicada, como acredito que seja o caso. aplicamos distinções morais. A explicação de como somos movidos a
agir a partir ou de acordo com estas distinções é uma questão à parte.
Por isso, precisamos de distinguir então o problema de conhecimento
e o modo como ficamos a conhecer distinções morais do problema de
§ 2. A VIRTUDE ARTIFICIAL DE JUSTIÇA motivação e o que nos leva a agir sobre distinções morais. A Hume in-
teressa principalmente a primeira questão.
Debrucemo-nos agora rapidamente nos objetivos de Hume em An Passando agora para a visão de Hume acerca de justiça gostaria de
Enquiry Concerning the Principles of Morals (1751), como se referiu na dizer algumas coisas sobre ela e contrastá-la com a de Locke. Hume
secção I, para depois passarmos à descrição que o autor faz de virtude discute justiça em Treatise of Human Nature, Livro III, parte II, «Üf Justice
artificial de justiça na secção III e apêndice III, e noutros lugares. Para and Injustice» (De Justiça e Injustiça), bem como no seu livro posterior,
esboçar a secção I, nos <_[<_[1-2 Hume afirma que as distinções morais Enquiry Concerning the Principles of Morals, secção III, «Üf Justice».
são reais e são feitas por nós nos nossos julgamentos, e que se trata de A maneira como Hume usa o termo «justiça» deve ser cuidadosamente
um facto que não pode ser seriamente negado. Nos <_[<_[3-7 ele refere .compreendida, porque não a utiliza num sentido contemporâneo. Ele
três pares de alternativas que explicam este facto envolvido em con- fala acerca da ordem e estrutura básica da sociedade civil, e, em parti-
trovérsias atuais, e depois no <_[8 prefigura a sua própria doutrina, que cular, acerca de princípios e regras que especificam o direito à proprie-
aceita a segunda alternativa de cada um dos três pares. Em seguida, no dade. O que Hume chama de «virtudes» são qualidades do caráter
<_[9 discute a sua teoria da moral enquanto estudo experimental (ou humano e disposições de pessoas em termos de comportamento e da
empírico) (o que chamaríamos hoje de espécie de psicologia). sua própria conduta. A justiça como virtude é a disposição das pessoas
A própria visão de Hume, conforme tinha sidb prefigurada nos <_[3-7 para se comportarem e respeitarem essas regras que definem proprie-
e 8, é a seguinte: (i) Primeiro, as distinções morais não são conhecidas e dade e as outras que giram à volta da noção de propriedad~. O termo
aplicadas a coisas somente pela razão (contra Cudworth e Clarke; cf. «justiça» é usado de um modo bastante restrito. É apenas uma das mui-
nota de rodapé número 12 na secção m, <_[34). Em vez disso, dependem tas virtudes, muitas das quais designadas por Hume de «virtudes natu-
de um sentimento peculiar. (ii) Mais especificamente, reconhecemos dis- rais», que operam por instinto. A justiça é talvez a mais importante,
tinções morais e temos capacidades para aplicá-las, não através de argu- juntamente com a fidelidade e integridade, às quais ele chama de «Vir-
mentos dedutivos, indutivos ou probabilísticos, mas a partir de um tudes artificiais»: aquelas que «produzem prazer ou concordância atra-

216 217

----------------·----------
vés de um artifício ou estratagema, que surge a partir das circunstân- através da forma de uma associação de proprietários, a segunda pela
cias e necessidade da humanidade»2. forma de um mercado e a terceira sanciona o princípio geral de con-
Com efeito, os princípios de justiça de Hume são largamente prin- trato e promessa. Juntos, Hume considera-os, aos três, reguladores e
cípios para a regulação da produção e competição económica entre os especificadores das regras de produção e competição económica entre
membros da sociedade civil, na luta pelos seus interesses económicos. os membros da sociedade, e eles constituem as normas básicas de rela-
As regras básicas de competição, na perspetiva de Hume, acabam por ções económicas entre os membros da sociedade. Por isso, podemos
ser essencialmente três: dizer que uma pessoa justa, na visão de Hume (porque encara a vir-
A primeira é um princípio acerca de propriedade privada, o que tude como uma qualidade das pessoas - transfere, digamos assim, da
requer, de um modo geral, que todos permaneçam imperturbáveis no estrutura institucional para a pessoa), é aquela que está disposta a hon-
gozo do que possuem devidamente. Para definir «possuem devida- rar estas regras básicas. Este autor assume ao longo da discussão que
mente» temos de introduzir um conjunto de outras regras que especifi- faz que as instituições sociais satisfazem realmente o seu princípio de
cam os direitos de posse. Em Treatise, Hume discute várias dessas regras utilidade, independentemente do caráter abrangente e geral que tem.
referentes ao momento presente a nível de posse, ocupação, prescrição Por outras palavras, presumindo que as instituições realizam realmente
(ou posse duradoura), acordo e sucessão, e estas regras são postas em prá- esse princípio, então Hume considera a pessoa justa aquela que está
tica sob determinadas circunstâncias3. Por exemplo, no caso de o dono da disposta a honrar estas regras básicas. Continua dizendo que «a justiça
propriedade morrer, a fim de evitar alguma polémica sobre quem vai é uma virtude artificial e baseia-se em convenções» num sentido que
tomar posse, tem de haver regras sobre a herança e coisas do género. irei explicar mais tarde.
A segunda regra da justiça tem a ver com o comércio e as trocas de Na secção III de An Enquiry Concerning the Principies of Morais,
propriedades, e a ideia é que existem direitos sobre propriedades que onde Hume fala sobre justiça, a sua tese é que a utilidade pública (outro
podem ser transferidos mediante certas condições4. termo, presumo, para os interesses globais da sociedade - usa muitos
A ideia básica é que ceder só pode ocorrer através de consentimento. termos diferentes, e a linguagem que utiliza é muito vasta)- é a única
Hume considera o segundo princípio necessário para que os poderes origem da justiça, e refletir sobre as suas consequências é a única base
de propriedade na sociedade possam ser continuamente ajustados ao do seu mérito. Supostamente isso deveria ser contrastado com o caso
longo do tempo de acordo com os vários interesses e capacidades dos das virtudes naturais, em que a utilidade pública é talvez uma base
indivíduos, e com as várias e melhores utilizações que consigam fazer do seu mérito, mas não é certamente a única.
deles. Por isso, temos de autorizar o ajustamento e cedência de pode- O que esta tese significa para Hume é que as instituições de justiça
res de propriedade ao longo do tempo. (vou abreviá-las como propriedade, cedência e contrato) não existiriam,
O terceiro princípio principal de Hume pertence a contratos e à rea- ou não teriam adesão, exceto se as pessoas reconhecessem a sua utili-
lização de promessas5. dade pública, e se tivessem a sensação de que estas instituições seriam
Considera-o mais geral e inclusivo do que o segundo, o qual tem de interesse geral. Eu entendo que Hume está a dizer que não aprova-
mais a ver com comércio e troca, apesar de também cobrir isso em certa ríamos estas instituições a não ser que reconhecêssemos que como sis-
medida. Aborda acordos de todos os tipos, incluindo acordos para rea- temas gerais de regras publicamente reconhecidas e sob a ação geral
lizações futuras. exercida por todos, ou de qualquer modo pela maioria das pessoas,
Estamos agora perante estes três princípios, que Hume julga serem elas têm consequências sociais benéficas e servem o bem comum.
princípios de justiça. O primeiro, poder-se-á dizer, encara a sociedade Como mencionei na última palestra, Hume chama justiça a uma
«virtude artificial» porque se trata de uma disposição para aderir a
um sistema geral de regras reconhecido para servir o bem comum.
2 Hume, Treatise of Human Nature, Livro III: Of Morais, parte III: «Üf Justice and Injus-
tice», sec. 1.
Este sistema de regras é por si só, por assim dizer, um artifício de
3 Ibid., Livro III, parte II, sec. III. razão, e era isso que o termo «artificial» significava naquela época.
4 Ibid., Livro III, parte II, sec. rv. Um artifício de razão era algo que podia ser entendido pela razão e
5 Ibid., Livro III, parte II, sec. v. por nenhuma outra forma. Além disso, o reconhecimento de que este

218 219
sistema geral de regras tem estas consequências relativamente ao bem mento pelos membros da sociedade é em si mesmo urna operação da
comum é em si mesmo algo que requer o uso da razão. razão. Com «reconhecimento público», quero dizer que cada pessoa reco-
Gostaria de acrescentar um outro aspeto, contrastando a virtude nhece que o sistema de regras é para o bem geral da sociedade, e que
artificial de justiça com uma virtude natural como a benevolência. cada um reconhece que o outro também o faz e assim sucessivamente.
A ideia é que um ato individual de benevolência - ser generoso para Um terceiro ponto é que os benefícios deste sistema geral de regras
alguém, ser generoso com crianças, por exemplo, ou para pessoas que institucionais depende, corno acabei de dizer, do facto de ser seguido
precisam da nossa ajuda - não requer a conceção de um sistema geral inflexivelmente, mesmo em casos particulares em que poderia parecer
de regras. É algo que estamos prontos a fazer porque reconhecemos prejudicial fazê-lo, ou em que poderia haver melhores alternativas do
que um indivíduo precisa do nosso auxílio. Não implica da mesma que o respeito pelas regras existentes. Presumo que seja a visão de
forma que as regras de propriedade criem alguma conceção de bem Hum.e que o não cumprimento destas últimas, ou considerá-las muito
social, ou dependam da ideia de como sistemas gerais de regras são flexíveis, iria minar expectativas legítimas - minaria a fiabilidade de
necessários para proporcionar o bem comum. poder contar com o que as outras pessoas irão fazer. Para que o compor-
Um outro ponto a assinalar é que em contraste com as virtudes natu- tamento social seja fiável e previsível, é necessário ter determinados sis-
rais como a benevolência, o bem público que resulta de regras relativas à temas gerais de regras que possam vir a ser inflexivelmente seguidos.
propriedade, cedência e contrato, todos eles sistemas de regras públicas, Poder-se-á admitir certos tipos de exceções (para prevenir desastres imi-
depende essencialmente, na perspetiva de Hume, na adesão que lhes é nentes, por exemplo) e, em certa medida, regras complicadas. Mas,
feita mesmo quando, num caso individual, o respeito pelas regras pode segundo Hume, há um limite para o poder fazer.
parecer mais prejudicial do que benéfico. Isto não aconteceria no caso de Finalmente, o quarto ponto é que para a disposição ser justa é urna
uma virtude natural como a benevolência. As regras de propriedade são qualidade de caráter aderir a estas regras com o devido grau de inflexi-
distintivas visto que aderimos a elas enquanto sistemas públicos de bilidade, tendo em conta que outros na sociedade manifestam uma in-
regras mesmo quando, apesar de serem tão bem planeadas quanto possí- tenção semelhante no sentido de as respeitar. E Hume acredita que urna
vel, ainda nos levam, em casos particulares, a fazer coisas que nos pare- vez compreendido o contexto destas regras estamos então perante um
cem prejudiciais. Por exemplo, as regras de propriedade poderão exigir facto normal sobre as pessoas, dadas as leis da psicologia humana e
todavia que avarentos provavelmente sem capacidade ou disposição para afins que irão ter esta disposição para serem justas.
usar a sua propriedade produtivamente tenham o direito de a manter. Perto do fim da última secção de Enquiry Concerning the Principies of
Ou, no caso de herança, as regras especificam quem vai herdar, apesar de Morais (secção IX, parte rr), chamo a atenção para o facto de que Hum.e
nos parecer que aquela pessoa que efetivamente herda não pode ou não faz referência a um «patife sensato» que, para seu próprio proveito, per-
irá usar a propriedade produtivamente, ou talvez julguemos que é má mite-se gozar de exceções a estas regras. Na verdade, Hume não lhe
pessoa ou não merecedora e que, portanto, não deve herdá-la. Contudo, dirige nenhum argumento em termos dos seus próprios interesses. Li-
na opinião de Hume, os benefícios do sistema de propriedade só podem mita-se a vê-lo como uma pessoa que não está motivada como a maioria
ser atingidos se estas regras gerais forem mutuamente reconhecidas pela de nós, que não se deixa ofender por agir de modo desonesto, ou injusto,
sua aplicação a todas as pessoas, e tão-somente se aderirmos a eles mais ou livremente, como se costuma dizer, sobre este sistema de regras.
ou menos inflexivelmente, mesmo quando, em casos particulares, as nos- Aconselho-vos a ler o apêndice III de Enquiry, «Sorne Further Con-
sas ações pareçam causar mais prejuízo que benefício. siderations With Regard To Justice». É muito instrutivo acerca da noção
Assim, segundo Hume, o contexto social geral para urna virtude arti- de virtude artificial defendida por Hum.e. Prestemos atenção ao sen-
ficial é aproximadamente o seguinte: Primeiro, que existe um sistema de tido quando ele diz que a justiça se baseia na «Convenção», vista aqui
regras institucionais gerais que definem cedência e contratos de proprie- como «Um sentido de interesse cornum»6.
dade, cujo sistema de regras o autor considera ser um artifício de razão.
A segunda caraterística é que este sistema de regras é publicamente reco-
nhecido pelos membros da sociedade corno promotor do bem público e 6 Ver Hume, Enquiries Concerning the Human Understanding and the Principies of Morais, ed.
dos interesses e necessidades gerais da sociedade e que este reconheci- L. A. Selby-Bigge, Oxford: Oxford University Press, 2.ª ed., 1902, p. 306.

220 221
1 !

Como ilustração de que a justiça se baseia na convenção, usa o exem- Quer isto dizer que, segundo Locke, um sistema de propriedade
plo de dois homens num barco a remos, em que cada um deles confia resultaria da lei fundamental da natureza, e incluiria certos direitos à
no outro para remar, sem haver necessidade de promessas ou contrato. propriedade que teriam de ser respeitados de determinadas maneiras.
Estes quatro pontos que acabei de explicar abordam todos os aspetos Isto é, como já disse, um relato normativo. Trabalha-se num tipo de sis-
que Hume tem em mente nesse âmbito. tema de lei natural, com todas as suas conotações. Enquanto, na pers-
Há ainda mais dois pontos acerca do relato de Hume que gostaria petiva de Hume, qualquer sistema de direitos só irá ser um sistema
de apresentar. Hume falava como se os interesses gerais da sociedade de regras institucionais que será reconhecido em sociedade e sujeito a
justificassem a instituição de propriedade, cedência e contrato, e expli- ações devido a certas forças psicológicas que o autor tentou explicar.
cassem também o modo como estas instituições fornecem um contexto É uma visão muito diferente a que Hume apresenta, na qual qualquer
para as virtudes artificiais de justiça, fidelidade, integridade e afins. descrição de direitos vai derivar de alguma noção de utilidade e será
Mas ele não parece admitir a possibilidade de que possa realmente ser sobre o modo como efetivamente se poderá esperar que opere em ins-
o caso de não serem os interesses globais da sociedade que justificam tituições sociais.
a propriedade privada e a sua particular especificação ou acordo. Em
substituição, poderá haver outros interesses envolvidos que expliquem
a propriedade - talvez os interesses dos mais poderosos, ou provavel- § 3. O ESPETADOR JUDICIOSO
mente daqueles que têm mais propriedades. Ele simplesmente não
parece admitir isso. Não creio que se deva dizer que Hume não tem
Irei agora terminar dizendo alguma coisa sobre o princípio de huma-
conhecimento dessa possibilidade. Teremos de partir do princípio que
nidade defendido por Hume e a seguir sobre a sua noção de «espeta-
tem. A minha interpretação é que ele faz um relato idealizado de como
dor judicioso», que é uma das ideias mais interessantes e importantes
a instituição de propriedade e as virtudes de justiça, integridade, etc.,
em Enquiry, e que também se pode encontrar em Treatise of Human
poderiam surgir, e estabelece as caraterísticas e os fatores gerais que Nature 7 .
efetivamente explicam as raízes naturais, a base psicológica do nosso
Devemos considerar isto como uma descrição psicológica de como
comportamento moral.
fazemos julgamentos morais. Hume explica o «mecanismo» dos jul-
Por outras palavras, creio que sobre Hume é importante compreen-
gamentos morais. Como são eles feitos e como se explica o seu con-
der que ele está a tentar explicar as razões pelas quais nós temos as
teúdo? Este autor visa explicar os nossos julgamentos e sentimentos
virtudes que temos, e porque é que estamos motivados para agir de
morais como fenómenos naturais. Ele pretende ser o «Newton das
acordo com elas. E esta tende a ser, em grande parte, uma descrição
Paixões». Contrariamente a Locke, não apresenta um sistema norma-
psicológica real. Não é como a visão de Locke, que consiste numa dou-
tivo de princípios fundados nas Leis da Natureza como as leis de Deus
trina normativa partindo da lei fundamental da natureza e de outras
que a razão conhece. Em vez disso, investiga o modo como a morali-
leis naturais, e diz quais são os nossos direitos e deveres, e depois
relata o tipo de regime que poderia legitimamente ter lugar. Não é dade surge enquanto fenómeno natural, o papel que desempenha na
isso que Hume está a fazer, ou pelo menos não é o que eu julgo que vida social e no estabelecimento da unidade social e entendimento
está a acontecer. Vejo-o a explicar os motivos pelos quais temos algu- mútuo, e o que as capacidades naturais humanas conseguem fazer da
mas virtudes - o porquê de existirem, de serem elogiadas, e de nós moralidade. Em suma, como é que a moralidade funciona, e que aspe-
estarmos motivados a agir de acordo com elas - como faríamos em tos da psicologia humana a sustentam?
psicologia, ou, falando a nível geral, numa ciência de natureza humana. O «princípio de humanidade» é a tendência psicológica que temos
Assim, tendo em conta os seus propósitos, creio ser adequado ele fazer para nos identificarmos com os interesses e preocupações de outros
este relato mais ou menos idealizado, pondo de lado outros possíveis
interesses, e ver como as instituições de propriedade e as virtudes que 7 [Ver Rawls, Lectures on the History of Moral Philosophy, Hume Palestra V, pp. 84-104,
lhes estão associadas poderão surgir, e como seriam diferentes de outras para uma descrição aprofundada do papel da ideia de «espetador judicioso» apre-
virtudes, por exemplo, as naturais. sentada por Hume. -Ed.]

222 223
quando os nossos próprios interesses não entram em competição com facto de as instituições ou ações serem boas ou más. Haverá uma base
eles. Duas discussões principais acerca do princípio de humanidade para as pessoas concordarem acerca destas coisas? Segundo o autor,
constam do livro Enquiry, nas secções IV e IX, e também uma passa- só há uma base possível e é a que apela ao nosso princípio de huma-
gem importante na secção vis. nidade, que mais uma vez é a tendência psicológica que temos para
Trata-se da secção v: especialmente CfICfil7, 41-45, e em seguida as nos identificarmos com os interesses e preocupações de outros quando
notas de rodapé dos CfICfI3-4 (contra o argumento de que a moral é uma os nossos próprios interesses não entram em competição com elesll.
invenção dos políticos), e CfICfil4-16 (contra o egoísmo psicológico). O ponto de vista do espetador judicioso é o que abordamos relati-
Na secção IX, ver especialmente CfICfI4-8; e na secção VI, ver CfICfI3-6. Na vamente às qualidades de caráter de outros, ou a respeito das regras
parte n da secção IX, Hume considera o problema da motivação moral de instituições; permite-nos avaliá-las somente de acordo com a sua
versus o problema epistemológico, e talvez mais claramente na resposta tendência de afetar os interesses globais ou felicidade geral da socie-
que dá ao «patife sensato» (CfICfI22-25) assume a sua posição com a «con- dade. Como é que isso nos faz ficar de acordo? Isso acontece porque o
federação dos seres humanos» (Cf119), que está inquestionavelmente único fator na nossa, por assim dizer, «natureza sensata» que é posta
implícita em Enquiry (apesar de se distanciar de um inquérito psicoló- em prática quando assumimos o ponto de vista do espetador judi-
gico e social). cioso é o nosso princípio de humanidade, ou simpatia. Quando os nos-
Na sua forma mais simples, ele diz que, quando dizemos que as sos próprios interesses e os da nossa família não estão envolvidos ou
qualidades de caráter são virtuosas ou viciosas, ou que as ações são são afetados, o único aspeto motivacional do nosso caráter que vai
corretas ou erradas, estamos a descrevê-las por «Um ponto de vista dirigir o nosso julgamento, e que nós vamos expressar, é o modo
comum»9 ou adequadamente geral, o ponto de vista do «espetador como uma ação ou instituição ou qualidade de caráter vai afetar os
judicioso»lü, sem nenhuma referência aos nossos próprios interesses; interesses e preocupações daqueles que estão mesmo envolvidos.
e ao fazer o nosso julgamento moral, estamos a expressar a nossa apro- Assim, segundo Hume, o que torna possível chegar a um acordo sobre
vação e desaprovação. A razão porque aprovamos ou desaprovamos as um julgamento moral é sermos capazes de assumir e imaginarmo-nos
qualidades de caráter ou instituições tem a ver com o facto de que, a utilizar o ponto de vista do espetador judicioso. Devemos ser capa-
quando os consideramos por este ponto de vista geral, os nossos jul- zes de o fazer de tal modo que consigamos dar resposta e ter, por
gamentos são guiados pela tendência de estas ações ou qualidades ou assim dizer, uma espécie de afinidade com os efeitos destas institui-
instituições afetarem os interesses globais da sociedade, ou a felici- ções ou qualidades de caráter em virtude dos benefícios que recaem
dade geral da sociedade. O que Hume está a tentar fazer é explicar sobre as pessoas que tiram partido deles. Podemos depois aprovar
que concordamos. Haverá uma base para as pessoas poderem concor- pessoas virtuosas noutras culturas, noutros países e noutras épocas,
dar quando julgam instituições? Quando analisados a partir das posi- porque somos capazes de usar este ponto de vista para nos identifi-
ções de cada pessoa, não é possível ter concordância relativamente ao carmos e simpatizarmos com as pessoas que são beneficiadas por aque-
las instituições e caraterísticas.
Isso será, portanto, o que tornará possível chegar a um acordo sobre
8 [Para além do «princípio de humanidade» (p. 272), Hume refere em Enquiry Concer- um julgamento moral, e com a elaboração dessa ideia é que poderemos
1
ning the Principies of Morals «OS princípios de humanidade e simpatia» (p. 231), e tam-
'• 1

bém «O tal princípio na nossa natureza de humanos ou uma preocupação por outros»
ver o motivo pelo qual o princípio de utilidade tem o conteúdo que tem.
(p. 231), «O sentimento de humanidade» (p. 272), e o «afeto de humanidade» (p. 273), Isto é, a ideia seria que numa escala maior em que cada instituição ti-
e diz «sozinho pode ser o fundamento da moral» (p. 273). -Ed.] vesse de satisfazer aquele princípio corresponderia à dimensão em que
9 Hume, Enquiries, sec. IX, parte I, p. 272.
10 [«Espetador judicioso» é um termo apenas usado em Treatise of Human Nature, Li-
vro III, parte 3, sec. r, Oxford: Oxford University Press, 2.ª ed., 1978), p. 581. No pró- 11 [Como Hume refere: «Se ele pretende, portanto, expressar que este homem possui
ximo parágrafo Hume distingue «O seu peculiar ponto de vista» de «alguns pontos qualidades, cuja tendência é perniciosa à sociedade, escolheu este ponto de vista, e
de vista estáveis e gerais». Usa «ponto de vista comum» e «espetador» conjunta- abordou o princípio de humanidade, no qual todos os homens, em certa medida,
mente em Treatise na p. 591. - Ed.] concorrem.» Enquiries, p. 272. - Ed.]

224 225
a pessoa que assume o ponto de vista do espetador judicioso sentiria em nada disso. Odeia religião. Só está a tentar explicar porque é que
uma aprovação mais forte por parte dessa instituição. Quanto mais se existe propriedade. Porque é que ela existe? Como é que surgiu? O que é
satisfaz o princípio de utilidade, mais fortes serão os efeitos sobre ou que a sustenta? Está ao serviço de que propósito social? Ele não res-
as afinidades com a sensibilidade moral da pessoa. ponde de todo à mesma pergunta como faz Locke - a questão norma-
De acordo com Hume, creio que isto é um relato psicológico de tiva dentro da constituição do universo - quando aborda a questão de
como nos é possível fazer julgamentos morais e chegar a acordo acerca propriedade. Por isso, para Hume, qualquer coisa sobre o passado his-
deles. Ele defende que a única base possível para haver acordo é atra- tórico de propriedade ou governo não conta; não é importante para a
vés do princípio de humanidade. Não há nenhum outro aspeto na propriedade ou governo se é ou não justificável agora. Para ele, o que
natureza humana que, na sua opinião, tornaria este acordo possível. lá vai, lá vai. Numa visão utilitária, o que conta é o modo como a ins-
Se trabalharmos essa ideia, a partir do modo como estabelece o ponto tituição opera agora e no futuro, e se é o caso de as instituições que
de vista do espetador judicioso, conseguimos ver, julgo eu, porque é temos agora satisfazerem muito provavelmente as necessidades da
que lhe é natural ter acabado com o critério de correto e errado como sociedade. O objetivo de Hume é abordar estes assuntos pelo prisma
fez, nomeadamente o princípio de utilidade. do que agora chamamos de «ciência social» e tenta dar uma explicação
Para concluir a nossa discussão acerca de Hume, a ideia de espeta- empírica a estas questões.
dor judicioso é uma das ideias mais importantes e interessantes da
filosofia moral. Aparece em Hume pela primeira vez. A sua visão
total, incluindo a descrição de propriedade e o espetador judicioso,
deve ser compreendida como uma tentativa no sentido de conceber
uma descrição psicológica do nosso pensamento moral. Há um con-
traste entre Hume e Locke a esse respeito. Hume tenta explicar como
somos capazes de fazer distinções morais com a ideia do espetador
judicioso. De onde é que vem a distinção entre certo e errado? Ele não
fala de motivação moral - sobre o motivo pelo qual nos movemos a
fazer o que está certo ou o que cremos estar certo. Em vez disso, está
interessado em saber de onde vem a distinção entre certo e errado.
E pergunta: «Como é que aprendemos a fazer essa distinção? Como é
que acordamos o que está certo e o que está erraqo?» A sua resposta
é que aprendemos a assumir o ponto de vista do espetador judicioso.
Tudo o que está a mover os nossos julgamentos a partir desse ponto de
vista é o princípio de humanidade. Deste modo, todos damos resposta
às coisas da mesma maneira.
Finalmente, e repetindo um ponto abordado anteriormente: se con-
trastarmos os relatos de Hume e de Locke a respeito de propriedade,
podemos considerar Locke um advogado constitucional, cujo argu-
mento se baseia numa constituição cujas leis são propostas por Deus.
Ele está a discutir com Filmer. É toda uma visão normativa, dando
como garantidas determinadas ideias fundamentais. A constituição é
uma constituição do universo de todos os humanos. A lei básica é a lei
fundamental da natureza e o princípio que Deus tem autoridade su-
prema sobre toda a criação. A sua discussão dentro dessa constituição
é com Filmer. Hume não trabalha neste enquadramento e não acredita

226 227
ROUSSEAU
ROUSSEAU I

O CONTRATO SOCIAL: O SEU PROBLEMA

§ 1. INTRODUÇÃO

1. Infelizmente temos de ler Rousseau através de traduçõesl. Ape-


sar de se perder bastante do original, preservou-se ainda assim algo
do estilo excecional de Rousseau2. Anteriormente mencionei que o
Leviathan de Hobbes é o maior livro de filosofia política em inglês, ou
assim creio. Talvez possamos dizer também que On the Social Contract
é a maior obra em francês. Digo «talvez» visto On the Social Contract não
apresentar o espetro do pensamento de Rousseau como o Leviathan
faz de Hobbes. Mas, se combinarmos On the Social Contract com
Second Discourse (Discourse on the Origin and Foundatíons of Inequality)

1 Nas palestras acerca de Rousseau que se seguem irei fazer referência às seguintes
obras: Jean-Jacques Rousseau, The First and Second Discourses, ed. Roger D. Masters,
trad. Roger D. e Judith R. Masters, Nova Iorque: St. Martin's Press, 1964, e a On the
Social Contract, with Geneva Manuscript and Political Economy, ed. Roger D. Masters,
trad. Judith R. Masters, Nova Iorque: St. Martin's Press, 1978. As citações no corpo
do texto estarão abreviadas em SD para Second Discourse, e SC para Social Contract.
No primeiro caso, serão usados números de páginas; no segundo, as referências serão
feitas ao livro, capítulo e parágrafo.
2 Como aventuras de tradução, recordemos que (em 1987, presumo) um locutor sovié-
tico na TV Moscovo traduziu «Rocky Mountain High» de John Denver como «Drunk
in the Mountains» [Bêbado nas Montanhas]. E nas primeiras tentativas de escrever
programas para tradução informática de inglês para russo e vice-versa a frase «The
spirit is willing but the flesh is weak» [O espírito tem vontade mas a carne é fraca]
foi traduzida como: «The wine is good but the meat stinks» [o vinho é bom mas a
carne cheira mal].

231
e com Emile (sobre psicologia moral e a nossa educação na sociedade), que provoca nos seus membros. Ambiciona explicar o motivo pelo qual
a observação parece correta. Montesquieu, Tocqueville e Constant são estes males e vícios aparecem e descrever o contexto básico de um
escritores esplêndidos e de primeira categoria; mas em Rousseau a mundo político e social em que não estariam presentes.
união da força literária com o poder do pensamento não tem igual. Como Hume, Rousseau é de um século posterior ao de Hobbes e
Teço comentários sobre esta união da força literária com o poder do Locke. Representa a geração que rejeitou a velha ordem, apesar de
pensamento porque é realmente surpreendente. Podemos questionar, ainda estar em vigência durante a sua vida e ter preparado o caminho
contudo, se a força e o esplendor do estilo é uma coisa boa ou má num para a Revolução Francesa. Tradições estabelecidas estavam a ser
trabalho filosófico. Adiciona ou retira clareza de pensamento que um questionadas e as ciências desenvolviam-se rapidamente.
escritor espera transmitir? Não pretendo desenvolver esta questão ex- Sabe-se muito sobre a vida de Rousseau, porque escreveu três obras
ceto para dizer que o estilo pode ser perigoso, atraindo atenção sobre si autobiográficas. Nasceu em 1712 em Genebra, uma cidade-Estado Pro-
mesmo, como acontece em Rousseau. Podemos ficar deslumbrados e testante naquela época. A sua mãe, cuja família pertencia à elite aca-
distraídos e, portanto, não nos apercebermos das complicações do démica e social e que eram, portanto, cidadãos eleitores, morreu pouco
raciocínio que exigem a nossa máxima concentração3. tempo depois de ele ter nascido e durante dez anos foi criado e edu-
Digo isto porque acredito que as ideias de Rousseau são profun- cado pelo pai, que era relojoeiro. Trabalhou posteriormente como apren-
das e consistentes; há mudanças de humor e sem dúvida contradições diz em vários ofícios. Sozinho e sem dinheiro, abandonou a cidade em
superficiais, mas toda a estrutura de pensamento mantém-se reunida 1728 quando tinha dezasseis anos, e viajou pela Europa tendo tido dife-
numa visão unificada. rentes ocupações - lacaio, secretário, precetor, professor de Música -
Talvez o melhor estilo filosófico seja claro e lúcido, almejando apre- trabalhando, vivendo e cultivando amizades por vezes com pessoas
sentar o próprio pensamento, sem efeitos colaterais, porém com uma influentes e, ao mesmo tempo, lendo e educando-se com ajudas finan-
certa graça e beleza formal de linha. Frege e Wittgenstein atingem este ceiras de quem lhas quisesse prestar. Por volta de 1742, quando se
ideal com frequência. Mas as maiores obras alemãs de filosofia polí- instalou em Paris, para ficar até 1762, era compositor (escreveu duas
tica - as de Kant, Hegel e Marx - não são especialmente bem escritas; óperas), poeta, dramaturgo, ensaísta, filósofo, cientista político, roman-
na verdade, são frequentemente bastante mal escritas. Nietzsche é um cista, químico, botânico - um autodidata.
grande estilista, mas as suas obras não pertencem à filosofia política, Depois de 1749, Rousseau começou a escrever os livros que mais
apesar de as suas visões se basearem certamente nela. tarde lhe deram fama. On the Social Contract e Emile, publicados em
2. Devemos agora tentar obter o sentido das questões e problemas 1762, foram a causa de ação legal contra Rousseau em França e Gene-
que moveram Rousseau a escrever On the Social Contract. As suas preo- bra porque se pensava que atacavam a religião, o que o levou a aban-
cupações são mais abrangentes do que as de Hobbes e Locke: como donar Paris. Os anos posteriores foram vividos a tentar justificar a sua
vimos, o primeiro preocupava-se com a resolução do problema da escrita; e On the Social Contract, que mais tarde foi citado por Robes-
guerra civil separatista, enquanto a preocupação do segundo se pren- pierre para justificar a Revolução, só começou a ser mais lido depois
dia com a justificação de resistência à Coroa no âmbito de uma Cons- de 1789, ano em que a Bastilha foi tomada4.
tituição mista. Contrariamente, Rousseau é um crítico de cultura e 3. Uma forma de veicular a dimensão do pensamento de Rousseau
civilização: procura diagnosticar o que vê como os males bem enrai-
é assinalar os seus vários trabalhos e indicar como se ligam entre si num
zados da sociedade contemporânea e aponta os vícios e infortúnios
corpo coerente de pensamento. Debruçando-se sobre a globalidade da
história humana e a origem da desigualdade, opressão política e vícios
3 O seu estilo excecional também é suscetível a fraudes, como aconteceu quando de sociais, Second Discourse é sombrio e pessimista; On the Social Contract
Maistre, ao ouvir a famosa frase de Rousseau que abre o Livro I, capítulo I de On
the Social Contract, «Ü homem nasceu livre e está acorrentado por toda a parte,»
retorquiu: «Poderá então dizer: 'As ovelhas nasceram carnívoras e comem erva por 4 A maior parte do material biográfico foi retirado de Roger Masters, ed., On the Social
toda a parte.'» Ou como numa recente recensão de livro no New York Times: «ÜS Contract, Introduction. Ver também Maurice Cranston, Jean-Jacques: The Early Life and
macacos nasceram livres e estão por toda a parte em zoos». Work o!Jean-Jacques Rousseau, 1712-1754, Londres: Penguin Books, 1983.

232 233
é mais leve e tenta estabelecer a base de um regime totalmente justo e 1772-1776: Dialogues: Rousseau juge de Jean-Jacques.
viável, mas simultaneamente estável e feliz. Neste sentido, é realisti- 1776-1778: Rêveries of a Solitary Walker.
camente utópico. Perante o seu tema e objetivo, é possivelmente o tra-
balho menos eloquente e apaixonado de entre as grandes obras de De facto, estas obras são importantes para a ênfase moderna em
Rousseau. valores como integridade e autenticidade, e para o esforço de nos com-
Podemos dividir estas últimas em três grupos: preendermos, ultrapassarmos a alienação, vivermos para nós próprios
a) Primeiro, três livros de crítica histórica e cultural em que expõe o sem dependermos da opinião de outros, e muito mais. Trata-se de uma
parte significativa de algumas justificaç?es para a lib~rdade de pensa-
que presencia como os males da civilização francesa (europeia) do
mento e consciência, como veremos mais tarde em Mill.
século xvm e apresenta um diagnóstico das suas causas e origem:
1750: Discourse on the Sciences and the Arts (The First Discourse).
1754: Discourse on the Origins of Inequality (The Second Discourse). §2. OS PERÍODOS HISTÓRICOS ,
1758: Letter to M. d'Alembert on the Theater.
ANTES DA SOCIEDADE POLITICA
Nestas obras Rousseau apresenta-se como crítico do Ilu-
1. Como forma de contextualizar o problema que preocupa
minismo, nomeadamente das suas ideias de progresso, dos
Rousseau em On the Social Contract, vou analisar primeiro Second
benefícios para a felicidade humana do avanço nas artes e
Discourse. Rousseau diz-nos numa das quatro cartas autobiográficas
ciências e da possibilidade de melhoria social através de uma
que escreveu a Malesherbes6 em 1762 (há uma referência mais b~eve
educação mais abrangente. Há uma tendência conservadora em Confessions, Livro 8, 1749, trad. J. M. Cohen, 327 e segs.) que h~a
em Rousseau e os seus contemporâneos Diderot, Voltaire e tido repentinamente uma ideia avassaladora n~ estrada para. ':m-
d' Alembert consideravam-no diferente deless. cennes (a seis milhas de Paris) em 1749. Havia planeado visitar
Diderot (que estava preso lá), mas era um longo passeio e e~tava
b) Segundo, as três obras construtivas em que Rousseau descreve muito calor. Tinha trazido uma cópia de Le Mercure de France e ah per-
o seu ideal de uma sociedade justa, viável e feliz e tece considera- cebeu a questão proposta pela Academia de Dijon - «A reforma das
ções de como poderá ser estabelecida e feita estável: ciências e das artes conduziu à purificação de princípios?» Rousseau
1761: La Nouvelle Heloi'se (que contém muito do idílio alpino de sentiu-se tonto e paralisado. A arfar, deixou-se cair para debaixo de
Genebra enquanto democracia rural). uma árvore e começou a chorar. Diz ele:
1762: On the Social Contract. Se algo se assemelhou a uma inspiração repentina,. foi º.que
1762: Emile. aquele anúncio estimulou em mim: de repente. se~h a m;nh.a
mente ofuscada por mil luzes, uma multidão de ideias esplendi-
c) Terceiro, três obras autobiográficas, que influenciaram muito a das apresentavam-se-me com uma tal força e numa coi:i-fusão,. que
literatura e a sensibilidade para o romantismo: me deixaram indescritivelmente desorientado. Senha a mmha
1766: Confessions: primeira parte terminada no regresso a França, ·cabeça tomada por uma tontura que se assemelhava a uma intoxi-
após estada em Inglaterra com Hume, e publicado total-
mente em 1781. 6 Malesherbes era o diretor da biblioteca do rei, encarregue de supervisionar por lei
· o comércio livreiro em França. Era amigo dos philosophes e ajudava-os frequente-
mente a ludibriar o labirinto legal do regime. Rousseau dava-se bem com ele, e antes
5 Esta tendência conservadora é ilustrada pelo contraste entre a história da ópera de da publicação de On the Social Contract tinha-lhe escrito quatro cartas autob~ogr~fi­
Rousseau, Devin du Village, com a de Pergolesi em La Serva Padrona. Ver Maurice cas. Ver James Miller, Rousseau: Dreamer of Democracy, New Haven: Yale Umvers1ty
Cranston, Jean-Jacques, p. 279. Press, 1984, pp. 76 e segs.

234 235
cação [ ... ] Incapaz de respirar e de andar ao mesmo tempo, afun- proporção ao poder e à riqueza: talvez seja uma boa questão para
dei-me sob uma árvore[ ... ] se por ventura conseguisse ter escrito escravos discutirem na presença dos patrões, mas não adequada para
um quarto do que vi e senti debaixo daquela árvore, com que cla- homens razoáveis e livres que procuram a verdade» (SD, 101-102).
reza teria revelado todas as contradições do sistema social, com Em vez disso, Rousseau quer mostrar como aconteceu não haver
que força teria exposto todos os abusos das nossas instituições, nenhuma ligação essencial, como pensa que deveria haver, e como é
com que simplicidade teria demonstrado que o homem é natural- que, de acordo com o que acontece hoje em dia, «[ ... ] uma criança
mente bom e que é só através destas instituições que os homens se (pode) mandar num idoso, uma pessoa imbecil numa inteligente e
corrompem7. uma mão cheia de homens estar saturada de frivolidades enquanto a
multidão esfomeada passa necessidades» (SD, 181).
Rousseau disse que este momento fugaz de devaneio extático esti- 3. A ideia do estado de natureza pode ser entendida em pelo menos
pulou os objetivos dos seus escritos como um todo8. três vertentes:
2. Esta citação declara bem o tema conhecido do pensamento de 1) O sentido jurístico como ausência de autoridade política. Este é
Rousseau, nomeadamente que o homem é naturalmente bom e que é o sentido de Locke. Os indivíduos encontram-se num estado de
só através das instituições sociais que os homens se tornam maus. Mas natureza quando não estão sujeitos a nenhuma, ou à mesma,
o significado deste tema não é óbvio. De facto, há alguma dificuldade autoridade política;
em saber em que sentido Rousseau consegue afirmá-lo, pois parece 2) O sentido cronológico como a primeira condição histórica da
entrar bastante em contradição com o que diz em The Second Discourse. humanidade, quaisquer que sejam as suas caraterísticas. Em
Para explicar esta dificuldade, e o modo como poderia ser resolvida, pensamento patrístico (o dos primeiros padres da igreja), o
analiso o próprio Discourse. estado de natureza - o de Adão e Eva antes da queda - era um
Em duas partes de tamanho aproximadamente idêntico, esta obra estado de perfeição moral (tanto quanto isto é possível para
é uma descrição da história da humanidade começando com o primeiro seres humanos desprovidos de graça) e racionalidade. Também
período do estado de natureza e terminando com o início da autori- era um estado de igualdade;
dade política e sociedade civil. Faz um levantamento das mudanças 3) O sentido cultural, como estado primitivo de cultura, como
históricas a nível cultural e social e relaciona as hostilidades e vícios estado em que as artes e as ciências - civilização nos seus ele-
de civilização à desigualdade crescente no poder político, na posição mentos não políticos - dificilmente começaram.
social, na riqueza e propriedade.
No princípio, Rousseau distingue entre desigualdade natural e Estas diferentes formas de sociedade e cultura não precisam obvia-
desigualdade política ou moral. A primeira é «estabelecida pela natu- mente de serem todas realizadas no mesmo período de tempo. O pe-
reza e consiste na diferença de idades, forças corporais e qualidades ríodo precedente estabeleceu que a autoridade política pode ser muito
da mente ou alma». A segunda, que por vezes ele chama de desigual- longa, como parece ter sido para Locke, e parece explicitamente ser
dade forçada, baseia-se na convenção e «é estabelecida, ou pelo menos para Rousseau. Este último divide o estado jurístico de natureza em
autorizada, através de [... ] consentimento» (SD, 101). Mas considera quatro períodos distintos de cultura, todos de longa duração; e na sua
óbvio que em civilização, como a entendemos hoje, não há nenhuma terminologia (em The Second Discourse ), o termo «estado de natureza»
ligação essencial entre estas duas desigualdades. Pensar de modo con- não consiste no período pré-político como um todo mas só no primeiro
trário seria perguntar «[ ... ] se quem comanda vale necessariamente e início dos quatro períodos culturais.
mais do que quem obedece e se a força do corpo ou da mente, sabe- 4. Esta primeira fase do homem primitivo não é de todo considerada
doria ou virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos por por Rousseau como um período ideal. É o terceiro período, em cuja dura-
,ção teve lugar um considerável avanço cultural, que ele considera ideal
em The Second Discourse, e é o que lamenta não ter perdurado. No seu
7 Ver Cranston: Jean-Jacques: 1712-1754, p. 228. relato, Rousseau baseia-se em vários escritores prévios: o seu primeiro
8 Ver Miller, Rousseau: Dreamer of Democracy, p. 5. período baseia-se em Pufendorf; o terceiro assemelha-se ao estadó de

236 237
natureza de Montaigne, e o quarto - que revela um enorme conflito e com duas coisas: em primeiro lugar, o nosso bem-estar natural e os
desordem, levando eventualmente ao estabelecimento da autoridade , meios de subsistência e, em segundo lugar, com o que os outros pen-
política sob o domínio dos que têm propriedade - baseia-se em Hobbes, sam de nós e a nossa posição relativa no nosso grupo social. As pri-
apesar de Rousseau diferir dele em aspetos importantes, tal como meiras preocupações são o objeto do amour de soi (amor natural por
mencionei anteriormente. nós próprios), que, conforme indicado acima, é a preocupação com o
A relevância de tudo isto para nós é a seguinte: Rousseau quer bem individual conferido por determinadas necessidades naturais
dizer que o homem é naturalmente bom e que é através de institui- comuns ao homem e a outros animais. As segundas são o objeto de
ções sociais que nos tornamos maus. No entanto, quando prestamos amour-propre, uma forma distinta de preocupação connosco próprios
atenção aos pormenores do seu relato acerca do avanço cultural, da que só surge em sociedade. É a preocupação natural por uma posição
organização social e do papel que as nossas várias faculdades desem- segura em relação a outros e implica uma necessidade por igual acei-
penham - particularmente, a nossa razão, imaginação e consciência - tação com eles9.
pode parecer inevitável que os males sociais e os vícios individuais Sublinho que amour-propre tem uma forma natural juntamente
que Rousseau abomina irão ter lugar. com o seu próprio objeto, bem como uma forma não natural, que
Na primeira fase, as nossas faculdades não estão desenvolvidas. tem o seu objeto pervertido ou não natural. Na sua forma natural,
Somos depois movidos por amour de soi (amor próprio natural) e por ou própria (a sua forma adequada à natureza humana), amour-pro-
desejos simples tais como os de comida, abrigo, sono e sexo. E enquanto pre é uma necessidade que nos leva a assegurar por nós próprios
sentimos compaixão (SD, 131 e segs.), este período ainda é o de um uma posição idêntica juntamente com outros e uma posição entre
bruto. Isto é, é o período de um animal preguiçoso, sem reflexão, ape- os nossos associados, entre os quais somos aceites com necessida-
sar de feliz e razoavelmente inofensivo, e sem tendência para infligir des e aspirações que devem ser tidas em conta da mesma forma
dor sobre outros. como as das outras pessoas. Isto significa que na base das nossas
Contudo, mesmo sendo animais, os seres humanos distinguem-se necessidades e vontades podemos fazer reivindicações que são
de outros em dois aspetos muito importantes: apoiadas por outros por imporem limites legítimos na sua conduta.
Precisar e pedir esta aceitação por parte de outros implica dar-lhes
Primeiro, têm capacidade de livre arbítrio e, portanto, potencial o mesmo em retorno. Porque, movidos por este amour-propre natu-
para agir à luz de razões válidas; não são só orientados por instin- ral, estamos prontos a conferir exatamente a mesma posição a
tos como os animais (SD, 113 e segs.). outros, e a reconhecer os verdadeiros limites que as suas necessida-
Segundo, os seres humanos são passíveis de aperfeiçoamento, des e reivindicações legítimas nos impõem, em virtude - e isto é
ou seja, têm potencial para progredirem através do desenvolvi- essencial - do nosso estatuto idêntico ser aceite e assegurado em
mento das suas faculdades e da sua expressão cultural ao longo acordos sociais.
do tempo. Um aspeto do nosso aperfeiçoamento, que depende da Põe-se a questão se amour-propre, que expressa a nossa natureza
linguagem (SD, 124), é que nós somos seres históricos. Isto signi- social, contém em si mesmo, enquanto disposição natural, o princípio
fica que o aperfeiçoamento reside tanto na espécie como no indiví- da reciprocidade. Eu não creio. O princípio da reciprocidade é formu-
duo e encontra-se no desenvolvimento histórico da civilização. lado e tomado pela razão, imaginação e consciência e não por amour-
A realização particular da nossa natureza depende da cultura da -propre. Portanto esse princípio não é só conhecido e seguido por
sociedade em que vivemos. Contrastivamente, os animais trans-
formam-se em tudo o que poderão vir a ser em poucos meses e
são hoje o que já eram há milhares de anos (SD, 114-115). 9 A minha explicação de amour-propre segue a de N. J. H. Dent, Rousseau, Oxford: Black-
well, 1988, e a de Frederick Neuhouser no seu artigo «Freedom, Dependence, and
the General Will», Philosophical Review, julho de 1993, pp. 376 e segs. Dent faz uma
5. Todavia, quando nos distinguimos de outros animais devido ao declaração no seu A Rousseau Dictionary, Oxford: Blackwell, 1992, pp. 33-36. Estou
desenvolvimento cultural - através da linguagem e de formas simples grato a Neuhouser pela explicação de como amour-propre se relaciona com o princí-
de organização social (família e pequenos grupos) - preocupamo-nos pio de reciprocidade.

238 239
1

amour-propre. Contudo, movidos por amour-propre estamos prontos a vícios de cultura, a forma mais elevada de maldade, como, por
aceitar e a agir de acordo com o princípio da reciprocidade sempre exemplo, a inveja, a ingratidão, o rancor e afins [... ] poderão ser
que a nossa cultura no-lo disponibiliza e torna inteligível e os acordos chamados de vícios diabólicos.
básicos da sociedade estabeleçam a nossa posição segura e igual jun-
tamente com outros. Só quando relacionei aqui The Second Discourse com as observa-
Por contraste, amour-propre não natural, ou pervertido (muitas ções de Kant é que senti que tinha finalmente entendido o que cada
vezes traduzido simplesmente por «vaidade»), revela-se nesses vícios um deles dizia. Muito frequentemente, Kant é o melhor intérprete de
como vaidade e arrogância, no desejo de ser superior a e de dominar Rousseau 11 .
outros e de ser admirado por eles. O seu objeto não natural ou perver- O segundo motivo para aceitar a visão alargada de amour-propre é
tido é ser superior a outros e tê-los em posições abaixo de nós. que ele é necessário para compreender as grandes obras de Rousseau
Deveria mencionar, contudo, que a primeira interpretação que como portadoras de coerência e consistência. Por razões que irei ten-
apresentei anteriormente acerca de amour-propre não é largamente tar esclarecer, a solução do problema humano que Rousseau apre-
aceite. Bem mais aceite é que amour-propre é simplesmente o que eu senta em On the Social Contract só é coerente com Second Discourse
chamei de amour-propre não natural ou pervertido, e nada mais do quando adotamos a visão alargada de amour-propre. Sem ele, o pensa-
que isso. Assim, quer incorpore o princípio da reciprocidade nunca mento de Rousseau torna-se ainda mais sombriamente pessimista e o
surge. Aceito que possamos chamar a visão alargada de amour-propre tipo de sociedade política retratada em On the Social Contract aparece
por dois motivos (para além do facto de que a ideia principal está em totalmente utópico. O motivo é que se o amour-propre não é em pri-
N. J. H. Dent, cujo livro e dicionário são recomendados)lO. meiro lugar, como diz Kant, um desejo meramente para a igualdade,
O primeiro motivo (e devo dizer que se torna muito importante e se não está pronto, com a garantia dessa igualdade pelas institui-
para mim) é que Kant apoia a visão alargada quando diz em Religion: ções sociais, para conferir na reciprocidade a mesma igualdade a
Livro I, sec. 1, Ak: VI:27: outros, que base psicológica existe na natureza humana, tal como
A predisposição para a humanidade pode aparecer sob o Rousseau a concebe, para viabilizar essa sociedade? Apenas razão e
título geral de amor-próprio que é físico e no entanto compara-se consciência? Isso dificilmente se torna suficiente. O esquema global
[ ... ] o que quer dizer que nos julgamos felizes ou infelizes ape- do pensamento de Rousseau torna-se, de facto, inviável. A falta da
nas quando estabelecemos comparações com outros. Deste visão alargada de amour-propre leva-nos a dizer disparates acerca de
amor-próprio advém a tendência para obter valor na opinião de Rousseau, nomeadamente que é um escritor brilhante mas confuso e
outros. Trata-se originalmente de um desejo apenas para a igual- inconsistente. Não se deve acreditar nisso.
dade, para não permitir nenhuma superioridade acima de nós, 6. Referi anteriormente que os males sociais baseados em desigual-
ligados por um cuidado constante no sentido de evitar que dade e amour-propre não natural parecem, de imediato, inevitáveis. Isto
outros lutem pela obtenção dessa superioridade; mas disto surge acontece porque se relacionam com a nossa razão, imaginação e cons-
gradualmente o desejo injustificável de a alcançar em detrimento ciência. A reflexão, a razão e a imaginação podem tornar-se em inimigas
de outros. Sobre este duplo eixo de ciúme e rivalidade poderão ser da compaixão e bloquear as suas tendências levando-nos a identifi-
enxertados os grandes vícios de animosidade secreta e aberta carmo-nos com o sofrimento dos outros (SD, 132 e segs.). Diz Rousseau
contra todos os que consideramos não nos pertencerem - vícios (SD, 132): «A razão cria vaidade e a reflexão fortalece-a; a razão faz o
esses, contudo, que não resultam realmente da natureza; são ten- homem voltar-se sobre si próprio, separa-o de tudo o que o perturba e
dências despertadas em nós pelos esforços ansiosos de outros aflige. A filosofia isola-o; por causa dela e perante o vislumbre de um
em atingir uma superioridade detestável sobre nós [ ... ] os vícios homem em sofrimento, diz em segredo: Morre, se quiseres, estou
que são enxertados nesta tendência poderão ser chamados de
11 Ver Ernst Cassirer, The Question of Jean-Jacques Rousseau, trad. Peter Gay, Nova Iorque:
10 N. J. H. Dent, Rousseau e A Rousseau Dictionary. Columbia University Press, 1954.

240 241
seguro. Só os perigos que ameaçam uma sociedade inteira perturbam o Sob a pressão de números crescentes tornou-se mais eficiente as pes-
sono tranquilo do filósofo e o arrancam da cama [... ] O homem selva- soas juntarem-se para caçarem em grupos e participarem em várias
gem não tem este talento admirável, e por necessidade de sabedoria e atividades cooperativas. Mas, desde logo neste mundo pastoral sim-
razão ele é sempre visto a ceder precipitadamente ao primeiro senti- ples a instalação de amour-propre inflamado já se encontra em curso.
mento de humanidade.» E um pouco mais tarde (SD, 133): «[ ... ] a raça A proximidade permanente cria laços duradouros; sentimentos de amor
humana teria morrido há muito tempo se a sua preservação tivesse e ciúmes (desconhecidos para seres mais simples) começam agora a
dependido apenas dos raciocínios dos seus membros.» surgir. Diz Rousseau: «Ü que cantava ou dançava melhor, o mais bonito,
Aqui Rousseau comenta o efeito do desenvolvimento da cultura e o mais hábil, ou o mais eloquente tornou-se na pessoa mais conside-
razão sobre o sentimento de humanidade que move pessoas mais sim- rada; e esse era o primeiro passo em direção à desigualdade e, ao
ples. Mas isto é só um exemplo da tendência geral de como os seres mesmo tempo, ao vício» (SD, 149).
humanos evoluíram no: É este terceiro período, ou patriarcal, «a distâncias iguais da estu-
pidez de brutos e do esclarecimento fatal do homem civil» (SD, 150),
Primeiro período, do animal preguiçoso, sem reflexão, mas
que Rousseau pensa ter sido o melhor para o homem. Diz ele:
livre e com potencial de aperfeiçoamento e feliz, que vive sozinho
e é só movido por amour de sai e compaixão. Aqui não há proble- [ ... ] apesar de os homens terem menos resistência e apesar de
mas morais e as paixões são poucas e calmas (SD, 142); a piedade natural já ter sofrido alguma alteração, este período do
desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um meio
para o: dourado entre a indolência do estado primitivo e a atividade
petulante da nossa vaidade, deverá ter sido a época mais feliz e
Segundo período, da sociedade nascente, uma fase ao longo de
duradoura [ ... ] a menos sujeita a revoluções, a melhor para o
séculos durante os quais aprendemos a usar as ferramentas e
homem, da qual ele terá saído devido apenas a algum acidente
armas mais simples, desenvolvemos uma linguagem rudimentar,
fatal, que para o bem comum nunca devia ter acontecido. O exem-
unimo-nos em grupos para proteção mútua e desenvolvemos a
plo de selvagens, que já foram quase todos encontrados nesta
família permanente com instituições de propriedade muito limita-
altura, parece confirmar que a raça humana foi feita para perma-
das; os indivíduos possuíam as suas próprias armas, cada família
necer sempre nela; que este estado é o verdadeiro princípio do
tinha o seu próprio abrigo; desenvolve-se um sentido do eu e sen-
mundo; e que todo o progresso subsequente tem passado por
timentos de preferência levam ao amor que, por sua vez, provoca
váiias etapas em direção ao indivíduo, e na verdade em direção à
ciúmes (SD, 142-148);
decrepitude da espécie. (SD, 150-151.)
para o: Mas, este terceiro período foi abandonado na transição para o
Terceiro período, que é a fase patriarcal da sociedade humana quarto, com a sua primeira fase de desigualdade. Isto ocorreu com
onde o único governo é o familiar. As pessoas vivem em grupos o desenvolvimento da metalurgia e agricultura, o que levou cada vez
livres em aldeias e ganham a sua subsistência através da caça, mais pessoas a precisar da ajuda de outras, e portanto à divisão do
pesca e recolha de produtos resultantes da natureza; e o diverti- trabalho, bem como ao estabelecimento da propriedade privada em
mento tem lugar em reuniões espontâneas com música e dança, terra e ferramentas; e, finalmente, à desigualdade entre pessoas com
e assim sucessivamente. Os homens começam a apreciar-se e origem em primeiro lugar em desigualdades naturais (a nível de
seguem-se deveres de civilidade. A estima pública passa a ser força, perspicácia, ingenuidade, etc.) (SD, 151-154.)
valorizada (SD, 149). As diferenças naturais entre nós fazem parte da dificuldade. Pois
Rousseau sugere que um estado razoavelmente feliz poderia ter per-
Se questionarmos os motivos pelos quais estas transições para a sistido se os talentos tivessem sido iguais (SD, 154). Mas o período da
fase seguinte ocorrem, Rousseau sugere razões de ordem económica. metalurgia e agricultura desenvolve-se gradualmente num de de.si-

242 243
gualdade, com o início da lei e da propriedade e a distinção entre ricos dirigir até que novas revoluções dissolvam por completo o governo
e pobres: «Ü mais forte trabalhava mais; o mais esperto criava mais ou o façam aproximar-se da sua instituição legítima» (SD, 172).
vantagens; o mais engenhoso encontrava formas de reduzir o trabalho Fecha-se, deste modo, o círculo: a humanidade começa com o
[ ... ] trabalhando igualmente, um ganhando bastante enquanto o estado de natureza (o primeiro dos quatro períodos culturais antes da
outro mal ganhava para viver» (SD, 154-155).
sociedade civil) em que todos são iguais. Alcança finalmente o derra-
deiro período de desigualdade em que todos se tornam iguais outra
vez porque não são nada, e já não há mais leis exceto a vontade do
§ 3. O PERÍODO DA SOCIEDADE CIVIL senhor, que se governa por paixões: «As noções de bem e os princípios
E DA AUTORIDADE POLÍTICA de justiça [que apareceram com o compacto do governo] desaparecem
mais uma vez. Aqui tudo é levado de volta a [... ] um novo estado de
1. Para Rousseau, a autoridade política é em parte um truque dos natureza diferente daquele com que começámos, tratando-se do estado
ricos. Ou seja, não se tratava do caso dos mais fortes sobre os mais fra- de natureza na sua pureza; enquanto este último é o fruto de um ex-
cos. Em vez disso, o primeiro compacto social era, com efeito, fraudu- cesso de corrupção» (SD, 177).
lento, com os ricos a dominar e a enganar os pobres. O mal central era 2. No último parágrafo de The Second Discourse, ao referir vaida-
a desigualdade económica, em que os ricos tinham as suas posses des, vícios e infortúnios da civilização contemporânea que acaba de
asseguradas e os pobres tinham pouco ou nada. Mas estes últimos, descrever, Rousseau afirma a sua principal conclusão da seguinte
não prevendo as consequências, estavam prontos para aceitar a lei e a forma:«[ ... ] este [estado de sociedade e cultura, descrito acima] não é
autoridade política como solução para os conflitos e inseguranças de o estado original do homem; e [... ] é apenas o espírito da sociedade,
uma sociedade dedicada à agricultura sem governo (SD, 158 e segs.)12. e a desigualdade que cria, que assim muda e altera todas as nossas
A forma efetiva do governo estabelecido reflete maiores ou meno- tendências naturais» (SD, 180). E novamente: «Entende-se desta expli-
res desigualdades entre os indivíduos na época em que a autoridade cação que a desigualdade, sendo quase inexistente no estado de natu-
política é instituída. Se uma pessoa for proeminente em poder e reza, obtém a sua força e crescimento do desenvolvimento das nossas
riquezas, individualmente é eleita magistrado e o estado é uma mo- faculdades e do progresso da mente humana, e torna-se finalmente
narquia. Se um número de pessoas aproximadamente iguais prevale- estável e legítima com o estabelecimento da propriedade e das leis»
cer sobre os restantes, há uma aristocracia; se as posses e talentos de (SD, 180). -
todas as pessoas não são muito díspares, há uma democracia. Em Podemos dizer que, para Rousseau, registam-se dois processos
cada caso, a autoridade política adicionou desigualdade política aos interligados ao longo da história.
tipos de desigualdade já existentes 8SD, 171 e segs.). Um é a realização gradual do nosso aperfeiçoamento, isto é, da
As últimas páginas de The Second Discourse esboçam «O progresso da nossa capacidade de alcançarmos progressivamente os nossos objeti-
desigualdade», como Rousseau o chama, em três fases: «O estabeleci- vos e de nos refinarmos nas artes e ciências, e na invenção de institui-
mento da lei e do direito de propriedade constituíam a primeira, a ins- ções e formas culturais ao longo do tempo.
tituição da magistratura a segunda, e a terceira e última era a mudança O outro processo é o da nossa alienação crescente relativamente aos
do poder legítimo para o poder arbitrário. Assim, o estatuto dos ricos outros numa sociedade dividida por desigualdades em desenvolvi-
e pobres era autorizado pela primeira época, o dos poderosos e fracos ~ento. Estas últimas despertam em nós os vícios de um amour-propre
pela segunda, e pela terceira o dos senhores e escravos, que é o último inflamado, os vícios de orgulho e vaidade juntamente com a vontade
grau de desigualdade e o limite a que todos os outros acabam por se de dominar, e conduzem ao servilismo e obsequiosidade entre as
e ordens mais baixas. A combinação destes dois processos torna possí-
12 Rousseau rejeita como muito pouco prováveis outras formas de origem do governo - vel o domínio do poder político arbitrário e mantém a grande maio-
conquista, sujeição a um senhor absoluto (a que Locke chamava de absolutismo real), ria em dependência servil relativamente aos ricos e poderosos (SD,
autoridade paternal, sujeição à tirania (SD, 161-168). 175). ,

244 245

-1
§ 4. A RELEVÂNCIA DO CONTRATO SOCIAL desenvolvimento seguiu um determinado caminho. É essencial para
1 Rousseau que este desenvolvimento pudesse ter sido diferente; ele
1

!
1. Como já sugeri, é estranho que Rousseau dissesse que o homem menciona acidentes vários, e arriscar combinações de causas estran-
é naturalmente bom e que é através das instituições sociais que nos geiras (SD, 140), creio eu, é a sua forma de dizer que não era inevitá-
tornamos maus. Pois, como vimos, os seres humanos primitivos são ve11s.
indolentes, imprudentes, embora brutos felizes, que, aparentemente, 2. Há uma segunda perspetiva que Rousseau rejeita: a de Hobbes. Ele
com a formação de grupos sociais, se tornam cada vez mais vaidosos diz que os vícios de orgulho e vaidade, e os restantes, não são naturais ao
e dominadores, procurando mandar nos que têm menos, ou então homem (SD, 128 e segs.). Estes vícios e o infortúnio a que conduzem
deixando-se levar pelo servilismo e obsequiosidade para com os que resultam do amour-propre não natural ou pervertido. São o resultado de
têm maisl3. uma determinada trajetória histórica. O que nos é natural, o nosso amour-
A nossa razão expande e multiplica interminavelmente os nossos propre natural, como vimos anteriormente, é uma preocupação séria
desejos; e como passamos a viver cada vez mais na dependência das acerca de uma posição social segura relativamente a outros, em consis-
opiniões dos outros, as nossas diferenças naturais constituem oca- tência com o reconhecimento e reciprocidade mútuos. Isto é muito dife-
siões para vaidades e pudores. Então, porque é que não é a natureza rente da vaidade e do orgulho e da vontade de dominar. A natureza
humana que é má à partida, com a vida social a mostrar apenas o humana, como Hobbes a retrata, só se encontra no último período cultu-
quão má ela é realmente? Sim, nós aperfeiçoamo-nos: o nosso poten- ral de Rousseau (o estado de natureza no sentido jurístico de Locke ).
cial pode ser desenvolvido através da cultura ao longo do tempo, sem Recordemos que este período só surge após o desenvolvimento:
limites aparentes, e as instituições que preservem estas proezas 1) Da metalurgia;
podem ser devidamente premiadas e mantidas. Mas se só nos aperfei- 2) De grandes desigualdades em propriedade privada, incluindo ter-
çoamos às custas de infortúnios e vícios, como poderá ser boa a nossa ras;
natureza? 3) Da divisão de trabalho, com alguns sob a direcção e, portanto,
Creio que há pelo menos duas razões que levam Rousseau a dizer dependentes de outros;
que a nossa natureza é boa14. 4) Estas desigualdades aumentaram devido a diferenças em dotes
Uma é que ele rejeita determinados aspetos da ortodoxia cristã, e, nativos por estes serem treinados e educados, em que alguns
em particular, a doutrina agostiniana do pecado original. Uma perspe- são mais altamente treinados e educados do que os restantes.
tiva sobre escravatura e propriedade privada entre os Padres Pa-
trísticos era que Deus sancionava estas instituições como remédios para . Na ausência de um efetivo compromisso institucional público
as nossas propensões para o pecado. Estas propensões começaram para com a preservação da igualdade, são estas as caraterísticas que
com a Expulsão do Paraíso e estão agora incorporadas na nossa natu- leva~ as pessoas a considerar as suas relações antagónicas. Encaram
reza pecadora. O seu efeito só pode ser mitigado através da graça de a sociedade como uma competição, um jogo competitivo de cada um
Deus; o papel da lei e instituições sociais é meramente para as conter. contra todos. Na perspetiva de Rousseau, o homem primitivo não era
A esta doutrina agostiniana Rousseau pretende dizer: pelo contrá- c~paz de sentir ~rgulho ou vaidade e os outros vícios de civilização.
rio, a escravatura e a propriedade privada são progressos históricos, o So o amour de soz (presente em desejos como os de comida, bebida e
resultado de mudanças graduais nas propensões humanas sob a sono [SD, .116]) e a compaixão são, neste sentido, naturais para Rous-
influência de práticas sociais em determinadas condições. Este longo seau. A vaidade e o orgulho, e os vícios de amour-propre inflamado, não
estavam presentes nos primeiros períodos, e só se encontram muito
mais tarde.
13 Fazendo troca dos seus títulos, Kant chegou a falar indelicadamente dos prussia-
nos: «Não sabem muitas vezes se hão de tentar dominar ou humilhar-se.»
14 Assinale-se que Rousseau é cuidadoso com a forma como faz isto, conforme se pode 15 [Ver apêndice A no fim desta palestra para mais detalhes da doutrina cristã sobre
verificar a partir dos comentários que tece sobre metodologia em SD, 103, 105, 180. o pecado original, a partir dos apontamentos da palestra de 1981 de Rawls. - Ed'.]

246 247
3. Second Discourse é uma das obras mais pessimistas de Rousseau. damente arranjado para se adaptar à nossa verdadeira natureza e ao
Por ocasião de On the Social Contract (quando escreveu a declaração a estado natural do nosso amour-propre. Assim se explica o parágrafo de
Malesherbes de Dialogue I, citada anteriormente) já não considera que abertura do Livro I de On the Social Contract: «Quero perguntar se pode
a melhor época esteja no passado e olha mais para o futuro, ou, talvez haver uma regra de administração legítima e fiável na ordem civil, enten-
melhor, para o que é possível. Acredita então que é pelo menos possí- dendo os homens como são e as leis como podem ser. Irei tentar sempre
vel descrever uma forma legítima de governo e o seu sistema de insti- conciliar nesta pesquisa o que o direito permite com o que o interesse
tuições de tal forma que seria, afortunadamente, razoavelmente justo, prescreve, para que a justiça e a utilidade não estejam em desacordo.»
feliz e estável. Os seus membros seriam livres dos vícios mais sérios 4. Levanta-se agora a questão que se segue: quão boa ele realmente
de amour-propre inflamado tais como a vaidade e a pretensão, a falta pensa que é a natureza humana? Ao colocar esta pergunta, assumo
de sinceridade e a cobiça. Não é inevitável que passemos de mal a pior; que a natureza humana possa ser representada (para o objetivo de
é-nos possível melhorar. dar resposta a esta questão) pelos princípios mais fundamentais da
Se, contudo, On the Social Contract apresenta os princípios de direito psicologia humana, incluindo princípios de aprendizagem de todos
político para uma sociedade estável, justa e viável, não há muita mar- os tipos. Estes princípios estão corretos quando, juntamente com os
gem de manobra. A crença de Rousseau que a natureza humana é boa, . de senso comum da sociologia política, podemos pelo menos dar uma
e que é através das instituições sociais que nos tornamos maus, resulta explicação plausível dos tipos de virtudes e vícios, objetivos e aspira-
nas duas proposições que se seguem: ções, finalidades e desejos, e muito mais - em suma, o tipo de caráter -
que acabamos por ter sob diferentes condições sociais e históricas.
a) As instituições sociais e as condições de vida social exercem
Os princípios da natureza humana são como uma função: perante
uma influência predominante sobre a qual as propensões hu- determinadas condições sociais e históricas, eles atribuem os tipos de
manas se irão desenvolver e expressar-se ao longo do tempo. caráter que se vão desenvolver e ser adquiridos em sociedade.
Quando realizadas, algumas destas propensões são boas, outras Aceitando esta definição, então se a natureza humana é boa depende,
são más; aparentemente, de duas coisas:
b) Há pelo menos um esquema possível e razoavelmente viável de
instituições políticas legítimas que tanto satisfaz os princípios a) Do espetro e variedade de condições históricas sob as quais a
do direito político como os requisitos para a estabilidade insti- sociedade de On the Social Contract se pode realizar;
tucional e felicidade humana. b) Se estas condições podem ser alcançadas a partir da maioria, ou
de muitas, outras condições.
Assim, o facto de a nossa natureza ser boa significa que permite
um esquema de instituições políticas justas, estáveis e felizes. Como Suponhamos que não conseguimos atingir as condições para uma
esta sociedade se apresenta e como surge é o que Rousseau nos conta sociedade justa, feliz e estável do local onde nos encontramos: estamos
em On the Social Contract. O objetivo da genealogia do vício de Rous- muito longe ao longo do caminho do vício e da corrupção, e não con-
seau em The Second Discourse é mostrar que não precisamos de rejeitar seguimos cooperar para resolver os nossos problemas. Tanto pior para
a ideia da nossa bondade natural. A razão dada é que o ideal de coo- nós. Mas suponhamos ainda que não conseguíamos fazê-lo na maioria
peração social (incluído em On the Social Contract) é compatível com a das condições suscetíveis de resultarem da nossa longa história? Então
nossa natureza se a ideia de bondade natural for verdadeira. Enquanto o pessimismo de The Second Discourse é dificilmente mitigado.
On the Social Contract modifica um pouco o pessimismo de The Second Na introdução à sua nova edição de The Second Discourse, Masters
Discourse, o primeiro trabalho fornece a contextualização para o pro- diz o seguinte: «Quase sozinho neste século, Rousseau parece ter enca-
blema abordado por Rousseau no segundo. rado a natureza humana como uma espécie animal cuja natureza define
Concluímos que a natureza humana é boa no sentido em que é pelo um modo de vida bom e saudável, mas cuja evolução tornou uma
menos possível realizar acordos sociais e políticos com justiça e estabili- vida naturalmente boa inacessível (pelo menos para a maioria de quem
dade. A solução para o nosso problema consiste num mundo social devi- vive em sociedades civilizadas).» ,

248 249
Concordo com esta opinião, e nada do que disse entra em conflito lizes. {c) Rousseau nega que o primeiro par tenha agido na base do
com ela. Adapta-se, de igual modo, à relação entre The Second Discourse orgulho e do voluntarismo, pois estes motivos só se encontram em
e On the Social Contract que sugeri: nomeadamente que o último explica sociedade. (d) Os vícios e os valores falsos são propagados por insti-
como planear as instituições de um mundo social para que os vícios e tuições sociais de acordo com a resposta que cada geração lhes dá.
infortúnios descritos no primeiro, e que nós agora vemos na maior (e) A solução reside nas nossas mãos.
parte das épocas e na nossa cultura e civilização, não apareçam. A descrição que Rousseau faz do desenvolvimento social e histórico
A resposta de Rousseau é: devemos planear as nossas instituições é secular e naturalista, como a explicação de outros no Iluminismo:
políticas e sociais de acordo com os termos de cooperação expressos Diderot, Condorcet, d' Alembert, e assim sucessivamente. (Compare-se
pelo contrato social (SC, 16): são estes termos que, quando efetiva- a sua descrição com a de Hume.)
mente realizados, asseguram que essas instituições salvaguardem a
nossa liberdade moral, a nossa igualdade política e social e a nossa
independência. Também tornam possível a nossa liberdade cívica e § 2. ROUSSEAU CONTRA HOBBES: SIGNIFICADO
previnem contra as hostilidades e vícios que de outra forma nos ator- ADICIONAL À BONDADE NATURAL -
mentariam. COMO PREMISSA DA TEORIA SOCIAL
Apesar de Rousseau rejeitar o pecado original (como fez Hume e
ROUSSEAU PALESTRAI (1981): APÊNDICE A muitos outros, com algum fervor), também rejeita elementos da visão
de Hobbes. Em particular, pensava (correta ou incorretamente) que
ROUSSEAU: A DOUTRINA DA BONDADE NATURAL DA NATUREZA HUMANA este último considerava o orgulho e a vaidade, e a vontade de domi-
nar, impulsos básicos e originais ou princípios psicológicos de natu-
§ 1. CONTRA O PECADO ORIGINAL reza humana, o que explica em parte a razão pela qual o Estado de
Natureza é um Estado de Guerra. Rousseau nega isto, e atribui essas
Vamos começar contrastando a visão de Rousseau com a doutrina propensões à sociedade. No estado primitivo de natureza, as pessoas
ortodoxa do pecado original, a qual inclui as partes que se seguem: só são movidas pelas suas necessidades naturais, guiadas por amor-
(a) A perfeição natural e original do primeiro par, Adão e Eva. (b) O pe- ~próprio (amour de sai), e controladas por compaixão natural.
cado deles foi da sua inteira responsabilidade, um ato de livre arbítrio, · Rousseau também rejeitou a visão de Hobbes de que as formas os-
por uma natureza sem defeitos. (c) Foi motivado por orgulho e volun- tensíveis de compaixão e outros sentimentos semelhantes se poderiam
tarismo. (d) O castigo e a corrupção do seu pecado são manifestos em reduzir a amor-próprio. Ele distingue compaixão de amor-próprio; de
concupiscência e propagados no ato sexual. (e) Todos nós agora somos facto amor-próprio, guiado pela razão e moderado por compaixão,
corresponsáveis e participamos nele; de modo que agora (f) a nossa fornece, sob condições sociais e modos de educação adequados, a
natureza está marcada e sujeita à morte e ao infortúnio, (g) só possível base psicológica da conduta moral e humana.
de evitar através de graça divina.
Tendo estes aspetos em mente, note-se que Rousseau os rejeita um
por um: (a) O estado natural (Estado de Natureza} não é um estado de § 3. AS POSSIBILIDADES DE UMA SOCIEDADE
perfeição natural mas primitivo em que o nosso potencial de aperfei- BEM REGULADA
çoamento bem como a nossa razão e sensibilidade moral não estão de-
senvolvidos. Só se realizam em sociedade através de muitas mudanças Questionemos agora o que são estas disputas acerca da natureza
ao longo do tempo. (b) A infelicidade humana, os vícios actuais e os humana original e as suas propensões. Todos concordam, por assim
valores falsos não estão enraizados nas escolhas livres mas aparecem dizer, que tendo em conta o modo como as pessoas são muitas são mo-
como consequências de acidentes históricos e tendências sociais infe- vidas por orgulho e vaidade e pela vontade de dominar, pelo menos

250 251
em algumas ocasiões e em número suficiente para constituírem um devemos ser capazes de explicar como uma sociedade humana, bem
fator político significativo. Que diferença faz que estas propensões regulada e livre irá funcionar, e como poderá apresentar-se; e porque
sejam originais ou derivadas? E será que nós sabemos o que significa é que será estável e viável, tendo em conta um determinado sistema
esta distinção; e podemos distingui-las em comportamentos verdadeiros? de educação quando subsiste o contexto adequado. De igual modo,
A questão em jogo pode ser colocada da seguinte forma: Supo- poderemos alcançar essa sociedade do lugar onde nos encontramos
nhamos que aceitamos (tal como fizeram Rousseau e o Iluminismo) sem a utilização de meios que façam com que caraterísticas psicológi-
que os seres humanos e os seus propósitos são as unidades básicas de cas venham dominar em nós o que elas próprias fazem para inviabili-
deliberação e ação, bem como de responsabilidade (adequadamente zar essa sociedade?
entendida), de modo que as nossas ações coletivas sejam uma das Em Emile Rousseau discute a teoria psicológica que segundo ele toma
principais causas de mudança histórica e social. Depois, para ter uma uma sociedade bem regulada estável tanto quanto possível. É preciso
teoria social é ter, entre outras coisas, uma teoria destas unidades de que toda a autoridade coerciva, pública ou não, se baseie em princípios
deliberação e ação; e qualquer uma delas deve atribuir-lhes certos que as pessoas se possam dar enquanto pessoas moralmente livres, e
princípios originais que especificam como agem tendo em conta várias que excluem dependência pessoal.
condições sociais.
Assim, o que realmente está em jogo nestas disputas acerca de natu-
reza humana original é a perspetiva de mudanças sociais fundamen- ROUSSEAU: APÊNDICE B
tais e a sabedoria de adotar este ou aquele meio para elas dada a nossa
atual situação histórica e social. A não ser que ajamos na escuridão,
Comentários à figura 5:
1. Pondo de lado 1.1 e 4.9 (primeiro e último capítulos de On the
Parte 1 Parte 2 Social Contract), cada livro divide-se em partes iguais com o mesmo
Introdução 1.1 número de capítulos.
(1)1.2-1.5 (1) 3.1-3.9 2. É só a partir de 3.10-3.18 (na 2.ª parte da parte n) que se torna
Refuta explicações falsas sobre autoridade Discute o governo como um subordinado ao claro que o Soberano deve ser uma assembleia do povo e que se deve
política baseada em tipos de [desigualdade] Soberano, como executor das leis do Sobe-
incluindo a força. rano; como agente.
reunir entre intervalos fixos e periódicos (cf. 3.13.1).

(2) 1.6-1.9 (2) 3.10-3.18


Apresenta a explicação correta da legítima Discute o que pode ser feito para prevenir a
autoridade política. usurpação da autoridade do Soberano pelo LISTA DAS OBRAS DE ROUSSEAU
2.1-2.6 governo: o Soberano enquanto assembleia
Discute o Soberano e a fonte de leis. do povo.
4.1-4.4
1750 Discours sur les sciences et les arts («First Discourse») (escrito em
Discute como ordenar a vontade geral como 1749).
conduta de assembleias populares para que 1752 Le Devinde Village (ópera).
possam expressar melhor a vontade geral e
preservar a liberdade e a igualdade.
1755 Discours sur l'origine de l'inégalité («Second Discourse»
«Economie Polítique» (artigo na Encyclopédie de Diderot).
(3) 2.7-2.12 (3) 4.5-4.8 1756 «Lettre sur la Providence» (resposta a «Poeme sur le desastre de Lis-
O legislador e o problema de estabilidade. Instituições de estabilidade: ditadura, censura,
religião civil.
bonne» de Voltaire).
Conclusão 4.9 1758 Lettre à M. d'Alembert sur les spectacles.
1761 La Nouvelle Héloi"se.
FIGURA 5 - Esboço de On the Social Contract. Adaptado da discussão de Hilail Gildin em
Rousseau's Social Contract, Chicago: University of Chicago Press, 1983, pp. 12-17.

252 253
1762 Escrita de quatro cartas biográficas a Malesherbes.
Emile.
Contrat Social.
«Lettre à Christophe de Beaumont» (resposta ao Arcebispo
de Paris sobre Emile).
1764 Lettres écrites de la montagne (resposta a Lettres écrites de la ROUSSEAU II
campagne de J. R. Tronchin).
1765 Projet de Constitution pour la Corse. O CONTRATO SOCIAL:
1766 Confessions (l.ª parte - terminada após o regresso a França)
publicada em 1781. SUPOSIÇÕES E VONTADE GERAL (I)
1772 Considerations sur le gouvernement de Pologne.
1772-1776 Dialogues: Rousseau juge de Jean-Jacques.
1776-1778 Les Rêveries du promeneur solitaire.

BIBLIOGRAFIA § 1. INTRODUÇÃO
CASSIRER, Ernst, The Question of Jean-Jacques Rousseau, trad. Peter Gay, Nova Iorque:
Columbia University Press, 1954.
1. Na última palestra, tentámos compreender questões e problemas
COHEN, Joshua, «Reflections on Rousseau: Autonomy and Democracy», Philosophy que levaram Rousseau a escrever o On the Social Contract. Eu disse que
and Public Affairs, verão de 1986. as suas preocupações eram mais vastas do que as de Hobbes e Locke:
CRANSTON, Maurice, Jean-Jacques: The Early Life and Work of Jean-Jacques Rousseau, 1712- o primeiro preocupava-se com a resolução do problema da guerra civil
-1754, Londres: Penguin Books, 1983. separatista e o segundo com a justificação de resistência à Coroa no
DENT, N. J. H., Rousseau, Oxford: Blackwell, 1988, e A Rousseau Dictionary, Oxford:
âmbito de uma constituição mista. Rousseau é um crítico de cultura e
Blackwell, 1992.
GAY, Peter, The Enlightenment: An Interpretation, 2 vols., Knopf, 1969; sobre Rousseau, civilização: em The Second Discourse considera que o que vê são males
pp. 529-552 (re La Nouvelle Heloi'se, pp. 240 e segs.). enraizados da sociedade e retrata os vícios e os infortúnios que causa
GILDIN, Hilail, Rousseau's Social Contract, Chicago: University of Chicago Press, 1983. nos seus membros. Ele pretende explicar os motivos pelos quais estes
GREEN, F. C., Jean-Jacques Rousseau: A Study of His Life and Writings, Cambridge, 1955. males e vícios aparecem e descrever em On the Social Contract a con-
GRIMSLEY, Ronald, The Philosophy of Rousseau, Oxford, 1973. textualização básica de um mundo político e social em que não esta-
LOVEJOY, Arthur O., Essays in the History of Ideas, John Hopkins, 1948. Contém «The
Supposed Primitivism of Rousseau's Discourse on Inequality».
riam presentes.
MASTERS, Roger, Rousseau, Princeton, 1968. Este texto esboça os princípios de direito político que devem ser
MILLER, James, Rousseau: Dreamer of Democracy, Yale, 1984. postos em prática em instituições se quisermos ter uma sociedade
NEUHOUSER, Frederick, «Freedom, Dependence, and the General Will», Philosophical justa e viável, estável e razoavelmente feliz. Eu sugeri que ao dizer
Review, julho de 1993. que a natureza humana é boa e que é através das instituições sociais
SHKLAR, J. N., Men and Citizens, Cambridge UP, 1969.
que nos tornamos maus Rousseau chega às duas proposições que se
seguem:
Primeiro, as instituições sociais e as condições de vida social
exercem uma influência predominante sobre as quais as propen-
sões humanas se desenvolvem e expressam ao longo do tempo.
Algumas propensões são boas, outras más; e as que são estimula-
das e se manifestam dependem das condições sociais;

254 255
Segundo, há pelo menos a possibilidade de haver um esquema 2) Que instituições sociais e políticas põem em prática e com efi-
razoavelmente viável de instituições políticas que tanto satisfaz os ciência estes princípios, para além de manterem a sociedade está-
princípios de direito político como os requisitos para a estabilidade vel ao longo do tempo?
e a felicidade humana. Assim, a nossa natureza é boa na medida 3) De que formas as pessoas aprendem princípios de direito e
em que permite a existência desse mundo social. adquirem motivação para agir em conformidade, para além de
afirmarem a conceção política a que pertencem?
2. Atentemos mais uma vez no parágrafo de abertura da introdu- 4) Como poderá ter lugar uma sociedade que realiza estes princípios
ção do Livro I do On the Social Contract: «Quero perguntar se pode de direito e justiça e como é que tem lugar em alguns casos reais,
haver uma regra de administração legítima e fiável na ordem civil, no caso de existirem?
entendendo os homens como são e as leis como podem ser. Irei tentar
sempre conciliar nesta pesquisa o que o direito permite com o que o Passo a interpretar agora a ideia de compacto social conforme a
interesse prescreve, para que a justiça e a utilidade não estejam em abordagem às duas primeiras questões. Ao examiná-lo parto de um
desacordo.» O facto de Rousseau considerar o seu raciocínio tão rea- estado continuamente hipotético e constante em que a sociedade do
lista quanto possível é ilustrado quando diz que entende os homens compacto social se realiza por completo e equilibradamente. As insti-
como são e as leis como podem ser. Para assegurar tanto a estabilidade tuições sociais e as leis podem mudar de tempos a tempos, mas a sua
como a felicidade, deve haver um determinado ajuste entre o que o estrutura básica permanece correta e justa. Façamos então a primeira
direito permite e o que o interesse prescreve. De outro modo o justo e pergunta: quais são os princípios de direito nesta sociedade? Numa
o útil entrarão em conflito, o que acaba por inviabilizar um regime frase, a resposta é: eles devem expressar os termos do compacto social.
estável e legítimo. Teremos oportunidade de a explorar mais tarde.
Note-se que há uma ambiguidade no que Rousseau diz acerca dos Coloquemos agora a segunda questão: que instituições políticas e
homens. Certamente que não considera as pessoas tal como as vê sociais põem em prática com eficiência estes princípios e mantêm
agora, com todos os vícios e hábitos de uma civilização corrupta (con- estável a sociedade ao longo do tempo? A resposta é: alguns aspetos
forme descrição em The Second Discourse ). Na verdade, vê os seres gerais da estrutura básica da sociedade política necessária para satis-
humanos como são de acordo com os princípios básicos e propensões fazer os termos do compacto social. Um exemplo é como a estrutura
da natureza humana. Estes últimos são aqueles cuja referência nos básica obtém três aspetos básicos de igualdade, a saber: como é que
permite explicar os tipos de virtudes e vícios, objetivos e aspirações, sustenta uma posição igual e respeito por todos os cidadãos; como é
finalidades e desejos - em suma, o tipo de caráter - que as pessoas que faz cumprir a lei aplicando-a a todos e resultando deles todos; e
têm sob diferentes condições sociais. Incluem coisas como a capaci- como é que salvaguarda uma igualdade material suficientemente igual1.
dade de livre arbítrio (identificar razões válidas e agir de acordo com Devemos dizer o que estas coisas significam.
elas) e de aperfeiçoamento (o potencial para melhorar por si próprio
com o desenvolvimento histórico das nossas faculdades através da
cultura). Aspetos psicológicos básicos da nossa natureza também § 2. O COMPACTO SOCIAL
incluem amour de sai e amour-propre, em que este último é entendido
segundo a visão alargada de Kant. 1. Debrucemo-nos agora sobre a ideia de compacto social, que,
3. Na discussão de qualquer conceção política com o seu con- segundo Rousseau, é o ato através do qual as pessoas se tornam um
ceito de direito e justiça há que distinguir quatro questões, nomea- povo (SC, 1:5.2.). Mais tarde irei relacioná-lo com a ideia de vontade
damente: geral (e as suas várias noções adjacentes, tais como o bem comum e o
1) A conceção aborda os princípios verdadeiros ou os razoáveis de
direito político e justiça; e como se estabelece a retidão destes 1 Frederick Neuhouser no seu «Freedom, Dependence, and the General Will» cita estes
princípios? três aspetos de igualdade. Ver pp. 386-391.

