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Laboratório de publicações Fiasco//Lola Frita Lab, 2020.

Dança comigo, enquanto eles dormem © rosa neves 2019//2020.

fiascool.tumblr.com
Para meu pai, que me deu essa dedicatória.
Para os óculos escuros da professora que me achava brilhante.
4.
Last evening we went dancing and I broke your leg.
Forgive me. I was clumsy, and
I wanted you here in the wards, where I am the doctor!
Kenneth Koch, Variations on a theme by William Carlos Williams
Três ou mais coisas inexplicáveis
que dariam poemas lindos sobre algo

:Imagem borrada das luzes


no plano de fundo
quando se observa gotas de chuva
escorrendo pelo vidro
(estando dentro do automóvel
em movimento)

:Bálsamo do silêncio na parte da piscina


que afoga adultos

:Coragem de segurar oxigênio nos pulmões


até se sentir pronto a explodir

:Desespero, subir à superfície


necessidade de tomar fôlego

:A recuperação do fôlego

:Susto de receber uma ligação


de alguém que desligou-se

:O susto, solamente

:Medo que as pessoas possuem


de serem esquecidas

:Impacto
quando nos dissipamos
na memória de alguém.
NMM

Zero hidrográfico das minhas emoções


minhas lágrimas sempre caem acima do nível do mar.
Duas danças no
coração de Einstein

O tempo que um jato leva daqui à lua


quilómetros de distância entre a gente agora
e aquilo que queremos ser

Tempo de decadência dos novos amores


da política amiga
do tempo em si

Relógios relativos em um mesmo país

Ar rarefeito - ser alpinista por alguém


tempo em que não tínhamos
acanho de dançar

Desejo retraído fazendo tremer


as pernas e os pés

Terremotos em Nara, no Japão


porque você pisa demais nos meus

Epidemia que fez todos dançarem


até a morte
em Estrasburgo, na França

Dançomania causando
explosões miocárdicas;
paralisia das partes coloridas
do cérebro;
colapso do corpo
Eletrochoque

Multidão de almas exaustas


caminhando em direções similares
buscando a reencarnação

Multidão ao paraíso aos pares


dançando e só.

Havia um tempo
para estudar
os gatilhos das histerias coletivas
que terminaram
em morte

Preferíamos, naquela época


permanecer deitados
no chão
embora irritasse as plantas
nossas peles, nossos ossos
pesados

Não havia real problema naquilo


todos esperam pelo fim do mundo
de alguma maneira.
Nostradamus o previu
a Bíblia previu
os Maias previram
Eu também - isso é parte das coisas
das quais me orgulho
Tudo caiu em mim e eu já sabia
Briguei muito com Bauman
Bauman brigou muito comigo

Como previsto por mim


pelo sonho da cigana.

Minha alma cansada de caminhos


de caminhar
em busca dos objetos possíveis
Compatíveis com minha alma.

Minha alma cansada de dançar


escrever poemas.
Minha alma exausta e histérica
pinta quatro mãos
no que ainda não desabou no meu mundo.
Mãos vermelhas.

Você deitada comigo no chão


me perguntando se estou acordado

Coisinha, estou acordado?


Vapor barato ou para
quem tomou meu navio

Honeybaby don’t cry


Contemple o sangue nas calçadas
é tão incrível

Você disse - afaste-se!


pois queria um abraço

E me afastei
porque sei que há um ímã
no centro da terra
puxando todos nós
feitos de ferro (e outros materiais
que enferrujam)

Isto é o que chamamos gravidade.

Então não existe o perigo de voar


por enquanto

Honeybaby don’t cry


Enquanto ainda caminhar posso temer
seu encontro por aí.

Mantenho ambos pés no chão


e uma das mãos segura
as cordas do cais

Aquele homem morreu


na frente da igreja
com três tiros
Uma pena igrejas
não possuírem escadarias para os céus
e sim telhados.

Honeybaby don’t cry


Me exigem coerência
por amar demais os céus
e achar nos telhados a parte
mais bonita de ser cidade

Você disse - volte!


(Honeybaby don’t cry)
pois queria ir embora
daqui

Um dia seremos astronautas


quando o ímã permitir

Se a polícia não nos pegar


e descer a coça
nos nossos rebeldes
corações

Honeybaby don’t cry


Tínhamos o costume de nos reunir
para lamentar
o fim trágico dos grandes bandidos
que emplacaram perseguições
cinematográficas
pois queríamos cursar cinema

Discussões aos goles de vinhos


sobre como nosso bairro possuía
poucas saídas se um dia precisássemos fugir
Da polícia
dos bandidos
do tédio
Honeybaby don’t cry.