256 257
interesse comum), e com as ideias de soberania e leis políticas funda- mos da cooperação social que se refletem em instituições políticas e
mentais. Antes de fazer isto, contudo, repare-se que nos capítulos 2-5 sociais. Apresento a explicação deste autor sobre o compacto social
do Livro 1 de On the Social Contract Rousseau argumenta a partir de fazendo quatro suposições2.
casos que, seguindo bastante o que Locke faz, a autoridade política deve Estas são implícitas na forma como concebe as caraterísticas gerais
basear-se num compacto social. Paralelamente, argumenta que o direito do compacto e as condições em que assenta.
político deve basear-se na convenção e nem a autoridade paternal Primeira suposição: quem coopera pretende fazer avançar os seus
nem o direito dos mais fortes nem o direito do vencedor numa guerra é interesses fundamentais - o seu bem razoável e racional tal como o
suficiente para a autoridade política. Tal como diz o título do capí- veem. Dois destes interesses relacionam-se com o amor do eu nas suas
tulo 5, «é sempre necessário regressar a uma primeira convenção» - um duas formas naturais, amour de soi e amour propre.
1
compacto social. Como amour de soi o amor do eu não só se interessa pelos modos de
Nestes argumentos por casos encontra-se implícito o pensamento, bem-estar de vários tipos, como também inclui o interesse em desen-
segundo Locke, de que sendo todas as pessoas reis por igual (Second volver e exercer os dois potenciais que nós humanos temos no estado
Treatise, <ff 123 ), ficamos sujeitos a uma autoridade política apenas se de natureza e que os animais não têm. Um deles é a capacidade de ter
surgiu, ou podia convenientemente aparecer, com o nosso consenti- livre arbítrio, logo a capacidade de agir à luz de razões válidas (SD,
mento enquanto livres e iguais, bem como razoáveis e racionais. Cada 113 e segs.); o outro é a capacidade de aperfeiçoamento e autoprogresso
base de autoridade alternativa, quando examinada, passa a depender através do desenvolvimento das nossas faculdades, bem como da
da nossa falta de uma ou mais das três condições essenciais para haver nossa participação na cultura à medida que se desenvolve ao longo do
consentimento obrigatório: isto é, ou nos falta a capacidade, ou a opor- tempo (SD, 114 e segs.).
tunidade, ou a devida vontade exigida por consentimento obrigatório. A estes podíamos adicionar a nossa capacidade para pensamento
Por exemplo, como Rousseau explica em On the Social Contract: intelectual (não simplesmente imagens) (SD, 119-126), a nossa capaci-
a) Menores antes da idade da razão ainda não são completamente dade para atitudes e emoções morais (SD, 134-137), e a nossa capacidade
razoáveis e racionais, por isso pais ou tutores devem agir em para nos identificarmos com outros (piedade e compaixão de acordo
seu nome até atingirem a maioridade (SC, 1:2.1 e segs.). com as circunstâncias) (SD, 131 e segs.).
b) Os vencidos numa guerra perdem a oportunidade de dar o Recordando o que disse na última palestra, o amor do eu, como
seu consentimento livre; os sinais de consentimento, mesmo amour-propre na sua forma natural, é a nossa necessidade que outros
dados, nessas circunstâncias são forçados e não podem obri- encontrem em nós uma posição segura, ou estatuto, enquanto membros
gar. A autopreservação leva-os a obedecer e poderão voltar a iguais do nosso grupo social. Esta posição significa que na base das
agir como lhes aprouver quando o vencedor perder o poder. nossas necessidades e carências outros veem-nos no direito de fazer
É absurdo pensar que o direito começa e acaba tal como a reivindicações que eles irão reconhecer como limites impostos na sua
força (SC, 1:3); conduta, tendo em conta, obviamente, que as nossas reivindicações
e) Os escravos «perdem tudo nas correntes, até o desejo de se satisfaçam determinadas condições de reciprocidade. Movidos por esta
verem livres delas» (SC, 1:2.8), e portanto não têm capacidade forma natural de amour-propre, estamos prontos a conferir, em com-
nem vontade de dar o seu livre consentimento. Mas as pessoas pensação, a mesma posição a outros, e, portanto, a honrar os limites
não são escravas por natureza: é a sujeição à força que faz de que nos são impostos pelas suas necessidades e reivindicações.
um homem escravo, e é a falta de vontade (cobardia) resul- 3. Segunda suposição: as pessoas que cooperam devem fazer avan-
tante da escravatura que mantém o escravo em cativeiro (SC, çar os seus interesses sob as condições de interdependência social com
1:4). outros. Aqui Rousseau supõe que as pessoas atingiram historicamente

2. Passemos agora ao nosso tema principal: o compacto social con- 2 Estas suposições baseiam-se no artigo de Joshua Cohen, «Reflections on Rousseau:
forme Rousseau o expõe no SC, 1:6. Este compacto especifica os ter- Autonomy and Democracy,» Philosophy and Public Affairs, verão de 1986, pp. 276:279.

258 259
o ponto em que a cooperação social na forma de instituições políticas para compreender, aplicar e agir a partir dos princípios do compacto
e sociais é tão necessária como mutuamente vantajosa. A interdepen- social. Isto resulta da terceira suposição acima descrita, dado o que
dência social faz agora parte da nossa condição (SC, 1:6.1). Rousseau diz no SC, 1:8.1 acerca da passagem do estado de natureza
Mas esta dependência não deve ser tomada por dependência pes- para um estado civil provocando «uma mudança assinalável no homem,
soal da vontade de outros. Rousseau pensa que esta forma de depen- substituindo justiça por instinto no seu comportamento e conferindo
dência, tal como a conhecemos de The Second Discourse, é largamente às suas ações a moralidade que lhes faltava anteriormente».
responsável pelo desenvolvimento do amour-propre não natural, ou Do que dissemos na segunda suposição acerca de interdependên-
pervertido, conforme é exposto na vontade para dominar e subjugar cia social torna-se evidente que Rousseau não julga que o compacto
outros, e nos outros vícios da civilização. social seja feito num estado de natureza, ou mesmo num estado de
Esta segunda suposição merece um comentário: Rousseau nunca sociedade primitiva. É parcialmente por esta razão que consideramos
julga que possamos ser independentes de outros seres humanos. Parte que o compacto só aborda as primeiras duas questões destacadas
do princípio que estamos sempre sujeitos à sociedade de alguma forma acima em§ 1.3.
e que não conseguimos viver sem ela. Também esclarece, tanto em 5. Com estas quatro suposições, e segundo Rousseau, o problema
The Second Discourse como em On the Social Contract, que não seria bom fundamental passa a ser (SC, 1:6.4):
para nós não estar em sociedade: é apenas nalguma forma social ade-
quada que a nossa natureza poderá atingir expressão e fruição total (SC, i) Como «encontrar uma forma de associação que defenda e pro-
1:8.1 ). O compacto social não nos torna independentes da sociedade. teja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força
Vai-nos fazer totalmente dependentes da sociedade como um todo, comum».
como um corpo coletivo. Somos independentes de todos os outros
cidadãos particulares enquanto indivíduos, mas somos inteiramente E, todavia, ao mesmo tempo nesta forma de associação:
dependentes da cidade (polis), como diz Rousseau (SC, 2:12.3). ii) «[ ... ] cada um, unido a todos, só obedece, contudo, a si próprio
Não é apenas o facto de se viver fora da sociedade que não é exe- e permanece livre como dantes.»
quível para nós; ou que não conseguimos regressar ao período dos
seres humanos primitivos antes de aparecer a sociedade - ao de um Este é o problema cuja solução será o contrato social.
bruto preguiçoso, indolente e inofensivo. Na verdade, a vida não é Sem sacrificar a nossa liberdade, o problema é como nos associamos
adequada à nossa natureza detentora de livre arbítrio e capacidade de a outros para assegurar a realização dos nossos interesses fundamen-
aperfeiçoamento, e muito mais (SD, 102). Voltaire disse que quando leu tais e garantir as condições para o desenvolvimento e exercício das
The Second Discourse estava tentado a andar sobre os quatro membros. nossas capacidades (SC, 1.8.1). Rousseau tenta resolver o problema do
É uma graça agradável, mas ele devia ter lido o livro com mais cuidado. seguinte modo: perante o facto de interdependência social, e a neces-
4. Terceira suposição: todas as pessoas têm igual capacidade e sidade e possibilidade de haver cooperação social mutuamente vanta-
interessam-se pela sua liberdade, ou seja, têm capacidade tanto para o josa, a forma de associação será tal que seria razoável e racional para
livre arbítrio e para agirem à luz de razões válidas como para se inte- pessoas iguais, movidas por ambas as formas de amor do eu, concordar
ressarem por agir de acordo com os seus próprios julgamentos quanto com ela.
ao que pensam ser melhor em virtude dos objetivos e interesses parti- Partindo das suposições anteriores, Rousseau pensa que os artigos
culares que mais os movem. Em suma, tanto temos igual capacidade do compacto social são: «Tão completamente determinadas pela natu-
para ajuizar o que de melhor promove o nosso bem tal como o vemos e reza do ato [condições e situação do contrato social] que a mais pequena
igual desejo de agir sobre este juízo. Esta suposição torna explícito o modificação torná-los-ia [esses artigos] inválidos e vazios» (SC, 1:6.5).
que dissemos acima sobre o que pode ser incluído em amour de sai. Julgo que com isto Rousseau quer dizer que tendo declarado cla-
Quarta suposição: todas as pessoas têm igual capacidade para um ramente o problema do compacto social, também é nítido o que deve
sentido político de justiça e para se interessarem por agir em confor- ser a forma geral de associação política e social. Visto pensar que os
midade. Este sentido de justiça é considerado como uma capacidade artigos do compacto social são idênticos em todo o lado, logo tacita-

260 261
mente assumidos e reconhecidos, também deve pensar que o problema compacto social, já não temos direitos válidos contra a própria socie-
do compacto social é compreendido pela nossa razão humana comum. dade, visto que o compacto é devidamente formado e totalmente
Rousseau diz ainda que, quando devidamente entendidos, os arti- honrado. Não há nenhuma autoridade superior a que possamos
gos de associação se reduzem a uma única cláusula: «a alienação total recorrer para julgar entre nós e a sociedade política do compacto
de cada associado, com todos os seus direitos, para a comunidade in- social. Reivindicar isto seria continuarmos no estado de natureza,
teira» (SC, 1:6.6). logo fora da legítima sociedade política que o compacto estabelece.
6. Rousseau faz três comentários a esta afirmação: Os termos desse compacto devidamente realizado e totalmente hon-
Primeiro (SC, 1:6.6): diz que nos oferecemos à sociedade absoluta- rado constituem o tribunal de última instância (SC, 1:6.7).
mente como um todo (sem qualificação), e as condições a que nos sujei- Aqui é essencial recordar que o compacto social é uma resposta à
tamos são iguais para todos. Por esta razão «ninguém tem interesse em primeira questão que assinalámos antes, nomeadamente: quais são os
tornar [estas condições] pesadas para os outros.» Apesar de nos com- princípios corretos do direito político? Não há nenhum paradoxo,
prometermos totalmente com os artigos acordados, o âmbito desses arti- então, em dizer, tal como interpreto Rousseau, que não há nenhuma
gos não é completamente abrangente: não implica uma regulação com autoridade superior, a que possamos recorrer, aos termos do próprio
tudo incluído de vida social. O nosso amor do eu (nas suas duas for- compacto social, partindo do pressuposto, como sempre, que é devi-
mas) evita isto, tal como o nosso interesse pela nossa liberdade em fazer damente formado e inteiramente honrado.
avançar as nossas finalidades particulares como melhor julgamos, O terceiro (e último) comentário de Rousseau é que: «como cada
sendo sempre pessoalmente independentes, no sentido de não depen- um se dá a todos, também não se dá a ninguém; e como não há um
der de nenhuma pessoa em especial. Assim, as leis gerais que especifi- associado sobre o qual se adquira o mesmo direito que lhe é conferido
cam o compacto social devem impor restrições sobre a liberdade civil sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo quanto se perde.» De
como necessidade para fazer progredir o bem comum de modo a pre- facto, ainda conseguimos melhor: por enquanto a nossa vida e meios
servar o devido âmbito para a liberdade individual (SC, 1:6.4). de subsistência são protegidos pela força unida de toda a comuni-
No SC, 1:8.2, Rousseau menciona três formas de liberdade na ordem dade (SC, 1:6.8).
que se segue: natural, civil e moral. Perdemos a liberdade natural, isto Deste modo, isto estabelece a nossa independência pessoal. Porquê?
é, o direito a ter tudo o que queremos e podemos ter, só limitado pela Ganhamos os mesmos direitos sobre outros tal como eles ganham sobre
força do indivíduo, através do compacto social. Em compensação ga- nós, e temo-lo feito concordando com uma troca de direitos, por razões
nhamos «liberdade civil e a posse de tudo o que ele [homem] detém» enraizadas nos nossos interesses fundamentais, incluindo o interesse
que é só limitada pela vontade geral. E em compensação também ga- na nossa liberdade. Já não somos dependentes das vontades particula-
nhamos liberdade moral. Por si só, esta última faz-nos ser senhores res e arbitrárias de outras pessoas específicas. Com The Second Discourse
de nós próprios: «Porque o impulso do apetite é apenas a escravatura, sabemos que Rousseau pensa que este tipo de dependência deve ser
e a obediência à lei que nos prescrevemos a nós próprios é a liberdade» evitado: corrompe a nossa capacidade de aperfeiçoamento e as formas
(SC, 1:8.3). não naturais de amour-propre - a vontade de dominar ou o servilismo
A questão em causa neste ponto é que as instituições da sociedade adulador encontrado numa sociedade marcada por desigualdades
do compacto social devem ordenar as nossas relações de dependência injustificáveis.
sobre a sociedade como um todo e as nossas relações de uns para com Cada um de nós é, obviamente, dependente da sociedade política
os outros para que tanto a nossa liberdade moral como a nossa liber- como um todo. Mas na sociedade do compacto social cada um é um
dade civil sejam, se possível, totalmente alcançadas. cidadão igual e não está sujeito à vontade ou autoridade arbitrária de
7. O segundo comentário de Rousseau é feito ao elaborar os artigos ninguém. Mais ainda, como iremos ver, há um compromisso público
de associação. Ele diz que em virtude de a alienação de nós próprios de estabelecer uma igualdade de condições entre cidadãos que assegure
relativamente a toda a sociedade ser incondicional, a união social é tão a sua independência pessoal. Faz parte da psicologia moral de
perfeita quanto possível. O seu argumento é que, como partes do Rousseau que o nosso amour-propre natural e caraterístico exija que. seja-

262 263
mos pessoalmente independentes e que haja um compromisso público Rousseau, dadas as condições que ele impõe no compacto. Uma forma
para com uma igualdade de condições que garanta essa independência. de o fazer é tentar descobrir como é que ele compreende a vontade
8. Finalmente, Rousseau dá outra definição de compacto social geral4 .
reduzido ao essencial: «Cada um de nós põe a sua pessoa e todo o seu Este termo ocorre cerca de setenta vezes em On the Social Contract
poder em comum sob a direção suprema da vontade geral; e num (incluindo referências através de pronomes). A primeira ocorrência foi
corpo aceitamos cada membro como uma parte indivisível do todo» assinalada acima e em jeito de repetição: «Cada um de nós dá [à comu-
(SC, 1:6.9). nidade] a sua pessoa e todo o seu poder em comum sob a direção
Esta é a primeira ocorrência em On the Social Contract do termo «a suprema da vontade geral; e num corpo aceitamos cada membro como
vontade geral» («la volonté générale» ). É essencial compreender o seu uma parte indivisível do todo» (SC, 1:6.9).
'! 1
significado e o modo como se relaciona com as outras ideias básicas Assim, o que promove a justificação de autoridade política na
de Rousseau. Por isso passo a debruçar-me sobre ela. sociedade em matéria de justiça política - uma autoridade exercida
Em primeiro lugar, contudo, vamos analisar alguns dos termos através do voto da assembleia do povo - é de boa-fé das expres-
definidos no SC, 1:6.10: com o contrato social passa a existir uma pes- sões da vontade geral. Esta última é devidamente expressa em leis
soa pública, na época clássica designada de pólis, agora república, ou políticas fundamentais relativamente a essenciais constitucionais e
pessoa política. Este último é artificial e coletivo com tantos membros à justiça básica, ou em leis devidamente estabelecidas para além
quantos os eleitores na assembleia, a qual inclui todo o povo, todos os disso. As leis fundamentais são legítimas em virtude de serem ex-
cidadãos3. pressões de boa-fé da vontade geral. Como é que vamos com-
No seu papel ativo (de criação de uma lei básica, por exemplo), a preender esta ideia?
pessoa política é chamada de Soberano; no passivo, de Estado; quando 2. Para começar: cada indivíduo incorporado numa sociedade
referido em relação a outras pessoas semelhantes, é designada de política tem interesses particulares (SC, 1:7.7). Dentro dos limites da
Poder; tal como nos referimos aos principais estados europeus como liberdade civil (estabelecidos pelo compacto social), estes interesses
«as grandes potências da Europa». são a base de razões válidas para agir. Cada um de nós tem, portanto,
Associadas pelo contrato social, essas pessoas são designadas de uma vontade privada ou particular. Por vontade eu entendo que Rous-
o povo quando consideradas em termos coletivos. Individualmente, seau queira dizer a capacidade para razão deliberativa: trata-se da
como as que partilham (igualmente) o poder soberano, são cidadãos; capacidade para o livre arbítrio de The Second Discourse. Um aspeto
são súbditos na medida em que se submetem às leis do estado. Apesar desta capacidade revela-se na nossa tomada de decisões à luz de razões
de Rousseau não o dizer no SC, 1:6.10, é claramente a sua visão que os relacionadas com os nossos interesses particulares. Estas decisões são
cidadãos partilhem de igual modo o poder soberano e devemos subli- expressões da nossa vontade particular.
nhá-la visto que a distingue da de Locke. Repare-se que a existência de interesses particulares é um dado
adquirido. A sociedade do contrato social é uma em que as pessoas
têm interesses separados dos da sociedade política, ou interesses dis-
tintos ou por vezes contrários à vontade geral e ao bem comum.
§ 3. A VONTADE GERAL
3. Para Rousseau a sociedade do compacto social não é uma mera
agregação de pessoas. Na verdade, uma condição essencial dessa socie-
1. O que dissemos até agora acerca do compacto social é extrema-
mente geral e pouco claro. Para obtermos uma visão mais esclarecida,
analisemos a natureza da associação a que se pertenceria, segundo 4 A ideia de vontade geral tem uma longa história. Ver Judith Shklar, Men and Citizens,
Cambridge: Cambridge University Press, 1969, pp. 168-169 e 184-197. Ver também
o seu artigo sobre o mesmo tema em Dictionary of the History of Ideas, ed. P. Weiner,
3 Assinale-se, contudo, que para Rousseau a assembleia não incluía mulheres. Elas não Nova Iorque: Scribner's, 1973, vol. 2, pp. 275-281; e Patrick Riley, The General Will
eram consideradas cidadãs ativas; para ele, o seu lugar era em casa. Before Rousseau, Princeton: Princeton University Press, 1986.

264 265
dade é que os seus membros têm o que Rousseau chama de vontade Isto conduz-nos à terceira questão: o que torna possível o bem
geral. Vou agora colocar cinco questões acerca disto: comum? Conforme afirmado, a vontade geral deseja o bem comum,
1) Qual é a vontade geral da vontade? mas este último é especificado pelo nosso interesse comum. Por bem
2) O que irá querer a vontade geral? comum entenda-se as condições sociais que tornam possível, ou per-
3) O que torna possível o bem comum? mitem, que os cidadãos alcancem os interesses comuns. Deste modo,
4) O que concretiza os interesses comuns? sem interesses comuns não haveria bem comum, logo a vontade geral
5) O que determina os nossos interesses fundamentais? não existiria. Vejamos no SC, 2:1.1: «A primeira e principal consequên-
cia dos princípios estabelecidos acima é que a vontade geral consegue
Como resposta à primeira pergunta: qual é a vontade geral da sozinha orientar as forças do Estado de acordo com a finalidade para
vontade? É a vontade que todos os cidadãos têm como membros que foi instituído, que é o bem comum. Se a oposição de interesses pri-
da sociedade política do compacto social. É uma vontade distinta da vados tornasse necessário o estabelecimento de sociedades, é o acordo
vontade privada que cada um também tem enquanto pessoa parti- destes mesmos interesses que o concretizaria. O que estes diferentes
cular (SC, 1:7.7). interesses têm em comum é que forma o vínculo social, e se não hou-
Para responder à segunda pergunta: o que irá querer a vontade vesse nenhum ponto de acordo entre todos eles, sociedade alguma
geral?: dizemos que, como membros da sociedade política, os cidadãos existiria. É unicamente na base deste interesse comum que a sociedade
partilham uma conceção do seu bem comum (SC, 4:1.1). Ao partilharem deve ser governada.»
tal conceção é por si só conhecimento público entre eles. Poderíamos Note-se que são os nossos interesses comuns que criam o vínculo so-
dizer: quando todos os cidadãos se orientam mental e comportamental- cial e concretizam a nossa vontade geral. Isto confirma o que dissemos
mente de modo razoável e racional tal como é exigido pelo compacto anteriormente: nomeadamente, que a vontade geral não é a vontade
social, a vontade geral de cada cidadão quer o bem comum, conforme de uma entidade que transcende os cidadãos enquanto indivíduos.
especificado pela sua conceção partilhada desse bem comum. Porque a vontade geral cessa ou morre quando os interesses dos cida-
Note-se que a vontade geral não é, certamente, a vontade de uma dãos mudam no sentido de já não terem interesses fundamentais em
entidade que de algum modo transcende os membros da sociedade. comum. A vontade geral depende desses interesses.
Não é, digamos, a vontade da sociedade como um todo (SC, 1:7.5; A quarta questão é: o que concretiza os interesses comuns que
2:4.1). São os cidadãos individuais que têm uma vontade geral: ou seja, especificam o bem comum? São os nossos interesses fundamentais tal
cada um tem a capacidade de razão deliberativa que, em ocasiões como os descrevemos sob as nossas suposições iniciais, por exemplo,
apropriadas, os leva a decidir o que fazer - como votar, por exemplo - a primeira em que os agrupámos sob amour de sai e amour-propre. Tam-
baseando-se no que cada um pensa ser melhor para promover o seu bém há interesses fundamentais tendo em conta a nossa situação social
interesse comum no que for necessário para a sua preservação comum e comum e duradoura: por exemplo, o facto de a nossa situação ser de
bem-estar geral, isto é, o bem comum (SC, 1:7.7). Por outras palavras, interdependência social e de a cooperação social mutuamente vanta-
a vontade geral é uma forma de razão deliberativa que cada cidadão josa ser tanto necessária quanto possível.
partilha com todos os outros em virtude de partilharem uma conce- Estamos agora perante a quinta questão: o que determina os nos-
ção do seu bem comum. sos interesses fundamentais (comuns)? A resposta é a conceção da
O que os cidadãos pensam que melhor promove este bem comum natureza humana e dos interesses e capacidades fundamentais essen-
identifica o que consideram ser boas razões para as suas decisões polí- ciais ou apropriados a ela que Rousseau defende. Ou poderíamos dizer:
ticas. Cada forma de razão deliberativa e de vontade deve ter o seu é a sua conceção da pessoa considerada nos seus aspetos primordiais.
modo de identificar razões válidas. Assim, como membros da assem- Esta conceção é, creio, normativa e dela resulta a enumeração dos
bleia, enquanto cidadãos, não podemos votar os nossos interesses par- nossos interesses fundamentais. Segundo o que afirmámos anterior-
ticulares ou privados como gostaríamos, mas expressar a nossa opinião mente, Rousseau não encara as pessoas tal como elas realmente se
sobre qual das medidas gerais apresentadas como alternativas melhor apresentam numa sociedade marcada por extremos de desigualdade
promove o bem comum (SC, 4:1.6; 4:2.8). entre ricos e pobres, fortes e fracos, tendo como resultado o mal de, do-

266 267
minação e sujeição. Ele considera os seres humanos como eles são por que melhor promove o bem comum. Trata-se talvez de uma conceção
natureza, vistos à luz da sua conceção. A natureza determina os nos- de voto muito diferente daquela que conhecemos melhor: que pode-
sos interesses fundamentais. mos sempre votar os nossos interesses particulares. Mas aceitar a visão
Sublinhe-se aqui o que é comum às doutrinas do contrato social, de Rousseau é tê-los como obstáculos ao voto consciencioso; põem-se
nomeadamente uma normalização de interesses atribuídos às partes no caminho de uma visão fundamentada do bem comum, pois este
dos contratos. Em Hobbes, são os nossos interesses fundamentais último satisfaz os interesses fundamentais partilhados por todos os
em autopreservação, afetos conjugais e «riquezas e condições para cidadãos.
uma vida confortável». Em Locke são vidas, liberdades e proprieda- Deste modo percebemos porque é que Rousseau diz coisas como:
des. Em Rousseau são os interesses fundamentais que examinámos. A vontade geral só considera o interesse comum. A vontade geral é o
Supostamente todos terão estes interesses aproximadamente da que resta depois de retirar das vontades privadas as vantagens e des-
mesma forma, e ordenam-nos do mesmo modo enquanto razoáveis vantagens que se anulam. Interpreto-as como os vários interesses
e racionais. privados e particulares que nos influenciam de uma forma ou de
4. Esta interpretação do pensamento de Rousseau talvez tenha deri- outra. Mesmo quando somos conscienciosos e tencionamos votar a
vado do que ele diz acerca da vontade geral no se, 2:3: . nossa opinião quanto ao que melhor promove o bem comum, pode-
mos não nos aperceber da influência dos nossos interesses particula-
2:3.1. A vontade geral está sempre correta e tende sempre para o
res.
bem público.
Rousseau diz que o maior número de pequenas diferenças, isto é,
2:3.2. Há por vezes uma grande diferença entre a vontade de
o maior número de pequenas influências, irão muito provavelmente
todos e a vontade geral.
convergir na vontade geral. Por isso, se as pessoas se informarem
2:3.2. A vontade geral só considera o interesse comum, enquanto a
devidamente e votarem a sua própria opinião, o voto geral será muito
vontade de todos considera o interesse privado e não é senão a soma
possivelmente correto. O que ele poderá ter em mente é que cada
das vontades privadas.
voto informado e consciencioso pode ser visto como uma amostra da
2:3.2. A vontade geral é o que resta depois de retirar das vontades
verdade com uma probabilidade consideravelmente superior a 50 / 50
privadas as vantagens e as desvantagens que se anulam e de aceitar a
de ser correta. Por conseguinte, à medida que aumenta o número des-
soma destas vontades modificadas por essas subtrações.
sas amostras (quando mais cidadãos bem informados votam cons-
2:3.3. O grande número de pequenas diferenças irá convergir na
cienciosamente), aumenta a probabilidade de o resultado da eleição
vontade geral e a decisão será sempre boa, considerando que as pes-
convergir no que realmente promove o bem comums.
soas estão devidamente informadas e não comunicam entre elas.
5. Façamos uma breve recapitulação das respostas às cinco ques-
2:3.3. Quando um grupo domina em sociedade, já não há vontade
tões:
geral.
2:3.4. Para a vontade geral ser bem expressa, não deverá haver 1) A vontade geral é uma forma de razão deliberativa partilhada e
associações seccionais no estado e cada cidadão deverá decidir por si exercida por cada cidadão enquanto membro da pessoa jurídica
próprio. coletiva, ou da pessoa pública (pessoa política), que passa a exis-
2:3.4. Se existirem associações seccionais, então para esclarecer tir com o compacto social (SC, 1:6.10);
a vontade geral será necessário multiplicar o seu número e evitar a
desigualdade entre elas.
5 É certo que para esta interpretação funcionar devemos assumir que as amostras são
independentes umas das outras. Caso contrário a lei Bernoulli de grandes números
Estas afirmações podem ser interpretadas de várias formas. A minha não se aplica. Talvez seja este o motivo pelo qual Rousseau diz que os cidadãos não
leitura é que os nossos interesses particulares poderão provavelmente deveriam comunicar entre si. Mas, de qualquer modo, a analogia parece ser bastante
condicionar o nosso voto, e isto acontece mesmo quando, com a melhor rebuscada. É discutida por K. J. Arrow, Social Choice and Individual Values, 2.ª ed., New
das intenções, tentamos ignorá-los e votar a nossa opinião quanto ao Haven: Yale University Press, 1986, pp. 85 e segs.

268 269
2) A vontade geral deseja o bem comum, entendido como condi-
ções sociais que fazem com que os cidadãos concretizem os
seus interesses comuns;
3) São os nossos interesses comuns que tornam possível o bem
comum;
4) São os nossos interesses fundamentais partilhados que concreti- ROUSSEAU III
zam os nossos interesses comuns;
5) O que determina os nossos interesses fundamentais é a nossa VONTADE GERAL (II)
natureza humana comum (tal como Rousseau a concebe) e os
interesses fundamentais e capacidades adequados a ela ou, E QUESTÃO DE ESTABILIDADE
alternativamente, a conceção de pessoa enquanto ideia norma-
tiva defendida por este autor.

Tendo respondido à quinta pergunta, alargámos a explicação for-


mal da vontade geral e o que a concretiza tanto quanto possível. A ex-
plicação formal diz respeito à relação da vontade geral com essas ideias § 1. O PONTO DE VISTA DA VONTADE GERAL
formais como bem comum, interesses comuns, interesses fundamen-
tais e com uma conceção de natureza humana6. 1. As cinco questões acerca da vontade geral que analisámos até
Na próxima ocasião irei analisar mais cinco questões relativas à agora têm, tal como indiquei, uma qualidade formal abstrata. O que
vontade geral. Ser capaz de lhes dar resposta é um bom teste à nossa continua em falta é o conteúdo da vontade geral: ou seja, os princípios
capacidade de compreensão relativamente à ideia da vontade geral. e valores políticos específicos, e as condições sociais que a vontade geral
Apesar de algumas referências à vontade geral em On the Social Con- deseja e exige que se concretizem na estrutura básica.
tract serem obscuras, creio que a própria ideia pode ser esclarecida, e os As respostas às próximas cinco perguntas irão esclarecer alguns des-
principais aspetos mencionados por Rousseau acerca dela são consis- tes aspetos:
tentes e muito pertinentes.
6) Qual é o ponto de vista da vontade geral?
7) Porque é que a vontade geral deve partir de todos e aplicar-se
a todos para ser legítima?
8) Qual é a relação entre vontade geral e justiça?
9) Por que razão a vontade geral se dedica à igualdade?
10) Como é que a vontade geral se relaciona com a liberdade civil
e moral?

As respostas a estas perguntas dizem-nos muito acerca do conteúdo


6 Em jeito de comentário, não coloco nenhuma objeção ao facto de chamar a nossa da vontade geral. Como iremos ver, a última é especialmente impor-
natureza humana com interesses fundamentais adequados a ela «a essência da natu- tante. Compreendê-la corretamente é a chave para compreender o
reza humana». Só é censurável quando pensamos que ao dizê-lo estamos a acres- inteiro poder do pensamento de Rousseau.
centar mais fundamentação, ou alguma justificação mais profunda (ou metafísica)
2. Começamos com a sexta pergunta: qual é o ponto de vista da
do que já dissemos. Como alternativa diria que no caso da visão de Rousseau cobrir
tudo o que pensamos refletidamente, o sentido de podermos ajuizar e reivindicar vontade geral? Para Rousseau o bem comum (que é especificado pelas
de modo razoável, então basta-se a si própria. Isso é tudo o que pode fazer. Mas não condições sociais que nos são necessárias para atingir os nossos inte-
quer dizer que a sua visão o faça efetivamente. resses comuns) não deve ser explicado em termos utilitários. Ou seja,

270 271
ao desejar o bem comum a vontade geral não deseja as condições Para expressar esta ideia do ponto de vista da vontade geral, dize-
sociais exigidas para atingir a grande felicidade (a maior concretiza- mos que só razões baseadas nos interesses fundamentais que partilha-
ção de todos os vários interesses dos indivíduos) para todos os mem- mos como cidadãos deveriam contar como tal quando agimos como
bros da sociedade. Em Political Economy, Rousseau diz que a máxima membros da assembleia na criação de normas constitucionais ou leis
que o governo «está autorizado a sacrificar um homem inocente pela básicas. Desse ponto de vista, esses interesses fundamentais têm prio-
segurança da multidão» é «uma das mais execráveis que a tirania ridade absoluta sobre os nossos interesses particulares na sua ordem
jamais inventou, a mais falsa que podia ter sido proposta, a mais peri- apropriada de razões. Quando votamos em leis fundamentais, deve-
gosa que podia ter sido aceite e a que mais diretamente se opõe às leis mos dar a nossa opinião relativamente às que melhor estabelecem as
fundamentais da sociedade». E continua: «Em vez daquele que deve condições políticas e sociais que fazem com que todos promovam de
morrer por todos, todos devem usar os bens e a vida pela defesa de igual modo os seus interesses fundamentais.
cada um entre eles, de modo a que a fraqueza privada seja sempre Assinale-se que a ideia de um ponto de vista, tal como é usada nes-
protegida pela força pública, e cada membro pelo Estado inteiro»l. tas observações, é uma de razão deliberativa, e assim tem uma deter-
Neste ponto Rousseau enfatiza que as leis fundamentais da socie- minada estrutura irregular: ou seja, é delineada para considerar certos
dade do compacto social não se devem basear num princípio agrega- tipos de perguntas - acerca das quais as normas constitucionais ou leis
dor. A vontade geral não deseja maximizar a concretização da soma de básicas melhor promovem o bem comum - e apenas admite determi-
todos os diferentes interesses que os indivíduos possuem. Alternativa- nados tipos de razões com alguma importância. Assim, torna-se claro
mente, as leis fundamentais da sociedade só se devem basear em inte- , com isto que a visão de Rousseau contém uma ideia do que chamei de
resses comuns. (Relembrar SC, 2:1.1.) razão pública2.
Vimos que os nossos interesses comuns são conferidos de acordo Tanto quanto sei a ideia surge com ele, apesar de outras versões
com determinados interesses fundamentais. Estes incluem os interes- baseadas nela se encontrarem certamente mais tarde em Kant, que
ses expressos pelas duas formas naturais de amor do eu (amour de sai também é importante nesta ligação.
e amour-propre) bem como os nossos interesses na segurança da nossa
pessoa e propriedade. Mais do que mera posse, a segurança de pro-
priedade é uma das vantagens da sociedade civil (SC, 1 :8.2. ). Também § 2. A VONTADE GERAL: O DOMÍNIO DA LEI,
há os nossos interesses nas condições sociais gerais para o desenvol- JUSTIÇA E IGUALDADE
vimento das nossas capacidades (de livre arbítrio e aperfeiçoamento)
e da nossa liberdade para promover os nossos objetivos conforme o 1. Podemos prosseguir mais facilmente agrupando as três questões
que nos é conveniente no âmbito dos limites da liberdade civil. que se seguem:
3. São estes interesses fundamentais assegurados para cada cida-
dão - e não a maior satisfação dos nossos vários tipos de interesses, 7) Para ser legítima, porque é que a vontade geral tem de partir de
todos e aplicar-se a todos?
tanto fundamentais e particulares - que especificam o nosso bem do
8) Qual é a relação entre vontade geral e justiça?
ponto de vista da vontade geral. Todos nós partilhamos estes interes-
9) Porque é que a vontade geral se dedica à igualdade?
ses fundamentais. O fundamento adequado às leis básicas é que elas
salvaguardam através da cooperação social, em termos acordados por
todos, as condições sociais necessárias para concretizar esses inte- 2 John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, ed. Erin Kelly, Cambridge, Mass.: Har-
resses. vard University Press, 2001, pp. 91 e segs. A razão pública é a forma de raciocínio ade-
quado a cidadãos iguais que enquanto pessoa jurídica coletiva impõem regras entre
si apoiados pelas sanções do poder estatal. Orientações partilhadas para investiga-
1 Ver Jean-Jacques Rousseau, On the Social Contract, with Geneva Manuscript and Política[ ção e métodos de raciocínio tornam essa razão pública, enquanto a liberdade de
Economy, p. 220. expressão e pensamento num regime constitucional tornam essa razão livre.

272 273
O ponto de vista da vontade geral associa estas três perguntas e é sempre legítima e, em virtude da sua, os cidadãos querem a felicidade
mostra como se relacionam entre si3. de cada um. Porque na votação tomam o «cada» por si próprios quando
Mostra porque é que, para ser legítima, deve partir de todos e votam por todos. A vontade geral parte de todos visto que ao adota-
~plicar-se ~ to?os; mostra ~orno se relaciona com a justiça e porque rem o ponto de vista da vontade geral são orientados pelos mesmos
e que se direciona para a igualdade, como Rousseau afirma no SC interesses fundamentais como acontece com qualquer outra pessoa.
2:1.3. Uma parte central da resposta encontra-se no SC, 2:4.5, a saber~ Isto responde à primeira parte da sétima questão.
Também compreendemos porque é que a vontade geral deseja jus-
Os compromissos que nos ligam à pessoa social são obrigató-
tiça. Na passagem citada acima, Rousseau diz (pelo menos na minha
rios só porque são mútuos, e a sua natureza é tal que ao concretizá-
interpretação) que a ideia de justiça, produzida pela vontade geral,
-los estamos a trabalhar tanto para outros como para nós. Porque é
res1:1lta de uma predileção que todos temos por nós próprios, logo
que a vontade geral está sempre correta e porque é que todos que-
denva da natureza humana enquanto tal. Neste ponto é essencial fri-
rem constantemente a felicidade de cada um, se não porque é que
sar que esta predileção só cria a ideia de justiça quando expressa a
não há ninguém que não aplique essa palavra «cada» a si próprio e
partir do ponto de vista da vontade geral. Quando não subordinada
~ão pense em si enquanto vota por todos? O que prova que a
a ele - o ponto de vista da nossa razão deliberativa com a estrutura
igualdade de direitos e o conceito de justiça que produz derivam
pre;iamente delineada - a nossa predileção por nós próprios pode,
da preferência de cada homem por si mesmo e, consequentemente,
obviamente, produzir injustiças e violações de direitos.
da natureza humana; para ser verdadeiramente o que é, a vontade
3. Também compreendemos porque é que a vontade geral deseja
geral deve ser geral tanto no objeto como na essência; deve partir
igualdade: assim é, primeiro devido às caraterísticas do ponto de
de todos e aplicar-se a todos; e perde a sua retidão natural quando
vista peculiar da vontade geral e segundo por causa da natureza dos
dirigida a qualquer objeto preciso e individual. Porque então, a jul-
nossos interesses fundamentais, incluindo o de evitar as condições
gar por aquilo que é estranho para nós, não temos nenhum princí-
sociais de dependência pessoal. Estas condições devem ser evitadas
pio de equidade a orientar-nos.
se o nosso amour-propre e aperfeiçoamento não forem corrompidos
e se não ficarmos sujeitos à vontade e autoridade arbitrárias de outros
2. Trata-se de um parágrafo maravilhoso. Devemos lê-lo cuidadosa-
em particular. Conhecendo a natureza destes interesses fundamen-
mente. É impossível resumi-lo. Rousseau defende que quando exerce-
mos a nossa vontade geral na votação de leis fundamentais da sociedade tais, .ºs c~dadãos votam em leis fundamentais que salvaguardem a
deseJada igualdade de condições ao votarem a sua opinião quanto ao
devemos considerar instituições políticas e sociais básicas. Estas leis fun-
que melhor promove o bem comum.
damentais irão, com efeito, especificar - tornar precisos - os termos da
Rousseau aborda estas considerações sobre igualdade no SC,
cooperação social e dar um conteúdo claro ao compacto social.
2:1~.1-3. Nesta parte diz (2:11.1) que liberdade e igualdade são: «O
Assim sendo, estamos na realidade a votar por todos os membros
ma10r.bem de todos, que devem ser o fim de cada sistema legislativo
da sociedade e ao fazê-lo pensamos em nós e nos nossos interesses
fundamentais. Visto que estamos a votar uma lei fundamental, a von- [... LLib:rdade porque toda a dependência privada (dépendance parti-
tade geral é geral no seu objeto. Ou seja, as leis fundamentais não men-
cultere) e aquela grande força subtraída da pessoa do estado; igual-
dade porque a liberdade não dura sem ela.»
cionam indivíduos ou associações por nome, e devem aplicar-se a todos.
Para Rousseau, na sociedade do compacto social, a liberdade e a
Isto responde à segunda parte da sétima pergunta.
igualdade, quando devidamente entendidas e adequadamente liga-
Para além disso, cada um de nós é orientado pelos nossos interes-
das, não estão em conflito. Assim acontece porque a igualdade é
ses fundamentais, que todos temos em comum. Assim, a vontade geral
n~~essária para ~aver liberdade. A falta de independência pessoal sig-
nifica perda de liberdade, e essa independência exige igualdade. Este
3 D~vemos manter em mente durante os comentários que se seguem que os atos pú- autor considera a igualdade essencial à liberdade e isso, em grande
blicos em que a vontade geral é mais carateristicamente expressa são as promulga- parte, ~ o que a torna essencial. A igualdade não é, contudo, igual-
ções de leis fundamentais ou leis políticas básicas. dade rigorosa: «No que respeita à igualdade, esta palavra não deye

274 275
ser compreendida no sentido de que graus de poder e riqueza devem da vontade geral. Esta última resulta da nossa capacidade de aceitar
ser exatamente os mesmos [para todos], mas alternativamente, no que este ponto de vista apropriado. Ela solicita a nossa capacidade parti-
respeita ao poder, deve ser incapaz de qualquer violência e nunca lhada de razão deliberativa no caso da sociedade política. Como tal, a
empregue exceto em virtude do estatuto [autoridade] e das leis; rela- vontade geral é uma forma do potencial para o livre arbítrio de The
tivamente à riqueza, nenhum cidadão deve ser tão opulento que con- Second Discourse: concretiza-se à medida que os cidadãos em sociedade
siga comprar outro, e nenhum outro tão pobre que se veja obrigado a lutam pelo bem comum a que se dirige. Uma consequência disto é que
vender-se» (SC, 2:11.2). a concretização da nossa liberdade - como total exercício da nossa capa-
Rousseau nega que este grau moderado de desigualdade, que não cidade de livre arbítrio - só se torna possível numa sociedade que reúna
é tão bom por levar à dependência pessoal, sem ser, no entanto, tão determinadas condições na sua estrutura básica. Este é um aspeto
restritivo que faça perder os benefícios da liberdade civil, é uma fan- muito importante e voltaremos a ele mais tarde.
tasia que não pode ser alcançada na prática. Alguns abusos e erros são Percebemos agora porque é que Rousseau julga que as nossas von-
inevitáveis. Mas, diz ele: «[ ... ] não sucede que [a desigualdade] deva tades tendem a coincidir e transformar-se na vontade geral quando
pelo menos ser regulada? É precisamente porque a força das coisas colocamos a nós próprios a questão correta. É claro que se trata ape-
tende sempre para a destruição da igualdade que a força legislativa nas de uma tendência, e não de uma certeza, visto que o nosso conhe-
deve sempre tender para a manter» (SC, 2:11.3). Além disso: «A von- cimento é incompleto e as nossas crenças acerca dos meios adequados
tade particular tenderá, devido à sua própria natureza, para as prefe- poderem diferir razoavelmente. Para além disso, pode haver diferen-
rências e a vontade geral para a igualdade» (SC, 2:1.3). ças razoáveis de opinião em matéria de interpretação - por exemplo,
Esta observação de Rousseau é uma antepassada da primeira razão acerca do nível de pobreza em que as pessoas se vendem por serem
através da qual, em justiça como equidade, a estrutura básica é tida tão pobres e assim perderem a sua independência pessoal.
como o primeiro tema de justiça4.
4. Reunindo estas observações acerca da vontade geral: o ponto de
vista da vontade geral é um ponto de vista que aceitamos quando § 3. A VONTADE GERAL E A LIBERDADE MORAL E CIVIL
votamos a nossa opinião quanto ao que as leis fundamentais melhor
promovem os interesses comuns que estabelecem os laços sociais. 1. Estamos agora perante a décima pergunta: como é que a von-
Visto estas leis serem gerais e aplicarem-se a todos os cidadãos, tere- tade geral se relaciona com a liberdade moral e civil? Rousseau acre-
mos de refletir sobre elas à ·luz dos interesses fundamentais que parti- dita que a sociedade do compacto social alcança nas suas instituições
lhamos com outros. Estes últimos especificam os nossos interesses , políticas e sociais de base tanto a liberdade civil como a moral. O com-
comuns e as condições sociais para conseguir que estes mesmos espe- pacto social fornece as principais condições sociais de fundo para a
cifiquem o bem comum. liberdade civil. Partindo do princípio que as leis fundamentais se ba-
Factos aceites, ou crenças razoáveis, acerca do que melhor pro- seiam devidamente no que é exigido para o bem comum, os cidadãos
move o bem comum constituem a base onde assentam as razões que são livres de seguirem os seus objetivos dentro dos limites estipulados
têm a importância devida nas nossas deliberações do ponto de vista pela vontade geral (SC, 1:8.2.). Isto é bastante acessível.
A questão mais complicada diz respeito à liberdade moral. Na sua
explicação do que ganhamos com a sociedade do compacto social, Rous-
4 Rawls, Justice as Faírness, §§ 3, 4, 15. A estrutura básica de sociedade é a forma na seau diz o seguinte: «Às aquisições anteriores do estado civil poder-
qual as principais instituições políticas e sociais da sociedade se inserem juntas -se-ia acrescentar a liberdade moral, que sozinha, com efeito, faz do
num sistema de cooperação social, e o modo como atribuem direitos e deveres bási-
cos e regulam a divisão de vantagens que resulta da cooperação social ao longo do homem senhor de si mesmo. Porque o impulso do apetite é somente
tempo. Uma estrutura básica justa salvaguarda o que chamamos de justiça contex- escravatura, e a obediência à lei que nos impomos a nós próprios é
tual. Para salvaguardar ao longo do tempo a manutenção de condições contextuais liberdade» (SC, 1:8.3).
justas (para acordos livres e justos), é essencial que a estrutura básica seja o assunto De igual modo, a liberdade moral consiste em obedecer à lei que nos
primário de justiça. impomos a nós próprios. Sabemos que essa lei é a lei fundamental da

276 277
sociedade do compacto social: nomeadamente, as leis promulgadas na sociedade do compacto social. O mesmo se torna claro mesmo a
do ponto de vista da vontade geral e devidamente baseadas nos inte- partir de The Second Discourse.
resses fundamentais e partilhados dos cidadãos. Até aqui tudo bem, Outro assunto que pode causar dificuldades é o pensamento de
mas parece haver mais para dizer. que o compacto social é um acontecimento que teve lugar algures no
2. Talvez só tenhamos que juntar o que dissemos. Presumo que passado. Todavia, no caso de Rousseau, não me parece que o veja
todas as condições necessárias sejam satisfeitas para que a sociedade - ou, melhor ainda, que precisemos de o ver - dessa forma quando
do compacto social subsista. É óbvio que Rousseau não se refere ao interpretamos este autor. Em vez disso, efetuo uma interpretação
assunto quando isso não acontece. Com essa garantia, nessa sociedade atual e contínua: isto significa que os termos do compacto social
os cidadãos alcançam a sua liberdade moral nos aspetos que se seguem: resultam das condições que subsistem sempre numa sociedade bem
ordenada no sentido atribuído por Rousseau. Assim, os cidadãos serão
Um é que, obedecendo à lei e conduzindo a nossa liberdade sempre socialmente independentes nessa sociedade. Terão sempre os
civil dentro dos limites estipulados pela vontade geral, estamos a mesmos interesses fundamentais. Terão sempre a mesma capacidade
agir não só em concordância com a vontade geral mas também de livre arbítrio e para alcançar a liberdade moral e civil sob condições
com a nossa própria vontade. A razão é que votámos livremente adequadas. Serão sempre movidos por amour de sai e amour-propre, e
juntamente com outros na criação desses limites, e isto mantém-se assim sucessivamente. Isto segue esta interpretação atual, depois de a
quer estejamos na maioria ou não (tendo em conta a reunião das situação do compacto social ter sido estabelecida de acordo com os
condições necessárias). (Acerca disto ver SC, 4:2.8-9.) desígnios de Rousseau.
Os termos do compacto social, então, resultam simplesmente da
Um outro aspeto é que a lei que atribuímos a nós próprios satisfaz forma como neste momento os cidadãos se encontram essencialmente,
as condições do compacto social e os termos deste compacto resultam em qualquer altura, numa sociedade cumpridora desses termos. Se-
da nossa natureza tal como somos agora. Ou seja, esses termos depen- guindo e agindo a partir de leis que satisfazem esses termos, os cida-
dem dos nossos interesses fundamentais, e estes sê-lo-ão sempre, tendo dãos agem a partir de uma lei que conferem a si próprios. E alcançam
em conta a nossa natureza no sentido conferido por Rousseau. Isto assim a sua liberdade moral.
acontece mesmo quando, ao considerarmos membros desfigurados e Em conclusão: a liberdade moral, então, quando devidamente
distorcidos de sociedades corruptas, nos possa parecer que o não são, compreendida, não é efetivamente viável fora de sociedade. Isto
apesar de esses casos não serem relevantes aqui. Nessas sociedades as deve-se ao facto de essa liberdade ser a capacidade de exercer e ser
pessoas podem estar enganadas relativamente aos seus verdadeiros orientada totalmente pela forma da razão deliberativa adequada à
interesses fundamentais, apesar de saberem certamente que alguma situação imediata. Para Rousseau, isso é que é liberdade moral. E não
coisa está seriamente errada tendo em consideração os seus vícios e se pode realizar sem atingir aptidões somente alcançáveis dentro de
infelicidade. um contexto social: todas as aptidões necessárias à linguagem em que
3. Mais uma vez digo que poderíamos nos preocupar com os ter- se expressa o pensamento, e, para além disso, as ideias e conceções
mos do compacto social por causa da nossa interdependência social. exigidas para deliberar corretamente e muito mais. Também não se
Recordemos que esta interdependência é uma das nossas suposições concretiza sem ocasiões sociais significativas nas quais se exercem ao
básicas na constituição da situação do compacto. Não será isto pesado máximo os poderes requeridos.
e redutor da nossa liberdade? Contudo, para Rousseau esta interde-
pendência faz também parte da nossa natureza. Isto vê-se em alguns
dos atributos que ele diz serem necessários ao legislador, enquanto § 4. A VONTADE GERAL E ESTABILIDADE
pessoa que «ousa encarregar-se da fundação de um povo» (SC, 2:7.3).
Intrínseco a esta visão é o facto de os nossos interesses fundamentais 1. Ainda há questões acerca da vontade geral que não foram dis-
e das nossas capacidades de liberdade e aperfeiçoamento só poderem cutidas, e, na verdade, não nos podemos debruçar sobre todas. Isto
atingir a sua máxima fruição em sociedade, ou mais especificamente, explica-se porque quase tudo em On the Social Contract se basei? na

278 279
ideia da vontade geral de alguma forma. Devemos considerar mais duas da lista acabada de enunciar. Se lermos a passagem 2:6.10 de On the
questões, às quais me irei dedicar rapidamente. Social Contract, encontramos partes que se relacionam com cada uma
Recordemos que na última palestra listei quatro perguntas que dessas perguntas. Deste modo, diz Rousseau:
devemos distinguir ao considerarmos qualquer conceção política de
Falando corretamente, as leis não são senão as condições da
direito e justiça, incluindo a de Rousseau, nomeadamente:
associação civil. O povo que está sujeito às leis deve ser o seu
1) Segundo a conceção, quais são os princípios razoáveis ou verda- autor. Só os que formam uma associação têm o direito de regular
deiros de justiça e direito político e como se estabelece a exatidão as condições de sociedade. Mas como é que vão regular essas con-
destes princípios? dições? Será de comum acordo, através de inspiração súbita? [... ]
2) Que instituições políticas e sociais exequíveis concretizam efeti- Quem lhe dará a clarividência necessária para formular atos e
vamente estes princípios? publicá-los antecipadamente? [ ... ] Como é que uma multidão
3) De que formas as pessoas aprendem princípios de direito e cega, que muitas vezes não sabe o que quer porque raramente
adquirem motivação para agir em conformidade com vista a sabe o que é bom para si mesma, vai executar um empreendi-
manter a estabilidade ao longo do tempo? mento tão vasto e difícil como é um sistema legislativo? [ ... ]
4) Como poderá surgir uma sociedade que concretize os princí- A vontade geral está sempre correta, mas o julgamento que a
pios de direito e de justiça e, no caso de existir algum, como é que orienta nem sempre é esclarecido [ ... ] Os indivíduos privados
surgiu em alguns casos reais? veem o bem que rejeitam; o público quer o bem que não vê. Todos
carecem de igual modo de guias. Os primeiros devem ser obriga-
Interpretámos a ideia do compacto social conforme a abordagem dos a conformar as vontades à sua razão. O segundo deve ser
às duas primeiras perguntas. Para Rousseau os princípios de direito ensinado a saber o que quer [... ] Desta situação surge a necessi-
político são os que reúnem os termos desses compacto, e estes últimos dade de um legislador.
exigem que determinados princípios e valores se concretizem na estru-
tura básica dessa sociedade. A terceira questão é sobre as forças psi- Neste ponto Rousseau tem em mente a quarta pergunta, a das ori-
cológicas que ajudam a manter a estabilidade e o modo como são gens e transição: dados os grandes obstáculos que devem ter subsis-
adquiridas e assimiladas. A quarta questão aborda as origens e o pro- tido na ausência de um mundo social livre, igual e justo, ele pergunta
cesso através do qual poderá surgir a sociedade do compacto social. como é que uma sociedade do compacto social poderia ter surgido.
No SC, 2:7-12, encontramos a figura curiosa do legislador, fundador Rousseau sugere, obviamente, que é necessário haver um tipo de sorte
do estado que confere às pessoas as suas leis fundamentais. O legisla- rara na pessoa de um legislador. Licurgo, da antiga Grécia, é mencio-
dor não é o governo ou o soberano, e como está encarregue de estabe- nado como exemplo de uma figura histórica que desempenhou este
lecer a constituição, não tem qualquer papel nessa constituição. Nem papel, abdicando do trono para dar leis à sua terra natal (SC, 2:7.5). Só
sequer como governante, «Pois [... ] aquele que tem autoridade sobre esse legislador saberá o suficiente acerca da natureza humana para saber
leis não deve ter autoridade sobre os homens» (SC, 2:7.4). Ele não tem como as leis e as instituições precisam de ser planeadas de modo a
o direito de impor a sua vontade sobre o povo. Apesar de lhe serem transformar o carácter das pessoas e os seus interesses. Dadas as con-
reconhecidos sabedoria e conhecimentos extraordinários, não tem ne- dições históricas, as suas ações estarão de acordo com o que esses pla-
nhuma autoridade pelo seu trabalho enquanto legislador e, no entanto, neamentos ordenam. E só esse legislador seria capaz de, em primeiro
deve de algum modo persuadir as pessoas a aceitar as suas leis. Histo- lugar, persuadir as pessoas a seguir essas leis.
ricamente, isto foi feito frequentemente persuadindo as pessoas que as 3. A questão de estabilidade que também preocupa Rousseau é ilus-
leis lhes são conferidas, através dele, pelos deuses. A religião e a per- trada noutras coisas que ele diz. Assim, no SC, 2:7.2, ele diz o seguinte:
suasão, aparentemente, são necessárias à fundação de um estado justo. «Se é verdade que um grande príncipe [termo de Rousseau para governo
2. Qual é o papel do legislador na doutrina de Rousseau? Creio que enquanto pessoa coletiva] é um homem raro, o que dizer de um grande
esta figura é a forma de Rousseau abordar as duas últimas perguntas legislador? O primeiro tem de seguir o modelo que o último deverá

280 281
propor. Este é o mecânico que inventa a máquina; o primeiro é apenas Trata-se de um parágrafo extraordinário. Ilustra como Rousseau
o operário que a monta e põe-na a trabalhar». E acrescenta: «No nas- nos vê enquanto socialmente dependentes da sociedade do compacto
cimento das sociedades, diz Montesquieu, os líderes das repúblicas social apesar de sermos pessoalmente independentes (ou seja, não
criam as instituições; por conseguinte, são as instituições que formam dependentes de quaisquer outras pessoas particulares). Os poderes que
os líderes das repúblicas.» adquirimos em sociedade são poderes que só podemos usar em socie-
Posteriormente, no SC, 2:7.9, Rousseau diz: «Para que um povo dade e só então em cooperação com os poderes abonatórios de outras
emergente aprecie as máximas saudáveis de política, e siga as regras pessoas. Pensem no modo como os poderes treinados dos músicos só
fundamentais da arte de governar, o efeito teria de se transformar na atingem a sua máxima fruição quando exercidos com outros músicos
causa; o espírito social, que deveria ser o resultado da instituição, teria em música de câmara e orquestras.
de presidir à fundação da própria instituição; e os homens deveriam 4. O que Rousseau diz acerca do legislador é suficientemente claro
ser anteriores às leis naquilo em que se deveriam transformar por seu depois de compreendermos as duas questões que aborda, de uma
intermédio.» forma notoriamente diferente. Apesar de essa figura poder ser rara,
E assim: «Isto é o que sempre obrigou os pais das nações a recorrer não há nada de misterioso acerca do papel do legislador.
à intervenção do céu e a atribuir a sua própria sabedoria aos Deuses» Começando com a questão das origens históricas, é evidente que a
(SC, 2:7.10). sociedade do compacto social poderá surgir de várias formas. Por
Torna-se evidente o facto de Rousseau estar a falar da terceira exemplo, pode acontecer que gradualmente ao longo de muitos séculos,
questão sobre estabilidade logo que a coloquemos na forma sugerida através de uma série de guerras religiosas violentas, as pessoas acabem
pelo que atrás se disse: nomeadamente, como é que se explica que as por pensar que já não é praticável usar a força nessas lutas e venham
instituições políticas venham a gerar o espírito social que seria neces- a aceitar relutantemente como modus vivendi os princípios de liberdade
sário, na fundação, para decretar leis que estabelecem essas instituições? e igualdade. A tolerância religiosa parece ter surgido dessa forma. Todos
Se estas últimas realmente geram o espírito que as decretaria, então julgaram que a divisão da Cristandade era um desastre terrível, no
serão duradouras e estáveis. entanto a tolerância pareceu melhor do que uma guerra civil intermi-
O alcance da mudança do estado de natureza (o primeiro período nável e a destruição da sociedade.
histórico de The Second Discourse) que é provocada pelo trabalho do Por isso, gerações posteriores poderiam vir a apoiar certos princí-
legislador torna-se evidente a partir do que Rousseau diz previamente pios sobre os seus méritos, e muito depois de as guerras religiosas terem
no se, 2:7.3: terminado, os princípios de liberdade religiosa foram gradualmente
Aquele que ousa empreender a fundação de um povo deverá aceites como liberdades constitucionais básicas. É lugar-comum que
sentir que é capaz de mudar a natureza humana, por assim dizer: as primeiras gerações introduzam princípios e instituições por razões
de transformar cada indivíduo, que por si só é um todo perfeito e diferentes das que as gerações que vêm depois, que cresceram sob eles,
solitário, numa parte de um todo maior do qual o indivíduo têm para as aceitar. Poderia a sociedade progredir de outro modo?
recebe, em determinado sentido, a vida e o ser; de alterar a consti- A partir da forma como Rousseau introduz o legislador, torna-se
tuição do homem de modo a fortalecê-la; de substituir uma exis- claro que nunca supõe que a entrada das pessoas num acordo qual-
tência parcial e moral pela existência física e independente que quer poderia ser a transição de uma fase pré-política para uma socie-
todos recebemos da natureza. Em suma, ele deve retirar as pró- dade cujas instituições básicas obedecem aos termos requeridos do
prias forças do homem para lhe dar forças que lhe sejam estranhas compacto social. Não poderia ser assim que um povo do primeiro
e de que não possa fazer uso sem a ajuda de outros [... ] Porque se período histórico de The Second Discourse, a sociedade livre, igual e
cada cidadão não é nada, e não é capaz de fazer nada, exceto com justa do estado de natureza, fosse transformado em cidadãos com uma
todos os outros, e se a força adquirida pelo todo é igual ou superior vontade geral. As instituições que dão forma à vontade geral são pla-
à soma das forças naturais de todos os indivíduos, poderá ser dito neadas pelo legislador que persuade as pessoas que a sua autoridade
que a legislação atingiu possivelmente o seu ponto máximo de per- é de ordem superior e por isso aceitam as leis que propõe. A seu tempo
feição. gerações posteriores virão a ter e a perpetuar uma vontade geral.

282 283
:;.1:1

:J

Uma vez estabelecida e em funcionamento, a sociedade está em equilí- descrita, apesar de conter uma reserva importante relativamente ao
brio estável: as suas instituições criam nos que vivem sob o seu domí- facto de não sofrermos em demasia do abuso da autoridade política.
nio a vontade geral necessária para a manter pelas gerações subsequentes Diz ele: «Esta passagem do estado de natureza para o estado civil
dos períodos a seguir. A referência de Rousseau a Montesquieu (citada produz uma mudança assinalável no homem, substituindo o instinto
acima) afirma bem este ponto. por justiça no seu comportamento e atribuindo às suas ações a mora-
O legislador de Rousseau deve ser efetivamente visto como uma lidade que lhes faltava anteriormente [ ... ] Apesar de neste estado
figura ficcional - um deus ex machina - introduzido para abordar o se privar de vários benefícios concedidos pela natureza, o homem
segundo par de perguntas: este dispositivo não causa problemas à ganha outros, as suas faculdades são exercidas e desenvolvidas, as
unidade e coerência da visão de Rousseau, tal como às vezes se alega. ideias alargadas, os sentimentos enobrecidos, e a sua alma inteira
Percebemos isto quando distinguimos as quatro questões e reconhece- elevada a tal ponto que se os abusos desta nova condição não o
mos que há diferentes formas em que a sociedade do compacto social rebaixassem por vezes relativamente à condição abandonada, ele
poderá surgir. devia incessantemente abençoar o momento feliz que o separou dele
para sempre, e que o transformou de animal estúpido e limitado
para um ser inteligente e um homem» (SC, 1:8.1).
Podemos concluir que a nossa natureza humana, com os nossos
§ 5. LIBERDADE E COMPACTO SOCIAL interesses fundamentais a desenvolver e a exercitar os nossos poten-
ciais sob condições de independência pessoal, só se realiza em socie-
1. Ainda temos de discutir a segunda parte do problema do com- dade política, ou antes, só na sociedade política do compacto social.
pacto social. Recordemos a afirmação de Rousseau sobre esse problema No próximo parágrafo Rousseau distingue a liberdade natural, que
ao encontrar uma forma de associação tal que enquanto nos unimos a perdemos quando passamos a fazer parte da sociedade civil, da liber-
outros só obedecemos a nós próprios e permanecemos tão livres quanto dade civil e do direito legal de propriedade, que ganhamos. Continua
dantes (SC, 1:6.4). A possibilidade de permanecermos livres como ante- a dizer que o homem também adquire com a sociedade civil: «liber-
riormente parece deveras intrigante quando Rousseau enfatiza que nos dade moral, que por si só faz do homem um verdadeiro senhor de si
damos com todos os nossos poderes à comunidade, sob a direção mesmo. Porque o impulso do apetite é apenas a escravatura, e a obe-
suprema da vontade geral, e não reivindicamos nenhuns direitos de diência à lei que nos prescrevemos a nós próprios é liberdade» (SC,
reserva contra ela. Alguns encontraram um totalitarianismo implícito 1:8.3).
na sua doutrina e julgaram particularmente sinistra a sua observação O pensamento de Rousseau neste ponto não é certamente o facto
acerca de nos vermos obrigados a ser livres. de a obediência a qualquer lei que podemos nos prescrever a nós pró-
Vamos ter em conta esta observação e ver se há uma maneira de a prios ser liberdade: num ataque de distração poderei prescrever a
ler em consistência com o facto de só nos obedecermos a nós próprios mim próprio uma lei maluca! Não. Ele tem claramente em mente as
e de agora sermos tão livres como antes do compacto social. A passa- leis que nos prescrevemos a nós próprios enquanto súbditos quando
gem relevante é: «[ ... ] de modo que o compacto social não seja uma votamos em leis fundamentais como cidadãos, do ponto de vista da
fórmula ineficaz, inclui tacitamente o seguinte compromisso, que sozi- vontade geral, e damos a nossa opinião, que cremos que todos os cida-
nho pode dar força aos outros [os outros compromissos]: que quem dãos podiam apoiar (dadas as nossas crenças e conhecimento), sobre
quer que se recuse a obedecer à vontade geral será obrigado a fazê-lo a questão das leis que se enquadram melhor para promover o bem
pela pessoa inteira; o que significa apenas que será forçado a ser livre» comum.
(SC, 1:7.8). Mas, como vimos, quando fazemos isto somos movidos pelos nos-
Começamos a perceber o sentido de Rousseau neste ponto debru- sos interesses fundamentais na nossa liberdade e na manutenção da
çando-nos sobre a sociedade civil no próximo capítulo. Este capítulo nossa independência pessoal, e assim sucessivamente. Estes interesses
ilustra a sua mudança de visão e humor relativamente a The Second têm prioridade sobre os nossos outros interesses: por serem fundamen-
Discourse. Aqui a transição do estado de natureza é favoravelmente tais, dirigem-se às condições essenciais da nossa liberdade e iguald_ade,

284 285
que concretizam as condições para a nossa capacidade de livre arbítrio com inspeção (deduzindo o custo desta última de impostos ou despe-
e de aperfeiçoamento sem haver dependência pessoal. Ao obedecer às sas). Sendo forçados a obedecer à lei através de multas que nos impu-
leis fundamentais devidamente criadas de acordo com a vontade geral semos, e pela qual votámos com a melhor das razões, sujeitamo-nos a
- uma forma de razão deliberativa - realizamos a nossa liberdade moral. regras que apoiamos do ponto de vista da nossa vontade geral. Esse
il
Com esta capacidade totalmente desenvolvida, possuímos livre arbí- ponto de vista é o da nossa liberdade moral e ao sermos capazes de
trio: estamos numa posição de compreender e sermos orientados pelas agir a partir de leis assim criadas tira-nos do nível de instinto e faz-
razões mais apropriadas. -nos verdadeiros senhores de nós próprios. Para além disso, ninguém
2. Depois desta contextualização, regressemos à observação acerca supõe que ao nos ser exigido o pagamento de uma multa ainda nos
de sermos forçados a ser livres. A linguagem é provocadora, firme: poderíamos queixar com razão. Na visão de Rousseau, os nossos inte-
mas estamos à procura do pensamento por detrás dela. No parágrafo resses fundamentais são os nossos interesses reguladores; no com-
imediatamente precedente (SC, 1:7.7), Rousseau contrasta a vontade pacto social acordámos promover os nossos interesses privados
privada que temos como indivíduos únicos (a nossa «existência natu- dentro dos limites das leis políticas fundamentais apoiadas pela von-
ralmente independente») com a vontade geral que temos como cida- tade geral, a qual é guiada pelos interesses fundamentais que parti-
dãos. E afirma: «Ü seu [do cidadão] interesse privado pode ter para ele lhamos com outros.
um significado bastante diferente do interesse comum. A sua existên- Mas é claro que Rousseau se engana quando diz que permanecemos
cia absoluta e naturalmente independente pode dar-lhe a visão de que tão livres quanto dantes. Na verdade, já não somos mesmo natural-
detém a causa comum como uma contribuição livre, cuja perda preju- mente livres. Somos moralmente livres, mas não tanto como anterior-
dicará menos outros do que o peso do seu pagamento [ ... ] ele poderá mente. Somos livres de uma maneira melhor e bastante diferente.
desejar gozar dos direitos do cidadão sem querer cumprir os deveres
de um súbdito» (SC, 1:7.7).
É evidente que Rousseau tem em mente um caso do que hoje
chamamos de borlismo5 em esquemas de cooperação coletivamente
§ 6. AS IDEIAS DE ROUSSEAU SOBRE IGUALDADE:
vantajosos. [Perante este problema Rousseau diz que «deve haver DISTINTIVAS DE QUE FORMA?
convenções e leis que combinem direitos e deveres» (SC, 2:6.2).]
A título de exemplo conhecido, consideremos a instalação de dis- 1. No § 2.3 desta palestra, vimos que Rousseau disse que a liber-
positivos de controlo de poluição em carros. Suponhamos que de cada dade e a igualdade são «O maior bem de todos, devendo ser a finali-
dispositivo se ganha $7 de benefício pelo ar limpo ($7 para cada cida- dade de cada sistema legislativo», e que a primeira não consegue
dão), porém, cada dispositivo custa a cada pessoa $10. Numa socie- perdurar sem a segunda. Na primeira palestra sobre Rousseau dis-
dade de 1000 cidadãos, cada dispositivo contribui com $7,000 de cutimos o que ele tinha para dizer acerca dos tipos e fontes de desi-
benefício; se todos o instalarem, o ganho líquido de cada cidadão é gualdade, bem como das suas consequências destrutivas. Devemos
$7n - 10 (n = número de cidadãos); torna-se difícil para n > 1. No agora considerar o que é distintivo nas ideias de Rousseau acerca de
entanto, considerando as ações dos outros como adquiridas, cada cida- igualdade. Vamos rever várias das razões que podemos ter para que-
dão pode ganhar por defeito6. rer regular desigualdades de modo a mantê-las em linha.
Rousseau presume, creio eu, que o indivíduo em questão votou na (a) Uma razão é o alívio de sofrimento. Na ausência de circunstân-
assembleia para requerer os dispositivos e assegurar a sua instalação cias especiais, é errado que alguns, ou bastantes, membros da sociedade,
devam ser amplamente fornecidos, enquanto outros tantos vivem em
privação e sofrem sérias dificuldades, para não falar de doenças curá-
5 Em termos económicos borlismo refere-se à falta de pagamento de bens comprados,
nomeadamente de ações de mercado que são vendidas ilegalmente antes de serem veis e fome. Geralmente, podemos entender essas situações como
pagas. Em inglês o termo utilizado é «free-riding». (N. T.) casos de má distribuição de recursos. Por exemplo, numa perspetiva
6 Exemplo retirado de Peter C. Ordeshook, Game Theory and Political Theory, Cambridge: utilitária (conforme afirmado por Pigou no seu livro Economics of Welfare ),
Cambridge University Press, 1986, pp. 201 e segs. quando a distribuição de rendimentos é desigual, o produto sacia~ está

286 287
a ser usado ineficazmente. Ou seja, necessidades e carências mais Porque a forma como as pessoas se veem a si próprias depende de
urgentes não estão a ser satisfeitas, enquanto as menos urgentes dos como são vistas por outras - o seu sentido de respeito próprio, a sua
ricos, e até mesmo os seus prazeres e caprichos fúteis, são-lhes cedidos. autoestima e confiança em si mesmas dependem dos julgamentos e
Nesta perspetiva, e deixando de lado efeitos sobre a futura produção, avaliações das outras pessoas.
os rendimentos deviam ser distribuídos para que as carências e neces- Com estes efeitos de desigualdades políticas e económicas, e com
sidades mais urgentes que não são satisfeitas sejam igualmente urgen- os possíveis males do estatuto, aproximamo-nos muito mais das preo-
tes entre todas as pessoas. (Presumindo que as pessoas tenham funções cupações de Rousseau. Estes males são certamente sérios, e as atitudes
úteis semelhantes bem como uma maneira de fazer comparações inter- que as escalas de estatuto podem gerar podem ser vícios enormes. Mas
pessoais.) já chegámos à conclusão de que a desigualdade é errada ou injusta em
Assinale-se que neste caso não é a desigualdade que nos incomoda. si mesma, em vez de produzir os seus efeitos errados ou injustos naque-
Nem sequer nos perturbam os efeitos da desigualdade, exceto quando les que padecem dela?
estes últimos causam sofrimento, ou privação, ou então implicam o Está mais próxima de ser errada e injusta em si mesma da seguinte
que consideramos uma distribuição ineficaz e esbanjadora de bens. forma: num sistema de estatutos nem toda a gente pode ter o mais alto.
(b) Uma segunda razão para controlar as desigualdades políticas e É um bem posicional, como às vezes se diz, pois os estatutos elevados
económicas é impedir que uma parte da sociedade domine a restante. dependem da existência de outras posições abaixo deles; por isso se os
Quando esses dois tipos de desigualdades são vastos, tendem a jun- valorizarmos como tal, também estamos a valorizar algo que necessa-
tar-se. Como disse Mill, as bases do poder político são inteligência riamente envolve outras pessoas de estatuto inferior. Isto pode ser
(educada), propriedade e poder de combinação, o qual se traduz na errado ou injusto quando as posições de estatuto são de grande impor-
capacidade de cooperar na obtenção dos interesses políticos de uma tância social e, certamente, quando o estatuto nos é atribuído por nas-
pessoa. Este poder permite a uns poucos, em virtude do seu controlo cimento, ou por caraterísticas naturais de género ou raça, e não é ganho
sobre o processo político, a criação de um sistema de lei e propriedade ou obtido de um modo apropriado. Por isso, um sistema de estatutos
que assegure a sua posição dominante, não só na política, mas em toda é injusto quando as suas escalas são dotadas de mais importância do
a economia. Isto permite-lhes decidir o que é produzido, controlar as que o seu papel social ao serviço do bem geral pode justificar.
condições de trabalho e os termos de emprego oferecidos, bem como (d) Isto traz-nos à solução de Rousseau: nomeadamente, que na
conduzir tanto a direção e volume de poupanças reais (investimento) e sociedade política todas as pessoas deveriam ser cidadãos iguais. Mas
o ritmo de inovação, tudo o que em boa parte determina aquilo em antes de analisar isto menciono rapidamente que a desigualdade
que a sociedade se transforma ao longo do tempo. pode ser errada ou injusta em si mesma sempre que a estrutura básica
Se se considerar que ser dominado por outros é uma coisa má, e da sociedade faça uso significativo de procedimentos justos.
que por isso a nossa vida não é tão boa, ou feliz, como poderia ser, Dois exemplos de procedimentos justos são: justos, isto é, mercados
devemo-nos preocupar com os efeitos da desigualdade política e eco- abertos e exequivelmente competitivos na economia; e eleições políti-
nómica. As nossas oportunidades de emprego são menos boas; gosta- cas justas. Nestes casos, uma certa igualdade, ou uma desigualdade
ríamos de ter mais controlo no local de trabalho e na direção geral da bem moderada, é uma condição essencial de justiça política. Aqui o
economia. Todavia, até agora, não é óbvio que a desigualdade em si monopólio e análogos devem ser evitados, não só por causa dos seus
efeitos nocivos, entre eles a ineficiência, mas também porque sem uma
mesma seja injusta ou má.
justificação especial levam a mercados que são injustos. O mesmo tipo
(c) Uma terceira razão parece aproximar-nos do que poderá estar
de observação aplica-se a eleições injustas resultantes do domínio de
errado com a própria desigualdade. Refiro-me ao facto de que desi-
uns quantos ricos na política7.
gualdades políticas e económicas estão muitas vezes associadas a
desigualdades de estatuto social que podem levar as pessoas de um
7 Nos parágrafos precedentes (a)-(d) baseei-me em parte no artigo «Notes on Equality»
estatuto mais baixo a serem consideradas inferiores, por elas mesmas de T. M. Scanlon, datado de novembro de 1988. [Ver também T. M. Scanlon, «The
e por outras. Isto poderá alimentar atitudes generalizadas de deferên- Diversity of Objections to Inequality», em Scanlon, The Difficulty of Tolerance, Cam-
cia e servilismo, por um lado, e arrogância e desprezo, por outro. bridge: Cambridge University Press, 2003). - Ed.] ,

288 289
2. Para Rousseau a ideia de igualdade é mais significativa a um Como sabemos através de The Second Discourse, Rousseau está pro-
nível superior: isto é, ao nível de como a própria sociedade política fundamente consciente do significado de sentimentos como respeito
deve ser entendida. E o compacto social, com seus termos e condições, próprio e autoestima, e os vícios e infortúnios do egoísmo são levan-
fala-nos acerca disto. A partir dele sabemos que a vontade geral é tados por desigualdades políticas e económicas que excedem os limi-
desejar o bem comum (como as condições que salvaguardam que cada tes requeridos para a independência pessoal. Rousseau acredita, julgo
um possa promover os seus interesses fundamentais quando se encon- eu, que todos nós devemos, para nossa felicidade, respeitarmo-nos a
tra pessoalmente independente de outros, e dentro dos limites da liber- nós próprios e mantermos um sentido vivo do nosso valor. Para que
dade civil). Para além disso, as desigualdades económicas e sociais os nossos sentimentos sejam compatíveis com os dos outros devemos
devem ser moderadas para que as condições desta independência sejam respeitarmo-nos a nós próprios e aos outros como iguais e ao mais alto
asseguradas. Numa nota ao SC, 2:11.1, Rousseau diz: «Querem então nível; e isto inclui o nível de como a sociedade está concebida e o nível
dar estabilidade ao Estado? Aproximem os extremos o mais possível: em que as leis políticas fundamentais são decretadas. Assim, enquanto
não tolerem nem pessoas opulentas nem pedintes.» E como observá- cidadãos iguais podemos todos, por respeito a outros, harmonizar a
mos anteriormente, no SC, 2:11.2, continua a afirmar, «A igualdade nossa necessidade de respeito próprio. Dadas as nossas necessidades
[... ] não deve ser entendida no sentido de os graus de poder e riqueza enquanto pessoas e a nossa natural indignação estando sujeitos ao po-
serem exatamente os mesmos, mas, em vez disso, no que diz respeito der arbitrário de outros (um poder que nos obriga a fazer o que eles
ao poder, deve ser incapaz de qualquer violência e nunca exercê-la querem e não o que ambos desejamos como iguais), a resposta óbvia
exceto em virtude do estatuto e das leis; e no que respeita à riqueza, ao problema de desigualdade é igualdade ao mais alto nível, conforme
nenhum cidadão deveria ser tão opulento para poder comprar outro, e o que está estabelecido no compacto social.
nenhum tão pobre que se veja obrigado a vender-se a si próprio». Do ponto de vista desta igualdade, os cidadãos podem moderar desi-
Tudo isto nos permite dizer que na sociedade do compacto social gualdades de nível mais baixo através de leis gerais de modo a pre-
os cidadãos - enquanto pessoas - são iguais ao mais alto nível e nos servar condições de independência pessoal para que ninguém fique
aspetos mais fundamentais. Assim, todos eles têm os mesmos interes- sujeito ao poder arbitrário e ninguém vivencie as lesões e indignidades
ses fundamentais na sua liberdade e na procura dos seus objetivos que despertam sentimentos de amor-próprio.
3. Será esta visão de igualdade caraterística de Rousseau? Foi ele o
dentro dos limites da liberdade civil. Todos têm uma capacidade
primeiro a considerá-la? Não tenho a certeza quanto à resposta a dar
semelhante para a liberdade moral - ou seja, a capacidade de agir de
a esta pergunta. Ideias de igualdade já andam em circulação desde o
acordo com as leis gerais que se conferem a si próprios, bem como a
início da filosofia política. Mas suspeito que a família de ideias que se
outros em prol do bem comum. Cada um vê estas leis baseadas na
reúne para dar esta de igualdade - a ideia de igualdade ao mais alto
forma apropriada de razão deliberativa para a sociedade política,
nível de como a sociedade é concebida, de cidadãos como iguais ao
sendo esta razão a vontade geral que cada cidadão tem enquanto
mais alto nível em virtude dos seus interesses fundamentais e das capa-
membro dessa sociedade. cidades para a liberdade moral e civil, de amor-próprio e a sua ligação
Mas como, mais precisamente, é que a própria igualdade está pre- com as desigualdades relacionadas com poder arbitrário - é, como uma
sente ao mais alto nível? Possivelmente assim: o compacto social articula, família, caraterística. Ou seja, é na combinação desta família de ideias
e quando concretizada, alcança uma relação política entre cidadãos desta forma particular e poderosa que reside a originalidade da ideia de
como iguais. Têm capacidades e interesses que os torna membros iguais igualdade de Rousseau.
em todas as matérias fundamentais. Reconhecem-se e veem-se uns aos
outros de forma relacional enquanto cidadãos iguais; e ser o que são
- cidadãos - inclui relacionarem-se como iguais. Relacionando-se
como iguais faz parte do que são, do que lhes é reconhecido por outros,
e há um compromisso político público de preservar as condições exi-
gidas por esta relação igual entre pessoas.

290 291
MILL
MILLI
A SUA CONCEÇÃO DE UTILIDADE

§ 1. OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS: J. S. MILL (1806-1873)

1. Mill era o filho mais velho do filósofo e economista utilitário


James Mill, que, juntamente com Bentham, se encontrava entre os
líderes dos Filósofos Radicais. Mill foi totalmente educado pelo pai e
nunca frequentou uma escola ou universidade, tendo-lhe também sido
imposta a tarefa de ser precetor dos seus irmãos mais novos, o que o
mantinha tão ocupado que acabou por se ver privado de uma infância
normal.
Sob a tutela do pai, cedo ganhou total domínio sobre a teoria utili-
tária de política e sociedade, bem como da sua psicologia associacio-
nista da natureza humana. Também dominava tudo o que o pai pudesse
ensiná-lo acerca da economia ricardiana, e com 16 anos Mill era uma
figura intelectual excecional por direito próprio.
2. Recordemos o que dissemos anteriormente: para estudar as obras
de escritores líderes na tradição filosófica, um dos fios condutores é
identificar corretamente os problemas que encaravam, e perceber como
os entendiam bem como as questões que se colocavam. A partir do
momento que o façamos, as suas respostas vão provavelmente pare-
cer muito mais profundas, mesmo se nem sempre parecerem lógicas.
Escritores que, à primeira vista, nos dão a impressão de serem arcaicos
e desinteressantes, poderão tornar-se esclarecedores e merecedores de
uma análise séria.
Assim, como acontece com todos os filósofos políticos, devemos
indagar que questões Mill tinha e o que tentava alcançar atravé~ da

295
sua escrita. Em particular, devemos assinalar a sua escolha vocacio- Segundo, a originalidade de Mill era reprimida pela sua compli-
nal. Não desejava ser um académico, ou, como Kant, escrever obras cada relação psicológica com o pai. Creio que era impossível para
originais e sistemáticas de filosofia, economia ou teoria política, por ele fazer um rompimento público com o utilitarismo do pai e de
muito que elas realmente o fossem. Nem sequer desejava tornar-se Bentham. Fazê-lo seria confortável para aqueles que Mill conside-
numa figura política ou num homem de interesses partidários. rava seus opositores políticos, os Tories, que defendiam a doutrina
3. Em alternativa, Mill via-se como um educador de opiniões escla- institucionalista conservadora a que ele consistentemente se opu-
recidas e avançadas. O seu objetivo era explicar e defender o que con- nha3.
1 i siderava ser os devidos princípios filosóficos, morais e políticos
fundamentais de acordo com os quais a sociedade moderna deveria Contudo, Mill chegou mesmo a expressar publicamente as suas
estar organizada. Por outro lado, julgava que a sociedade do futuro reservas acerca da doutrina de Bentham em dois ensaios, «Bentham»
não alcançaria a harmonia e a estabilidade necessárias de uma época (1838) e «Coleridge» (1840); mas não muito surpreendentemente, foi
orgânica, ou seja, uma época unificada pelos principais princípios polí- ainda mais crítico no seu ensaio anónimo «Remarks on Bentham's Phi-
ticos e sociais globalmente reconhecidos. losophy» (1833)4.
Mill tirou a ideia de uma época orgânica (por oposição a uma 5. Mill teve um sucesso extraordinário na vocação que escolheu.
época crítica) dos saint-simonianosl. Tomou-se num dos escritores mais influentes a nível político e social da
Pensava que a sociedade moderna seria democrática, industrial e época vitoriana. Para os nossos objetivos, compreender a sua vocação
secular, ou seja, sem uma religião estatal: um estado laico. Este era o ajuda a compreender os defeitos das suas obras: a terminologia vaga e
tipo de sociedade que ele pensava ter visto chegar a Inglaterra e no ambígua que usa frequentemente, o estilo quase incessantemente pom-
resto da Europa. Esperava formular os princípios fundamentais para
poso e o tom de repreensão sem manifestação de dúvidas, mesmo quando
essa sociedade para que fossem percetíveis à opinião esclarecida
se discute as questões mais intricadas. Quem não gostava dele dizia que
daqueles que tinham influência na vida política e social.
ele pretendia convencer, e quando não conseguia, pretendia condenar.
4. Já referi que não fazia parte da vocação escolhida por Mill o facto
Estes defeitos são ainda mais perturbadores em ensaios posteriores
de os seus trabalhos se tornarem em obras académicas importantes ou
(após 1850, digamos), que são amplamente lidos, dos quais iremos estu-
em contribuições originais para o pensamento filosófico e social. Na
dar três: Utilitarism, On Liberty e The Subjection of Women. Por esta altura
verdade, porém, acredito que Mill era um pensador profundo e origi-
nal, mas a sua originalidade é sempre reprimida devido a dois fatores: Mill tinha o ouvido de Inglaterra. Ele sabia-o e tencionava mantê-lo. Mas
o período mais criativo da vida de Mill foi aproximadamente entre 1827
Primeiro, é uma necessidade da sua escolha vocacional: para se e 1848. Alguém que ponha em causa os seus dons extraordinários só tem
dirigir àqueles que exercem influência na vida política - os que de prestar atenção às obras deste período, começando com Essays on
[como afirma na sua revisão de Democracy in America, de Toc- Some Unsettled Questions of Political Economy (fim de 1830-1831, o quinto
queville] têm propriedade, inteligência e o poder de cooperação ensaio parcialmente reescrito em 1833, mas sem ser publicado até 1844),
(a capacidade de cooperar com outras pessoas para conseguir ter depois os muitos ensaios brilhantes do decénio de 1830 e A System of
as coisas feitas, especialmente no governo )2 - a sua escrita não Logic, em 1843, até ao The Principles of Political Economy, em 1848.
pode ser muito original, nem muito académica ou difícil. Caso con- Apesar dos defeitos, é um grande erro presumir a existência de um
trário, perde audiência.
estilo superior nas obras de Mill. Trata-se de uma grande figura e
merece a nossa atenção e respeito.
1 É uma fação francesa, seguidores de São Simão, que acreditava que os períodos
orgânicos eram historicamente seguidos por períodos críticos, ou períodos carateri-
zados por dúvida e ceticismo. 3 Ver Mill, Whewell on Moral Philosophy (1852). CW, X.
2 John Stuart Mill, Collected Works (CW), Toronto: University of Toronto Press, 1963-1991, 4 Apareceu primeiro anonimamente como apêndice B em Edward Lytton Bulwer,
vol. XVIII, p. 163. England and the English, Londres: Richard Bentley, 1833, em CW, X.

296 297
Dados biográficos de J. S. Mill: «Bentham» (1838), escrito dois anos após a morte do pai, em 1836.
Juntamente com «Coleridge» (1840), este ensaio marca o corte mais
1806 Nascimento a 20 de Maio, em Londres. aberto que Mill estava para fazer com o utilitarismo de Bentham e de
1809-1820 Período de educação intensiva em casa com o pai. seu pai. Digo corte aberto porque julgo que a forma de utilitarismo que
1820-1821 Ano em França em casa de Sir Samuel Bentham. desenvolveu, como a seu tempo se tornará claro, era uma doutrina
1822 Estuda Direito. Primeira publicação em jornais. muito diferente da deles. Trata-se, no entanto, de uma questão de inter-
1823 Inicia carreira na East Indian Company. pretação que não é amplamente partilhada.
1823-1829 Período de estudo com amigos na «Sociedade Utilitária» e em Em «Remarks on Bentham' s Philosophy» (cujas citações textuais
casa de Grote. irei referir como RB ), Mill primeiro define a filosofia de Bentham,
1824 Fundação da Westminster Review, para a qual escreveu até 1828. dizendo: «Üs princípios principais [ ... ] são estes; - essa felicidade,
1826-1827 Período de perturbações mentais. termo que aqui significa prazer e isenção de dor, é a única coisa desejá-
1 i'I
1830 Conhece Harriet Taylor em Paris durante a revolução de 1830. vel em si; todas as outras só são desejáveis enquanto meios para esse
' 1832 Morte de Bentham; primeira Reforma (Reform Bill). fim: porque a criação, portanto, da maior felicidade possível, é o único
1833 Publicação de «Remarks on Bentham' s Philosophy». propósito adequado de quaisquer pensamentos e ações humanas e,
1836 Morte do pai. consequentemente, de toda a moralidade e governo; para além disso,
1838 Publicação de «Bentham» e «Coleridge» (1840). esse prazer e essa dor são as únicas agências através das quais a con-
1843 Publicação de A System of Logic. Oito edições durante a sua vida. duta da humanidade é governada» (RB, Cf[2). Ele depois coloca estas
1844 Publicação de Essays on Some Unsettled Questions of Política! Economy, objeções, entre outras, à visão de Bentham. Primeiro, opõe-se ao facto
escrito entre 1831 e 1832. de este último não tentar dar uma justificação filosófica séria do princí-
1848 Publicação de Principies of Política! Economy. Sete edições durante pio de utilidade em lado nenhum e de usar um tom brusco e deprecia-
a sua vida. tivo com os seus oponentes. Mill argumenta que quem defende outras
1851 Casa com Harriet Taylor, cujo marido, John Taylor, tinha mor- doutrinas filosóficas e morais merece melhor tratamento (RB, Cf[Cf[3-6).
rido em 1849. 2. Segundo, opõe-se a que Bentham interprete o princípio de utili-
1856 Torna-se inspetor chefe da East Indian Company. dade no sentido restrito daquilo a que Mill chama de princípio de con-
1858 Reforma-se da East Indian Company. sequências específicas, o qual aprova ou desaprova uma ação apenas
1859 Publicação de On Liberty. pelo cálculo das consequências a que esse tipo de ação, se globalmente
1861 Publicação de Utilitarianism e On Representative Government. praticado, conduziria. Mill assegura que este princípio é apropriado
1865 Eleito membro do Parlamento por Westminster. Derrotado em em muitos casos, por exemplo, do ponto de vista de um legislador que
1868. se preocupa em fazer encorajar ou dissuadir de certos tipos de conduta
através de incitamentos ou penalizações legais; e também reconhece o
1869 Publicação de The Subjection of Women.
mérito do trabalho de Bentham ao avançar com o estudo da jurispru-
1871 Morre a 7 de Maio, em Avignon.
dência e legislação (RB, Cf[8-9).
1873 Publicação de Autobiography.
A objeção de Mill é que esta interpretação do princípio de utilidade é
1879 Publicação de Chapters on Socialism.
muito restrita para lidar com as principais questões políticas e sociais da
época; pois estas questões dizem respeito ao caráter humano como um
todo. Não nos devemos preocupar, em primeiro lugar, com a forma de
§ 2. UMA FORMA DE LER O UTILITARISMO DE MILL conferir incentivos legais para uma boa conduta, ou com o modo de dis-
suadir as pessoas de cometerem crimes, mas com a maneira de organi-
1. Quero propor uma forma de ler o ensaio Utilitarianism que o rela- zar instituições sociais básicas para que os membros da sociedade
ciona com as primeiras críticas de Mill a Bentham, primeiro no seu venham a ter um caráter tal - com objetivos, desejos e sentimentos - que
«Remarks on Bentham' s Philosophy» (1833 ), e, depois, no ensaio sejam incapazes de cometer crimes ou já expressem a inclinaç?o de

298 299
intervirem na conduta desejada. Estas questões mais abrangentes obri- sem os quais nenhum governo, crê Mill, poderá seguir em frente por
gam-nos a transcender os princípios de consequências específicas e a ter muito tempo. Para este autor, Bentham é um «meio-pensador» que
em conta a relação de ações com a formação de caráter, e a partir disto disse muita coisa com mérito, mas enquanto a enunciava como sendo
considerar a orientação de conduta, em geral, através de instituições toda a verdade outros tinham, com efeito, de fornecer metade da mesma
políticas e sociais. A legislação deve ser entendida no grande contexto verdade (RB, <JI<JI36-37).
histórico e relacionada com «a teoria das instituições orgânicas e formas 5. Mantendo presente esta crítica a Bentham, sugiro podermos
gerais de governo [... ] [que] devem ser consideradas os grandes instru- considerar cada capítulo de Utilitarianism como a tentativa de Mill
mentos da formação de caráter nacional, da condução dos membros da reformular parte da doutrina de Bentham e do seu próprio pai para
comunidade à perfeição, ou da sua preservação contra a degeneração» satisfazer as suas objeções a ela, tal como as tinha declarado em «Re-
(RB, <JI12; ver na globalidade RB, <JI<JI7-12). marks» de 1833. Mill professa ser sempre um utilitário e estar a rever
3. Mill diz, em terceiro lugar, que Bentham não deve ter uma clas- a doutrina partindo de dentro, por assim dizer. Um aspeto controverso
sificação alta como analista da natureza humana, porque erradamente acerca destas revisões é se são realmente consistentes com o utilitarismo,
supunha que somos inteiramente movidos por um equilíbrio de dese- dada uma caraterização razoavelmente geral deste último, ou se con-
jos relativamente a prazeres e sofrimentos futuros, e por engano tentou tam para uma doutrina substancialmente diferente e, se assim for, que
enumerar motivos (desejos e aversões humanas) que em princípio são · doutrina. Reservo esta questão para uma fase posterior.
inumeráveis tanto em número como em espécie. Também ignorava O capítulo I de Utilitarianism aborda a primeira crítica feita a Ben-
alguns dos motivos sociais mais importantes, como a consciência, ou tham: ou seja, Mill diz que abordará a questão da justificação do prin-
o sentimento de dever, cujo resultado é uma visão psicologicamente cípio de utilidade, e delineia o que é necessário em 1: <JI<JI3-5. Juntamente
egoística no tom (RB, <JI<JI23-30). com os capítulos IV e v, este capítulo completa a sua justificação. (A to-
Mill também se opõe ao facto de Bentham não considerar que a talidade do argumento encontra-se em 1: <JI<JI3-5; IV: <JI<Jil-4, 8-9, 12;
maior esperança no aperfeiçoamento humano reside numa mudança V: <JI<JI26-31, 32-38.) (Em referências textuais, os numerais dos capítulos
do nosso caráter e dos nossos desejos reguladores e predominantes. são seguidos pelos números dos parágrafos. Como habitualmente,
Esta lacuna por parte de Bentham relaciona-se com a outra de não con- terão de numerar os vossos próprios parágrafos.)
ceber as instituições políticas e sociais como meios para a educação Neste ponto o argumento de Mill pressagia o que Henry Sidgwick
social de um povo e como forma de ajustar as condições de vida social desenvolve mais detalhadamente em fase posterior na sua obra Methods
ao seu período de civilização (RB, <JI35). of Ethics (1.ª edição de 1874; 7.ª e última edição de 1907). Sumariamente
4. Finalmente, Mill diz que o erro predominante de Bentham é este argumento consiste em todos, incluindo os que pertencem à escola
fixar-se só numa parte dos motivos que realmente movem as pessoas institucionalista (abrangendo escritores conservadores como Sedgwick e
e considerá-las «calculistas muito mais serenas e cuidadosas do que Whewell que se encontram entre os oponentes de Mill), admitirem que
são na realidade». Esta tendência que se relaciona com a ideia de iden- um dos grandes fundamentos para uma conduta correta é a tendência
tificação artificial, ou lógica, de interesses leva Bentham a pensar que para promover a felicidade humana. Assim, se houver algum outro
a legislação atinge o seu efeito através do cálculo racional de recom- princípio principal que entre em conflito com o de utilidade, devemos
pensas e penalizações dos cidadãos, conduzindo a leis e governos que ter como decidir, em casos de conflito, que princípio tem prioridade e
fornecem as necessárias proteções legais. Ele subestima o papel e os a resolução do caso. Tanto Mill como Sedgwick argumentam que não
efeitos do hábito e da imaginação, como também a importância central há nenhum princípio exceto o de utilidade que seja suficientemente
da ligação das pessoas a instituições, que depende da continuidade da geral e que tenha todas as caraterísticas necessárias para funcionar
sua existência e da sua identidade na forma exterior. É esta continui- como o principal princípio regulador.
dade e identidade que as adaptam às memórias históricas de um povo Ambos também defendem que o princípio de utilidade é o que
e auxiliam as suas instituições a manter a autoridade (RB, <JI<JI36-37). tendemos a usar na prática, e que a nossa utilização dele dá ordem e
Bentham não presta atenção à forma como instituições e tradições de coerência, sejam elas quais forem, ao que os nossos considerados jul-
longa data tornam possível os inúmeros compromissos e ajustamentos gamentos morais realmente possuem. Mantêm essa moralidade_ de

300 301
senso comum quando as pessoas efetivamente refletem e o balanço é racional, calculista e egoística de Bentham. Neste ponto III: <JI<JI8-11 são
secundário e implicitamente utilitário. Como irei observar da pró- especialmente importantes e irei discuti-los mais tarde.
xima vez, Mill insiste neste tipo de argumento em V: <]I<]I26-31 relativa- O capítulo IV contém uma parte essencial da justificação de Mill
mente aos vários preceitos de justiça. do princípio de utilidade (a chamada prova), enquanto o capítulo v
6. O capítulo II contém nos seus parágrafos iniciais a reformulação aborda a base dos vários princípios e preceitos de justiça e como estes
de Mill da noção de utilidade. Debruço-me sobre os <JI<]Il-18, que, para sustentam direitos morais e legais. Mill pensa que Bentham não tratou
os nossos propósitos, são os mais relevantes. Poderão dividir-se da se- desta questão satisfatoriamente e a discussão que faz em torno dela é
guinte forma: impressionante, sendo uma das partes mais fortes do ensaio. Será o
nosso tópico para a próxima palestra.
<]Il: Introdução.
<]I2: Afirma o princípio de utilidade de forma aproximada da de
Bentham, que Mill irá rever.
<JI<JI3-10: Aborda a objeção de que o utilitarismo é uma doutrina § 3. FELICIDADE COMO DERRADEIRA FINALIDADE
apropriada apenas a porcos. No decurso da abordagem, Mill
apresenta a sua explicação de felicidade como a derradeira 1. Debruço-me agora sobre o capítulo II. Comecemos de imediato
finalidade (que irei abordar abaixo). Estes parágrafos formam atentando na afirmação sumária de Mill em II: <]Ilü. Aqui diz que: «De
uma unidade. São mais elaborados em IV: <JI<JI4-9. acordo com o Maior Princípio de Felicidade [... ] a derradeira finali-
<JI<]Ill-18: Estes parágrafos também formam uma unidade e anali- dade, com referência e em nome do qual todas as outras coisas são dese-
sam duas objeções: primeiro, que o utilitarismo é impraticá- jáveis, (quer estejamos a considerar o nosso próprio bem ou o de
vel porque a felicidade é inatingível; segundo, que os seres outras pessoas), é uma existência isenta de sofrimento tanto quanto
humanos podem viver sem felicidade, e formar o nosso cará- possív.el, e também tão rica de prazeres quanto possível, em quanti-
i ter para que possamos viver sem ela é a condição para alcan- dade e qualidade.»
'!

çar a nobreza de virtude. 2. Repare-se que Mill fala da derradeira finalidade (a grande felici-
dade) como uma existência (II: <]Ilü); ou como um modo, ou forma, de
O resto do capítulo II aborda várias outras objeções. Devo, todavia, existência (II: <JI<JI8 e 6, respetivamente). A felicidade não é somente um
mencionar II: <]I<JI24-25, que são importantes para o esboço da visão de conjunto de sentimentos agradáveis, ou uma série desses sentimentos,
Mill relativamente à relação entre preceitos e princípios morais e o quer sejam simples ou complexos. É um modo ou, como se poderá
princípio de utilidade em si mesmo como supremo padrão regulador. dizer, um modo de vida, sentido e vivido pela pessoa cuja vida existe.
Estes parágrafos baseiam-se em discussões recentes sobre a possibili- Aqui presumo que um modo de vida só é feliz quando tem mais ou
dade de Mill ser um utilitário de ações ou um utilitário de regras ou menos sucesso na obtenção dos seus objetivos.
qualquer outra coisa. Abordo esta questão rapidamente na próxima Mill não fala de prazeres e dores como meros sentimentos ou como
palestra. experiências sensoriais de um determinado tipo. Na verdade, fala deles,
7. O capítulo III contém a explicação de Mill de como podemos especialmente dos prazeres, como atividades aprazíveis que se distin-
guem pela sua fonte (II: <JI 4): ou seja, pelas faculdades, cujo exercício
naturalmente adquirir um desejo regulador firme para agir de acordo
está implicado na atividade agradável. É nesta ligação que Mill men-
com o princípio de utilidade, ou seja, para agir segundo este princípio
ciona o confronto entre faculdades superiores e inferiores:
independentemente de sanções legais ou sociais externas de vários
tipos, incluindo a opinião pública vista como pressão coerciva social. a) As faculdades superiores são as do intelecto, da emoção e imagi-
Tal como o capítulo II desenvolve a noção de utilidade que transcende nação, e dos sentimentos morais;
o princípio de consequências específicas de Bentham e se traduz na b) As faculdades inferiores são as que estão associadas às nossas
aplicação às instituições básicas que formam e educam o caráter nacio- necessidades e exigências corporais, o exercício das quais dá
nal, o capítulo III vai para lá do que Mill considera ser a psicologia lugar a prazeres de mera sensação (II: <JI 4).

302 303

l_
3. Em suma, a felicidade como derradeira finalidade é um modo (ou d) Não deve ser formado na base de vantagens circunstanciais dos
forma) de existência - um modo de vida - que inclui em grau e varie- prazeres em questão (como permanência, segurança, preço,
dade adequados um lugar apropriado tanto para os prazeres superiores etc.), ou das suas consequências (recompensas e penalizações),
1
como para os inferiores, ou seja, um lugar apropriado para o exercício mas tendo em vista a sua natureza intrínseca enquanto praze-
quer das faculdades superiores quer das inferiores na devida ordem de res.
1

: i atividades agradáveis.
São e) e d) juntos que fornecem uma base para se falar de quali-
dade vs. quantidade de prazer. Regressaremos a esta questão mais tarde.
§ 4. O CRITÉRIO DA PREFERÊNCIA EVIDENTE 3. Quando diz que ao compararmos prazeres não devemos consi-
derar vantagens circunstanciais, Mill tem em mente os tipos de razões
1. O teste de qualidade pode ser o seguinte. Um prazer é superior que Bentham deu para preferir os prazeres superiores (assim descritos
em qualidade relativamente a outro quando: por Mill). Bentham diz: «Sendo igual a quantidade de prazer, um jogo
de dardos é tão bom quanto poesia» 5 .
a) Quem tem experiência de dois prazeres tem uma preferência Aqui, pensemos num modo, ou estilo, de vida como se vivêsse-
1 : evidente pela atividade relacionada com um em detrimento . mos de acordo com um plano de vida que consiste em várias ativida-
do outro, e esta preferência é independente tanto de qualquer des empreendidas segundo um determinado programa. Com este
sentimento de obrigação moral para preferir aquele prazer, pensamento em mente, o que Bentham pretende é que no planeamento
como de qualquer ponderação das suas vantagens circunstan- do programa de atividades que especifica o nosso modo de vida,
ciais (II: <IT 4); atinge-se um ponto em que a utilidade marginal do jogo de dardos
b) Uma preferência evidente por um prazer em detrimento do
(por unidade de tempo) é exatamente igual à utilidade marginal da
outro (por exemplo, por prazeres associados com a posse de poesia (por unidade de tempo). Ele assegura que, normalmente, o
«faculdades mais elevadas do que os apetites animais» [II: <IT4]), tempo e a energia total que damos à poesia (ou às atividades que
significa que o gozo desse prazer não será posto de lado, ou exercem as faculdades superiores) são mais elevados do que o tempo
abandonado, por qualquer quantidade de gozo do outro prazer e a energia que damos ao jogo de dardos (ou a outros jogos e diverti-
de que a nossa natureza é capaz, mesmo quando se sabe que o mentos semelhantes). A explicação é que, dada a psicologia humana,
prazer preferido envolve «uma maior quantidade de desconten- podemos dedicar mais tempo e energia à poesia antes de ficarmos
tamento» (II: <ITS); cansados, ou aborrecidos, e perder o interesse.
e) Uma preferência evidente é tomada por pessoas que adqui-
A visão de Bentham é que a fonte de prazer (a atividade que lhe
riram hábitos de consciencialização e de auto-observação (II: dá lugar) é irrelevante: sendo a intensidade e a duração idênticas, um
<ilO). prazer é um prazer é um prazer. Quando Bentham diz que na mar-
1

1'
i
i gem o jogo de dardos é tão bom como poesia, ele não está a expressar
2. O critério de preferência evidente inclui quatro elementos: uma opinião baixa acerca da poesia (apesar de realmente ter essa opi-
i i a) As pessoas que estabelecem a comparação entre os dois pra- nião )6 mas sim a afirmar a sua doutrina hedonística.
zeres (atividades agradáveis) devem sentir-se competentes
com ambos, o que normalmente envolve ter experiência com
5 Em Jerey Bentham, Rationale of Reward, in The Works of Jeremy Bentham, Londres:
ambos; Simpkin, Marshall, 1843-1859, vol. II, p. 253.
b) Estas pessoas devem ter estabelecido hábitos de consciencializa- 6 Sobre este aspeto, ver os comentários de Mil! no ensaio «Bentham» em CW, vol. x,
ção e de auto-observação; pp. 113 e segs., onde fala «das opiniões peculiares de Bentham acerca de poesia». Ele
e) A preferência evidente a que se chega não deve ser influenciada diz que Bentham gostava de música, pintura e escultura, mas «relativamente à poesia
pelo sentido de obrigação moral; [... ]que emprega a linguagem de palavras, não morria de amores. As palavras, pen-

i 1 1

304 305
: i

·I
4. Há, no entanto, uma dificuldade que passamos a descrever. Mill taxa de troca a explicação deve-se às caraterísticas intrínsecas às ativi-
assegura em II: <[8 que as diferenças na quantidade e na intensidade dades que envolvem o exercício das faculdades superiores.
do prazer também estão presentes e são conhecidas pelas nossas pre- 6. Em resumo: a distinção de Mill entre a quantidade e a qualidade
ferências. Ou seja, que nas nossas decisões e escolhas também revela- de prazeres (atividades) é esta. Ele defende que quando olhamos para
mos as nossas estimativas de intensidade e quantidade de prazeres os modos de vida a que decididamente damos preferência, então os
diferentes. Mas, se assim acontece, como poderá o critério da prefe- programas de atividades (ao longo de um determinado período de
rência evidente distinguir entre a qualidade e a quantidade de praze- te?lpo, talvez um ano) que especificam estes modos de vida têm
res diferentes? vários traços caraterísticos:
A resposta reside, creio eu, na estrutura especial do programa de
atividades que especifica o nosso modo de existência preferido, bem a) Há essencialmente dois tipos de atividades a serem distingui-
como nas prioridades que revelamos no planeamento desse programa dos nestes programas, nomeadamente os que envolvem o exer-
e na sua revisão à medida que as circunstâncias mudam. cício das faculdades superiores vs. os que envolvem o exercício
Assim, o que mostra que um prazer (como atividade) é de uma das faculdades inferiores. Estes dois tipos de faculdades são
qualidade superior relativamente a outro é que não o iremos abando- encarados como fontes de tipos de prazer qualitativamente dis-
nar completamente (eliminá-lo do programa, do nosso modo de vida) tintos no sentido descrito;
em troca de qualquer quantia de realização de prazeres inferiores de b) Na programação das nossas atividades devemos, é claro, atri-
que a nossa natureza é capaz. Ao planearmos o nosso modo de vida buir uma posição significativa às atividades que dão lugar aos
(ou programarmos as nossas atividades) chegamos a um ponto em prazeres inferiores: isto é necessário para ter saúde e vigor nor-
que a taxa de troca dos prazeres inferiores pelos superiores é, pratica- mais e também bem-estar psicológico. Tendo assegurado este
mente, infinita. Esta recusa de abandono dos prazeres superiores por mínimo, uma maior concretização dos prazeres inferiores torna-
qualquer quantia dos inferiores mostra a prioridade especial dos supe- se de repente bastante menos importante e depressa atinge o
riores (II: <[<[5-6). nível zero;
5. Ainda temos uma questão sem resposta. Porque seguramente ao e) Por outro lado, acima deste mínimo, os prazeres superiores pas-
planearmos o nosso programa de atividades devemos chegar a um sam a dominar rapidamente e tornam-se no foco e centro do
ponto em que a taxa oposta da troca dos prazeres superiores pelos nosso modo de vida, tal como se vê no nosso programa de ativi-
inferiores também é praticamente infinita. A razão é que devemos dades durante a devida unidade de tempo. Acima deste mínimo,
reservar uma determinada quantia mínima de tempo e energia para nunca iremos desistir livremente, ou renunciar (como Mill diz
nos mantermos bem e saudáveis e de bom humor. Isto é necessário se em II: <[5), das atividades que dão lugar aos prazeres superiores,
quisermos efetivamente realizar as nossas outras atividades, parti- independentemente de quão grande poderá ser a recompensa-
cularmente as superiores. Para expressar a distinção de Mill entre quan- dora execução dos prazeres inferiores;
tidade e qualidade de prazer devemos dizer, então, que a explicação d) Finalmente, na avaliação feita acima em e), nenhuma explicação é
para as duas proporções de troca se tornarem praticamente infinitas se deduzida das vantagens circunstanciais, ou das consequências,
prende com o facto de serem diferentes. No caso de se salvaguardar o das atividades superiores enquanto grupo, exceto quando se
mínimo necessário que é preciso para nos mantermos bem e saudáveis torna necessário para ter a certeza de que o programa de ativida-
e de bom humor, a explicação é fisiológica e psicológica: diz respeito à des é praticável e exequível.
nossa forma física e ao nosso estado de espírito. Enquanto com a outra
São todas estas caraterísticas juntas que reforçam o termo «quali-
dade» vs. «quantidade» de prazer. Quando Mill fala acerca desta dis-
sava ele, estavam desviadas da sua devida função quando eram enunciadas sobre
qualquer assunto exceto sobre a verdade lógica e precisa». Mill diz que, mesmo tinção, tem em mente a estrutura especial do programa geral de
assim, a citação jogo de dardos/ poesia de Bentham «é só uma forma paradoxa de atividades que especifica o nosso modo de vida e a prioridade que
afirmar o que ele teria igualmente dito das coisas que mais valorizava e admirava». damos às atividades envolvendo o exercício das nossas faculdades

306 307
superiores. A nossa conceção de felicidade, então, é a de um modo de § 6. A PSICOLOGIA FUNDAMENTAL DE MILL
vida mais ou menos vivido com sucesso, tendo em conta expectativas
razoáveis daquilo que a vida consegue dar (II: <JI12). Dizer que há pra- 1. Passo agora para a análise de alguns aspetos da psicologia moral
zeres superiores vs. prazeres inferiores é simplesmente dizer que deci- que está na base da conceção de utilidade de Mill conforme declarado
didamente preferimos um modo de vida cuja estrutura especial em Utilitarianism. Esta psicologia consiste em vários princípios psicoló-
confere o foco central e a prioridade a essas atividades que invocam gicos importantes. Um deles - o princípio da dignidade - defende a
as faculdades superiores. ideia de felicidade que acabámos de discutir. Um outro princípio, visto
em III: <JI<JI 6-11, que a felicidade geral é reconhecida como padrão ético,
e que a humanidade tem o desejo de estar em união com os seus se-
§ 5. COMENTÁRIOS ADICIONAIS AO CRITÉRIO melhantes, defende a ideia de Mill acerca da derradeira sanção do prin-
cípio de utilidade visto como princípio básico de moralidade. Começo
DA PREFERÊNCIA EVIDENTE pelo princípio de dignidade.
Vimos como se pode dar significado às diferenças na qualidade de
(a) Primeiro, para os objetivos de Mill não me parece necessário prazeres, referindo-nos à estrutura e prioridades integradas nos modos
fazer distinções mais refinadas dentro da classe dos prazeres superio- de vida que nós, seres humanos normais, decididamente preferimos.
res ou da dos inferiores. Mill tenciona refutar a objeção feita por Car- Mas Mill não para com este critério. Ele diz (II: <JI<JI4 e 6) que nós tam-
lyle e outros de que o utilitarismo é uma doutrina adequada apenas a bém pensamos que uma vida sem estar focada nas atividades que
suínos. Ele contesta este ataque supondo uma visão baixa da natureza invocam as nossas faculdades superiores é uma forma de existência
humana e contrapõe com a sua distinção entre prazeres superiores e degradante.
inferiores. Tendo feito esta distinção e estabelecido a preferência evi- Diz ainda que podemos atribuir ao orgulho a relutância de levar
dente pelos prazeres superiores, Mill demonstrou o seu argumento. essa vida, ou ao amor pela liberdade e independência pessoal, ou mes-
Tendo em consideração toda a sua doutrina, mais aperfeiçoamentos mo ao amor pelo poder. Mas Mill julga que a explicação mais apro-
relativamente aos prazeres superiores e inferiores não são essenciais. priada reside num sentido de dignidade que todos os seres humanos
(b) Mill comenta (II: <JI8) que «nem dores nem prazeres são homo- possuem em proporção ao desenvolvimento das suas faculdades supe-
géneos, e a dor é sempre heterogénea com o prazer». Continua dizendo riores (II: <JI6). Presumo que queira dizer o seguinte: na proporção ao
que todas as distinções tanto no âmbito dos prazeres como no das grau em que as faculdades superiores foram concretizadas, através de
dores, e entre ambos, se refletem nos nossos julgamentos, e resultam formação e educação adequadas, e o seu desenvolvimento não foi atro-
nas nossas decisões e escolhas reais. Isto ainda reforça mais o facto de fiado por condições debilitadas ou falta de oportunidade, para não falar
que a distinção entre a qualidade e a quantidade de prazeres reside nas de circunstâncias hostis.
caraterísticas da estrutura especial e nas prioridades integradas no 2. Mill acredita que o nosso sentido de dignidade é tão importante
programa de atividades preferido que especifica o nosso modo de para nós que em tempo algum poderíamos desejar um modo de exis-
vida. tência que o violasse, sem uma explicação especial (II: <JI7). Pensar que
o desejo de manter a nossa dignidade se concretiza em detrimento da
(c) Acontece que é um mau erro pensar que a distinção que Mill
felicidade é, segundo Mill, confundir felicidade com contentamento.
faz entre a qualidade e a quantidade de prazeres reside nas diferenças
Levanta-se a questão de como a sua noção de dignidade se relaciona
entre as qualidades de prazeres e dores introspetivas como tipos de
com o que diz acerca dos prazeres superiores e inferiores. É uma outra
emoções ou experiências sensoriais. Todas as distinções que Mill faz, forma de fazer essa mesma distinção, ou acrescenta um outro elemento?
e precisa de fazer, refletem-se nas nossas decisões e escolhas reais. E será consistente com o seu utilitarismo?
Julgo que pretende dizer que todas estas distinções dependem de ques- O texto parece pouco claro acerca deste ponto. Irei supor que a noção
tões abertas à vista na estrutura especial e das prioridades do modo de dignidade realmente acrescenta um novo elemento. Uma questão
de vida que decididamente preferimos. é se poderá ser interpretada de forma consistente com a visão de Mill

308 309
tal como a apresentei; e irei debruçar-me sobre isto mais tarde quando
discutirmos a obra On Liberty. O elemento novo é o seguinte: não só
temos uma preferência evidente pelos prazeres superiores em detri-
mento dos inferiores, como também temos um desejo de ordem supe-
rior relativamente a termos desejos cultivados por um modo de vida
i. devidamente focado nas atividades superiores e capaz de as sustentar. MILL II
i !

Este desejo de ordem superior é um desejo que, primeiro, como


seres humanos com faculdades superiores, nos leva a querer concreti- A SUA EXPLICAÇÃO SOBRE JUSTIÇA
zar e a cultivar estas últimas, e segundo, nós temos desejos apropria-
dos para colocar as nossas faculdades superiores em ação e gozar do
seu exercício, e não temos desejos que interfiram com isto.
3. É importante assinalar que relativamente ao sentido de dignidade
Mill usa uma linguagem de ideais e perfeição humana (II: <j[6). Fala de
respeito próprio, posição social, estatuto e de certos modos de vida que
nós consideramos degradantes e indignos. Introduz, com efeito, uma
outra forma de valor para além do agradável e aprazível, nomeada- § 1. A NOSSA ABORDAGEM A MILL
mente o admirável e o digno juntamente com os seus opostos, o degra-
dante e o desprezíveF.
1. Esta é uma boa ocasião para explicar a nossa abordagem a Mill
O nosso sentido de dignidade está preso, então, ao nosso reconhe-
e relacioná-la com a que fizemos a Locke e Rousseau.
cimento de que alguns modos de vida são admiráveis e dignos da nossa
Quanto a Locke discutimos principalmente dois aspetos. Primeiro,
natureza, enquanto outros estão abaixo de nós e são desadequados.
analisámos a explicação que apresenta sobre legitimidade, isto é, o
É essencial acrescentar que o sentido de dignidade não deriva do sen-
seu critério para um regime legítimo que pode aparecer em contexto
tido de obrigação moral. Dizer isto entraria em conflito com uma das
de história ideal. Visto que isto se traduz num regime que pode ser
condições do critério da preferência evidente, bem como com o sentido
estabelecido por pessoas racionais sem violarem quaisquer deveres
de dignidade enquanto forma diferente de valor.
impostos sobre elas pela lei fundamental da natureza. E, segundo, estu-
dámos a explicação sobre propriedade defendida por Locke e como
era compatível com liberdades políticas básicas e desiguais (a qualifi-
cação da propriedade para obter direito de voto) e também com um
estado de classes.
Relativamente a Rousseau analisámos principalmente duas coisas:
primeira, a sua explicação sobre desigualdade no que diz respeito tanto
às origens históricas como às consequências sociais e políticas ao dar
lugar a vícios e males civilizacionais. Isto preparou-nos para a questão de
haver determinados princípios de direito e justiça que quando a socie-
dade concretiza através das suas instituições, esses vícios e males são
postos em causa, se não mesmo eliminados por completo. On the Social
Contract responde a esta questão. Rousseau considera que o compacto
social especifica os princípios desejados como normas de cooperação
7 Mill discute estes valores em «Bentham», CW, X, pp. 95 e segs., 112 e segs.; e em On política e social entre cidadãos livres e iguais; e tentámos compreender
Liberty, IV: <JI<JI4-12. a sua noção de vontade geral.

310 311
Vimos como Rousseau aprofunda mais do que Locke o estudo da justiça) de justiça como equidade? Aqui ficam pelo menos duas possí-
noção de compacto social. A sua visão do papel e significado de veis respostas:
igualdade (e de desigualdade) é mais profunda e central. Justiça
como equidade 1 segue Rousseau de mais perto em ambos estes aspe- a) Possivelmente, estes princípios de justiça política podem ser
tos. justificados - ou concluídos - nas duas visões, de modo a que
2. Começo por falar de um problema quanto à nossa compreensão
ambas os sustentem tal como o fariam num consenso imbri-
cante4.
da obra de Mill. Em muitos dos seus textos, Mill afirma determinados
princípios que, às vezes, chama de «princípios do mundo moderno». Em Restatement, disse que as partes na posição original,
Podemos considerá-los princípios de justiça política e social para a aquando da seleção de princípios para a estrutura básica, pode-
estrutura básica da sociedade2. rão usar o que chamei de função de utilidade baseada nas
necessidades e exigências fundamentais dos cidadãos concebi-
Irei discutir esses princípios pormenorizadamente nas próxi-
dos como pessoas livres e iguais, e caraterizados pelos dois
mas duas palestras, quando analisarmos os ensaios On Liberty e The
poderes morais, a capacidade para o sentido de justiça e a capa-
Subjection of Women; mas basta dizer que Mill os considera necessá-
cidade para a conceção do bem. Não se baseia nas preferências
rios para proteger os direitos dos indivíduos e das minorias de uma
e interesses reais das pessoas. Na utilização desta função de uti-
possível opressão por parte das modernas maiorias democráticas
(On Liberty, capítulo 1). lidade adequadamente construída elas adotariam os dois princí-
pios de justiças.
Creio que o conteúdo dos princípios de justiça política e social
A conceção de utilidade de Mill poderá ter muito do mesmo
apresentados por Mill se aproxima bastante do dos dois princípios de
justiça como equidade3. resultado. Isto é algo que pretendemos explorar.
Este conteúdo aproxima-se o suficiente, presumo, para podermos b) Por outro lado, Mill pode estar enganado ao pensar que a sua
considerar os seus conteúdos substanciais basicamente idênticos para doutrina leva aos princípios do mundo moderno. Poderá pen-
os nossos propósitos atuais. O problema que agora se levanta é o sar que a sua conceção de utilidade faz isso, mas, na verdade,
seguinte: como é que é possível que uma visão aparentemente utilitá- isso não acontece.
ria resulte no mesmo conteúdo substancial (os mesmos princípios de
3. Vou partir do princípio que a segunda resposta não está correta.
Presumo, então, que alguém com os enormes dons de Mill não se possa
1 Nome da conceção política de justiça desenvolvida por Rawls em A Theory of Justice, enganar acerca de algo tão básico relativamente a toda a sua doutrina.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971 (ed. rev. 1999); e em Justice as Fair- Pequenos erros e deslizes, sim - não têm importância e podemos re-
ness: A Restatement, ed. Erin Kelly, Cambridge: Mass.: Harvard University Press, 2001, solvê-los. Mas erros fundamentais a um nível básico: não. Devemos
citado doravante como Restatement. considerar isso como pouco plausível, a não ser que para nossa admi-
2 Uma estrutura básica da sociedade consiste nas suas principais instituições políticas ração não haja outra alternativa.
e sociais e no modo como se mantêm coerentes num sistema de cooperação (Restate-
ment, pp. 8 e segs.). Assinale-se que se trata de um preceito de método. Orienta-nos na
3 Os dois princípios de justiça como equidade são: (a) cada pessoa tem o mesmo forma como devemos abordar e interpretar os textos que lemos. Deve-
direito irrevogável a um esquema totalmente adequado de iguais liberdades bási- mos ter confiança no autor, especialmente num dotado. Se detetarmos
cas que é compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e (b) as desi- algo errado quando interpretamos o texto de uma determinada forma,
gualdades sociais e económicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem
ser ligadas a funções e posições abertas a todos sob condições de igualdade justa de
oportunidades; e, segundo, devem ser de grande benefício para os membros da 4 Um consenso imbricante é um consenso em que a mesma conceção política de jus-
sociedade menos favorecidos. Este último chama-se «princípio da diferença». tiça é aprovada pelas doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, apesar de
Alguns autores preferem o termo «princípio maximin», mas eu prefiro princípio da opostas, que ganham um significante número de aderentes e perduram de uma gera-
diferença para o distinguir da regra maximin para as decisões sob dúvida (Resta- ção para a outra (Restatement, pp. 32 e 184).
tement, pp. 42 e segs.). 5 Restatement, p. 107.

312 313
então podemos presumir que o autor também o teria feito. Por isso, é Estes princípios relacionam-se nitidamente de várias formas, como
provável que a nossa interpretação esteja errada. E então colocamos a alguns parecem apoiar ou estão na base de outros; por exemplo, po~e­
questão: como podemos ler um texto de modo a evitar as dificuldades? mos pensar que b) está na base de a), ou que, pelo menos, o ap01a.
Neste momento, suponho que a primeira alternativa seja a correta; Mas agora coloco estas questões de lado.
e, por isso, a conceção de utilidade de Mill, juntamente com os princí- 5. Não irei discutir se estes princípios são corretos ou incorretos,
pios fundamentais da sua psicologia moral e da sua teoria social, apesar de muitos os considerarem implausíveis. Fazem a doutrina de
leva-o a pensar corretamente que os seus princípios do mundo moderno Mill depender realmente de uma psicologia humana bastante especí-
seriam melhores do que os outros princípios que considera ao atribuir fica. Podemos julgar que é melhor para uma conceção política de jus-
uma grande importância à utilidade - ou seja, ao elevar a felicidade tiça ser mais robusta nos seus princípios e apenas depender, tanto
humana compreendida como um modo de existência (modo de vida)
quanto possível, de caraterísticas psicológicas d~ n..a~urez~ hu;n~na
tal como é descrita no importante II:<J.[3-10 de Utilitarianism.
mais evidentes ao senso comum. Contudo, se os prmc1p1os ps1colog1cos
4. Para verificar se compreendemos a doutrina de Mill, devemos
de Mill estiverem corretos, então, até agora, a sua doutrina é sólida.
ver os seus pormenores em ensaios como Utilitarianism, On Liberty e
Neste ponto há várias possibilidades. Uma conceção política pode
The Subjection of Women. Devemos perceber como é que ele trata várias
.depender de uma psicologia humana bastante específica; ou, então, de
questões políticas importantes e examinar a forma como a conceção
de utilidade está relacionada com os princípios do mundo moderno, uma psicologia mais geral juntamente com uma conceção normativa
e, em particular, com os princípios da justiça e da liberdade. bastante específica de pessoa e sociedade. Como exemplo dessa con-
Para este fim, tentarei mostrar que uma possível interpretação da ceção normativa, vejamos a que é usada em justiça como equidade7.
visão de Mill- sem fazer dela a mais plausível- pode ser considerada
utilitária, quando é compreendida em termos da sua conceção de uti- 7 Uma conceção normativa da pessoa e da sociedade é dada pelo nosso pensamento e
lidade6. prática de ordem moral e política, e não por traços biológicos ou p~icológi.cos. Em
Apesar de o interpretar como alguém que atribui importância a justiça como equidade, ao especificarmos a sociedade como um sistema 1usto de
valores perfeccionistas, a sua visão ainda é utilitária visto que não cooperação, usamos a ideia associada de pessoas livres e iguais como as que são
lhes concede um determinado tipo de peso como razões em questões capazes de desempenhar o papel de membros totalmente cooperantes durante toda
políticas, em particular questões de liberdade. Explicarei isto nas pró- uma vida. A conceção normativa e política da pessoa em justiça como equidade
ximas duas palestras. está ligada às capacidades das pessoas enquanto cidadãos. São livres e iguais, e detêm
os dois poderes morais: (1) a capacidade para o sentido de justiça (a aptidão de
Um traço especial da visão de Mill é que assenta numa descrição compreender, aplicar e agir a partir dos princípios de justiça política que especificam
psicológica particular da natureza humana, conforme expresso por os termos justos de cooperação); e (2) a capacidade para a conceção do bem (ter,
determinados principais princípios psicológicos bastante específicos. rever e seguir racionalmente um conjunto ordenado de finalidades e objetivos que
Mill refere-se a eles como: «as leis gerais da nossa constituição emo- especifica a conceção da pessoa relativamente ao que tem valor na vida humana -
cional» (Utilitarianism, V: <J.[3). Entre estes princípios encontram-se os estabelecida normalmente no âmbito de uma vasta doutrina religiosa, filosófica ou
seguintes, dos quais discutimos os dois primeiros na última palestra: moral. Também têm poderes de razão, inferência e julgamento necessários para exer-
cer os dois poderes morais.
a) O critério da preferência evidente: Utilitarianism, II: <J[<J.[5-8; As pessoas são iguais na medida em que se considera que todas têm, a um nível
b) O princípio de dignidade: Utilitarianism, II: <J[<J.[4, 6-7; Liberty, III: <J.[6; mínimo essencial, os poderes morais necessários para praticar cooperação social ao
e) O princípio de vida em união com outros: Utilitarianism, III: longo de uma vida inteira e participar na sociedade como cidadãos iguais. São livres
<J[<J.[8-11; na medida em que se concebem a si próprias e às outras como detentoras do poder
d) O princípio de individualidade: Liberty, III: <J[l; moral para ter uma conceção do bem, e da aptidão para revê-la e mudá-la de acordo
e) O princípio aristotélico: Utilitarianism, II: <J.[8. com fundamentos razoáveis e racionais se assim o desejarem. Não incorrem em
nenhuma perda de identidade se a sua escolha for essa. Também são livres visto que
se consideram fontes de autenticação própria de direitos válidos - como ter direito
6 Se a sua conceção de utilidade é, por si só, utilitária é uma questão completamente a exigir das suas instituições de modo a fazer prevalecer as suas conceções do bem
diferente. Acredito que não seja, mas para já coloco este assunto de lado. (Restatement, pp. 18-23).

314 315
1

1:11

I'.
1i,'' ,J'1

i 1

!
i

',
1'
i i Poderia conjeturar que as conceções políticas diferem no modo se encontra em aparente conflito com o princípio de utilidade. Então,
como concebem a divisão de trabalho entre conceções políticas nor- a questão que se coloca é a seguinte: poderá este sentimento ainda
mativas, por um lado, e princípios psicológicos básicos, por outro. assim ser explicado de modo consistente com o princípio de utili-
Com um princípio tão geral e abstrato como o de utilidade, mesmo dade? O que Mill pretende mostrar é que isso é possível. Ele argu-
como Mill o compreende, parece ser necessário haver uma psicologia menta que (a) dados os tipos de coisas que consideramos justas e
bastante específica para obter conclusões definidas. Ao passo que a injustas (segunda parte), e (b) dada a nossa constituição psicológica,
psicologia da justiça como equidade pode talvez ser mais geral, o que podemos explicar como surge o nosso sentido de justiça e por que
será explicado mais tarde. motivo tem a intensidade psicológica que efetivamente apresenta
(quarta parte). Mill declara o que espera mostrar em V: CJI3: «Se, em
tudo o que os homens estão habituados a caraterizar de justo ou
injusto, algum atributo comum ou coleção de atributos estiver sempre
§ 2. A EXPLICAÇÃO DE JUSTIÇA DE MILL presente, podemos supor que este atributo particular ou combinação
de atributos seria capaz de gerar em torno de si mesmo um senti-
1. No capítulo v, «Ün the Connection between Justice and Utility»,
mento desse caráter e intensidade peculiares em virtude das leis
o último e longo capítulo de Utilitarianism - que constitui mais de um gerais da nossa constituição emocional, ou se o sentimento for inex-
terço do ensaio - Mill apresenta a sua explicação de justiça. Guardou plicável, e necessitar de ser considerado uma provisão especial da
este tema para um tratamento completo, por pensar que a aparente Natureza.»
inconsistência entre o princípio de utilidade e as nossas convicções e Mill tentará mostrar, obviamente, que o primeiro é verdadeiro e
sentimentos de justiça é a única dificuldade real na teoria utilitária de que a intensidade do sentido de injustiça pode ser descrita em consis-
morais (V: CJI38). Das suas respostas torna-se, por vezes, evidente que tência com o princípio de utilidade e com a nossa psicologia moral.
as muitas outras objeções que examina se baseiam em mal-entendi- Mill resume o seu argumento em V: CJI23: «[ ... ]o sentimento de justiça
dos e em pior do que isso, de acordo com o que julga. Chega agora a parece-me ser o desejo animal a repelir ou retaliar uma lesão ou dano
um ponto que deve ter sido um problema grave. A sua fantástica dis- causado em si próprio, ou naqueles com que simpatizamos, alargando
cussão acerca desta questão deve ser fruto das suas próprias pesquisas. o espetro de modo a incluir todas as pessoas, pela capacidade humana
O meu plano do argumento de Mill no capítulo v sobre justiça é o de simpatia abrangente e pela conceção humana de interesse próprio
seguinte: inteligente. Dos últimos elementos [simpatia abrangente e interesse
Primeira parte: CJI<Jil-3: Afirmação do problema. próprio inteligente], o sentimento retira a sua moralidade; dos primei-
Segunda parte: CJICJI4-10: Seis tipos de conduta justa e injusta. ros [o desejo animal a repelir lesões contra si próprio], a sua peculiar
Terceira parte: CJICJIU-15: Análise do conceito de justiça. capacidade de impressionar e a energia de autoafirmação».
Quarta parte: CJICJI16-25: (a) Sentimento de justiça; e (b) Base de direi- Assim, o sentido de justiça não sustenta a visão intuitiva de que a
tos (mais tarde nos CJICJI24-25). justiça é algo sui generis. Na verdade, Mill defende que se adapta per-
Quinta parte: CJICJI26-31: Conflito de preceitos de justiça estabelecidos feitamente a uma explicação utilitária de justiça e a uma descrição psi-
apenas pelo princípio de utilidade. cológica plausível de como surge esse sentimento. A justiça não é um
Sexta parte: CJICJI32-38: Justiça definida como conjunto de regras neces- critério independente e isolado, juntamente com e, possivelmente,
sárias para o que é essencial no bem-estar humano. tendo um grande peso contrário ao princípio de utilidade. Com efeito,
é um dos derivados deste último.
2. Dois comentários gerais: (b) As duas últimas partes do argumento, a quinta e a sexta, exem-
plificam o tipo de justificação que Mill tentou dar ao princípio de uti-
(a) Na primeira parte do argumento, Mill afirma o problema para lidade: nomeadamente, que apesar de haver preceitos e critérios que
o capítulo v como um todo da forma que se segue: o sentimento, ou aparentemente entram em conflito com esse princípio, uma reflexão
sentido, de justiça tem uma grande intensidade psicológica e também cuidadosa mostra que não é isso que acontece. Isto corrobora a ideia

316 317
[,
1.;
:li 1

111

que assinalámos anteriormente: designadamente, que na sua justifica- e) Quanto a direitos, é injusto ser-se parcial, ou seja, deixar-se
1
ção do princípio de utilidade Mill alegava que era o único princípio influenciar por considerações que não deviam ter efeitos sobre o
1 '
moral com generalidade suficiente e conteúdo adequado para servir caso em questão. A imparcialidade - sendo influenciada exclusi-
como primeiro princípio de uma doutrina moral e política. vamente por considerações relevantes - é uma obrigação de jus-
Esta forma de argumento é agradavelmente revelada na quinta tiça sobre pessoas como os juízes, os professores e os pais que
parte: CJICJI26-31, em que argumenta que o conflito entre os vários pre- têm uma capacidade judicial (V: CJI9);
ceitos de justiça só pode ser resolvido através do recurso a um princí- f) Seguindo esta análise dos dados, Mill localiza o conceito de jus-
pio superior relativamente a qualquer um desses preceitos. Mill julga tiça na sua doutrina de utilitarismo como um todo. Atentemos
que, afinal, só o princípio de utilidade poderá servir este propósito. no esquema da figura 6.
Assim, por exemplo, em V: CJI28, diz o seguinte acerca daqueles que
concordam que uma ação é injusta, mas discordam entre si acerca das O termo «ponto de vista avaliador» para o conceito de valor mais
razões para o fazerem: «[ ... ] desde que a questão seja simplesmente geral é da minha autoria e não de Mill: todas as formas de valor que
discutida como sendo de justiça, sem abordar os princípios que estão Mill reconhece, morais, e não morais integram-se nele. A classificação
sob ela e constituem a fonte da sua autoridade, não sou capaz de per- de Mill não é cuidadosamente apresentada. Ainda assim, serve o seu
ceber como é que qualquer um destes argumentos pode ser refutado». objetivo de distinguir moralidade (correta e incorreta) do agradável, do
Os parágrafos finais de 32 a 38 apresentam as partes restantes da jus- admirável e do oportuno, ou do expediente; e então, sob a morali-
tificação de Mill relativamente ao seu princípio de utilidade. dade, de distinguir justiça de caridade e benevolência.
A definição de Mill de moralidade, correta e incorreta, é a se-
guinte: ações corretas são ações que devem ser feitas e ações incorre-
§ 3. O LUGAR DA JUSTIÇA NA MORALIDADE tas são ações que não devem ser feitas, relativamente às quais a falha
de agir adequadamente deve ser punida de alguma forma. Poderão
1. Na terceira parte do capítulo v Mill examina vários tipos de ações e ser punidas pela lei, pela desaprovação pública (opinião moral) e por
instituições que a opinião moral geral considera justas e injustas. acusações de consciência. Aqui há três tipos muito diferentes de san-
Assim, descreve, por assim dizer, os dados: a sua explicação de justiça ções. As considerações de utilidade determinam se uma acção deve ser
resultante de utilidade e os princípios de psicologia moral que devem feita ou não. Também determinam que sanção é melhor para aplicar em
integrar-se nos pontos que aborda nesta análise. diferentes tipos de casos. «Acusações de consciência» diz diretamente
Mill apresenta seis pontos, resumidos brevemente a seguir: respeito à educação moral. Algumas ações são melhor sancionadas
educando as pessoas para que as suas consciências as acusem por
a) É comummente aceite como injusto violar, e como justo respeitar, terem cometido essas ações.
os direitos legais das pessoas (V: CJIS). (Aqui está implicitamente
assumido que a lei não é injusta.);
b) Mas algumas leis podem ser injustas, visto que às vezes se dão às Moralidade: correta e incorreta o agradável o admirável o expediente

1\
pessoas direitos legais que não deveriam ter; e às vezes são-lhes (Utíl., li, ~23)

~
negados direitos legais que deveriam ter. Assim, um segundo
tipo de injustiça está a retirar das pessoas aquilo a que têm direito deveres deveres
perfeitos imperfeitos o perfeito o oportuno
moral (V: CJI6);
e) É justo que as pessoas tenham aquilo que merecem, bom ou
mau, e injusto que tenham o que não merecem - e de novo, bom ~
justiça
~
caridade
ou mau (V: CJI7); e benevolência
d) É injusto faltar à palavra dada ou violar acordos; bem como
desapontar legítimas expectativas (V: CJI8); FIGURA 6 -Mill: O ponto de vista avaliador

318 319
Assim, para resumir a ideia de Mill: uma ação é incorreta se, diga- circunstâncias muito pouco habituais; trata-se especialmente do caso
mos, for um tipo de ação que não só tem más consequências quando com os direitos básicos de justiça.
geralmente cometida, mas também quando as suas consequências são De facto, a instituição de direitos é designada para inibir, tornar
tão más que fazem aumentar a utilidade social geral para estabelecer desnecessárias, as nossas utilidades calculistas em casos particulares.
as sanções apropriadas de modo a garantir um certo grau de confor- A segurança que os direitos básicos fornecem ficaria ameaçada se se
midade (não necessariamente uma conformidade perfeita, pois isso espalhasse a convicção de que um direito poderia ser violado tendo
exigiria medidas draconianas). O estabelecimento destas sanções é em conta os ganhos menores que tais cálculos poderiam revelar.
sempre dispendioso em termos de utilidade. Envolve os custos da polí- Resumindo: ter um direito não depende do equilíbrio de utilidades
cia, dos tribunais e das prisões. Apesar de menos óbvias, as sanções de casos particulares, mas sim das normas (legais ou de outra ordem)
de opinião moral pública e de consciência também implicam inutili- de justiça e da sua utilidade enquanto tal quando são geralmente apli-
dades. No entanto, o que se ganha, em geral, no caso das ações incorre- cadas. Contudo, um direito poderá ser ultrapassado, mas só em casos
tas é considerado suficiente para justificar a sua imposição. excecionais quando os ganhos e perdas da utilidade são claramente
3. Mill pensa que o que distingue o justo do injusto dentro da cate- enormes de uma forma ou de outra. Nestas circunstâncias excecio-
goria mais alargada de corretos e incorretos, por exemplo, da cari- nais, suspende-se a regra contra ser-se guiado por utilidades num caso
dade ou beneficência e a falta dela, é a ideia de um direito pessoal. Diz particular.
ele: «A justiça implica algo que não é só correto fazer, e incorreto não
fazer, mas também o que qualquer indivíduo [imputável] poderá rei-
vindicar de nós como o seu direito moral» (V: <JI15). Contrariamente, § 4. CARATERÍSTICAS DOS DIREITOS MORAIS EM MILL
nenhum indivíduo imputável tem direito moral à nossa beneficência
ou caridade. Os deveres «perfeitos» de justiça têm direitos correlativos 1. Para Mill, os direitos morais têm três caraterísticas. Isto aplica-se
em algumas pessoas imputáveis, e estas pessoas reivindicam legiti- especialmente aos direitos políticos e sociais que ele considera essen-
mamente da sociedade que os seus direitos sejam garantidos. Mill diz ciais às instituições do mundo moderno, que irei descrever nas próxi-
posteriormente: «Quando designamos qualquer coisa de direito de mas duas palestras. Neste ponto baseio-me em V: <JI<JI16-25, 32-33.
uma pessoa, queremos dizer que ela tem legitimidade para exigir da Uma das caraterísticas é a seguinte: para haver direitos morais, tais
sociedade que o proteja na sua posse, tanto pela força da lei como pela como os de justiça, deve haver razões de especial importância que os
da educação e opinião. Se ela tem razão suficiente, seja qual for o motivo, sustente. Estas razões devem ser suficientemente importantes para
para ter alguma coisa assegurada pela sociedade, dizemos que tem justificar a exigência de que as outras pessoas respeitem esses direitos
direito a ela» (V: <JI24). «Ter direito, então, é, creio eu, ter algo que aso- pela força da lei, se necessário. Por conseguinte, estas razões devem
ciedade me deve proteger por estar na minha posse. Se o objetor conti- ser suficientemente urgentes para justificar a instalação dos aparelhos
nuar a perguntar porque é que deve, não há mais nenhuma razão que institucionais necessários para assegurar essa finalidade.
lhe possa dar para além de utilidade geral» (V: <JI25). Tal como Mill explica: estas razões relacionam-se com «as coisas
4. Tal como interpreto Mi118, a posse de direitos é especificada por essenciais do bem-estar humano» (V: <JI32), com «OS fundamentos reais
normas de direito e justiça que são geralmente aplicáveis. Frequente- da nossa existência» (V: <JI25). Repito, estas razões baseiam-se nos tipos
de utilidade que são «extraordinariamente importantes e assinaláveis»
mente, mas não sempre, são normas legais que têm uma justificação
(V: 'IT25).
apropriada. Mas, para Mill, ter um direito não depende de utilidades
2. Uma segunda caraterística destes direitos morais é o seu cará-
(custos e benefícios) num caso particular. Apesar de os direitos num
ter perentório: com isto pretendo dizer que, para Mill, ter tal direito
caso particular poderem ser ultrapassados, isto só pode acontecer em
é ter uma justificação moral (por oposição a uma meramente legal)
para exigir algo: por exemplo, a nossa liberdade é respeitada por
8 Aqui sigo Fred Berger em Happiness, Justice, and Freedom, Berkeley: University of Cali- outros, através de sanções legais, ou da opinião moral geral, desde
fornia Press, 1984, p. 132. que seja apropriado. Apesar de estes direitos não serem absolutos -

320 321
ou seja, poderão às vezes ser ultrapassados, e frequentemente por ou:
outros desses direitos, pois podem entrar em conflito uns com os
b) Através de recurso a direitos morais, a saber, os de justiça polí-
outros - não podem, como vimos, ser ultrapassados exceto por
tica e social. Estes direitos morais que consideramos previa-
razões de importância e urgência muito especial.
mente identificáveis e independentes da natureza especificam as
Assim, Mill sugere, por exemplo, que os direitos de justiça não
instituições legais vigentes. Mais propriamente, verificamos o
podem ser ultrapassados por razões de política, ou a melhor forma de
que estes direitos são considerando as necessidades e exigências
gerir algum departamento de relações humanas. Ver V: CJ[CJ[32-33: aqui
básicas de indivíduos. O conjunto destas últimas faz basear as
diz que não nos iludimos ao pensarmos «que a justiça é algo mais
pretensões das pessoas nos direitos de justiça. São referidas por
sagrado do que a política, e que esta última só deve ser ouvida depois
Mill quando invoca «OS verdadeiros fundamentos da nossa exis-
de a primeira ter sido satisfeita» (V: CJ[32). Esta observação parece afir-
tência» (V: CJ[25), as «coisas essenciais do bem-estar humano»
mar algo como a prioridade da justiça básica. Como também acontece
com a que Mill acrescenta posteriormente: «A justiça é um nome para (V: CJ[32), e através de outras locuções semelhantes.
determinadas classes de regras morais, que dizem respeito às coisas
essenciais do bem-estar humano mais próximo, e são, portanto, de maior Estes dois tipos de justificação são bastante diferentes: pensando
obrigação absoluta do que quaisquer outras regras de orientação de vida» no caso do Congresso a considerar o estabelecimento de um sistema
(V: CJ[32). Mill continua dizendo que a essência da justiça é a de um direito de apoio aos custos para certas colheitas, de modo a estimular a pro-
residente num indivíduo, o que comprova e implica uma obrigação mais dução, a minimizar as alterações de preço, e afins. Trata-se de uma
vinculativa. As normas morais de justiça que nos proíbem de interferir questão política. Ninguém supõe que os agricultores tenham o direito
erradamente com a liberdade uns dos outros são: «[ ... ] mais vitais ao moral básico a um sistema de apoios a despesas. Contrastemos isto com
ser humano do que quaisquer máximas que, por muito importantes os direitos básicos, liberdade de consciência e direito de voto, por exem-
que sejam, só apontam o melhor modo de gerir algum departamento de plo. As questões de política poderão ser corretas ou a melhor coisa a
relações humanas» (V: CJ[33 ). Tudo isto pressagia a conhecida distinção fazer em determinadas circunstâncias; mas legalmente proteger os
de Dworkin entre questões de princípio e questões de política, bem como direitos de justiça é um assunto diferente.
a sua ideia de os direitos serem considerados trunfos9. A questão é a seguinte: a política de apoios a despesas (como no
Uma terceira caraterística dos direitos morais, especialmente dos exemplo supracitado) justifica-se invocando o bem-estar da sociedade
de justiça, é que as pretensões que validam têm força perante a lei e as como um todo, ou recorrendo ao bem comum; enquanto a justificação
instituições vigentes. Quando estes acordos negam essas pretensões, através de leis com referência rápida aos direitos de justiça não serve.
dever-se-ia considerar a reforma da lei e das instituições e, dependendo Na verdade, a visão de Mill refere as exigências essenciais indepen-
das circunstâncias, pode ser justificada. dentemente identificáveis de indivíduos sobre as quais se baseiam
3. Mas agora coloca-se-nos o seguinte problema: há duas maneiras esses direitos.
pelas quais os direitos legais, reconhecidos pelas leis e instituições, Ao especificar os direitos de justiça aparentemente não há nenhuma
podem ser justificadoslü: referência ao bem-estar social coletivo. Quando Mill identifica as coi-
sas essenciais do bem-estar humano, ou os elementos fundamentais
a) Através de recurso a um princípio adequado de política, ou a um
da nossa existência, não o faz por via da ideia de maximização da uti-
princípio do bem comum, e talvez também ao princípio de
lidade total. Ele olha para as necessidades básicas dos indivíduos e
organização eficiente ou efetiva;
para o que constitui a base real da sua existência. Contudo, Mill tam-
bém diz que se lhe perguntarem porque devemos proteger legalmente
9 Ver Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Mass.: Harvard University os direitos de justiça, não pode alegar «outra razão a não ser utilidade
Press, 1978, pp. xi, 184-205. geral» (V: CJ[25).
10 Esta distinção encontra-se em H. L. A. Hart em «Natural Rights: Bentham and
John Stuart Mill», no seu livro Essays on Bentham, Oxford: Clarendon Press, 1982,
pp. 94 e segs. Estou muito em dívida para com este ensaio.

322 323
§ 5. O CRITÉRIO DE DUAS PARTES DE MILL Assinale-se que Mill diz que a opinião comum defendia a visão de
que o justo, enquanto «genericamente distinto do [ ... ] expediente [ou
1. Mill parece empenhado num critérioll de duas partes para utilidade social coletiva: II: <J[23], e em ideia oposta a ele», coincide
identificar os direitos básicos de indivíduos, que interpreto aqui como · sempre com ele a longo prazo. Sobre isto, ver as suas observações em
direitos básicos de justiça política e social. As duas partes são: V: <J[l-2.
i) Primeira parte: consideramos as coisas essenciais do bem-estar
Isto sugere que no capítulo v Mill preocupa-se principalmente com
duas coisas:
humano, para os fundamentos da nossa existência: tanto uns
como outros (aparentemente) justificam os direitos morais para Uma é dar conta da intensidade psicológica (ou força) do nosso
além das considerações coletivas; sentido de injustiça em conformidade com o princípio de utili-
ii) Segunda parte: consideramos essas regras gerais cuja aplicação dade; e
é especialmente produtiva em utilidade social no sentido cole- A outra é explicar como poderá haver, numa visão utilitária,
tivo, e, portanto, tendem a maximizar essa utilidade. certos direitos morais e direitos de justiça que a sociedade deve pro-
teger, permitindo violações apenas nos casos mais excecionais.
Se a explicação de Mill quanto a direitos é evitar contradições,
então justifica-se que o seu critério de duas partes esteja sempre em O meu problema, contudo, e o de Hart, é: não entendemos como,
convergência (excluindo casos bizarros)12. por aquilo que foi dito, podíamos saber que, em geral, a aplicação de
Isto significa que: pensando a longo prazo, a maximização da uti- direitos iguais para todos maximiza a utilidade tal como Mill a consi-
lidade social em sentido coletivo exige normalmente, se não sempre, dera. Para assegurar isto, não deveríamos fazer sempre suposições
o estabelecimento de instituições políticas e sociais para que as nor- muito especiais? Se sim, que suposições? E, em particular, que supo-
mas legais especifiquem e apliquem a proteção dos direitos básicos de sições especiais faz Mill? A identificação destas últimas define parte
justiça. Estes últimos são identificados por aquilo que constitui os da nossa tarefa de compreender Mill. Regressarei a este aspeto mais
fundamentos reais da nossa existência individual. E a aplicação des- tarde.
tas normas salvaguarda e protege para todas as pessoas de igual 3. Incidentemente, não ajuda recorrer à máxima de Bentham «todos
forma os elementos essenciais ao bem-estar humano, os quais susten- contam por um, e ninguém por mais de um». A razão é que:
tam os direitos de justiça. a) Vista por um lado, é simplesmente uma norma que resulta do
2. Mas, como podemos saber se as duas partes do critério de Mill
modo como a utilidade deve ser medida: nomeadamente, a
coincidem sempre? Ele não tenta mostrar no capítulo v que a maximi- utilidade igual de pessoas diferentes deve ser pesada de igual
zação da utilidade social geral exige que todas as pessoas sejam salva- forma ao atingir a soma total da utilidade social. A função da
guardadas nos mesmos direitos iguais de justiça. Porque é que não é utilidade social é simplesmente uma soma linear de utilida-
possível que uma maior utilidade social seja alcançada negando a uma des (uma para cada pessoa) com importâncias idênticas para
determinada minoria alguns dos direitos iguais? Não é preciso negar- todas as pessoas. Sobre isto, ver a nota de rodapé ao V: <J[36.
-lhes totalmente os direitos morais de justiça, mas porque é que todos H. S. Maine' s Brahmin contradiz esta regra quando diz que a
devem gozar de proteção idêntica de todos os direitos morais de jus- utilidade de um Brahmin deve pesar 20 vezes mais do que a
tiça? Em que se fundamenta Mill para acreditar que todos devem ter daqueles que não são Brahmins13.
os mesmos direitos iguais, os quais devem ser salvaguardados de igual Esta interpretação de que «todos [cada] contam por um» é
forma? simplesmente um truísmo sobre medir e calcular a utilidade

11 Hart, «Natural Rights», p. 96. 13 Ver H. S. Maine, Lectures on the Early History of Institutions, Londres: Murray, 1897,
12 Não exigimos que eles convirjam necessariamente. pp. 399 e segs.

324 325
social. Diz que prazeres são prazeres; devem ser pesados de § 6. O DESEJO DE ESTAR EM UNIÃO COM OUTROS
igual modo independentemente das circunstâncias em que
ocorrem. É justiça igual para prazeres iguais: mas isso é exata- 1. Na última palestra analisámos o sentido de dignidade como
mente em que consiste medir! Comparemos isto à medição de princípio psicológico que apoia a visão de felicidade que Mill apresenta
uma determinada quantidade de água: um quarto num reser- como um modo de vida, dando um lugar especial e prioridade a ati-
va tório é igual a um quarto noutro. Mas isto não aborda a vidades envolvendo o exercício das faculdades superiores. Debruçamo-
questão do motivo pelo qual direitos iguais devem ser salva- -nos agora noutro princípio da sua psicologia, o desejo de estar em
guardados para todos. A resposta de Mill parece estranha- união com outros. Este último é analisado em III: <J[<J.[8-11, em relação
mente inconsciente relativamente a esta questão. Não percebo ao qual Mill designa de derradeira sanção de moralidade utilitária.
porquê; Isto inclui o desejo, ou vontade, de agir justamente, e, portanto, faz
b) Visto por outro lado, «todos contam por um» significa que sentido discuti-la neste momento.
todos têm «Uma pretensão idêntica a todos os meios da felici- Como já disse, o capítulo III apresenta parte da psicologia moral
dade»; ou que «todas as pessoas têm direito a igualdade de de Mill e a sua explicação de como nos podemos mover a partir do
tratamento»; mas Mill acrescenta, «exceto quando alguma (e não meramente de acordo com) princípio de utilidade e das exigên-
oportunidade social reconhecida exige o inverso» (V: <J.[36 ). cias de justiça. Em algumas passagens, este capítulo é pouco claro;
A injustiça, então, consiste em parte nessas desigualdades que mas penso que podemos satisfatoriamente retirar dele algum sentido
não se justificam através de oportunidade social, pelo que é tendo em conta os nossos objetivos.
necessário para maximizar a utilidade social a longo prazo. Um dos principais pontos de Mill é que, independentemente da
Esta segunda interpretação deixa-nos no ponto onde estáva- nossa explicação filosófica de julgamentos morais, quer pensemos
mos. que as distinções morais tenham uma base transcendental ou obje-
tiva, ou que a nossa visão seja naturalista ou mesmo subjetiva, ainda
4. Ficamos com duas questões a que devemos tentar dar resposta. assim é verdade que enquanto agentes morais não agimos a partir de
Primeiro, porque é que Mill confia tanto no facto de as duas partes princípios morais a não ser que sejamos movidos pela nossa consciên-
do seu critério para identificar os direitos básicos de justiça não diver- cia,. ou por convicção moral, ou por alguma outra forma de motivação
girem? Ou, alternativamente, porque é que acredita tanto que as insti- moral. Uma conduta correta deve ter algum tipo de base na nossa
tuições políticas e sociais que concretizam os princípios do mundo natureza e caráter. Assim, uma doutrina transcendentalista ou intui-
moderno - princípios com um conteúdo de algum modo semelhante tiva, tanto quanto a utilitária ou outra qualquer, deve incluir uma psi-
aos dois princípios de justiça como equidade - são necessárias para cologia moral.
maximizar a utilidade social (a longo prazo), tendo em conta as con- Outro dos principais aspetos de Mill é que a experiência histórica
dições históricas desse mundo? E como é que a sua resposta conta mostra que podemos ser educados a agir a partir do princípio de uti-
com a sua conceção de utilidade de acordo com o que declara em lidade bem como de outros princípios morais. Ele defende que o prin-
Utilitarianism, II: <JI<J.[3-10. cípio de utilidade tem uma base de apoio na nossa psicologia moral
Segundo, se a nossa conjetura de que a confiança de Mill reside pelo menos tão segura e natural quanto a de qualquer outro princípio.
em determinados princípios psicológicos bastante específicos da 2. Concentro-me agora nos <J[<J.[8-11, que concluem o capítulo III.
natureza humana está correta, então que princípios mais específicos Os <J[<J.[8-9 formam uma unidade, tal como os <JI<J.[10-11. Comecemos
são estes, e como é que Mill pensa que funcionam conjuntamente com com os 8-9. Aqui Mill afirma várias teses gerais da sua psicologia moral,
a sua conceção de utilidade para justificar os seus princípios do que vamos conhecer a seguir.
mundo moderno? Com a doutrina de Mill totalmente apresentada,
teremos de questionar se é utilitária em sentido apropriado. Mas, por a) Os nossos sentimentos e atitudes morais não são, certamente,
enquanto, colocamos essa questão de lado. O nosso primeiro objetivo inatos no sentido em que se encontram espontaneamente pre-
deve ser compreender a sua visão. sentes em todas as pessoas sem formação e educação; mas,_ tal

326 327
como as capacidades ensinadas de falar e raciocinar, construir em união com outros é o desejo de agir a partir tj.o princípio de
cidades ou trabalhar na agricultura são uma consequência natu- reciprocidade. Pois ele diz no 110 que o sentimento de união
ral da nossa natureza, os sentimentos e as atitudes morais são com outros, quando perfeito, nunca nos faria desejar alguma
capazes de surgir, em certa medida, espontaneamente, e são condição benéfica para nós próprios, em cujos benefícios os
também suscetíveis de serem levados a um nível alto de cultiva- outros também não estariam incluídos14;
ção e desenvolvimento; b) Porque é que este desejo é uma consequência natural da nossa
b) Mill garante que através de uma utilização suficientemente ex- natureza? Mill pensa que o próprio estado social não só nos é
tensa de sanções externas e de formação moral inicial orientada natural, como também necessário e habitual. Quaisquer carate-
pelas leis de associação a nossa faculdade moral pode ser culti- rísticas da sociedade que lhe sejam essenciais tendemos a consi-
vada em quase todas as direções. Mas existe esta diferença: asso- derá-las igualmente essenciais para nós. A sociedade é o nosso
ciações iniciais que sejam inteiramente criações artificiais, e que habitat natural, por assim dizer, e, portanto, o que lhe é essencial
não tenham nenhum apoio na nossa natureza, produzem gra- deve estar em harmonia com a nossa natureza. Mas, como é que
dualmente para a força dissolvente de análise intelectual. A não as caraterísticas essenciais à sociedade moderna foram afetadas
ser que o sentimento de dever seja associado a um princípio agra- pelos avanços da civilização? O desejo de estar em união com
dável à nossa natureza e se encontre em harmonia com os seus outros é cada vez mais caraterístico da época atual; por isso,
sentimentos naturais, será sobre a análise intelectual que perderá Mill deve julgar que há caraterísticas especiais de uma socie-
gradualmente o seu poder de nos mover. Isto faz parte do critério dade em progresso que cada vez mais sustenta esse desejo;
de Mill sobre o natural por oposição ao artificial; e) Mill dá uma explicação breve acerca destas características no
e) Assim, Mill precisa de mostrar que dado o conteúdo do princí- longo parágrafo 10 do capítulo III. Não estão nitidamente enu-
pio de utilidade, os sentimentos de dever e obrigação moral meradas, mas a sua principal ideia parece ser que inúmeras
associados a ele satisfazem esta condição essencial. Porque se mudanças estão a tornar a sociedade moderna cada vez mais
não o fizessem, seriam artificiais e, portanto, dissolver-se-iam numa em que as pessoas reconhecem que devem, obviamente,
perante a reflexão e análise. prestar a devida atenção aos sentimentos e interesses de outros.
A crescente igualdade da civilização moderna, e a grande escala
3. Mill tenta mostrar isto nos 1110-11. Começa por dizer que há de cooperação com outras pessoas, propondo-lhes objetivos
um sentimento natural poderoso na natureza humana que apoia o coletivos, fizeram-nos perceber que temos de trabalhar juntos
princípio de utilidade, nomeadamente o desejo de estar em união para fins partilhados e não individuais;
com outros. Este desejo é tal que, mesmo para além da aprendizagem d) A crescente igualdade da sociedade moderna surge da seguinte
baseada nas leis de associação, tende a tornar-se mais forte devido às forma: Mill pensa que qualquer sociedade entre seres humanos,
influências da civilização em progresso. Consideremos, primeiro, o
exceto a que existia entre senhor e escravo, não se concretiza a
conteúdo deste desejo de estar em união com outros, e segundo, as
não ser que os interesses de todos sejam consultados; e uma
influências que o tornam mais forte à medida que a civilização pro-
sociedade entre pessoas que se consideram iguais só pode exis-
gride:
tir se os interesses de todos forem respeitados de igual modo.
a) Mill descreve o conteúdo deste desejo no 111 como o desejo de Em cada fase da sociedade, todos «exceto um monarca abso-
que não devemos rivalizar com outros relativamente aos meios luto, vivem em termos iguais com alguém; e em todas as épocas
de alcançar a felicidade. É também o desejo que deve haver har-
monia entre os nossos sentimentos e objetivos e os sentimentos
14 O facto de Mill dizer isto leva-nos a questionar se o princípio da diferença (ver Res-
e objetivos dos outros, para que os objetivos da nossa conduta e tatement, pp. 42 e segs.) é uma expressão mais adequada da visão de Mill acerca de
os da deles não entrem em conflito mas que se complementem igualdade e justiça distributiva do que o princípio de utilidade. No entanto, não é
uns aos outros. O que Mill tem em mente é que o desejo de estar minha intenção desenvolver este assunto aqui.

328 329
avança-se para um estado em que será impossível viver per-
manentemente noutros termos [para além da igualdade] com
alguém». Por isso o avanço da civilização em direção a uma
maior igualdade reforça o desejo de estar em união com outros.

1
1

1
Além disso, este desejo é agradável e está em harmonia com a MILL III
nossa natureza, não sendo também artificial. Porquê? Porque a condi-
ção de igualdade é natural à sociedade. É o resultado da retirada de O PRINCÍPIO DE LIBERDADE
barreiras históricas e de desigualdades de poder e propriedade deri-
vadas da força e da conquista, tendo sido mantidas por muito tempo
pelo domínio, ignorância e pelo estado geralmente empobrecido da
sociedade inicial.
4. Para além, então, do princípio da dignidade, qual é a derradeira
sanção do princípio de utilidade com o seu interesse de justiça igual?
Na descrição de Mill parecia haver dois componentes. O primeiro é o
desejo de estar em união com outros, com apoio e reforço das condi-
§ 1. O PROBLEMA DE ON LIBERTY (1859)
ções da igualdade moderna; enquanto o segundo tem a ver com cer-
tas convicções e atitudes relacionadas com esse desejo.
Este segundo componente precisa de ser esclarecido. Julgo que 1. Começo apresentando o problema de On Liberty tal como Mill o
Mill pretende dizer que para aqueles que têm este desejo este parece formula no capítulo 1. Não se trata do problema filosófico do livre
ser tão natural como os sentimentos que o acompanham. Ou seja, não arbítrio, mas o da liberdade civil ou social. É o que é referente «à natu-
lhes surge através de reflexão ou análise como um desejo imposto por reza e limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela so-
educação guiada pelas leis de associação, ou por leis baseadas no ciedade sobre o indivíduo». Trata-se de um problema antigo, mas um
poder intimidatório da sociedade, de tal modo que, tendo compreen- que, segundo Mill, no estado da sociedade de Inglaterra de hoje em dia,
dido isto, o desejo tende a desaparecer. Contrariamente, pensam que assume uma forma diferente sob novas condições. Exige, portanto, um
este desejo é um atributo sem o qual não seria bom viver. tratamento diferente e, na opinião do autor, mais fundamental (I: CJl:l).
Assim, através do critério de Mill do artificial vs. natural, o desejo O que Mill tem em mente é que o problema da liberdade, como ele o
de viver em união com outros é natural e não determinado pela aná- antecipa, irá aparecer na nova época orgânica em que a sociedade será
lise. E é esta convicção (na verdade todas estas convicções e atitudes democrática, secular e industrial.
juntas) acerca do desejo de estar em união com outros que Mill diz ser A questão não é proteger a sociedade da tirania dos monarcas,
a derradeira sanção do princípio de utilidade, logo, a derradeira base ou governantes em geral, pois foi determinado pelo estabelecimento
da nossa vontade de fazer justiça. de várias verificações ao poder governamental, bem como pelas
Levanta-se agora a seguinte questão: quão sólida é a resposta ou imunidades e direitos políticos. O problema diz respeito aos abusos
explicação que Mill apresenta aqui? Podemos realmente entendê-la? do próprio governo democrático, em particular o abuso de poder
Precisamos de nos esforçar mais? Como poderemos tentar? que as maiorias exercem sobre as minorias. Diz Mill: «A vontade do
povo [ ... ] traduz-se praticamente na vontade dos mais numerosos
ou da parte mais ativa do povo"'""" a maioria, ou aqueles que conse-
guem ser aceites enquanto tal; o povo, consequentemente, pode
desejar oprimir uma parte desse número; e as precauções são tão
necessárias contra isto como contra qualquer outro abuso de poder»
(I: CJI4). Assim, a preocupação de Mill é a chamada «tirania da maio-

330 331
; l

ria», para a qual Tocqueville tinha anteriormente chamado a aten- razões que normalmente têm pelas suas convicções morais. [Ver tam- 1

çãol. bém V: <:![12.]