Você me disse Se afaste que estou


acendendo o pavio dessa grande bomba

Pois pretendia dizer


Todas as coisas são temporárias
o amor não é

O grande ímã
um dia nos permitirá
que voemos

Você sempre disse que queria morrer


em uma grande tragédia

Para onde todos vão correr


quando nossos aviões começarem a cair?
As tragédias acontecem
sempre ao redor da cabeça

São 20:00 horas e penso


na queda de aviões

Em como preciso provar


a teoria da gravidade
sempre que escrevo

Às 00:30 o cachorro se aproxima


das grades da janela
do nono andar
para observar a cidade
seu nome é Jonas

(o que nos separa


dos cachorros
é a frequência sonora
do choro?)

São 3:00 e o cachorro se retira


para sonhar seus sonhos
de cachorro

Anjos tocam enquanto ele dorme

Anjos brincam de bang-bang


enquanto deus dorme

São 5:30 e Jonas volta até a janela


céu que está um azul esquisito
nem dia nem noite
uma cor - não melancólica
uma cor nostálgica
Às 5:30 o céu parece mais um luto

O cachorro acorda para chorar


a falta de alguém

São 7:00 e não sei por que


me pego a imaginar
o que Jonas faria se não houvesse
grades na janela

Como quem imagina


de que matéria são feitas as pessoas

Não encontro respostas

São 7:01
E os aviões retomam suas quedas.
As turbulências acontecem
sempre ao redor da cabeça

Mergulhei
fui fundo na pesquisa
ela que pensou
que aprendemos

Éramos como Bonnie e Clyde


fumando cigarro
ouvindo músicas aos efeitos
da chuva: “vocês nunca saberão de
nada”

Deus ama meia dúzia de


pessoas
e Jonas

Ainda bem que para ele


todos são iguais
então posso acreditar
que estaremos todos
inclusos

o Astral se divide entre Marte


e planetas sem nome

Afundo
agora escuro e rarefeito
pesco ainda alguns animais marinhos
que parecem voar

Como tocar os ossos desta


criatura selvagem
sem eriçar os pelos?

Objeto de estudo
a lista se prolonga
como a vida e a cidade

Uma Hidra nada comigo


não sei em qual
das cabeças acreditar
aquelas que falam
aquelas que mordem
aquelas que pensam
ou as que olham

Perco minha cabeça no processo


(não é tudo um processo?)
a retomada é sempre mais lânguida

Há doze nomes na lista de Deus


e um especialmente
em destaque

Os demais
se modificam numa velocidade
estúpida

Novos anjos são contratados


para fins de catálogo

A estante dos homens


irradia ondas magnéticas
com certo
desvelo emocional
Na velocidade em que o coração bate
:é uma constante.
Monalisa

Lona nunca esquece de fechar as janelas quando chove


e isso me lembra muito a palavra “esmero”.
P.P.P

Arremesse os sonhos pela janela


não se importe com o vidro
não há ninguém na sala

Arremesse os problemas pelo telefone


estou sozinho no quarto
enquanto EXISTIR escuridão

Recebeu meu guia de desaparecimento intitulado:


“Calhamaço para toda uma vida de silêncio”?
Me responda no barquinho à deriva

Ele traz as mensagens futuras


ele traz contos da terra nova
traz melodias de um povo que ainda não canta

Ele traz os pescadores dançarinos que encontramos em Paraty


Pareciam piratas quando batiam suas pernas de pau
no convés

Pareciam piratas quando choravam ausência


do papagaio ou do olho esquerdo
do capitão

Carrego comigo aquilo que nos disseram


“Sempre alimente os peixes que nadam
em suas lágrimas e assim nunca morrerão de fome”

Porque enquanto puder chorar


poderei me nutrir - foi a nossa conclusão

Depois as letras
as cartas.

Escrevemos primeiro dizendo


“me mande um casal dos azuis quando reproduzirem
em seus olhos” - era um pedido mútuo.

Porque não havia ninguém em casa quando voltei.

Na segunda vez informava


“não se esqueça que o corte é contrário ao horizonte”

Porque não havia ninguém na sua casa


no seu aniversário.

Depois fiz anotações para mim


por todas as paredes da casa

Porque não havia LITERALMENTE


ninguém por perto.

Nossa última conversa


rodeava sobre as cores da madrugada
e no número oito que os patinadores desenham no gelo

em como eles nunca estão interessados em dizer algo


sobre o infinito.
Felina: notas do desabafo de uma amiga.