2. Assinale-se, contudo, que Mill também se preocupa com «a tira- 4. A opinião moral que prevalece em sociedade tende, segundo
nia da opinião e sentimento prevalecentes [... ] a tendência de a socie- Mill, a ser um conjunto de preferências irracionais e irrefletidas e de
dade impor, por outros meios para além das penalizações civis, as apoio mutuamente partilhado. Porém, estas opiniões são influencia-
suas próprias ideias e práticas como normas de conduta sobre aque- das por vários tipos de causas:
i:
1, les que divergem dela; restringir o desenvolvimento [... ] de qualquer
1 a) Por exemplo, havendo uma classe social ascendente, uma grande
individualidade que não se encontre em harmonia com os seus
porção da moralidade de um país reflete os seus interesses bem
modos [ ... ] Há um limite para a legítima interferência da opinião
como os seus sentimentos de superioridade de classe;
coletiva com independência individual; e encontrar esse limite, e
b) De igual modo, os interesses gerais e óbvios da sociedade têm
mantê-lo contra a usurpação, é tão indispensável para uma boa con-
uma quota-parte de responsabilidade e, em larga medida, atra-
dição das relações humanas como a proteção contra o despotismo
vés da influência da opinião moral; por isso, o papel da utilidade
político» (I: <:![5). Além do mais, Mill prevê que este problema irá ocor-
(no sentido lato de Hume de um recurso a esses interesses) não
rer sob as novas condições da iminente sociedade democrática em
deixa de ser importante. Contudo, estes interesses gerais criam
que a recente classe trabalhadora com direito a votar - a classe mais
os seus efeitos não tanto por serem reconhecidos pela razão, mas
numerosa - terá o voto.
mais como consequência das simpatias e antipatias que geram.
A questão, então, é determinar, sob estas novas circunstâncias,
qual o «ajustamento adequado entre independência individual e
Assim, resumindo o argumento de Mill, os gostos e os desgostos
controlo social» (I: <:![6). Algumas regras de conduta, legais e morais,
da sociedade, ou de alguma parte dominante da sociedade, são os
são nitidamente necessárias. Esta questão não se resolve da mesma
principais elementos que determinaram, até agora, :s regras. para
maneira em duas gerações e, todavia, cada uma julga que a sua é
uma observância geral, a qual foi reforçada pelas sançoes da lei e da
«evidente e justificável por si mesma» (I: <:II 6).
opinião prevalecente. E «onde quer que o sentiment? da maiori~ s~ja
3. Neste ponto Mill realça um número de faltas caraterísticas da
ainda genuíno e intenso, verifica-se a anulação parcial do seu direito
opinião moral prevalecente. Assim, esta opinião é normalmente irre-
de ser obedecido» (I: <:![7).
fletida, e é o efeito do hábito e da tradição. Provavelmente as pessoas
5. Analisámos estes detalhes porque nos ajudam a perceber como
pensam que nenhuma razão é necessária para apoiar as suas convic-
Mill encara o problema de liberdade e o que ele vê o Princípio de
ções morais. E, de facto, alguns filósofos (talvez Mill se refira aqui
Liberdade concretizar - afirmado pela primeira vez no I: ~9. Mill quer
aos intuitivos conservadores) encorajam-nos a pensar que os nossos
mudar não só o ajustamento entre as regras sociais e a independência
sentimentos são «melhores do que razões e tornam-nas desnecessá-
individual, como é realmente determinado até este momento, mas
rias» (I: <:![ 6 ). É claro que ninguém «admite que o seu padrão de julga-
também o modo como o público - a opinião instruída a que se quer
mento é o seu próprio gosto»; mas Mill mantém que, no entanto, é
dirigir - raciocina acerca desses ajustamentos. Apresenta o Princípio
verdade, porque: «uma opinião sobre um aspeto de conduta, sem ser
de Liberdade como um princípio de razão pública da próxima era
apoiada por razões, só pode contar como preferência de uma pessoa;
democrática: considera-o um princípio orientador das decisões políti-
e se as razões, quando apresentadas, são um mero recurso a uma
cas do público sobre essas questões. Como receia que a inf~uên~ia
preferência semelhante sentida por outras pessoas, ainda se trata do
exercida pela opinião prevalecente e irrefletida possa ser mmto p10r
gosto de muitas pessoas em vez de uma» (I: <:![6). Mas, para a maior
do que aquilo que foi no passado na nova sociedade democrática que
parte delas, as suas próprias preferências apoiadas pelas de outros
há de vir.
constituem razões perfeitamente satisfatórias, e, de facto, as únicas
Repare-se que Mill julga que a hora para efetuar alteraçõe~ é .«ag.ora»
mas a situação não é irremediável. [Cf. III: <:II 19 esp.] «A maiona amda
1 Ver Alexis de Tocqueville, Democracy in América, l.ª ed., 1835. não aprendeu a sentir o poder do governo [como] seu, ou as opiniqes

332 333
deste último como suas» (1: '1[8). Quando os da maioria, incluindo a dual e controlo social (1: '1[6). Como tal, será instrumental na formação
nova classe trabalhadora, começarem a sentir-se assim, a liberdade do caráter nacional relativamente a objetivos, aspirações e ideais exi-
individual ficará tão exposta à invasão por parte do governo como gidos na era que há de vir.
assim tem acontecido por parte da opinião pública. Comento aqui que a vocação escolhida por Mill é evidente: vê-se
Por outro lado, Mill pensa que há muita resistência latente a essas como um educador de opinião influenciadora. Esse é o objetivo. Ele
invasões. Mas a situação, segundo ele, encontra-se em permanente julga que a situação não é irremediável: o futuro ainda está por con-
mutação e poderá ir por uma via ou por outra. «Não há[ ... ] nenhum cluir. Não é insensato, ou meramente visionário, tentar antecipar a
princípio reconhecido através do qual a propriedade ou improprie- possível tirania das maiorias democráticas na próxima época. Mill
dade da interferência do governo é testada habitualmente. As pessoas atribui nitidamente uma eficácia significativa às convicções morais e
decidem de acordo com as suas preferências pessoais» (1: '1[8). à discussão intelectual acerca de questões políticas e sociais. (Neste
Raramente decidem de acordo com qualquer princípio, «a que ade- ponto parece divergir de Marx. Mas há uma questão de como abordar
rem consistentemente, no que diz respeito às coisas que devem ser isto mais exatamente: pois Marx afirma que a sua obra Das Kapital
efetuadas pelo governo». É por causa desta falta de princípio (nesta tem um papel social.) Tenta convencer pela razão e o argumento pode
constante mudança) que quando o governo realmente intervém é tão ser muito importante, pelos menos nessas circunstâncias quando as
provável estar errado como certo (1: '1[8). coisas estão em evolução e poderão ainda ir por uma via ou por outra.
6. Juntando isto ao 1: '1[15, onde Mill fala da tendência atual de Eu não diria que o tom de Mill é particularmente otimista. Ele faz o
aumentar o poder da sociedade à medida que se reduz o poder do que julga ser o melhor que pode fazer nas circunstâncias do momento.
indivíduo, podemos dizer que ele esperava fazer o seguinte: As partes de On Liberty para ler com particular atenção:
a) Tencionava designar um princípio de liberdade adequado à 1: todo.
nova era democrática que se avizinhava. Este princípio gover- II: 'I['I[l-11; e os últimos 5 parágrafos, 37-41.
naria a discussão política pública sobre o ajustamento entre as III: 'I['I[l-9; 14; 19; e uma passagem importante no '1[13.
regras sociais e a independência individual; IV: 'I['I[l -12.
b) Com argumentos convincentes, Mill queria construir uma base V: 'I['I[l-4; e os últimos 8 parágrafos, 16-23 (sobre governo e estado,
apoio para este princípio, «[ ... ] uma forte barreira de convicção socialismo e burocracia).
moral» (1: '1[15). A disposição de as pessoas imporem as suas opi-
niões só pode ser refreada por um poder contrário; neste caso
Mill pensa que deve ser, pelo menos em parte, o poder das con- § 2. ALGUNS ASPETOS PRELIMINARES
vicções morais;
e) Estes argumentos baseiam-se na razão, porque só neste caso é
ACERCA DO PRINCÍPIO DE MILL
que recorrem a convicções morais genuínas por oposição a prefe-
1. Antes de considerarmos o significado e a força do Princípio de
rências largamente partilhadas e de apoio mútuo. Torna-se nítido
Liberdade de Mill, quero analisar alguns aspetos preliminares que lhe
aqui que por argumentos lógicos Mill pretende dizer argumentos
estão relacionados. Note-se, em primeiro lugar, que o concebe a incluir
fundados no Princípio de Liberdade (tal como o explica no capí-
determinadas liberdades enumeradas. São dadas por uma lista e não
tulo I, '1['1[9-13) e como está relacionado com a sua conceção de
por uma definição de liberdade em geral, ou como tal. (Este procedi-
Utilidade (1: 'I[ll ). Contrariamente aos outros, este princípio satis-
mento foi usado em justiça como equidade, em que Mill é seguido a este
faz, julga ele, todos os requisitos de um princípio lógico.
respeito.) São estas liberdades enumeradas que recebem uma proteção
especial e que são definidas por certos direitos de justiça legais e morais:
O Princípio de Liberdade é apresentado, então, como um princí-
pio político público constituído para regular a livre discussão pública a) Primeira (incluindo o domínio interno de consciência), liber-
relativamente ao ajustamento adequado entre independência indivi- dade de consciência, liberdade de pensamento e sentimel]-to;

334 335
liberdade absoluta de opinião e sentimento sobre todos os Alternativamente, o Princípio de Liberdade é um tipo de axioma me-
assuntos, práticos e especulativos, científicos, morais ou teoló- diato (Utilitarianism, II: CJICJI24-25). Mas um de grande importância: é
gicos. A liberdade de expressão e imprensa é praticamente um princípio de razão pública - um princípio político usado na orien-
inseparável do que acabámos de referir; tação do debate público numa sociedade democrática.
b) Segunda, liberdade de gostos e tendências; de constituir o «plano O facto de o Princípio de Liberdade ser visto por Mill como um
da nossa vida que se adeque ao nosso próprio caráter», sem axioma mediato, ou um princípio subordinado (II: CJI24), verifica-se
limitações desde que não prejudique os legítimos interesses (ou por aquilo que diz no I: Cj[ll: escreve ele: «[ ... ] renuncio a qualquer
direitos morais) de outros, mesmo que considerem a nossa con- vantagem que pudesse resultar da ideia de direito abstrato e que
duta ridícula, degradante e errada; viesse integrar o meu argumento como algo independente de utili-
e) Terceira, liberdade de acordar com outros visando quaisquer dade. Considero a utilidade como o derradeiro recurso em todas as
objetivos que não prejudiquem os (legítimos) interesses de questões éticas.» E acrescenta precisamente a cláusula crucial: «[ ... ]
outros; liberdade de associação. (Para a, b, c, ver: I: CJI12). Mill mas deve ser utilidade no sentido mais vasto, fundada nos interesses
acrescenta que «Uma sociedade em que estas liberdades não permanentes do homem enquanto ser em progresso.»
sejam respeitadas na totalidade não é livre, qualquer que seja Na próxima palestra irei discutir estes interesses permanentes e
a sua forma de governo; e nenhuma é completamente livre tentar relacioná-los com os princípios psicológicos que estão na base
se nela as liberdades não existirem de forma absoluta e total» da visão de Mill. Por enquanto, assinalo que entre eles se encontram
(I: CJI13). Assim, em grande parte, Mill apresenta o seu argumento interesses na garantia firme dos direitos morais de justiça, os quais
defendendo estas liberdades específicas. Concentra-se primeira- estabelecem os «verdadeiros fundamentos da nossa existência» (Utili-
mente nas duas primeiras nos capítulos II e III, respetivamente. tarianism, V: Cj[25). Outro interesse permanente é o interesse nas condi-
ções da livre individualidade, as quais constituem uma parte essencial
2. Em seguida, e de acordo com a opinião de Mill, observemos o do motor da mudança progressiva.
âmbito e as condições sob as quais se aplica o Princípio de Liberdade: A ideia de Mill é que as instituições políticas e sociais só poderão
a) Não se aplica a crianças e adultos imaturos; ou aos mental- desempenhar o seu papel de formadores do caráter nacional para que
mente perturbados (I: Cj[lü); os cidadãos possam concretizar os interesses permanentes do homem
b) Não se aplica a sociedades atrasadas. Diz ele: «A liberdade, como
enquanto ser em progresso. Isto se a sociedade democrática seguir
princípio, não tem nenhuma aplicação a qualquer estado de coi- o Princípio de Liberdade para regular a sua discussão pública das
regras apoiando-se na relação de indivíduos e sociedade, como tam-
sas anterior ao período em que a humanidade se tornou capaz de
bém para ajustar as suas atitudes e leis em concordância.
se aperfeiçoar por via da discussão livre e igual» (I: Cj[lü). Mill
indica que as nações a que se refere no ensaio já atingiram este
período há muito tempo;
e) Posteriormente, Mill acrescenta que o Princípio não se aplica a § 3. A AFIRMAÇÃO
um povo rodeado por inimigos externos e sempre sujeito a um DO PRINCÍPIO DE LIBERDADE DE MILL
ataque hostil. E, por conseguinte, também não se aplica a um
povo envolvido em distúrbios e lutas internas. Independen- 1. Mill afirma o Princípio de Liberdade nos I: CJICJI9-13; IV: CJICJI3, 6; V:
temente das situações, o relaxamento do autodomínio pode ser Cj[2, com explicações adicionais nos CJICJI3 e 4. Na primeira afirmação lê-se
fatal (I: CJil 4). o seguinte (I: CJI9): «[ ... ]a única finalidade para a qual a humanidade tem
autorização, individual ou coletivamente, para interferir com a liberdade
3. Destas observações torna-se claro que o Princípio .de Liberdade de ação de qualquer um dos seus é a autoproteção.» E acrescenta que:
não é um princípio supremo ou o principal: está subordinado ao «[ ... ] o único propósito para o qual se pode exercer poder corretamente
Princípio de Utilidade e sujeito aos seus termos para ser justificado. sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a ~ua

336 337
vontade, é evitar que outros sejam prejudicados. O seu próprio bem, direitos morais, de outros. Isto nem sempre se ajusta à própria forma de
físico ou moral, não é garantia suficiente.» O próprio bem de alguém é Mill afirmar o princípio. Diz ele no 1: CJ[9: «[ ... ] a única finalidade para a
uma boa razão para: «protestar com ele, ou raciocinar com ele, ou per- qual a humanidade tem autorização [... ] para interferir com a liberdade
suadi-lo, ou implorar-lhe, sem querer obrigá-lo, ou atacá-lo com algum de ação de qualquer um dos seus, é a autoproteção.» Ou: «[ ... ] evitar
mal caso ele faça o contrário». Para justificar tal coerção exige-se que a que outros sejam prejudicados.» Ou: «a conduta[ ... ] deve ser calculada
conduta em causa faça provavelmente mal a outra pessoa. Relativamente para prejudicar outra pessoa». Ou: «a única parte da conduta de alguém
à parte da conduta de uma pessoa que só se preocupa consigo mesmo, pela qual é responsável perante a sociedade é a que diz respeito a
Mill diz: «a sua independência é, por direito, absoluta. Sobre si próprio, 0 outros». E no 1: CJ[ll Mill fala da conduta «prejudicial a outros», e no IV:
seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano» (1: CJI9). CJI3, da conduta que «afeta nocivamente os interesses de outros».
2. Este princípio é, claramente, destinado por Mill para a aplicação Por muito que os outros nos digam obviamente respeito, isso não
em restrições sobre a liberdade que resultam do que Mill chama quer dizer que o que eles fazem nos prejudica. Como Mill diz no IV:
«coerção moral ou opinião pública», bem como em restrições da lei e CJI3: «Os atos de um indivíduo podem prejudicar outros [... ] sem ir ao
outras instituições impostas por sanções do estado. Podemos formu- extremo de violar qualquer um dos seus direitos constituídos.» «Preo-
lar o princípio de liberdade sob a forma de três cláusulas, a saber: cupação» e «afeto» são termos gerais muito abrangentes. Devemos
Primeira cláusula: Através das suas leis e da pressão moral da opi- decidir, então, a forma de resolver esta ambiguidade e imprecisão
nião comum a sociedade nunca deveria interferir com as convicções e implícitas da linguagem de Mille fazê-lo para que faça sentido tendo
1.
conduta dos indivíduos a não ser que estas últimas lesem os legítimos em conta o seu texto. Para isto li o texto principal no III: CJ[9, apoiado
interesses, ou os direitos (morais), de outros. Em particular, só se pelo IV: CJ[3. Assim, baseando-nos no IV: CJ[3, podemos dizer o seguinte:
poderá recorrer a razões de bem e mal em discussões públicas. Isto Primeira cláusula: A sociedade nunca deveria interferir com as
exclui três tipos de razões: Liberty, III: CJ[9; IV: CJ[3. convicções e conduta do indivíduo através da lei ou castigo, ou por
intermédio da opinião moral coerciva, a não ser que as convicções e a
i) Razões paternalistas, que invocam razões baseadas no bem de conduta do indivíduo prejudiquem - ou seja, enganem ou violem - os
outras pessoas - definido em termos do que é sensato e pru- legítimos interesses de outros que, quer em provisões legais expressas
dente do seu ponto de vista individual. (para supostamente serem justificadas), ou por compreensão tácita,
ii) Razões de excelência e ideais de perfeição humana, especifica- devem ser considerados direitos (morais).
dos por referência aos nossos ideais de excelência e perfeição Ainda é necessário comentar e interpretar isto, mas estamos agora
ou aos da sociedade. (Utilitarianism, II: CJ[6; On Liberty, IV: CJICJ[S, a obter uma doutrina definida. Vejamos agora excertos no início do III:
7. O IV todo: CJICJI3-12 são importantes.) CJ[9 e partes posteriores do parágrafo para o tornar mais exato: A socie-
iii) Razões de aversão ou repugnância, ou de preferência, que não dade deve permitir o cultivo da individualidade «dentro de limites
podem ser sustentadas por razões de bem e mal, tal como se impostos pelos direitos (morais) e os (legítimos) interesses de outros».
define em Utilitarianism, V: CJICJil 4-15. Assim, os indivíduos devem «Ser controlados por regras rígidas de
justiça em benefício de outros» e dentro destes limites devem ser ho-
Assim, uma forma de ler o Princípio de Liberdade de Mill como nestos para com a natureza de diferentes pessoas, permitindo-lhes que
princípio de razão pública é vê-lo excluir certos tipos de razões a ter usufruam das suas diferentes vidas de acordo com as suas escolhas,
em conta na legislação, ou na orientação da coerção moral da opinião porque «O que quer que destrua a individualidade é despotismo».
pública (enquanto sanção social). No caso da razão pública, os três tipos Posto isto, prossigo com a exposição.
de razões supracitadas não contam para nada. Mill não nega que noutros contextos - por exemplo, no contexto da
Chamo a vossa atenção aqui para uma questão de interpretação. Li a vida pessoal, ou no da vida interna de várias associações - as conside-
primeira cláusula do Princípio de Liberdade que diz que a sociedade rações que não chegam a violar os direitos (morais) de outros podem
nunca deve interferir com a convicção e conduta de um indivíduo ser razões sólidas. Claro que sim. Nem ele nega que a nossa aversão
exceto quando estes últimos prejudicam os legítimos interesses, ou ou irritação com as convicções e conduta de outros é doloroso para

338 339
nós, mesmo que isso não afete os nossos direitos ou legítimos interes- tipos de utilidades - são adequados para invocar na forma de razão
ses. Claro que é doloroso! E, por isso, é uma inutilidade, para usar o pública defendida por Mill.
termo geral.
A sua visão defende que para avançar com os interesses perma-
nentes da humanidade enquanto ser em progresso o mais indicado é
§ 4. SOBRE DIREITO NATURAL (ABSTRATO)
que a sociedade adira com determinação ao Princípio de Liberdade, o
qual leva a excluir os três tipos de razões supracitados. Assim, o prin-
1. Questionemos o motivo pelo qual Mill disse (no 1: <J[ll) que renun-
cípio de Mill impõe um constrangimento estratégico nas razões admis-
ciaria a qualquer vantagem para o seu argumento que resultasse da
síveis numa discussão política pública e, deste modo, especifica uma
ideia de direito abstrato como algo independente de utilidade.
ideia de razão pública. (Comparemos isto à ideia de razão pública em
Uma razão óbvia, certamente, é simplesmente informar o leitor da
Restatement2.)
sua posição filosófica e reafirmar a sua visão utilitária oficial de ~ue
3. Segunda cláusula: Se determinados tipos de convicção e con-
todos os direitos, quer sejam morais, legais ou institucionais, se baseiam
duta individual prejudicarem realmente os legítimos interesses e
na utilidade (Utilitarianism, V: <J[25).
direitos morais de outros, conforme demonstrado pelas considerações
Normalmente, os utilitários reconhecem, por exemplo, os vários
do bem e do mal admissíveis pela primeira cláusula, então a discus-
direitos de propriedade privada. Defendiam que estes últimos têm
são pública poderá abordar devidamente a questão da possibilidade
justificação porque promovem o bem-estar geral. Mas.t':mbém é. P?S-
de essas convicções e conduta deverem ser de algum modo restringi-
sível, pelo menos em princípio, argumentar que restnçoes no dueito
das. A questão poderá ser discutida analisando as suas qualidades,
mas excluindo indubitavelmente os três tipos de razões assinalados de propriedade privada, ou a sua total ab?lição, pod~r~am ser. ~inda
acima. mais favoráveis ao bem-estar geral, com vista a cond1çoes sociais no
Note-se que em virtude do prejuízo causado aos legítimos interes- presente ou no futuro. , .
Mill aceita a forma geral deste argumento. As caratenstlcas espe-
ses ou direitos morais de outros (conforme são considerados ou espe-
ciais da sua visão resultam da sua interpretação de utilidade em termos
cificados atualmente) poder por si só justificar a interferência da lei e
dos interesses permanentes do homem enquanto ser em progresso.
da opinião moral, isso não quer dizer que irá sempre justificá-la. A ques-
tão será ainda discutida analisando as suas qualidades em termos de A ideia de que os direitos têm uma justificação filosófica para além da
razões admissíveis. utilidade, quer esta última seja entendida através da visão de Bentham
Terceira cláusula: A questão deve ser estabelecida por essas quali- ou da de Mill, ou através de outra qualquer, foi rejeitada por todos os
dades. utilitários. Esta foi uma das suas objeções à ideia de direitos naturais,
4. Em conclusão, a força substancial do princípio de liberdade de que Bentham descreveu como «nonsense on stilts» [disparate ambu-
Mill é dada pelos três tipos de razões excluídos pela primeira cláusula, lante]3.
com as últimas duas a afirmar que, com efeito, as razões do bem e do 2. Mas uma segunda razão pela qual Mill menciona o seu repúdio
mal, conforme são definidas em Utilitarianism, capítulo V: <J[<J[14-15, pelo direito abstrato é que a sua, formulação do princípio de liberdade
especialmente razões de direitos morais e justiça, devem resolver o caso. pode parecer que o pressupõe. E isto que ele preten~e nega~. .
O resultado é que só certos tipos de razões - apenas determinados Mas, se a esmagadora maioria da sociedade qmser mmto mterfe-
rir com a conduta egoísta só de alguns outros - e Mill, no seu forte

2 Justificar publicamente os nossos julgamentos políticos para com outros é convencê-los 3 Bentham afirmou em Anarchícal Fallacíes: «Os direitos naturais são um mero dispa-
através da razão pública, isto é, por via do raciocínio e inferência adequados às rate: direitos naturais e imprescritíveis, disparate retórico - nonsense on stílts [dispa-
questões políticas fundamentais, e através do recurso a convicções, fundamentos e rate ambulante]». Ver Nonsense upon Stílts, ed. Jeremy Waldron, Londres: Methuen,
valores políticos é razoável que outros também reconheçam e apoiem. Rawls, Resta- 1987, p. 53. Este livro contém o texto de três críticas historicamente importantes dos
tement, p. 27. Ver também § 26. direitos do homem, as de Bentham, Burke e Marx. -

340 341
capítulo sobre «Liberty of Thought and Discussion», diz que não têm papel do princípio de liberdade e as condições da sua aplicação do
o direito de o fazer (On Liberty, II: <J[l), queremos perguntar porque é presente e do futuro, iremos perceber que não há boas razões basea-
que não deveriam? Em algumas formas de entender a utilidade, o seu das na utilidade para criar exceções quando é devidamente entendida
total iria certamente parecer que aumentava. como interesses permanentes do homem enquanto ser em progresso.
Mill também diz no mesmo lugar (II: <J[l) que o princípio de liber- A interpretação é confirmada por aquilo que Mill diz no II: <J[l.
dade do pensamento e da discussão é para governar absolutamente Escreve ele: «Uma opinião era uma posse pessoal sem valor exceto
as relações da sociedade com o indivíduo quando surge a questão de para o proprietário; se para ser obstruída no seu gozo era simplesmente
compulsão e controlo. Presumo que Mill aqui pretende dizer com um prejuízo privado, faria alguma diferença se o prejuízo tivesse sido
«absolutely» que o princípio de liberdade não admite nenhuma exce- exercido só em algumas ou em muitas pessoas. Mas o mal peculiar de
ção, que se mantém sempre sob as condições normais da época demo- silenciar a expressão de uma opinião é que está a roubar a raça humana;
crática (pelo menos salvo circunstâncias muito especiais). Somos a posteridade bem como a geração existente; os que divergem da opi-
forçados a perguntar como é que o princípio de liberdade consegue nião, mais ainda do que aqueles que a defendem. Se a opinião for cor-
sempre manter-se e sem permitir exceções, mesmo no caso de um reta, ficam privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade:
único indivíduo, a não ser que o princípio invocasse algum direito se for errada, perdem o que é quase tão grandioso como o benefício, a
natural que não pudesse ser ultrapassado. perceção mais clara [... ] da verdade, produzida através de colisão com
Sobre este aspeto temos de manter em mente a afirmação de Mill o erro».
no Il:<J[l, onde diz que mesmo a um povo inteiro lhe falta o poder É evidente que Mill tem em mente uma opinião sobre questões
(correto) para silenciar a discussão política, mesmo contra uma única gerais de doutrina, políticas e sociais, morais, filosóficas e religiosas.
pessoa. Este poder, quer exercido pelo povo ou pelo seu governo, é
Ele acredita que é nos interesses permanentes (segurança e individua-
ilegítimo. Diz ele: «Se toda a humanidade menos uma pessoa fosse de
lidade) do homem como ser em progresso que se sabe quais destas
uma opinião, e só uma pessoa tivesse a opinião contrária, a humani-
doutrinas gerais são verdadeiras, ou as mais razoáveis; e também
dade já não teria mais justificação para silenciar aquela mesma pessoa,
acredita que a condição necessária de convicção razoável nestas ques-
enquanto ela, se tivesse o poder, teria justificação para silenciar a huma-
nidade». Mais uma vez, isto leva-nos a colocar uma questão: como tões é a liberdade total de discussão e inquirição. «As convicções pelas
pode o número de pessoas não conseguir causar alguma diferença quais temos mais fundamentos não têm nenhuma salvaguarda em
quanto à justificação do silenciamento da discussão a não ser que que se possam basear, mas um convite constante ao mundo inteiro para
alguma doutrina de direito natural, ou abstrato, esteja na retaguarda? provar que são infundadas» (II: <J[8).
Será que Mill está simplesmente a gozar um floreado retórico? Assim, ao silenciar uma pessoa que expressa uma opinião, causa-
3. Interpreto as passagens que sugerem uma doutrina de direito mos danos ao processo público da discussão livre. E este último é ne-
abstrato como a forma de Mill dizer que é melhor para o avanço dos cessário para promover os interesses permanentes do homem como
interesses permanentes do homem enquanto ser em progresso que a ser em progresso na época atual. Para além disso, o dano causado à
conceção política pública da próxima sociedade democrática afirme discussão livre é feito sem nenhuma vantagem compensatória. O si-
sempre o princípio de liberdade sem exceção, mesmo quando apli- lenciamento da discussão não só educa para o tipo errado de caráter
cado ao caso de um único dissidente. nacional, como também tende a privar a sociedade e os seus membros
Tenhamos em mente que o que Mill faz é advogar o princípio de dos benefícios da verdade. Este último aspeto é apresentado em On
liberdade como um princípio subordinado ao de utilidade para go- Liberty, II: <J[<J[3-ll, o «argumento da infalibilidade», em que Mill argu-
vernar as discussões políticas públicas quanto ao modo de regular as menta que nenhum humano, independentemente das suas convicções,
instituições políticas e sociais básicas. Recordemos que ele considera é infalível; e se todos os que expressam opiniões contrárias forem su-
estas instituições processos para formar e educar um caráter nacional primidos, os que estão errados perderão a oportunidade de descobrir
adequado à época democrática. Diz que quando compreendermos o a verdade.

342 343
CONCLUSÃO

Tal como foi discutida, a noção de razão pública envolve a de razões


admissíveis vs. as razões que não o são. Mas torna-se necessário fun-
damentar os motivos pelos quais as razões não são admissíveis, visto
que é fácil pensar que certamente todas as razões deveriam ser regis- MILLIV
tadas. Diferentes conceções políticas de justiça podem, obviamente,
defender razões diferentes como admissíveis e oferecer fundamentos A SUA DOUTRINA COMO UM TODO
diferentes para o fazer.
Em justiça como equidade, os fundamentos para limitar as razões
admissíveis na razão pública são o princípio liberal de legitimidade -
o princípio em que o poder político coletivo dos cidadãos sobre ques-
tões do que é constitucionalmente essencial e questões básicas de jus-
tiça distributiva deveria recorrer aos valores políticos que todos os
cidadãos poderão razoavelmente apoiar como esperado, e assim assen-
tar num entendimento público partilhado. Dada a realidade do plu-
ralismo razoável, que as instituições livres conduzem e mantêm, os
cidadãos têm o dever de exercer o seu poder de uns para os outros de
acordo com este princípio. A sociedade democrática em que isto é feito, § 1. INTRODUÇÃO
concretiza um ideal de civilidade4.
Os fundamentos que Mill apresenta para a sua ideia de razão pú- 1. Uma vez mais, coloco a questão que queremos analisar acerca
blica são claramente diferentes, mas dificilmente antitéticos. O seu da doutrina de Mill. Supus que os seus princípios do mundo mo-
princípio de liberdade, juntamente com os seus princípios de direito derno, como ele os chama, os de justiça e liberdade, têm aproximada-
moral e justiça, e os outros do mundo moderno, são todos subordina- mente o mesmo conteúdo dos dois princípios de justiça. Assim, a
dos ao supremo princípio de utilidade. O princípio de liberdade é para sociedade bem ordenada de Mill teria, creio eu, instituições básicas
ser estritamente seguido na discussão pública. Isto faz parte das insti- bastante semelhantes às da sociedade bem ordenada de justiça como
tuições básicas da sociedade que educam os cidadãos para um deter-
equidade.
minado caráter nacional: um que, obviamente, dá como garantidas as A expressão «OS princípios do mundo moderno» é retirada do
liberdades iguais e promove da maneira mais eficiente os interesses
livro The Subjection of Women, IV: 'IT2, onde Mill diz que «a lei da servi-
permanentes da humanidade.
dão no casamento é uma contradição monstruosa para todos os prin-
cípios do mundo moderno». Noutras passagens no mesmo livro, ~ill
usa outras designações tais como «OS princípios envolvidos na soCie-
dade moderna» no 1: 'IT23; «o(s) princípio(s) do movimento moderno
na moral e na política» no IV: 'ITS. Também fala do «caráter peculiar
do mundo moderno», a que se segue uma afirmação da natureza das
instituições modernas e ideias sociais, e os princípios de uma socie-
dade aberta que permite liberdade de ação e escolha livre de indiví-
duos, e que salvaguarda a igualdade de oportunidades, por oposição
4 Ver Restatement, pp. 40-41 e 90-91, sobre o princípio liberal da legitimidade e a reali-
dade do pluralismo razoável. Ver também Rawls, Political Liberalism, Nova Iorque: às ordens aristocráticas do passado em que todos nasciam para uma
Columbia University Press, 1993; ed. papel, 1996, pp. 137, 217. posição social estabelecida (1: 'IT13).

344 345
2. Apesar de Mill não discutir a sua importância relativa, os princi- Apesar de parecer claro, e talvez mesmo óbvio, para muitos hoje em
pais princípios do mundo moderno poderiam ser os seguintes. Todas dia, não acontecia o mesmo na época de Mill. Os seus contemporâneos
as referências são feitas ao The Subjection of Womenl. consideravam-no um fanático em dois aspetos. Um era o aumento da
população, que segundo ele baixava o bem-estar das classes trabal.ha-
a) O princípio da justiça igual e igualdade de direitos (básicos).
doras; o outro era a subordinação das mulheres. Era simplesmente visto
II: <JI<Jill-12, 16; IV: <JI<JI3, 5, 9, 18 (ver também Utilitarianism, V: <JI<JI4-10);
como um desequilibrado acerca destes temas; as pessoas abanavam as
b) O princípio de liberdade.
cabeças e deixavam de ouvir.
1: <JI13; IV: <JI<JI9-20 (ver também On Liberty, 1: <JI<JI9-12);
Mas, para Mill estes aspetos estavam relacionados. O bem-estar
e) Princípios de sociedade aberta e livre escolha de ocupação e modo
de vida. das classes trabalhadoras exigia a redução do tamanho das famílias;
1: <JI<JI13-15; além disso, isto também era necessário para a igualdade das mulhe-
d) Igualdade de oportunidades.
res. Demais a mais, a igualdade entre marido e mulher perante a lei
1: <JI<JI23-24; era necessária para que a família não servisse de escola para o despo-
e) O princípio da competição livre e justa, económica e social.
tismo, «enquanto a família, justamente constituída, seria a verdadeira
1: <JI<JI14-16; escola das virtudes de liberdade», como o autor declara no II: <JI12.
f) O princípio da cooperação (social) entre iguais. Desde que a família seja uma escola para o despotismo, o caráter dos
II: <JI<JI7-12; homens é gravemente corrompido e isto enfraquece as tendências dese-
g) O princípio do casamento moderno como igualdade entre marido jáveis para a igualdade em todas as instituições da sociedade. Por isso,
e mulher. enquanto o feminismo de Mill se baseava certamente na sua convicção
1: <JI25; II: <JI<JI12, 16; IV: <JI<JI2, 15-16, 18; do grave erro da subordinação das mulheres, também era apoiado na
h) O verdadeiro princípio da caridade pública: ajudar as pessoas a sua mente pelo bem social de grande alcance quanto a ter justiça igual
ajudarem-se a si próprias. para as mulheres.
IV: <Jill.

3. Comento que o feminismo de Mill, como o poderemos chamar, § 2. A ESTRUTURA DA DOUTRINA DE MILL
é muito diferente do feminismo mais radical de hoje. O dele significa
simplesmente total justiça e igualdade para as mulheres, e fazer desa- 1. Debrucemo-nos agora sobre a estrutura da doutrina de Mill - os
parecer a subordinação a que estiveram sujeitas durante tanto tempo. seus pressupostos morais e psicológicos básicos - para perceber como
Mill considerava intolerável a posição da mulher no casamento. O que é que o seu utilitarismo, apresentado inicialmente como o de Bentham
tinha em mente, por exemplo, era o facto de que, pela lei, a sua proprie- e o do seu pai, se transformaria na direção dos seus princípios do
dade passava a pertencer ao marido e de que lhe deviam obediência. mundo moderno.
Pondo a realeza de lado, a subordinação social das mulheres destacou-se, Ao abordarmos esta questão, examinámos primeiro a sua conce-
para Mill, como «Um facto isolado nas instituições sociais modernas, ção de utilidade com o seu critério de preferência evidente. A seguir
uma infração solitária daquilo que se tornou na sua lei fundamental; discutimos a sua noção de direitos morais de justiça e o aparente cri-
uma relíquia única de um antigo mundo de pensamento e prática que tério de duas partes para identificar os direitos básicos dos indivíduos.
explodiu em tudo o resto, mas que ficou retida na coisa de maior inte- Em seguida, estudámos o seu princípio de liberdade como um princí-
resse universal» (1: <JI16).
pio para governar a razão pública e o seu estatuto enquanto princípio
subordinado ao da utilidade. Tudo isto leva-nos a questionar:
1 Tal como anteriormente, e porque não há nenhum texto padrão imediatamente dis- Primeiro, porque é que Mill tem tanta confiança que os seus princí-
ponível, faço referência a parágrafos dentro de cada capítulo. Isto obriga a numerá-los pios do mundo moderno, os de justiça e liberdade com os outros lista-
à mão. dos acima, são princípios que, se fossem concretizados em instituições

346 347
básicas, maximizariam a utilidade a longo prazo conforme é definida Os principais princípios psicológicos parecem ser os seguintes:
pelos interesses permanentes da humanidade enquanto ser em pro- a) O critério de preferência evidente: Utilitarianism, II: 115-8;
gresso? Aqui, obviamente, a utilidade é entendida à luz do Utilitaria- b) O princípio de dignidade: ibid., II: 114, 6-7; Liberty, III: 16;
nism, II: 113-10, e a ideia de interesses permanentes da humanidade é e) O princípio de vida em união com outros: Utilitarianism, III:
retirada de On Liberty, I: 111. 118-11;
Precisamos de saber também como é que a doutrina de Mill lida d) O princípio aristotélico: ibid., II: 18 (ver TJ, sec. 65);
com valores para além da felicidade e de que modo específico se baseia e) O princípio da individualidade: On Liberty, III: 111-9;
numa descrição psicológica da natureza humana. O que nos leva a per- j) O reconhecimento do nosso bem natural: Utilitarianism, III: 1110-11.
guntar:
Segundo, se a doutrina de Mill inclui e dá importância a determi- Os três primeiros foram discutidos nas palestras I e II.
nados valores e ideais perfeccionistas, sob a designação de admirá- O último princípio é descrito como a capacidade que temos para
veis e excelentes, que são ideias reconhecidas por ele; ou se se baseia reconhecer o nosso bem natural e distingui-lo do nosso bem aparente
apenas em princípios psicológicos que descrevem a natureza humana como mero artefacto da aprendizagem social e associacionista, fre-
no seu nível mais profundo, tendo a garantia da conceção de utili- quentemente por algum tipo de recompensa e penalização. Não há
dade como felicidade? dúvida que há melhores formas de afirmar estes princípios, mas de
2. Sem ter total confiança de que esta última alternativa seja cor- momento esta lista é suficiente.
reta, concluo o nosso estudo de Mill delineando (não me é possível A minha ideia básica é que o papel destes princípios psicológicos
fazer mais do que isso) uma leitura psicológica do seu utilitarismo na doutrina de Mill é o seguinte: juntamente com o princípio norma-
formulado como um todo enquanto doutrina política e social a aplicar tivo de utilidade e outras considerações, tais como as condições histó-
à estrutura básica. Isto ainda permite que, em geral, noutras situações ricas e sociais do mundo moderno a e as suas tendências para mudar,
a sua visão possa assumir uma forma diferente apesar de secundária. esses princípios identificam os quatro interesses permanentes dos
Os interesses políticos e sociais permanentes ultrapassariam normal- seres humanos.
mente considerações mais particulares e secundárias. Com isto resta-nos a dificuldade de explicar como devem ser enten-
Esta leitura parte da ideia de que a felicidade (conforme está defi- didas as referências frequentes de Mill a valores perfeccionistas. Deixo
nida em Utilitarianism, II: 113-10) por si só é boa e que deve ser maxi- esta questão para o fim, depois de termos abordado toda a sua visão.
mizada por organizações políticas e sociais pensando sempre a longo
prazo. Isto dá ao princípio de utilidade um dos seus significados polí-
ticos e sociais. Trata-se, sugiro eu, do princípio moral supremo na § 3. OS DOIS PRIMEIROS INTERESSES PERMANENTES
doutrina política de Mill. Ou, com mais cautela, do princípio supremo DA HUMANIDADE
da sua definição de bem e mal moral e de justiça política e social.
3. Como disse, para obter conclusões mais definitivas, Mill baseia- 1. Agora perguntamos: como vamos compreender o sentido em que
-se numa conceção psicológica muito específica acerca da natureza estes interesses são permanentes? De que forma estão ligados à ideia
humana. Ele julga que esta conceção é exata o suficiente para estrutu- de que o ser humano é um ser em progresso? Mill não discute estas
rar os seus princípios de justiça básica e as liberdades essenciais dada a questões, por isso devemos nós destrinçá-las.
sua conceção de utilidade enquanto interesses permanentes da humani- Aceito que a ideia de a humanidade enquanto ser em progresso
dade (abrevio a expressão) e dadas as condições do mundo moderno implique a possibilidade de uma melhoria mais ou menos contínua
com as suas tendências atuais. O nosso problema, então, é indicar os na civilização humana, atingindo finalmente o estado normal e natural
seus principais princípios psicológicos e tentar perceber como é que da sociedade como um de total igualdade descrito em Utilitarianism, III:
Mill poderá ter pensado que resultariam naquela conclusão quando 1110-11. Neste estado, a sociedade responde totalmente aos princípios
combinados com as suas outras suposições. de Mill de justiça básica igual e de liberdade. Logo, para Mill o pro-

348 349
gresso é um avanço ao longo do tempo para ou na direção do pratica- des que protegem o domínio interno da consciência, como lhe chama
mente melhor estado de sociedade, apesar de normal e natural. Mill. Estas liberdades são a liberdade de consciência, liberdade de
Para o progresso ser possível, determinadas condições necessárias pensamento e sentimento, e liberdade absoluta de opinião e senti-
devem subsistir. Por isso, seguindo o Utilitarianism, capítulo v, diga- mento sobre todos os assuntos, práticos e especulativos, científicos,
mos que um dos interesses permanentes é o de ver garantidos os morais e teológicos.
direitos morais básicos de justiça igual. Isto significa que o interesse Mill preocupa-se aqui com as convicções e as discussões relativas às
que temos na sociedade, através das suas leis e instituições, e a sua doutrinas gerais na religião e filosofia, na moral e ciência, e em todas
opinião moral comum, é um interesse que nos salvaguarda «as coisas as questões políticas e sociais de caráter geral e assuntos de política.
essenciais do nosso bem-estar» e «nos assegura a própria base da Ele não fala do discurso como um provável incentivo à perturbação
nossa existência» (V: 132, 125). da paz ou ao despertar da multidão para a violência; e nem que o dis-
A seguir atentemos nos interesses permanentes que surgem da curso faça mover tropas em tempo de guerra e muitos outros casos
ideia de o homem ser um ser em progresso. Parece haver duas condi- desse género. Este caso é mencionado em On Liberty, III: 11, e garante
ções que qualquer um desses interesses deve satisfazer: que esse discurso pode ser restringido (nota de rodapé ao II: 11).
Assim, o segundo interesse permanente é um nas condições sociais
i) O interesse nas condições sociais que são necessárias para o
relativas à lei, instituições e às atitudes públicas que garantem liber-
progresso ou avanço contínuo da civilização até o praticamente
dade de pensamento e· liberdade de consciência. O argumento de Mill
melhor estado da sociedade (moralmente falando) ser alcan-
em On Liberty, II é que estas condições são necessárias para a des-
çado.
coberta da verdade em todos os assuntos. Além do mais, também
ii) O interesse nas condições sociais que por si próprias são con-
supõe que temos um interesse permanente em conhecer a verdade. Ele
dições do melhor estado e necessárias para a sua operação.
não alimenta o pensamento sombrio que está patente nos romancistas
Estas condições são necessárias para continuar a ser o melhor
russos tais como Dostoievski: no conto de Ivan do Grande Inquisidor
estado.
nos Irmãos Karamazov, saber a verdade seria horrível, deixando-nos
desconsolados e prontos a apoiar um regime ditatorial para preservar
Os interesses permanentes são-no, portanto, de duas formas. São
as nossas ilusões reconfortantes e necessárias. Santo Agostinho e Dos-
permanentes como interesses nas condições necessárias de progresso
toievski são as duas mentes sombrias do pensamento ocidental, cuja
contínuo para o melhor e também natural estado da sociedade; tam-
formação sofreu a influência profunda do primeiro.
bém são permanentes como interesses nas condições exigidas para
3. O muito criticado argumento de Mill acerca da infalibilidade no
continuar nesse melhor estado, uma vez alcançado. Implícita na ideia
II: 113-11 aborda estas questões e poderá ser apresentado aproxima-
de Mill do melhor estado de sociedade é a ideia de que tal sociedade
damente da seguinte forma: quando a sociedade, através das suas leis e
concretiza melhor a nossa natureza enquanto seres sociais. Provoca
instituições, proíbe a discussão de certas doutrinas gerais, assume
totalmente e exercita as nossas faculdades superiores e satisfaz as
implicitamente que a verdade acerca destes assuntos já é conhecida com
nossas necessidades e aspirações mais importantes, em consistência
certeza. Por outras palavras: pressupõe que não há nenhuma possibi-
com os direitos básicos de justiça igual e os legítimos interesses de
lidade de doutrinas aceites não serem verdadeiras e totalmente corretas,
outros. Sobre estes últimos, ver On Liberty, III: 19.
isto é, infalíveis. Porque é que Mill diz isto?
Resumindo: o primeiro interesse permanente é o dos direitos bási-
Presumo que este argumento se baseia nas seguintes premissas:
cos de justiça igual, ou seja, é um interesse em condições necessárias
para haver progresso contínuo na direção do melhor estado de socie- a) Conhecer a verdade acerca das doutrinas gerais é sempre bené-
dade enquanto estado de igualdade, bem como para permanecer nesse fico: é um grande bem, pelo menos quando as doutrinas gerais
estado depois de alcançado. são importantes;
2. Do livro On Liberty, II, podemos, creio eu, identificar um segundo b) A discussão livre destas doutrinas é uma condição necessária para
interesse permanente. Recordemos que este capítulo discute as liberda- a correção dos erros;

350 351
e) A discussão livre também é uma condição necessária para ter- que isto inclui individualidade em associação com outras pessoas par-
mos alguma segurança racional de que as dou trinas gerais em tilhando a mesma opinião. No III: <[<[10-19 Mill argumenta que estas
que acreditamos são corretas. Para além disto, liberdades são uma condição essencial para o progresso da civilização.
d) A discussão livre é uma condição necessária para a compreen- No III: <[17 diz que «a única fonte de melhoria infalível e permanente
são e apreciação total e adequada das nossas próprias convic- é a própria liberdade». Por isso, este interesse permanente, juntamente
ções e para, desse modo, torná-las nossas. Ver On Liberty, III: com o interesse permanente na liberdade de pensamento e liberdade
<[<[2-8; de consciência, é um que temos enquanto seres em progresso.
e) A sociedade existente encontra-se num estado que a permite Estas liberdades são claramente essenciais não só agora, mas tam-
aprender e progredir através da discussão livre de doutrinas bém no melhor estado da sociedade quando alcançado. São funda-
gerais. mentais para Mill de uma maneira menos óbvia, que poderá ser
colocada da seguinte forma: apenas onde estas liberdades forem com-
Com todas estas suposições, Mill defende que para a sociedade pletamente respeitadas, poderá ser devidamente aplicado o critério
silenciar a discussão geral é uma atitude irracional, a não ser que se de preferência evidente. É difícil exagerar o significado disto: equi-
considere infalível: isto é, a não ser que a sociedade já se considere na vale a dizer que somente sob condições de instituições livres é que as
posse da verdade e pressuponha que não há nenhuma possibilidade pessoas poderão adquirir a autocompreensão necessária para saber
de estar enganada. O seu argumento assume esta conclusão como algo ou tomar decisões razoáveis acerca de que modo de vida lhes oferece
de reduzido: todos a rejeitam. Porque se a sociedade pensa que poderá a melhor oportunidade de serem felizes (no sentido de Mill). Voltarei
não possuir desde logo a verdade, ou que há realmente alguma possi- a este aspeto básico daqui a instantes.
bilidade real de estar enganada, ou poderá não conseguir apreciar 2. Finalmente, chegámos a um quarto e último interesse permanente.
algum aspeto da verdade, então desperdiça sem razão um dos inte- Relaciono-o com a convicção de Mill (afirmada em Utilitarianism, III:
resses permanentes dos seres humanos como progressivos. Este é o <[<[8-11) de que o estado normal de sociedade, um estado totalmente
nosso interesse em conhecer a verdade e também em manter as con- adaptado à nossa natureza mais profunda, é uma sociedade em que os
dições necessárias para o descobrir e apreciar em todas as questões direitos iguais de justiça e liberdade (examinados anteriormente) são
relevantes. firmemente garantidos.
Neste estado de sociedade normal (e natural) é impossível associar
a outros exceto na condição de que os interesses de todos devem ser
§ 4. MAIS DOIS INTERESSES PERMANENTES considerados de igual forma. Este estado, por seu turno, dá lugar ao
desejo, que Mill considera natural para nós, de viver em união com
1. Passamos agora para mais dois interesses permanentes. Podemos outros. Esta expressão pouco clara e espontânea é explicada pelo autor
relacionar o primeiro destes com as liberdades discutidas por Mill em referindo-se ao desejo de não beneficiar de nenhuma condição social
On Liberty, capítulo III, a saber: a não ser que outros estejam também incluídos nos seus benefícios.
Liberdade de gostos e sonhos; e liberdade de estruturar o nosso Temos um princípio de reciprocidade. Utilitarianism, III: <[10: «Num
modo de vida de acordo com o nosso caráter sem limitações, desde estado em aperfeiçoamento da mente humana, as influências estão
que não prejudiquemos os legítimos interesses de outros protegidos constantemente a aumentar, tendendo a gerar em cada indivíduo um
por iguais direitos de justiça e pelos preceitos do bem e do mal. sentimento de união com todo o resto; tal sentimento, se perfeito, nunca
Assim, estamos em liberdade apesar de outros poderem considerar o o faria pensar, ou desejar, em nenhuma condição benéfica para si pró-
nosso modo de vida ridículo e imprudente, de forma alguma admirá- prio, em cujos benefícios não estão incluídas.»
vel e até mesmo desprezível. Juntamente com estas liberdades, segue Por isso, o nosso quarto interesse permanente é o nosso interesse
a liberdade de associação para as tornar eficazes. nas condições e instituições sociais que especificam o estado natural da
Vamos chamar ao interesse pela garantia firme destas liberdades o sociedade enquanto estado de igualdade, e fazem dele um de equilíbrio
interesse permanente em condições de individualidade, compreendendo constante e possível.

352 353
1. Resumindo: os quatro interesses permanentes são os seguintes: segl:lndo as suposições de Mill, será isto verdade? Como é que ele vê
a) Primeiro, o interesse permanente nas instituições que garantem os pormenores?
os direitos básicos de justiça igual (como os que são discutidos 2. Crucial em toda a doutrina de Mill é a ideia de que. só sob orga-
em Utilitarianism, V). Estes direitos protegem as «coisas essen- nizações sociais justas e livres é que o critério de preferência evidente
ciais do nosso bem-estar», «tornam seguro para nós o próprio poderá ser convenientemente aplicado. Tenhamos em mente que este
fundamento da nossa existência» e são necessários ao pro- critério envolve avaliar que um prazer, ou atividade, é superior a
gresso. Temos este interesse em todos os períodos de civiliza- outro em termos de qualidade e mais adequado (e neste sentido
ção; melhor) a um ser com faculdades superiores. Este último faz a ligação
b) Segundo, o interesse permanente nas instituições livres e nas com o princípio de dignidade. Isto tem a consequência assinalável de
atitudes públicas de opinião moral que afirmam a liberdade de que na ausência de organizações justas e livres, não há simplesmente
pensamento e a de consciência. Estas instituições e atitudes são forma de a sociedade adquirir conhecimentos e informações especí-
necessárias para o progresso do estado natural da sociedade de ficas que iria precisar para maximizar a utilidade no sentido de Mill.
igualdade, bem como para manter esse estado; E isto acontece por duas razões:
e) Terceiro, o interesse permanente nas instituições livres e atitu- i) Primeiro, é somente sob estas instituições que os indivíduos,
des públicas que permitem a individualidade e assim protegem e sozinhos ou juntamente com outros, podem educar e desenvol-
encorajam a liberdade de gostos e a nossa escolha de um modo ver as suas faculdades de formas que melhor se adequam ao seu
de vida adequado ao nosso caráter, o que nos permite construir 0 caráter e inclinação. Assim, essas instituições são-nos necessárias
nosso próprio modo de vida. E, a par disto, a liberdade de associa- para saber que atividades seriam aprovadas pelas preferências
ção para conferir efeitos de individualidade; evidentes das pessoas;
d) Quarto, o interesse permanente nas instituições justas e livres e as ii) Segundo, não há nenhuma agência central na sociedade - ne-
atitudes exigidas para concretizar o estado natural e normal da nhum gabinete central de informações ou conselho de organiza-
sociedade enquanto estado de igualdade. ção - que possa possuir a informação exigida para maximizar a
utilidade e, portanto, possa saber que leis e regulamentos mais
específicos e detalhados poderiam promover os quatro interes-
§ 5. RELAÇÃO COM O CRITÉRIO ses permanentes.
DE PREFERÊNCIA EVIDENTE
3. Consideremos uma analogia: Mill assume, por assim dizer, que
1. Isto completa o nosso estudo dos quatro interesses permanentes cada pessoa é de algum modo como uma firma num mercado perfeita-
do homem enquanto ser em progresso. Não é minha pretensão dizer mente competitivo. Nesse mercado a firma decide o que produzir, dados
que o estudo está completo; poderá haver outros interesses permanen- os valores dos seus investimentos e rendimentos. Não há nenhuma
tes na visão de Mill, e as distinções estabelecidas são assumidamente agência central de planeamento que lhe diga o que fazer. Sob determi-
de algum modo artificiais. Mas são úteis, creio eu, na explicação do nadas condições, que a teoria económica expõe, quando cada firma
modo como a sua doutrina é coerente. maximiza os seus lucros, o produto social total é eficientemente pro-
Mill pretende defender, como já disse, que "adotando a sua conce- duzido (no sentido de Pareto ).
~ão. de ut~lidade (Utilitarianism, II: 3-10), então os seus princípios de A analogia é a seguinte: só sob as condições de um mercado com-
JUshça e liberdade, complementados pela opinião moral comum que petitivo é que supostamente as firmas sabem melhor o que produzir e
sustenta esses princípios, especificam a ordem política e social mais efi- como. Os custos estabelecidos nos mercados competitivos contêm a
caz na concretização dos nossos interesses permanentes. Dadas as informação necessária para as decisões de uma empresa serem efica-
condições do mundo moderno e os princípios da psicologia humana, zes. Assim, têm a liberdade de tomar as suas decisões de produção
não há melhor forma de organizar instituições políticas e sociais. Mas, independentemente das outras.

354 355
Na visão de Mill, só quando devidamente educadas e dada a que os prazeres superiores dos menos talentosos. Todas as atividades
oportunidade de desenvolver as suas fac~ld~d~s sob cond~ções de preferidas evidentemente por pessoas normais, devidamente educa-
justiça igual e instituições livres, é que os mdi_viduos poderao sab~r das e a viver sob instituições justas e livres, valem o mesmo. De facto,
que atividades superiores melhor respondem a sua natureza e cara- penso que acabará por não haver nenhuma ocasião em qu.e na prá~ica
ter. irão precisar de ser comparadas em termos de valor. Mas isto precisa-
A consequência é que para maximizar a utilidade no sentido de ria de ser demonstrado. No imediato, parece que as diferenças em
Mill é necessário estabelecer instituições justas e livres e educar as qualidade dos prazeres poderão, e na verdade dever~am, afetar as
aptidões das pessoas. Isto fixa as condições ~e fundo sob a~ quais políticas sociais. Podemos aceitar isto sem haver necessidade de fazer
o critério de preferência evidente pode funcionar. Se a socie~ad.e uma distinção refinada? E aqui deparamo-nos com casos2 .
usar outras instituições para além destas, na esperança de maximi- Finalmente, um quarto aspeto: para Mill não há nenhuma teoria
zar a utilidade, então estará simplesmente a operar na escuridão.
psicológica geral da natureza humana que possa ser usada pela s~cie­
Só pessoas criadas e educadas sob as condições s?ciais da~ institui-
dade, ou por uma agência central de planeamento, para nos dizer,
ções livres poderão ter, em cada caso pessoal, a mformaçao neces-
através do uso de certos testes psicológicos, por exemplo, que modo
sária.
de vida particular é o melhor para este ou aquele indivíduo. A melhor
4. Neste ponto permitam-me tecer alguns comer:t~rio~. Pri~eiro,
informação que conseguimos obter é analisar as decisões de indiví-
creio, como já indicámos, que Mill não faz uma distmça~ refi:iada
duos livres: deixamos que escolham o seu próprio modo de vida sob
dentro da classe dos prazeres superiores ou da dos prazeres mfenores.
as necessárias condições livres. Elas devem determinar o tipo de ativi-
O basebol é uma atividade superior, e porque não? O autor está, em
dades superiores que é melhor para se tornar no foco da sua vida.
parte, interessado em refutar a doutrina d~ Carlyle ~~ q~e º.utilitarismo
Não existe nenhuma teoria psicológica que nos pudesse dar esta in-
é «uma doutrina própria apenas para sumos» (Utzlztarzamsm, II: CJI3) e
formação antecipadamente.
sublinhar que a distinção entre os prazeres superior~s e ~s inferiore~,
5. Para concluir: os direitos iguais de justiça e os três tipos de
e as faculdades superiores e as inferiores, pode ser feita - isto pelo cn-
liberdade especificam as condições institucionais necessárias para que
tério de preferência evidente. Para os seus propósitos é suficiente uma
cidadãos iguais numa sociedade democrática da atualidade estejam
distinção pouco elaborada. . . _ .
na melhor posição para cada um deles encontrar o modo de vida que
Uma segunda observação é que esta falta de distm~oe~ refii:adas
é mais apropriado. Isto permite explicar porque é que Mill pensa
significa que Mill defende que todas as pessoas normais sao. de igual
- como assim parece - que estas instituições justas e livres são neces-
modo capazes de gozar e exercitar as suas faculdades supenores, re-
sárias para maximizar a utilidade entendida em termos do nosso inte-
conhecendo até que algumas são mais talentosas do que outr~s. Pode-
mos ser mais precisos dizendo: para cada pessoa normal (devidamente resse permanente enquanto seres em progresso.
educada e afins) há uma variedade de atividades superiores que gosta-
riam de tornar centrais nas suas vidas. Também defende que dadas
oportunidades decentes, elas farão realmente isso, salvo explicações § 6. RELAÇÃO COM INDIVIDUALIDADE
especiais. (Estas variedades de atividades difere~ obviame.nte ~e pes-
soa para pessoa.) Tudo isto é demonstrado pelo_tipo de ex~hcaçoes que 1. Vimos que o princípio da individualidade está relacionado com
Mill refere em Utilitarianism, II: <]I7, quando explica os desvios aparentes o critério de preferência evidente. Sendo assim, precisamos de analisar
do princípio de dignidade, o princípio ~sic~lógico básic~ ~ue sus- o significado deste princípio na sua forma de princípio psicológico
tenta o critério de preferência evidente. A ideia de que as atividades e básico. Em On Liberty, III: <]Il, Mill diz o seguinte: «E desejável [... ]
faculdades superiores são exclusivamente intelectuais, estéticas e aca- que, em coisas que não dizem propriamente respeito a outros, a indi-
démicas é um total disparate. vidualidade se afirme. Nos lugares em que, em vez do próprio caráter
Uma terceira nota é que os prazeres superiores dos mais talentosos
(presumindo que essas pessoas existem) não são maiores em valor do 2 Esta questão foi enfatizada por Jeffrey Cohen de Columbia.

356 357
11

da pessoa, são as tradições ou costumes de outras pessoas que fazem partiu-se do princípio que o conteúdo da crença era acima de tudo im-
a norma de conduta, há falta de um dos principais ingredientes da portante. Devemos acreditar na verdade, na doutrina verdadeira, caso
felicidade e bastante do ingrediente principal do progresso individual contrário pomos em risco a nossa salvação. O erro religioso era receado
e social.» Trata-se de um princípio psicológico demonstrado pelo facto como algo de terrível; e aqueles que espalhavam o erro geravam pavor.
de a individualidade ser um dos ingredientes da felicidade. (Todo o Na época de Mill, contudo, a visão da questão mudou claramente.
excerto de On Liberty, III: 111-9 é relevante quanto a este assunto.) A luta sobre o princípio da tolerância ficou resolvida há já muito tempo.
Mill considera que a individualidade possui dois componentes: E enquanto o conteúdo da crença não deixa obviamente de ter impor-
tância, é também importante a forma como acreditamos. Importa
a) Um é o ideal grego de autodesenvolvimento dos nossos vários agora saber até que ponto construímos as nossas próprias crenças; até
poderes naturais, incluindo o desenvolvimento e exercício das que ponto tentámos compreendê-las, procurámos comprovar o seu
nossas faculdades superiores (III: 18); significado mais profundo; e atribuir-lhes um papel central nas nossas
b) O segundo é o ideal cristão de autogovernação, que inclui, entre vidas, e não nos limitarmos, por assim dizer, a enunciá-las.
outras coisas (tal como interpreto Mill), o reconhecimento dos Esta atitude é moderna apesar de ter aparecido no decurso das
limites impostos na nossa conduta pelos direitos básicos de jus- guerras religiosas. Não é, certamente, original com Mill, que a atribui
tiça (III: 118-9). explicitamente a William Humboldt (1792); e Milton também já tinha
dito em Areopagitica § 49: «[ ... ] se um homem só acredita nas coisas
2. Mill diz no III: 18 que se alguma parte da religião pensa que fo- porque o seu pastor assim o diz, ou a assembleia assim o determina,
mos criados por um ser bom, é consistente com a religião acreditar sem conhecimento de outra razão, apesar de a sua crença ser verda-
que temos faculdades superiores para que estas últimas possam ser deira, a própria verdade que defende, contudo, torna-se numa here-
cultivadas e reveladas, e não erradicadas e consumidas. Também é sia.» Rousseau também exerceu uma grande influência nesta forma
consistente com a religião que Deus se regozije com a nossa aborda- de pensamento, tendo dado ênfase ao eu e ao valor intrínseco da vida
gem à concretização da conceção ideal integrada nas nossas faculda- interior de cada um cultivado pela auto-observação. Independen-
des. Mill rejeita aqui o que chamamos de «Conceção de humanidade temente das suas origens, Mill faz sobre ela uma afirmação impor-
calvinista», em que «todo o bem de que a humanidade é capaz está com- tante em On Liberty, III: 111-9.
preendido na obediência» e que as faculdades, capacidades e susceti- Parte desta atitude moderna é que a crença no erro já não é receada
bilidades humanas devam ser esmagadas» (III: 17). da mesma forma. Receada sim, porque o erro pode fazer muito mal;
A visão de Mill parece ser apresentada como um ideal perfeccio- mas não receada de modo a conduzir inevitavelmente à condenação.
nista. Iremos posteriormente considerar até que ponto deve ser lida A sinceridade e a consciência moral também são significativas. Mill
como uma doutrina psicológica. Por enquanto, limito-me a comentar não encara certamente a possibilidade que aqueles que interpretaram
que Mill fala de ideais aqui porque vê-os a caraterizar modos de vida mal as crenças religiosas irão ser condenados a esse respeito e por essa
que seriam adotados e seguidos por pessoas sob as condições exigi- razão. Ele parte do princípio que o erro não terá essa consequência.
das para o critério de preferência evidente trabalhar com o princípio de Esta convicção é exigida, suponho, para o valor da individualidade se
dignidade. Estes ideais caraterizam modos de vida que melhor se coa- tornar central, como acontece em Mill. A ideia da importância de tor-
dunam com a nossa natureza livre e totalmente desenvolvida. nar nossas as nossas crenças e aspirações poderia parecer simples-
3. Uma caraterística do ideal de individualidade apresentado por mente irracional se o erro, como tal, pudesse significar condenação.
Mill destaca-se quando a comparamos a uma visão mais antiga. Quando 4. Assinalei que parte da ideia de Mill sobre a individualidade é a
Locke discute tolerância na sua «Letter on Toleration» (1689), preo- ideia de tornarmos aquilo em que acreditamos nas nossas próprias
cupa-se em grande parte com a dificuldade de ultrapassar as guerras crenças. Trata-se de um aspeto de autodesenvolvimento livre. Mas há
religiosas. Ele propõe a solução de a igreja ser uma associação voluntá- outros aspetos que Mill realça: tornar nosso o nosso plano de vida,
ria dentro do estado, enquanto este último deve respeitar a liberdade tornar nossos os nossos desejos; avaliar os nossos desejos e impulsos
de consciência dentro de certos limites. Durante as guerras religiosas e estabelecer uma ordem de prioridades que também nos pertence.

358 359
Não me parece que Mill pretenda que nos devemos transformar O pensamento de Mill aqui patente sugere a ideia adicional que
em pessoas diferentes de outras só pela questão da diferença. Na ver- infelizmente não temos tempo de discutir, nomeadamente: o grande
dade, ele pretende dizer que por mais semelhante ou diferente que valor total alcançado sob instituições livres através da diversidade
possa ser o nosso plano de vida relativamente ao de outros, devemos humana quando se trata da consequência do autodesenvolvimento
fazer com que nos pertença: ou seja, compreendemos o seu significado da individualidade dentro dos limites da autogovernação, que inclui
e fazemos posse dele no nosso pensamento e caráter. Não precisamos respeitar os direitos de justiça. Trata-se de um tema importante do
de escolher a nossa vida em absoluto, como o chamado selecionador liberalismo de Mille de outros liberalismos. Não teria ocorrido a Locke:
de finalidades. Podemos, em vez disso, afirmar a nosso estilo de vida não teria suposto que a própria diversidade religiosa é positiva, apesar
após a devida reflexão, e não segui-lo apenas como um costume. Aca- de que terá pensado que teria as suas compensações ao tornar possível
bámos por entendê-lo, penetrámos no seu significado mais profundo a aceitação do princípio da fé livre e da tolerância.
através do uso total e livre dos nossos poderes de pensamento, imagi-
nação e sentimento. Dessa maneira, o nosso modo de vida passou a
pertencer-nos mesmo se este último for de longa duração e, nesse sen- § 7. O LUGAR DOS VALORES PERFECCIONISTAS
tido, tradicional.
Menciono este assunto porque dizem que Mill dava ênfase à excen- 1. Concluo com dois aspetos. O primeiro diz respeito ao lugar dos
tricidade, ao fazer a sua própria coisa. Creio que se trata de uma má valores perfeccionistas na visão de Mill, que ele menciona com fre-
interpretação. É certo que ele espera que as instituições livres se dire- quência. Estes têm nitidamente um papel na relação com o princípio
cionem para uma diversidade cultural maior, o que considera desejável. de dignidade e da individualidade. Mas qual a melhor forma de com-
Mas a sua ênfase é no autodesenvolvimento livre e na autogoverna- preender este papel? Em que sentido Mill advoga ou apoia valores
ção; a última implica autodisciplina, e nenhum dos dois, sozinhos ou perfeccionistas? Que instituições políticas e sociais, no caso de existi-
juntos, deverão ser confundidos com excentricidade. A ideia básica é rem, eles justificam?
o nosso interesse na individualidade compreendida como a formação Mill reconhece certamente a existência de valores perfeccionistas
livre e refletiva do nosso pensamento e caráter dentro dos limites do admirável e do excelente e dos seus opostos, o degradante e o des-
rigorosos estabelecidos pelos direitos iguais de justiça para todos. prezível. E para ele estes são valores significativos. Além do mais,
Relativamente a este último, devemos destacar o parágrafo muito parte do princípio que estes valores são reconhecidos por nós, visto
importante sobre os limites da justiça no III: 9: que na forma do princípio da dignidade sublinham a sua ideia central
Não é pelo desgaste até à uniformidade de tudo o que é indivi- do critério de preferência evidente que envolve sempre uma aprecia-
dual em si próprios, mas pela sua cultivação e evocação, dentro ção do que é apropriado para nós. Assim, o facto de reconhecermos a
dos limites impostos pelos direitos e interesses de outros, que os existência destes valores e do que representam para nós é uma parte
seres humanos se transformam num objeto de contemplação fundamental desta doutrina normativa e é apoiado pela sua psicolo-
nobre e belo; [ ... ]Em proporção ao desenvolvimento da sua indi- gia humana básica. ·
vidualidade, cada pessoa torna-se mais valiosa para si própria, e Contudo, tendo em conta o conteúdo do princípio de liberdade
fica, portanto, mais capaz de ser valiosa para outros. - a sua exclusão de fundamentos perfeccionistas para limitar a liber-
[ ... ] Estar sujeito a normas rígidas de justiça por causa de dade individual - estes valores não podem ser impostos pelas sanções
outros desenvolve os sentimentos e as capacidades que têm como da lei e da opinião moral comum na forma de pressões sociais coerci-
objeto o bem desses outros. Mas, ser controlado em coisas que não vas. Cabe a cada um de nós, juntamente com os nossos amigos e asso-
afetam o seu bem, pelo seu mero desprazer, não desenvolve nada ciados, resolver isto por nós mesmos. Neste sentido, a sua doutrina
de valioso, exceto aquela força de caráter que se pode revelar por não é perfeccionista.
si própria quando resiste ao controlo. [ ... ] Para dar qualquer tipo 2. Os valores fundamentais da doutrina política e social de Mill são
de honestidade à natureza de cada um, é essencial que pessoas dife- os de justiça e liberdade conforme a explicação nos seus princípios do
rentes possam viver vidas diferentes. mundo moderno. Se tivéssemos de levantar objeções ao facto de não

360 361

:1.
ter incluído os valores perfeccionistas, ele responderia, sugiro eu, que APÊNDICE: OBSERVAÇÕES SOBRE
não o fez. Em vez disso, diria que os tomou em consideração como
deveriam ser, nomeadamente, através da explicação de princípios que,
A TEORIA SOCIAL DE MILL [C. 1980]
quando concretizados em organizações sociais, serão bastante eficazes
na orientação livre de pessoas - e de acordo com a sua própria natu- A. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES:
reza e com os conselhos e pedidos de amigos e outros associados, do O CONTEXTO DA TEORIA SOCIAL:
modo que melhor lhes convém - para dar a esses valores um lugar 1. É essencial para a compreensão da obra de Mill que se entenda
central na sua vida. tanto a própria conceção que faz da sua vocação (como educador da opi-
Julgo que ele diria que não é necessário coagir as pessoas a perseguir nião pública da elite com o objetivo de estabelecer consenso suficiente
atividades que concretizam estes valores, e tentar fazê-lo quando as nos principais princípios do mundo moderno para o próximo período
instituições de justiça e liberdade não existem causa mais danos do orgânico) como a teoria social de fundo à luz da qual ele testemu-
que benefícios. Por outro lado, com estas instituições a funcionar em nhou desenvolvimento histórico. À mesma luz devem ser lidos os
pleno, os valores de perfeição serão concretizados da forma mais apro- ensaios Utilitarianism (1861), On Liberty (1859), On Representative
priada em vidas livres e associações dentro dos limites de instituições · Government (1861) e Subjection of Women (1869).
justas e livres. Os valores de justiça e liberdade têm um papel secun- 2. Mas não são suficientes por si próprios: outros textos apresen-
dário fundamental e nesse sentido uma determinada prioridade. Mill tam a teoria social mais detalhadamente, especialmente Principies
diria que dá aos valores perfeccionistas o que lhes é devido. of Political Economy (l.ª edição, 1848; 3.ª edição, 1852) e A System of
3. Quanto ao segundo aspeto - o papel dos princípios psicológicos Logic (1843). No primeiro, especialmente Livro II, capítulos 1-2 (sobre
de Mill - faço a seguinte observação: todas as doutrinas morais con- propriedade); Livro IV, capítulos 1, 6-7 (sobre o Estado Estacionário
têm conceitos e princípios normativos combinados com elementos da e o futuro das classes trabalhadoras); e Livro V, capítulos 1-2, 8-11
psicologia humana e sociologia política, juntamente com outras supo- (sobre o papel do governo); e no último Livro VI (sobre o método
sições institucionais e históricas. A visão de Mill não é exceção. Ainda das ciências sociais), cujo livro é também a parte culminante de
assim, só contém uma suposição normativa principal - o princípio de Logic. Adicionalmente, ver Chapters on Socialism (1879) e o primeiro
utilidade, com os seus conceitos e valores associados. O papel essen- contexto das origens das suas visões, por exemplo Autobiography
cial deste princípio é compreendido em todo o lado, e reina soberana- (1873 ), etc.
mente como doutrina de teleologia no capítulo sobre a lógica da prática,
ou arte, no fim do seu System of Logic (1843). B. O GOVERNO REPRESENTATIVO:
Os primeiros princípios da psicologia de Mill desempenham um IDEALMENTE O MELHOR REGIME
papel essencial, e se falham ou nos parecem implausíveis, então a sua
E OBJETIVO DE AVANÇO PROGRESSIVO:
visão falha e parece insegura. Na sua resposta, como sugeri, muito
depende deles. No entanto, todas as doutrinas morais dependem da 1. Os primeiros três capítulos deste livro apresentam o contexto da
sua psicologia moral fundamental. A doutrina de Mill também não é teoria social de Mill e merecem uma atenção cuidadosa, apesar de
peculiar a este respeito. outros capítulos darem conta de vários detalhes: por exemplo, capítu-
Não me preocupei muito com o sucesso global da visão de Mill. los 7-8 expõem os argumentos de Mill relativamente a algumas das
Em vez disso, e dado o seu aparente começo próximo de Bentham, o suas propostas controversas sobre a representação proporcional de
meu propósito tem sido explicar como conseguiu chegar a princípios minorias e voto plural para os mais educados (as razões de Mill para
de justiça, liberdade e igualdade não muito longe da justiça como estas propostas são instrutivas, tanto quanto o modo como integram a
equidade, no sentido de a sua doutrina política e social - retirada da sua visão global). Os temas básicos são ilustrados pela discussão
sua visão moral global - nos conseguir dar os princípios de um libe- acerca do governo local, nacionalismo, federalismo e governo de
ralismo moderno e compreensivo. dependências nos capítulos 15-18.

362 363
2. O capítulo I aborda a questão fundamental da possibilidade de como ser em progresso» (On Liberty, I: 11): nomeadamente, que a
a forma de governo ser um assunto recetivo à escolha racional. Nos melhor forma de regime para concretizar estes interesses é o Governo
parágrafos 4-11 Mill rejeita a visão (de Bentham) de que o governo é Representativo (cf. Utilitarianism, II: 3-9, 11-18; III, especialmente 8-11);
um meio para atingir um fim (e pode ser adotado como tal) e a (de On Liberty, III: 2-9), e historicamente a tendência vai na direção de
Coleridge) de que se trata de um crescimento orgânico que não está condições que tornam esse governo possível. Por isso, o grande teste
sujeito à direção humana. A conclusão a que chega é que dentro de da utilidade é: quão bem as instituições favorecem esta tendência his-
certas condições (enunciadas nos parágrafos 8-9) as nossas institui- tórica e quão adequadas são elas para o governo representativo, etc.
ções são uma questão de escolha (parágrafo 11).
3. Os parágrafos 12-14 discutem a objeção fundamental a esta con- C. PRINCÍPIOS DE ECONOMIA POLÍTICA:
clusão: nomeadamente, que a forma de governo já está estabelecida CUJO SUBTÍTULO É ALGUMAS DAS SUAS APLICAÇÕES
em tudo o que é essencial pela distribuição dos elementos de poder
À FILOSOFIA SOCIAL
social e que o poder mais forte defende a autoridade governamental:
assim, qualquer mudança deve ser precedida por uma alteração na dis- 1. A ideia de que Mill é um defensor daquilo que chamamos de
tribuição do poder social. Em resposta, Mill diz que esta doutrina é capitalismo laissezjaire é, creio, uma total distorção, como podemos
muito imprecisa para ser avaliada; para a tornar mais exata enumera ver através da leitura das partes listadas no ponto A: 2 acima em
seis elementos principais de poder social: (i) força física (números), (ii) Political Economy: Mill propõe no Livro II normas referentes à tomada
propriedade, (iii) inteligência, (iv) organização, (v) posse de autoridade gover- de propriedade, herança e doação, etc., que não se destinam, certa-
namental, (vi) poder social ativo orientado pela opinião pública unificada mente, à igualdade de propriedade, mas, para evitar grandes concen-
e eficaz (e graus disso: para [opinião] passiva e desunida, por exem- trações e distribuição de propriedade de modo muito desigual em
plo). Trata-se de uma visão de equiHbrio geral sobre poder social: de- todas as classes ao longo do tempo. Estas normas baseiam-se no utili-
pende da configuração variável destes elementos. tarismo definido no sentido mais lato (B: 6 acima). O Livro V, 1-2 e 8-
4. Assinale-se que neste capítulo e nos próximos dois o argumento -11, discute especialmente quando e como o governo deve ser ativo.
de Mill apoia o realismo e o caráter prático da vocação que adotou 2. No Livro IV Mill apresenta na verdade uma reinterpretação da
como educador público: ele defende que dada a configuração de ele- noção ricardiana de um Estado Estacionário, alterando muito as suas
mentos sociais de poder na sua época (uma época de transição), o implicações políticas e sociais: ele considera este estado não como o Dia
sexto elemento de poder pode ter uma importância considerável e os do Juízo Final para ser evitado pela acumulação e inovação contínua de
que tentam afetá-lo poderão, por conseguinte, alcançar alguma coisa. capital, mas como um estado desejável para ser bem recebido. Esta
Atualmente, pode ser feito, mais tarde talvez não. Recordemos On mudança expõe o espírito de uma sociedade capitalista moderna como
Liberty, III: 19. Mill tem, então, uma teoria que explica a racionalidade um de crescimento perpétuo de capital e riqueza: ver capítulos 1, 5-6.
da sua vocação. 3. Mill apoiou o que atualmente é muitas vezes chamado de auto-
5. Esta teoria é discutida anteriormente no importante Livro VI de gestão do trabalhador industrial com a justificação, congruente com
Lógica, especialmente o capítulo 10: aqui Mill defende que as leis que uma grande parte da sua visão, de que encorajava a participação bas-
governam a sucessão de estados sociais devem criar o facto histórico tante ativa de pessoas dinâmicas. Enquanto rejeitava o estado de
aparente de que grandes mudanças culturais e sociais foram precedi- comando socialista como burocrático, julgava que a autogestão [entre
das por mudanças intelectuais que resultaram de estados anteriores de trabalhadores] em empresas privadas venceria se os mercados fossem
desenvolvimento intelectual. Visto que a mudança intelectual é em competitivos. O seu feminismo era uma parte importante desta visão.
parte autónoma, a social não pode ser apenas em alterações nos outros Ver Subjection of Women, especialmente o capítulo 2.
elementos de poder social.
6. Finalmente, note-se que os capítulos II-III de On Representative
Government ajudam a dar sentido à ideia de utilidade de Mill em ter-
mos latas, ou seja, propondo «OS interesses permanentes do homem

364 365
MARX
MARX!
A SUA VISÃO DO CAPITALISMO
COMO SISTEMA SOCIAL

§ 1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
As datas de Karl Marx, 1818-1883, fazem dele um contemporâneo
próximo de J. S. Mill que era doze anos mais velho (1806-1873). Nas-
ceu num século que já se estava a interessar seriamente pelo socia-
lismo, incluindo o trabalho dos saint-simonianos, a quem Mill se
associara nos primeiros anos.
Um dos aspetos mais assinaláveis relativamente a Marx é que
parte do meio académico da jurisprudência e filosofia, que estuda na
Universidade de Berlim no fim do decénio de 1830, para se virar para
a economia no sentido de esclarecer e aprofundar as suas ideias só
depois de já ter quase 28 anos. Como prova dos seus dotes fantás-
ticos, consegue tornar-se numa das maiores figuras do século XIX
naquela área de estudos, a par de Ricardo e Mill, Walras e Marshall.
Era um académico autodidata e isolado. Enquanto Ricardo e Mill
conheciam outros economistas da escola clássica, os quais formavam
um tipo de grupo de trabalho, Marx não tinha esses colegas. Friedrich
Engels, que foi um associado e colaborador próximo após os primei-
ros anos do decénio de 1840 e que, de algum modo, era indispensável
a Marx, não era um pensador original do calibre deste último, e, de
facto, não lhe conseguia dar o tipo de ajuda intelectual de que preci-
sava. O próprio Engels diz, «Ü que contribuí [ ... ] Marx podia muito
bem ter passado sem mim. O que Marx alcançou, eu não o consegui-
ria [ ... ] Marx era um génio; nós éramos na melhor das hipótese,s

369
talentosos» 1. Dadas as circunstâncias da vida de Marx, o que ele atin- que se sintam encorajados a regressar ao seu pensamento e a discuti-
giu como teorizador económico e sociólogo político do capitalismo é -lo mais profundamente numa fase posterior.
extraordinário, deveras heroico. Quando digo que nos debruçamos sobre a crítica do liberalismo de
1. As obras de Marx que vamos ler podem dividir-se da seguinte Marx, a intenção é examinar as suas críticas ao capitalismo enquanto
forma: Primeiro, os primeiros textos e os mais filosóficos do decénio sistema social, críticas essas que podem parecer despropositadas para
de 1840: On the f ewish Question (1843) e The German Ideology (1845- aplicar também à democracia baseada na posse de propriedade ou de
-1846)2. Importantes mas não selecionados são: Economic and Philo- igual modo ao socialismo liberal. Tentaremos ir ao encontro dessas suas
sophic Manuscripts (1844) e Theses on Feuerbach (1845). críticas que exigem mais claramente uma resposta. Por exemplo:
Segundo, partes dos textos económicos: Capital, vol. I (1867) (pri-
a) À objeção de Marx de que algumas das liberdades e dos direitos
meira versão, 1861-1863); vol. II (1885) (trabalhado em 1868-1870,
básicos - os que relaciona com os direitos do homem (e que nós
1875-1878); vol. III (1894) (primeira versão, 1864-1865). Importante
rotulámos de liberdades dos modernos) - expressam e prote-
mas não selecionado é Grundrisse (1857-1858)3.
gem o egoísmo mútuo de cidadãos na sociedade civil de um
Terceiro: um dos textos políticos de Marx: Critique of the Gotha
mundo capitalista, respondemos que numa democracia baseada
Program (1875)4.
na posse de propriedade bem ordenada esses direitos e liber-
2. Os objetivos da nossa discussão sobre este autor são extrema-
dades, devidamente especificados, expressam e protegem ade-
mente modestos, até mais do que com a nossa abordagem a Mill. Irei
quadamente os interesses de ordem superior de cidadãos livres
considerar Marx apenas como crítico do liberalismo. Tendo isso em
e iguais. Enquanto a propriedade em bens produtivos é per-
mente, foco-me nas suas ideias acerca de direito e justiça, particular-
mitida, esse direito não é um direito básico, mas sim sujeito à
mente no que diz respeito à sua aplicação à questão da justiça de
exigência de que, nas condições existentes, é a forma mais eficaz
capitalismo enquanto sistema social baseado na propriedade privada
de alcançar os princípios de justiça;
nos meios de produção. O pensamento de Marx é vasto no âmbito em
b) À objeção de que os direitos e as liberdades políticas de um
que se insere e apresenta imensas dificuldades. Para compreender,
regime constitucional são meramente formais, respondemos
muito menos do que dominar, as ideias de O Capital - os três volumes -
que pelo valor justo das liberdades políticas (juntamente com a
é por si só uma tarefa proibitiva. Ainda assim, é muito melhor dis-
operação de outros princípios de justiça) poderá ser assegurada
cutir Marx, mesmo brevemente, do que não fazê-lo de todo. Espero
a todos os cidadãos, qualquer que seja a sua posição social, a
oportunidade justa de exercer influências políticas. Esta é uma
das caraterísticas igualitárias essenciais de justiça como equi-
1 Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy, p. 386.
dade;
Tucker (ver nota 2) atribui a Engels mais credibilidade do que ele dá a si próprio,
«Os seus dons e os de Marx complementavam-se em grande medida. O marxismo e) À objeção de Marx de que um regime constitucional com proprie-
clássico é uma amálgama em que o trabalho de Engels constitui uma parte inalie- dade privada só salvaguarda as chamadas liberdades negativas
nável». Introdução a Marx-Engels Reader, § 4. (as que envolvem liberdade para agir livremente por outros), res-
2 Todas as obras selecionadas encontram-se em Robert C. Tucker, ed., The Marx- pondemos que as instituições de fundo de uma democracia
-Engels Reader, 2.ª ed., Nova Iorque: W. W. Norton, 1978. Na obra de Tucker estes baseada na posse de propriedade, juntamente com a justa igual-
dois ensaios encontram-se nas pp. 26-52, 147-200. Esta última seleção é apenas a
primeira parte de German Ideology, que se encontra em Collected Works of Marx and dade de oportunidades e o princípio da diferença, ou outro princí-
Engels, vol. 5, Londres: Lawrence and Wishart, 1976, e excede as 500 páginas. pio análogo, dão proteção adequada às chamadas liberdades
3 De O Capital, vol. I, iremos ler o seguinte: cap. I, Bens Essenciais, secs. 1, 2, 4; cap. 4, positivas (as que envolvem a ausência de obstáculos a possíveis
Fórmula Geral para O Capital, todo; cap. 6, Compra e Venda da Força de Trabalho, escolhas e atividades, na direção da autorrealização )5;
todo; cap. 7, O Processo de Trabalho e o Processo de Produzir Mais-Valias, sec. 2,
pp. 357-361; cap. 10, Dia de Trabalho, secs. 1, 2. Todas estas seleções podem ser lidas
em Tucker, Marx-Engels Reader. De O Capital, vol. III, a seleção em Tucker, pp. 439-441. 5 Ver Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford: Oxford University Press, 1969,
4 Nesta obra só iremos ler a sec. 1, em Tucker, Marx-Engels Reader, pp. 525-534. introdução,§ 2; e o ensaio «Two Concepts of Liberty».

370 371
d) À objeção contra a divisão de trabalho sob o capitalismo, res- Com estas considerações, irei tentar abordar estes tópicos nas três
pondemos que as caraterísticas que restringem e degradam a palestras sobre Marx:
divisão deveriam ser substancialmente ultrapassadas logo que
tenha lugar a concretização das instituições de uma democracia Na primeira, analiso como Marx defendia que o capitalismo
baseada na posse de propriedade6. era um sistema social, e indico de forma breve o que entendo ser o
propósito da sua teoria do valor-trabalho e qual era a sua funda-
Porém, enquanto a noção de democracia baseada na posse de pro- mental intenção.
priedade tenta responder às legítimas objeções da tradição socialista, Na segunda, examino o modo como Marx encarava as noções
a ideia da sociedade de justiça como equidade bem ordenada é muito de direitos e justiça e também, resumidamente, a possibilidade
distinta da de Marx relativamente a uma comunidade inteiramente - muito discutida em anos recentes - de ele considerar o capita-
comunista. Esta sociedade parece ir para além da justiça no sentido lismo injusto como sistema social, ou de ser só condenado à luz de
em que as circunstâncias que dão lugar ao problema de justiça distri- valores para além da, e não presos à, justiça. É evidente que Marx
butiva são ultrapassadas, e os cidadãos não precisam de estar, e não condena o capitalismo. Os valores básicos a que ele recorre ao
estão, preocupados com ele na vida quotidiana. Enquanto a justiça fazê-lo parecem menos claros.
como equidade assume que, dados os factos gerais da sociologia polí- Na terceira palestra, discuto sucintamente a conceção que
tica de regimes democráticos (o facto do pluralismo razoável, por Marx apresenta de uma sociedade inteiramente comunista como
exemplo), os princípios e as virtudes políticas incluídos na justiça de sociedade de produtores associados livres, nos quais a consciência
vários tipos terão sempre um papel a desempenhar na vida política ideológica (ou falsa), bem como a alienação e a exploração, foram
pública. A dissipação da justiça, mesmo da distributiva, não é possí- ultrapassadas. Levantarei a questão se, para Marx, uma sociedade
vel, nem aparentemente desejável. Trata-se de uma questão intri- inteiramente comunista é uma sociedade para além da justiça, e se
gante, mas, apesar de tentadora, não irei prolongar a discussão. a noção de direitos continua a ter um papel essencial.
3. Hoje revejo os objetivos da teoria económica de Marx e a sua
explicação acerca do capitalismo como sistema social. Podemos, É evidente que, tal como aconteceu com Mill, só conseguimos
obviamente, tratar apenas destes assuntos de uma forma elementar e cobrir uma parcela do pensamento de Marx. Esta é talvez uma razão
simplificada. Se continuarmos a pensar que os nossos objetivos são para entendermos o seu trabalho a partir de uma única perspetiva:
modestos, talvez não se crie nenhum prejuízo. Justifica-se dar atenção nomeadamente, como uma crítica ao liberalismo. Fazer isto é muito
especial à economia de Marx não só pelo lugar central que lhe confe- instrutivo para vislumbrarmos a grande força da sua doutrina.
riu, mas também porque ela é central na sua explicação sobre o capi- 4. Permitam-me tecer um breve comentário acerca da importância
talismo enquanto sistema de subjugação e exploração, logo no que de Marx antes de prosseguir. Poder-se-á pensar que com o colapso
diz respeito ao capitalismo como sistema social injusto. Para com- recente da União Soviética, a economia e a filosofia socialista de Marx
preender Marx como crítico do liberalismo, devemos tentar perceber não fazem sentido nos dias de hoje. Creio que isto seria um erro
porque é que ele considera injusto o capitalismo. Porque, enquanto a grave, pelo menos por dois motivos.
maior parte dos liberalismos, contrariamente ao libertarianismo7, não O primeiro é que enquanto o socialismo de comando central, tal
se compromete com o direito de propriedade privada nos meios de como predominava na União Soviética, é descredibilizado - de facto,
produção, muitos liberais, como Mill, defenderam-na nesses meios, nunca chegou a ser uma doutrina plausível - o mesmo não se pode
não em termos gerais, mas sob determinadas condições. dizer do socialismo liberal. Esta visão esclarecedora e meritória pos-
sui quatro elementos:

6 John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971, a) Um regime político democrático-constitucional, com o valor
p. 529; edição revista (1999), pp. 463 e segs. justo das liberdades políticas;
7 Para uma visão libertária, ser Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, Nova b) Um sistema de mercados competitivos livres, assegurados pela
Iorque: Basic Books, 1974. lei como necessários; -

372 373
e) Um esquema de negócio possuído por trabalhadores, ou, em São dois exemplos claros de organizações institucionais que per-
parte também, pelo público através de ações e gerido por gesto- mitem que uma certa classe de pessoas - proprietários de escravos e
res eleitos ou selecionados na própria empresa; senhores feudais - se aproprie do trabalho excedentário de outros.
d) Um sistema de propriedade que efetua uma distribuição abran- E fazem-no em virtude da sua posição no sistema social. Para Marx,
gente e mais ou menos igualitária dos meios de produção e entre as unidades básicas fundamentais de análise estão classes, defi-
recursos naturais8. nidas no que diz respeito a todo o sistema social como modo de pro-
dução em que têm uma posição bem definida e desempenham um
É claro que tudo isto exige uma elaboração muito mais compli- papel económico.
cada. Aqui limito-me a relembrar alguns dos aspetos essenciais. 2. Marx estuda o capitalismo como sociedade de classes no âmbito
O outro motivo para considerar o pensamento socialista de Marx desta definição. Isto significa que para ele há uma classe de pessoas
significativo é que o capitalismo laissez-faire tem sérias desvantagens, na sociedade capitalista que em virtude da sua posição na organiza-
que devem ser assinaladas e corrigidas de formas cruciais. O socia- ção institucional é capaz de se apropriar do trabalho excedentário de
lismo liberal, bem como outras visões, podem esclarecer-nos relativa- outros. Para ele, tal como a escravatura e o feudalismo, o capitalismo
mente à melhor forma de realizar estas mudanças. é um sistema de subjugação e exploração.
O que distingue o capitalismo é que para aqueles que tomam deci-
sões e conduzem ações de acordo com as suas normas não parece tra-
§ 2. CARATERÍSTICAS DO CAPITALISMO tar-se de um sistema de subjugação e exploração. Como é que isto é
COMO SISTEMA SOCIAL possível? Como é que a exploração e a subjugação poderão passar
despercebidas? Esta questão coloca um problema: Marx pensa que
1. As sociedades estudadas por Marx eram as que chamava de precisamos de uma teoria para explicar porque é que estas caraterísti-
sociedades de classe. São sociedades em que a mais-valia social - o cas do sistema não são reconhecidas e como estão fora de vista. Mas
produto total do trabalho excedentário, ou trabalho não remunerado9 - vou prosseguir.
é apropriada por uma classe de pessoas em virtude da sua posição no 3. Relativamente aos detalhes do capitalismo como sistema social
sistema social. Por exemplo, nas sociedades de escravos tais como como Marx o entende:
o sul antebellum, o trabalho do escravo está ao dispor do senhor Primeiro, o capitalismo é um sistema social dividido em duas
enquanto proprietário e o trabalho excedentário ou não remunerado classes mutuamente exclusivas e completas, os capitalistas e os
do escravo - regressarei a esta definição e a outros aspetos mais tarde -
trabalhadores. Trata-se obviamente de uma conceção simplificada.
e o produto que produz é propriedade do senhor. Numa sociedade
Poderá ser adequadamente complicada se adicionarmos outras
feudal, o trabalho excedentário do servo era apropriado pelo senhor a
classes - proprietários, pequena burguesia - à medida que a aná-
quem o servo estava subordinado e em cujas propriedades lhe era
lise varia. Aqui mantemo-nos com a conceção simples.
exigido trabalhar durante um determinado número de dias por ano.
Tratava-se de trabalho forçado: o que o servo produzia nas terras do a) Os capitalistas possuem e têm controlo sobre todos os meios
senhor pertencia a este último. (instrumentos) de produção, bem como dos recursos naturais
(terra, minerais, etc.). Mas, no capitalismo não há escravatura.
8 Sobre estas caraterísticas, ver John Roemer, Liberal Socialism, Cambridge, Mass., O único fator de produção que os capitalistas não possuem é a
Harvard University Press, 1994. força de trabalho das outras pessoas, a capacidade que elas têm
9 Trabalho excedentário ou não remunerado é trabalho que é exigido ao trabalhador para trabalhar. Este fator de produção pertence aos próprios tra-
realizar para além do que é preciso para produzir os bens necessários para se sus- balhadores, individualmente;
tentar a si e à sua família. Não acrescenta nada ao seu próprio consumo e subsistên-
b) Para exercer e aplicar esta força de trabalho, que é o único fator
cia; são outros - senhores feudais, proprietários de escravos ou capitalistas - que
realmente ganham. de produção de que os trabalhadores são proprietários, est~s

374 375
últimos devem ter acesso e ser capazes de usar os meios de pro- (b) Contrariamente, o capitalismo é um sistema de independência
dução pertencentes aos capitalistas. Sem estes meios, o seu tra- pessoal visto que os trabalhadores são livres de assumir outro em-
balho não é produtivo. prego, e o acordo remuneratório no mercado é um contrato ostensivo
entre agentes livre e economicamente independentes. Todos esses
4. A segunda caraterística do capitalismo é que existe um sistema agentes são protegidos por um sistema que garante a liberdade con-
de mercados competitivos livres. O rendimento da produção das tratual e regula as condições de acordos vinculativos.
indústrias de bens de consumo é vendido para os lares nos mercados Para Marx, a caraterística assinalável do capitalismo era que, apesar
para esses fins. Também há mercados para os fatores de produção nos do facto de ser um sistema social com independência pessoal e merca-
quais estes fatores podem ser comprados a outros capitalistas, ou pro- dos competitivos livres com liberdade contratual, ainda é um sistema
prietários, se acrescentarmos uma classe de proprietários. Há final- em que existe trabalho excedentário ou não remunerado (ou mais-
mente um mercado de trabalho onde os capitalistas podem contratar -valia, o valor do que é produzido por trabalho excedentário). O pro-
a força de trabalho dos trabalhadores. Os fatores de produção e os blema que se lhe colocava era: como era isto possível? E como é que
fundos de capital circulam livremente dentro destes mercados. Em transações do sistema económico são levadas a cabo de algum modo
particular, os fundos de capital fluem para as indústrias com a taxa de sombrio?
lucro mais alta, o que tende a estabelecer uma taxa uniforme de lucro Um simples exemplo ilustra o que Marx pretende dizer. No capita-
em todas as indústrias. lismo é pago aos trabalhadores um salário diário padrão (doze horas).
(a) Em Grundrisse, Marx menciona o capitalismo como sistema de O capitalista contrata (ou aluga) a força de trabalho do trabalhador
independência pessoal, por oposição ao feudalismo que era um sis- (Arbeitskraft), que depois pode ser usada mais ou menos intensiva-
tema de dependência pessoallü. As instituições de servidão e escrava- mente, ou por mais tempo se o dia padrão for alargado. Segundo Marx,
tura ilustram o que se pretende dizer com um sistema de dependência uma caraterística única da força do trabalho era que se tratava do único
pessoal. Como vimos anteriormente, servos e escravos são de várias fator de produção que, no tempo que conseguia trabalhar, produzia
formas propriedade do senhor ou do proprietário de escravos. Por mais valor do que aquele que precisava para se sustentar a si própria
exemplo, os servos não podem circular livremente e estão presos à ao longo do tempo. Outros fatores adicionavam simplesmente o
propriedade do senhor. Têm de trabalhar tantos dias por ano para seu mesmo valor que lhes dava forma em primeiro lugar. Poderíamos
benefício e o produto do seu trabalho pertence-lhe. Neste caso, Marx dizer: sozinho o trabalho humano é criativo e, pelo menos, deve haver
diz que o facto e a taxa de trabalho (excedentário) não remunerado são claramente um fator como esse. Caso contrário, o sistema económico
visíveis e estão à vista. não pode crescer ao longo do tempo.
O que ele quer dizer é que tanto o senhor como o servo sabem Tudo isto se torna óbvio sob o feudalismo, com os seus dias de
quantos dias este último tem de trabalhar nas propriedades do pri- trabalho forçado na propriedade do senhor, o mesmo acontecendo na
meiro, e ambos conhecem a taxa de exploração, dada pela proporção escravatura. Mas os trabalhadores no capitalismo não têm forma de
de dias que os servos trabalham para o senhor relativamente aos que dizer quantas das suas horas de trabalho são necessárias para os sus-
trabalham para si próprios. Se os servos souberem contar, conhecem a tentar e quantas correspondem a trabalho excedentário para benefício
taxa de exploração: está à vista. do capitalista. As organizações institucionais escondem este facto.
Chamemos a esta razão s/v. Equivale a trabalho excedentário/ tra- Assim, a caraterística distintiva do capitalismo é que nele, por oposi-
balho necessário. Também corresponde a horas que o servo trabalha ção à escravatura e ao feudalismo, a extração de trabalho excedentá-
para o senhor/ horas que o servo trabalha para si próprio e para a sua rio ou não remunerado dos trabalhadores não está à vista. As pessoas
família. Frequentemente, também pode corresponder à taxa de explo- não têm consciência de que isso está a acontecer e não têm noção da
ração. Continuaremos a falar sobre isto mais tarde. taxa envolvidall.

10 Grundrisse, ed. Pelican, pp. 156-165. Ver também Capital, vol. 1, cap. 1: § 4. (Tucker, 11 Sobre este aspeto ver o extrato em Capital, vol. 1, cap. 10: § 2; em Tucker, Marx-
Marx-Engels Reader, p. 325; também p. 365.) -Engels Reader, p. 365.

376 377
Deste modo, um dos objetivos da teoria do valor-trabalho de Marx é destino. Tudo isto determina que indústrias e que formas de produ-
tentar explicar como o trabalho excedentário pode existir num sis- ção serão expandidas, e quais serão levadas a decair.
tema de independência pessoal, e como é que este último e a sua taxa (b) A meta subjetiva dos capitalistas - isto é, aquilo a que se pro-
não estão à vista. põem alcançar e o que têm em mente - de investir os seus fundos de
5. Uma terceira caraterística do capitalismo é que os dois tipos de capital não é simplesmente lucro, mas sim máximo lucro. Enquanto o
agentes económicos - os capitalistas e os trabalhadores - têm papéis nível de consumo dos capitalistas é consideravelmente superior ao
e objetivos diferentes no sistema social enquanto modo de pro- dos trabalhadores, aqueles não lutam - no período alto do capita-
dução: lismo quando está a desempenhar o seu papel histórico - por um
nível de consumo cada vez maior.
a) O papel e o objetivo dos capitalistas são representados pelo (c) A razão pela qual não o fazem é que a situação competitiva
ciclo M-C-M* (com M < M* e em que M =dinheiro e C =bens). dos capitalistas versus outros capitalistas (firmas versus firmas) for-
Isto representa o facto de que os capitalistas investem fundos ça-os a poupar e a inovar. Caso contrário, as suas firmas têm futuro
de capital líquido valorizados em M em máquinas e materiais e e eles deixarão de ser capitalistas. Por isso, estes últimos como indi-
na abordagem ao trabalho (na forma de comida, provisões, víduos não são em geral preguiçosos: gerem e superintendem fre-
equipamento e afins) de modo a produzir um stock de merca- quentemente as suas firmas e ajudam a pô-las a funcionar. Por isto
dorias (produção) para ser vendido com uma margem de lucro recebem salários de gestão, que não são contabilizados como lucros.
(M < M*, normalmente.); Marx preocupa-se com a origem e fonte do puro lucro que os capita-
b) O papel e objetivo dos trabalhadores é representado pelo ciclo listas recebem meramente por serem proprietários dos meios de pro-
C-M-C* em que normalmente o valor de C corresponde ao dução.
valor de C*. Isto representa o facto de que os trabalhadores (d) Os capitalistas podem desempenhar o papel social de aumentar
concordam em trabalhar, e assim produzir, para utilizar. Ou o capital real devido à sua posição enquanto proprietários dos meios de
seja, os trabalhadores trabalham para comprar com os seus produção, recursos naturais, etc., para além da força de trabalho. A sua
salários os bens necessários para se susterem - de modo a man- posição social permite-lhes controlar a direção do investimento, a orga-
terem a sua força de trabalho - e se reproduzirem sustentando nização da produção e o processo de trabalho na globalidade, e possuir
as suas famílias e filhos. o rendimento produzido, que depois podem vender com lucro, e assim
sucessivamente, à medida do progresso da acumulação.
6. Uma quarta caraterística do capitalismo é uma consequência Exercer todas estas prerrogativas de propriedade dos meios de
das diferenças precedentes nos papéis e objetivos sociais dos capita- produção é uma parte essencial do papel dominante dos capitalistas,
listas e trabalhadores. Trata-se de uma caraterística em que o papel não só na firma, mas na sociedade como um todo (na determinação,
social dos capitalistas é poupar, ou seja, acumular capital real e cons- por exemplo, do destino do investimento).
truir as forças produtivas da sociedade - a fábrica, a maquinaria, etc. - (e) Finalmente, falta acrescentar que os trabalhadores não poupam
ao longo do tempo. ao longo de toda a sua vida; a poupança que fazem é consumo a pres-
(a) M < M* no ciclo dos capitalistas expressa o facto de que os tações (poupando, por exemplo, para a velhice). Relativamente aos
capitalistas estão numa posição de acumular e aumentar o capital trabalhadores como um todo, a poupança líquida é zero: o que ostra-
real. São os capitalistas que poupam. A poupança líquida real acumu- balhadores mais jovens poupam os mais velhos gastam. (Isto pressu-
lada por todos os capitalistas são os meios de produção acumulados põe que a população ativa seja constante.)
pela sociedade: maquinaria, fábrica, melhoramento de propriedade 5. Uma quinta caraterística do capitalismo, que se torna óbvia
(dando abertura aos proprietários), etc. Assim, num sistema social tendo em conta as discutidas anteriormente, é que as duas classes (no
capitalista são os capitalistas que, individualmente e em competição modelo simples) têm interesses opostos, bem como papéis distintos
entre si, tomam as decisões da sociedade relativamente à quantia de no sistema social. Nas últimas fases do capitalismo, quando atingiu o
poupança real (investimento) em cada período de tempo e ao seu seu período alto, estas classes tornaram-se cada vez mais antagónicas

378 379
e o conflito social tornou-se mais visível e crónico. Isto leva-nos à teo- mas grandes partes são também recebidas por pessoas que não
ria desintegrada de Marx. desempenham absolutamente nenhum trabalho, ou então as suas par-
tes são excessivas por aquilo que o seu tempo de trabalho garante.
Perceber como isto acontece numa sociedade de escravos ou feudal é
§ 3. A TEORIA DO VALOR-TRABALHO uma tarefa fácil. Mas, como dissemos, Marx pensa que sob o capita-
lismo não está à vista e, portanto, precisamos de uma teoria, segundo
1. Até agora não disse quase nada acerca da teoria do valor-tra- ele, que explique como isto ocorre num sistema de independência
balho. Isto deve parecer-vos bastante estranho, visto que a teoria pessoal em que os contratos são firmados entre agentes ostensiva-
está associada ao nome de Marx. Contudo, penso que é melhor, ou mente livres e economicamente iguais.
pelo menos instrutivo, rever primeiro as principais caraterísticas do 2. O objetivo da teoria do valor-trabalho é penetrar por debaixo
capitalismo como ordem social tal como Marx as entendia, e expli- das aparências superficiais da ordem capitalista e pôr-nos a par da uti-
car de algum modo porque é que lhe terá parecido ser um sistema lização do tempo de trabalho e a discernir os vários aparelhos institu-
~e subjugação e .exploração. É nesse contexto, creio eu, que o obje- cionais, através dos quais o trabalho excedentário ou não remunerado
tivo da sua teona do valor-trabalho é mais facilmente compreen- é extraído da classe trabalhadora, e no que contabiliza. A preocupação
dido. de Marx não é só com o facto de perceber como é que rendimentos
Podemos pensar nesta teoria incluindo vários aspetos. Primeiro, sem salário surgem e como é que são redistribuídos e escondidos da
que o valor total acrescentado numa sociedade de produção de bens é vista. Ele também quer saber os pormenores desses processos escondi-
o tempo de trabalho social total despendido. Segundo, que a mais- dos e se os fluxos do tempo de trabalho podem ser quantificados.
-valia total corresponde ao tempo de trabalho total não remunerado. A resposta de Marx ao aparecimento de rendimentos sem salário
Aqui º. trabalho não remunerado é trabalho desnecessário12, cujos encontra-se em O Capital, vol. I. Ele julga que tendo em conta que os
procedimentos não são recebidos pelo trabalhador. capitalistas, como classe, possuem os meios de produção como sua
O pensamento de Marx é que, do ponto de vista da sociedade propriedade privada, podem extrair um certo total de trabalho exce-
como um todo, o trabalho humano potencial de todos os seus mem- dentário ou não remunerado. Os trabalhadores devem, por assim
b:os é um f~tor de produção com especial significado social. É espe- dizer, pagar uma propina - o seu trabalho excedentário - pelo uso
cial no sentido em que não deve ser considerado da mesma forma que fazem dos instrumentos produtivos. Em O Capital, vol. III,
como os outros fatores não humanos de produção, tais como a terra e o autor explica como o excedente total extraído é então redistri-
os r~cursos n~tu:ais, as forças da natureza, ferramentas e maquinaria buído como lucro, juro e aluguer entre os vários requerentes: aos
e afms. Estes ulhmos são o resultado do trabalho passado. O trabalho proprietários na forma de aluguer e aos agiotas na forma de juro.
humano é especial também na medida em que é um fator de produ- Neste caso também, a posse de propriedade é crucial. Os que pos-
ção peculiarmente caraterístico da sociedade. Do ponto de vista mais suem propriedades férteis ou recursos naturais, ou que têm fundos
básico, a sociedade humana é organizada para que os seres humanos líquidos, conseguem com que os capitalistas renunciem a parte do
possam produzir e reproduzir-se ao longo do tempo através do seu seu lucro na forma de aluguer pela utilização da terra, ou na forma
trabalho humano coletivo, fazendo sempre uso dos recursos e forças de prestações de juros para um empréstimo. Os capitalistas extraem
da natureza sob o controlo da sociedade. trabalho não remunerado aos trabalhadores, enquanto os proprietá-
É um facto acerca das sociedades de classes que o valor total rios e os agiotas extraem dos capitalistas parte dos seus lucros. Os
acrescentado não é partilhado apenas por aqueles que o produzem, exploradores são, por seu turno, explorados. Todos Canibais! como
proclama o título de Fitzhugh13.
12 [Trabalho não remunerado é «desnecessário» na medida em que os trabalhadores
não precisam de ser (e portanto não são) pagos por ele para comprarem, como 13 Trata-se do título do famoso folheto pró-escravatura de George Fitzhugh publi-
Rawls diz acima, «OS bens necessários para se susterem - manterem a força de tra- cado em 1856, em que o autor defende que os negros do sul são as pessoas mais
balho - e se reproduzirem sustentando as suas famílias e filhos». - Ed.] livres do mundo.

380 381
i l \I
3. Sendo isto correto (aqui sigo Baumol)14, a preocupação de tas, são ambas o mesmo. É isso que a teoria do valor-trabalho deve
Marx não se prende com a teoria do preço. Ele sabe perfeitamente mostrar.
que os preços se justificam em termos da procura e da oferta num 4. Deveria agora dizer que não considero que esta teoria seja bem
sistema de mercados competitivos e sem a utilização de valores de sucedida. De facto, penso que as visões de Marx podem ser melhor
trabalho. afirmadas se esta teoria não for usada em absoluto. Ao dizer isto,
Nem a teoria do valor-trabalho de Marx é uma teoria do preço aceito a visão de Marglin, e de muitos outros economistas marxistas
justo como a dos últimos escolásticos, que se preocupavam com a dos dias de hoje, que não consideram que a teoria do valor-trabalho
ideia de um preço exato (ou justo). Concluíram que o preço exato (ou seja sólida ou tão essencial. Às vezes, é insuficiente, noutras, mesmo
justo) era o preço competitivo sob determinadas condições de mer- quando é suficiente, é supérflua17.
cado adequadas, como, por exemplo, a ausência de monopólio, ou O verdadeiro objetivo da teoria do valor-trabalho diz respeito à
numa situação de fome ou seca. controvérsia fundamental acerca da natureza do produto capitalista.
Marx diz que «a utilidade de uma coisa torna-a num valor de uso». Contrariamente à visão neo-ortodoxa dominante, que realça a pari-
Mas, «Valores de uso só se tornam uma realidade através da utilização dade das reclamações de terra, capital e trabalho, logo a paridade das
ou do consumo: também constituem a substância de todas as rique- reclamações de proprietários, capitalistas e trabalhadores, Marx pro-
zas» (Tucker, Marx-Engels Reader, p. 303). Marx não sustenta que o tra- põe o papel central e básico da classe trabalhadora sob o modo de
balho seja a fonte de toda a riqueza material - dos valores de uso produção capitalista tal como em modos anteriores como esse. O ob-
produzidos pelo trabalho. Ele rejeita esta ideia explicitamente, jetivo da teoria é destacar as principais caraterísticas do capitalismo
dizendo: «Üs valores de uso [... ] são combinações de dois elementos - como modo de produção, que estão fora da vista através da paridade
matéria e trabalho. Se retirarmos o trabalho útil dispendido neles, fica dos capitalistas em relações de mercado de troca. Tudo isto acontece
sempre um substrato material, que é fornecido pela Natureza sem a providenciando o que Marx pensou ser uma base verdadeiramente
ajuda do homem.» O homem trabalha «como a Natureza, ou seja, científica para condenar o capitalismo a sistema de subjugação e
mudando a forma da matéria» (Tucker, p. 309). exploração18. Voltaremos a este aspeto na próxima palestra quando
Finalmente, Marx não considera que a exploração surja das discutirmos Marx e justiça.
imperfeições do mercado ou da presença de elementos oligopo- Dito isto, concluo com um comentário acerca da força de traba-
lísticosls. A sua teoria do valor-trabalho pretende mostrar, entre lho: Marx tinha orgulho da distinção que estabeleceu entre força
outras coisas, que mesmo sob um sistema de competição perfeita de trabalho e trabalho, ou o uso da força de trabalho. Ele julgava
a exploração existe numa sociedade capitalista. Ele quer trazer à que esta distinção o ajudava a explicar como os lucros poderiam
superfície - para que todos vejam - o modo em que a ordem capi- surgir num sistema de mercado livre de trocas não coercivas em
talista, mesmo quando totalmente competitiva, e mesmo quando que, em qualquer mercado, valores iguais são trocados por valores
satisfaz completamente a conceção de justiça mais adequada a ela, iguais.
ainda é um sistema social injusto de subjugação e exploração. Esta O autor defende que (sob as suposições do vol. 1) o capitalista, ao
última é crucial. Marx quer dizer que mesmo um sistema capita- contratar o trabalhador, paga-lhe o valor total da sua força de traba-
lista perfeitamente justo, pelas suas próprias capacidades e pela lho. Isto significa, como vimos, que um trabalhador recebe o salário
conceção de justiça mais adequada a ele, é um sistema de explora- correspondente ao tempo de trabalho socialmente necessário que é
ção. Substitui a exploração feudal pela capitalista16. Afinal de con- exigido para a produção desta força de trabalho. Durante um dia, esta
é a quantia que cobre a manutenção e o desgaste do trabalhador, para
14 W. J. Baumol, «The Transformation of Values: What Marx 'Really' Meant (An
além de outras perdas. Em suma, o salário de um trabalhador cobre o
Interpretation)», Journal of Economical Literature (1974).
15 Essa visão encontra-se em A. C. Pigou, The Economics of Welfare, Londres: 17 Ver Stephen A. Marglin, Growth, Distribution, and Prices, Cambridge, Mass.:
Macmillan, 1920. Harvard University Press, 1984, pp. 462 e segs.
16 Capital, I, cap. XXVI: 'JI'JI5-7, IN Tucker, Marx-Engels Reader, p. 433. 18 Ver Marglin, Growth, Distribution, and Prices, pp. 463, 468.

382 383
1

que é socialmente necessário para fazer com que ele produza e se Tempo de trabalho socialmente necessário: 306.
reproduza ao longo do tempo. Trabalho abstrato vs. trabalho concreto: 310.
A distinção entre a força de trabalho e a sua utilização é análoga à Trabalho simples: 310.
distinção entre uma máquina (como peça de equipamento de capital) Trabalho simples como não especializado: 311.
1
e a utilização da máquina (para um determinado propósito durante Trabalho especializado como trabalho simples multiplicado: 310.
1 1

um certo período de tempo). Ao contratarem trabalhadores, os capi- Definição de força de trabalho: 336.
talistas estão a alugar máquinas humanas. Walras chamou de «capi- Definição de valor de força de trabalho: 339.
tal pessoal» a um ser humano visto como uma máquina. A educação 3. Um esquema: em ligação com o cap. 10, sec. 1, pp. 361-364 (ver
e a formação correspondem frequentemente a um investimento no figura 7).
«capital humano». A capacidade de utilização da máquina humana Trabalho necessário vs. trabalho excedentário: 361-364.
por um capitalista é variável, bem como o que este último consegue Mais-valia: 351.
obter do trabalhador durante o processo de trabalho num dia útil. De Mais-valia absoluta e relativa: 418.
qualquer modo, o capitalista pagou o valor de um dia inteiro pela 4. Uma definição:
máquina. Contratar o trabalhador é vantajoso porque a força de tra- O valor de uma massa de bens = valor acrescentado por: C + V +
+ S, em que C =capital constante (maquinaria, matérias-primas, etc.).
balho tem a capacidade de produzir mais valor do que leva para pro-
V= capital variável (salários ou trabalho remunerado).
duzir a própria força de trabalho. E este é o aspeto crucial19.
S =trabalho excedentário (trabalho não remunerado).

APÊNDICE: MARX PALESTRAI Tempo de trabalho remunerado Tempo de trabalho não remunerado
Salários Lucros
1. Vejamos agora algumas definições e observações de esclareci- (Capital variável) (Mais-valia)
mento acerca da teoria do valor-trabalho. Em O Capital, vol. I, lemos o Trabalho necessário Trabalho excedentário
seguinte. (Todas estas seleções estão incluídas em Tucker, Marx- Dia de trabalho
-Engels Reader.)
FIGURA 7 - Esquema, O Capital, de Marx, vol. I, cap. 10, sec. 1
Cap. 1: Mercadorias, secs. 1, 2, 4;
Cap. 4: Fórmula Geral para o Capital, todo;
Cap. 6: Compra e Venda da Força de Trabalho, todo; Visto que a maquinaria e as matérias-primas não acrescentam
Cap. 7: O Processo de Trabalho e o Processo de Produzir Mais- nenhum valor, e os salários são pagos pelo trabalho necessário, a
-Valias, sec. 2, pp. 357-361; mais-valia total é o produto total do trabalho excedentário.
Cap. 10: Dia de Trabalho, secs. 1, 2. Isto significa que a teoria do valor-trabalho de Marx atribui todo
De O Capital, vol. III, a seleção em Tucker, pp. 439-441. o excedente social em qualquer período de tempo ao trabalho (não
2. Referências (em Tucker): a definições implicadas na teoria do remunerado) excedentário.
valor-trabalho: definição de bem: 306 e segs. 5. Algumas razões:
O valor de um bem é igual ao total do tempo de trabalho social- A razão s/v = razão do trabalho excedentário/ trabalho necessário.
mente necessário para a sua produção: 305-307. =taxa de exploração (a taxa da mais-valia).
A razão s/c + v = taxa de lucro.
A razão e/e + v = composição orgânica do capital.
19 Há aqui um problema: se o próprio trabalho é criativo, porque é que os capitalis-
tas não fazem aumentar o preço do trabalho até conseguirem atingir zero de 6. Uma observação
lucros? Sobre isto ver Joseph A. Schumper, History of Economic Analysis, Oxford: A taxa de lucro depende apenas de s/v e e/e + v; ou seja, apenas da
Oxford University Press, 1954, pp. 650 e segs. Existem outras respostas. taxa de mais-valia (exploração) e da composição orgânica do capital.

384 385
i I'
1 '

Esta relação mantém-se porque:

s/c + v = (s/v) (1- (e/e+ v)),

que diz que a taxa de lucro é igual à taxa de exploração multiplicada


por um menos a composição orgânica do capital(= e/e+ v). MARX II
Assim, quanto maior a taxa de exploração, maior a taxa de lucro e
quanto maior a composição orgânica do capital, menor a taxa de A SUA CONCEÇÃO DE DIREITO
lucro.
E JUSTIÇA

§ 1. UM PARADOXO NAS VISÕES DE JUSTIÇA DE MARX


1. Permitam-me começar pela discussão acerca das ideias de Marx
sobre exploração: a definição de exploração que Marx apresenta na
sua teoria do valor-trabalho é puramente descritiva. E dada pela
razão de trabalho excedentário (ou não remunerado) sobre trabalho
necessário, ou s / v. Mas isto não pode ser tudo o que há para dizer do
conceito de exploração. A razão é que uma sociedade socialista justa,
como qualquer outra sociedade, precisa de um excedente social,
suponhamos, para fornecer bens públicos tais como saúde pública,
educação e bem-estar, proteção ambiental e muito mais. Significa que
as pessoas devem trabalhar mais tempo do que aquele que é preciso
para produzir os bens que recebem como salários. Isto aplica-se a
qualquer sociedade em que se queira viver. Assim, enquanto a razão
s / v é definida como a taxa de exploração, e enquanto se trata de uma
definição puramente descritiva, deve haver mais para dizer acerca da
noção de exploração. Esta última é decerto um conceito moral e
recorre implicitamente aos princípios de justiça de algum tipo. Caso
contrário, não nos interessaria como realmente acontece.
Para Marx, é o contexto institucional no qual ocorre a razão s / v que
faz dela uma medida de exploração. A possibilidade de s / v ser explora-
ção depende da natureza da estrutura básica que lhe dá lugar e de quem
tem o controlo institucional de s. Marx deve ter uma forma de julgar essa
estrutura como justa ou injusta. Na próxima palestra, assinalo que ele
considera que a exploração aparecerá quando a estrutura básica assentar
numa desigualdade básica em bens produtivos alienáveis possuíd_os

386 387
pelas duas principais classes da sociedade capitalista. No caso capitalista, Porém, se pensarmos numa conceção de justiça política de um
o trabalho excedentário não é de forma alguma controlado coletivamente modo abrangente, que se aplique à estrutura básica da sociedade e
pelos trabalhadores, através por assim dizer dos seus votos democráti- assim às instituições de justiça de fundo, então Marx poderá ter tido,
cos, nem é, em geral, para benefício deles; ao passo que na sociedade \
pelo menos implicitamente, uma conceção de justiça política em sen-
socialista o total dos bens de não consumo (que substitui s no caso socia-
tido lato. Se assim for, o paradoxo pode deixar de existir. A possibili-
lista) corresponde a ambas as situações. Devemos olhar para a estrutura
dade de ele ter essa conceção política depende, como disse, dos
básica da sociedade para ver como é usado o que é produzido por s. Se
valores específicos a que recorre na condenação do capitalismo.
for para essas coisas como a saúde pública do trabalhador médio, educa-
ção e bem-estar, já não é tratado como trabalho excedentáriol. 3. Irei continuar do seguinte modo: primeiro esboço algumas ra-
A essência é que o conceito de exploração pressupõe uma conce- zões para dizer que Marx não condena o capitalismo a injusto. E, em
ção de direito e justiça à luz da qual as estruturas básicas são julga- seguida, esboço algumas razões para dizer que ele realmente o faz,
das. Ou se não for uma conceção de direito e justiça, será exigido, pelo menos implicitamente. Com isto pretendo dizer que o que ele
certamente, algum tipo de visão normativa. Isto levanta a questão: diz implica que o capitalismo seja injusto apesar de não o fazer em
Que tipo de visão normativa é que Marx tinha? Tem havido muita tantas palavras.
controvérsia acerca disto entre os estudantes de Marx, quer sejam Mais tarde irei delinear a sua conceção de uma sociedade inteira-
marxistas ou não. Por exemplo, ele condenou o capitalismo como mente comunista - o ideal à luz do qual julga o capitalismo e todas as
inju~to? Há quem pense que sim e também quem pense que não. formas históricas precedentes da sociedade - para ver se esse ideal
E claro que ambos os lados partem do princípio que ele condenou contém elementos que o façam incluir uma conceção de justiça polí-
o capitalismo. Isso é óbvio e faz saltar as páginas de O Capital. A ques- tica e em que sentido, no caso de existir, se trata de uma sociedade
tão diz respeito aos valores particulares nos termos dos quais ele o para além da justiça.
fez: quer esses valores incluam uma conceção de direito e justiça ou Deve ser assumido, contudo, que esta questão pode não ser conclu-
sejam expressos em termos de outros valores como, por exemplo, os sivamente resolvida. Marx não pensou cuidadosa e sistematica-
de liberdade, autorrealização e humanidade. mente nela. Apesar de ser um académico por natureza e tempera-
2. A resposta que sugiro (e aqui sigo Norman Geras e·G. A. Cohen) mento, dados os seus objetivos, não acreditava que fosse importante
é que Marx condenou de facto o capitalismo como injusto. Por outro fazê-lo. Outras coisas eram mais urgentes para ele.Neste aspeto poder-
lado, ele não se via a fazê-lo 2. O que explica este suposto paradoxo é -se-á ter enganado muito, visto que a sua atitude aparentemente depre-
que os comentários explícitos de Marx acerca de justiça interpretam o ciativa para com ideias de direito e justiça pode ter criado ao socialismo
conceito de uma forma limitada relativamente a dois aspetos: consequências sérias a longo prazo. Quem sabe? Mas, pondo isso de
a) Considera que a justiça consiste em normas legais e judiciais lado agora, o resultado é que nós temos de reconstituir o que ele diz, e
prevalecentes e internas à ordem social e económica e, sempre interrogarmo-nos sobre a visão global que melhor dá conta e liga os
que for conveniente, essas normas adequpm-se ao facto de a aspetos mais significativos e claramente formulados do seu pensa-
ordem desempenhar o seu papel histórico; mento.
b) Marx também considera que a justiça tem a ver com trocas no mer-
cado e para além disso com a distribuição de .rendimentos e de bens
de consumo que daí resulta. Neste aspeto, a justiça é comutativa e
distributiva mas interpretada de forma limitada. § 2. A JUSTIÇA COMO CONCEÇÃO JURÍDICA

1 Ver Tucker, Marx-Engels Reader, p. 440, de O Capital, vol. 3.


1. Começo pela visão sugerida por Allen Wood e por outros3.
2 Ver Norman Geras, «The Controversy about Marx and Justice», em Literature of
Revolution: Essays on Marxism, Londres: Verso, 1986, p. 36. · 3 Allen Wood, Karl Marx, Londres: Routledge, 1981.

388 389
~s principais pensamentos parecem ser os que se seguem e, em i) Marx condenou, de facto, o capitalismo, mas fê-lo em nome de
segmda, apresentarei alguns pormenores: outros valores, tais como a liberdade e a autorrealização.
a) Marx defende em O Capital que a relação do salário como troe 2. Vejamos agora alguns pormenores acerca desta primeira visão.
I, Por exemplo, Wood pensa que Marx não critica o capitalismo como
de valores equivalentes (força de trabalho por s;lários) n- ª
envolve nenhuma injustiça para o trabalhador ' ao injusto e que parece dizer que é justos. A sua explicação para isto é a
b) No seu ~rit~qu~ º[ the Gotha Program, Marx atac~ as ideias socialis- seguinte: Marx pensa numa conceção de justiça em termos políticos e
tas de distnbmçao exata ou justa acusando-as de estarem seria- " jurídicos que acompanha a separação institucional entre o estado e a
mente erra?-as e de prosseguirem na direção errada; sociedade. Esta separação institucional pressupõe a necessidade de
e) Marx c.onsidera que as normas de direito e justiça são internas um estado, e, portanto, a existência de uma classe dominante e de uma
-_ou SeJa, eleme~tos es~enciais - aos modos específicos de produ- dominada. Quando esse estado existe, a exploração (no sentido de
çao e, nest: sei:hdo, sao relativas ao período histórico particular ·Marx) também existe. As instituições políticas e legais pertencem ao
em que estao vigentes; que Marx às vezes chama de superstrutura: estas instituições têm um
d) Em geral, o ,autor pensa na moralidade como ideológica, logo papel regulador e são ajustáveis às exigências do modo e relações de
perte~ce~te a superstrutura da sociedade; a moralidade, e com produção. Cada forma social, cada tipo de organização política e o seu
e~a a _JU~t~ça, muda quando essa superstrutura se ajusta à sequên- modo associado de produção têm uma conceção distintiva de justiça
Cia .hi~tonca de modos de produção específicos; que é adequada a ele/ ela enquanto sistema social. Quando estas insti-
e) Insish~ ~ue Mar~ se_interes~a por justiça é projetar por lapso as
tuições são ajustadas ao modo fundamental de produção, satisfazem
s1:as ~isoes ~a direçao restnta e reformista de preocupações dis- as suas exigências operativas de forma eficaz.
tnbuhvas, tais como níveis salariais e diferenças de rendimentos Por isso, para Marx, as instituições devidamente ajustadas da
a~ passo que os seus objetivos eram claramente mais fundamen~ superstrutura incluem uma conceção de justiça que desempenha o
tais e re_volucionári~s, ~o~ a intenção de transformar a proprie- papel histórico do modo económico fundamental de produção.
dade pnvada e o propno sistema salarial· O capitalismo, como qualquer outro modo de produção histórico, tem
J> De ig_ual modo, d~ze~ que Marx se preoc~pava com justiça é des- uma superstrutura devidamente ajustada e uma conceção de justiça
valor~za. r?
. seu p:mcipal esforço, que consistia em revelar as for- adequada a ela. Esta conceção é a que melhor desempenha o papel
ças histoncas reais e ativas que eram fundamentais, pensava ele, histórico do capitalismo de aumentar os meios de produção a uma
para o derrube e colapso do capitalismo. Dizer isto iria substituir taxa rápida comparativamente a formas sociais anteriores. Mas então:
~rgu~entos morais de vários tipos, que este autor considerava
«Ü trabalhador moderno [... ] em vez de crescer com o progresso da
idealistas e sobre os quais tinha grandes dúvidas· indústria, afunda-se cada vez mais abaixo das condições de existência
g) ~ara ~lém diss.o, ele julgava que, sendo um valdr jurídico, a jus-
da sua própria classe. Torna-se num necessitado» (Communist Mani-
hça na~ podena ser posta em ação numa sociedade inteiramente festo, Tucker, p. 483).
~º1;11:1msta, que alegadamente terá concebido sem instituições
Assim, a concretização do papel do capitalismo é o que torna pos-
JUndicas de lei e do estado· sível a existência de uma sociedade inteiramente comunista de um
h) Marx concebia a sociedade inteiramente comunista como uma futuro não muito distante. De facto, no Communist Manifesto, como
P.ªra além das circunstâncias de escassez e conflito. São estas personificação do capital, o capitalista é o grande herói da história
Circunstâncias ~ue tornam necessárias as normas de justiça, em que transforma o mundo e prepara o caminho para a «vitória do pro-
que todas anseiam por um padrão distributivo superior: «De letariado» e a sociedade que Marx visiona6.
cada um de acordo com a sua capacidade, para cada um de 3. Deste modo, nesta visão, o capitalismo, especialmente no seu
acordo com as suas necessidades»4· período alto, no período em que desempenha efetivamente o seu
I

5 Wood, Karl Marx.


4 Ver Critique of the Gotha Program, I, Tucker, p. 531. 6 Ver «Manifesto of the Communist Party», secção 1, Tucker, pp. 473-483.

390 391
papel histórico de aumentar os meios de produção, não é injusto. Há no mercado financeiro, tal como este último existe no âmbito do capi-
uma conceção de justiça apropriada a ele e, por esta conceção, é justo talismo. Um empréstimo é um contrato válido que o sistema legal sob
desde que as suas normas sejam respeitadas. Outras conceções de jus- o capitalismo fará cumprir.
tiça são simplesmente irrelevantes; poder-se-ão aplicar a outros meios 4. Esta passagem não é em si própria uma descrição da conceção
económicos de produção que existiram em tempos idos, ou que irão de justiça sob o capitalismo, mas realmente sugere vários aspetos.
existir no futuro, mas não se aplicam nas condições históricas parti- Primeiro, há a distinção que Marx estabelece entre formas jurídicas
culares do capitalismo. - por exemplo, a forma jurídica de um contrato (válido) (como, diga-
Então, não há nenhuma conceção de justiça que seja sempre apli- mos, um acordo para fazer um empréstimo, ou uma compra) - e o
cável ou que se aplique a todas as formas sociais. Neste sentido, conteúdo destas formas. As mesmas formas jurídicas podem ser
para Marx não há princípios de justiça universalmente válidos. encontradas em muitos sistemas legais diferentes e ser aplicadas a
A possibilidade de uma conceção de justiça se aplicar a um determi- transações económicas sob modos de produção amplamente diferen-
nado sistema político e social é resolvida pela possibilidade de ser tes. Aceito que o conteúdo da forma jurídica do contrato diga respeito
adequada ao modo de produção existente tendo em conta o seu aos tipos específicos de contratos que podem ser legalmente realiza-
papel histórico. dos e que serão cumpridos. Assim, sob o capitalismo, um contrato
Uma passagem de O Capital, III, sugere este tipo de visão. Escreve para comprar e vender escravos é inválido e, portanto, injusto de
Marx: acordo com a conceção capitalista de justiça. Também aceito que o
conteúdo da forma jurídica do contrato cubra as várias condições sob
Falar aqui de justiça natural, tal como Gilbart, [... ]é um dispa- as quais se realizam acordos válidos. Deste modo, sob o capitalismo,
rate. A justiça das transações entre agentes de produção assenta a fraude e o engano na obtenção do acordo são excluídos por serem
no facto de que estas [transações] surgem como consequências injustos, tal como acontece com todo o resto que é claramente incom-
naturais das relações de produção. As formas jurísticas em que patível com um regime de contrato livre.
estas transações aparecem como atos intencionais [voluntários] Segundo, parece que a escravatura ou a fraude, etc., injustas sob
dos partidos envolvidos, como expressão da sua vontade comum algum modo de produção, são resolvidas quer a escravatura autori-
e como contratos que podem ser aplicados pela lei contra algum zada ou as práticas fraudulentas especifiquem um conteúdo para a lei
partido individual não podem, sendo meras formas, determinar de contratos que é mais adequado ao modo de produção existente, e
este conteúdo. Elas [estas formas jurísticas] limitam-se a expressá- bem adaptado à operação deste modo na realização do seu papel histó-
lo. Este conteúdo é justo sempre que corresponda, seja apropriado, rico. Recordemos que este papel é a acumulação rápida de capital (real)
ao modo de produção. É injusto sempre que contradiga esse e o desenvolvimento da tecnologia para o usar de formas inovadoras.
modo. Na base da produção capitalista, a escravatura é injusta; Assim, a forma jurídica da lei de contratos sob o capitalismo é
de igual modo, pode ser fraude na qualidade de mercadorias. mais adequada quando o seu conteúdo é ajustado para permitir que
(O Capital, vol. III, edição International Publishers, pp. 339-340. este modo de produção acumule capital da forma mais eficaz.
capítulo 21, <]IS; itálico acrescentado.) A escravatura é incompatível com isto, bem como com as exigências
do capitalismo como modo de produção. Como sistema de indepen-
Esta passagem aparece quando Marx está a discutir o capital com dência pessoal, é injusto sob a conceção capitalista de justiça. Uma
pagamento de juros. Numa nota de rodapé ao excerto ele cita Gilbart, caraterística essencial do capitalismo é um sistema de mercados livres
The History of the Principies of Banking (Londres, 1834), dizendo: competitivos, incluindo o mercado livre para a contratação de força
«Trata-se de um princípio evidente por si mesmo de justiça natural o de trabalho livre.
facto de um homem pedir dinheiro emprestado com vista a fazer Nesta ligação, diz-se que Marx considera que a relação competi-
lucros com ele, devendo ser obrigado a dar uma porção desse mesmo tiva de salários, como traço essencial do capitalismo, não é injusta,
lucro a quem emprestou.» Marx responde que o pagamento de juros considerando que os trabalhadores são pagos pelo valor total da sua
surge como a consequência natural da oferta e da procura de fundos força de trabalho, ou seja, o equivalente ao tempo de trabalho sodal-

392 393
mente necessário que é preciso para produzir e reproduzir a força de iguais do homem. É nestes princípios que se baseiam o regime de
trabalho dos trabalhadores. Ao analisar o contrato de trabalho em contratos livres e o sistema de independência pessoal.
O Capital, Marx diz o seguinte: Regressarei mais tarde à noção de consciência ideológica, limi-
tando-me a dizer agora que se trata sempre de uma forma de falsa
O que realmente o influenciava [ao capitalista] era o valor de consciência de dois tipos: de ilusão ou de engano. Mas estamos a
uso específico que este bem [força de trabalho] possui por ser uma avançar.
fonte não só de valor, mas de mais valor do que aquele que realmente tem
[itálico de Marx]. Trata-se do serviço especial que o capitalista
espera obter da força de trabalho, e nesta transação ele age de § 3. MARX CONDENA O CAPITALISMO A INJUSTO
acordo com as «leis eternas» da troca de bens. O vendedor de força
de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, realiza o seu 1. Contrariamente à visão que acabámos de analisar, outros escri-
valor de troca e parte com o seu valor de uso. [... ] O proprietário tores (entre os quais Norman Geras e G. A. Cohen) 7 defendem que
do dinheiro pagou o valor correspondente a um dia de força de Marx pensa, de facto, que o capitalismo é injusto e que diz coisas
trabalho; tem, portanto, direito a usá-la durante um dia. Um dia de que sugerem rigorosamente isso. Por isso, argumentam que ele tem e
trabalho pertence-lhe. A circunstância em que, por um lado, a usa uma conceção de direito e justiça, quer tenha conhecimento disso
manutenção diária da força de trabalho só custa metade de um dia ou não.
de trabalho, enquanto, por outro, a mesma força de trabalho pode Entre alguns dos principais aspetos desta segunda visão encon-
operar durante um dia inteiro, e que, consequentemente, o valor tram-se os seguintes:
criado pela sua utilização durante um dia duplica o que ele paga
por essa utilização. Esta circunstância é, sem dúvida, uma grande a) A insistência de Marx de que a relação salarial é uma relação de
sorte para o comprador, não sendo de forma alguma um prejuízo troca, onde o equivalente é trocado pelo equivalente, é o resul-
para o vendedor. (O Capital, vol. I, capítulo 7, § 2, <[21; ou ver tado de um ponto de vista parcial e provisório, encarando essa
Tucker, 357-358.) relação como parte do sistema de circulação na sociedade capi-
talista. Foi acrescentada por uma descrição do modo de produ-
Ou seja, não é um prejuízo, ou uma injustiça sob a conceção de ção como um todo que mostrava não se tratar em absoluto de
justiça adequada ao capitalismo. Como Marx diz algumas linhas uma relação de troca, mas que era claramente exploradora: era
abaixo: «0 equivalente foi trocado pelo equivalente». E assim a conce- simplesmente a expropriação capitalista do trabalho não remu-
ção de justiça adequada ao capitalismo é satisfeita. Pagar aos traba- nerado;
lhadores menos do que o valor da sua força de trabalho seria injusto; b) Apesar de Marx se envolver realmente com polémicas contra o
e isto é um exemplo muito mais relevante de injustiça do que a escra- que considerava ser moralístico e criticismo ineficaz, apresen-
vatura. Aparentemente, então, Marx pensa que o capitalismo com o tava a exploração na sua teoria do capitalismo como errada e
seu mercado livre competitivo é perfeitamente justo! Ou pelo menos injusta, chamando-a por vezes de «extorsão» e «roubo». Estas
não é injusto. expressões sugerem que o que estava a ser feito era errado e
5. É claro que esta ideia de conceção capitalista de justiça ade- injusto;
quada ao modo de produção capitalista não lhe pertence. Nesta inter- e) Através da sua discussão em Critique of the Gotha Program, Marx
pretação, pertence à ideia de Marx relativamente ao papel histórico classificou o princípio de distribuição de acordo com a necessi-
das conceções de justiça como parte da consciência ideológica da dade acima do princípio de distribuição de acordo com trabalho
sociedade capitalista. de socialismo (o primeiro estádio da sociedade comunista), bem
como acima das normas do capitalismo. Ao fazer isto, Marx, na
A conceção capitalista de justiça, conforme foi apresentada nos
seus próprios termos, fala da liberdade, da igualdade e dos direitos 7 Ver a revisão de Cohen do livro de Allen Wood, Karl Marx in Mind, julho de 1983.

394 395
111

verdade, assumia um padrão de justiça objetivo e não histórico, buição justa de liberdades básicas como podemos fazê-lo rela-
segundo o qual os modos de produção e as sociedades aos tivamente a outra coisa qualquer. Talvez Marx também admita
pares podem ser julgados pela sua aproximação relativamente a outros direitos básicos iguais, como iremos ver.
ele;
d) Aparentemente, as afirmações de relativismo moral de Marx 2. Tanto melhor então para os aspetos mais gerais brevemente
são, na verdade, afirmações do facto de que certas condições apresentados. Como anteriormente, passo a enunci~r alguns porme-
materiais são, realmente, necessárias se determinados princí- nores. Contrariamente à primeira visão, estes escritores defendem
pios de justiça e equidade, e outros valores importantes, forem que quando examinamos, por assim dizer, o modo como Marx en-
concretizados. Instituições sociais justas e corretas pressupõem cara a relação de troca entre os capitalistas e os trabalhadores como
um determinado contexto de circunstâncias materiais e ignorar realmente se efetua por debaixo das aparências superficiais da so-
este facto é mostrar falta de realismo e compreensão. ciedade capitalista, então é evidente que ele julga não se tratar em
e) O interesse por questões distributivas não é reformista no sen- absoluto de nenhuma troca, mas de uma mera pretensão - trabalho
tido pejorativo, desde que tenhamos uma conceção de justiça forçado 8 .
abrangente e adequadamente concebida que cubra a distribui-
A troca de equivalentes, a operação original com a qual come-
ção de direitos básicos de todos os tipos, e que portanto inclua
çámos, transformou-se agora de tal forma que só há uma troca
os direitos de propriedade e outras questões fundamentais. Isto
aparente. Isto deve-se ao facto de que, primeiro, o próprio capital
certamente permite que Marx tenha uma doutrina revolucioná-
que é trocado por força de trabalho não é senão uma .porção do
ria e de forma alguma a inibe;
produto do trabalho de outros apropriado sem um eqmvalente; e,
j) De igual modo, apesar de Marx não acreditar que o criticismo
segundo, que este capital deve não só ser substituído pelo seu
moral fundado na justiça e outras conceções fosse suficiente,
produtor [o trabalhador], mas substituído jui:ta~ente com u~
tinha um lugar na sua mente e acompanhava a sua análise das
excedente acrescentado. A relação de troca subsistindo entre capi-
forças históricas para a mudança;
talista e trabalhador torna-se uma mera aparência pertencente ao
g) Classificar conceções de direito e justiça como jurídicas é, em
processo de circulação, uma mera forma .... A sempre recorrente
geral, demasiado restrito. Podem ser concebidas independente-
compra e venda de força de trabalho é agora a mera forma; o ~ue
mente das instituições estatais de coerção e dos seus sistemas
realmente acontece é o seguinte - o capitalista apropria-se mmtas
de leis e, de facto, isto é feito sempre que são usadas na avalia-
vezes, sem equivalente, de uma porção do trabalho previamente
ção da estrutura básica da sociedade e das suas organizações
materializado de outros e troca-o por uma maior quantidade de
fundamentais;
trabalho decente9.
h) De facto, o princípio «De cada um de acordo com a sua capaci-
dade, e para cada um de acordo com as suas necessidades» é
Marx prossegue dizendo que este pro~esso conti~u~ de acc:_rd~
deste tipo. Tem como objetivo alcançar o direito igual de autor-
com as leis de propriedade e troca na sociedade capitalista e nao e
realização para todos, apesar de Marx o imaginar a ocorrer
uma violação mas uma aplicação dessas leis. Sob estas últimas passa
com o desaparecimento do estado e das instituições de lei coer-
a ser um direito do capitalista apropriar-se do trabalho não remune-
civas;
rado de outros ou do seu produto. Diz ele (p. 584, no fim do mesmo
i) Finalmente, a alegada distinção entre tipos de valores e prin-
parágrafo): «A separação de propriedade relat~vamente a trabalho
cípios - valores e princípios de direito e justiça vs. valores e
tornou-se a consequência necessária de uma lei que aparentemente
princípios de liberdade e autorrealização - é revelada como
sendo completamente arbitrária pelo princípio de Marx para
uma sociedade inteiramente comunista. Este princípio atribui 8 Em Capital, vol. 1, cap. 24: «The Conversion of Surplus-Value into Capital», Nova
realmente um direito igual básico de autorrealização, se prefe- Iorque: International Publishers, 1967, pp. 583 e segs.
rirmos essa linguagem. E podemos falar certamente da distri- 9 Ibid., p. 583.

396 397
teve origem na sua identidade.» Ele comenta numa nota de rodapé priedade e Bentham» (O Capital, vol. I, ed. International Publishers,
acerca disto que o princípio original, segundo o qual o trabalhador p. 176; Tucker, p. 343). Mas mais uma vez a realidade é diferente: o
pode apropriar-se do produto do seu próprio trabalho, sofreu «uma trabalhador livre faz um acordo voluntário, ou seja, «é levado pela
inversão dialética». Isto aconteceu sob as aparências superficiais das condições sociais a vender toda a sua vida ativa, a sua verdadeira
instituições capitalistas. capacidade de trabalho» (Tucker, p. 376). E outra vez: «O capital [ ... ]
3. Isto não se assemelha a um homem a descrever um sistema de extrai uma quantidade precisa de trabalho excedentário dos produ-
instituições básicas que poderá aprovar e aceitar como justas. Por tores diretos, ou trabalhadores; o capital obtém este mesmo trabalho
isso, levanta-se a questão sobre a possibilidade de Marx dizer coisas excedentário sem um equivalente, e em essência permanece sempre
que normalmente seriam tidas para sugerir que ele considera o sis- como trabalho forçado - independentemente do que eventualmente
tema capitalista injusto. Aqueles que seguem a visão que estamos possa resultar de um acordo contratual livre» (Capital, vol. III, Tu-
agora a considerar mantêm que ele o faz nomeadamente quando fala cker, p. 440).
da apropriação capitalista de mais-valias em termos de extorsão, Visto que Marx não pensava que os capitalistas roubam o traba-
assalto e afins. Afirmar isto, defendem eles, implica que o capitalista lhador de acordo com a conceção capitalista de justiça, deve ter que-
não tenha nenhum direito de se apropriar de mais-valias, e ao fazê-lo rido dizer que eles roubam os trabalhadores num outro sentido. Para
é portanto errado ou injusto. Poderíamos dizer em alternativa que além disso, visto que Marx condenava a escravatura e o feudalismo
não é o capitalista que é injusto, mas o próprio sistema. mais ou menos nos mesmos termos, este outro sentido pertence pre-
Assim, ao referir-se num lugar ao produto excedentário como «o sumivelmente a uma conceção de justiça que defende globalmente.
tributo anualmente reclamado da classe trabalhadora pela classe Ou seja, deve ser aquela que aplica à estrutura básica da maioria das
capitalista», Marx continua: «Mesmo se esta última usar uma porção sociedades, se não de todas e, portanto, neste sentido é não relati-
do tributo para comprar a força de trabalho adicional no seu preço vista.
total, para que o equivalente seja trocado pelo equivalente, a coisa Deste modo, quem (por exemplo, G. A. Cohen) argumentava que
toda ainda permanece como a atividade ancestral do conquistador, Marx condenava de facto o capitalismo a injusto considerava: visto
que compra bens dos conquistados com o dinheiro que roubou que Marx não pensava que pela conceção de justiça adequada ao
deleslO.» capitalismo os capitalistas extorquem ou roubam, ele deve ter que-
Não se trata de uma passagem isolada. Há muitas outras, nomea- rido dizer que eles o fazem numa outra conceção de justiça não capi-
damente quando Marx fala do produto excedentário anual como «Um talista: porque extorquir ou roubar é tirar o que por direito pertence a
desfalque para com os trabalhadores ingleses sem que nenhum equi- outro e, logo, agir injustamente. Qualquer sistema económico que
valente seja dado em compensação». Ele diz que «qualquer progresso supostamente se baseia em roubo deve ser considerado injusto (se-
na agricultura capitalista é um progresso na arte, não só de roubar o gundo a visão de Cohen).
trabalhador, mas também o solo». Descreve a futura abolição da pro-
priedade capitalista como «a expropriação de alguns usurpadores»ll.
E assim sucessivamente em várias outras passagens. § 4. RELAÇÃO COM A TEORIA DE DISTRIBUIÇÃO
Noutros sítios Marx diz que, aparentemente, o trabalhador pode
aderir a um contrato de trabalho voluntariamente; a esfera de cir-
BASEADA NA PRODUTIVIDADE MARGINAL
culação surge como «um verdadeiro Éden de direitos inatos do ho-
1. Penso que esta visão, de Geras e Cohen, bem como de outros,
mem [ ... ] Lá apenas governam a Liberdade, a Igualdade, a Pro-
está correta. Vou tentar sugerir uma forma que lhe seja particular.
Uma maneira de começar a fazer isto, e para ilustrar o objetivo da
10 Geras, Literature of Revolution, p. 17, citando de Capital, vol. I (edição Penguin), teoria do valor-trabalho de Marx, é conjeturar o modo como Marx
p. 728. Há muitas outras passagens como esta em Capital, vol. 1. Assim: 1: 638, 728, teria respondido à teoria de distribuição baseada na produtividade
743, 761, 874, 875, 885, 889, 895, 930. Vol. II: 31. Grundrisse, 705.
marginal. Na verdade, apesar de esta teoria ter sido desenvolvida no
11 Geras, Literature of Revolution, p. 17.

398 399
período da sua morte (1883), logo não teria tido conhecimento dela; É claro que estas últimas palavras «vender ao desbarato ou esban-
mas o que terá pensado dela torna-se claro a partir de muitas coisas jar» são uma distração e obscurecem o seu principal objetivo, como
que diz. normalmente fazem as expressões de desprezo utilizadas por Marx.
Esta teoria foi muitas vezes usada para discutir que sob condi- Este aspeto não é que o proprietário possa ser gastador e levar uma
ções competitivas livres a distribuição de riqueza e rendimentos sob vida de ócio e luxúria; pois muitos proprietários são conscienciosas e
o capitalismo é justa. Esse argumento, raramente ouvido actual- tomam conta das suas propriedades. (Recordemos Levin em Anna
mente12, não era incomum no fim do século XIX, logo a seguir à teoria Karenina de Tolstoi.) Em vez disso, a questão é que o proprietário
da produtividade marginal ter sido desenvolvida pelos economistas recebe apenas um retorno como proprietário; isto é, recebe uma renda
i! neoclássicos. Eles introduziram as ideias de utilidade marginal e pro- pela terra que mede a sua contribuição marginal: uma unidade de
dutividade marginal na teoria do preço. Em traços gerais, a ideia é terra recebe um preço de acordo com o que vale para um produtor
que cada fator de produção - trabalho, terra e capital - contribua de cereais, digamos assim. Marx não está a falar acerca do que o pro-
com a sua parte na produção do rendimento total da sociedade. De prietário recebe em troca pela gestão da propriedade: o que os capita-
acordo com o preceito, para cada pessoa segundo a sua contribuição, listas e os proprietários recebem como salários de gestão não conta
é justo que os que contribuem com a sua terra e capital devam parti- para a extração de mais-valias.
lhar na produção de rendimento juntamente com o trabalho. Adam Na verdade, o que conta é o que o capitalista ou proprietário
Smith disse: «[ ... ] a renda pode ser considerada o produto desses recebe acima de qualquer salário de gestão - ou seja, o que recebem
poderes da natureza, cuja utilização o proprietário empresta ao agri- apenas como proprietários de fatores de produção escassos que são
cultor. [... ]A renda é o trabalho da natureza que remanesce, depois procurados no mercado. Na visão de Marx, é o sistema social do capi-
de deduzir ou compensar tudo o que pode ser visto como o trabalho talismo que atribui a certas classes a posição estratégica de posse dos
do homem»13. A isto Marx efetivamente responde: visto que a Mãe meios de produção, que lhes permite exigir retornos na forma de
Natureza não está por perto para recolher a sua parte, o proprietário lucro, juro e renda.
vem reclamá-la no seu lugar. Assinale-se que quando Marx fala acerca da terra «personificada
2. Marx diz o seguinte (Capital, vol. III, International Publishers, no proprietário» este modo de falar de alguma forma mistificador
p. 824): «Estes meios de produção são em si mesmos capital por natu- refere-se ao facto de que é o proprietário, como agente económico que
reza; o capital é meramente uma 'designação económica' para esses possui a terra, quem avança para o mercado para receber pagamentos
meios de produção e, por isso, em si própria a terra é por natureza pela utilização da terra. O sistema de mercados com as suas várias
monopolizada por um certo número de proprietários. Tal como os categorias de agentes existente ao longo do tempo faz os vários tipos
produtos defrontam o produtor como uma força independente em de pagamento - lucro, juro e renda, juntamente com salários - parece-
capital e capitalistas - que, com efeito, não são senão a personificação rem perfeitamente naturais e de terem existido «desde tempos ime-
do capital - também a terra se personifica no proprietário e, de igual moriais».
modo, se agarra à parte de trás das suas pernas para exigir, como força 3. Vejamos o longo parágrafo (terceiro a contar do fim) do capí-
independente, a sua parte do produto criado com a sua ajuda. Assim, tulo 48 (A Fórmula Trindade) em Capital, vol. III, International Pu-
não é a terra que recebe a sua devida porção do produto para a restau- blishers, p. 830:
ração e melhoramento da sua produtividade, mas é o proprietário que
Em lucros de capital, ou melhor ainda juros de capital, rendas
leva uma parte deste produto para vender ao desbarato ou esbanjar.»
de terras, salários de trabalho, nesta trindade económica represen-
tada como as partes componentes de valor e riqueza, em geral, e
12 [Esta parte da palestra foi escrita no início dos anos 1980, quando as suposições as suas fontes, temos a mistificação completa do modo de produ-
por detrás das discussões políticas e académicas relativamente a justiça distribu- ção capitalista, a conversão de relações sociais em coisas, a fusão
tiva eram bastante diferentes do que são hoje. - Ed.] direta de relações materiais produtivas com a sua determinação
13 Adam Smith, Wealth of Nations, Nova Iorque: Random House, 1937, Liv. II, cap. V, histórica e social. Trata-se de um mundo encantado, pervertido e
pp. 344 e segs.

400 401
'.,' 11

às avessas [... ] [contudo] é [... ] natural para os verdadeiros agentes tado da manipulação inteligente de crenças públicas por certas pes-
de produção se sentirem completamente em casa nestas formas soas nos bastidores que acabam por ganhar com os equívocos de
distantes e irracionais de [... ] ilusão em que se movem e encon- outros. Mais exatamente, a visão de Marx é que a ampla convicção na
tram a sua ocupação diária [... ] Esta fórmula [a fórmula trindade] justiça do lucro, juro e renda é perfeitamente natural - uma ilusão
[... ] corresponde aos interesses das classes dominantes ao procla- (por oposição a um engano) - dada a situação dos agentes económi-
mar a necessidade física e eterna justificação das suas fontes de cos no sistema de instituições capitalistas como sistema de indepen-
rendimento e elevá-las a um dogma. dência pessoal. Esta convicção faz parte de uma conceção de justiça
capitalista adaptada às exigências do modo de produção capitalista.
Anteriormente, Marx mencionou a fórmula trindade apresentando Carateriza a consciência ideológica (falsa) da sociedade capitalista e é
«uma incongruência uniforme e simétrica» (vol. III, International partilhada por trabalhadores e capitalistas. É uma ilusão que a obra
Publishers, p. 824). Creio que o que ele pretende dizer com isto é que a O Capital, de Marx, espera destruir, agora que o capitalismo já desem-
fórmula trindade apresenta o capital, a terra e o trabalho como três , penhou o seu papel histórico.
parceiros co-idênticos no processo de produção e, como tal, cada um
merece receber a sua parte do rendimento de acordo com a sua contri-
buição. A fórmula apresenta os três fatores de produção em média - § 5. O PAPEL ALOCADOR E DISTRIBUTIVO DOS PREÇOS
apresenta-os uniforme e simetricamente. Trata-se de uma incongruên-
cia porque, como dissemos, acerca da teoria do valor-trabalho de 1. Para esclarecer ainda mais a visão de Marx e fazer realçar o que
Marx, o trabalho é considerado um fator especial de produção. De um a sua implícita conceção de justiça possa ser, há que distinguir entre
ponto de vista social, o rendimento total do processo de produção o papel alocador e o distributivo dos preços15. O alocador relaciona-
deve ser atribuído a trabalho antigo e atual. As aparências superficiais se com o uso de preços para atingir eficiência económica, ou seja,
das instituições capitalistas escondem a extração de mais-valias e a sua conduzir a utilização de recursos escassos e fatores de produção para
conversão em lucros, juros e rendas14. aqueles empregos em que se cria o maior benefício social. O papel
É importante reter em mente que Marx não está a dizer que, no distributivo dos preços é quando se determina o rendimento a ser
período alto do capitalismo, aquando do desempenho do seu papel recebido pelos indivíduos em troca daquilo que contribuíram para a
histórico, a convicção geral na justiça do lucro, juro e renda seja o produção.
resultado do engano, ou seja, uma convicção que surge como resul- É perfeitamente consistente para um regime socialista estabelecer
uma taxa de juro, fundando um mercado financeiro em que as
empresas geridas por trabalhadores possam pedir fundos empresta-
14 Marx diz em Capital, vol. III, cap. 48, parte III, p. 825, Nova Iorque: International dos para expansão de capital. Esta taxa de juro irá alocar rendimen-
Publishers, 1967, e também em Selected Writings, ed. David McLellan, Oxford: tos entre os projetos de investimento e fornecerá uma base para
Oxford University Press, 1977: «[ ... ] a respetiva parte desempenhada pela terra
despesas de aluguer de equipamento informático pelo uso de capital
como campo original da atividade do trabalho [ ... ] e a outra respetiva parte
desempenhada pelos meios de produção produzidos (instrumentos, matérias-pri- e recursos naturais escassos tais como terra e minerais. De facto, isto
mas, etc.) no processo geral de produção, aparentemente deve ser expressa nas deve ser feito se estes meios de produção forem empregues da
respetivas partes reclamadas por eles como capital e propriedade de terra, ou seja, melhor forma numa perspetiva social. Porque, mesmo que estes
que são incluídas na parte dos representantes sociais na forma de lucro (juro) e recursos caiam do céu sem haver esforço humano, são, no entanto,
renda, como para o trabalhador [tal como no caso do trabalhador] - a parte que o produtivos, como reconhece Marx e faz questão de afirmar. Quando
seu trabalho desempenha no processo de produção é expressa em salários. Deste
modo, rendas, lucros e salários parecem ser consequência do papel desempe-
combinados com outros fatores de produção, o resultado é um rendi-
nhado pela terra, pelos meios de produção produzidos e pelo trabalho no simples mento superior.
processo de trabalho, mesmo quando consideramos que este último é levado a
cabo meramente entre o homem e a natureza, deixando de lado qualquer determi-
nação histórica» (McLellan, Selected Writings, p. 501). 15 Ver Rawls, A Theory of Justice, § 42.

402 403
' 11

Não sucede, contudo, que haja pessoas privadas que sendo pro- Assim, na minha opinião Marx diz que quando recuamos dos
prietárias destes recursos recebam como seu rendimento pessoal os vários modos de produção que historicamente já existiram e que
equivalentes monetários destas avaliações. Com efeito, preços con- irão existir devemos claramente reconhecer que o capital e a terra
tabilizados num regime socialista são indicadores económicos para são produtivos. Mas, do ponto de vista dos membros da sociedade,
serem usados na construção de um plano eficiente de atividades como poderão considerar juntos estes meios de produção, o único
económicas. Exceto no caso do trabalho de todos os tipos - mental recurso social relevante é o seu trabalho combinado. O que os preo-
e físico - os preços sob o socialismo não correspondem ao rendi- cupa é o modo como as instituições sociais e económicas devem ser
mento pago a pessoas privadas. De facto, os preços imputados aos organizadas para que possam cooperar em termos justos e usar efi-
recursos naturais e bens coletivos não têm nenhum papel distribu- cientemente o seu trabalho combinado com as forças da natureza
tivo. No capitalismo estes preços têm realmente um papel distri- em processos a decidir pela sociedade como um todo. Penso que
butivo e é ele que carateriza o que chamei de pura propriedade. esta ideia está na base da visão de Marx de uma sociedade de traba-
A distinção entre os dois papéis mostra a importância que há em lhadores livremente associados. Ver O Capital, vol. r, capítulo 1, § 4
distinguir entre o uso do mercado para organizar atividades econó- (Tucker, p. 327), onde Marx diz: «Ü processo de vida da sociedade,
micas eficientemente e um sistema de propriedade privada em que que se baseia no processo de produção material, não retira o seu véu
o valor dos recursos torna-se no rendimento pessoal dos proprietá- místico até ser tratado como produção por homens livremente asso-
rios. Este último uso ilustra a propriedade privada como base de ciados, e é conscientemente regulado por eles de acordo com um
exploração. plano estabelecido. Isto, porém, exige da sociedade um certo plano
2. O objetivo da teoria do valor-trabalho de Marx pode talvez ser material ou conjunto de condições de existência que, por sua vez, são
assinalado da forma que se segue. Considerando a objeção da visão o produto espontâneo de um processo de desenvolvimento longo e
de Marx que diz que tal como ele atribui o rendimento total ao traba- doloroso.»
lho, podemos, se quisermos, atribuir o rendimento total ao capital, ou 3. Acredito que Marx tome como certa a ideia de que o trabalho
à terra, e concluir que o capital, ou a terra, é explorado16. Neste caso, combinado das pessoas é o único recurso social relevante. Para ele,
terra ou capital, o que escolhermos, produz mais do que é necessário este ponto de vista básico é óbvio, logo, a ideia básica da teoria do
para se reproduzir e assim cria um excedente. Se, como fatores de valor-trabalho é igualmente óbvia. Uma teoria do valor-capital ou
produção, o capital, a terra e o trabalho devem ser vistos de modo do valor-terra que diz que o capital ou a terra é explorado/ a é sim-
perfeitamente simétrico, podemos realmente fazer isto. Marx iria con- plesmente frívolo. Uma sociedade defende e tem controlo sobre certos
siderá-lo um truque formal: o seu objetivo, como disse, é que o capi- recursos naturais produtivos, mas, do ponto de vista dos membros
tal, ou a terra, por um lado, e o trabalho, por outro, não devem ser da sociedade nas suas relações sociais, o recurso relevante que têm
vistos simetricamente. como seres humanos é simplesmente o seu trabalho e o melhor modo
Alternativamente, ele pensa que o trabalho humano é o único como podem usá-lo de acordo com um plano decidido aberta e demo-
fator de produção que é relevante numa perspetiva social ao consi- craticamente. Iremos discutir isto na próxima palestra.
derar a justiça de instituições económicas. Assim sendo, lucro, juro Marx supõe, portanto, que todos os membros da sociedade têm
e renda puros, como retornos de propriedade pura, devem ser atri- igual direito, baseando-se na justiça, ao acesso total e ao uso dos
buídos ao trabalho. Estes retornos são considerados pagos pelo meios de produção e dos recursos naturais da sociedade. A questão
produto do trabalho excedentário e são iguais ao valor total produ- básica é como é que esses meios devem ser efetivamente usados, o
zido por trabalho menos a quantia que é consumida pelo próprio trabalho partilhado e as mercadorias produzidas, e assim sucessiva-
trabalho. mente. Por conseguinte, para ele a pura renda económica de posse de
propriedade é injusta porque nega, de facto, reivindicações justas ao
16 Ver o Teorema de Exploração Generalizada de Mercadorias, conforme se encontra acesso e utilização, e qualquer sistema que institua essa renda é um
ilustrado em John Roemer, Value, Exploitation, and Class, Nova Iorque: Horwood, sistema de subjugação e exploração. E é por esta razão que ele des-
1986, em§ 3.2. creve a apropriação do produto de trabalho excedentário pelos capi-

404 405
11
!

talistas através de termos como extorsão e desfalque, trabalho forçado


e roubo.
4. Vimos que em O Capital Marx não nega que o capitalismo como
modo de produção económico e social tenha um papel histórico fun-
damental. Aumentar os meios de produção e tornar real a sociedade
comunista do futuro é a grande proeza do capitalismo. Esse é o papel MARX III
histórico do capitalismo como sistema de subjugação e exploração.
1
Um objetivo de O Capital é explicar este papel histórico e descrever o O SEU IDEAL: UMA SOCIEDADE
L processo histórico através do qual se concretizou.
Porém, na época de Marx o capitalismo já tinha desempenhado o DE PRODUTORES LIVREMENTE
seu papel histórico, e um outro objetivo de O Capital é acelerar a sua
passagem. Marx julga que tendo compreendido o funcionamento do ASSOCIADOS
capitalismo iremos reconhecê-lo como sistema de exploração - um
sistema em que o trabalho é feito para trabalhar durante um certo
período de tempo em troca de nada (trabalho não remunerado).
Iremos vê-lo como um sistema baseado em roubo ocultado. Ele
assume que todos nós implicitamente aceitamos a ideia fundamental
de que o trabalho é o único recurso socialmente relevante porque
todos nós juntos, como sociedade, encaramos a natureza. Também
assume que todos nós devíamos partilhar de igual modo ao fazermos § 1. SERÃO COERENTES AS IDEIAS DE MARX
o trabalho de sociedade e ter igual acesso e uso dos seus meios de ACERCA DE JUSTIÇA?
produção e recursos naturais. É por este motivo que rejeita a legitimi-
dade da propriedade privada nos meios de produção no seu papel 1. Na última palestra discutimos três coisas:
distributivo, em contradição com a justiça básica. a) As passagens em que Marx parece dizer que o capitalismo é
Concluo relembrando que não comentei se as várias ideias de justo, ou, pelo menos, não injusto;
Marx acerca da justiça e da injustiça do capitalismo são realmente
b) As passagens em que Marx diz coisas que implicam que o capi-
consistentes. Poderemos dizer que a base sobre a qual ele parece dizer talismo seja injusto, nomeadamente a caraterização da apropria-
que o capitalismo não é injusto está de acordo com a descrição qu~ ção de mais-valias com expressões como «trabalho forçado»,
faz dele como sistema de trabalho forçado e roubo ocultado? Estara «desfalque» e «roubo ocultado»;
de acordo com a sua ideia de que o trabalho humano é o único fator e) O que Marx poderia ter dito (se tivesse tido conhecimento)
de produção relevante numa perspetiva social, e de que todos os acerca da teoria de distribuição baseada na produtividade mar-
membros da sociedade têm igual direito a ter acesso e a serem capa- ginal como justificação da distribuição resultante sob o capita-
zes de usar os meios de produção e os recursos naturais da socie-
lismo; depois da qual sugeri que Marx pensava que:
dade? Penso que as inúmeras ideias de Marx acerca de justiça podem
ser entendidas de modo a não se contradizerem umas às outras, e i) O total do trabalho humano da sociedade é o único fator
será assim que começa a minha próxima palestra. relevante de produção de um ponto de vista social - do
nosso ponto de vista: o de todos os membros da sociedade
como produtores livremente associados;
ii) Todos os membros da sociedade - todos os produtores livre-
mente associados - têm igual direito a ter acesso e a usar os
meios de produção e os recursos naturais da sociedade.

406 407
2. Apesar de as ~á~i~s coisas que Marx diz acerca de justiça pode- condições históricas e são apenas adequadas no seu período
rem parecer contraditonas, penso que poderão tornar-se coerentes da histórico particular. Nos mesmos termos Marx condena todos
seguinte forma: estes modos de produção e as suas associadas conceções jurí-
dicas de justiça. A ideia de que o trabalho humano é o único
a) Relativamente às passagens em que aparentemente Marx diz
fator de produção relevante mantém-se sempre e, por isso, ele
que o capitalismo é justo (através da conceção de justiça ade-
rejeita todas as formas sociais de pré-história1 como injustas à
quada a ele no seu período histórico), nós dizemos que ele está
luz deste padrão;
a descrever a consciência ideológica de sociedades capitalistas e
iii) O facto de uma sociedade de produtores livremente associa-
a conceção jurídica de justiça expressa pelo sistema legal de
dos não poder ser concretizada sob todas as condições his-
uma ordem social capitalista. Quando diz que uma determi-
tóricas, e dever esperar pelo capitalismo para aumentar os
nad~ conceção jurídica de justiça é adequada ao capitalismo e é
meios de produção e o conhecimento tecnológico que
devidamente adaptada às suas exigências operativas, ele não
os acompanha, não torna relativista o ideal dessa sociedade.
pretende apoiar esta conceção de justiça. Está a comentar a con-
Significa simplesmente que a própria conceção política de
ceção jurídica de justiça adequada ao capitalismo: a forma como
justiça de Marx com os seus ideais relacionados só pode ser
ela funciona e o seu papel social; o modo como dá forma a
totalmente concretizada sob certas condições; mas isto
ideias sobre justiça defendidas por capitalistas e trabalhadores
aplica-se a todas as conceções e ideais;
da mesma maneira;
iv) Por contraste, as conceções jurídicas de justiça adequadas à
b) Se esta interpretação da visão de Marx da conceção jurídica de
escravatura, feudalismo e capitalismo nunca são válidas. Na
justiça é correta, então as suas ideias de justiça são coerentes.
verdade, servem um propósito histórico e instrumental
J?izemos simplesmente que ao descrever a apropriação capita-
essencial durante um certo período de tempo. Na melhor
lista de trabalho excedentário por termos como «trabalho for-
das hipóteses, as sociedades a cujos modos de produção são
çado», «desfalque» e «roubo ocultado», está a expressar as
adequadas podem ser desculpadas ou mitigadas, mas só na
s.uas ~r.ó~rias convicções. Ele sugere que a apropriação capita-
medida em que são períodos necessários no caminho percor-
lista e m1usta, mas não o diz expressamente em tantas pala-
rido rumo a uma sociedade de produtores livremente asso-
vras, e poderá não estar ciente de todas as implicações daquilo
ciados no fim da pré-história.
que diz;
e) Relativamente à visão de Marx de que o trabalho humano é o
único fator de produção relevante numa perspetiva social, e à rei-
vindicação adicional de que todos de igual modo têm direito a § 2. AS RAZÕES PELAS QUAIS MARX NÃO DISCUTE
aceder e a usar os meios de produção e os recursos naturais da IDEIAS DE JUSTIÇA EXPLICITAMENTE
sociedade, podemos dizer o seguinte:
1. Se as ideias de Marx acerca de justiça são coerentes, é, no entanto,
i) Esta é a conceção de justiça que está na base da descrição de
intrigante que ele não as tenha discutido pelo menos o suficiente para
Marx sobre a apropriação capitalista como extorsão, desfal-
remover as ambiguidades relativamente àquilo em que acreditava.
que, e assim sucessivamente, visto que a propriedade pri-
Como já disse, é claro que, aparentemente, ele nunca pensava sistema-
vada nos meios de produção viola esse direito igual. Para
além disso,
ii) Esta conceção de justiça não é relativa a condições históricas
1 Marx fala do processo histórico que leva ao capitalismo (o que separa o produtor dos
no sentido em que as diferentes conceções jurídicas de justiça meios de produção) como o «período pré-histórico do capitalismo» (O Capital, vol. r,
eram adequadas à escravatura no antigo mundo, ou ao feuda- Tucker, pp. 714 e segs.); e de todos os processos que levam ao seu desejado período final
lismo do mundo medieval, ou são adequadas ao capitalismo ~e uma sociedade de produtores livremente associados como simplesmente «pré-histó-
no mundo moderno. Cada uma destas conceções é relativa às na».

408 409
1 !

ticamente em justiça e considerava muito mais urgentes vários outr que a classe trabalhadora seja o agente da sua própria eman-
opicos. M as outras razões tê-lo-ão movido. Menciono aqui algumas
t" . os
cipação, como Marx pensa que deve ser. Com efeito, consi-
delas. deram-na simplesmente a classe mais sofredora. Não é vista,
como Marx faz, como sendo politicamente ativa e movida
a) Uma. razão é que ele se opunha aos socialistas utópicos. Isto
pelas necessidades imperativas da sua situação social e de
relac10na-se com o que ele dizia: «Os filósofos só interpretaram 0
mundo de várias formas; o objetivo, contudo, é mudá-lo» (Thesis classe;
d) Segue-se um outro aspeto: a primeira fase que os socialistas
XI o~ Feuerbach, Tucker, 145; o itálico é de Marx). Isto também se
utópicos representam é marcada por uma anarquia de pensa-
rel~c10na c01i: o esforço de Marx em O Capital para discernir as
mento e por várias conceções de uma sociedade futura ideal.
«leis do movimento» do capitalismo e perceber como realmente
Este estado de anarquia é inteiramente natural tendo em conta
trabalhava, para que no momento de as condições estarem
a natureza altamente pessoal e não histórica destas doutrinas.
prontas saberíamos como agir de um modo informado e com
realismo; Afinal de contas, são projetos para um futuro imaginado, e
não o resultado de uma análise teórica realista de condições
b) "l!ma segunda razão para ele não discutir as suas ideias de jus-
políticas e económicas existentes. Estes projetos, pensava
tiça prende-se com o facto de Marx se opor ao reformismo e à
Marx, eram construídos na ignorância do que ele chama de
tendência de se focar em questões de justiça distributiva ou
seja, na distribuição de rendimentos e riqueza e no aument~ de
«leis de movimento do capitalismo», que causam a seu tempo
as condições necessárias para a abolição completa de classes.
salários, tão meticulosamente concebidas. É óbvio que não se
Na visão de Marx, o anarquismo de conceções do futuro que
opunha ao aumento de salários como tal e incentivava os traba-
se encontra nos socialistas utópicos só pode ser ultrapassado
lhadores a continuar a lutar por isso contra os capitalistas. Mas
por um conhecimento teórico adequado das presentes circuns-
sent~a que o deviam fazer como parte dos seus esforços para
tâncias e do que é possível: esse conhecimento esclarecerá o
contmuar a reconstrução económica da sociedade. Numa pales-
tra dada em Londres em 1865 ao General Council do First que deve ser feito3;
e) Outra objeção que Marx tinha relativamente aos socialistas utó-
International, ele diz: «Em vez do mote conservador, 'Um salário
picos é que, na sua visão, eles estavam presos às suas próprias
dece~te ~or um dia de trabalho decente', eles [os trabalhadores]
conceções pessoais do futuro, e visto pensarem que podiam
deviam mscrever na sua faixa palavras de ordem revolucioná-
rias, tais como: 'Abolição do sistema de salários'»2; impor essas conceções na sociedade a partir de cima, ou através
de persuasão moral, acreditavam que eram desnecessárias a
e) Marx pen.sa que os socialistas utópicos representam as primei-
luta de classes e ações revolucionárias. Procuravam apelar
r~s tentativas. d_e a classe trabalhadora concretizar os seus obje-
à «humanidade» tão profunda e mais básica do que a classe. Por
tivos~ A .condiçao s~~desenvolvida dessa classe, e as condições
esta razão, Marx pensava que eles não tinham conseguido
eco~o~icas n__ec~ssanas à sua emancipação, impediram que os
entender a base de classes do capitalismo e a profundidade das
s.ociahstas utopicos desenvolvessem uma conceção teórica rea-
transformações exigidas para o ultrapassar. Na perspetiva de
lista das condições exigidas para a concretização bem sucedida
Marx, os socialistas utópicos são reacionários no sentido em que
desses. ?bj~tivos: Em vez disso, estes escritores supõem que há
as suas doutrinas os levam a opor-se à única via realista rumo à
uma ~i~ncia so.c~al nov~ baseada numa conceção do futuro que
emancipação, nomeadamente a luta revolucionária e a organi-
lhes u.a p:rmihr ~ cna~ão de co_ndições necessárias para a
emancipaçao atraves de mtervençao pessoal vinda de cima, ou zação da classe trabalhadora como força política.
Marx acreditava, então, que os socialistas utópicos proce-
por persuasão moral. Os socialistas utópicos não consideram
diam contrariamente ao procedimento correto, designadamente,

2 Marx, Val~e, Price,and Profit, Nova Iorque: International Publishers, 1935, cap. xrv, 3 Cf. Marx, Selected Writings, ed. David McLellan, 2.ª ed., p. 149, Oxford: Oxford
p. 61. [Qumto paragrafo a contar do fim.] University Press, 2000, a partir de Holy Family.