O que custa, Daniel, fingir que me enxerga, que não está sozinho? Quando meus dedos te tocam e arranham, está
arranhando a pele e não o coração. Por que não encena atenção quando falo de literatura? Quando leio meus versos?
Na noite, te penso ler meus versos. No pensamento você pensa em mim, lendo lentamente, me abraçando de sussurros.
Estou ali do seu lado, completa, o abajur não me incomoda. Estou de olhos fechados. Você acha que estou dormindo, por isso
sussurra, suspira.
Eu gosto do Daniel que penso. Poderia fugir com o pensamento.
Viver de nuvem.
Mas o intangível talvez me irrite, não poder ter nas mãos. Amar sem roupa, de fora e de dentro, beber da sua saliva com
todas minhas bocas. Te amo tanto tanto, meu tutano. Tarântulas das suas tranças, medo de te perder. Você não vê?
Sabe aquele verso que falo, que não morro, caio despenco absoluta? Sonhei, Caetano Veloso tinha morrido, tocava sonhos,
quando a música se fez mais clara e mais sentida, quando a poesia realmente fez folia em minha vida, acordei. E o que custa você
acordar do meu lado? Me beijar de manhã, passar os dedos na minha maça, chupar minhas uvas, fazer uma salada de frutas.
Redesenhar meus traços. Me amar de cabeça para baixo. Parar de ser filho da puta?
O que que custa? Sou tão sincera quando te devoro, com os olhos. Te fotografo.
Quando você esbarra ombro a ombro, bebe comigo, fala das garotas que te irritam de tanto amar. E se eu te amasse
menos, não posso? Quero ter um filho com seus olhos. Escombros.
E tempestades.
Me chama para dançar? Não chama. O que posso fazer desta chama que não apaga? Vira brasa, só incendeia. Explode.
Você fuma tanto, me traga. Apaga o cigarro na minha perna depilada? Escuta meus segredos do íntimo, consome esta intimidade.
Daniel quando anda de bike deixa marcas de pneu na minha epiderme, desce de bote no meu sangue. Vou escrever uma
carta te culpando dos meus cortes, posso me arruinar. Sou uma mulher de fases, lunar. Felina, que caminha sobre o telhado da
sua casa, atiça os cachorros e faz você pensar em fantasmas.
Minha fantasia é te ver nos saraus, com as pessoas sensíveis, trincadas. Cuidado, frágil é o caralho. Pisa mais em mim.
Você é de pedra e eu de agua, bato bato e não te furo, quero te atravessar. Tiro ao alvo. Você não costuma me errar. Naufrago.
Enfaixa minhas feridas, dá beijinho que sara, me segura quando desabo. Daniel, me come, me come com vontade, o que
custa? Estou sem tempero? Pois então me tempera. Imperatriz. Vem ser o rei do meu castelo de cartas, meu às de espadas no
poker, minha carta na manga. Minha folhinha de agenda. Cheira meus cabelos, lavei com sabonete de coco.
Você não gosta?
Faz música das minhas declarações, se você não está feliz com o ritmo. Finge que sou sua fanta, me engole de vez. Eu sou
além do que os olhos dizem. Tenho medo de aviões e você me deixa alta, sou baixinha. Finge, mente, escuta mais uma vez o som
do meu coração. Tumtumtum. É paixão e mais mais mais. Olha o trem chegando.
Vou para Veneza estudar. Fazer doutorado, virar doutora. Deixa eu te medicar? Não me deixa ir embora, me impede,
detém? O que custa, você me amar um pouco, não estou pedindo muito, eu sei dos seus gostos. Eu te conheço. Por que você não
quer me conhecer? Olha, eu sei que todo mundo me chama de Ricardo, mas o que custa o que custa?
Fingir que sou Maria?”
Visita

Quando as chamas se alastraram pelas ruas dentro de ti

interditando as pontes que ligam seu corpo no meu

(Desabando

Destruindo

Rasgando meus livros

Cartas que nem escrevi

Poemas

não lidos)

Quando as chamas afastaram minha cidade da sua

Afundando

nessa Atlântida afundando

no fogo

Se os atlânticos

não notassem

a falta que faz


Eu indo visitar seu corpo

(enquanto minha cidade

trava guerra

com a sua)

Teremos feito o protesto

devido.

Mas jamais esqueceremos

aaaaaaaah

como era bom se retirar

dormir

sonhar

Que a paz chegaria um dia para nós

com roupas brancas humildes

parecendo uma mãe

Que a paz chegaria materna

bater na porta

dizer Oi eu sou a paz


E nós poderíamos

responder desculpe

me desculpe senhora paz

eles não moram mais

aqui.
Ensaio para sempre

— Meu amor, até que a morte nos separe…


Ato 1: crava um punhal contra o peito, drama
10 anos de contorções e então silêncio
Fecham-se as cortinas, não ouço aplausos.
Poema para A.

Você me contou uma vez


sobre um motoqueiro que sempre roda a cidade
durante a madrugada

Ele faz rotatórias com os braços abertos


(como num espetáculo de solidão)

Disse que ele não gosta de ser visto


por isso nunca o fotografou

Quando é madrugada na rua do seu prédio


em frente a varanda do seu prédio
Cinzas do seu cigarro queimando
na varanda do 506 (que não é tão alto para
uma decolagem)

Você nunca fotografou ele passando

E recebi duas asas no Thanksgiving Day


mesmo insistindo que este feriado
não pertence à minha cultura

Prefiro samba
ou bossa nova
Qualquer experimento bucólico sobre entregar algo a alguém
(como acontece na linguagem)

Você acredita muito em mim


uma vez me disse que quando escrevo
pareço um avião

Que sou melhor do que você em tudo


sou mais velho
mais alto
e meus versos saem como uma goteira que inunda o balde
e depois a casa