410 411
11

como tinha dito num primeiro artigo, de desenvolvimento de: em classes) são muito fortes. Se realmente não lançarmos a nossa sorte
«novos princípios para o mundo a partir dos seus próprios prin- juntamente com a classe trabalhadora, e aderirmos à sua luta e sofrer-
cípios. Não dizemos para o mundo: 'Para de lutar; a tua luta mos o seu destino, não seremos aliados fiáveis dessa classe. N or-
não conta. Queremos gritar o verdadeiro slogan da luta para ti'. malmente, não se pode contar com considerações de direito e justiça
(Na verdade) Só mostramos ao mundo porque é que ele está a para nos mover assim tanto. Na visão de Marx, somos normalmente
lutar; e consciência é algo que o mundo tem de adquirir, gos- movidos pelas nossas necessidades imperativas, e numa sociedade de
tando ou não».4 O objetivo (explícito) de Marx, então, é mostrar classes estas últimas são moldadas principalmente pela nossa posição
ao mundo - isto é, à classe trabalhadora como força política em de classe. Não reconhecer isto é enganarmo-nos a nós próprios.
desenvolvimento e cada vez mais ativa - aquilo porque está a Para concluir: Marx poderá ter sido movido por muitas razões
lutar e não aquilo porque deveria estar a lutar. Marx espera para não dizer em tantas palavras que o capitalismo é injusto. Mas
fazer isto explicando à classe trabalhadora o significado das nenhuma das razões o impede de ter ideias de justiça e dizer sincera-
suas próprias experiências e ações na presente situação histó- mente a si próprio que o capitalismo é injusto.
rica. É sua intenção elucidar o papel que a classe trabalhadora
deve assumir na sua própria emancipação. Assim, um objetivo
de O Capital é enunciar as leis de movimento do capitalismo § 3. DESAPARECIMENTO DA CONSCIÊNCIA
enquanto sistema social para que o conhecimento da sua situa-
ção e do seu papel histórico pela classe trabalhadora possa ter
IDEOLÓGICA
uma base científica realista, por oposição a conceções pessoais e
1. Vou agora discutir o que Marx pensa do primeiro período do
morais do futuro abraçadas por doutrinários visionários;
comunismo, que pode ser lido em Critique of the Gotha Program, e mais
f) Segue-se uma última consideração: Marx suspeita da mera con-
tarde abordarei algumas questões acerca da segunda fase de comu-
versa acerca de ideais morais, especialmente os de justiça e
nismo total. Uso a designação «uma sociedade de produtores li-
liberdade, igualdade e fraternidade. Suspeita das pessoas com
vremente associados» para me referir à sociedade ideal de Marx,
razões ostensivamente idealistas para apoiar o socialismo. Julga
designação essa que ele usa bastante em O Capital. Como podemos des-
que os criticismos do capitalismo feitos na base destes ideais
crevê-la rapidamente?
provavelmente são não históricos e interpretam incorretamente
Talvez da seguinte maneira: uma sociedade de produtores livre-
as condições sociais e económicas necessárias para melhorar
mente associados tem duas fases: uma socialista e outra de comu-
questões mesmo na perspetiva destes ideais. Por exemplo,
nismo total. Cada uma responde à descrição de duas partes que se
somos levados a pensar que a justiça na distribuição pode ser
segue, as quais serão detalhadamente discutidas.
melhorada de uma forma mais ou menos independente das
Primeiro, uma sociedade de produtores livremente associados é
relações de produção. Isto tenta-nos a procurar a melhor expli-
uma sociedade em que a consciência ideológica deixou de existir.
cação de justiça distributiva para nos orientar nesta tarefa. Mas
Os seus membros compreendem o seu mundo social e não têm ilu-
a distribuição não é independente das relações de produção
sões acerca do papel que desempenham na sociedade, quando nem
que, segundo Marx, são fundamentais5.
sequer precisam dessas ilusões.
Segundo, uma sociedade de produtores livremente associados é
Marx também pensa que, em geral, e pondo de lado muitas exceções
uma sociedade em que não há alienação nem exploração.
individuais, os laços dos interesses de classe (numa sociedade dividida
Poder-se-ia questionar se a primeira fase, a do socialismo, satisfaz
estas exigências em grau suficiente. Tendo em conta os nossos objeti-
4 Tucker, Marx-Engels Reader, 2.ª ed., pp. 14 e segs., «Letter to Arnold Ruge», vos limitados, presumo que sim.
DeutschFranzõsicher Jahrbucher, 1844; ver também Marx, Selected Writings, ed. 2. Começo com a primeira dessas exigências. Para Marx, uma cons-
David McLellan, 2.ª ed., pp. 44-45.
ciência ideológica é uma consciência falsa de um determinado tipo. Ter
5 Sobre isto ver secção I de Critique of the Gotha Program.

412 413
11

uma ideologia no sentido de Marx não é simplesmente ter uma filoso- coincidem diretamente. Isto acontece porque as atividades económi-
fia ou um esquema de princípios políticos e valores, como o termo cas da sociedade são levadas a cabo de acordo com um plano econó-
«ideologia» é frequentemente usado nos dias de hoje. Infelizmente, 0 mico publicamente decidido segundo procedimentos democráticos.
termo tem sido abusado e perdeu o sentido original e definido que Regressarei mais tarde a esta questão.
Marx lhe havia dado. Para ele uma ideologia não era meramente falsa, 3. Os enganos são o outro tipo de consciência ideológica. Uma vez
mas a sua falsidade desempenhava um papel sociológico ou psicoló- mais, estes são ou envolvem crenças falsas; mas também podem
gico definido na manutenção da sociedade como sistema social. envolver valores falsos ou irracionais. São valores que não abraçaría-
No sentido de Marx, há dois tipos de consciência ideológica: ilu- mos se estivéssemos completamente cientes da razão para o fazer, ou
sões e enganos. Quanto às ilusões, elas são reais na medida em que se não existissem determinadas necessidades psicológicas que nos
com poderes totalmente normais de perceção e inferência somos leva- pressionam e nos sujeitam a tensões especiais caraterísticas de quem
dos pelas aparências superficiais das coisas. De modo semelhante, está na nossa posição ou no nosso papel social.
somos levados pelas aparências superficiais das instituições e não Como é sobejamente conhecido, Marx pensava que a religião era
conseguimos ver o que está realmente a acontecer por debaixo dessa uma forma de consciência ideológica neste sentido. Mas também jul-
superfície. As convicções de uma pessoa são falsas porque nos deixa- gava que era bastante inútil criticar a religião como faziam Feuerbach e
mos enganar pelas semelhanças que são efetivamente enganadoras. os jovens hegelianos, defendendo que essa alienação religiosa é uma
Estes casos são análogos a ilusões de ótica. fixação numa realização imaginária de um mundo imaginário. A maior
Em O Capital, vol. I, capítulo 1: § 4, Marx discute a fundo o modo parte da psicologia da religião de Feuerbach pode ser correta, mas
como não conseguimos ver o significado do facto de as mercadorias explicá-la às pessoas não as ajuda a ultrapassar a sua religião.
serem produzidas pelo trabalho humano e de que os preços expres- A razão porque Marx considerava inútil esse criticismo tem a ver
sam uma relação social entre produtores ao nos concentrarmos nos com o facto de as necessidades psicológicas a que se refere a explica-
preços relativos de mercadorias e nos fixarmos na relação entre pre- ção de Feuerbach dependerem das condições sociais existentes. A reli-
ços e objetos. Um exemplo mais claro e simples é o que Marx diz gião faz parte do ajustamento psicológico das pessoas à sua posição
acerca da forma como os sistemas de salários ocultam a razão de tra- de classe e ao seu papel social. Até que as condições sociais sejam
balho necessário para trabalho excedentário, por oposição à clareza mudadas para que as verdadeiras necessidades humanas das pessoas
do sistema feudal em que o trabalho excedentário do servo estava à possam ser efetivamente satisfeitas numa sociedade de produtores
vista (O Capital, vol. I, Tucker, p. 365). Não há nada no modo como os livremente associados, a religião irá persistir. Em O Capital, I (Tucker,
salários são pagos que alerte os trabalhadores para a quantia paga p. 327), Marx diz: «Ü reflexo religioso do mundo real só pode, de
pelo trabalho necessário e pelo excedentário. Provavelmente os traba- qualquer modo, finalmente desaparecer no momento em que as rela-
lhadores não conhecem a diferença de qualquer modo6. ções práticas da vida quotidiana oferecerem ao homem nada mais do
É por causa destas ilusões, em parte, que Marx pensa que nós pre- que relações perfeitamente inteligíveis e razoáveis [durchsichtig ver-
cisamos de uma teoria económica - em particular a teoria do valor- nunftig] relativamente aos seus companheiros e à Natureza.»
-trabalho - para penetrar por debaixo das aparências superficiais que Isto relembra-nos o objetivo de Thesis XI de Marx - a última tese -
são enganadoras e indutoras de erro das instituições capitalistas. Diz sobre Feuerbach, que diz, na sua totalidade: «Üs filósofos só interpre-
ele: «Toda a ciência seria supérflua se a aparência exterior e a essência taram o mundo, de várias formas; o objetivo, contudo, é mudá-lo.»
das coisas coincidisse diretamente». (O Capital, III, capítulo XLVIII: § 3, Também nos faz recordar a observação de Hegel: «Se olharmos para o
Nova Iorque: International Publishers, 1967, p. 817.) mundo racionalmente, ele fará o mesmo relativamente a nós.» A isto
De facto, na sociedade de produtores livremente associados a Marx acrescenta, na verdade, que só conseguimos olhar para o
forma das aparências e a essência das coisas em política e economia mundo racionalmente quando passarmos a ser racionais; e só pode-
mos ser racionais quando o nosso mundo social for racional. Por-
6 Ver os cálculos em Duncan Foley, Understanding Capital: Marx's Economic Theory, tanto, quando as condições permitirem, devemos mudar o nosso
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986, p. 46. mundo social para que se torne racional.

414 415
4. Na visão de Marx, um outro tipo de engano reside nas necessi- Mas, mais do que isso, o trabalho excedentário dos trabalhadores
dades do sistema social e nas dos indivíduos que fazem parte dele se aumenta a grande massa de capital (real), e assim torna-se na riqueza
esperarmos que o sistema social funcione adequadamente. O sistema e passa para o controlo da classe cujos interesses são antagónicos rela-
capitalista envolve extorsão e roubo na medida em que envolve a tivamente aos deles. Os produtos de trabalho também aparecem no
apropriação do produto excedentário dos trabalhadores em violação mercado, e o movimento dos preços - que são competitivamente
do seu direito igual de aceder aos meios de produção da sociedade. determinados - não é compreendido pelos trabalhadores (ou por
Porém, o modo de produção capitalista tem o papel histórico de mais ninguém), visto não haver nenhum plano de produção público
aumentar os meios de produção para que a sociedade de produtores democraticamente determinado.
livremente associados se concretize. É essencial para o funcionamento Assim, aos olhos dos trabalhadores, o ajustamento às forças do
suave do capitalismo (aquando do desempenho do seu papel histó- mercado dos preços daquilo que os trabalhadores produzem parece
rico) que esta extorsão e este roubo sejam ocultados. Isto deve-se ao ser controlado por uma força estranha. Esta última é independente
facto de os capitalistas não quererem ser, ou ser vistos como, ladrões, deles como produtores, e mantém-nos em servidão para com os pro-
e os trabalhadores não quererem ser, ou ser vistos como, roubados, já dutos do seu trabalho.
que ambos são pessoas decentes. Isto faz parte, por assim dizer, do Segundo, o trabalhador está alienado da própria atividade produ-
livro de Hegel List der Vernunft, «a astúcia da razão». tiva de trabalho. Ou seja, o trabalho é externo aos trabalhadores, por-
Por isso, no seu período alto, a conceção jurídica de justiça, de que que não concretiza a sua natureza. O seu trabalho não exerce ou
Marx troça às vezes como «O próprio Éden dos direitos inatos do desenvolve os seus [dos trabalhadores] poderes naturais; não é volun-
homem» (O Capital, vol. r, capítulo vr, Tucker, p. 343), permite que tário, mas sim forçado, empreendido só como meio de satisfazer
todos os agentes económicos, capitalistas e trabalhadores de igual outras necessidades. Em suma, o trabalho não tem significado.
modo, pensem na sua posição como sendo justa e nos seus rendimen- 2. Terceiro, os trabalhadores estão alienados da sua espécie e da
tos e riqueza como merecidos. Isto, juntamente com as aparências vida da sua espécie (Gattungswesen ). De igual modo estão os capitalis-
enganadoras das instituições capitalistas, suaviza as operações de tas. A ideia de vida da espécie é de repente bastante obscura. Mas é
ordem social. caraterística do idealismo alemão e é importante não trivializá-la.
Numa sociedade de produtores livremente associados, estes enga- Fazemo-lo quando, por exemplo, dizemos que chamar seres humanos
nos já não são necessários: as operações da economia são conduzidas de «seres de espécie» significa que são por natureza seres sociais.
por um plano democrático publicamente conhecido, estando, por- Ou que têm razão ou consciência, e que têm noção de si próprios e de
tanto, à vista, e isto sem consequências perturbadoras. outros seres humanos como membros de uma espécie, tendo cada um
deles razão e consciência.
Na verdade, penso que a ideia de Marx é muito mais completa do
§ 4. UMA SOCIEDADE SEM ALIENAÇÃO que isto. Ele pretende dizer algo como: os seres humanos constituem
um tipo natural distintivo - ou espécie - no sentido em que coletiva-
1. A segunda das exigências para uma sociedade de produtores mente produzem e reproduzem as condições da sua vida social ao
livremente associados é que não haja casos de alienação e exploração. longo do tempo. Contudo, com isto as suas formas sociais evoluem his-
Nos Manuscritos de Paris de 1844, numa secção intitulada «Trabalho toricamente e numa certa sequência até que eventualmente se desen-
Separado» (Tucker, pp. 70-81), Marx discute quatro aspetos da noção volva uma forma social que seja mais ou menos adequada à sua
de alienação: sob o modo de produção capitalista, os trabalhadores natureza como seres racionais e ativos que, por assim dizer, criam, em
estão alienados, primeiro, do produto do seu trabalho, daquilo que parceria com as forças da natureza, as condições da sua autorrealização
produzem. Torna-se numa coisa estranha: ou seja, por um lado, per- social completa. A atividade através da qual esta autoexpressão cole-
tence e é controlada por outros - os capitalistas - que podem dispor tiva se realiza é a atividade da espécie, ou seja, é o trabalho cooperativo
do produto do trabalho dos trabalhadores de acordo com o que eles - de muitas gerações e só fica completo depois de um longo período de
os capitalistas - decidirem. tempo. Resumindo: é o trabalho da espécie ao longo da sua história.

416 417
A espécie entrará na terra prometida - sociedade inteiramente comunista livremente associados - uma sociedade socialista - não há trabalho
- mas nem todos os seus membros o farão. (Recordemos a noção de excedentário ou não remunerado. Isto porque numa sociedade socia-
perfectibilidade do homem em Second Discourse de Rousseau.) lista, como em qualquer sociedade justa, deve haver um excedente
Uma parte essencial desta autocriação social de seres humanos ao para ser usado em benefício do trabalhador - para despesas sociais
longo do tempo é a atividade económica. Estar alienado da atividade como saúde pública, educação e bem-estar. De igual modo, como
da espécie é, em primeiro lugar, não entender ou compreender este Marx diz: «Uma quantidade definida de trabalho excedentário é exi-
processo e, segundo, é não participar nesta atividade de um modo gida como garantia contra acidentes, e através da expansão necessária
autorrealizante. e progressiva do processo de reprodução a par do desenvolvimento
Se questionarmos o que significa para todos participar deste das necessidades e do crescimento da população» (O Capital, vol. I,
modo, a resposta será fornecida pelo tipo de esquema económico que Tucker, p. 440). Assim, como vimos, o que faz s / v > O exploração é
existe numa sociedade de produtores livremente associados. Obtemos a natureza da estrutura básica da sociedade dentro da qual surge.
uma ideia acerca disto a partir do que Marx diz em Gotha sobre o pri- A razão para não haver exploração sob o socialismo reside no facto de
meiro período do socialismo. Regressarei a este assunto mais tarde. a atividade económica seguir um plano democrático e público, em
O quarto aspeto de alienação é que estamos alienados das outras que todos participam em igualdade de circunstâncias. Isto respeita a
pessoas. Sob o capitalismo, esta alienação assume a forma especial reivindicação igual baseada na ideia de justiça de Marx de que todos
dada pelo mercado livre. Neste caso, os trabalhadores estão sujeitos ao têm igual acesso aos recursos da sociedade.
poder dos capitalistas indiretamente. O seu poder para extrair trabalho 2. Recordemos as principais caraterísticas das instituições de fundo
excedentário traduz-se por intermédio do mercado e não está à vista. do capitalismo que conduzem à exploração (fazem da razão s / v > O um
E a relação entre capitalistas e trabalhadores é antagónica; os membros indicador de exploração). São simplesmente as prerrogativas da pro-
destas classes estão alienados uns dos outros, e encontram-se num sis- priedade privada nos meios de produção, nomeadamente:
tema económico que tende a fazer com que os indivíduos se tornem
mutuamente indiferentes às preocupações de uns e de outros. a) O total do excedente social (total de coisas produzidas através de
3. Assim, presumo que a reivindicação de Marx acerca da ausência trabalho excedentário) cai nas mãos de outras pessoas (para além
de alienação e exploração numa sociedade de produtores livremente dos trabalhadores) que detêm os meios de produção (via procedi-
associados seja a seguinte: se analisarmos estes quatro tipos, ou aspe- mentos de ordem legal, contratos justos, etc.). Assim, como
tos, de alienação, então numa sociedade de produtores livremente classe, os proprietários possuem o rendimento de produção;
associados a alienação desaparece, tal como a consciência ideológica. b) Os proprietários dos meios de produção também exercem con-
Isto explica-se porque todos podem participar no processo de planea- trolo autocrático sobre o processo de trabalho dentro da empresa
mento democrático e público e todas as pessoas fazem a sua parte na e na indústria. São eles e não os trabalhadores que decidem
execução do plano que daí advier. sobre a introdução e utilização de nova maquinaria, a dimensão
e os pormenores da divisão de trabalho e afins;
e) Os proprietários dos meios de produção também determinam a
§ 5. AUSÊNCIA DE EXPLORAÇÃO dimensão e a direção do fluxo de novos investimentos; decidem
- cada firma individualmente (aceitando competição) - quais as
1. A segunda caraterística da segunda exigência de uma sociedade melhores opções para investirem os seus fundos excedentários
de produtores livremente associados é a ausência de exploração. com vista a maximizar lucros a longo prazo, etc. Assim, esta classe
Recordemos que para haver exploração não é suficiente que s / v > O, determina (como um todo mas não conjuntamente) a utilização a
em que s é o trabalho excedentário ou não remunerado e v é o trabalho ser feita do excedente social e a taxa de crescimento da economia.
necessário para produzir bens para o próprio consumo do trabalha-
dor. Isto é satisfatório no capitalismo visto que os capitalistas contro- 3. Deste modo, a conclusão é que Marx pensa que, quando estas
lam e beneficiam de mais-valias. Mas, numa sociedade de produtores prerrogativas estão nas mãos de produtores livremente associados/ e

418 419
são exercidas através de um plano económico público e democrático são de trabalho é ultrapassada. Aparentemente, Marx considera estes
que todos compreendem, e em cuja construção todos podem participar, dois defeitos de desigualdade e divisão de trabalho inevitáveis numa
não há nenhuma exploração. Nem sequer há consciência ideológica ou sociedade que acabou de emergir após uma longa luta a partir da socie-
alienação. Uma sociedade de produtores livremente associados alcança dade capitalista, como no caso do primeiro período, o socialismo.
a «unidade da teoria e da prática». Para os nossos objetivos, vou aceitar a ideia de um plano econó-
Por outras palavras, o entendimento que eles partilham relativa- mico público e democrático tal como Marx o defende. Também aceito
mente ao seu mundo social, conforme expresso no plano económico o seu pensamento de que esse plano elimina a consciência ideológica
público, é uma verdadeira descrição desse mesmo mund,o. Também é bem como a alienação e a exploração (exceto possivelmente no caso
uma descrição de um mundo social que é justo e bom. E um mundo da exploração socialista, conforme definido por Roemer, referido
em que os indivíduos satisfazem as suas verdadeiras necessidades anteriormente). Existem muitas dificuldades com a ideia de um plano
humanas em termos de liberdade e desenvolvimento próprio, en- económico público e democrático e Marx deixa os detalhes extrema-
quanto reconhecem ao mesmo tempo a reivindicação de todos para mente vagos. Acaba por deixar o plano como um problema para o
terem igual acesso aos recursos da sociedade. futuro. Não irei discutir aqui essas dificuldades, mas sim muitas ou-
tras questões mais próximas das nossas preocupações com as ideias
de Marx acerca de justiça e o seu criticismo da tradição liberal.
§ 6. COMUNISMO TOTAL: VENCIDO O PRIMEIRO 2. Começo por discutir o primeiro defeito do socialismo, a desi-
DEFEITO DO SOCIALISMO gualdade de partes de bens de consumo que resulta da existência de
capacidades individuais desiguais, que são entendidas como «privilé-
1. Até agora, ao analisar a ideia de uma sociedade de produtores gio natural». Recordemos a passagem de Gotha (Tucker, pp. 530-531):
livremente associados, o meu objetivo tem sido realçar a importância «Direito igual[ ... ] em princípio ainda é direito burguês.»
para Marx da noção de um plano económico público e democratica- «Direito igual ainda é [ ... ] estigmatizado por uma limitação
mente concebido, compreendido por todos e no qual todos partici- burguesa.»
pam. «Ü direito dos produtores é proporcional ao trabalho que for-
Ele acreditava que se uma sociedade de produtores livremente necem.»
associados seguisse esse plano, a consciência ideológica desapareceria «A igualdade consiste [em aplicar] um trabalho padrão igual.»
e não haveria nenhum tipo de alienação ou exploração. Subsiste uma «Mas um homem é superior a outro fisicamente ou mental-
unidade de teoria e prática: compreendemos porque é que fazemos o mente e por isso fornece mais trabalho no mesmo período de
que fazemos, e o que fazemos concretiza os nossos poderes naturais tempo.»
sob condições de liberdade. Na primeira fase do comunismo - se- «Direito igual é um direito desigual para trabalho desigual.»
guindo a tradição, chamemos-lhe «Socialismo» - contudo, ainda há «Capacidade individual desigual e capacidade produtiva [são
muita desigualdade, devido à desigualdade de dons inatos e ao facto reconhecidas] como privilégios naturais.»
de o trabalho ser recompensado pela sua duração e intensidade em «É portanto um direito de desigualdade no seu conteúdo,
bens de consumo. Esta recompensa para dotes desiguais foi desig- como qualquer direito.»
nada de exploração socialista7. «Para além disso [alguns têm famílias mais numerosas e ou-
Ainda há também divisão de trabalho, visto que, como Marx sugere tras reivindicações difíceis e sólidas].»
(Gotha, Tucker, p. 531), é só no período alto da sociedade comunista «Para evitar todos estes defeitos, o direito em vez de ser igual
- repito, seguindo a tradição, chamemos-lhe «Comunismo» - que a divi- teria de ser desigual.»

7 Ver John Roemer, Value, Exploitation, and Class, Nova Iorque: Horwood, 1986, 3. Marx parece aceitar esta desigualdade como algo inevitável na
pp. 77 e segs. primeira fase da sociedade comunista. Diz ele: «Ü direito nunca

420 421
poderá ser superior à estrutura económica da sociedade e do seu nas: Henry George, Leon Walras, Herbert Spencer e Hillel Steiner
desenvolvimento cultural condicionado a esse respeito» (Gotha, Tu- ocuparam esta posiçãolü.
cker, p. 531). Portanto, temos de esperar que as condições económicas Eu não diria que Marx é um libertário da ala esquerda, pois ele
mudem. certamente não poria as coisas desta forma. Mas é uma visão que se
Contudo, porque é que temos de simplesmente esperar que as adapta ao que este autor diz em vários aspetos:
condições mudem? Porque é que a sociedade, por exemplo, não pode
a) Primeiro, adapta-se à sua crítica do capitalismo, como já ana-
adotar um princípio como o Princípio da Diferenças, impor vários im-
postos, etc., e ajustar incentivos para que os maiores dotes de alguns lisámos. Essa crítica baseia a exploração no facto de que os
trabalhem em benefício dos que têm dotes menores? Trata-se simples- capitalistas possuem todos os meios de produção. Sugeri que
11 mente de um lapso por parte de Marx não pensar nisto? na visão de Marx todos têm o direito igual de aceder e usar
1

Seguindo G. A. Cohen, digamos que o autor defende o que cha- estes recursos. Trata-se do monopólio da classe dos meios de
mamos uma visão libertária que pode ser definida da seguinte ma- produção que está na base da exploração;
neira: b) Marx não sugere que os mais dotados devam ganhar partes
maiores de consumo para contribuírem para o bem-estar dos
a) «Cada pessoa é dona total da sua própria pessoa e poderes e, que são menos dotados. Para além de respeitar o direito igual
por isso, cada pessoa tem o direito moral de fazer o que lhe de todos em aceder aos recursos naturais externos, ninguém
aprouver, desde que não viole os direitos de propriedade pró- deve nada a ninguém, exceto o que quiserem fazer volunta-
pria de quem quer que seja.» riamente. Os mais necessitados não têm falta de acesso aos
Portanto, recursos externos; são simplesmente menos bem dotados;
b) «Ela pode não ser precisa sob pena de penalização coerciva para
e) Esta atitude acompanha a visão de Marx em The German Ideo-
ajudar quem quer que fosse, a não ser que o tivesse acordado
logy. Não se trata de uma situação em que se diga às pessoas
nesses termos.»
para se ajudarem umas às outras; ou em que as pessoas sejam
incutidas pela sua cultura com vários deveres e obrigações. Na
A proposição b) é encarada como uma consequência de a)9.
verdade, é uma sociedade sem esse ensinamento moral, uma
4. Seguindo ainda Cohen, o libertarianismo, assim definido,
sociedade em que as pessoas não têm nenhum conflito de inte-
«pode ser combinado com outros [ ... ] princípios referentes a esses
recursos produtivos que não são pessoas» - terra, minerais e pode- resses sério umas com as outras e podem agir conforme lhes
res da natureza. O que podemos chamar de libertarianismo de ala apetecer, tendo a divisão de trabalho ultrapassada (The German
direita (Robert Nozick em Anarchy, State and Utopia) «acrescenta Ideology, Tucker, p. 160).
que pessoas senhoras de si mesmas podem adquirir de modo seme-
lhante direitos fortes em quantidades iguais de recursos naturais Concluo que Marx rejeitaria o princípio da diferença e princípios
externos. O libertarianismo da ala esquerda é, por oposição, iguali- semelhantes. Como Cohen sugere, ele pensa no comunismo como
tário no que diz respeito à distribuição de matérias-primas exter- igualitarismo radical - acesso igual aos recursos da sociedade - sem
coerção. Isto significa que não se pode exigir a ninguém que se
beneficie a si próprio apenas no sentido de contribuir para o bem-
8 O Princípio da Diferença é a segunda parte do segundo dos dois princípios de jus- estar dos outros. Isso seria coercivo. Seria conferir direitos a algu-
tiça em justiça como equidade, segundo o qual as desigualdades sociais e económi-
cas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar ligadas a trabalhos e
mas pessoas (os que seriam ajudados) quanto ao modo como as
posições abertos a todos sob condições de igualdade justa de oportunidades; outras pessoas usarão os seus poderes - garantindo que todos res-
e segundo, devem ser o maior benefício dos membros menos favorecidos da socie- peitem o princípio libertário da ala esquerda do direito a igual
dade. Rawls, Restatement, pp. 42 e segs.
9 G. A. Cohen: «Self Ownership, Communism, and Equality», Proceedings of the
Aristotelian Society 64 (Supplement), 1990, pp. 1 e segs. 10 Ibid., p. 118.

422 423
acesso. Eu, por outro lado, julgo que devemos introduzir princípios lado, há uma ideia contrastante, afirmada por Wilhelm von Hum-
como o Princípio da Diferença ou outras dessas medidas para man- boldt e ilustrada ainda pela analogia da orquestra em A Theory of
ter a justiça de fundo ao longo do tempo. Justice, § 79, nota 4. Esta ideia de [união social] significa que através
da divisão de trabalho podemos cooperar ao realizarmos uns aos ou-
tros a variedade total de poderes humanos e, para além disso, apre-
§ 7. COMUNISMO TOTAL: ciar juntos, numa atividade conjunta, a sua realização.
Trata-se de uma ideia diferente: considera que a divisão de traba-
DIVISÃO DE TRABALHO VENCIDA
lho torna possível o que seria inatingível de outro modo, e aceitável
partindo do princípio que certas condições são satisfeitas - que não é
1. O que faz com que a divisão de trabalho seja ultrapassada?
forçada e exclusiva - as mesmas coisas a que Marx coloca objeções.
Mas, primeiro, o que é que é negativo acerca da divisão de trabalho?
Mas esta ideia não pertence a Marx. A sua prende-se com o facto de
Pois bem, muitas coisas, algumas das quais estão elencadas na passa-
nos tornarmos indivíduos competentes e de só nos juntarmos a
gem conhecida de The German Ideology: «[ ... ]a partir do momento em
outros apenas quando nos decidimos a fazê-lo. Esta ideia é consis-
que a distribuição de trabalho se realiza, cada homem tem uma
tente com a noção de propriedade própria conforme a definição apre-
esfera de atividade particular e exclusiva, que lhe é imposta e da
sentada anteriormente, e não está limitada pelo conhecimento do
qual não pode fugir. Ele [ ... ] tem de permanecer assim [nessa esfera
. sentido de direito e de justiça.
de atividade] se não quiser perder o seu meio de vida; enquanto na
4. Como é que se consegue vencer a divisão de trabalho? Aparen-
sociedade comunista ninguém tem uma esfera de atividade exclu-
temente são três coisas essenciais que tornam isso possível:
siva porque cada membro pode realizar-se em qualquer ramo que
deseje, a sociedade regula a produção geral e assim possibilita que se a) Abundância ilimitada, que resulta do aumento dos meios de
faça uma coisa hoje e outra amanhã [ ... ] se assim nos decidirmos a produção;
fazê-lo» (Tucker, p. 160). b) O trabalho torna-se na principal necessidade da vida: as pes-
2. Quais são, para Marx, as caraterísticas atrativas desta descrição soas precisam de trabalhar e já não é necessário convencê-las a
do comunismo? Primeiro, podemos agir «se assim nos decidirmos a fazê-lo através de incentivos;
fazê-lo». As nossas atividades prosseguem harmoniosamente com as e) O trabalho também é atrativo - trabalho significativo - sendo
das outras pessoas. Fazemos o que nos apetece, elas fazem o que lhes um aspeto de b).
apetece e podemos fazer coisas juntos. Mas não há nenhum sentido
de constrangimento ou obrigação moral; nenhum sentido em estar- Há duas passagens em Marx que são especialmente relevantes
mos ligados por princípios de direito e justiça. para isto. Numa passagem de Gotha (Tucker, p. 531, McLellan,
Na sociedade comunista, o conhecimento diário de um sentido de pp. 615), Marx diz: Só no período mais alto do comunismo é «que o
direito e justiça e de obrigação moral deixou de existir. Na visão horizonte estreito do direito burguês» foi ultrapassado [a desigual-
de Marx, isso já não é preciso e deixou de ter um papel social. dade que discutimos anteriormente). «Esta antítese entre trabalho
3. Outra caraterística atrativa para Marx é que cada um de nós mental e físico desapareceu.» O trabalho tornou-se «não só num meio
pode, se quisermos, realizar todos os nossos poderes e participar na de vida mas na sua principal necessidade»; e a Sociedade coloca no
grande variedade de atividades humanas. Podemos todos tornarmo- seu estandarte: «De cada um de acordo com a sua capacidade, para
-nos - se quisermos - em indivíduos convencidos a exibir a variedade cada um de acordo com as suas necessidades!»ll.
total de possibilidades humanas. Isto faz parte do que significa con- A outra passagem, retirada de O Capital, vol. III (Tucker, p. 441),
tornar a divisão de trabalho. diz respeito ao domínio da liberdade começando «apenas onde ter-
Se fôssemos músicos poderíamos querer tocar à vez todos os ins-
trumentos da orquestra. (Se isto parecer rebuscado, considerem que a
11 Este preceito pertence a Louis Blanc, tendo sido acrescentado ao seu livro Organí-
orquestra representa a variedade das atividades humanas.) Por outro
zatíon of Work, 9.ª edição, Paris, 1850.

424 425
mina o trabalho que é determinado pela necessidade e por considera- parte da sua vida comum terem preocupações sérias acerca dela, nem
ções mundanas». envolverem-se em debates sobre o que exige. Estas pessoas são estra-
5. Como devemos interpretar o preceito «De cada um de acordo nhas para nós; é difícil descrevê-las.
com a sua capacidade, para cada um de acordo com as suas necessida- Contudo, esta ausência de preocupação com a justiça era uma
des»? Creio que não se trata de um preceito de justiça, ou de um princí- caraterística que atraía Marx. Devemos questionar-nos se realmente
pio de direito. É simplesmente um preceito descritivo ou um princípio se trata de uma caraterística atrativa. Podemos efetivamente com-
que é exato relativamente ao que é feito e ao modo como as coisas preender como é que seria? Vejamos o que Mill diz em On Liberty, III:
acontecem no período mais alto do comunismo. 912. É fácil rejeitar a abundância ilimitada de Marx considerando-a
utópica. Mas a questão do desejo da evanescência da justiça levanta
uma questão ainda mais profunda.
§ 8. SERÁ O PERÍODO MAIS ALTO DO COMUNISMO Para mim é duplamente indesejável como tal, e também como um
assunto de prática. As instituições justas não irão acontecer, creio eu,
UMA SOCIEDADE PARA ALÉM DA JUSTIÇA? por si próprias, mas dependem em certa medida - apesar de não
totalmente - de cidadãos que tenham um sentido de justiça adquirida
1. Muitas pessoas pretenderam dizer que o comunismo é uma
nos contextos dessas mesmas instituições. A ausência de preocupação
sociedade para além da justiça. Mas em que sentido será isso verda-
com a justiça é indesejável como tal, porque ter sentido de justiça, e
deiro? Depende do aspeto da sociedade comunista que estamos a
tudo o que isso implica, faz parte da vida humana e da compreensão
analisar. Recordemos que o comunismo corresponde a igualitarismo
para com outras pessoas, reconhecendo-lhes os seus direitos. Agir
sem coerção. Esta ideia ainda se mantém e envolve:
sempre como se quiséssemos agir sem nos preocuparmos ou estar-
a) O direito igual de todos a ter acesso e utilização iguais dos mos cientes relativamente aos direitos dos outros, seria viver sem ter
meios de produção da sociedade; consciência das condições essenciais de uma sociedade humana
b) O direito igual de todos a participar juntamente com outros nos decente.
procedimentos públicos e democráticos através dos quais o
plano económico é concebido;
e) Partilha igual - presumo - na realização do trabalho necessário OBSERVAÇÕES FINAIS
que ninguém quer desempenhar, se é que ele existe (presumi-
velmente haverá algum). Tentei explicar o papel central na visão de Marx da noção de uma
sociedade de produtores livremente associados a conduzir a sua vida
Assim, a distribuição de bens é justa se aceitarmos que a igual- de espécie - segundo o que ele próprio lhe chamou - de acordo com
dade é. Para além disso, o direito igual de todos à utilização dos um plano económico público e democraticamente concebido com-
recursos e à participação no planeamento público democrático é res- preendido por todos e no qual todos querem participar.
peitado, desde que este último seja necessário. Por isso, neste sentido Quando a sociedade se orienta a si própria desta forma, a cons-
- com esta ideia de justiça - a sociedade comunista é certamente justa. ciência ideológica desaparece e não há nenhum tipo de alienação ou
2. Mas, noutra perspetiva, a sociedade comun.ista está, aparente-
mente, para além da justiça. Ou seja, apesar de alcançar a justiça no
sentido que acabámos de definir, fá-lo sem depender do sentido de 12 Mill diz que é «cultivando [o que é individual neles próprios] e evocar isso, dentro
direito e justiça das pessoas. Os membros da sociedade comunista dos limites impostos pelos direitos e interesses de outros, que os seres humanos se
tornam num objeto de contemplação nobre e belo[ ... ] Tanta concentração quanto
não são pessoas movidas pelos princípios e virtudes de justiça - isto
a necessária para evitar que os espécimes mais fortes da natureza humana inva-
é, pela disposição de agir a partir de princípios e preceitos de justiça. dam os direitos de outros não pode ser dispensada com [... ] Obedecer a regras
As pessoas podem saber o que é e poderão lembrar-se do facto de que rígidas de justiça pelo bem de outros, desenvolve sentimentos e capacidades que
os seus antepassados já tinham sido movidos por ela; mas já não faz têm o bem dos outros como seu objeto».

426 427
exploração. Há sim uma unidade de teoria e prática: todos compreen-
demos porque é que fazemos o que fazemos, e o que fazemos concre-
tiza os nossos poderes naturais sob condições de liberdade. A ideia de
um plano económico público à medida da sociedade e democrático
tem raízes muito profundas e consequências fundamentais no pensa-
mento de Marx. E importante compreender isto, especialmente agora
quando o colapso do comunismo pode facilmente tentar-nos a não
prestar atenção a estas ligações e a supor que a própria ideia de um APÊNDICES
plano económico democrático está descredibilizada. Apesar de poder-
mos rejeitá-lo, devemos tentar compreender porque é que esta ideia
QUATRO PALESTRAS SOBRE HENRY SIDGWICK
tinha esse lugar central na tradição socialista e que significado tem CINCO PALESTRAS SOBRE JOSEPH BUTLER
para nós atualmente. PLANO DE CURSO

428
'1

QUATRO PALESTRAS SOBRE HENRY SIDGWICK


(OUTONO DE 1976, 1979)

PALESTRAI
OS MÉTODOS DE ÉTICA DE SIDGWICK

§ 1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

1. Recordarão que na primeira palestra sobre Hume observei que a


tradição histórica do utilitarismo estende-se aproximadamente desde
1700 até 1900. E o que chamo de «linha clássica» dentro dessa tradição
é representada por Bentham, Edgeworth e Sidgwick (a «linha BES»,
digamos assim). O livro Methods of Ethics, de Sidgwick (1.ª edição,
1874); 7.ª e última edição, 1907) é a afirmação filosófica mais refinada e
completa da doutrina (combinando Liv. 1, cap. 9; Liv. II, cap. 2; Liv. III,
caps. 13 e 14; Liv. IV, inteiro) e diz-se que conclui essa fase do desenvol-
vimento histórico. Bentham e Edgeworth são ambos mais originais na
contribuição de ideias básicas ao princípio clássico de utilidade como
conceito perspicaz e definido sujeito a interpretação matemática, con-
trariamente à noção de utilidade mais lata como sendo a felicidade e
necessidades da sociedade apresentada por Hume; no entanto, se for-
çarmos a explicação de Hume do ponto de vista do espetador judicioso
de uma certa forma, está latente nela a transição natural para o princí-
pio clássico. (Ver Hume, Palestra II, e a discussão abaixo.) A originali-
dade de Sidgwick reside na sua conceção da própria filosofia moral:
o que é, como fazê-la e assim sucessivamente.
2. Ao considerarmos os três escritores utilitários - Hume, Sidg-
wick e J. S. Mill - estamos a dedicar-nos, em primeiro lugar, à noção
de utilidade e a prestar atenção à forma como esta é definida e com-
preendida. E vamos encontrar três noções bastante diferentes de utili-
dade em Hume, Sidgwick (ou BES) e em J. S. Mill.

431
Na Palestra II, de Hume, analisámos a explicação de Hume do elevado, uma instituição ou conjunto de qualidades do que outra,
ponto de vista do espetador judiciosol para compreender: se proporcionar (ou parecer concebida para proporcionar) mais
felicidade. Mais felicidade anima mais os nossos sentimentos.
i) Como Hume entendia o papel deste ponto de vista na sua ex- E assim prosseguimos para a definição de utilidade de Bentham-
plicação psicológica e naturalista de moralidade; e -Edgeworth-Sidgwick.
ii) Se continha uma forma intuitiva de chegar a uma noção de uti-
lidade mais precisa (mais exata) do que aquela que Hume usa Existem alguns sinais desta noção mais exata em Hume, mas não
em Treatise, Enquiry, e em «Of the Original Contract», noção muitos. A determinada altura em Enquiry, o autor menciona o «equilí-
essa que como vimos não apresentava um contraste claro com o brio do bem» (App. III); e noutra mostra ter conhecimento do princípio
critério do Contrato Social de Locke, quando ambos são usados da diminuição da utilidade marginal: na discussão da inviabilidade da
como princípios normativos. igualdade perfeita (na sec. III, par. 25, p. 194). Mas, essencialmente, a
noção mais exata tem de esperar pela linha BES. Ao chamá-la mais
Fiz a sugestão de que tal forma natural ou intuitiva pode ser en- exata não pretendo insinuar que, no final de contas, é melhor, filosofi-
contrada da seguinte maneira: camente falando. Provoca, no entanto, um contraste mais claro com
outras visões, sendo isso uma vantagem: podemos agora ver mais niti-
a) Aprendemos com a ideia de Hume que as aprovações e reprova-
damente, pelo menos, onde é que residem algumas das diferenças exis-
ções morais são contínuas paralelamente às emoções naturais
tentes entre utilitarismo e a tradição do contrato social. É parcialmente
humanas - paixões originais da nossa natureza (e que lhe são ina-
para obter esta exatidão e clareza que analisamos Sidgwick.
tas) - nomeadamente, amor e ódio. Ou em Enquiry, contínuas
3. The Methods of Ethics como obra filosófica: apesar de ser, sem
paralelamente ao princípio de humanidade (benevolência);
dúvida, de algum modo excêntrico, considero este livro importante
b) Estas aprovações e reprovações baseiam-se no princípio de huma-
tanto por ser filosófico como por ter um significado histórico distintivo:
nidade levantado pelo ponto de vista do espetador judicioso.
Nesta ligação, vejamos o importante parágrafo 5 da secção VI de a) Para começar, o livro é simbólico da reentrada de Oxford e
Enquiry, onde Hume diz: «Os mesmos dotes [qualidades de cará- Cambridge na tradição filosófica inglesa de uma forma voluntária
ter] da mente, em qualquer circunstância, são agradáveis ao senti- e séria. É preciso relembrar que isto é tudo muito recente; pode ser
mento de princípios e ao de humanidade; o mesmo temperamento datado a partir de 1870, aproximadamente. Sidgwick teve alguma
é suscetível de graus elevados de um e de outro sentimento; e a responsabilidade nisto ao recusar subscrever os Trinta e Nove
mesma alteração nos objetos, pela sua abordagem mais próxima Artigos em 18693, e ao renunciar à sua participação no Trinity
ou através de ligações, anima tanto um como outro»; College. Isto não quer dizer que não havia figuras universitárias
Hume prossegue: «Perante todas as regras da filosofia, portanto, importantes antes de Sidgwick: havia, por exemplo, F. D. Maurice,
devemos concluir que estes sentimentos são originalmente os Whewell e John Grote; mas eram todos anglicanos e rejeitavam o
mesmos [ele pretende dizer que na origem são os mesmos no eu utilitarismo e o empiricismo (representado por Hume, Bentham,
agora]; visto que, em cada particular, na maior parte dos momen- os Mill, etc.). Poderíamos dizer que se empenhavam na oposição
tos, são governados pelas mesmas leis [e da mesma forma], e são ao utilitarismo porque o consideravam inconsistente com as suas
movidos pelos mesmos objetos»2;
e) Em seguida combinamos estas suposições para explicar julgamen- 3 [Os Trinta e Nove Artigos foram a principal confissão da Igreja de Inglaterra, apre-
tos morais comparativos, e é natural dizer que do ponto de vista do sentados em 1563, e aprovados pela Convocação Anglicana e pelo Parlamento em
1571. Baseavam-se em grande parte na Confissão de Luterano Augsburg (1530) e na
espetador judicioso aprovamos com mais firmeza, num grau mais
de Württemberg (1562). Eles afirmam as doutrinas cristãs ortodoxas da Trindade, a
Pessoa de Cristo, o pecado humano, e são protestantes, ou «católicos reformados»,
1 Sobre o termo «espetador judicioso» ver Treatise on Human Nature, Livro III, parte III, em caráter na sua ênfase sobre a justificação pela fé, as Escrituras, e apenas dois
sec. 1, <J[l4. sacramentos sagrados. Ver Stephen Sykes e John Booty, eds., The Study of Anglica-
2 An Enquiry Concerning the Principies of Morais, pp. 235-236. nism, Nova Iorque: Fortress Press, 1988, pp. 134-137. -Ed.]

432 433
convicções religiosas. Isso não levanta nenhum problema, por egoísta, visto que é óbvio que as suas preferências filosóficas e
assim dizer; mas, quando se trata de uma das condições para morais tendem para o primeiro. Mas o autor apercebe-se que não o
fazer parte da Universidade, o cenário muda; pode fazer. Ele acredita que ambas as formas de hedonismo satisfa-
b) A obra The Methods of Ethics é a fórmula mais clara e acessível da zem por igual os padrões da justificação fundamentada que formu-
doutrina utilitária clássica. Esta última defende que o derradeiro lou tão cuidadosamente. Sidgwick conclui com desânimo que a
fim moral da ação social e individual é a maior soma líquida da feli- nossa razão prática parece estar dividida contra si própria; e a pos-
cidade de todos os seres sensíveis. A felicidade é especificada (como sibilidade, bem como a forma de esta divisão poder ser resolvida,
positiva ou negativa) pelo equihbrio líquido do prazer sobre a dor, ele deixa como um problema, não para trabalhar na ética, mas para
ou, como Sidgwick preferia dizer, pelo equihbrio líquido da cons- serem só abordadas depois de termos feito uma análise geral dos
ciência agradável sobre a desagradável. Na época de Sidgwick a critérios de convicções verdadeiras e falsas;
doutrina clássica acabada de delinear já há muito tempo que se d) The Methods of Ethics tem dois defeitos graves com os quais não
tinha tomado familiar a partir das obras de Bentham e a sua grande precisamos de nos preocupar agora: (i) ocupa-se um pouco da
influência em escritores subsequentes. O que toma The Methods of variedade limitada de comparações e omite, creio eu, vários aspe-
Ethics tão importante é que Sigdwick está mais consciente do que tos fundamentais de uma conceção moral; (ii) Sidgwick não conse-
outros autores clássicos acerca das muitas dificuldades encaradas gue ver a doutrina de Kant como sendo uma conceção moral
por esta doutrina, e ele tenta lidar com elas de uma forma consis- distinta merecedora de estudos por direito. Ainda assim, Sidgwick
tente e exaustiva nunca pondo de lado a doutrina rígida, como fez, apresenta de facto uma comparação completa e benfeita transver-
por exemplo, J. S. Mill. O livro de Sidgwick é, portanto, a obra mais salmente com o intuicionismo;
filosoficamente profunda das estritamente clássicas, e poder-se-á e) A originalidade de Sidgwick reside na sua conceção do sujeito da
dizer que foi ela que encerrou esse período da tradição; filosofia moral, e na visão de que uma justificação fundamentada
e) The Methods of Ethics é importante por outra razão. É a primeira e satisfatória de qualquer conceção moral deve partir de um
obra verdadeiramente académica na área de filosofia moral (em conhecimento total e de uma comparação sistemática das conce-
inglês), moderna tanto no método como no espírito da sua aborda- ções morais mais significativas na tradição filosófica. The Methods
gem. Trata a filosofia moral como qualquer outro ramo de conheci- of Ethics é uma obra fundamental porque desenvolve e revela esta
mento. Responsabiliza-se por fornecer uma estudo comparativo conceção de filosofia moral com um domínio seguro e um
sistemático de conceções morais, começando com os que historica- comando total dos pormenores necessários. Uma compreensão
mente, e por avaliação atual, são os mais significativos. Sidgwick correta, bem como uma avaliação informada da doutrina utilitá-
encarregou-se deste estudo porque pensava que uma justificação ria clássica - que ainda é altamente relevante para a filosofia
fundamentada e satisfatória da doutrina clássica (e na verdade de moral do nosso tempo -, pode começar melhor a partir de um
qualquer outra conceção moral) não poderia ser dada de outra estudo cuidadoso do tratado de Sidgwick.
forma. E ele esperava dar tal justificação. Para este fim, Sidgwick
tenta reduzir para três todas as principais conceções morais: hedo- A natureza académica da obra, e, sem dúvida, algumas das carate-
nismo egoísta, intuicionismo e hedonismo universal (a doutrina rísticas do estilo de Sidgwick, tornam o trabalho difícil de acompa-
utilitária clássica). Depois de descrever o sujeito da ética e as suas nhar; poderá facilmente ser considerado aborrecido e cansativo, mas
fronteiras no Livro I, os três livros subsequentes abordam estas três os trabalhos académicos são frequentemente entediantes, mesmo
conceções mencionadas na ordem acima, apesar de que deveria ser quando são de primeira categoria, a não ser que se interiorizem as
observado que o hedonismo universal foi explicado e debatido ideias e entramos na leitura suficientemente preparados. Como pode-
como sendo superior ao intuicionismo no fim do Livro III. A justifi- ria ser de outra forma? Por isso, o meu trabalho é explicar o suficiente
cação sistemática do hedonismo universal sobre o intuicionismo é acerca do livro The Methods of Ethics e o seu contexto para que possa-
dada no Livro N. Esperemos que Sidgwick prossiga e argumente mos estar na posição de, pelo menos, apreciar o argumento. Não ire-
que o hedonismo universal é também superior ao hedonismo mos considerá-lo divertido. Teremos de o abordar a pouco e pouco._

434 435
1

4. A vida de Sidgwick: toda a sua vida se encerra no reinado da rai- § 2. A ESTRUTURA E O ARGUMENTO
nha Vitória (1837-1901): nasceu no dia 31 de maio de 1838 e morreu a
28 de agosto de 1900. Neto de um construtor de caixões remediado, o DE THE METHODS OF ETHICS
seu pai foi para o Trinity College em Cambridge e tornou-se num pas-
tor anglicano, tendo sido depois nomeado professor da escola primária 1. Provavelmente a primeira coisa a notar acerca de The Methods of
em Skipton, Yorkshire. Morreu em 1841. Ethics é que não se propõe defender ou justificar alguma doutrina
Henry Sidgwick frequentou Rugby, depois foi para o Trinity, em 1855, moral e filosófica, ou teológica, particular. Deste modo, é diferente da
e após uma carreira brilhante como aluno de licenciatura tornou-se num maioria dos livros que o precedem: os de Hobbes e de Locke, por
Fellow [membro] de Trinity em 1859 (com 21 anos). Sidgwick renunciou a exemplo, e os de Bentham e J. S. Mill. Claro que isto faz parte daquilo
essa posição em 1869 (com 31 anos) por causa das suas dúvidas religiosas; que eu pretendia ao dizer que The Methods of Ethics trata a filosofia
a subscrição aos Trinta e Nove Artigos da Igreja de Inglaterra foi-lhe exi- moral como qualquer outro ramo do conhecimento.
gida por lei para se tornar membro de Trinity4. Rapidamente foi-lhe dada Porém, mais do que isto, vejamos a observação de Sidgwick no
uma posição especial que não exigia a subscrição aos Artigos; e ele foi prefácio à primeira edição (Methods of Ethics, p. vii; de agora em
renomeado membro quando a lei que exigia a subscrição foi revogada. diante passará a ser referenciado por ME), através da qual expressa o
Sidgwick tornou-se professor Knightbridge (seguindo Birks, sucessor de desejo de analisar (e eu acrescentaria comparar e contrastar) todos «OS
F. D. Mamice) em 1833, aos 45 anos. Nunca ensinou noutro sítio. William diferentes métodos de obter convicções [morais] fundamentadas
James queria que ele fosse para Harvard durante o ano de 1900, mas sobre o que deve ser feito, que devem ser encontradas - quer explícita
Sidgwick não se mostrou interessado em agarrar a oportunidade. quer implicitamente - na consciência moral da humanidade em
Em 1876, com 39 anos, Sidgwick casou com Eleanor Balfour, que geral». Estes métodos «foram desenvolvidos, quer singularmente ou
era irmã de Arthur Balfour, o qual veio a ser primeiro-ministro. Ela em combinação, através de pensadores individuais, e preparados
foi a fundadora do Newnham College, o primeiro estabelecimento de para os sistemas agora históricos» (p. vii). Sidgwick deseja descrever
ensino superior para mulheres em Cambridge. e criticar (avaliar) estes métodos estando «numa posição neutra, e tão
Acerca do seu estudante G. E. Moore, Sidgwick disse: «A sua pers- imparcialmente quanto possível» (p. viii). Parte da nossa tarefa aqui é
picácia - que é assinalável até determinado ponto - encontra-se em
perceber de que posição neutra e imparcial se trata.
excesso no seu conhecimento».s
O que é um «Método de Ética»? Sidgwick define-o como qualquer
procedimento racional através do qual determinamos o que seres
4 [As observações que se seguem encontravam-se entre as notas de Rawls sobre Sidgwick, humanos individuais devem fazer; ou determinar o que é correto eles
sobre os pensamentos que o levaram a renunciar à sua posição de membro de Trinity fazerem; ou procurar realizar através de ações voluntárias (livres)
College. Aparentemente, as observações seguem a discussão de J. B. Schneewind em
Sidgwick's Ethics and Moral Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 1977, pp. 48-52. - (ME, p. 1). A expressão «seres humanos individuais» distingue ética
Ed.] «Sidgwick sobre 'A Ética de Conformidade e Subscrição' (1870): Qual é o dever de de política, que Sidgwick diz estudar o que é uma legislação correta
membros progressivos de uma comunidade religiosa para com essa comunidade, no ou boa6, mas esta distinção não é importante para nós, visto que o
que diz respeito a expressar visões dissidentes? Sidgwick pensa que se deve escolher princípio de utilidade se aplica a ambas, e a discussão sobre justiça
entre dois males: perda de veracidade e imutabilidade absoluta. Devemos aceitar alguma
insinceridade, o mal da qual só pode ser reduzido se: (1) houver algum máximo disso deste autor pertence na verdade à política.
[insinceridade]; (2) encorajarmos a declaração aberta de dissidência; Três principais cara- Assinale-se que Sidgwick assume que, sob quaisquer circunstân-
terísticas [do ensaio de Sidgwick]: (1) É uma avaliação realista [de prática realL não ideal cias, há algo (alguma instituição ou costume definido e alternativo,
[sociedade]; (2) Não existem regras de senso comum claras para nos guiar na decisão de etc.) que é correto ou razoável de se fazer, ou de conduzir (se isto for
como agir quando dois deveres entram em conflito [o dever de veracidade e o de fideli-
dade à igreja escolhida, por exemplo]; (3) As dificuldades e os conflitos devem ser resol-
possível); e que isto, em princípio pode ser conhecido. (Ver ME, prefá-
vidos por algum tipo de recurso ao principio utilitário». cio, 1.ª edição, p. vii.) Além disso, Sidgwick assume que um método
5 Ver J. B. Schneewind, Sidgwick's Ethics and Victorian Moral Philosophy, pp. 15-17. Para
os que desejarem consultar uma obra secundária sobre a ética de Sidgwick, o livro
de Schneewind é altamente recomendado. Fornece uma discussão exaustiva da 6 «A política [... ] procura determinar a devida constituição e a conduta pública cor-
doutrina de Sidgwick e situa-o na história da filosofia moral inglesa. reta de sociedades governadas.» ME, p. 1.

436 437
racional é aquele que pode ser aplicado a todos os seres humanos forçado a reconhecer que enquanto o utilitarismo, de um ponto de
racionais (ou razoáveis) para obter o mesmo resultado, quando o vista neutro, ultrapassa os critérios de um método racional de ética
método é corretamente seguido (d. ME, 27, 33). Em suma: há sempre muito melhor do que qualquer outra forma de intuicionismo, sendo-
uma resposta correta ou a melhor resposta, e esta resposta é a mesma para -lhe, por isso, superior, o utilitarismo clássico e o egoísmo racional, no
todas as mentes racionais. Para Sidgwick esta suposição é caraterís- entanto, parecem ambos ultrapassar estes padrões igualmente bem.
tica da ciência e da procura da verdade; ele acredita que seja válida Sidgwick chega à conclusão não esperada de que parece haver um
para a psicologia moral e para as convicções éticas. Sidgwick diz: está conflito de razão nela própria na esfera prática.
implicada na«[ ... ] própria noção de Verdade que é essencialmente a 3. A estrutura de ME é aproximadamente a seguinte (Faço agora
mesma para todas as mentes, [e assim] a negação por outro de uma isto para que possamos colocar o cap. 5 sobre justiça e o argumento
proposição que eu tenha afirmado tende a enfraquecer a minha con.:. de Sidgwick como um todo no seu devido contexto):
fiança na sua validade» (ME, p. 34).
a) ME divide-se em quatro livros:
Isto é dito ao explicar porque é que uma marca de autoevidência é
acordo geral em julgamento. Assim, Sidgwick defende a tese da objetivi- Livro I - discute questões preliminares: definições de ética e
dade moral. de juízo moral, princípios e métodos éticos; definição
2. Os métodos de ética que Sidgwick tem em mente são aqueles de livre arbítrio e sua relação com a ética; definições
procedimentos integrados nas doutrinas históricas: as várias formas de desejo e prazer; de intuicionismo vs. egoísmo e
de intuicionismo racional e visões de sentido moral; perfeccionismo e amor-próprio, etc.
utilitarismo; e doutrinas do contrato social na medida em que incor- Livro II- Egoísmo: visto que Sidgwick decide que essencial-
poram partes dessas doutrinas. Sidgwick também inclui egoísmo mente existem apenas três métodos fundamentalmente
racional como método de ética. distintos de ética, egoísmo racional, intuicionismo e
Note-se que deseja concentrar-se nos próprios métodos e nas suas utilitarismo, prepara-se para estabelecer uma compara-
diferenças enquanto tal, e não nos seus resultados práticos. Ele pre- ção e descrição sistemáticas destes últimos. O Livro II é
tende pôr de lado o desejo de edificar o que considera ser uma bar- dedicado ao egoísmo racional.
reira para avançar na ética, e estudar os métodos partindo de uma Livro III - Intuicionismo: aborda os vários tipos de intuicio-
curiosidade desinteressada. O autor quer mesmo esquecer a possibili- nismo (juntamente com o capítulo 8 do Livro I), e ao
dade de «encontrar e adotar o verdadeiro método de determinar o mesmo tempo destaca a fraqueza do intuicionismo
que devemos fazer; e considerar simplesmente que conclusões serão como um método e dá pistas relativamente ao argu-
racionalmente encontradas se começarmos com certas premissas éti- mento que se segue, de que o utilitarismo clássico é
cas, e com que grau de certeza e precisão» (ME, prefácio, 1.ª edição, superior. Ver especialmente Livro III, capítulo 11,
p. viii). sobre a revisão da moralidade de senso comum, em
Esta afirmação não descreve de forma muito exata a visão de seguida o capítulo 13 sobre o Intuicionismo Filosó-
Sidgwick, visto estar preparado para dizer que um método racional fico e o capítulo 14 sobre o Bem Final.
de ética deve responder a certos critérios; e estes últimos funcionam, Livro IV - Utilitarismo: começa com a definição do princípio de
como iremos ver, como posição neutra da qual os diferentes métodos utilidade na sua forma clássica. O capítulo 1 apresenta
podem ser avaliados. No entanto, o desejo de explicar e comparar os parte do ponto de vista neutro e imparcial, ou o argu-
vários métodos de ética, de um ponto de vista imparcial, é uma cara- mento através do qual os métodos de ética podem ser
terística importante de The Methods of Ethics. avaliados. O capítulo 2 discute a prova do princípio
A implicação desta caraterística é que não devíamos considerar de utilidade; o capítulo 3 analisa a relação entre senso
que The Methods of Ethics tem como objetivo a justificação do utilita- comum e utilitarismo e argumenta que o senso co-
rismo clássico. É claramente a doutrina que Sidgwick prefere e aquela mum é, por assim dizer, inconscientemente utilitário.
em que se baseia com mais firmeza. Mas, no fim de ME julga que é Os capítulos 4-5 expõem o método do utilitarismo e o

1
438 439
1
capítulo 6 discute as relações entre os três métodos de Em segundo lugar, creio que este autor não consegue incluir na
ética e encerra com o dilema do «dualismo da razão sua descrição dos métodos de ética alguns aspetos importantes de
prática». uma conceção moral, mas não irei desenvolver isto agora.
5. Os critérios gerais de qualquer método de ética racionaF:
b) Em rigor, o argumento de The Methods of Ethics não justifica a Prestemos agora atenção à nota de rodapé, p. ~93 (d~ cap. o_:ide ?).
doutrina utilitária clássica, apesar de ser claramente a visão Sidgwick diz que com o termo «arbitrário» (aplicado as defmi~~es)
para a qual Sidgwick se inclina mais. A razão é que enquanto pretende dizer definições que incluem limitações (exceções e quahfic~­
o utilitarismo triunfa sobre o intuicionismo nos Livros III-IV, ções) «que destroem a autoevidência do princípio e, quando exami-
existe um laço entre o utilitarismo e o egoísmo racional, ou seja, nadas de perto, levam-nos a considerá-lo subordinado». Em s~gu~do
ambos satisfazem igualmente bem os critérios objetivos de um plano aqui fica a visão dos critérios de Sidgwick para os pnmeuos
método de ética racional. Esta conclusão imediata e surpreen- princípios de um método de ética racional, a saber8:
dente é alcançada no último capítulo do Livro IV; assim, se- a) Primeiro, Sidgwick defende que os primeiros princípios de um
gundo o que Sidgwick diz, temos o dualismo da razão prática e método de ética devem satisfazer estas condições: (i) devem
nenhuma resolução objetiva está à vista.
pelo menos ser tão certos como quaisque: o~ t:os l?.~incí pi os
morais, e (ii) de validade superior a outros prmcipios; (111) devem
Assim, da sua estrutura e esboço torna-se claro que Sidgwick realmente ser evidentes por si próprios e não fazer derivar a sua
não consegue obter o seu objetivo: Apesar de se sentir satisfeito validade, ou evidência, de nenhuns outros princípios, além de
momentaneamente, porque descreveu e comparou corretamente os
que: .
principais métodos de ética, acontece que pelo menos dois deles - o b) Qualquer um desses princípios (iv) deve s~r ~ota~mente r~cwnal
egoísmo racional e o utilitarismo - ultrapassam igualmente, dentro no sentido em que não contém nenhuma hmitaça?, exceçao,. ou
do que lhe é possível afirmar, os testes racionais e neutros de qual- restrição, a não ser que sejam autoimpostas; ou se1a, que sur1am
quer um desses métodos. Por conseguinte, a sua suposição inicial de do próprio princípio, e não sejam simplesmente ac~escentadas
objetividade - a tese de que há sempre uma resposta correta - é posta como condições sem explicação (cf. Methods of Ethics: 293n., a
em causa. Ele sugere uma solução através de uma suposição teoló- definição de «arbitrário»). Para além disso: . .
gica, mas não temos tempo para a analisar (creio que valha a pena c) (v) Os primeiros princípios devem controlar, re?ular e s1st~m~t1-
fazê-lo, mesmo que estejamos convencidos de que pode não ser cor- zar princípios e padrões subordinados (e preceitos e convicçoes
reta). morais de baixo nível) para os organizar num esquema completo
4. Deveria mencionar neste momento (tornar-se-á relevante mais e harmonioso livre de elementos arbitrários. Esta exigência está
tarde), primeiro, que Sidgwick reduz só a três os principais métodos relacionada com outra: nomeadamente que (vi) os primeiros
de ética - não sem examinar, certamente, os outros com importância princípios devem definir um método de ética que deter~i~e
histórica: egoísmo racional (Liv. II); intuicionismo (Liv. III), e utilita- (verifique) uma exatidão real, e não meramente uma exahdao
rismo (Liv. IV). Assim, o perfeccionismo reduz-se a intuicionismo e aparente - os primeiros princípios devem criar, afinal de contas,
a doutrina de Kant reduz-se a um princípio formal de equidade ou um juízo correto; e assim (vii) devem funcio.nar par~ os agen~~s
justiça na terminologia de Sidgwick (cf. ME, p. 379). Trata-se, na racionais como guias verdadeiros para a prática, e assim permitir
minha opinião, de um conjunto de comparações muito pequeno: que ajamos racionalmente - por isso, os primeiros .princípios
tem falhas, julgo, quando não reconhece que a doutrina de Kant, ou não podem ser vagos, imprecisos e ambíguos e, finalmente,
uma visão semelhante a ela, é um método distintivo de ética; e a
Theory of Justice é essa visão. Penso também que ele combina incor-
retamente perfeccionismo com intuicionismo. Este lapso no con- 7 Aqui interpreto o procedimento e argumentos de Sidgwick, mas ver especialmente
junto de comparações de Sidgwick é uma fraqueza na sua visão Livro IV: 2.
global. 8 Aqui dever-se-á consultar Methods, III, cap. 11, e IV, cap. 2; e Schneewind, caps. 't-10.

440 441
(viii) um primeiro princípio deve ser aquele que corrige adequa- Nível § 1: Justiça df: 264-268
damente os nossos julgamentos refletivos. o
A explicação de justiça de Sidgwick (Liv. III, cap. 5) destina-se a Justiça ao aplicar a lei Essência da Justiça: Virtude
mostrar que nenhum dos princípios de justiça encontrados no senso (J como R): 379 e segs.; 496 da Justiça: 268
1. 267 e segs.,
comum satisfazem estes critérios, sendo, portanto, princípios subordi- 441 e segs.
Princípio de Equidade:
348 e segs.
nados. É particularmente a propósito das últimas três condições, (d)-
-(f), que ele discute ao longo do Liv. III, cap. 5, sobre justiça, apesar de
as três primeiras também lá estarem. Passemos agora à explicação
Justiça Substantiva: Critério de Leis Justas
de justiça de Sidgwick na próxima palestra. 2.

§ 3: Ideal de Justiça df. §§ 5-7: Justiça Penal


278 e segs. 280-282; 290-293;
3.
349.
PALESTRA II Retributiva: 349;
Reparadora: 281
SIDGWICK EXPLICA JUSTIÇA § 3: Justiça Distributiva: df. e segs.
4. 273, 278 e segs.
E O PRINCÍPIO CLÁSSICO DE UTILIDADE
§ 4 Liberdade Natural df.
274-278, 350 e segs.;
§ 1. A EXPLICAÇÃO DE JUSTIÇA DE SIDGWICK 5. 444 e segs.

1. Dever-se-á ler a explicação de justiça de Sidgwick no Livro III, § 5: Liberdade Natural § 6: Ideal
capítulo 5, como parte do seu longo e cuidadoso relato acerca dos (derivada de 279 Socialista:
princípios intuitivos encontrados no senso comum e refinados por 6. e segs.) 288-290
vários autores na tentativa de os formularem como primeiros princí-
pios genuínos e racionais. Ele acredita que a análise que faz destes
princípios mostra que, em qualquer caso, eles provam ser vagos e § 6: Princípio
§ 6: Princípio do Mérito da Recompensa pelo § 6: Ideal Individualista:
imprecisos quando tentamos aplicá-los na prática; e que estão sujei- como Esforço Criterioso:
Serviço: 285 e segs.; 286-288; 444 e segs.
tos a várias exceções e qualificações que são arbitrárias no sentido 7. 283-285; 445-447; 349 349; 445-447
em que os próprios princípios não incluem nenhuma explicação da
base racional sobre elas. Por conseguinte, Sidgwick conclui que não
podem ser primeiros princípios genuinamente racionais e objetivos. § 3: Justiça Política: df. 271 e segs. Justiça
Deve haver algum outro e superior princípio ou princípios controla- 8. (problema de 273: reconciliar e Igualdade: 266
justiça conservadora e ideal) e segs.; 293; 379
dores que justificam estas qualificações e condições. E o autor dá pis-
tas durante o tempo todo (e às vezes mais do que pistas) de que este
princípio superior deve ser o princípio de utilidade. Tudo isto, obvia-
mente, supondo que há sempre uma resposta correta ou verdadeira e Obrigação Política: Princípio da Igualdade
Def. arbitrário: 293n 352,441 Simples: 416, 447
9
que nós podemos conhecê-la e concordar com ela (se seguirmos a
razão).
FIGURA 8 - Esquema da explicação de justiça de Sidgwick. Methods, Liv. III, cap. 5

442 443
2. Sidgwick discute a noção de justiça em três ocasiões: a mais e) No§ 3 (pp. 271-274): A própria ordem social pode ser conside-
completa encontra-se em Methods, cap. 5 do Liv. III; a seguir é o breve rada injusta quando julgada pelo padrão de justiça ideal. Mas há
sumário do cap. 5 que Sidgwick dá no seu «Review of Common diferentes conceções deste padrão;
Sense» [Revisão do Senso Comum], cap. 11 do Livro III, pp. 349-352· d) No§ 4 (pp. 274-278): Uma visão é que a liberdade é o fim abso-
e, finalmente, há uma avaliação no cap. 3 do Liv. IV, pp. 440-448. ' luto; mas a tentativa de elaborar uma noção ideal nesta base
Sidgwick explica os diferentes objetivos destas discussões da se- encontra dificuldades insuperáveis;
guinte forma: no cap. 5 do Livro III o objetivo é «averiguar imparcial- e) No§ 5 (pp. 278-283): Nem a realização da liberdade responde à
mente o que são realmente os veredictos do senso comum» (ME, nossa conceção comum de justiça ideal, que é sem dúvida o
p. 343); enquanto o objetivo em «Review» do cap. 11 é «questionar em mérito que deve ser recompensado;
que medida estas enunciações [os veredictos do senso comum, por j) No§ 6 (pp. 283-290): Mas a aplicação deste princípio é, de igual
exemplo] podem ser reclamadas para serem classificadas como ver- modo, muito desconcertante, pois admite diferentes interpreta-
dades intuitivas» (ME, p. 343). No cap. 3 do Livro III, o objetivo é ções de mérito; por exemplo, o mérito pode ser estimado atra-
vés de um esforço criterioso, ou pelo valor do que é feito (de
mostrar que ao enfrentar as dificuldades e ambiguidades, etc., que
serviços); para além disso, o princípio da capacidade é um fator
surgem na prática ao definir e especificar as suas noções de justiça, 0
complicado;
senso comum é, por assim dizer, inconscientemente utilitário, visto
g) No § 7 (pp. 290-294): De modo semelhante, há dificuldades
que o princípio de utilidade é naturalmente invocado, mesmo que
com mau mérito na definição de justiça criminal. Sidgwick ter-
seja só implicitamente. (Uma das definições de senso comum da hu-
mina com um sumário das suas conclusões (pp. 293-294).
manidade apresentada por Sidgwick é a seguinte: o que é «expresso
geralmente pelo conjunto de pessoas em cujos julgamentos morais
[uma pessoa] se prepara para confiar»; ME, p. 343 ). Por isso,
enquanto estas várias explicações de justiça são de algum modo repe- § 2. AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO CLÁSSICO
titivas, o seu objetivo declarado é diferente e, de facto, as observações DE UTILIDADE
de Sidgwick não são as mesmas e complementam-se umas às outras
até certo ponto. Intuitivamente, a ideia é maximizar o equilíbrio líquido do prazer
3. Um esboço aproximado do capítulo 5 seria assim: sobre a dor.
1. O princípio aplica-se muito geralmente a todas as áreas: em
a) No § 1 (ME, pp. 264-268) Sidgwick defende que apesar de a situações e práticas, ações individuais e traços de caráter, etc., e
justiça se relacionar com leis nas nossas mentes (cf. adminis- em todas as circunstâncias, quer sejam ideais ou não. Assim: numa
tração de justiça), não pode ser identificada com o que é legal, dada situação, aquela instituição ou ação, etc., estará correta, ou
visto que as leis podem ser injustas. Repito, apesar de a jus- aquilo que devia ser feito, se entre todas as alternativas exequíveis
tiça incluir e implicar a ausência de desigualdades arbitrárias nas circunstâncias for a que maximiza:
na conceção e administração de leis, também não se trata me-
ramente disto;
b) No § 2 (pp. 268-271) Sidgwick discute o que chama de «justiça
conservadora», isto é: a realização de (1) contratos e entendimen- onde os a/ s são números reais (os pesos dos u/ s) e os u/ s são núme-
tos definitivos, e (2) expectativas que provêm naturalmente das ros reais que representam a utilidade (a diferença líquida do prazer
práticas e instituições de sociedade estabelecidas. Contudo, o sobre a dor) para cada indivíduo I, tendo estes números em conta
dever de realizar estas últimas não está claramente definido; todas as consequências da instituição ou ação em questão sobre cada
nem sequer se torna evidente a importância que estas expectati- um dos indivíduos afetados independentemente da sua posição no
vas deveriam ter; espaço ou tempo, e assim, ainda que distante no futuro, por exemplc~.

444 445
2. Para fixar ideias assumamos que os indivíduos em questão perten- felicidade são comparáveis, e (b) nas mesmas unidades. A linha
cem à mesma sociedade e ponhamos de lado todos os outros; contudo, Bentham-Edgeworth-Sidgwick também assume um zero natural, um
incluamos todas as pessoas por muitas gerações no futuro, quando, por ponto de indiferença entre prazeres e dores. Sobre estas questões, ver
hipótese, o mundo acabasse. A ideia é maximizar a utilidade ao longo Methods of Ethics de Sidgwick, Liv. II, cap. 29.
deste período de tempo, deixando de fora o passado, visto que são águas 2. A doutrina clássica assume que cada indivíduo pode estimar
passadas e já não sofrem a influência da ação humana. e comparar os seus próprios níveis de felicidade na base da intros-
3. Na doutrina clássica os pesos ªi todos= 1, pois, como J. S. Mill peção e memória: os prazeres e as dores são aspetos diretamente
diz, isto está implícito pela noção de prazeres e dores mesuráveis conhecidos em experiências que se julgam ser agradáveis ou desa-
enquanto quantidades objetivas dadas pela sua intensidade e dura- gradáveis.
ção. Nada tão filosófico como «direito igual à felicidade» é exigido 3. Assumindo o mesmo zero natural para todos os indivíduos, e
contra Herbert Spencer (cf. J. S. Mill, Utilitarianism, cap. 5: par. 36, (seguindo Edgeworth) a mesma diferença bem percetível em níveis
nota de rodapé). de felicidade como a unidade comum para todos os indivíduos, bem
4. Os u/ s são, conforme demonstrado, números que medem o como supondo que estes últimos podem classificar consistente-
equilíbrio líquido de felicidade para cada indivíduo I ao longo do mente as diferenças entre níveis de felicidade, acontece que as com-
período de tempo relevante (durante o qual a instituição ou a ação em parações interpessoais exigidas estão prestes a ter lugar, e sem
questão tem efeitos). Podemos imaginar este período de tempo divi- depender de escolha envolvendo sorte e risco. (Estas suposições são
dido em intervalos de unidade para que cada ui= uíj, j = 1, ... , q. Mas extremamente fortes e parecem implausíveis; mas voltaremos a elas
isto são só floreados, por isso deixemo-nos deste tipo de coisa. Vamos mais tarde.)
ver como corre.
5. O aspeto fundamental é que os u/ s representam só um tipo de
informação: nomeadamente a diferença líquida da utilidade cal- § 4. ALGUMAS CARATERÍSTICAS DO PRINCÍPIO
culada, ou estimada, apenas a partir da intensidade e duração da
consciência agradável ou desagradável de prazer e dor, independen-
DE UTILIDADE COMO PRIMEIRO PRINCÍPIO
temente de quaisquer relações objetivas de uns para outros indiví- DO MÉTODO RACIONAL DE ÉTICA
duos que são condições destas experiências, ou os objetivos dos
desejos dos quais a satisfação ou insatisfação conduz ao prazer ou à 1. Preocupamo-nos especialmente com aquelas caraterísticas do
dor. Em si próprios, os prazeres de crueldade vingativa contam igual- utilitarismo clássico que levam Sidgwick a pensar que ultrapassa
mente com os de generosidade e afeto. Como disse Bentham: na mar- os defeitos do intuicionismo, conforme foi demonstrado na sua dis-
gem, um alfinete é tão bom como poesia (uma unidade de um = uma cussão sobre justiça (discutida na palestra anterior). Com isto em
unidade de outro). mente, assinalemos primeiro que o utilitarismo é uma conceção de
um só princípio: um conflito de primeiros princípios é impossível
visto haver só um. Isto é uma vantagem relativamente ao intuicio-
nismo.
§ 3. ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE COMPARAÇÕES 2. Para além disso, Sidgwick acredita que o princípio de utilidade
INTERPESSOAIS DE UTILIDADE (COMPARAÇÕES-IP) é a consequência de três princípios evidentes por si próprios (ou
quase): (a) o princípio de equidade (ou justiça) (ME, pp. 379 e segs.),
1. Para falar da maximização da soma linear de utilidades, deve- que Sidgwick encontra já formulado no essencial por Clarke (pp. 384
mos assumir que faz sentido acrescentar os prazeres e as dores de e segs.) e Kant (pp. 385 e segs.); (b) o Princípio do Amor-Próprio
cada indivíduo e que as unidades em que estes são estimados são as
mesmas para indivíduos diferentes. A doutrina clássica assume a 9 [Ver Sidgwick, Palestra III deste volume, para uma discussão extensa de compara-
comparabilidade total de comparações interpessoais: (a) os níveis de ções interpessoais de utilidade. - Ed.]

446 447
Racional (tempo zero de preferência) (p. 381); e (c) o Princípio da não presumivelmente de todas. Mas, para encontrar o meio entre
Benevolência Racional (pp. 382f). Estes três princípios, contudo, não estes dois extremos inaceitáveis é necessário outro princípio, mais
entram em conflito, mas juntos criam o princípio singular de utili- uma vez, o princípio utilitário (pp. 275 e segs.).
dade; e, assim, o critério de autoevidência é satisfeito sem se desistir 3. Se a ordem social passar a ser possível usando este princípio, o
do critério de ter um guia na prática. (Sobre isto ver Palestra 1 sobre Princípio de Liberdade deverá permitir o direito de limitar a liber-
Sidgwick no L: 5.) dade de alguém por contrato. Mas este direito propriamente dito
3. Sidgwick argumenta que o princípio de utilidade é completa- deve ser limitado, visto que dificilmente permite que se venda uma
mente racional na medida em que não é limitado ou restringido por pessoa para escravatura; no entanto, retirar apenas do Princípio de
exceções ou qualificações arbitrárias; aplica-se geralmente na totali- Liberdade um direito limitado apropriado para limitar a liberdade
dade a todos os casos de raciocínio prático; e o uso de regras secun- de uma pessoa através de contrato parece ser tarefa impossível. Pre-
dárias ou «axiomas centrais» (ME, p. 350) explica-se através do cisamos de mais um princípio que por sua vez pode ser superior na
próprio princípio, satisfazendo assim o critério discutido na Palestra validade, etc. (p. 276).
1, L: 5. 4. Mudando para a questão da apropriação de coisas materiais e
4. Finalmente, o princípio utilitário harmoniza e sistematiza jul- especialmente de terra (e aqui Sidgwick parece ter Locke em mente;
gamentos de senso comum e ajusta-os de uma forma coerente e con- nos pontos 1-3 acima terá talvez Spencer em mente), ele defende que
sistente. (Ver, por exemplo, a discussão de valores ideais no Liv. III, o princípio de liberdade se concretizaria melhor sem nenhuma apro-
cap. 14, e a conclusão (pp. 406 e segs.) que nenhum princípio a não priação. Se, numa sociedade em que toda a terra está na posse de
ser o de utilidade pode organizar estes julgamentos.) Ao mesmo alguém e algumas pessoas não herdam propriedade nenhuma, o
tempo, este princípio corrige os nossos julgamentos pré-reflectivos e argumento é que todos na sociedade estão contudo melhor com apro-
assim o critério B: (5): (c): viii é também satisfeito. Sidgwick assume priação do que sem, então a perspetiva é que a interferência na liber-
que os nossos julgamentos pré-reflectivos (ou alguns deles) têm dade pode ser compensada. Mas, na verdade, isto é para recorrer a
alguma validade aparente e, portanto, dar-lhes ordem é confirmar outro princípio, e por isso a concretização de liberdade não pode ser
ainda mais o princípio de utilidade. (Ver Liv. IV, cap. 2, pp. 419-422.) «O derradeiro fim da justiça distributiva» (pp. 276 e segs.).

§ 5. A CRÍTICA DA LIBERDADE NATURAL DE SIDGWICK § 6. OUTROS ASPETOS REFERENTES À DEFINIÇÃO


COMO ILUSTRAÇÃO DO PRINCÍPIO DE UTILIDADE
1. No § 4 do Liv. III, cap. 5, Sidgwick argumenta que o Princípio 1. A expressão «a maior felicidade do maior número» parece ocor-
de Liberdade - o princípio em que tudo o que as pessoas devem rer primeiro no livro de Hutcheson intitulado Inquiry Concerning
umas às outras, para além de contratos (incluindo a sua aplicação), é Moral Good and Evil (1725): ver III, § 8. Esta expressão levou alguns a
liberdade de interferência - não pode ser o primeiro princípio de um considerar absurdo o princípio, visto que apresenta dois objetivos
método racional de ética. Em primeiro lugar, (a) contém restrições (felicidade e números) para maximizar. Mas trata-se de um mal-
arbitrárias: pois, por si próprio, não explica porque é que não se -entendido: o princípio é para maximizar a felicidade total, e isto sig-
aplica a crianças, aos mentalmente deficientes e casos semelhantes, nifica que a distribuição de felicidade entre as pessoas existentes, ou ao
mas deve invocar tacitamente outro princípio, o utilitário, por exem- longo de gerações, bem como o número de pessoas (tanto quanto a
plo (ME, p. 275). política social afeta isto), devem ser todos decididos por aquilo que
2. Repito, (b) é ambíguo no meio da liberdade de ação permitir maximiza a utilidade total (não mediana). Sidgwick é claro acerca
todos os tipos de contrariedades mas impedir o constrangimento, ou destes aspetos: ver ME, pp. 415 e segs. (ver também A Theory of Justice,
incluindo também liberdade de certas contrariedades, pelo menos, e pp. 161 e segs.).

448 449
2. É de notar que o princípio de utilidade não atribui nenhuma nismo e o perfeccionismo. (Tenhamos em conta que estou a falar
importância à igualdade (no sentido de uma distribuição igual de utili- da filosofia moral inglesa, e não da do continente: Alemanha,
dade): a única coisa que conta é a utilidade total. Isto está implícito na França, etc.);
natureza aditiva do princípio (para maximizar uma soma linear dos b) Repito, o utilitarismo tendeu para controlar o decorrer do
u(s). Observemos que se o princípio fosse para multiplicar utilidades, debate filosófico na medida em que outras tradições têm tra-
haveria um empurrão a favor da igualdade. Assim, a forma matemá- balhado para construir uma alternativa, sendo frequentemente
tica já incorpora uma noção ética: nomeadamente, que a distribuição mal-sucedidas. Enquanto o intuicionismo ou o idealismo
não é significativa. podem ser bem-sucedidos no estabelecimento das várias fra-
3. Na prática, no que diz respeito, por exemplo, à legislação, os quezas do utilitarismo, são menos bons na formulação de uma
utilitários assumem frequentemente que as pessoas têm capacidades doutrina igualmente sistemática que possa ir ao encontro da
semelhantes para o prazer e para a dor, e que se mantém o princípio dos melhores escritores utilitários. Entre os intuicionistas,
de utilidade marginal diminuída: tudo isto implica igualdade, ceteris tenho principalmente em mente Butler, Price, Reid e Whewell,
paribus [mantidas inalteradas todas as outras coisas], na distribuição enquanto os idealistas britânicos do século xrx mais importan-
dos meios de felicidade. tes são Hamilton, Bradley e Green;
e) Além disso, o utilitarismo tem estabelecido laços estreitos com a
teoria social, e os seus principais representantes têm também
sido grandes teoristas políticos e economistas. Vejamos este
facto assinalável: de todos os grandes economistas políticos
PALESTRA III clássicos, cada um deles - exceto Ricardo - tem um lugar igual-
mente importante no utilitarismo como tradição de filosofia
O UTILITARISMO DE SIDGWICK moral! Só precisamos de listar os nomes. Assim:
(Outono de 1975)
Século XVIII: Hume, Adam Smith e Jeremy Bentham.
Século XIX: James e J. S. Mill, Edgeworth e Sidgwick (os últimos
dois mais em economia e filosofia, respetivamente, mas
§ 1. INTRODUÇÃO AO UTILITARISMO tinham ambos interesses). O terceiro livro de Sidgwick, The
Principles of Political Economics (1884; 3.ª ed., 1901), é um tra-
1. Como disse anteriormente, o utilitarismo é a tradição contínua tado breve sobre a economia da prosperidade utilitária, em
mais longa (antiga) da filosofia moral inglesa. Por inglesa pretendo certa medida o primeiro desta área.
dizer: escrita em língua inglesa; muitos dos escritores utilitários im-
portantes são escoceses - Francis Hutcheson, David Hume e Adam No século xx, o utilitarismo exerceu muito mais influência na eco-
Smith - e neste século xx tem tido fortes representantes nos Estados nomia do que qualquer outra filosofia moral, onde estava represen-
Unidos. Não é nenhum exagero dizer, creio eu, que começando a tado através de Marshall e Pigou; só nos anos 1930 é que a doutrina
meio da primeira metade do século xvm o utilitarismo tem sido mais clássica deixa de ser dominante. Mas ainda hoje muitos economistas
ou menos bem-sucedido no domínio da filosofia moral inglesa. Por defendem uma forma de utilitarismo muito geral, segundo a sua
domínio, tenciono dizer o seguinte: desipnação. Voltaremos a este assunto mais tarde.
a) Entre os seus representantes, conta com uma extraordinária E, portanto, absolutamente necessário prestar a devida atenção ao
sequência de escritores - Hutcheson, Hume, Smith, Bentham, os utilitarismo. Uma tradição desta força não pode existir sem o seu
dois Mill, Sidgwick e Edgeworth - que em número e capacidade grande mérito.
intelectual ultrapassam qualquer outra linha de filosofia moral, 2. Passemos agora a alguns comentários acerca do início do utilita-
incluindo a da teoria do contrato social, o idealismo, o intuicio- rismo nos tempos modernos. Como muitas outras coisas da moderna

450 451
filosofia moral inglesa e da teoria social, é conveniente dizer: começa Cudworth Hobbes
com Hobbes e com a reação a este mesmo autor. Devemos ter em
mente que se trata de um figura irresistível - um escritor maravilhoso Teísmo Ateísmo
com um estilo vigoroso e, aparentemente, uma forma perfeita de Dualismo (mente e corpo) Materialismo
expressão da sua visão peculiarmente profunda e, de algum modo,
Livre arbítrio (libertarianismo) Determinismo
assustadora, da vida política. Hobbes provocou uma reação intelectual
violenta: ser considerado um hobbista era um pouco perigoso, e as Teoria orgânica do estado Individualismo
razões são fáceis de perceber: era o principal representante da infideli- Moralidade eterna e imutável Relativismo ético
dade moderna.
Passemos a considerar e a comparar a Hobbes um cristão mora- FIGURA 9
lista ortodoxo como Cudworth, que abraçava aproximadamente as
visões filosóficas indicadas na coluna da esquerda da figura 9.
Comparemos isto ao modo como ele [Cudworth] interpretava -Edgeworth), designadamente como a tentativa de formular uma rea-
Hobbes [como fazia a maior parte da época (coluna da direita)]1°. Para ção a Hobbes:
compreender o que Hobbes representava para a sua época, a violência a) Uma conceção moral e política que explicava as bases da autori-
que causou à tradição cristã moral e filosófica, não há melhor fonte do dade política, não baseada em poder mas em princípios morais,
que o livro de Cudworth True Intellectual System (1671) (data de auto- e uma que não era relativista, nem baseada no egoísmo psicoló-
rização da Igreja Católica para ser impresso) (1678) (data de publi- gico ou no ético.
cação). Ao mesmo tempo, o utilitarismo clássico aceitava como condi-
3. Contudo, a reação dos principais utilitários a Hobbes foi, obvia- ções do estado de cultura moderna que uma conceção moral e
mente, muito diferente da de Cudworth. (Aqui deixo de lado os utili- política devesse ser secular; ou seja:
tários teológicos - Gay, Paley e Austin - como casos especiais; e b) O utilitarismo clássico não baseia os primeiros princípios mo-
alguns eram teólogos ou teístas, tais como Hutcheson e Smith.) Para a rais na vontade divina e é totalmente compatível com a negação
maior parte, o que os irritava acerca de Hobbes não era o seu ateísmo, do teísmo (no sentido tradicional). Também é compatível com,
se é que o era, ou o seu materialismo, determinismo e individualismo. materialismo, determinismo e individualismo e assim com o
Em algum sentido razoável, Hume, Bentham, os dois Mill e Sidgwick que se pensa serem as conclusões da teoria social e das ciências
também defendiam estas visões. O que realmente rejeitavam em naturais.
Hobbes (ou aquilo que representava ou pretendia dizer) era:
i i
1

i) A doutrina do egoísmo psicológico e do egoísmo ético; Em suma: o utilitarismo foi a primeira tradição a desenvolver
ii) A ideia de que a autoridade política é legitimada por poderes uma conceção moral sistemática sob a suposição de uma sociedade
superiores (apesar de isto ser de modo duvidoso a visão de secular de acordo com condições modernas. Muito do esforço dos
Hobbes), ou por acordos feitos perante os poderes superiores, ou escritores utilitários é dedicado a oporem-se à tradição moral orto-
que, de facto, reside num contrato social, ou em qualquer tipo de doxa e a estabelecer uma base moral para instituições políticas intei-
contrato (no sentido habitual); ramente livres de qualquer contexto teológico e concebida para ser
iii) A tese do relativismo ético. compatível com suposições seculares e as tendências do mundo mo-
derno.
Assim, é útil pensar aproximadamente desta forma no utilitaris- Iremos observar que a noção de uma sociedade verdadeiramente
mo clássico (a linha de escritores desde Hutcheson-Hume a Sidgwick- fundamentada e bem ordenada como critério político razoável reside
na mesma ideia. Por isso podemos aceitar este objetivo: podemos
fazê-lo sem insinuar que as suposições ortodoxas [teológicas] sejam
10 John Passmore, Ralph Cudworth (1951), pp. 11 e segs. falsas. Basta desenvolver uma doutrina moral que não pressuponha

452 453
esta base [teológica] (se isto for possível). Irei assumir que todas as nativas exequíveis (possíveis) que maximiza esta função. (Assuma-
visões que discutimos aceitam este objetivo contextual. mos por enquanto que não há ligações.)
Torna-se imediatamente óbvio que este princípio não é o do
egoísmo ético: a felicidade de todos é tida em conta e é-lhe atribuído
algum peso (assumindo que todos os ai =P O).
§ 2. A AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO CLÁSSICO 2. Neste ponto podemos agora assinalar uma caraterística impor-
DE UTILIDADE (SIDGWICK) tante deste princípio: os u( s são medidas numéricas de felicidade, e
para Sidgwick o derradeiro bem é ter emoções ou experiências agra-
1. Sidgwick faz uma afirmação cuidadosa acerca do princípio em dáveis (ou consciência) (voltaremos a isto mais tarde). Trata-se de
Methods Of Ethics, Liv. IV, cap. r. Irei abordar os pontos principais, estados de espírito ou aspetos deles, que são conhecidos diretamente,
tecendo alguns comentários com intenções de esclarecimento: defino por assim dizer, através de introspeção: são, digamos, completos em si
utilitarismo («Hedonismo Universalista», como ele às vezes diz) próprios (ao longo de um certo intervalo de tempo) e bons em si pró-
como a conceção ética que defende que a instituição ou conjunto de prios (ou no caso de dor, maus em si próprios). O reconhecimento
instituições (objetivamente) certa, ou a conduta objetivamente certa destas emoções não pressupõe, ou usa, nenhum princípio que en-
(de indivíduos), dadas quaisquer circunstâncias, é a que produzirá a volva o conceito de direito, ou justiça, etc., ou quaisquer conceitos
maior quantidade de felicidade no total. Ou a que levará à maior dife- que se incluam nestes. Assim, o utilitarismo clássico usa uma noção
rença líquida de felicidade (emoções agradáveis). de felicidade e de derradeiro bem que é definida independentemente e,
Nesta soma de felicidade que deve ser maximizada, devemos por assim dizer, anterior a todas as outras noções morais, ou em qualquer
incluir todos os indivíduos (pessoas), quaisquer que eles sejam, que quantidade, anterior àquelas de direito e justiça e de virtude e valor
são afetados pela instituição ou conduta (isto é, cuja felicidade é afe- moral. Isto é caraterístico das conceções teleológicas e, assim, o utili-
tada positiva ou negativamente). Na verdade, os utilitários clássicos tarismo é uma doutrina teleológicall.
pensavam que, em princípio, era necessário incluir todos os seres sen- Difere de outras conceções teleológicas na sua definição de bem -
síveis e, portanto, todos os animais ou seres vivos que pudessem ter ou daquilo que deve ser maximizado. Assim, o perfeccionismo diz
experiências de prazer ou de dor. A capacidade e a responsabilidade que devemos maximizar certas formas de excelência (humanas e
por estas emoções exigem que elas sejam incluídas. Isto é um aspeto outras perfeições) ou determinados valores: coisas belas, ou o conhe-
importante do utilitarismo que iremos analisar mais tarde; no mo- cimento do mundo (ou as suas principais partes estruturais, etc.), ou
uma mistura destes12. (Por vezes o termo «utilitarismo ideal» é usado
mento suponhamos que as consequências de instituições e ações são
para esta visão, mas é uma má designação.) Exemplos de perfeccio-
limitadas aos indivíduos humanos e subsequentes gerações de indiví-
nismo podem ser encontrados em G. E. Moore e Hastings Rashdall e
duos.
muitos outros escritores que atribuem alguma importância aos valo-
Formalmente, podemos redigir o princípio de utilidade da se-
guinte maneira: digamos que ui, ... , un sejam as utilidades (núme- res perfeccionistas.
Mas o utilitarismo clássico define o bem que deve ser maximizado
ros representando o grau de felicidade) dos n indivíduos afetados
subjetivamente, ou seja, em termos de emoções ou experiências agra-
pela instituição (ou sistema de instituições) ou as ações em causa:
dáveis (consciência) dos indivíduos (humanos).
dizer os n indivíduos em sociedade, ou qualquer outro [grupo]. 3. Isto pode parecer uma definição de bem excessivamente redu-
Digamos que ai, ... , ªn são o peso dessas utilidades. Então, o prin- zida. Usei-a, primeiro porque apresenta uma certa clareza e simplici-
cípio é:

11 [Ver John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
ed. rev., 1999, pp. 21-23, 35-36, 490-491, 495-496, para uma discussão sobre doutri-
Isto é: a alternativa correta [instituição ou ato (ou o que quer que nas teleológicas e como contrastam com doutrinas contratuais. - Ed.]
seja)] é aquela (instituição ou ato) que pertence ao conjunto de alter- 12 [Ver A Theory of Justice, secção 50, sobre o Princípio de Perfeição. - Ed.]

454 455
dade acerca disso e, segundo, porque é a visão de Sidgwick (bem 4. Variações ou Refinamentos Admissíveis: Vamos explicar mais
como de Edgeworth e Bentham); e este autor tem vários argumen- detalhadamente a noção de uma variação (ou refinamento) admissí-
tos interessantes a seu favor (que irei mencionar depois). A sua vel do utilitarismo clássico: nomeadamente, qual é o objetivo desta
visão é a afirmação mais perspicaz da dou trina clássica rigorosa e noção e o que pretendemos dizer com ela? Primeiro vamos ao ob-
ele resiste a todos os esforços para se separar dela, especialmente jetivo: há uma tendência extremamente vaga de usar o termo «Uti-
dos de Mill (de que irei falar a seguir) e dos de Moore, etc. litarismo», por isso há vários tipos distintivamente diferentes de
Se quisermos, contudo, a noção utilitária de bondade pode ser conceções morais ditas utilitárias. Esta indefinição provoca um
interpretada de forma muito mais abrangente; deste modo, como a efeito infeliz: obscurece a estrutura de diferentes doutrinas morais, o
satisfação ou realização de interesses humanos não hedonísticos; ou que nos impossibilita de reter em mente o que cada uma tem de
como a satisfação ou realização de interesses racionais (humanos), especial. Por isso, precisamos de uma noção de variação admissível
impondo determinados testes de racionalidade, sem o envolvi- de utilitarismo para especificar essas variações, das quais todas par-
mento de outros conceitos morais (direitos e valor moral, etc.): isto tilham a estrutura caraterística ou especial da visão utilitária clás-
é, admitimos uma certa classe de correções devidamente limitada sica.
aos interesses ou desejos humanos (através de deliberação racional, De que trata esta estrutura caraterística? (a) Primeiro, é a estrutura
etc.). Ou, mais globalmente, podemos pensar no bem como felici- caraterística que o utilitarismo partilha com as doutrinas teleológicas,
em geral: nomeadamente, que a noção do bem é definida anterior-
dade definida enquanto execução bem-sucedida de um plano de
mente e independentemente do direito (e de todos os conceitos
vida racional (em que «racional» é devidamente definido)I3. O utili-
abrangidos por ele); e, depois, o direito é definido a maximizar o bem.
tarismo pode ser alargado para incluir estas variações, e muitas
Esta forma de introduzir o direito é um aspeto da ideia intuitiva e
objeções comuns à doutrina não são tão plausíveis contra estas for-
natural em que se fundamenta o utilitarismo. É a ideia de que a con-
mas de utilitarismo. Mill, por exemplo, quer certamente categorizar duta e decisão racional estão a maximizar o bem: lutando pelo maior
o bem para ser maximizado desta maneira (pelo menos)14. bem. (Contrastar a Teoria do Contrato Social.) (b) Segundo, o traço
A caraterística crucial da definição de bem no utilitarismo é a caraterístico do utilitarismo distinto de outras conceções teleológicas
seguinte: (a) define o bem independentemente (dos conceitos de é que ele define o bem subjetivamente, falando aproximadamente do
direito e valor moral); e (b) subjetivamente: o bem é (i) emoção ponto de vista do sujeito: o agente humano individual. O que isto sig-
agradável (ou consciência) (prazer), ou (ii) a satisfação de interesses nifica neste caso é o seguinte:
individuais racionais - definidos relativamente aos interesses reais
das pessoas - (em que «racional» é devidamente limitado), ou (iii) i) O bem é definido como consciência agradável ou desagradável;
execução de planos de vida racionais (felicidade); e (c) é individua- ou prazer em vez de dor; ou a satisfação do desejo, de acordo
lista num determinado sentido: o derradeiro bem é atribuído com a sua intensidade e duração;
)
somente à experiência consciente de pessoas individuais e não ii) As capacidades para o prazer e para a dor, ou os desejos e aver-
1'
pressupõe nenhuma relação objetiva. De qualquer modo, (d) é a sões relevantes, são os que as pessoas realmente têm a qualquer
altura. Começamos em cada momento nas nossas deliberações
soma deste bem (destes bens dos indivíduos) que deve ser maximi-
partindo desses aspetos das pessoas como elas são, ou poderão
zada. Provavelmente, a melhor forma de esclarecer o que este sen-
vir a ser. A razão prática baseia-se em determinados desejos e
tido de individualismo significa é contrastá-lo com outras visões.
propensões.

13 [Consultar sobre este aspeto a explicação de Rawls acerca do bem de uma pessoa
em termos do plano de vida racional que uma pessoa escolheria sob condições de
Assim, o que é caraterístico do utilitarismo clássico é que trata a
racionalidade deliberativa, tendo em conta o Princípio Aristotélico. A Theory of pessoa de acordo com as suas capacidades para o prazer e para a dor,
Justice, secções 63-66. - Ed.] satisfação, etc. Os seus direitos sobre recursos sociais dependem
14 Ver o apêndice desta palestra a respeito de variações admissíveis de utilitarismo. daquelas. E isto contrasta com algumas outras visões que consideram

456 457
os direitos da pessoa de forma diferente, como, por exemplo, a Teoria dade (prazer) sejam igualmente desejáveis (boas), quer sejam sentidas
do Contrato Social e a teoria de Kant. pelas mesmas ou por diferentes pessoas. Tudo isto está implícito na
Definir uma variação admissível de utilitarismo: nomeadamente, ideia de medição aplicada a prazeres. Faz parte do próprio princípio
uma que preserve estas caraterísticas e não introduza elementos que de utilidade, não se trata de uma premissa necessária para o funda-
lhes sejam inconsistentes. A ideia é que ao examinar o utilitarismo mentarls. Assim diz Mill. Isto é justo dada a compreensão de bem
queremos ver se qualquer visão que tenha estas caraterísticas poderá como prazer (satisfação) e nada mais senão prazer. (Contrastar Maine' s
estar correta. Seria um progresso mostrar que todas as visões com Brahmin, que pesaria o prazer de uma pessoa que é 20 vezes Brahmin
estas caraterísticas não devem ser satisfatórias. daqueles que o não são; ele precisa de modificar o princípio clássico
Por esta razão, podemos estar dispostos (como sugeri antes) a per- rigoroso de alguma forma para chegar a esta conclusão16.)
mitir a visão - quando reforçasse o seu caso e o tornasse numa conce- 2. Por conseguinte, daqui em diante assumimos que os pesos são
ção melhor - para supor que o bem é definido como satisfação de todos = 1. Podemos acrescentar aqui que isto se aplica a todos os indi-
desejos racionais, em que estes são os que os indivíduos teriam se víduos, por mais distantes que estejam no espaço e no tempo, e visto
sujeitassem os seus atuais desejos reais a certas formas de avaliação que as nossas ações são limitadas nos efeitos que criam no presente
racional (pelos princípios de escolha racional). Isto dá uma visão dife- ou no futuro, podemos dizer (deixando o passado lá atrás) que os
rente (uma variação), mas podemos querer contá-la como variação prazeres de todas as pessoas do futuro têm os mesmos pesos dos das
;..11..
" ! admissível dentro da mesma estrutura. pessoas do presente. Não há, então, nenhuma preferência de tempo
1\I'
i• O objetivo é: não teríamos encontrado a falha básica do utilita- pura: isto significa que se descontarmos prazeres futuros, quer os
·.1;·.·'.'
i rismo se não lhe tivéssemos permitido esta variação quando melho- nossos quer os de outras pessoas, isto deve acontecer por qualquer
rou a visão. (Conforme o que se discute abaixo, não são permitidos outra razão para além de uma mera localização no tempo ou no
limites sobre desejos reais através de constrangimentos do conceito espaço; caso contrário, aplicamos incorretamente o princípio de utili-
de direito.) dade. Devemos dizer, por exemplo, que alguns prazeres prospetivos
são por variadas razões mais ou menos prováveis, a sua realização
mais ou menos incerta. Se assim é, podem ser descontados, ou pesa-
dos de acordo com a sua estimada possibilidade ou probabilidade;
§ 3. ASPETOS ACERCA DE COMPARAÇÕES isto resulta na chamada expectativa matemática. Mas esta forma de
l~ 1
1
INTERPESSOAIS desconto não implica uma preferência de tempo pura: baseia-se em
estimativas razoáveis de incerteza (probabilidade) e não simples-
.1 1
1. Torna-se claro que a noção de resumo de prazeres (por questões mente no facto de que um prazer está distante no tempo (futuro).
de simplicidade) ou graus de felicidade de diferentes indivíduos pres-
:1 supõe que tenhamos alguma forma de comparar e estimar os prazeres
vividos por pessoas distintas. Podemos dizer, por exemplo, que o indi-
víduo A tem o dobro dos prazeres do indivíduo B, etc.
15 Mill diz: «Mr. Herbert Spencer [ ... ] diz que o princípio de utilidade pressupõe o
princípio anterior de que todos tenham igual direito à felicidade. Pode ser mais
corretamente descrito supondo que iguais quantidades de felicidade sejam igual-
Teçamos agora algumas considerações acerca destes aspetos:
mente desejáveis, quer sejam sentidas pelas mesmas ou por diferentes pessoas.
Primeiro, assumimos que os a( s são todos iguais e, portanto, que Isto, contudo, não é uma pressuposição, não se trata de uma premissa necessária
sejam 1. Isto seria, presumivelmente, o que Bentham pretendia dizer para fundamentar o princípio de utilidade, mas sim do próprio princípio; pois o
(conforme foi citado por Mill em Utilitarianism, cap. V, par. 36) com: que é o princípio de utilidade senão que os termos «felicidade» e «desejável» são
«todos contam por um, ninguém conta por mais de um.» Mill inter- sinónimos? Se houver algum princípio anterior implicado, não poderá ser senão
preta corretamente esta regra de peso: não implica, como Spencer este, pois as verdades da aritmética são aplicáveis à avaliação de felicidade, bem
como a todas as outras quantidades mesuráveis». Utilitarianism, cap. v, nota de
argumenta em Social Statistics, um direito igual à felicidade; em vez rodapé para o parágrafo 36.
disso, parte da definição independente de bem como prazer, ou satis- 16 Henry Maine, Lectures on the Early History of Institutions, Londres: Murray, 1897,
i! fação, etc. Como Mill diz: só supõe que iguais quantidades de felici- pp. 397 e segs.

458 459
3. Em poucas palavras, passemos agora às comparações interpes- com a medida de utilidade de Von Neumann-Morgenstern, que se
soais. É evidente que para chegar às comparações interpessoais de uti- baseia em escolhas consistentes em vez dos acasos (várias combina-
lidade precisamos de, pelo menos, duas coisas: ções de alternativas estimadas na base da probabilidade). (Talvez pos-
samos desenvolver este aspeto mais tarde18.)
a) Uma medida cardinal de utilidade para cada indivíduo (os n
Segundo, ao estabelecer as regras de correspondência para que
todos deles);
possamos acrescentar as medidas de utilidade de indivíduos distin-
b) Uma forma de combinar as medidas de utilidade de indivíduos
tos, não é necessário que sejamos capazes de comparar os níveis (abso-
distintos para que possamos relacionar e acrescentar significati-
lutos) do bem-estar destes indivíduos. A comparabilidade unitária é
vamente: em suma, precisamos de regras de correspondência
suficiente; o nível de comparabilidade é desnecessário. (Compara-
que nos digam como comparar e pesar os prazeres de diferentes
bilidade total= nível mais comparabilidade unitária.) Visto que esta-
pessoas. mos a maximizar a soma do bem-estar, tudo o que importa é quanto
(por quantas unidades) cada indivíduo sobe ou desce, do ponto de
Fazer apenas o a) não basta; só se conseguirmos fazer o a) e o b), e
onde se encontram, como resultado de concretizarem as várias alter-
fazê-lo de modo satisfatório, tendo estabelecido uma forma de reali-
nativas exequíveis. Se o indivíduo A, digamos, subir ou descer n uni-
zar comparações interpessoais.
dades de um nível superior ou inferior do que o nível de B não
Alguns aspetos acerca destas medidas cardinais: primeiro, na dou-
importa, assumindo a comparabilidade unitária. A instituição, a polí-
trina clássica as medidas cardinais individuais de utilidade baseiam-se
tica ou a ação que leva ao maior aumento líquido (diferença de +' s e
nas estimativas dos indivíduos da sua própria felicidade alcançadas
-'s) da situação presente irá maximizar a utilidade relativamente a
através de introspeção e reflexão e pela sua comparação entre os seus essas alternativas19.
vários estados de bem-estar: a intensidade e duração dos seus estados
1
:1 de consciência agradável ou desagradável. Numa palavra: pensava-se
i
que os indivíduos (a) eram capazes de classificar os seus vários níveis
de bem-estar de um modo consistente; que também podiam explicar § 4. CONSTRANGIMENTOS FILOSÓFICOS NUMA
que (b) a diferença entre os níveis dos estados A e B é igual a (ou maior MEDIDA SATISFATÓRIA DE COMPARAÇÕES
ou menor do que) à diferença entre C e D. Sobre estas duas suposi- INTERPESSOAIS
ções, existe mesmo uma medida cardinal para cada indivíduo e tal
medida é independente de escolhas (preferências) envolvendo risco 1. Há pelo menos dois constrangimentos filosóficos importantes
ou incerteza. (Uma outra medida possível baseia-se numa teoria que em qualquer conjunto satisfatório de regras de correspondência para
recua até Edgeworth; esta medida também é independente de riscos e comparações interpessoais. A não ser que estas sejam realizadas, ainda
1 1 de incertezas17.) Assim, a medida clássica não deve ser confundida
J,
entre elas para cada indivíduo e depois somamos, tendo em conta as vantagens e
17 [Em A Theory of Justice, ed. rev., secção 49, p. 282, Rawls diz o seguinte: - Ed. «Há as desvantagens. Ver A. K. Sem, Collective Choice and Social Welfare, São Francisco:
várias maneiras de estabelecer uma medida de utilidade interpessoal. Uma delas Holden-day, 1970, pp. 93 e segs.; para Edgeworth, ver Mathematical Psychics,
(recuando pelo menos até Edgeworth) é supor que um indivíduo é capaz de só Londres: Kegan Paul, 1888, pp. 7-9, 60 e segs.]
distinguir um número finito de níveis de utilidade. Diz-se que uma pessoa é indi- 18 [Ver Rawls, A Theory of Justice, ed. rev., secção 49, pp. 283-284, para a discussão
ferente entre alternativas que pertençam ao mesmo nível de discriminação, e a sobre a definição de utilidade de Von Neumann-Morgenstern e para problemas
medida cardinal da diferença de utilidade entre quaisquer duas alternativas é defi- com comparações interpessoais de utilidade. - Ed.]
nida pelo número de níveis distinguíveis que as separa. A escala cardinal resul- 19 Quando os economistas falam de «acrescentar utilidades na margem» querem
tante é única, como deve ser, até a uma transformação linear positiva. Para dizer algo como isto, e precisamente isto se supusermos que os ganhos e as perdas
estabelecer uma medida entre pessoas poder-se-ia assumir que a diferença entre (medidas em bens e serviços) são suficientemente pequenos para que a utilidade
níveis adjacentes é a mesma para todos os indivíduos e a mesma entre todos os marginal de cada indivíduo permaneça aproximadamente constante relativamente
níveis. Com esta regra de correspondência interpessoal os cálculos são extrema- ao intervalo todo de possíveis ganhos e perdas medidos em bens e serviços, etc.
mente simples. Ao compararmos alternativas, verificamos o número de níveis [Esta frase foi retirada dos apontamentos manuscritos da palestra de Rawls. - Ed.]

460 461
\1'
1

não definimos uma visão utilitária plausível. O primeiro constrangi- porque conseguimos estabelecer alguma medida interpessoal até
mento é que as regras de correspondência devem ser tanto significati- agora não prova nada: esta medida deve definir um objetivo que,
vas como aceitáveis do ponto de vista moral interpretado pela forma numa perspetiva filosófica, a teoria diz que deveríamos maximizar,
particular de utilitarismo em questão - no presente caso, a doutrina ou um que pudéssemos aceitar. Se a medida interpessoal tiver impli-
clássica rigorosa. Nenhum tipo de correspondência será admissível. cações inaceitáveis, presumivelmente o utilitário terá algo diferente
Além disso, todas as regras de correspondência parecem envolver em mente. O objetivo então é o seguinte: qualquer esquema de
algumas suposições éticas bastante fortes, ou pelo menos suposições regras de correspondência tem, aparentemente, implicações éticas,
com implicações éticas, e estas pressuposições devem estar de acordo (a) por via das implicações do princípio resultante, e (b) através da
com a visão em questão. integração de noções éticas nas regras de correspondência; e tem
2. Para ilustrar: há a conhecida regra zero-um, a qual diz: assu- implicações éticas mesmo que o esquema aparentemente não envolva
mindo que temos medidas cardinais individuais, e assumindo que nenhumas noções morais ou princípios. Tem-nas porque estabelece
estas medidas são limitadas acima e abaixo, juntemos estes limites um objetivo que devemos maximizar; e para fazê-lo como o único
. j
equivalentes inferiores e superiores com zero e um, respetivamente . fim de instituições e ações. Para além disso, por vezes pode tornar-se
l l··
Isto estabelece uma medida cardinal interpessoal, mas trata-se de claro que algumas conceções éticas estão integradas nas regras de
uma medida que queremos? Será que define um objetivo que quere- correspondência, por exemplo, a regra de 0-1 é uma forma de dizer
l; (
mos maximizar (dada a visão utilitária)? Pensemos nisto à luz do que seres sensíveis têm direitos iguais, ou (talvez melhor) reivindica-
seguinte exemplo extremo (e, sem dúvida, não sério): este exemplo ções iguais para maximizar a satisfação? Para contrastar este caso
tem o mérito de exibir claramente a dificuldade. Consideremos uma com a resposta de Mill a Spencer: os prazeres na qualidade das suas
sociedade que no tempo t 0 consiste em n pessoas e m gatos aproxima- propriedades intrínsecas de intensidade e duração (digamos) são
damente iguais em número (cada pessoa tem o seu gato, por assim iguais independentemente da pessoa a que pertencem. No exemplo
dizer). Incluindo todos os seres sensíveis, vamos escrever: acima descrito, dizemos simplesmente: a variedade total de prazeres
Para maximizar: humanos (sobre todos os indivíduos) é igual (por estipulação) à
variedade total de prazeres felinos (sobre todos os gatos) indepen-
dentemente das variações entre indivíduos humanos ou entre indiví-
duos gatos, ou entre gatos e pessoas. O que justifica esta estipulação?
Uma quantidade de maná X cai em cada semana hicksiana20 Se rejeitarmos a regra 0-1 para gatos e pessoas, qual é a razão cor-
(período de tempo): como distribuí-lo? Bem, é mais fácil para os gatos reta? A regra 0-1 aplica-se a todas as pessoas? Devemos ambicionar
se aproximarem do ponto de felicidade (u = 1) do que as pessoas prazeres simples, como imp~ica a regra 0-121?
(adotando a regra 0-1), assumamos. Por isso, talvez ao longo do 3. Segundo, o esquema de correspondência (para comparações inter-
tempo, nós maximizamos a soma de utilidades reduzindo a razão de pessoais) não deve envolver noções ou princípios éticos que dependam
n/ m para que no tempo t* (o ideal) haja relativamente poucas pessoas das noções de direito ou de valor moral. A razão para isto é que a dou-
recolhendo e distribuindo o maná a muitos gatos quase abençoada- trina clássica introduz o conçeito de direito como o de maximização de
mente felizes. (Presumo que a quantidade de maná seja fixada em X uma noção de bem definida independentemente. (Esclarece.;.se isto
para todos t.) A explicação desta conclusão é qu~ os gatos são produ- dando exemplos: hedonismo, excelência humana, etc.)
tores de utilidade mais eficientes por unidade, de X, se usarmos a Podemos ter concluído que a regra 0-1 pode envolver uma noção
regra do 0-1. ética, de direitos ou reivindicações iguais, por exemplo, à satisfação
Este exemplo não é oferecido como uma objeção séria, mas sim (maximizada). É claro que não se trata de nenhuma objeção à visão que
para trazer a dificuldade para casa intensamente. Nomeadamente, só usa o princípio resultante; mas precisamos de esclarecer que este prin-

20 [John R. Hicks (1904-1989), um economista britânico que ganhou o Prémio Nobel 21 [Ver A Theory of Justice, ed. Rev., pp. 284-285, para uma discussão relacionada de
juntamente com Kenneth Arrow em 1972. - Ed.] suposições de valor que estão na base de comparações interpessoais.]

462 463
cípio já não é o princípio clássico de utilidade: é algo diferente. In- que os princípios que definem estas conceções são violados por estas
troduzimos um princípio de reivindicações iguais para todos os seres desigualdades. Tal argumento não é permitido pelos constrangimentos
sensíveis (ou humanos); e onde conseguimos isso? Não que seja a sobre a visão clássica. O que um utilitário clássico deve argumentar, em
melhor maneira de maximizar a utilidade; pois usámo-lo para definir- alternativa, é que certas desigualdades causam tanta inveja e angústia,
mos utilidade. Por isso, é talvez um primeiro princípio básico; se assim ou tanta apatia e depressão (todos eles estados de espírito desagradá-
é, então isto precisa de se tornar explícito. Finalmente, porquê acrescen- veis), que o maior equilíbrio de felicidade é geralmente alcançado elimi-
tar utilidades? Porque não aceitar o maior produto de utilidades, que nando estas desigualdades. Mesmo tendo em conta estas emoções
normalmente resulta em menos igualdade na distribuição da utilidade? morais, devemos pesá-las apenas pela sua intensidade e duração en-
4. Uma vez mais digo que as suposições padrão que os escritores quanto emoções que são. Será isso apropriado?
utilitários usam frequentemente poderão ser formas encobertas de in- 6. Um outro exemplo para ilustrar a forma em que as noções
troduzir ou acrescentar primeiros princípios22. Isto depende de como morais podem ser incluídas em funções de utilidade individuais é o
estas suposições são usadas e justificadas. Se forem seguidas indepen- seguinte: suponhamos que incluímos uma variável que representa a
dentemente dos factos reais de psicologia individual, então neste avaliação dos indivíduos, ou a atitude para com eles, da distribuição
ponto são primeiros princípios e, com efeito, significam: tratar sempre existente de bens, ou mesmo de satisfação (assumimos que todos os
as pessoas como se estas suposições sejam para se manter. Se assim indivíduos sabem de que se trata esta distribuição). E assumimos que,
for, os primeiros princípios devem ser explicitamente notados e, uma para este propósito, a caraterística relevante da distribuição existente
vez mais, já não temos a doutrina clássica rigorosa23. bàseia-se no gini-coeficiente: cada indivíduo está satisfeito ou insatis-
5. Finalmente, um exemplo mais subtil do mesmo problema é o feito de acordo com o grau de desigualdade medido por este coefi-
seguinte: devemos ter cuidado para contar entre prazeres ou satisfações ciente24. Ficam mais satisfeitos à medida que a igualdade aumenta,
apenas estados de consciência ou emoções que são devidamente carate- sem haver alteração do resto, apesar de os indivíduos poderem diferir
rizados, ou seja, apenas pelas noções de bem e não morais. Assim, não é no desejo pela igualdade. Então cada ui assemelha-se a algo como isto:
por causa de nenhum argumento contra determinadas desigualdades,
Ui= Ui (X, I, G) e para maximizar L Ui conforme a definição
digamos, numa perspetiva utilitária que as pessoas se ofendem com
elas, ou que estas desigualdades as tornam indignadas. Pois a ofensa e a
onde X é um vetor de bens; I é rendimento e G é o gini-coeficiente.
1 1 indignação são emoções morais: elas implicam que o indivíduo afirme
Aqui podemos assumir que (para simplificar) temos, para cada
alguma conceção de direito e justiça, etc., e pressupõem a convicção de
indivíduo, curvas de indiferença aproximadamente iguais às da fi-
gura 10.
22 Ver Maine, Lectures on the Early History of Institutions, pp. 399s. [Ver A Theory of Este esquema pode integrar-se tanto numa teoria ordinal como
Justice, ed. rev., p. 285, onde Rawls diz o seguinte acerca desta mesma referência: - cardinal. Para os nossos objetivos aqui, assumamos que as curvas de
Ed.] «As suposições de Maine sobre as suposições utilitárias padrão são oportunas
aqui. Ele sugere que os fundamentos para estas suposições são claros quando
indiferença têm medidas cardinais significativas que se conjugam apro-
compreendemos que são simplesmente uma regra de legislação de trabalho, e era priadamente, através das regras da correspondência, com as medidas
assim que Bentham as considerava. Dada uma sociedade populosa e razoavel- de outros indivíduos (as comparações interpessoais são válidas).
mente homogénea e uma legislatura moderna energética, o único princípio que
pode guiar a legislação em grande escala é o princípio de utilidade. A necessidade
de negligenciar diferenças entre pessoas, mesmo as muito reais, leva ao princípio 24 [O gini-coeficiente, atribuído a Gini (1912), é uma medida de desigualdade. «Há
de contar todos por igual, e à semelhança e postulados marginais. As convenções várias formas de definir o gini-coeficiente e um pouco de manipulação [ ... ] revela
para comparações interpessoais devem certamente ser julgadas à mesma luz. que é exatamente metade da diferença média relativa, que se define como a média
A doutrina do contrato defende que tendo compreendido isto iremos também aritmética dos valores absolutos de diferenças entre todos os grupos de rendimen-
compreender que é melhor que a ideia de medir e calcular o bem-estar seja inteira- tos. [... ] De facto, um atrativo do gini-coeficiente, ou da diferença média relativa,
mente abandonada.» reside no facto de que se trata de uma medida muito direta de diferença de rendi-
23 Cf. Lionel Robbins, The Nature and Significance of Economic Science, Londres: mentos, registando as diferenças entre todos os grupos de rendimentos.» Amartya
Macmillan, 1932, p. 141. Sem, On Economic Inequality, Oxford: Oxford University Press, 1997, pp. 30-31.] ~

464 465
1.
1 i
111

'! iii) Convicções de justiça na distribuição e de qual conceção


III>II>I mais especificamente;
Q)

~- iv) Visões acerca da oportunidade de uma maior igualdade para


E
Q)
a estabilidade social;
o v) Visões acerca da oportunidade geral de redução de inveja e
"'O
ro
Q)
(/) depressão;
ro
e vi) Visões sobre prevenir contra possíveis perdas no futuro de
cu uma pessoa: o risco de aversão a maiores desigualdades e,
§
cu portanto, um desejo de estabelecer uma política pública de
~
.9 menos desigualdade;
e:
Q)
E

e: e) Os últimos três são compatíveis com constrangimentos teleoló-
Q)
a: gicos enquanto os primeiros três, com a possível exceção do pri-
meiro, i), não são.
Gini-coeficiente
FIGURA 10 Do ponto de vista da teoria moral, o que queremos saber não é a base
Curva EH= rendimento máximo (dado gini-coeficiente)ª em que as pessoas realmente têm a distribuição em conta (presumivel-
Logo H =rendimento máximo (sobre todos os gini-coeficientes) mente todas as razões acima mencionadas e mais influenciam este ou
Logo M =ponto mais preferido (para o indivíduo i)b aquele indivíduo), mas, com que fundamento pensam que deveriam tê-
a. [notas sobre o gráfico: E designa o ponto de intersecção entre o eixo vertical e a curva EH; la em conta. E o que são a este respeito as suas conceções morais. Assim,
M designa o ponto de intersecção entre a curva EH e II; H designa o ponto de intersecção em particular, que tolerância traz o utilitarismo clássico à distribuição?
entre a curva EH e I. - Ed.]
b. Cf. Williams Breit, «Incarne Redistribution and Efficiency Norms», em Hochman e
Peterson, Redistribution Through Public Choice, 1974.
§ 5. ALGUNS ASPETOS REFERENTES AOS MAIORES
Agora o objetivo é o seguinte: podemos formalmente prosseguir NÚMEROS E FELICIDADE E TOTAL MAXIMIZAÇÃO
para maximizar a diferença líquida de utilidade. Mas a teoria já não é VS. UTILIDADE MÉDIA
teleológica no sentido necessário:
a) Ao incluírem uma entrada para o gini-coeficiente, os indivíduos 1. Aparentemente, a expressão «a maior felicidade para os maiores
têm em consideração a distribuição. De repente é como se tives- números» aparece primeiro em Francis Hutcheson, An Inquiry Concerning
sem um princípio padrão do primeiro tipo [um princípio ba- Moral Good and Evil (1725), sec. m, § 8. Esta expressão já deu lugar ocasio-
seado no padrão de distribuição representado por alguma nalmente a alguma confusão quanto à possibilidade de o princípio de uti-
propriedade calculada a partir da distribuição de bens e rendi- lidade nos direcionar para maximizar prazeres totais, ou para maximizar
mentos (os X's e l's)]; o número de pessoas, ou uma mistura ponderada de ambas as situações.
b) Precisamos de saber em que base os indivíduos estão realmente A doutrina clássica é clara: devemos maximizar prazeres totais (a dife-
a ter em conta a distribuição. Será que a sua resposta a G se rença líquida do prazer sobre a dor). A longo prazo os números (ou o
baseia realmente em: tamanho da sociedade) são para serem ajustados em conformidade. Isto é
o que diz a visão clássica. Maximizar uma mistura ponderada de prazer
i) Benevolência e temperamento compreensivo; líquido (total) e números representa uma visão intuicionista e não faz parte
ii) Convicções morais provenientes de uma visão dos deveres da doutrina clássica. Talvez devesse ser dito também que o disparate atri-
de beneficência; buído ao utilitarismo de Bentham por Von Neumann e Morgenstem (l).a

466 467
2.ª edição de Theory of Games, 1947), nomeadamente, que Bentham queria gua) inglesa desde a metade do segundo decénio (pelo menos) do
maximizar duas coisas de uma vez, agregando felicidade e números, é século xvm; e a sua ligação estreita com a teoria social, especialmente
incorreto. Nem Bentham, Edgeworth ou Sidgwick cairiam nessa patetice. teoria e economia política: nada em lado nenhum se aproxima deste
2. Segundo, há a questão que devemos maximizar a utilidade total padrão de caraterísticas.
ou a utilidade média (bem-estar per capita sobre os membros da socie- De igual modo, devemos perceber que, com alguma mas não
dade). Mais uma vez, aqui a visão clássica é perfeitamente clara: deve- muita qualificação, os utilitários importantes tentaram conceber, em
mos maximizar a utilidade total e não a média. Claro que as duas são reação a Hobbes, uma teoria moral aceitável para uma sociedade se-
iguais a curto prazo com n fixos (n = população da sociedade). Mas a cular com as caraterísticas do mundo moderno. A sua reação a Hob-
longo prazo n não é fixo, e sob certas condições as visões total e média bes (em contraste com a resposta cristã ortodoxa, por exemplo, de
dão resultados diferentes para a política de população ou até para Cudworth) destaca este aspeto do seu trabalho: eles representam a
quaisquer políticas sociais, na medida em que influenciam o tamanho primeira teoria moral e política moderna.
da população (através, por exemplo, de efeitos na taxa de nascimentos, 2. Segundo, analisei Sidgwick como o último dos principais uti-
de óbitos, etc.). Entre as condições na determinação do tamanho da litários clássicos rigorosos: o trio Bentham-Edgeworth-Sidgwick.
população, a taxa relativa na qual a utilidade média diminui se a popu- A apresentação de Sidgiwck é a mais detalhada; ele está totalmente
lação aumentar é crucial. Se a utilidade média cair suficientemente ciente da maioria (pelo menos) dos problemas (ao contrário de outros
devagar, a perda na média pode sempre ser menos do que o ganho no utilitários contemporâneos). É preciso reconhecer as muitas complica-
total partindo de números maiores, por isso uma pessoa pode teorica- ções na formulação do que parece à primeira vista um princípio (con-
mente ser levada para uma população muito grande de utilidade muito ceção) bastante simples. Na verdade, a simplicidade inicial torna a
baixa (para cada indivíduo, positivo >O); em vez de uma população complexidade mais fácil de entender.
muito mais pequena que iria maximizar a utilidade média. Prova- 3. Finalmente, abordámos rapidamente algumas das questões que
velmente, o utilitarismo não é, contudo, um princípio exequível para a se levantam com o estabelecimento de comparações interpessoais de
política populacional de qualquer modo. Se assim é, então a questão é: bem-estar. Isto serviu meramente para realçar os problemas, para ilus-
como é que o utilitário clássico obtém uma visão completa? trar as dificuldades. Por exemplo, a regra 0-1 não é sequer, creio eu,
Devemos observar que Sidgwick é claro acerca destes dois aspe- aproximadamente satisfatória em todos os seres sensíveis apesar de
tos. (Ver ME, pp. 415 e segs.) Este é o motivo, entre outros, pelo qual ser melhor nos seres humanos. Mas mostra onde existem muitas difi-
digo que Sidgwick é o melhor representante da visão clássica: está culdades profundas. Não iremos desenvolver estas questões agora.
ciente de todos estes tipos de aspetos e resolve-os de cada vez sendo Porém, devemos ter consciência dos problemas.
consistente com essa visão. Repare-se novamente que se dissermos
que é a utilidade média em vez da total que deve ser maximizada,
parece estarmos a introduzir um primeiro princípio novo ou distinto. APÊNDICE À PALESTRA III:
Porque se o prazer sozinho é o único bem, parece claro que devemos
maximizar a soma dele. Porque é que neste caso a média é impor- REFERENTE A COMPARAÇÕES INTERPESSOAIS
tante? CARDINAIS
Objetivos: os principais objetivos são estes:
§ 6. OBSERVAÇÕES FINAIS
1) Precisamos de duas coisas para aplicar o princípio utilitário:
1. É importante dar ênfase ao objetivo das observações anteriores. a) Uma medida cardinal para cada indivíduo;
As considerações históricas introdutórias são para realçar a longa b) Regras de correspondência significativas para correlacionar
continuidade da tradição utilitária; o seu domínio surpreendente (em estas medidas: pelo menos a comparabilidade unitária.
pelo menos três aspetos) sobre o percurso da filosofia moral (de lín-

468 469
2) Medidas cardinais vs. ordinais: correta, não exatamente, mas até aproximadamente? Muito
aproximadamente?
a) As ordinais definem simplesmente uma ordem completa de
b) Se a regra 0-1 deixar de valer para pessoas e gatos, é válida para
melhor e pior, mas não quão pior ou melhor;
todas as pessoas? Porque é que as razões que nos levam a
b) As cardinais definem um zero e uma unidade e dizem quantas
rejeitá-la pela correspondência pessoas-gato não conseguem
unidades entre níveis;
levar-nos a rejeitá-la entre diferentes tipos de pessoas? E nós
e) Não há nenhuma escala única mas todas as escalas em me-
podemos, ou devíamos, aceitar esta implicação? Mais uma vez,
didas cardinais estão relacionadas através de transformação
quão consistentes são as razões de rejeição com a visão utilitária
linear positiva (escalas de temperatura, por exemplo). Nas
clássica? Elas envolvem uma doutrina das diferentes qualidades
ordinais há transformação monotónica positiva.
do prazer de uma forma que o utilitarismo não consegue permi-
tir? (Por exemplo, J. S. Mill, apesar de a sua visão não ser clara);
3) Nas medidas individuais cardinais clássicas, exemplo Sidgwick:
e) A regra 0-1 implica termos de cultivar prazeres simples e facil-
ME, Liv. III, cap. II: mente satisfeitos como uma questão de política social? Ou mais
a) Os indivíduos podem classificar níveis de bem-estar através ainda: tipos simples de pessoas que facilmente ficam felizes
de introspeção (ordenação completa); com alguns recursos sociais?
b) Os indivíduos podem classificar diferenças entre níveis de d) Que princípio moral está implícito na regra 0-1: trata-se de
introspeção (ordenação completa de diferenças entre níveis). igual reivindicação ou de satisfação máxima por parte de todos
Estes [(a) e (b)] dão uma medida cardinal individual; os seres com capacidade para a satisfação?
e) Ao fazerem estas classificações, nenhuma escolha ou decisão,
envolvendo risco ou incerteza, estão envolvidas. A regra 0-1 é uma forma útil para ilustrar simplesmente o pro-
blema de comparações cardinais interpessoais. E a conjetura é que
4) Quanto a regras de correspondência: são necessárias para serem qualquer esquema de regras de correspondência parece incorporar
compatíveis com as medidas de indivíduos distintos25: suposições éticas profundas que são difíceis de retirar do utilitarismo.
É aqui que a complexidade do utilitarismo começa a surgir.
a) Nível de comparabilidade é uma combinação de níveis;
b) A comparabilidade unitária é uma combinação de unidades
(quantas unidades do indivíduo A= 1 unidade do indivíduo
B);
e) Comparabilidade total = nível mais unidade. Para a aplicação
PALESTRA IV
do utilitarismo só precisamos da comparabilidade unitária
(o utilitarismo só está interessados em totais, não em níveis). RESUMO DE UTILITARISMO
(1976)
5) Regra zero-um como ilustração:
a) Se calcularmos as consequências desta regra para uma socie-
dade de pessoas e gatos, obtemos o que poderão ser resul- 1. Nas últimas três aulas temos andado a discutir a doutrina utili-
tados estranhos. Mas, se rejeitarmos a regra para a corres- tária clássica formulada por Sidgwick em Methods of Ethics26. (Pen-
pondência pessoas-gato, porque é que o fazemos? Será que é semos nisto como o utilitarismo B-E-S, apesar de haver variações
por não querermos ser escravos de gatos? E qual é a razão
26 [As observações que se seguem, intituladas «Transition from Utilitarianism», cons-
25 Aqui cf. Amartya Sen, Collective Choice and Social Welfare, São Francisco: Holden- tituem a primeira secção de uma palestra de 1976 sobre «Locke e a Doutrina do
-Day, 1970, caps. 7 e 7*. Contrato Social». - Ed.]

470 471
entre eles. A afirmação de Sidgwick é a mais completa e consistente. Devemos reter estas caraterísticas na nossa mente. Ao longo destas
Ele leva a visão clássica aos seus limites filosóficos.) palestras tentei sublinhar as ideias simples, fundamentais e intuitivas
Recordemos que a visão utilitária clássica diz para maximizar: que parecem guiar o desenvolvimento e formulação de conceções éti-
cas e políticas. Assim compreendido:
O utilitarismo clássico evolui a partir da noção de maximização
do bem; adapta-se prontamente à ideia de usar todos os meios para
em que i = indivíduos e j = períodos de tempo a promoção do bem da melhor forma (a administração mais racional
de instrumentos e recursos sociais).
onde para cada uif
a) O número real representa uma medida cardinal interpessoal Tal é a estrutura da visão clássica.
de bem-estar líquido para o indivíduo i no período j e onde 3. Ao discutirmos esta doutrina sugeri que a sua simplicidade
este bem-estar líquido é interpretado hedonisticamente como a pode ser enganadora:
emoção desejável e aspeto de consciência (cf. ME, I: ix; II: ii; a) Na definição do próprio bem, que medida são os ui/ s, devemos ser
III: x); cuidadosos de modo a tolerarmos os constrangimentos de uma
b) Esta medida cardinal baseia-se na introspeção: avaliação pelo teoria teleológica: os ui{ s não podem incluir um ajustamento por
indivíduo [que supostamente pode ordenar níveis de bem-estar e emoções de ressentimento, ou aversões desinteressadas ao disparate
também ordenar diferenças entre estes níveis: e tudo isto por jul- (Sidgwick); por atitudes relativamente à distribuição (gini-coefi-
gamentos que não envolvem risco e incerteza (contra a medida ciente ), e assim sucessivamente;
cardinal de utilidade de Von Neumann-Morgenstern)]; b) Os procedimentos de comparações interpessoais podem eles pró-
c) A caraterização dos ui/ s é teleológica: nenhuma noção do direito prios incorporar princípios de direito, que depois precisam de se
é necessária para a definição de utilidades. tornar explícitos e exigir uma explicação: a regra zero-um, por
exemplo; outras suposições padrão;
2) A ideia intuitiva do utilitarismo clássico tem um número de c) Que os ui/s devem ser somados em vez de, por exemplo, multi-
caraterísticas atrativas. De facto, pode parecer autoevidente que o que plicados é em si mesmo uma suposição ética; apenas a soma é
devíamos fazer é maximizar o bem; ou, afinal de contas, que devía- indiferente à distribuição, por exemplo;
mos sempre praticar essa ação que, nas circunstâncias, irá muito pro- d) Para além disso, todos os vários constrangimentos a), b), c)
vavelmente ter as melhores consequências. O utilitarismo clássico acima mencionados podem naturalmente sugerir, ou até forçar,
parece ser uma forma clara de formular esta visão. uma certa conceção da pessoa: a de uma pessoa-contentor, por
Assim formulada, tem muitas caraterísticas assinaláveis: exemplo (segundo o que se encontra em Sidgwick).
a) É um princípio singular que maximiza a conceção;
b) Assim, não precisa de regras de prioridade, em teoria; todas as Assim, o pensamento é este: se prestarmos atenção ao que está a
regras de funcionamento são aproximações, métodos práticos acontecer na doutrina clássica, percebemos que não é assim tão sim-
de fazer as coisas, etc; ples como poderá parecer à primeira vista. É claro que não se trata de
c) É uma conceção completamente geral, aplicando-se uniforme- nenhuma objeção. Mas alerta-nos para o facto de que qualquer conce-
mente a todos os sujeitos; ção política razoável terá de ter uma estrutura complexa, mesmo que
d) Só tem uma noção básica - o bem; e depois introduz outras se desenvolva realmente a partir de alguma ideia simples e intuitiva.
(direito e valor moral) através da ideia de maximização; Presumivelmente, a teoria do contrato social irá mostrar as mesmas
e) Parecia com frequência que era prontamente exprimível em caraterísticas.
forma matemática adequada ao raciocínio usando o cálculo, e 4. Um último comentário sobre a utilização da noção de função de
assim tem sido usada em economia. utilidade. Este termo é frequentemente usado (em economia e nout~as

472 473
áreas) como representação matemática das preferências, escolhas, mos desta função, poder-se-á dizer: as pessoas julgam como se pen-
decisões, etc., de alguém. Por exemplo, uma pessoa poderia usar uma sassem que em cada caso a sociedade deveria esta função, promover
função de utilidade para representar as decisões, ou julgamentos, de as melhores consequências (definidas por esta função).
um intuicionista (TJ, § 7). Ou estas funções poderiam ser usadas para Porém, esta forma de falar não implica nenhuma conceção política
representar as decisões sociais coletivas tomadas por uma sociedade; específica. A questão então é: qual é a forma, ou quais são as caraterís-
ou pelos seus membros quando fazem escolhas através da sua consti- ticas especiais desta função; e que conceções e princípios estão por
tuição. detrás dela no pensamento e julgamentos dos agentes (indivíduos e
Na minha opinião, é deveras lamentável que a noção de função de sociedade)?
utilidade seja usada desta forma abrangente: seria muito melhor fazer
o seguinte:
a) Adotar algum outro termo apropriado em cada caso: tal como,
função objetiva (múltipla); função de decisão social; ou função de
escolha constitucional. Evitemos termos como «utilidade» ou
«funções de bem-estar» que têm conotações especiais e restritivas;
b) Perceber que essas funções objetivas, de decisão ou de julga-
mento representam ou descrevem meramente tendo em conta os
propósitos de alguma teoria o que são as escolhas ou decisões
de alguns agentes (o agente pode ser uma pessoa, uma em-
presa, uma associação, uma sociedade, etc.) A função pode não
ter em conta de forma alguma o modo como este agente decide,
ou que complexo de princípios eles realmente empregam. Ve-
jamos, por exemplo, o caso de uma função-julgamento intuicio-
nista;
11
c) Vejamos que o problema do ponto de vista da teoria moral não
1
!
1 é a representação em sentido restrito, mas sim entender o com-
plexo de princípios que entram nos julgamentos realmente reali-
zados e regulam-nos, ou o que poderia ser feito em equilíbrio
refletivo.
d) De igual modo, matematicamente falando, a função-representa-
ção pode ser tal que não há nenhum sentido natural em que ela
descreva o agente a maximizar o que quer que seja. Pode haver,
por exemplo, objetivos múltiplos ou ordenações lexicais (ne-
nhuma função representativa contínua).
e) Finalmente, não teremos uma teoria utilitária clássica a não ser
que a função-representação siga todas as restrições da teoria
teleológica apropriada.

Para resumir o principal objetivo em geral:


Os julgamentos morais e políticos de qualquer pessoa podem,
assumamos, ser representados por uma função matemática. Em ter-

474 475
CINCO PALESTRAS SOBRE JOSEPH BUTLER
PALESTRAI
A CONSTITUIÇÃO MORAL
DA NATUREZA HUMANA

§ 1. INTRODUÇÃO: VIDA (1692-1752),


OBRAS E OBJETIVOS
1. Joseph Butler nasceu em Wantage, Berkshire, em 1692. O seu
pai era presbiteriano e pretendia que o filho integrasse o sacerdócio
presbiteriano. Butler frequentou uma conhecida academia dissidente
em Gloucester (mais tarde mudou-se para Tewksbury), onde, a seu
tempo, decidiu converter-se à Igreja de Inglaterra. Em 1714, na idade
bastante madura de 22 anos, entrou no Oriel College em Oxford,
como plebeu, e tirou o seu curso de letras em 1718. Neste mesmo ano
foi ordenado diácono e depois sacerdote pelo bispo Talbot em St.
James, Westminster. Também nesse ano, 1718, passou a ser pregador
em Rolls Chapel, Londres - uma posição que ocupou até 1726.
Durante estes anos escreveu a obra Sermons, da qual ainda depende a
sua grande reputação em filosofia moral. Foi primeiro publicada em
1726. Butler desempenhou vários outros cargos, acabando por setor-
nar bispo da rica Sé Catedral de Durhamem 1750. Morreu dois anos
mais tarde.
Para além de Sermons, Butler é muito conhecido pela sua obra
mais tardia, The Analogy of Religion, publicada dez anos depois de
Sermons, em 1736. Não irei dizer muito sobre este trabalho, mas é
importante mantê-lo presente nas nossas mentes, pois conta-nos
muito acerca das conceções contextuais de Butler e do enquadra-
mento de ideias em que a sua filosofia moral deve ser entendida.
Esquecer este contexto é precisamente o tipo de erro que quero evitar

1
477

,!
.1
na interpretação. Deveria acrescentar que Analogy contém dois breves É um conservador, um defensor de princípios e convicções cristãs
apêndices, um sobre identidade pessoal, o outro uma breve disserta- razoáveis. Não precisamos de filosofia para a vida prática em socie-
ção (como ele lhe chama) sobre a virtude. Também iremos ler estes dade; precisamos dela, contudo, quando a base da nossa vida prática é
últimos. atacada por meios filosóficos. Devemos, por assim dizer, lutar contra a
2. Apesar de conseguirmos perceber através do seu estilo que filosofia com a filosofia, e só com a filosofia até ser necessário.
Butler não gostava de controvérsias desconexas e agitadas, as suas
obras são, no entanto, concebidas para refutar certas visões e escrito-
res definitivos da sua época. Os objetivos de Butler eram práticos no §2. OS ADVERSÁRIOS DE BUTLER
sentido que se segue:
a) Ele não se incomodava a comprovar verdades que ninguém Podemos dividir os adversários de Butler em dois grupos, a saber:
negava. Não se interessava de forma alguma por novas e ele- 1) Certos filósofos morais, especialmente Hobbes, mas também
gantes formas de estabelecer verdades recebidas; Shaftesbury e Hutcheson, entre outros. Em Sermons, onde as
b) Ele só ataca o que considera perigoso, ou seja, moralmente cor- referências são explícitas, torna-se claro o que os separa. O seu
rupto ou com tendência para corroer convicções e virtudes principal antagonista é Hobbes e os vários escritores influencia-
necessárias à sociedade humana, ou a integridade da fé cristã. dos por ele, ou que expressaram visões semelhantes, tais como
Butler é essencialmente um apologista no velho sentido: um Mandeville. Relativamente a Hobbes, é útil como esquema
defensor de princípios e convicções razoáveis. Para ele, a filoso- olhar para a história da filosofia moderna e vê-la a começar com
fia é uma proteção, como também é, mas de uma forma interes- ele. Era considerado na sua época como a expressão mais dra-
santemente diferente, para Kant; mática da infidelidade moderna, o que não admira, visto o
e) Butler assume sempre como premissas as que defende em enorme poder do seu livro The Leviathan, que é talvez a maior
comum com os seus oponentes. Fica satisfeito por reconhecer obra sobre filosofia moral e política escrita em língua inglesa,
suposições partilhadas e defender princípios e convicções religio- apesar de a sua principal tese ser considerada falsa. Pelo que se
sas razoáveis a partir desta causa comum. O seu estilo é respeita- compreende, as doutrinas hobbistas implicam materialismo,
dor e moderado, apesar de ocasionalmente incluir afirmações determinismo e egoísmo. Pensava-se que ele negava uma base
fortes relativamente a consequências perniciosas das visões que razoável para princípios - assim, Hobbes envolveu amoralismo
está a atacar. e um reconhecido cálculo racional de interesses como o único
tipo de deliberação prática ou racional. Também se pensava que
3. O temperamento filosófico de Butler também é prático noutro ele baseava a obrigação política em relações de poder, e que
sentido: interessa-se pouco por questões metafísicas ou epistemológi- negava qualquer base objetiva ou partilhada para princípios.
cas ou de outra ordem filosófica para bem delas. Evita subtilezas filo- Cabia ao Soberano decidir sobre o conteúdo das leis da socie-
sóficas; questões especulativas estão para lá do nosso alcance. Há dois dade, que representam, portanto, convenções públicas aplica-
capítulos em Analogy cujos títulos expressam esta atitude: Parte I, das pelo monopólio de poder do Soberano quando este último
capítulo 7, «Governo de Deus, Considerado um Esquema ou Consti- é efetivo.
tuição Imperfeitamente Compreendido», e Parte II, capítulo 4, «Cris- Butler preocupa-se muito manifestamente contra esta visão (tal
tandade, Considerada um Esquema ou Constituição Imperfeitamente como Cudworth e Clarke, e os utilitários, Shaftesbury, Hut-
Compreendida». cheson e Hume). Preocupa-se com esta tarefa não só naqueles
Assim, o objetivo prático de Butler é simplesmente confirmar-nos lugares onde Hobbes é explicitamente mencionado (por exem-
;:
na nossa prática moral e religiosa na vida quotidiana. Não se preocupa plo: Sermon I: 4, nota de rodapé), mas a conceção da constitui-
com a elaboração de novos valores morais ou planear uma nova base ção da natureza humana de Butler é, em si própria, a peça
li para as virtudes morais, e de forma semelhante para a prática religiosa. central desta resposta. É claro que difere de Hobbes (conforme
1:

11

li'
1 I 478 479
1 li
1'1
é interpretado) ao atribuir à natureza humana um princípio d acerca da supremacia da consciência e das reivindicações de
A • e
b enevo Iencia e o supremo princípio da consciência que nos um amor-próprio sereno e razoável. A possibilidade de ser con-
conduz para as virtudes morais e incita-nos a agir a partir dela sistente pode depender destas suposições contextuais. Regres-
,. . b s saremos a isto mais tarde.
para o seu propno em.
Para além destas diferenças evidentes, há uma mais básica
nomeadamente: Hobbes tinha desenhado uma imagem d~
natureza humana que frequentemente nos descreve como não § 3. A CONSTITUIÇÃO MORAL
sendo adequada à sociedade - como se fosse levado pela vai-
DA NATUREZA HUMANA
dade e pelo desejo de glória e ostentação própria. Mesmo
~ nos.sa razão é um acaso para nós; leva-nos a especular e a
Chegámos ao principal tópico para o dia de hoje. Mas, primeiro,
imagmar que podemos compreender mais coisas e conduzir
permitam-me fazer uma observação acerca do conteúdo do prefácio e
a sociedade melhor do que qualquer outra pessoa. A nossa
dos primeiros três sermões.
razão. torna~n?s fanáticos (!"fobbes tem em mente pregadores
1. O prefácio foi acrescentado na segunda edição e apresenta uma
de seitas rehg10sas) e a sociedade ingovernável, a não ser que
análise das principais teses de Sermons. A proeminência dada à consti-
reconheçamos sombriamente a nossa situação e calculemos cal-
tuição da natureza humana mostra que Butler a considerava a peça
mamente tendo como base o nosso interesse fundamental na
central da sua doutrina moral. O primeiro Sermão descreve esta cons-
nossa autopreservação. O que Hobbes entendia ser a loucura
tituição mais detalhadamente; o segundo é dedicado à noção da auto-
da Cu.erra Ci:'il Inglesa reside por d~trás desta imagem da
ridade de consciência vs. a influência dos aguilhões da consciência.
nossa mcapacidade para a sociedade. E a esta imagem de nós
Trata-se de uma distinção importante que Butler tenta explicar e
próprios, incapazes para a sociedade, que Butler se opõe com a
apoiar recorrendo à nossa experiência moral. Na próxima ocasião ten-
sua conceção da constituição moral da natureza humana. Isto
tarei examinar o que ele diz aqui mais pormenorizadamente. O ter-
d~verá tornar-se claro quando delinear esta constituição daqui
ceiro Sermão aborda a questão do possível conflito entre a autoridade
a mstantes;
de consciência e o amor-próprio sereno e razoável. Butler também dis-
2) O outro grupo dos adversários de Butler, apesar de não serem
cute esta questão no prefácio: par. 29 e 41, e no Sermão XI: 20-21.
!~ 1
relevantes para nós agora, é o dos deístas ingleses do seu
2. Viremo-nos agora para a noção de uma constituição da natureza
tempo. Estes escritores atacavam a necessidade da Revelação e
humana. Butler pensa que esta noção envolve várias caraterísticas:
do Esquema da Fé Cristã (para usar o termo de Butler) baseado
na revelação. Os deístas acreditavam que a teologia natural era a) A natureza humana tem várias partes, ou psicologias, ou pode-
suficiente: a razão pode estabelecer a existência de Deus como res e disposições intelectuais.
criador do mundo e um ser de suprema inteligência e poder, e
um exemplo de justiça e benevolência. Dois destes escritores Butler distingue:
eram J?hn Toland (1670-1722) que escreveu Christianity not
i) Apetites, afetos e paixões de vários tipos, e aqui devíamos
Mysterwus; ~ Matthew Tindal, que escreveu Christianity as Old incluir ligações a determinadas pessoas, lugares e coisas,
as the Creatwn, que apareceu depois de Sermons de Butler em
incluindo instituições e tradições;
173~. São o~ras como estas que Bulter ataca em Analogy (1736).
ii) Os dois princípios gerais e racionais ou deliberativos de
Assim, assmale-se que Butler aceita como premissas a visão
benevolência e amor-próprio razoável. Há alguma ambigui-
d:í~ta, conforme o. que acabámos de afirmar. Ele parte do prin-
dade na explicação sobre benevolência de Butler; às vezes
cip10 que Deus existe como criador do mundo, etc., tanto em
descreve-a como um afeto ou paixão, e noutras como um
Se:mons como en: Analogy. Não devemos esquecer estas pre- princípio geral e deliberativo. Não se trata de uma grande
missas contextuais ao lermos e interpretarmos Sermons. Por
dificuldade, e podemos esclarecê-la quando chegarmos aos
exemplo, parece haver em Butler uma inconsistência no que diz

480 481
Sermões XI-XII. Por enquanto, vamos pensar em benevolên- 3. À primeira vista, esta comparação entre a constituição da natu-
cia como princípio geral e deliberativo (e, assim, como prin- reza humana e a organização de um relógio não parece satisfatória.
cípio de ordem superior); Nós não somos artefactos concebidos para realizar determinados pro-
iii) O princípio supremo de reflexão (como Butler diz às vezes), pósitos de seres superiores que nos fizeram para os seus fins. Mas,
do princípio de consciência. Trata-se do princípio ou do logo que dizemos isto, sabemos que Butler acredita realmente nisto;
poder de julgamento moral, e os julgamentos de consciência só para ele é que existe um único ser superior desses, nomeadamente
incitam-nos a agir a partir de virtudes morais - veracidade, Deus. Assim, falando em termos globais, somos feitos para os propó-
honestidade, justiça, gratidão e assim sucessivamente, para o sitos de Deus, apesar de estes últimos e o Seu esquema de governo,
seu próprio bem. tanto na natureza como na revelação, serem imperfeitamente com-
preendidos por nós.
b) Essas são as partes da natureza humana. A noção de uma cons- Esta doutrina religiosa poderá parecer menos estranha para nós se
tituição exige que essas partes se posicionem em determinadas observarmos os detalhes da nossa própria constituição moral. A visão
relações. São organizadas numa hierarquia e governadas ou de Butler poderia ser apresentada mais instrutivamente se dissésse-
dirigidas por um princípio regulador supremo. Com esta exi- mos o seguinte: a nossa constituição está adaptada à virtude, e esta,
gência em mente, parece que Butler descreve a relação de or- por sua vez, constitui aquelas formas de conduta que nos fazem
ganização com três níveis: o mais baixo, afetos e paixões; o adaptar à nossa vida quotidiana como membros da sociedade. O con-
seguinte, princípios gerais e racional-deliberativos de benevo- teúdo das virtudes e dos veredictos da nossa consciência dão a
lência e amor-próprio razoável; e o mais alto, o princípio de devida tolerância tanto às reivindicações da sociedade e a outras pes-
reflexão ou consciência. Assim, a ideia de uma constituição, soas, bem como às reivindicações do amor-próprio razoável (que,
para Butler, implica que seja normalmente dada uma decisão de obviamente, não é o mesmo que egoísmo). Somos seres que devem,
julgamento autorizada quando essa decisão é exigida. Atribuir em parte, preocupar-se consigo próprios, visto termos apetites, afetos
à consciência este papel regulador autorizado e supremo é dizer e ligações de vários tipos; mas também, devemos viver em sociedade
que os veredictos ou julgamentos de consciência, quando invo- tendo em conta a nossa natureza social, um aspeto a que Butler dá
cados, especificam razões conclusivas ou decisivas por aquilo ênfase repetidamente. Assim, quando este autor diz que a nossa cons-
que devemos fazer. O recurso à consciência é final; resolve a tituição está adaptada à virtude, poderá ser interpretado como se a
questão; nossa constituição estivesse adaptada a formas de conduta que nos
e) Butler julga que devemos acrescentar mais um aspeto se qui- permitem ser membros de sociedade razoáveis.
sermos aplicar a noção de uma constituição. Devemos especifi- Somos capazes de nos envolvermos em formas de vida social que
car a finalidade a que se destina a constituição da natureza dão a devida tolerância e âmbito para o nosso bem e para o dos
humana e por cuja referência a sua organização pode ser enten- outros. Visto desta forma, podemos compreender o modo como a
dida. No prefácio: par. 11, ele compara a natureza humana a noção de constituição da natureza humana se opõe a Hobbes. Iremos
um relógio. Podemos falar da constituição de um relógio por- ver mais tarde como a noção de autoridade de consciência se opõe a
que este é organizado para dizer as horas. Este propósito Shaftesbury e como a conceção do conteúdo de consciência (dos seus
ajuda-nos a compreender porque é que as suas partes são orga- julgamentos) de Butler se opõe a Hutcheson (sobre este último ver
nizadas da forma que são. De modo semelhante, Butler des- Dissertation of Virtue ).
creve a constituição da natureza humana adaptada à virtude:
as partes são organizadas como são - com o princípio de refle-
xão ou consciência autorizada e suprema - para que possamos
ser incitados a agir virtuosamente, fazer o que é correto e bom
para o seu próprio bem.

482 483
aprovamos benevolência para algumas pessoas em vez de outras, ou
PALESTRA II
desaprovamos injustiça e falsidade devido a qualquer outro motivo,
A NATUREZA E A AUTORIDADE do que meramente como um excede~te ~e felici~ade. i:rovavelmente
previsto para ser produzido pela pnmeua, e a mfehc1dade pela se-
DE CONSCIÊNCIA gunda» (par. 12).
O que interessa aqui não é sim~les~ente o fac:o de que Bu.t;er
rejeita o utilitarismo como uma exphcaçao do conteudo de coi:sc1en-
cia (como uma conceção correta de direito e virtude), mas o tipo de
§ 1. INTRODUÇÃO
argumento que usa para fundamentar a sua rejeição, e a interpretação
Na última sessão discuti a constituição moral da natureza huma- que dá da conclusão a que chega. . .
2. Assim, dois comentários preliminares: pnmeuo, o argumento
na, as suas partes ou elementos, as relações entre estas partes - como
de Butler reside simplesmente no recurso aos nossos julgamentos
são organizadas numa constituição moral pela supremacia e papel
morais de senso comum, com os quais todas as pessoas, ou quase
autoritário da consciência - e, finalmente, o fim desta constituição
todas, concordam, segundo o que ele presume. Os julgamentos que
que Butler descreve como a adaptação da nossa natureza à virtude.
tem em mente são os de qualquer pessoa correta que é imparcial e
Comentei a adaptação da nossa natureza à virtude da seguinte forma:
analisa a questão de forma serena. Usei aqu} exi:ressões de Butler, tais
a nossa natureza está adaptada à virtude, e esta, por seu turno, consti-
como: «Correta», «imparcial» e «serena». E evidente que tem como
tui aqueles princípios e formas de ação e conduta que nos fazem certas várias outras condições que não preciso de referir aqui. Cha-
adaptar à nossa vida em sociedade; ou seja, que nos preparam para memos a esses julgamentos «julgamentos considerados». Butler
nos guiarmos a nós próprios como membros da sociedade preocupa- assume-os como mais ou menos dados, ou seja, como factos comum-
dos com o modo como devemos estar com os nossos próprios interes- mente reconhecidos da nossa experiência moral. A sua doutrina
ses e os das pessoas de quem gostamos, mas capazes de dar o que é moral reside neste recurso à experiência moral, por oposição à revela-
devido mesmo para os interesses e preocupações de outros. A nossa ção ou a visões filosóficas e racionalistas. Apesar de aparentemente
constituição moral prepara-nos para a sociedade permitindo que aja- concordar com um racionalista como Clarke, o seu argumento
mos de acordo com as devidas reivindicações do bem da comunidade assume outra forma. Esta caraterística do método de Butler é uma
e do nosso bem privado. Esta ênfase na constituição moral da natu- mudança distintiva. Para além disso, ele considera esta experiênci.a
reza humana ao preparar-nos para a sociedade, e a ênfase de Butler moral sui generis; não supõe que noções morais possam se~ converti-
sobre esta constituição moral, é a peça central da resposta de Butler a das em noções não morais (assumindo alguns que essa lmha entre
Hobbes. noções possa ser estabelecida independentemente de algum. modo
1. Hoje vou tecer algumas observações sobre a visão de Butler útil). Aqui opõe-se a Hobbes e possivelmente a Hume (~ qu~ ~ica. por
relativamente à natureza e autoridade do princípio de reflexão, ou cons- averiguar); e a este respeito concorda com Clarke e os mtmc10mstas
ciência. Também se torna útil aqui assinalar o que ele considera ser o racionais.
conteúdo de consciência. Com isto pretendo falar dos tipos de ações e O segundo comentário preliminar sobre a rejeição do ~tilitarism~
formas de conduta, e o tipo de temperamento e caráter da nossa natu- por parte de Butler (pars. 12-16) é que para ele uma doutrma moral:
reza, que a consciência aprova. Por exemplo, em Dissertation on Virtue uma explicação da constituição da nossa natureza humana. Butl~r esta
II (um apêndice em Analogy), Butler argumenta contra Hutcheson que preparado para alimentar a visão, como possibilidade esp~culativa, ~e
o conteúdo da nossa consciência não é utilitário. Isto significa que os que Deus usa exclusivamente o Princípio de Benevolência ~a~~ agu.
veredictos da nossa consciência não estão de acordo com princípios Mas, para ele trata-se simplesmente, creio eu, de uma poss1b1hd~de
de utilidade ou, como Butler diz, «benevolência, e a sua necessidade, especulativa; não nos diz respeito especular a~:rc~ destas q~estoes
consideradas separadamente» não é o «todo de virtude e vício» (par. para além da nossa compreensão. A nossa consc1encia deve gmar-nos,
12). Não se trata do caso em que (ligeiramente adaptado) «nós [... ] dada a posição social e o lugar no mundo para que Deus nos chamou;

484 485
e a nossa consciência não é utilitária. Isso nós sabemos, e é tudo o que com vontade e desígnio, incluindo sob este último a intenção de
precisamos de saber. Butler insiste que a felicidade do mundo é a feli- levar a tais e tais consequências (par. 2);
cidade de Deus, não a nossa: «[... ] nem nós sabemos o que queremos e) Presumindo também que essas ações como objetos desta facul-
fazer, quando nos esforçamos para promover o bem da humanidade dade estejam dentro do nosso poder, tanto no que fazemos
de várias formas, mas aqueles que Ele [Deus] ordenou; de facto, isso como no que não conseguimos fazer (par. 2);
d) Tal ação e conduta é o objeto natural da faculdade moral, tal
não é contrário a veracidade e justiça em todos os modos [... ] cabe-nos
a nós e é nosso dever empenharmo-nos, dentro dos limites de veraci- como a verdade especulativa e a falsidade são o objeto natural
dade e justiça, para contribuir com bem-estar, conforto e até boa dispo- da razão especulativa (par. 2).
sição e diversão do nosso semelhante» (par. 16).
Para nós, o princípio de benevolência é aprovado dentro das fron- 4. A parte restante de Dissertation recorre à experiência moral p~ra
teiras e limites especificados pela justiça e veracidade e outras virtu- mostrar aspetos do conteúdo da consciência. (Ver a afirmação no fim
des relevantes. Observemos ainda que uma grande mudança virá do par. l, p. 53: «E quanto aos próprios sentimentos íntimos; que são
mais tarde com Bentham, que dirá enfaticamente que a felicidade do reais, que o homem tem na sua natureza paixões e afetos, não mais
mundo nos diz respeito (Hume não diz isto, como iremos ver). Per- pode ser questionado, a não ser que tenha sentidos externos». Ver
guntemo-nos porque é que esta mudança ocorre e o que está por também Sermão II, fim do par. 1.) Por exemplo:
detrás dela. a) A nossa faculdade moral associa-se ao bem moral ou más
ações de bom ou mau valor; esta associação é natural (parte da
nossa constituição) e não é artificial ou acidental (par. 3 );
§ 2. CARATERÍSTICAS DA NOSSA FACULDADE MORAL b) A nossa faculdade moral aprova a prudência como virtude e
desaprova a loucura como vício (d. pars. 6-7);
1. Esta faculdade de consciência e a nossa natureza moral é que e) A nossa faculdade moral não aprova a benevolência como o
nos tornam aptos para o governo moral. Por natureza moral (por todo da virtude. Aqui Butler apresenta uma crítica de Hutche-
oposição à nossa faculdade moral ou consciência), Butler refere-se às son (pars. 8-10).
nossas emoções morais: compaixão, ressentimento, indignação, e
assim sucessivamente; ou ao nosso sentido natural de gratidão, etc. 5. Recorde-se que no prefácio e no Sermão 1 o papel do Princípio
Distinguimos entre mal e prejuízo, por assim dizer, espontaneamente, de Reflexão ou consciência é supremo e regulador. A sua função é
(«inevitavelmente», diz Butler) (Dissertation II: par. 1). administrar e governar. No Sermão I, a explicação de Butler é breve
2. Nem são duvidosos os veredictos de consciência sobre questões e encontra-se nos pars. 8-9. No par. 8 ele define consciência e quer pro-
gerais, relativamente aos pormenores. Há um padrão universal reco- var a sua existência descrevendo duas ações, sendo que seria absurdo
nhecido; é o que em todas as épocas e países tem sido professado em negar que desaprovamos uma e desaprovamos a outra quando refleti-
público nas leis fundamentais de todas as constituições civis; nomea- mos calmamente.
damente, justiça, veracidade e no que diz respeito ao senso comum.
Não h~ nenhum problema de falta de universalidade (par. 1).
3. E manifesto que temos essa faculdade de consciência. Algumas § 3. ESBOÇO DOS ARGUMENTOS DE BUTLER PARA
das suas caraterísticas são:
A AUTORIDADE DA CONSCIÊNCIA: SERMÃO II
a) O seu objeto - o que julga e aprova - são essas ações e princí-
pios práticos ativos que, quando fixos e habituais em nós, espe- (Referências: prefácio: pars. 24-30, esp. 26-28; Sermão 1: pars. 8-9).
cificam o nosso caráter (par. 2); 1. A nossa constituição como criaturas e a nossa adaptação
b) Assim, o seu objeto são ações - distintas de acontecimentos - em a determinados fins é razão para acreditar que o autor da nossa
que a noção de uma ação envolve a de uma pessoa que faz algo natureza a destinava para esses mesmos fins. De assinalar as pre-

487
486
missas deístas e partilhadas de Butler: ver também par. 3: linhas vi) Ainda assim, é um princípio que realmente nos influencia e
9-11 (par. 1). nos incita a respeitar os seus ditames.
2. A objeção a resistir: garantida está a tal faculdade como facul-
dade moral, qual a razão para ser autoritária? Porque não dizer: que 7. No caso do homem, o exemplo ilustrativo que Butler usa (um
cada um siga a sua natureza, para que a consciência só oriente animal apanhado por um isco) seria uma ação desproporcionada à
quando se tornar mais forte? Que sinal existe de que o autor da nossa nossa natureza e, portanto, não natural (par. 13). Esta ação não é natu-
natureza pretende o contrário? (par. 5). ral porque não envolve ir contra o amor-próprio como meramente
3. A objeção assume que não há nenhuma distinção entre violar a natural, visto o mesmo se aplicar à repressão da paixão em favor de
justiça por causa do prazer do presente e agir justamente quando não amor-próprio (meramente como natural) (par. 15).
há nenhuma tentação do contrário. Ambas as situações seguem de 8. Deve haver outra distinção: nomeadamente, o princípio de
igual modo a nossa natureza. Mas, se isto fosse verdade: amor-próprio é superior a paixões. Para agir com a nossa natureza, o
amor-próprio deve governar. Isto exemplifica um princípio superior
a) A ideia de desvio da nossa natureza seria absurda;
sem invocar a consciência (par. 16).
b) Em seguida, o que Paul diz quanto a sermos uma lei para nós 9. De modo semelhante, a consciência é superior às paixões que pro-
próprios seria erróneo; curam diretamente objetos sem distinção de meios necessários para os
e) Visto que seguir a natureza como injunção não faria sentido.
obter. Quando estes meios prejudicam outros, a consciência desaprova e
deve ser obedecida. Aqui o amor-próprio não é tido em consideração.
Assim, a objeção rejeita o que Paul diz, apesar de aparentemente A consciência é suprema sem considerações de influência (par. 17).
lhe dar permissão. A linguagem mostra que seguir a natureza não é 10. Assim, temos a distinção entre poder e autoridade, aplicada
agirmos como nos apetece (par. 6). aqui não à lei civil e à constituição da sociedade, mas a princípios da
4. Precisamos de explicar o que se pretende dizer com: cada natureza humana. Com a sua natureza e o seu papel, a consciência é
homem é naturalmente uma lei para si mesmo, e poderá encontrar manifestamente superior; envolve julgamento, direção e fiscalização.
dentro de si o valor do direito e a obrigação de o seguir (par. 6). E a consciência tem esta autoridade e este papel, independentemente
5. Dois sentidos da natureza não são relevantes (pars. 7-9). da frequência com que nos insurgimos contra eles (pars. 18-19 ).
6. O terceiro sentido é o de S. Paulo e explica o sentido em que um 11. Butler apresenta um segundo argumento (pars. 20-22). Su-
homem é lei para si próprio. O argumento é o seguinte (tudo nos ponhamos o contrário. As fronteiras ou limites da nossa conduta são,
pars. 10-11 ): então, definidos pelo nosso poder natural, por um lado, ou por não
i) As nossas paixões e afetos para bons conflitos de ordem pú- procurarmos o mal em seu benefício para nós próprios ou para
blica e privada; outros. Isto resulta da suposição de que só a sua força relativa é a dife-
ii) Estas paixões e estes afetos são em si mesmos naturais e bons, rença entre princípios da natureza humana. Mas os limites acima tor-
'1 mas não há nenhuma forma de compreender quão profunda- nam-nos moralmente indiferentes entre, por exemplo, parricídio e
mente cada tipo nos pertence por natureza; dever filial. Mas isto é absurdo.
iii) Nenhum deles, das paixões e dos afetos, pode ser uma lei para Os princípios deste argumento são:
~~ .
1) A forma como a nossa natureza funciona e é regulada indica a
iv) Mas há um princípio superior de consciência que se afirma e intenção de Deus relativamente ao modo como nos deveríamos
aprova ou desaprova;
governar;
v) Não se trata de um princípio do coração que nos regule através
2) Para este conhecimento da nossa natureza recorre-se à expe-
do seu grau de influência, mas é uma faculdade diferente no riência moral; por exemplo, como os nossos sentimentos de ver-
género e suprema sobre todos os outros elementos da nossa natu- gonha nos afetam, etc.; e no que diz respeito à faculdade de
reza e assume a sua própria autoridade;
consciência;

488 489
3) ~~tle~ assume um acordo aproximado de julgamentos de cons-
c1encia. cado a-esta questão, e mencionámos aspetos que ele apresenta nou-
tros sítios (particularmente no prefácio, pars. 24-30, e Sermão I: 8-'9).
Questionemos agora de que argumento se trata, ou então se, estrita-
. "' Q_ual ~ o argumento de Butler relativamente à autoridade de cons-
c1encia e a supremacia? mente falando, estamos realmente perante um argumento. Ó que vou
A) Uma forma: dizer é na melhor das hipóteses uma interpretação do argumento ou
apresentação de Butler. Ele não tenta claramente apresentar argumen-
1) Deus criou-nos. seres razoáveis e racionais capazes de se _ tos convincentes a favor da sua visão.
mos leis para nós próprios; .r Butler dá como certa, creio eu, o que chamei de Suposição Deís-
2) Tais seres P_reci~am de um princípio ou faculdade dirigente ta, o que implica que Deus seja o Autor da nossa natureza e que a
se, como i:os, hv~rem inúmeras paixões, afetos e apetites e conceção desta última dê razões para acreditar no que Deus preten-
afetos ma~s ~era1s e concorrentes tais como benevolência dia que fosse a nossa natureza e como os seus vários elementos
e amor-propno; deviam funcionar juntos. Butler também assume que enquanto seres
3) Nenhum destes outros princípios e paixões~ etc., pode forne- razoáveis e racionais somos capazes de sermos leis para nós pró-
cer esse princípio dirigente; prios e de participarmos na vida da sociedade. Por «razoável» in-
4) A cons.ciê,n~ia reclama superioridade e autoridade como cluo o que Butler pretende dizer com «correto». Ser razoável e
esse prmc1p10 ou faculdade: correto são noções diferentes resultantes da racionalidade. Esta
última tem um sentido aproximado de adoção dos meios mais efi-
a) Primeiro, através das suas aprovações e desaprovações e
cientes para determinados fins, ou de ajustamento de determinados
o acordo em conteúdo comum disso entre pessoas·
fins entre si quando estes últimos competem e não podem ser con-
b) Segundo, pelo facto de termos a nossa experiênda como
juntamente satisfeitosl.
autocondenados se violarmos a consciência·
2. Se devemos ser capazes de nos transformarmos em leis para
e) Nenhum outro princípio ou paixão tem e~tas caraterísti-
nós próprios, a nossa natureza deve ter o que Butler chama de consti-
cas: nenhum outro nos condena se o violarmos.
tuição moral adaptada a algum objetivo e apta a governar-se a si pró-
pria. A questão da autoridade de consciência, ou a falta de qualquer
5) O uso de linguagem apoia as reivindicações de consciência·
uma dessas autoridades, resolve-se tendo em conta a nossa experiên-
6) A c?n~ciência é suprema e autoritária como se demonstr~ cia moral para perceber se encontramos algum elemento apropriado e
mmto intensamente na paixão do ressentimento.
autoritário que possa governar a nossa natureza, dirigir a nossa con-
B) Outra forma: duta e adaptá-la à nossa vida em sociedade.
Dados os muitos elementos na nossa natureza, precisamos certa-
1) Rever a primeira premissa mencionada acima limitando-nos mente de alguns desses princípios dirigentes ou reguladores. Temos
a ~upor ~ue somos· capazes de sermos uma lei para nós pró- apetites, afetos e paixões de vários tipos, alguns mais diretamente rela-
pnos. (Por de lado o contexto teológico.) cionados com outras pessoas, outros connosco. Estes apetites, afetos e
2) Em seguida, prosseguir à vontade como antes. paixões focam-se em meios para determinados fins - estado de coisas
ou o que quer que seja - e, como tal, não têm em conta os efeitos mais
abrangentes sobre outras pessoas de um modo geral. Estas fontes de
§ 4. RESUMO DO ARGUMENTO DE BUTLER conduta estão, por assim dizer, estreitamente focados, quer incidam
PARA A AUTORIDADE DE CONSCIÊNCIA sobre outras pessoas ou sobre nós. Nenhuma destas fontes de conduta
pode fornecer um princípio dirigente ou regulador. Isto deve-se à
. "' 1.. Analisámos o argumento de Butler para a autoridade de cons- natureza dos apetites, afetos e paixões. Elas não incorporam um prin-
ciencia tal como o apresenta no Sermão II, que é inteiramente dedi-
1 Ver as Palestras sobre Hobbes para a distinção entre razoável e racional.