Também acredito muito no seu potencial


disse que se você quisesse também poderia voar
te dei minhas duas asas no Halloween

Mesmo você dizendo que isso não era da minha cultura


que era minha preferência mula-sem-cabeça
ou boitatá

Seu avião partiu às 19h de um domingo da varanda do 803


porque eu disse que o 506 era muito baixo

Porque eu disse: “Ana eu odeio os programas de domingo”

Porque você disse “às vezes penso em morrer”


e respondi “os programas de domingo fazem
a gente querer morrer”

Você compreendeu
deitou do meu lado um pouco mais tímida

E dentro da noite
o motoqueiro continua fazendo rotatórias
com os braços abertos
de vez em quando ele fecha os olhos e se sente
invisível

Ele nunca vai saber que foi visto


ou que você dedicava suas noites a aplaudi-lo
da varanda do 506
Porque eu não vou contar

nem você.
i

Você não conhece minha convulsão


é só um tremor longe dos seus pés.
Arte de fumar: notas sobre os
discípulos de Quintana.

Aproveitei de que os trovões são maiores dentro da nuvem.


Abri-me feito céu. Fugi do assunto. E o assunto sobre amor ficou metade. Ninguém mesmo — além de Ana — percebeu. De
repente eram rua e andantes, transeuntes. Mas Pedro, você nunca viu que tem um coração desenhado ali no beco? Nunca viu que
Goiânia é cheia deles? Pedro, você nunca viu que Raul Seixas canta uma música chamada Meu amigo Pedro?
Pedro era um forasteiro.
Ana sempre atenciosa, talvez fosse a única que estava realmente nos assuntos, dentro deles, misturada. Daí quando o trem
descarrilhava e estávamos noutra estação, ela estava ainda sentindo o desenfrear, balançando. Algumas coisas são sempre
evitadas a falar com amigos. Tem assuntos que nascem para serem monólogos, depois morrerem no silêncio.
Sempre imaginei que estaria bem se fingisse sempre estar com amigos, aí não precisaria escutar meus segredos, me
assustar comigo.
De repente uma lacuna, fico deslocado da conversa. Assim, quando distante, me sinto bem em lembrar coisas velhas.
Buscar no passado ilustrações do presente. Lembra daquela vez em que a gente esteve aqui e tinha mais luzes? E mais vida?
Claro que Emanuela iria responder que não. Acho que somente eu guardo lembranças sobre luzes. Seria mais fácil dizer
que o garçom do dia era aquele de cabelos estranhos e olhar profundo, mãos grossas que carregariam o mundo numa bandeja,
mas que não pareciam capazes de tocar um corpo. Aí Emanuela lembrava, e dava sorrisos murchos. Então nem contei.
Outra lacuna. Acho que estou começando a me excluir. Mas, poxa, senti uma nostalgia e tanta! Estava tocando Belchior.
Sim. Essa música, foi quando eu beijei pela primeira vez aquela garota de cabelos longos e bocas rosas. Ela lia muitos livros, nos
encontrávamos no recreio no meio deles, dentro da biblioteca. E somente eles sabiam deste romance, que confesso agora comigo.
Passeio, era a música.
Meu amor, meu amor, e a terceira declaração se estendia, esticava. Vamos sair pela rua da Consolação, dormir no parque
em plena quarta-feira e sonhar com o domingo em nosso coração. Ouvia ela deitado no sofá, olhava as telhas e queria destelhar.
Meu pai chegou e disse: é, meu filho, isso é a vida!
Mamãe havia assumido que gostava de mulheres, como o Papai. Acho que depois daquilo ele se sentiu enfraquecido,
assustado em ser menos homem que outros homens.
Papai se importava muito com os outros homens, como o olhavam.
Acho que pelas minhas contas minha próxima paixão durará um sopro, o último foi uma noite. E amanheceu. Meus terrores
são agora pequenas telas, são os olhos. E tento fugir. Tento correr, mas Ana me persegue. Ela sabe que eu fujo dos assuntos
amorosos.
Eu vi como ela me olhou pra baixo quando curvei a conversa.
Tenho tanto medo de só amar uma vez. É isso.
Que porra Ana, você espera que eu confesse?
Bebi uns goles e subi para dar uns tragos. Aí galera, vou ali fumar um cigarro. Eles nem aí. Eu nem lá. Saí sem ouvir o que
estava tocando. Lá fora estava frio, e eu sujeito a suspiros. Não sei o que me deu de repente, do nada estou assim, anoitecido.
Parece que fui fugir da nuvem e entrei nela, agora mais tempestuoso. Mas as luzes são boas, me fazem sentir que as coisas estão
na mesa, tudo mais explícito.
Posso chorar.
Minha mente se joga da sacada, ouço os pés subindo os degraus. Coisa incrível não ter tantos fumantes por aqui hoje.
Quem será que sobe? Acendo outro cigarro, para não parecer que estou divagando sozinho. É Ana. Está obcecada em me
decifrar.
Me deixa em paz, estrelinha, que não estou pra lá de esfinge. Talvez faça bem você comigo, mas tenho medo de me
apaixonar.
Oi, João, estava no banheiro e não vi você saindo. Me disseram que você tinha vindo fumar, estranhei sua demora.
Ah, sim, Ana. Que bom que você se preocupa, mas eu não estou me sentindo muito bem para conversas que tal ficarmos
em silêncio?
Claro que não respondi nada além do ponto, fui sensível, educado. Mas o silêncio veio logo em seguida, natural e triste. A
mágica do ato de fumar.
Então disse para ela que adoro como é solitário o ato de fumar, em como são boas as justificativas. As pausas. Você se
sente excluído em uma conversa e diz: vou fumar um cigarro. Está andando sozinho na rua e sente medo: acende um cigarro, é
como se alguém andasse, de repente, do seu lado. Pode ser nas horas de trabalho, quando você diz fumarei um cigarro, o resto
se encerra. É sua justificativa justa, e o mundo para ao seu redor. Ninguém contesta, porque no fundo estamos todos fumando, as
fumaças de todo canto. Somos todos fumantes e infelizes e solitários.
Mas claro que não falei bem assim, disse: Ana, você também fuma? E dividimos um, dois, ou três cigarros.
P/ bife