490
491
cípio razoável ou racional através do qual se concretize o autogoverno Primeiro, é formal no facto de que qualquer pessoa correta (nor-
ou ~utorregulação. B~tler ilustra isto através do exemplo do animal mal), quando imparcial e capaz de analisar a questão serenamente,
atra1do para a armadilha na perspetiva de contentar a sua fome. Se aprova alguns tipos de ações e outros não. As pessoas rec01;mecem e
nos comportássemos de forma semelhante, contrariamente ao afeto julgam que devem fazer algumas coisas e outras não; e que 'estes jul;..
por nós próprios expresso pelo princípio de amor-próprio razoável gamentos são decisivos e que as comprometem. Estes julgamentos já
també1:1. agirí~m~s incorretamente. Butler usa este exemplo par~ não permitem recursos: eles especificam razões conclusivas relativa-
e~emphficar a ideia geral de supremacia: a ideia de como um princí-
mente ao modo como devemos agir. Para além disso, a natureza deci-
p10 na nossa natureza pode governar - ter autoridade em vez de ape- siva e obrigatória não depende do seu domínio e influência efetiva
nas influência - outros elementos na nossa natureza. sobre o nosso caráter e fontes de conduta. Assim, estes julgamentos
3. Acredito que Butler defende que o amor-próprio razoável não· é são autoritários: todas estas caraterísticas juntas especificam o que a
o princípio autoritário da nossa natureza, apesar da ansiedade em autoridade é, por oposição a influência. '
manter que, pelo menos a longo prazo, e dado o governo moral de Segundo, é importante que as pessoas, em geral, estejam de
Deus, não há nenhum conflito essencial entre a autoridade de cons- acordo relativamente às suas aprovações e desaprovações. Ou usando
ciência e o amor-próprio razoável. Adio para mais' tarde a sua visão o termo introduzido anteriormente, o conteúdo dos veredictos de
de pretenso. conflito. Apesa~ de ser um afeto geral no sentido em que consciência é mais ou menos o mesmo em todas as épocas e em todos
regula a~et~tes, afetos e paixões particulares, é fácil perceber que 0 os países. Isto permite que os veredictos de consciência (impondo
amo~-pro~no é um afet? par~ nós pr?prios. O objeto de amor-próprio
como sempre sobre eles as condições necessárias a julgamentos consi-
razoavel e se?1pre pareia~: diz respeito ao bem de uma única pessoa derados) forneçam um princípio autoritário para que possamos ser
de entre mmtas. E, por isso, não pode fornecer um princípio ade- uma lei para nós próprios como membros da sociedade. Se a cons-
quado para sermos uma lei para nós próprios. ciência de cada pessoa chocasse com a de uma outra qualquer, as con-
O mesmo se pode dizer da benevolência: de igual modo, a bene- dições necessárias estariam nitidamente em falta.
volênci~ é frequentemente um afeto geral (tal como o amor-próprio), Terceiro, Butler tece uma outra observação dizendo que quando
na medida em que regula afetos particulares para o bem de outras agimos contra a nossa consciência, condenamo-nos perante nós pró-
pessoas. Assim acontece quando a benevolência assume a forma de prios e corremos o risco de autoaversão. Penso que ele pretende dizer
espírito público, o~ amor de país (patriotismo) e afins. Mas, enquanto que nenhum outro elemento na nossa natureza tem esta caraterística.
as pesso~s. que se mteressam por amor-próprio razoável são sempre Podemos rejeitar ter de fazer sacrifícios de vários tipos; mas desde
bem defi. m~as
. - nomeadamente a própria pessoa que é movida por que sejam razoavelmente necessários não nos condenamos a nós pró-
amor-propno - as pessoas que se interessam por benevolência mu- prios de modo nenhum. E mesmo se, em alguns casos, devemos sa-
dam e variam, e entrecruzam-se, de todas as maneiras de pessoa para crificar os interesses de outros em determinadas situações difíceis
pessoa. C. D. Broad sugere que com benevolência Butler pretende (quando, por exemplo, alguém deve sair a perder e nós devemos
referir-se ao princípio de utilidade: para maximizar a felicidade da decidir, por assim dizer, judiciosamente), deveríamos ficar incomoda-
sociedade. Mas isto não se encontra nos textos e é, na verdade con- dos por tais diversões e ações, e, com frequência profundamente, para
trário a :le.. O resultado final entã? é que nem o amor-próprio ~em a fazermos o melhor que podemos. Não precisamos de nos condenar-
~ene~o~e~CI.a, ~uer g~ral ou particular, podem fornecer o princípio
mos e odiarmo-nos por causa disto, partindo do princípio que a deci-
au~or~tano md1spensavel para que possamos ser uma lei para nós
são e a ação tomadas eram razoáveis perante as circunstâncias e que
propnos. . estas últimas não eram nossa tarefa ou responsabilidade. Esta c~rate­
_ 4. ~ claro que esse princípio poderá não existir; apesar de Butler rística especial da consciência, no caso de ser realmente especial,
nao al~m~ntar essa possibilidade. Dizer que somos feitos à imagem de é uma das caraterísticas da nossa experiência moral a que Butler
Deus e dizer que existe esse princípio na nossa natureza. Butler acre- recorre na defesa pela autoridade de consciência.
di ~a ~~e a nossa experiência moral é prova suficiente de que este Quarto, e último, Butler relaciona a autoridade de consciência e a
prmc1p10 deve ser encontrado na consciência. autocondenação que sentimos ao agirmos contrariamente a ela çom

492 493
as paixões morais, por exemplo, com os nossos sentimentos deres-
PALESTRA III
sentimento e indignação, e afins. Diz ele no Sermão VIII: 18 (pp. 148-
-149): «Porque deveriam os homens lutar perante a realidade da vir- A ECONOMIA DAS PAIXÕES
tude, mesmo que se baseie na natureza das coisas, o que certamente
ainda não é relevante; mas porque é que isto deveria ser disputado,
digo eu, quando cada homem leva acerca dele esta paixão, que lhe § 1. INTRODUÇÃO
confere manifestação, de que as regras de justiça e equidade devem
guiar as suas ações? Porque cada homem sente naturalmente indigna- Hoje pretendo discutir aquilo a que chamo~ economia das pa~­
ção ao ver exemplos de vilania e baixeza, e, portanto, não pode prati- xões conforme a demonstração do que Butler diz acerca de compai-
car o mesmo sem ser autocondenado.» Assim, se generalizarmos (ou xão nos Sermões V-VII, e acerca de ressentimento e perdão de injúrias
universalizarmos, para usarmos um termo contemporâneo) os princí- nos Sermões VIII-IX. Mas, primeiro, dois breves comentários.
pios implícitos nas paixões morais de ressentimento e indignação, 1. Quero realçar uma vez mais o destaque que Butler dá ao caráter
estes princípios tornam-se no que Butler chama de ~<regras de justiça e social da natureza humana. De facto, este é o tema principal do Sermão 1.
equidade». Estas regras não são simplesmente regras de razão mas Recordemos que o texto deste sermão é Romanos 12:4-5: «P~is C_?mo
ele pensa nelas como intensamente sentidas, como é demonstrado temos muitos membros num só corpo, e todos os membros nao tem a
pelas paixões morais. A razão porque nos condenamos a nós próprios mesma função: assim nós, sendo muitos, somos um corpo em Cristo, e
quando agimos contra a nossa consciência prende-se com o facto de cada um dos membros um de outro.» Butler deseja incluir na analogia
estarmos a fazer coisas que odiamos nas outras pessoas e que incitam que São Paulo sugere aqui entre as partes do ~osso corpo e c~mo elas
o nosso ressentimento e a nossa indignação. constituem um corpo, por um lado, e como nos, enquanto mwtas pes-
5. Por todos estes motivos, então, Butler aceita que os veredictos soas separadas, constituímos uma sociedade P?r .º"!?osição a um ~ero
de consciência sejam autoritários para nós independentemente da sua agregado de indivíduos. A explicação da constituiçao moral (~s. física)
influência. Esta distinção entre autoridade e influência é de grande da natureza humana é concebida para mostrar como «fomos feitos para
importância, e, por isso, tentei dar uma explicação possível acerca a sociedade e para fazer bem aos nossos semelhantes», bem como que
dela. Como último aspeto, acredito que Butler assuma que a nossa «fomos destinados a tomar conta da nossa própria vida, saúd~. e bem
experiência moral seja sui generis (e neste ponto concorda com Clarke privado» (Sermão I: 3, p. 35). (Recordemos aqui que no séc~lo XVIII. o
e os intuicionistas). Isto significa que as noções de aprovação e desa- termo «moral» tem uma utilização mais abrangente do que ho1e em dia,
provação moral, o sentido de «dever» envolvido em ser uma lei para e frequentemente significava «psicológico», que acaba por ser o sentido
nós próprios, as noções de ressentimento e indignação como senti- intencional ao investigarmos a «constituição moral da natureza hu-
mentos dirigidos a prejuízo vs. mal (injustiças), se baseiam aproxima- mana».) Depois de esta constituição ser descrita, ~1:tler res~me ~tema
damente numa ou em mais noções morais primitivas, não mais da natureza social dos seres humanos com a repetiçao da afirmaçao que
definíveis em termos de noções de não moral. Não tive em considera- acabámos de citar (I: 9, p. 44) e no longo e admirável parágrafo I: 10
ção a possibilidade de a explicação sobre autoridade de consciência (pp. 44 e segs.). A segunda afirmação deste parágrafo é: «A humani?a~e
de Butler depender desta suposição deísta e não vou fazê-lo aqui. é por natureza muito estreitamente unida, existe essa corresp~ndencia
Suspeito, contudo, que a maior parte da sua expfü;ação possa ser pre- entre as sensações interiores de um homem e as de ou~ro, pois ~ des-
servada intacta, pelo menos se reconhecermos que ele considera a graça deve ser tão evitada como a dor corporal, e ser obJe~o de estima ,e
experiência moral sui generis. amor tão desejados como qualquer bem exteri:o.» É preciso ler.º· para-
grafo todo2. É óbvio que aqui Butler está a sublmhar um tema cnstao de

2 [Sermão I, parágrafo 10, diz na sua totalidade o seguinte. - Ed.] ~<E de toda e~ta
revisão deve ser dado relativamente à natureza humana um esboço diferente dacp.nlo

494 495
longa data, não só contra a doutrina de Hobbes de que o homem nã 0
ressentimento não' deve ser confundido com vingança, cuja fruição
está apto para a sociedade, mas também contra várias formas de indiv~ é sempre errada; e o próprio ressentimento deve ser ~im~tado e,. equili-
dualismo em termos mais gerais. Só menciono estes aspetos óbvios para brado pelo preceito de perdoar aqueles que nos pre1udicall1· E a este
que não nos esqueçamos deles. equil{brio e funcionamento em conjunto das :árias p~ixões e. do modo
. ~· Na citação acima retirada de I: 10, vemos que Butler encontra como auxiliam a nossa capacidade de agir a partir dos ditames da
smais da nossa natureza social nas paixões, por exemplo, no receio da consciência, e ao espírito público de boa vontade para os outros em
desgraça. e no desejo pela estima. Hoje vamos discutir compaixão geral, que eu me refiro com a expressão «a economia das paixõ:s»: ~s
e r~ssentimento como paixões que são especialmente importantes, paixões são, por assim dizer, um subsistema dentro. da cons~It-~nçao
assim pensa ele, para a nossa constituição moral como um todo. moral da natureza humana; têm um papel essencial, na visao de
A compaixão ~ortalece e sustenta a nossa capacidade de seguir e agir Butler, de adaptar a constituição moral à virtude, ou. seja, àquelas for-
a partir dos ditames da consciência e das reivindicações de benevo- mas de pensamento e conduta que nos fazem participar e contribuir
lê:1cia-_ Apesar de haver um sentido em que a compaixão é uma pai- para a vida de sociedade.
Quando chegarmos a Hume e Kant vamos comparar as suas ex-
xao na. .o. moral, enqu~nto o ressentimento em alpumas ocasiões é
plicações das paixões, e do seu papel, com as de Butler3~ Assim, estas
necess~~IO para. a suaviza: e i:ara fo~talecer a nossa capacidade de pôr
em pratica os ditames da JUshça, mais exatamente a justiça penal. Mas análises psicológicas, intuitivas e de senso comum sao uma parte
essencial do material que queremos estudar.
que nos apresentam com frequência. A humanidade é por natureza muito estreita-
mente unida, existe essa correspondência entre as sensações interiores de um homem
e a~ de outro, po~s a des?raça deve ser tão evitada como a dor corporal e ser objeto de § 2. O MÉTODO DE BUTLER
estima e amor tao C:,ese1ados como qualquer bem externo e, em muitos casos parti:.
c~lar~s, as pessoas sao levadas.ª fazer bem a outras, como o fim que os afetos querem
atmgir, e permanecer; e mamfestam que encontram satisfação e prazer reais no
Passemos agora a algumas observações sobre o método de abor-
decurso deste comportamento. Existe esse princípio natural de atração de um para dar as paixões de Butler.
outro homem que, tendo percorrido o mesmo caminho, tendo respirado no mesmo 1. Primeiro, manter em mente o contexto teológico, ou o que cha-
clima, mal tendo nascido no mesmo distrito artificial, ou zona, torna-se na possibili- mei de «Suposições Deístas» de Butler, nomeadamente, que _Deus
da.de de contrair conhecimentos e familiaridades muitos anos depois: pois qualquer existe com as conhecidas propriedades teístas, que Deus criou o
~oISa pode se:_vir o propósito. Assim, relações meramente nominais são procuradas e
mundo, que para além de ser omnisciente e omnipotente, Deus tam-
ii:iventadas, ~ª.º por governadores, mas pela camada mais baixa do povo; que é con-
sid~rada suficiente para manter a humanidade junta em pequenas fraternidades e
bém é benevolente e justo, e, portanto, pretende o bem dos seres
soCiedades: fracos laços decerto, que poderão constituir fonte suficiente para o ridí- vivos e dos seres humanos em particular. Butler nunca argumenta
culo, se forem absurdamente considerados os princípios reais dessa união; más, na esta suposição; limita-se a qceitá-la como certa. Enquanto Sermons não
verdad€, são meramente as circunstâncias, como qualquer coisa pode ser de outra se limitam a esta suposição da mesma forma que e~ Analogy (Ser-
coisa" qu~lquer, nas q~ais a no~sa natureza nos mantém de acordo com a sua própria mons são afinal de contas sermões e assumem as Escrituras como os
tendencia e preconceito anteriores; circunstâncias essas; portanto, que não seriam
absolutamente nada se não houvesse esta disposição anterior e preconceito da natu-
seus textos, etc.), é útil para os nossos propósitos assinalar (o que eu
reza. Os homens são muito um só corpo, que de uma maneira peculiar sentem uns entendo ser verdade) que a Suposição Deísta por si própria explica a
~elos outros vergonha, perigo iminente, ressentimento, honra11 prosperidade, angús- maior parte, se não tudo, daquilo que Butler pensa que precisa.. . _
tia: um ou outro, ou todos estes, da natureza social em geral, da benevolência, na Assim se explica como Butler pode dizer que a nossa constitmçao
ocasião da relação, do conhecimento, da proteção e da dependência ~aturais; cada moral (e como nos incita a pensar e a agir) é «a voz de Deus de.ntro de
um destes sendo cimentos distintos de sociedade. E, portanto, não ter limitações, nós» (Sermão VI: 8, p. 114); e como pode ele dizer noutra ocasião que
~enhuma consideração por outros no nosso comportamento, é o absurdo especula-
tivo de nos considerarmos singulares e independentes, de não termos nada na nossa
natureza que mostre respeito pelos nossos semelhantes, reduzidos à ação e à prática. 3 [Ver John Rawls, Lectures on the History of Moral Philosophy, ed. Barbara Herman,
E trat~-se do mesmo absurdo, como supor que uma mão, ou qualquer parte, não tem Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2000, para as palestras sobre Hume e
respeito natural por qualquer outra, ou pelo corpo todo.» Kant referidas aqui. - Ed.]

497
496
Entre os aspetos importantes no parágrafo encontra-se a convi~ção
a 1:1-~ssa natureza humana (ou seja, presumo que seja a nossa consti- de Butler de que o que ele chama de paixões (vs. apetites, afetos ~ liga-
tmçao moral) deve se_r mantida sagrada, pois «à imagem de Deus, fez
ções) são uma parte importante da nossa constituição moral~ e a1udam
Ele o homem» (Sermao VIII: 19, p. 149). Mais, há um número de luga-
a revelar-nos o modo como Deus pretende que nos orientem0s.
res onde Butler assume que a nossa constituição moral descrita corre-
2. Entre as consequências da Suposição Deísta encoi:tram-se esta~.
tamente fornece uma razão para acreditar no modo como Deus
Primeiro, que nenhuma das paixões são maléficas em s1 mesmas; p01s
pretende a nossa constituição. Assim, em Sermão II: 1 (em que Butler
não poderiam ter feito parte da intenção de Deus. Há .certamente ab~­
apres~"nt~ o seu :principal argumento em defesa da autoridade de
sos de paixões, deixando-as ir para além do seu devido. uso (Ser1;1-ªº
co~sc1enc1a) ~le diz: «Se a verdadeira natureza de qualquer criatura a
VIII: 3-4, pp. 137-138). A vingança é um abuso de ressentimento e e da
orienta e esta apenas adaptada a tais e a tais propósitos, ou mais do
nossa responsabilidade e culpa (Sermão VIII: 14-15, ?P: :45-146). ~m
que qualquer outro; .esta é uma razão para acreditar que o Autor
caráter cruel e mau é uma desordem da nossa constitmçao moral; e o
dessa natureza a destinava para esses propósitos» (p. 51). Assinale-se
abuso e falta de controlo dos seus vários elementos, aquando da ocor-
que B_utler não ~stá a defender a existência de Deus com tais e tais
propriedades e intenções, etc. Ele assume que Ele existe e tem deter- rência desta desordem.
Uma segunda consequência da Suposição Deísta é que uma pai-
minadas in~ei:_ções, em consistência com a benevolência e justiça de
xão, pelo menos uma importante e fundamental, deve ter algum
Deus na criaçao do mundo. Portanto, a constituição moral da nossa
papel e tarefa adequados na nossa constituição moral como um t?d_o.
n~tureza pode ser razoavelmente tida a revelar algo sobre as inten-
É claro que nos pode parecer que não os t~m: Mas, na Su:J?os1çao
çoes de De_:is que nos dizem respeito; intenções essas que, dada a
Deísta isto não é possível e, portanto, somos incitados a refletir sobre
nossa relaça? c?i:; Ele, são leis para nós. Visto que a examinação das
a nossa constituição no sentido de conseguimos compreender o se~
nossas conshtmçoes mostra que somos obrigados a considerar autori-
papel e a sua tarefa. Isto é importante para Butler n~ c~so ~o resse.nti-
tários e decisivos os veredictos da nossa consciência (e não mera-
mento. Ele julga que o papel e a tarefa da compa1xao sao relati~a­
men~: a exercer alguma influência, mais ou menos, nesta ou naquela
mente claros; auxiliam os ditames da consciência e as preocupaçoes
ocasiao ), Butler fala da nossa constituição moral como sendo sagrada
de boa vontade para com os outros, particularmente quando estes
e a voz de Deus.
têm problemas e precisam de ajuda. Mas porq~e .haveríamos de. te_: a
No parágrafo II: 3, ele continua a dizer posteriormente:.
paixão do ressentimento, que Butler diz ~er. umc~ entr~ ~s paixoes
Desde então, os nossos sentimentos interiores, e as perceções que (por oposição ao seu abuso) ao ter como ob1etivo a 1mpos1çao de dor e
recebemos dos nossos sentidos exteriores, são igualmente reais; infelicidade noutros, mesmo se apenas se dever a um dano (vs. mal)
argumentar das primeiras para a vida e conduta é tão pouco suscetí- que tenham causado? Ass.im, Butler procura o papel e a tar~fa .q~e
vel d.e exceção como argumentar dos últimos para a verdade espe- esse ressentimento deve ter; se descrevermos a nossa constitmçao
culativa absoluta [... ] E permitir o sentimento interior, vergonha; um moral corretamente, seremos capazes de compreender como são.
homem pode tão pouco duvidar se lhe foi permitido evitar ações É claro que podemos não conseguir, visto que o esquema da natureza
ve~gonhosas, como também se os seus olhos lhe foram dados para e 0 nosso lugar nele é um esquema moral do governo de Deus, mas
guiarem os seus passos (p. 53). !,
um imperfeitamente compreendido. (Ver Analogy: Pt. ~ªI.:· 7,. «Do G~­
verno de Deus, considerado um Esquema ou Constitmçao, 1mperfe1-
Butler continua: tamente compreendido».)
3. Uma terceira observação é afirmada no primeiro parágrafo do
.[ ... ] quanto a estes mesmos sentimentos interiores; que são Sermão VIII, «Sobre Ressentimento». Quando Butler examina· a nossa
rea~s, que o homem tem na sua natureza paixões e afetos, não .
constituição moral e as suas várias partes, fá-lo sempre como a consti-
mais pode ser questionado, do que ele ter sentidos exteriores.
tuição de seres naturais e dentro das suas circunstâncias na~rais. ~le
Nem podem as primeiras (as paixões) estar totalmente enganadas;
assume que a nossa constituição moral está ajustada a estas circunstan-
apesar de, em certa medida, estarem suscetíveis a maiores enga-
cias e condições naturais; a nossa devida constituição é o que _é por
nos do que os últimos (os sentidos) (p. 53).

499
498

1.
causa da nossa situação na natureza. Assim, ele diz que nesta análise § 3. PAPEL DA COMPAIXÃO:
devemos «aceitar a natureza humana como ela é e as circunstâncias em COMO PARTE DA NOSSA NATUREZA SOCIAL
que é colocada como elas são; e depois considerar a correspondência
entre essa natureza e essas circunstâncias, ou para que caminho de ação
1. A sua definição - a partir do Sermão V: 1 podemos dizer: A com-
º:1 com~ortamento, respeitando-as, nos conduz qualquer afeto ou pai- paixão é um afeto para 0 bem dos nossos seme!ha'.'tes e praz~r resul-
xao p~rtlcular» (p. 136). Ver também Sermão VI: l, p. 108. Ele diz que
menciona esta questão para distinguir a sua análise das de outro tipo: tante dos afetos satisfeitos, e um mal-estar proveniente de coISas que
non:eadamente, porque não somos criaturas mais perfeitas do que vão na direção contrária.
1 aqmlo que somos [porque é que, por exemplo, a consciência em nós Assim, por definição, a compaixão ~elacion~-se com o b:m ~e
1[ tem poder (influência) como tem autoridade]; ou porque é que não· outros (distinta do ressentimento que diz respeito a uma m~ açao,
estamos rodeados de melhores circunstâncias? Mas não temos nada uma ofensa). É um afeto geral um pouco indeterminado na variedade
de pessoas que inclui, mas, em certa m~dida, inc~ui frequentemente
f
i

que ver com t~is questões como estas. Persegui-las é correr o perigo de
! fazer algo ~<p10r do que curiosidade impertinente» (Sermão VIII: 1, todas as pessoas humanas - e, portanto, e um sentime~to e~t:e seme-
p. 137). Assim, Butler não considera que a sua tarefa seja a de perguntar lhantes, como Butler diz com frequência. A este respeito distmg;ie-.se
de ligações - afetos por detern:in~das pessoas - e de amor-propno,
,1
,1:1 «Porque é que não fomos feitos dessa natureza, e inseridos nessas cir-
1
cunstâncias de modo a não ter necessidade dessa paixão tão dura e tur- um tipo de afeto geral para a propna pessoa. . _ _ ,,
A caraterização inicial de Butler acerca de c~mp~ixao nao e total-
11 bulenta como o ressentimento?» mas, aceitando a nossa natureza e
condi~ão como sendo o que são, «Porquê e para que fim essa paixão
mente correta, e é importante corrigi-la com o mtu.Ito .de compreen-
nos f01 dada?», e isto para principalmente mostrar os abusos dela (VIII: der a sua visão. Diz ele (Sermão V): Quando rejubilamos ~º1:1 a
2, p. 137). Assim, de acordo com a tendência do seu caráter prático, prosperidade de outros, e temos compaixão pe,,las. suas ~ngushas,
nós, por assim dizer, substituímo-los por nós propnos, os interesses
Butler recusa-se a participar na especulação filosófica ou em análises
metafísicas subtis. Ele mantém-se realmente crente, na maior parte dos deles pelos nossos; e temos o mesmo tipo de prazer pela sua prospe-
casos, nos factos simples referentes à nossa constituição moral como ridade, e sofrimento com a sua angústia, como temos por refle:o
com os nossos (92-93). Mas parece óbvio que quando outros estao
manifestação da nossa experiência moral comum; ele julga que estes
factos estão à vista no sentido em que não necessitamos de nenhuma em sofrimento e nós temos compaixão por eles, não so~r:mos da
doutrina filosófica ou de outra ordem para os descobrir, de nenhum mesma forma que eles; nem nos sentii-:1-os com~ nos _senhnamos se
nos imaginássemos (tanto quanto possIVel) na situaçao deles. Resu-
procedimento ou método especial para os tornar disponíveis para nós.
Butler pensa que certamente só alguém já com uma teoria sistemática midamente, quando uma pessoa se sente doente e outra sente c.01:1-
descreveria a nossa natureza como Hobbes faz [cf. Sermão I: 4, nota de paixão por ela, a segunda não se sente doente; m~s a .compaixao
rodapé b (pp. 35 e segs.); V: l, nota de rodapé a, pp. 93 e segs.]. Mas ele incita-a a ajudá-la ou confortá-la de algum modo. ~l:m disso, a ~01;1-
paixão não nos faz insistir no modo como nos sentmamos se estI_ves-
pensa. que se tori:i-a claro para nós que Hobbes está enganado quando
semos doentes como a outra pessoa. Poderei começar a pensar msso,
examinamos cmdadosamente a nossa experiência moral comum.
mas a questão é: não é isso que provoca o nosso sentimento de co~­
O que tenho em mente é que não encontramos em Butler a ideia de que
os factos de experiência moral acordados são peculiarmente difíceis de paixão. O que faz isto é pensarmos no que podemos faze~ para a1u-
dar e confortar, acompanhados de pe~samentos de sofrimento da
verificar, .mesmo garantindo que a parcialidade e o orgulho, etc., pos-
nossa parte e assim sucessivamente. E claro_ que Butler sabe bem
sam atra~r-nos para o autoengano ou autoilusão (Sermão X: «Upon
Self-Deceit» ). Tudo isto confere à discussão de Butler sobre as paixões isto e di-lo corretamente mais tarde no Sermao V: 5: «Enquanto os
t;m tom empírico bastante direto, semelhante ao de história natural.
ho~ens em sofrimento querem [precisam] de assis.tência; e a cm~­
E esta caraterística de Sermons de Butler que, apesar do seu contexto paixão leva-nos diretamente a assisti-los [ ... ] O ob1eto [~a compai-
teológico, as tornou tão importantes para Hume. Muito, senão a maior xão] é a infelicidade do momento do outro [~~e pr:cisa] de ~m
determinado afeto para se aliviar[ ... ] [A compaixao] nao se man.tem
parte, do que Butler diz não depende absolutamente deste contexto.

501
500
a si própria, lev__a-nos a assistir quem está em sofrimento» (p. 97)
2) A segunda questão é se existe alguma incompatibilidade pe-
A~u~ B~tler esta a contrastar compaixão com contentamento el · culiar entre a procura do interesse público vs. privado. A in-
fehcitaçao de outra pessoa. P ª compatibilidade peculiar entre interesse público e privado
significa para Butler uma incompatibilidade que é diferente e
maior do que a incompatibilidade entre quaisquer dois afetos,
quer de ordem particular ou geral. Assim, ele observa (no par.
PALESTRA IV 18) que quanto mais tempo e pensamentos dedicarmos ao
bem de outros, menos tempo e pensamentos podemos dedicar
O ARGUMENTO DE BUTLER ao nosso bem, e assim sucessivamente. A sua questão é se
existe um tipo peculiar ou distintivo de incompatibilidade entre
CONTRA O EGOÍSMO o interesse privado e público. O seu desejo é afirmar que não.
A questão é pela primeira vez discutida nos pars. 10-11, pp. 194
e segs.;
§ 1. INTRODUÇÃO 3) A terceira questão analisa a natureza, o objeto e a finalidade do
amor-próprio, que se distinguem de outros princípios e afetos
Hoje vou discutir o ar~umento ~e Butler contra 0 egoísmo tal da mente. Butler acredita que a resposta para esta terceira ques-
como se encontr~ ~o Sermao II, o primeiro de dois sermões sobre 0 tão deve ser abordada em primeiro lugar; a resposta para as
amor __do nos~o v~zi~o. Por egoísmo nesta ligação devemos entender outras questões depende dela, apesar de ele dizer coisas que lhe
~ egoism~ ~sicologico de Hobbes e as várias formas em que se tratava são relevantes à medida que a discussão se desenrola. A pri-
e uma vis~o em voga na época de Butler (em Mandeville por exem- meira discussão desta questão é dada nos pars. 5, 8, pp. 189-192
plo); ou a~sim But~er acredita claramente. É preciso ter em' mente ue e segs.;
Butler esta envolvido em apologética, na defesa das doutrinas e ;ir- 4) Com as três questões respondidas na ordem (3) -+ (1) -+ (2),
h.~d~s da. m_?ral de senso comum e nestas fazendo parte da fé e con- Butler aborda uma quarta questão que pode ser vista como uma
vicçao crista. Ele p~etende argumentar que uma forma de vida infor- generalização da primeira. Questiona se é provável que o modo
ma da por e.stas vutudes de senso comum não é uma forma de de vida, a devoção à benevolência e à virtude e ao bem público,
loucu:~ ne?hgente do devido bem da nossa própria pessoa, mas, pelo se confirmem incompatíveis com o devido interesse pelo nosso
contrario, e compl~tamente consistente com este bem quando correta- bem privado. Ele defende que não mais do que qualquer outro
~ente compreei:~id.o. Na próxima ocasião irei discutir o suposto con- afeto ou paixão particular. De facto, vai mais além na argumen-
Ito entre consciei:cia e amor-próprio e sugerir como julgo que Butler tação e enumera várias caraterísticas distintivas de um modo de
resolve este conflito. Nesta ligação os Sermões XII-XIII - · vida caraterizado por uma devoção à benevolência e à virtude
tantes. sao impor-
que tendem a reduzir esta incompatibilidade. Esta questão é
No Serm~o XI («Upon the Love of our Neighbour») Butler analisa discutida nos pars. 12-15, pp. 197-200. Ele considera uma obje-
quatro questoes que aparecem por esta ordem no texto: ção à sua resposta nos pars. 17-19, e nos pars. 20-21, pp. 204-
-206, há uma passagem conhecida sobre o alegado conflito entre
1) Se é provável,, q~e o interesse privado seja promovido ao ponto a consciência e o amor-próprio que aparece a conceder a supre-
d~ o amor-f roprio nos absorver e prevalecer sobre outros princí- macia deste último, em pretensa contradição com a primeira
pios. Relacionado com esta questão Butler introduz 0 chamado tese de Butler sobre a supremacia da consciência. Diz ele: «Que
Paradoxo do Egoísmo (ou paradoxo do hedonismo): a ideia de seja permitido como tal, apesar de a virtude e a retidão moral
que a preocu~a~ão com os próprios interesses de uma pessoa consistirem realmente no afeto e na procura do que é correto e
pode ser de varias formas destrutiva relativamente à sua felici- bom; contudo, quando descansamos numa hora serena, não
dade. Esta questão é discutida no longo parágrafo 7: 190 e segs.; conseguimos justificar para nós próprios esta ou qualquer_ outra

502
503
procura, até estarmos convencidos de qu "
d d e e para a nossa f l' . das dessa possível ação, de acordo com a interpretação do agente.
a ~'_o~ p.elo menos que não se lhe opõe» (206) N "e.1c1-
ocas1ao irei _abordar esta passagem e outras rela~ion:~~oxuna Aqui «desejos» é um substituto para os apetites, os afetos e as paixões
~la. A ~uestao que devemos colocar é se Butler é sim s com tanto gerais como particulares de Butler, e nestes temos de, incluir o
mcons1stente ou se, contextualiza d plesmente que nesta passagem acabada de citar ele chama o «afeto e a procura
cas e mantendo em mente a s n ? ~s passagens problemáti- daquilo que é correto e bom». Note-se que Butler chama a isto um
ua v1sao geral pode afeto.
preendet uma doutrina coerente. É claro que ' d mos com-
forne~er alguns dos pormenores e corri ir alp~n:r~;os ter de 2. A seguir, pensemos no objeto do desejo como aquele estado de
devenamos assumir - como hab't 1 g g psos, mas coisas cuja provocação é o objetivo do desejo. Quando este objeto. é
I ua mente com qual t provocado, dizemos que o desejo é satisfeito; alcançou o seu objetivo
que estamos preparados para ler . quer exto
rente pode ser encontrada. - que uma interpretação coe- ao realizar o seu objeto. Digamos que um desejo é satisfeito quando o
agente sabe, ou acredita ou experimenta razoavelmente, que o desejo
está satisfeito.
A linguagem aqui utilizada terá de ser um pouco reformulada
§ 2. O ARGUMENTO DE BUTLER para acomodar desejos de participar ou envolver-se em várias ativi-
CONTRA O EGOÍSMO HEDONISTA dades, ou fazer várias coisas, para o seu próprio bem. Às vezes é
estranho pensar em atividades como estados de coisas, mesmo que
Apesar de o argumento de Butler contra o egoísmo hed . t ( consigamos fazer isto através de determinadas locuções. Deveríamos
pars. 4-7, com observações su leme " . oms a nos também introduzir a noção de desejo final como, por exemplo, o desejo
completamente bem-sucedido ~le . i:t~res no~t~os s1tios)4 não ser de participar numa atividade, ou proporcionar um determinado
ciais que abrem o caminh ' ms1s e em varias questões essen- estado de coisas, para o seu próprio bem. Uma cadeia de razões - quero
são r.etomadas por escri;01~'::~~~=r~~~utato útil. Estas questões fazer X para provocar Y, e Y para provocar Z, etc. - deve parar, diga-
Enquzry, App. II de An ln uir . . es. por exemplo, Hume, mos, em Z, que eu quero provocar para o seu próprio bem. Uma
em Ethical Studies Ensaioq VIh znto the Prznczples of Morals, e Bradley cadeia de razões não só deve ser finita, como também é normalmente
Bradley é bastant~ decisivo c;e~~P~JPÂ 2~1-276)5. O argumento de breve. Como Butler observa, se assim não for, não somos movidos
comentar o argumento de B~tler tal c~ ss1m, em vez de expli~ar e pelo desejo mas por um mal-estar - uma tendência sem objetivo para
de forma breve o que ente d mo o apresenta, vou delinear a atividade sem razão aparente. Este mal-estar é o vazio do desejo
Bradle . .n o ser uma versão do argumento de com [sem] a possibilidade de qualquer satisfação exceto o movi-
vai aju~:;_~: :e~~;:pa~edeensdtaecrar o que Butler contribuiu para ela. Isto mento.
_ ao mesmo tempo 0 d " 3. Podemos caraterizar muito aproximadamente a intenção de uma
laçoes de Butler poderão precisar de correção. n e e que as formu-
ação como essas consequências de uma ação que são previstas pelo
L Comecemos por assinalar cert .- . agente e reconhecidas como parte de uma cadeia causal de aconteci-
agentes razoáveis e racionais As . as caratensticas das ações de
mentos e processos essenciais ou necessários para proporcionar o
cionar de entre várias ações. alt:~~;~~s que os agentes podem se~e­
cunstâncias e das várias limita ões a s, de~end~~?º das suas c1r-
estado de coisas que especifica o objeto do desejo. Outras consequên-
cias também poderão ser previstas, nomeadamente aquelas que são
alternativas insere-se nos seu ç d q~e lesta~ SUJeltos. A classe de
não fazer nenhuma destas a _8 poUeres. e es sao capazes de fazer e subsequentes no tempo relativamente à realização do objeto do de-
çoes. ma ação di " 1f · sejo, e em nome do qual a ação é praticada. É certo que, mesmo que
agente dependerá das convicções, dese1'os e ava~faºçma_ovde eita por ~m não incluamos estas consequências na intenção do agente, ainda
as consequen-
podemos considerá-lo responsável por elas, partindo do princípio
4 Cf. especialmente a afirmação de u . , . . que foram, ou deveriam ter sido, previstas. Diferentes formas de redi-
5 F. H. Bradley, Ethical Studies Oxfor:opnfnc1dp1Uo ~s1col?gico básico no par. 13. gir estas linhas poderão de igual modo servir os mesmos propósitos
' · x or mvers1ty Press, 1927.
filosóficos.

504
505

--~----.-----~---
t ,, do de todo o desejo é a experiência agra~ável e ou aprazível
A seguir dizemos que as consequências desejadas e presumivel- con eu . - d . ,, a radável e aprazivel.
mente previstas em nome das quais a ação é praticada são o motivo de porque a satisfaçao do ese10 e ?, sua discussão da ter-
uma ação. Assim descrito, devemos distinguir o motivo do elemento E esta falácia que Butler eta a P~?cur:;:ra uma segunda falá-
psicológico que move o agente a agir. Este elemento pode ser descrito ceira questão nos pars. 4-7. ~ e.~m ~:_[.nomeadamente, a falácia
de várias formas, dependendo das circunstâncias, variando de um eia latente no argumento re end~s ªas n;ssas ações serem movidas
impulso para um plano deliberado a formulação em pensamento que de supor que, ?elo facto de ~~se'os - Butler, Hume e Kant concor-
dirige e move o agente. Parte do contexto deste pensamento delibe- por um ou mais d~~ ~oss~sa sati~fação dos nossos desejos ser agra-
rado será o conceito das· consequências desejadas e previstas, ou o dam todos acerca is o - ,, - outra pessoa, então devemos
que acabei de referir como motivo. dável ou aprazível para nos e nao p~ra . s agradáveis ou aprazíveis
.d · or estas expenencia
4. O que se acabou de dizer é assumidamente bastante ente-
diante. Mas abordar estas distinções põe-nos em posição de defen-
der uma questão simples e, decerto, óbvia que poderá quebrar o
ser movi os a agir P .
como objetos do nosso deseJO. Aqui adi :r
. . d ia de que os desejos que nos
dade e o deleite de desejos
movem a agir são os nossos, e ª.~gr~ a ~:nta-nos de algum modo a
. f . - as nossas expenencias, ."
domínio do egoísmo sobre o nosso pensamento. Esta questão é a satis eitos sao . d umi·r estas nossas expenen-
d se]· os evem ass
seguinte: a satisfação do desejo é sempre agradável, aprazível, ou supor que os nossos e s di'z Butler: «Cada afeto
b· t Contra estes erro
satisfatória, (etc.) - qualquer que seja a descrição apropriada. Mas das como seus o 1e os. . "nho e" realmente um afeto que
. mor do nosso vizi ,
não sucede que o objeto do desejo seja sempre obter (ou realizar) a particular, mesmo o a. 1 como o amor-próprio; e o prazer
experiência de agradabilidade, prazer ou satisfação. A satisfação do nos pertence [um afe·t~ n~ssz ;anto o meu próprio prazer [um pra-
desejo é sempre agradável ou aprazível, e satisfazer não implica que que resulta da sua satis açao o prazer que o amor-pró-
o motivo seja sempre prazer, deleite ou satisfação, nem que o pensa- zer que tenho e não outr~ ~esso~), ~m~qui sobre cujo significado
mento de prazer, deleite ou satisfação é o elemento psicológico que prio teria.» Há uma condiçao es r~ Ea d~vido ao facto de cada
incita as nossas ações. estou inseguro. Butler prossegue. « se~ rázer resultante da sua
Isto permite-nos perceber a falácia no argumento que se segue: afeto particular perten~er .ªº homem{ e1 e!'se afeto particular deve
satisfação ser o seu p~op:i~ a~ª:;~rd~. com esta forma de falar, as
1) Cada ação deliberativa e intencional que nos pertença é em-
ser chamado amor-propn?, 1 t i'r com amor-próprio; e cada
preendida para proporcionar, ou tentar proporcionar, algum ,, d - possive men e ag ·
criaturas so po era0 d .d. d tendo em conta este mesmo prm-
objeto de um ou mais dos nossos desejos, que pertencem à ação e cada afeto deve ser eci i o
nossa pessoa e incitam-nos a agir;
cípio.» _ t - 0 é a linguagem da humani-
2) Quando um desejo é realizado - quando o objeto do desejo é Acrescenta ele: «Mas ~ntao es a na lavras para expressar a di-
alcançado e nós sabemos, acreditamos razoavelmente, ou ex- dade ou, se fosse, deveríamos quere: pa rovi'ndo de considerações
perimentamos este facto - o nosso desejo é satisfeito; · ,, · . de uma açao P
ferença entre o principio b f" . e'uma ação de vingança, supo-
3) A satisfação do desejo é sempre agradável, aprazível ou satisfa- - para meu ene icio, . · ,, .
serenas que serao . · ,, d 1 um homem se podera sentir
tória; a frustração dos desejos é sempre desagradável, etc. Por- nhamos, ou de amizade, ~travbes a quat E" manifesto que os princí-.
tanto, f mal ou em a ouro. 1
arruinado, par~ az:r 1 nte diferentes e, portanto, querem pa a-
4) Os prazeres (experiências agradáveis) ou deleites que resultam pios destas açoes sao tota m~ . .d s or: tudo quanto concordam
sobre a satisfação reconhecida dos nossos desejos são realmente vras diferentes pa:a serem ~istfii:fm ar!satisfazer uma tendência no
o objeto de todos os nossos desejos. é que ambos provem de e ~ao ei os pa .
eu de um homem» (18.8). demos ver como Butler faz as
Esta conclusão não continua, visto que o argumento depende de Nestes parágraf~~ importan~es 4-7n~; Uma forma de colocar a sua
uma confusão entre o objeto do desejo e a satisfação do desejo. Os desejos distinções que ensaia,,mos an~er\~r~e não presta atenção a distinções
têm indefinidamente muitos diferentes tipos de objetos, e estes últi- questão é que o egmsn:o psico ogicof agir sempre a partir dos nos-
mos especificam o seu conteúdo. A falácia reside na suposição de que o . . Ou e" um trmsmo que nos az
essenciais. -

507
506
sos próprios desejos, que desejos, quando estas ações são bem-sucedi-
das, são satisfeitas; e estas satisfações dos nossos desejos são as nossas 3) Também julgo que Butl~r junta duas noções dea~=r-;~~:.ºa:
de felicidade bastante diferentes, em que umas p
satisfações. (Como poderiam não ser?) Ou: o egoísmo psicológico é
falso. Considerando os simples factos da experiência, os nossos desejos outras: .
_ h d · t s como quartdo Butler
- apetites, afetos e paixões - têm muitos objetos diferentes, um con- a) A primeira tem conotaçoes e, o~s ~ 'um pouco interno, a
teúdo extremamente variado que comporta muito mais do que prazer. diz que o objeto do amor-propno e. « - ] a ro-
5. Butler também deseja argumentar um outro aspeto psicológico "pria felicidade, prazer, sahsfaçao [... nunc p
que é importante; nomeadamente, que é impossível que, dada a nossa nossa pro externo para o bem da coisa, mas apenas como
cura nada
constituição psicológica, o prazer ou a satisfação sejam o objeto do . de felicidade ou bem» (par. 3, p. 187); - .
me10 . nal da noçao de amor-
b) Um planeament~ ou um p an;ã~a~1Zcordo de satisfação dos
desejo. Por outras palavras: algo mais para além do prazer deve ser 1
próprio: ord~naçao, programa te ão do nosso próprio bem.
desejado e, de facto, a focalização em prazeres e contentamentos
como se se tratasse de um determinado tipo de amor-próprio pressu- desejos destinados para ª pro ç d . 16- «A felicidade
põe realmente desejos - apetites, afetos e paixões· - que têm certos Vi or exemplo a segunda frase o par. . . -
objetos através da nossa constituição; e estes dese)ps não poderiam c~~sf
ste na satisfação de certos afetos, apetites, b1:.C::;_c~~
;~~t;~J::::i:~~~en;:;~:r~::;~;~st:a~~~;:~e~:;~
ser satisfeitos a não ser que houvesse uma «adequação anterior» entre
estes desejos e os seus objetos (par. 3).
Mais alguns aspetos:
de os satisfazer; mas a felicidad: o~ prazer nao ltam só dessa
1) Quanto a este último ponto: Butler chama a estes objetos coisas lig~ção _imediata ~~1:; :0::;~:~~~é ~;s;::s~s afetos~>.
externas. Teria sido melhor se tivesse dito que os desejos são sahsfaçao. O amo - h donística é que tende a absor-
desejos de fazer coisas envolvendo ou usando coisas externas. 0 problema com a noçao e . lº - e
d A ção de planeamento não faz isto, mas .ªP ~ca s
Vejamos o exemplo de comer; ou de ajudar outra pessoa. Isto ver tu o. no . s dizem mais direta-
não afeta a questão principal de Butler; ª ordenar esses afetos e dese1os que J)O 'prio bem·
. mente respeito para que trabalhem para o nosso pro '
2) Também teria esclarecido o argumento de Butler se ele tivesse
distinguido mais explicitamente vários tipos de desejos; por
exemplo: 4) Butler também poderá ter invocado un;:ze~ d · t~n~:
· - pensamento
mencionada
por Bradley ent.re o p~nsament~~s implicações hedonísti-
a) Desejos num eu vs. desejos de um eu, e entre o primeiro: aprazível. O último nao tem ne .u . .
i) Desejos centrados no eu: os da nossa própria honra, poder, cas: não mostra prazer em ser o ob1eto do dese1 0 ' .da dedi-
glória; saúde e alimentação; 1
5) Finalmente, But er. preo?1Pª -se em mostrar que uma vi
patibilidade natural
ii) Desejos relacionados com o eu: para a honra e poder de cada à benevolênc1a,e vutude tem ui:ã~o~ e a uarta questão,
pessoas e grupos relacionados connosco - a nossa família, . com a nossa felicidadqe. Vioer t~~~ ~ ~~nevolência ; à virtude não
os nossos amigos, a nossa nação, etc. acabada de respon .er. ªe .
nos pode faltar sem·que fiquemos desfigurados. .
. O egoísmo. é especificado através da relação com esses de-
sejos; \

b) Os afetos por outros nem são desejos centrados no eu ou rela-


cionados com o eu: incluem desejos pelo bem do outro.
O devido amor-próprio é um afeto para o nosso bem e é com-
pletamente diferente do egoísmo, como espero discutir na
próxima ocasião.

508
509
PALESTRA V direito e à justiça e movido pela benevolência real - ~ aquele ~odo d.e
vida que melhor promove o nosso bem. Ele proporciona a maior feh:
SUPOSTO CONFLITO ENTRE cidade de que somos capazes; uma felicidade em que podemos ter fe
CONSCIÊNCIA E AMOR-PRÓPRIO e esperança razoavelmente. Assim, dada a nossa natureza e? i:_os~o
lugar no mundo, não pode haver nenhum conflito ou inconsis~encia
entre a consciência, os veredictos que devemos sempre segmr, e.º
amor-próprio. Aqui devemos dizer que a consciência é a ben~volência
§ 1. INTRODUÇÃO real informada pela razão, e o amor-próprio deve ser entendi~o como
razoável e interpretado como um afeto constante para o devido bem
Vou trabalhar nas principais questões de hoje através do suposto da nossa pessoa no seu âmbito total. .
conflito ou inconsistência na visão de Butler entre o que ele diz acerca De repente, pode parecer que falta a esta solução profundidade
da Autoridade de Consciência, por um lado, e as reivindicações de filosófica. Poder-se-á dizer: «Claro, se invocarmos Deus ~ supuserm~s
amor-próprio, por outro. Sublinho que esta questão é simplesmente que somos recompensados pelas bênçãos do céu pela virtude e pu~i­
uma forma de abordar a principal questão que espero discutir; por- dos pelo inferno ardente pelo vício, então não pode hav_er ~m con,..füto
que acredito que para Butler não há nenhuma inconsistência ou con- entre a consciência e o amor-próprio. A conhecida questa~, Porque ser
flito. O mais importante é compreender porque é que isto acontece: a moral?', neste caso tem uma resposta óbvia.» Mas, ao mterpret~r a
sua ideia é, de certo modo, que quanto mais a nossa natureza aborda solução de Butler desta forma perde-se completamente o que esta no
a sua perfeição, menos o amor de virtude - de justiça e veracidade - e texto dos Sermões XI-XIV: nomeadamente uma psic_?lo?ia moral q':e
o que Butler chama de «benevolência real» (no XII: 4) se tornam numa elabora um número de diferentes noções de benevolencia e amor-p.ro-
mesma coisa. Tal benevolência é então a soma das virtudes; é «um prio; e que indica uma maneira em que podemo~ pensar ~estas dife-
princípio em criaturas razoáveis, e assim ser dirigido pela razão rentes noções como formas superiores ou mais aperfe~ço~das de
deles» (XII: par. 19, p. 223). E assim, poderíamos dizer melhor: a bene- benevolência e amor-próprio. Isto pressupõe que a b.enevolencia pos~a
volência natural foi alargada e integrada com a direção da razão, ou ser alargada ou generalizada e assim informada e one~.tada ~ela razao
seja, a consciência ou o princípio de reflexão. como princípio de reflexão ou consciência. Esta ps~c?logia moral,
Por outro lado, Butler distingue várias formas de amor-próprio. então permite que Butler explique o amor do nosso vizinho e o amor
Há amor-próprio no sentido do nosso chamado interesse, ou seja, o de D~us de tal forma que estes amores são mais congruentes ~om a
nosso interesse próprio como a opinião mundana em voga pensa nossa verdadeira felicidade e, portanto, com a forma superior de
dele. Há o que podemos chamar de amor-próprio reduzido, o de pes- amor-próprio. São os princípios desta psicologia moral que deverr:os
soas cujos interesses são maioritariamente interesses neles próprios: aprender com Butler e como supostamente c~egam a e~ta co~clusao.
na sua própria honra, poder, posição, riqueza, e assim sucessiva- Ao estudar a psicologia moral de Butler, e aconselhavel por t?tal-
mente, pessoas cujos afetos e ligações benevolentes naturais são fra- mente de lado a ideia de recompensas vindas do céu e dos castigos.
cos. Mais uma vez, o amor-próprio difere de acordo com o seu As noções de recompensa e castigo não desempenham nenhum papel
âmbito, ou seja, se for limitado nos seus interesses ao nosso estado essencial. Em larga medida - mas não completament: - podemos
temporal e imperfeito, ou se também considerar b nosso estado de interpretar a psicologia de Butler em termos de analogias seculares;
possível perfeição no futuro. Se introduzirmos a noção de amor-pró- e quando não 0 pudermos fazer, devemos pensar em Deus como a
prio razoável como afeto constante relativamente ao próprio bem da perfeição de razão e bondade, e não dispensando recompensa~ e cas-
nossa pessoa enquanto criatura razoável (com a constituição moral tigos. O Visio Dei - a visão de Deus - desempenha u~ papel imp~r­
descrita em Sermões I-III), e se assumirmos o âmbito total do amor- tante na explicação de Butler nos Sermões XIIl-~IV; e a con~un;açao
-próprio, que inclui o estado da nossa possível perfeição, então Butler da nossa felicidade real, ou próprio bem. A mmha sugestao : que
acredita que uma vida guiada pelo amor de virtude - por um afeto ao quer levemos esta ideia seriamente ou não, os princípios da psicolo-
gia moral de Butler e como funcionam não são afetados.

510
511

·-·-~·---·-~.__.__,----------

----------- -------~-
detrimento de outros, vão finalmente chegar à conclusão de que
§ 2. PORQUÊ SUPOR QUE BUTLER É INCONSISTENTE: aquele que desistiu de todas as vantagens do mundo atual, em
A RESPEITO DE CONSCIÊNCIA E AMOR-PRÓPRIO vez de violar a sua consciência e as relações de vida, tem infinita-
mente tratado melhor de si próprio e assegurado o seu próprio
Atentemos agora em várias passagens relevantes. interesse e felicidade (p. 76).
1. No prefáci?, ~ar. 21.' ?e Sermons de Butler, este último supõe
que a nossa propna felicidade é uma obrigação manifesta; no Assim, mais uma vez parece que devemos seguir a consciência,
entanto, pode entrar em conflito com o que a consciência precisa em visto que o dever e o interesse são perfeitamente coincidentes; e a
certos casos: ele resolve o conflito a favor da consciência. Diz 1 . consciência é presumivelmente o guia mais seguro; na verdade, auto-
M b . - 1 e e.
« .as a o n?açao no ado do interesse realmente não permanece. ritário para nós.
P_?is a autonda.de n~t:iral do __rr.incípio de reflexão é uma obriga- 3. A passagem mais impressionante é talvez o Sermão XI: 21: «Que
çao para os m~is p_roximos,, ~ inhmos, os mais certos e conhecidos: seja permitido como tal, apesar de a virtude e a retidão moral consis-
enqu~nto a ?bngaçao contraria pode no máximo ser não mais do que tirem realmente no afeto e na procura do que é correto e bom; con-
P.rovave~ v~sto que nenhum homem pode estar certo, em quaisquer tudo, quando descansamos numa hora serena, não conseguimos
circ.unstancias, de que o vício é do seu interesse no mundo atual justificar para nós próprios esta ou qualquer outra procura, até estar-
mm to menos. pode ele e.s~ar. cer~o contra outro: e assim a obrigaçã~ mos convencidos de que é para a nossa felicidade, ou pelo menos que
cer~a ~xcedena e destrmna inteiramente a incerta; que ainda assim
não se lhe opõe» (p. 206).
tena sido de força real sem a primeira» (fim do 21.º par., pp. 15-16). Butler aqui pode tentar proteger a religião e a moralidade de
Es:a _rassa~e~ resolv~ a questão dizendo que a consciência é mais senso comum do escárnio das doutrinas egoístas em voga. Visto que
proxima. e intima, mais certa e conhecida. Butler diz aqui que não ele não diz aqui qual a noção de amor-próprio a que recorre quando
~onsegmm~s estar certos em nenhumas circunstâncias de que 0 vício
nós, por assim dizer, descansamos numa hora serena, esta passagem
e ~o nosso interesse no mundo atual. Mas às vezes diz-se que conse- não é inconsistente com a minha sugestão geral feita no começo. Não
gmmo~ ..E de qualquer modo esta é dificilmente uma base persuasiva
me parece que Butler recue alguma vez na ideia de que para nós a
ou suficientemente profunda para a sempre preponderante autori-
consciência é supremamente autoritária. Temos de manter em mente
dade de consciência.
o que ele diz no par. 6 do III (p. 71): «A consciência não só se oferece
2. O par.. 13, sumário do Sermão III, cria uma impressão se-
para nos mostrar o caminho por onde devemos andar, como de igual
melhante. Diz que o amor-próprio e a consciência razoáveis são
aparentemente, princípios co-idênticos e superiores na natureza hu~
modo traz consigo a sua própria autoridade, que é o nosso guia natu-
ral; o guia que nos foi atribuído pelo Autor da nossa natureza: ela
mana.
pertence, portanto, à nossa condição de ser, é nosso dever andar
.º. a~or-próprio e a consciência razoáveis são os princípios naquele caminho, e seguir este guia, sem olhar em volta para ver se
principais ou superiores na natureza do homem: porque uma ação possivelmente podemos não esquecê-los com impunidade.» Assim é
po.de ..s~r adequada a esta natureza, apesar de todos os outros o guia que nos é atribuído por Deus, e o nosso dever é segui-lo.
prmc1p10s serem violados; mas torna-se desadequada se dois Recordemos também Dissertation of Virtue, onde a nossa consciência
deles. :or~m. Se conhecermos a nossa verdadeira felicidade, a tem um conteúdo que não é o mesmo que felicidade máxima ou
consciencia e o an:or-próprio conduzem-nos sempre da mesma benevolência interpretada dessa forma. A benevolência real é benevo-
for1:11ª: O dever e o interesse são perfeitamente coincidentes para a lência como um afeto por direito e justiça, etc., para o bem de outros,
ma10na ~as pessoas neste mundo, mas totalmente e em cada ins- dentro dos limites permitidos por estas noções.
tante se hve:_mos em conta o futuro e o todo; estando isto impli- Em suma, então, estas passagens - apesar de problemáticas até a
cad? na noçao de uma boa e perfeita administração das coisas. um certo ponto - não contrariam a sugerida solução geral. Parte da
Assi:n, os ~ue têm sido muito sensatos na sua geração, no sentido dificuldade pode ser o facto de o próprio Butler no prefácio a Sermons
de so considerarem o seu suposto interesse próprio, à custa e em

513
512
dizer muito pouco sobre os Sermões XIII-XIV. Isto pode encorajar-nos Mas qual é a explicação deste facto? Aqui Butler limita-se a
a ignorar a sua importância para a visão defendida por ele. De facto, afirmá-lo. É um princípio básico ou um corolário desse princí-
eles são a culminação da sua explicação sobre as várias noções de pio? Talvez consigamos obter uma resposta no XI~: par. 23 (ver
benevolência, amor-próprio e felicidade, e, portanto, dos princípios também XIII: pars. 7-10) Pois Butler diz aqui: ~<A natureza
da sua psicologia moral. humana é assim constituída, todo o bom afeto implica o amor
de si próprio; torna-se no objeto de um novo afeto na mesma
pessoa. Assim, ser reto implica nele o amor da retidão; quer est.a
retidão, a benevolência ou a bondade sejam vistas como se esti-
§ 3. ALGUNS PRINCÍPIOS vessem na nossa própria mente, ou na de outra pessoa: e o amor
DA PSICOLOGIA MORAL DE BUTLER de Deus como sendo perfeitamente bom, é o amor da bondade
aperfeiçoada contemplada num ser ou pessoa» (p. 228).
1. Comecemos com o princípio que discutimos na última ocasião: Isto é reafirmado no XIII: 3 (p. 230); XIII: e par. 6 (pp. 234 e
«Todos os afetos particulares, sejam eles quais forem, ressentimento, segs.), onde Butler diz: «Ser um homem justo, bom e reto, traz
benevolência, amor por artes, conduzem igualmente a um percurso nitidamente consigo um afeto peculiar por amor de justiça,
de ação para a sua própria satisfação, satisfação de nós próprios, por bondade e retidão, quando estes princípios são objetos de con-
exemplo; e a satisfação de cada dá gozo; até agora, então, é manifesto templação. Se um homem aprovar, ou tiver um afeto por, qual-
que todos têm o mesmo respeito pelo interesse privado» (XI: par. 14, quer princípio em e para si próprio; coisas ~ecundárias tida.s. ei:n
p. 197). . conta, será a mesma coisa quer ele o considere na sua propna
Porém: «Esta satisfação não é o objeto dos afetos; a procura delibe- mente, ou na de outra pessoa; em si próprio ou no seu vizinho.
rada de prazer como tal pressupõe os afetos, que não têm prazeres Esta é a explicação da nossa aprovação, do nosso amor moral e
como objeto». Note-se que no XIII: par. 13 (pp. 239-240) Butler diz que afeto por personagens boas; que não podem estar senão naque-
a questão: Se devemos ou não amar a Deus para o bem Dele ou para les que têm algum. grau de bondade real neles próprios, e que
o nosso é um mero erro de linguagem. Ele apresenta o mesmo aspeto distinguem e tomam conhecimento do mesmo princípio ~ou­
aqui mais cedo contra Hobbes e outros relativamente ao egoísmo. tros.» Chamemos a isto um princípio básico de afeto refletivo:
Nós devemos amar a Deus como o objeto mais alto e adequado da um bom afeto - um afeto pela virtude - gera um afeto para ·si
nossa benevolência real aperfeiçoada (informada e dirigida pela próprio6. Também explica porque é que não podemos vio~a~ a
nossa razão), mas é claro que o deleite que encontramos neste amor consciência sem autocondenação: não devemos gostar de v1c1os
constitui a satisfação total da nossa natureza e, portanto, responde. ao em nós próprios; :
b) A seguir há dois princípios que geram amor: Primeiro, o Prin-
nosso amor-próprio razoável que cuida da nossa felicidade real.
cípio da Excelência Superior, XIII: pars. 7-8 (pp. i34-235).
Butler usa as distinções que discutimos anteriormente para dizer que
Segundo, o Princípio da Reciprocidade: boas intenções e
não há nenhum conflito entre o amor de Deus aperfeiçoado e o nosso
ações para nosso benefício e bem geram uma gratidão natural
próprio bem.
e amor que retorna (XIII: 9-11, pp. 236-238);
2. Há vários princípios psicológicos importantes que. se aplicam
e) A seguir há uma presunção básica: nomeadamente que estes
à benevolência como um afeto para a virtude e o b~m público que a
princípios não funcionarão - particularmente o Princípio (a) de
distinguem de outros afetos em geral: · ·
amor refletivo - a não ser que tenhamos algum grau de bon-
a) Um é sugerido no par. 16 do XI (p. 201): «Ü amor do nosso vizi- dade moral: um afeto, por exemplo, por bondade na nossa
nho[ ... ] como princípio virtuoso, é satisfeito por uma consciên- mente e caráter: XIII: 9, p. 236;
cia de iniciativa para promover o bem de outros; mas
considerada um afeto natural, a sua satisfação consiste na ver- 6 Ver a afirmação no par. 16 do XI (p. 168) citada acima. Ver a seleção que aparece
dadeira realização desta iniciativa». imediatamente sob a secção 2a acima referida.

514 515

- i
d) ~ Princípio da Devida Aspiração: XIV: 3, p. 244, que Butler rela- 7. Hume responde a Butler de duas formas:
ciona com Resignação = medo-esperança-amor:
a) Hume tenta admitir a distinção de Butler de Autoridade vs. força
«A resignação à vontade de Deus é toda a piedade: inclui
através da distinção entre a calma vs. paixões violentas;
nel~ tudo o que é bom, e é uma fonte da tranquilidade e calma
b) Hume tenta responder à crítica do utilitarismo de Butler (Hut-
mais constantes da mente. Existe o princípio geral de submis- cheson) a respeito de justiça pela distinção entre as virtudes
são na nossa natureza.»
artificiais e as naturais. (Hume admite que Butler tem razão ao
e) Princípio de Continuidade: XIII: 12, pp. 178 e segs.7.
dizer que a justiça nem sempre é benéfica.)

8. Butler não pretende explicar tudo ou aprofundar ou sistemati-


zar os dados da nossa experiência moral. A teoria sistemática não é
o seu objetivo. Sabemos o suficiente para a nossa salvação, e deve-
mos ser claros e mantermo-nos firmes relativamente a esse conheci-
APÊNDICE: NOTAS ADICIONAIS SOBRE BUTLER mento.
Sturgeon: sobre Butler Philosophical Review (Schneewind pensa de
ASPETOS IMPORTANTES EM BUTLER forma errada).
O capítulo de Whewell sobre Butler no seu livro History of Ethics:
(Hobbes e Butler, as duas grandes fontes da filosofia moral mo- «Butler obteve bem os dados; a nossa tarefa é compreender a teoria»
derna: Hobbes colocando o problema - o escritor a rebater. Butler for- (ou algo assim).
necendo uma resposta profunda a Hobbes.) 9. Relacionar isto com Kant; incluindo a sua noção de fé razoável.
1. Autoridade vs. Força. 10. Butler propõe uma nova base para a autoridade de princípios -
2. Dissertação noção de RE =começa aqui8. sem ser revelação ou vontade divina; mas experiência moral (con-
3. Sobre método - último parágrafo. Dissertação sobre Identidade forme está disponível para o senso comum e consciência).
Pessoal.
4. Egoísmo contra Hobbes: Butler defende projetos morais tanto CONSCIÊNCIA E AUTORIDADE DE CONSCIÊNCIA
como ~ma parte do eu como outras partes do eu: os nossos desejos
naturais, etc. Kant aprofunda isto relacionando ML [Moral Law (Lei Prefácio: 24-30, esp. 26-28; Sermão I: 8-9; II: inteiro.
Moral)] com o eu R + R (Racional e Razoável).
5. Em Dissertation Butler ataca a explicação de Hutcheson do sen- NATUREZA SOCIAL DO HOMEM
tido moral. Sermão I: 9-13; cf. esp. 10, 12 .
. 6. O método ger~l" de. Butler é apelar à experiência; mas há tipos Não existe nenhuma autoaversão no homem, ou o desejo de ma-
diferentes de expenencia, moral vs. não moral, memória vs. não goar outros para o seu próprio bem, ou de injustiça, opressão, traição,
memória (como na Ref. em 3). ingratidão, etc. (também Kant).
Prefácio: 26-28: violar a consciência é ser autocondenado, não
podemos agir assim sem «auto-ódio real).
7 [Não é ~laro ô que _este princípio possa ser. As palestras acabam aqui abruptamente,
sem mais elaboraçao ou sumário. - Ed.]
8 [«RE» parece referir-se a equilíbrio refletivo, e «Dissertação noção de RE» refere-se CONFLITO [DE] CONSCIÊNCIA VS. AMOR-PRÓPRIO
tanto a «Dissertation: Of Personal Identity» de Butler ou à própria dissertação de Prefácio: 16-30; esp. 24; III: 9; XI: 20.
Raw~s e a sua explicação inicial de equilíbrio refletivo compreendida lá, tendo sido
publicada em «Üutline of a Decision Procedure for Ethics» (1951), in Rawls, Col- Analogy: 87 e 87n.
lected Papers, ed. Samuel Freeman, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, interesse religioso e temporal de amor-próprio cf. 70 e segs.
1999, cap. 1. - Ed.]

516 517
Consciência em Analogy: A constituição da nossa natureza exige que nos governemos
através da consciência: P:25.
1) Não pode partir com[sem] autocondenação: 111.
A. nossa constituição faz-nos uma lei para. nós próprios e su-
2) Os seus ditames são as leis de Deus; leis incluindo sanções: 111.
jeita-nos à punição, mesmo quando duvidamos da sanção:
P:29.
CONFLITO [DE] CONSCIÊNCIA E AMOR-PRÓPRIO: (PASSAGENS)
A sua autoridade: P:16-30.
Prefácio: A consciência como aprovação de alguns princípios ou ações,
Conflito com o seu próprio interesse, felicidade abandonada etc.: P: 19.
sem uma solução por Shaftesbury: 26; 27-30 também rele- A consciência e a sua autoridade é o que distingue. o homem
vantes. dos animais: P:18-24.
Conflito resolvido por certeza epistémica [de] consciência: 26. A consciência reclama direção absoluta da nossa constituição:
Sermão I: P:24.
Parágrafo 15: aparece para pôr consciência: e amor-próprio Esta reivindicação tornou-se independente da força de influên-
num parágrafo. ' cia: P:24.
Sermão II: (evita comparar consciência a amor-próprio). O erro de Shaftesbury: ter um esquema em que a força decide:
Princípio da consciência no coração, e supremo: 8, 15. P:26.
Sermão III: discussão 6-9: Porque é que a consciência prevalece: argumento epistémico
·Interesse próprio limitado impossível para nós: 6-7. de certeza e autoridade: P:26.
Interesse próprio (presente e temporal) maximizando satisfa- Não podemos violar a nossa consciência sem autocondenação
ções globalmente. e autoaversão: P:28.
Coincide com virtude e o seu percurso de vida: 8. Conflito de consciência e amor-próprjo: 16-30..
E assim fará na distribuição final de coisas: 8. Não depende da religião mas de questões da nossa própria
Consciência e amor-próprio devidamente compreendidos mente: Analogy I: 7:11.
como co-idênticos,. mas temos sempre de seguir a consciên- Consciência necessária para governar e regular outros elemen-
cia: 9. tos da natureza humana: II: 8.
Sermão XI: 20..:.21. Argumento de desproporção II: 40.
Objetivo de Butler: mostrar-nos a nós próprios: II: 1. Método e intuicionismo.
Sobre Consciência: Relação a Clarke, etc. P:l2.
O seu papel na Constituição da Natureza Humana: Recurso a factos morais como o próprio método de Butler:
As.partes da natureza humana iniciadas (Const = Econ): P:14. P:l2, 27; II: 1.
Supremacia da consciênda define constituição da natureza Recurso à experiência moral como sui generis: P:16;
humana. P:14. Recurso ao sentido moral do coração e da consciência natural
Todas as partes governadas pela consciência, dá ideia de cons- de cada pessoa: II: 1.
tituição ou sistema de natureza humana: f:14; Este sistema (Comparar com recurso ao sentido referente ao conheci-
adaptado à virtude: P: 14 , mento das coisas.)
O facto de a nossa constituição ser por vezes desordenada não Recurso a emoções morais e o ao seu papel: ex. vergonha: II: 1.
a torna numa não constituição: P:14. Eles não podem estar totalmente enganados: II: 1.
Em virtude da consciência e da nossa constituição somos agen-
tes morais e responsáveis: P: 14. Porque é que a nossa natureza é social?
Nada mais contrário à nossa natureza do que o vício e a injus- 1) Demonstrado por apetites e afetos, etc. (Sobre ressentimento,
tiça: P:l5. compaixão, Sermões XI-XII.);

518 519
2) Pelo princípio geral da benevolência; Tem autoridade sobre outras partes da nossa constituição: 24.
3) Pelo contexto de consciência; Esta autoridade distingue-se da força: 24.
4) Pelo facto de que o amor-próprio razoável nos levaria a ser Esta autoridade é sugerida por aprovação reflexa: 25.
sociais; Critica Shaftesbury: quem omite esta autoridade: 2.6-30.
Conflito de consciência vs. amor-próprio racional: 26, 41; III: 5-
A constituição da natureza humana é real ou meramente ideal? -9; XI: 20-21.
1) As partes são reais, incluindo a consciência; Porque é que a consciência prevalece sempre (explicação
2) É ideal na medida em que pode ser desordenada; e, de um epistémica): 26.
modo geral, a consciência não é seguida; Recurso a interesse e amor-próprio: 28.
3) Manifesta-se nos veredictos reais de consciência de pessoas A consciência em transgressão leva à autocondenação, autoaver-
imparciais e corretas, dada uma boa hora; são: 28.
4) A constituição é então o que nós seríamos nas nossas ações se Homem uma lei para si próprio: 29.
seguíssemos a consciência de um modo geral; : Porque é que a punição ainda é justa de não crentes: 29.
5) Esta constituição e supremacia da consciência 'fazem-nos uma Aceita a tese de Shaftesbury: a virtude tende para a felicidade,
lei; torna-nos responsáveis, agentes razoáveis e moralmente res- o vício para a infelicidade: 26, 30.
ponsáveis; Como as obrigações demonstraram; o que a nossa natureza e
6) Butler diria: Tudo isto se baseia nos factos da nossa experiência condição exigem: 33.
moral. Será Butler intuicionista, como foi Clarke? Experiência moral sui generis: 16, 24.

Prefácio Sermão 1
Aceitação do intuicionismo à la Clarke por Butler: Pref: 12. Virtude a LN (Lei Natura!) a que nascem9s sujeitos: 2.
O próprio método de Butler: Pref: 12 e segs. Toda a nossa constituição adaptada à virtude: 2.
Recurso a experiências morais como questões factuais: 12, Natureza social do homem: complementaridade de partes da
27. nossa constituição: 4 e segs.; 10.
Constituição (ou economia) da natureza humana: Pref: 12s; 14. Nascemos para a sociedade e para o nosso próprio bem: 9.
As várias partes: 14. Princípio de benevolência: 6.
Relações de partes e supremacia da consciência: 14. Princípio de amor-próprio: 6 (amor-próprio sereno) 14; II: 10-11
Propósito: adotado à virtude: 14. Analogy: 1: 3-7.
como relógio que diga as horas: 14. Coincidência benevolência e amor-próprio: 6; III: 9: cf III: 5-9.
lrrelevância das desordens: 14. Superior a paixões: II: 10-11.
Constituição de agentes responsáveis para desordens na Afetos e paixões particulares: 7.
constituição: 14. Quão distintos de princípios de benevolência e amor-pró-
Nada mais contrário à natureza humana do que o vício, a prio: 7.
injustiça: 15. Porque é que são considerados.instrumentos de Deus: 7.
Pobreza e dor não e porquê: 15; III: 2. Princípio de reflexão, ou consciência: 8.
Princípio do amor-próprio: 35. Demonstrado pelo recurso à experiência moral: 8.
Paixões e apetiteS' particulares: 35. Nada dessas coisas na natureza humana como:
Variedade de motivos humanos, revezando-se: P:21. Autoaversão: 12.
Noção de autoridade de consciência: 14, 16, 19. Má-vontade: 12.
Diferença do tipo de experiência moral a respeito de Harding: Amor de injustiça: 12.
16. Causa de mal e maldade: 12; Geral: 56.

520 521
Natureza do homem julgada pela maior parte da humanidade: 13. A. Introdução.
Autoridade de consciência vs. influência: II: 1-8, 12-14; III: 2.
Sentido no qual natural: II: 8. B. Duas doutrinas do contrato social: (3 semanas).
Função da consciência: II: 8; III: 2 (gerir e presidir). 1. Hobbes:
Faz-nos leis para nós próprios: II: 4, 8, 9; III: 3. a. Natureza Humana e a Instabilidade do Estado de Natureza.
Prerrogativa, supremacia natural de consciência: 8, 9; III: 2. b. A Tese de Hobbes e os Artigos de Paz.
Exemplo para ilustrar conduta não natural: II: 10. ·c. Papel e Poderes do Soberano.
Deus colocou a consciência na nossa constituição para ser o 2. Locke:
nosso verdadeiro governador: II: 15; III: 3, 5. a. Doutrina da LFN.
Bem e mal podem ser discernidos pelos corretos sem benefício b. Contrato Social e os Limites da Autoridade Política.
de princípios e regras (de filosofia): III: 4. c. A Constituição Legítima e Problema de Desigualdade.
Temos a regra do bem dentro de nós: III: 4.
A consciência veicula a sua própria autoridade: a obrigação de
C. Duas doutrinas utilitárias: (3 semanas).
obedecer reside no facto de ela ser a lei da nossa natureza:
III: 5. 1. Hume:
A consciência como voz de Deus: III: 5 (interpretação de a. Crítica à Doutrina do Contrato Social.
Bernard), ver Analogy 1: 3:15-16; 1: 7:11; II: 1:25; 1: 3:13. b. Justiça, Propriedade e o Princípio de Utilidade.
A virtude adequada à nossa natureza:· III: 9. 2. J. S. Mill:
Recurso à experiência: II: l; 17. a. O Princípio de Utilidade Revisto.
Objetivo de Butler: II: 1. b. O Princípio de Liberdade e Direitos Naturais.
Classificação idêntica de consciência e amor-próprio: III: 9. c. Sujeição das Mulheres e Princípios do Mundo Moderno.
d. Propriedade Privada, Mercados Competitivos e Socialismo.

D. Marx: (2 semanas e meia)


a. O Papel e Conceções de Justiça.
b. Teoria da Consciência Ideológica.
c. Teoria da Alienação e Exploração.
PLANO DO CURSO d. Conceção de Uma Sociedade Humana Racional.
FILOSOFIA 171:
E. Conclusão: Algumas Visões Contemporâneas.
FILOSOFIA POLÍTICA E SOCIAL a. Esboço das Principais Ideias de TJ.
(Primavera de 1983) b. Sua Relação com Outras Visões.

Esta aula irá tratar várias abordagens sobre o contrato social e o TEXTOS
utilitarismo que têm sido importantes no desenvolvimento do libera- Hobbes, Leviathan, ed. Macpherson (Pelican Classics ).
lismo enquanto doutrina filosófica. A devida atenção será prestada a Locke, Treatise of Government, ed. Laslett (New American Library).
Marx como crítico do liberalismo e, havendo tempo, a aula terminará Hume, Enquiry Concerning the Principies of Morals (Liberal Arts).
discutindo TJ [A Teoria da Justiça] e outras visões contemporâneas. J. S. Mill, Utilitarianism e On Liberty (Hackett); Subjection of Women
O enfoque da aula é limitado na esperança de conseguir atingir (MIT).
alguma profundidade de compreensão. Marx, Selected Writings, ed. McLellan (Oxford).

522 523
LEITURAS
Levia~han; Pt. I, esp. caps. 5-1.6,. Pt. III integral; Second Treatise, integral;
Enquiry, integral, e Of the Original Contract (fotocópias); Utilitarianism
integral, On Liberty, esp. caps. 1-3; Subjection of Women, integral; e~
McLella1:1, ed., On the Jewish. Question, #6; Economic and Philosophical
Manuscrzpts, #8; On James Mill, #10; Theses on Feuerbach, #13; German ÍNDICE
Ideology, #14; Wage-Labor and Capital, #19; Extratos de Grundrisse, #29·
e Capital; e Critique of the Gotha Program, #40. '

As aulas são às segundas e sextas. Haverá um exame final e um


trabalho escrito trimestral de aproximadamente 3000 palavras.

Prefácio do editor ................................................................................·.... 9


Notas prévias........................................................................................... 17
Textos citados .. ... ... .. .... .... .. ... ... ... ........ .......... .... .... ... ... ... .... ..... ... ...... .... .. .. 19

Introdução: notassobre filosofia política............................................ 21

PALESTRAS SOBRE HOBBES


PALESTRAI - O MORALISMO SECULAR DE HOBBES
E O PAPEL DO SEU CONTRATO SOCIAL............................... 45
PALESTRA II -A NATUREZA HUMANA E O ESTADO
DE NATUREZA............................................................................ 65
PALESTRA III -A EXPLICAÇÃO DE HOBBES SOBRE
RACIOCÍNIO PRÁTICO.............................................................. 81
PALESTRA IV - PAPEL E PODERES DO SOBERANO ................ 103
APÊNDICE - ÍNDICE DE HOBBES ................................................ 125

PALESTRAS SOBRE LOCKE


PALESTRAI-A SUA DOUTRINA DE LEI NATURAL ............... 133
PALESTRA II - DESCRIÇÃO DE UM REGIME LEGÍTIMO ....... 155
PALESTRA III-A PROPRIEDADE E O ESTADO DE CLASSES .. 173

PALESTRAS SOBRE HUME


PALESTRAI - «DO CONTRATO ORIGINAL» ............................. 197
PALESTRA II - UTILIDADE, JUSTIÇA E ESPETADOR
JUDICIOSO ................................................................................... 213

524 523
PALESTRAS SOBRE ROUSSEAU PALESTRA IV - O ARGUMENTO DE BUTLER CONTRA
- O EGOÍSMO .................................................................................. 502
PALESTRAI - O CONTRATO SOCIAL: O SEU PROBLEMA ..... 231 PALESTRA V - SUPOSTO CONFLITO ENTRE CONSCIÊNCIA·
PALESTRA II - O CONTRATO SOCIAL: SUPOSIÇÕES E AMOR-PRÓPRIO ...................................................... ~\ .............. 510
E VONTADE GERAL(!) ............................................................... 255 APÊNDICE - NOTAS ADICIONAIS SOBRE BUTLER ................ 516
PALESTRA III - VONTADE GERAL (II) E QUESTÃO
DE ESTABILIDADE ...................................................................... 271

PALESTRAS SOBRE MILL


PALESTRAI -A SUA CONCEÇÃO DE UTILIDADE .................. 295
PALESTRA II - A SUA EXPLICAÇÃO SOBRE JUSTIÇA ............. 311
PALESTRA III- O PRINCÍPIO DE LIBERDADE .......................... 331
PALESTRA IV-A SUA DOUTRINA COMO UM TODO ............ 345
APÊNDICE - OBSERVAÇÕES SOBRE A TEORIA SOCIAL
DE MILL ......................................................................................... 363

PALESTRAS SOBRE MARX


PALESTRAI -A SUA VISÃO DO CAPITALISMO COMO
SISTEMA SOCIAL ........................................................................ 369
PALESTRA II-A SUA CONCEÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA .. 387
PALESTRA III - O SEU IDEAL: UMA SOCIEDADE
DE PRODUTORES LIVREMENTE ASSOCIADOS ................. 407

APÊNDICES ............................................................................................ 429

QUATRO PALESTRAS SOBRE HENRY SIDGWICK. ....................... 431


PALESTRAI - OS MÉTODOS DE ÉTICA DE SIDGWICK .......... 431
PALESTRA II - SIDGWICK EXPLICA JUSTIÇA
E O PRINCÍPIO CLÁSSICO DE UTILIDADE ........................... 442
PALESTRA III - O UTILITARISMO DE SIDGWICK ..................... 450
PALESTRA IV - RESUMO DE UTILITARISMO ........................... 471

CINCO PALESTRAS SOBRE JOSEPH BUTLER ........ :'....................... 477


PALESTRAI -A CONSTITUIÇÃO MORAL PA NATUREZA
HUMANA ...................................................................................... 477
PALESTRA II -A NATUREZA E A AUTORIDADE
DE CONSCIÊNCIA ................................................. .-..................... 484
PALESTRA III -A ECONOMIA DAS PAIXÕES ...... ;; .................... 495

524 525

----r ----------- - ------ -- --- .

Você também pode gostar