Gosto de andar nos ônibus do eixo anhanguera


você disse
Gosto de andar na parte central porque
nas curvas posso sentí-la girar
Isso soava como uma forma de experimentar
o mundo por uma proporção
reduzida
rodando as 24 horas em segundos
e depois de novo e de novo
rodando as 24 horas em segundos

As coisas como se transformam depressa


você disse
Parece que as pessoas estão entrando
em uma grande sanfona
depois se situou longe do nordeste
e corrigiu para acordeon

Do lado de fora o ônibus parece um enorme


lindo e incontrolável acordeon
qual ninguém sabe tocar
Porque ninguém tem os braços tão grandes
ou dedos tão ágeis
eu te disse

Experimente ir um pouco lá fora


Ninguém mais tem colocado os pés lá fora
as ruas estão pálidas

Se você tirar um tempo para caminhar na rua


tirar seus fones de ouvido
se for bem atencioso
tenho a impressão de que é possível

Eu tenho a impressão de que é possível


escutar o grande gigante dizer
“eu só sei tocar piano
amigo, eu só sei escrever
cartas...”
Yoga vermelho e branco

Nunca vi uma chaminé que coubesse uma pessoa adulta

Papai Noel é uma criança ou sua vida é draminha toda vermelha e branca

Já escrevi isso dez vezes antes

o perdão deve ser uma chave seleta da porta dourada

E atrás da porta dourada tenho a certeza que se esconde

o paraíso dos animaizinhos de estimação

Veja o céu, olhe para os dois lados, atravesse

esta é minha quinta ou sexta tentativa de dizer a mesma coisa

quero enfiar no envelope e endereçar

ao último vulcão ativo no planeta terra

que por incrível que pareça

está localizado em algum lugar

do seu corpo

No intervalo disso medito cortando palavras

no chão inesquecível do amor

ah o amor que me sequestra

e dele imagino saber apenas

pisar em ossos

tocar a bateria no ritmo da banda marcial


usando os ossos de paletas

E a lava escorre sempre que você sorri

espalhando pelo cemitério

de quem amei

Este agora é um de nossos falecimentos.

Papai noel está encalhado em uma chaminé e estou na posição de lótus

para evitar que meus pés toquem diretamente o chão

Essa dança eu aprendi com você.


Kasparov, 1996, Deep Blue

A raça humana encontra seu destino

dentro de todas as coincidências

e possibilidades

“ELE PODERIA LER ATRAVÉS DE VOCÊ”

As crianças queriam

cantar uma música desconhecida

por isso suas línguas foram presas

no útero

Os meninos fumando atrás do colégio

na hora do intervalo

um deles cortou os braços e afirma

ser o único menino triste no mundo

As garotas estão infelizes

mas elas amam e amam e amam

e duvidam que exista amor suficiente para todas elas

de fato não há

Nas pedras do riacho onde fumavam maconha


ele cortou os pés e sentiu aquilo

mantenha o veículo em movimento

manivelas batendo

Ele amou também uma vez e sentiu aquilo

mantendo o veículo em movimento

o menino se cortou novamente

porque amar era estranho

Dessa vez percebeu que algo escapava dele

porra! assistimos juntos a virada do século

alguma coisa acabava naquele momento

e todo mundo sabia

Tribos antigas abriam grandes riscos

em suas peles porque acreditavam

que fazendo isso

abriam saída para todos os espíritos

que nos possuem e nos deixam tristes

OK

mantenha o veículo em movimento

nunca se esqueça que Kasparov

venceu Deep Blue


que pode ser tomada como:

o homem vence a máquina

o homem vence o azul profundo

o homem vence a grande tristeza do mundo

Pois então viva Kasparov

viva o novo século

viva a felicidade

A felicidade

que arrancaremos de dentro

das nossas peles como bons

e velhos selvagens.
ii

Ontem foi um pouco mais estranho


no telefone você chorou por outro homem

Fiquei com medo de levar a mão às minhas costas


e o calafrio correr por todo o corpo.
Hollywood e um sonho futuro

Quando você me levou até sua máquina do tempo

senti vontade de gritar vamos ver os elefantes soltos na Ásia

os elefantes enjaulados me parecem estátuas

estátuas me deixam meio triste

como se estivesse enjaulado

ou fosse um elefante asiático

longe de casa

Quando você me levou até sua máquina do tempo

perguntei se poderíamos levar uma bicicleta de dois

e descer as colinas que hoje são prédios

aqui mesmo em São Paulo

longe de casa

Quando você me levou até sua máquina do tempo

pensei, guarde isso, vamos seguir em frente

dar de destino às avessas desse tecido todo

nessas bordas, nossa saia de festas, podemos ficar um pouco mais

longe de casa?
e você me levou até sua máquina do tempo

descendo a rua cantando doomer dos anos 60

seus sapatos velhos

batendo passos com os meus

subia a ladeira sempre reclamando do sol

pouco abaixo de uma sombra elogiava

os livros que eu levava na bolsa

como amuletos

Quando você me mostrou sua máquina do tempo

eu pensava nos filmes fora do circuito hollywoodiano

e no seu tênis fúcsia rosa

pisando na contramão
de quem passava.
Primeira Dança

Quando a gente descobriu que o universo é infinito

eu amei o infinito por me proporcionar a sensação do invisível

você o odiou pelo mesmo motivo

Na escola em que estudamos tem uma árvore com nossos nomes talhados

isso é a única coisa maior que o infinito que conheço

a qual nós dois amamos.


Tursiops truncatus

Poema por poema meu marca páginas salta


feito um golfinho
aos olhos de algum turista nos mares de Toscana

Sou um turista quando leio


e tenho lido os livros
e as notícias sobre golfinhos e mistérios do mar
Por exemplo aquele OSNI avistado por Underbelly
no Google Earth

Também os documentários fictícios


do Discovery - inventando sereias reais

Mas as notícias me entristecem muito


desisto do júbilo de saber de tudo e volto a velejar
em golfinhos vivos e felizes

Na notícia diz - encontraram dois golfinhos na região


de Toscana
um deles estava encalhado no golfo de Baratti
ele passou a noite
se afogando
cada vez que tentava pedir socorro
o segundo se encontrava descansando
por entre as pedras em La Mazzanta - já morto

Isso me fez cogitar o boicote a todos


os sites de notícias do mundo
e o boicote a todas
as partes cobertas por terra
nesse planeta Terra
renomear - pronto!

E chorei pensando na profilaxia


que nos impede de contrair a síndrome de Jerusalém
de nos jogar em peregrinação pelo deserto das águas
do mediterrâneo

Sessenta e três dias caminhando em pleno mar


sem comida sem cobertores
sem água

Acho que chorei ao pensar minha profecia

Ainda acredito que o mar me acha uma das criaturas


mais incríveis deste lado de cá da coisa toda
planejada por deus

Porque o jeito que olho para ele


soa como se eu fosse um golfinho encalhado
na região de Toscana
no golfo de Baratti
em Piombino.
Mamãe preciso de psiquiatra não sei
mais se existo: notas pessoais.

Nunca pensou em se matar, Dra. Claudia?


Nunca pensou que seu coração fosse explodir, fora de sério, sem ansiedade. Só o estouro por si só?
Nunca quis desistir de tudo, fugir? Abandonar o eterno, o nome? Me diz, Dra. Claudia, que não sou o único, me diz?
Você nunca quis outro trabalho, um com mais voz e menos ouvido? Nunca confundiu ouvido com olvido? Quis se olvidar?
Você sempre foi tão branca, pálida?
E esta sala?
Nunca, nunca quis se sentar, parar um pouco, no meio de uma correria? Já teve que correr? Contrária ao rumo das pernas?
Nadou contra a maré?
Eu vi meu pai, Doutora, você disse que faria bem. Enfrentar o passado. Você não disse? Meu pai é passado. Eu devia
deixá-lo no passado, Dra. Claudia?
Não é rude viver o futuro sem sentir culpa do que acontece, que aconteceu? Não é egoísta? Lembrar não é dizer que se
importa, que importa sim?
E esta chuva?
Minha mãe dizia que este clima a faz desistir das coisas. Dra. Claudia, eu não devia desistir também? Conselho de mãe não
se segue?
Estou um eclipse que só.
Nunca se eclipsou? Nunca fez sombra no seu jardim e o jardim foi fim? Nunca faltou lágrima para chorar, se esgotou?
Nunca esmurrou uma parede?
Remédios, tarja rosa.
Já pensou que estava enlouquecendo, enlouquecida? Nunca? Nunca sangrou de mentira? Escreveu um verso, mentindo?
Nunca leu autoajuda e achou ridículo? Leu dez livros num segundo? Se escondeu do mundo? Nunquinha? Nunca quebrou
um espelho Dra. Claudia? Rompeu uma fechadura de tanto girar a chave, se trancou dentro para sempre? Nunca?
Me diz que não sou o único.
Nunca se sentiu o único ser no universo? O único universo em um ser? Será, sou só eu? Claudinha, estou só?
Fotografias mudas.
Devia jogar fora, as fotografias? Devia atear fogo, atear fogo na casa comigo dentro? Lembra? Eu me tranquei Claudia, mas
para você estou aberto.
Te falo tudo, mas me responde, nunca mesmo?
Então tudo é um sonho, um pesadelo? Sua cerveja nunca esquentou? Impressão minha? Nunca amou morno? Nunquinha?
Nunca broxou ao reparar que está vivo?
Já se masturbou figurando a morte? Já leu Baudelaire?
Quis descansar e sentiu culpa do pranto, que nem chegou? Já achou eles sem graça, você riu? Você viu, meu corpo
levantando sozinho e voltando para o chão depois do chão?
Nunca se perguntou, por que sete? Sete dias, sete horas de terapia. Sete palmos?
Nunca percebeu que palmos e salmos se diferem apenas por uma letra? Que solidão se escreve com “s” e com “p” se
escreve pau? Que pessoas morrem a pauladas, sozinhas?
Nunca pensou que todo mundo morre sozinho? Dra. Claudia, me responde, estou falando sozinho? Vou embora Claudia,
esvaziei! Estou murcho!
Meu pai, doutora, era daqueles homens indestrutíveis, você sabe? Seu pai nunca foi assim? Nunca nunquinha? Seu pai
nunca foi destruído?
Era aniversário da minha mãe, Dra. Claudia, aniversário dela.
Meu pai a largou e foi para o bar, esquecer. Aí minha mãe se matou e largou ele, lembrando. Comprou a passagem. Sabe?
As coisas já foram assim, Doutora?
Já foi este susto?
A vida já foi esta pedra? A vida já foi este olho de vidro? Este vidro no olho?
“Vai ter uma festa
Que eu vou dançar
Até o sapato pedir pra parar.

Aí eu paro
Tiro o sapato
E danço o resto da vida.”

Chacal.
Para amar mais uma vez: notas que abandonaram comigo, para entrega.

Parece que alguém está me chamando, Roberto, você entende? Lá longe no longe.
Consegue ver?
Aqueles lábios no deck daquele navio não, não, na cabine do capitão. Me chamam. Eles querem me levar para passear, vai
ver estou pedindo por isto, lá no fundo. Icebergs se chocando friamente e eu meia zonza. Sei que peço por resgate,
silenciosamente. Isso tudo porque você não soube me amar corretamente, como deveria. Espero que se perdoe e me perdoe, no
final, mas este sonho não era meu, nunca foi. Mesmo assim pedras são arremessadas contra minhas janelas. Uma vida toda
respirando a sua vida, e a minha sufocada, ficando roxa. Não dá mais para ficar nesta casa. Cada vez menor e menor, sem lugar
para ecos, não há mais espaço para mim. Estou diminuindo com ela.
Roberto, eu não quero sumir, não agora, não, ainda não.
Sabe, gostava de te ver no Evoé, limpando os dentes com os palitos e te imaginando de paletó falando mal dos livros, que
ainda não leu. Olhava abismada, um abismo inteiro. Buraco de solidão feito no formato exato das suas lindas mãos. Você me
tocava e loguinho estava tudo preenchido.
Mas Roberto, quem é você agora?
Vicejo ao despedir, a despedida. Por que você tinha que me expulsar de silêncio? Devagarinho, me encher desta fuga que
meus pés se negam assumir? Lotar minhas malas de mim mesma e manchar para sempre sua lembrança dos palitos de dente,
agora sujos de carne nojenta e você chorando sem mais nem menos, e na verdade sou eu quem chora, com os pés em falso
sobre os vãos, e a marginal.
Me sinto estragada, sem validade, perdida.
Mas eles me chamam. Deve haver uma forma de me ocupar no final das contas, uma fuga onde não pensei tê-la, formas
alternativas de se redesenhar, apagar este borro que você me causou, no meu rascunho. Me rascunhar novamente. Traço a traço,
e as traças devorando os troços. Meu e seu, nossos troços.
Por que você não fala nada? Em, diz? O que?
É claro que você não entende, você nunca entendeu nada, nadica de nada, nem se entender consegue. Para pessoas
assim a vida deveria ter algum tipo de manual.
Os chamex, molhados na mesa, o que estava escrito neles? Que amor é este que você não fala, que me mostrava e agora
esconde?
Esconde onde, Roberto?
Esta vida está que um horror total, me poupe deste suspense, já não basta te amar?
Dói mais em mim que em você, você não faz ideia. Queria te colocar num retrato enorme na sala, dizer para Amélia, minha
filha, seu pai era este de queixo furado, rosto gigante de quase dois metros quadrados, fechando a parede. E o sofá de canto,
onde me deitaria por horas e horas te contemplando, apenas lá. Dava para ver as rugas. Que inferno, Roberto!
Esta chuva mais uma vez, querendo me ilhar.
Quantas vezes estive no seu lugar, sendo deixada. Muitas vezes sem sentir a colisão, mas tantas, tantas estive. Ficando
com o chão e as paredes, quatro por quatro de um universo só meu. E nem essa coisa que estou lhe dando, recebia. Eram apenas
o adeus, quando tinha o adeus, vazio e só. Olha, sua filha não vai querer ir comigo. Aliás, não precisa me responder nenhuma
pergunta, eu sei todas as respostas, absoluta. Sei que anda mudo, mudado, e que virei mais um personagem de quem te inventa.
Eu te queria para mim, Roberto, como quis.
Então não faça nenhuma besteira desta ausência, enquanto não estiver. Espero, inclusive, que se recupere de ser quem
você é. Que haja uma reabilitação para este vicio em parágrafos.
Sei que, parcialmente, a culpa foi minha de querer disputar atenção com a poesia, mas saiba que será somente sua,
quando acordar entre farrapos de versos velhos, de folhas molhadas engasgando ao seu redor. E a água subindo subindo,
subterrânea. E você – imóvel. Morrerá de palavras.
E eu, não estarei para ver, não pago por isto. É meio que fato conhecido: quem transa com arte, pare o vazio. Olha, Amélia
está indo comigo, decidi de última hora, mesmo que ela embirre por ficar. Se quiser sua filha aqui terá de lutar por isto, mas sem
estas canetas, estas borrachas, estas folhas amassadas. Quero sentir as suas mãos Roberto, uma última vez, quero sentir
qualquer coisa. Qualquer batalha. Olha, estas lágrimas, vê?
São de frio.
Aproveita e transforma em verso também, tudo em verso estas porcarias de merda de bosta de mar em verso, que um dia
você se afoga. Eles estão me chamando, Roberto, aqui dentro. Vai eu e sua filha Amélia. Vamos virar navegantes e nosso navio
terá um nome talhado em seu casco, e será liberdade. Seremos sereias, praias, piratas, e não do seu mar. Do nosso.
Agora, se pensar, se chegar a fazer, se matar. Não peça para que nos avise. Nos poupe de seu desaparecimento. Não
queremos imprimir cartazes, colá-los. Queremos o vento na vela aberta, o rum na boca a canção no ouvido, canções de noite
lenta. Olhando para você agora, chega até me dar saudades, quão fundo você foi nestes olhos? Se eu soubesse que você
aceitaria sair, escapar. Mergulharia, te buscava, mas não sei, sabe?
Para sempre te amei, no passado, naquela loja de discos que você me beijava e dizia que queria, que iria sempre estar
comigo, para qualquer estrofe que viesse, fosse?
Você me proseou e caí em poesia.
Quem poderia dizer que seria tudo um grande origami sem forma, quem poderia dizer que seria este naufrágio todo, que se
tornaria tudo rasuras?
Meu amor, quem, quem pudera?
Donnie Darko

Dizem que cachorros costumam se isolar para morrer

Como pessoas felizes quando precisam chorar

Toda criatura viva neste planeta morrerá sozinha

foi o que disse Grandma Death verificando a caixa de correios

Mas nem todas as pessoas são cachorros

foi a minha resposta

Há pessoas que matam outras pessoas antes de morrer

há pessoas que morrem e matam outras pessoas

há pessoas que assinam contratos para morrerem juntas

vezes por amor vezes desespero

Sempre reciprocidade.

Há pessoas que atravessam o oceano

para estarem perto de quem ama quando a amada decide morrer

porque parte do amante também morre

Os amados sobem leves ao céu em escadas rolantes

de mãos dadas com algum pedaço dos amantes


Alguns levam o pulmão e os sufoca

outros o intestino e deixam um enjoo vazio dentro

alguns os olhos, afogados para sempre

Por isso nos sentimos meio incompletos quando alguém vai embora.

Gosto de pensar que pelo menos assim

quem vai embora não se sente como um cachorro

Exceto pelos pelos na cabeça

e o uivo na garganta.
Cocoon

Tenho acordado assustado, abarcado em águas inavegáveis


meus olhos são uma criança que ainda mija na cama.
Coisas que me fazem pensar às 3am

Enfeites natalinos nas árvores da cívica

Bares que não cabem três pessoas

O lançamento do livro de algum amigo

O lançamento de mísseis

Janelas do Grande Hotel todas brilhantes

A luz opaca de um hotel cheio de luz opaca


das pessoas que estão alojadas ali
Sem amar

As barbas dos homens que não sabem conversar


que estão sempre pensando
novas maneiras de escapar qualquer diálogo

As mulheres que tem medo de andar na rua

As ruas que tem medo dos homens de barba


das luzes opacas
e de mim

Cidade que renasce sempre nas luzes


de cada réveillon

As possibilidades que aumentam para as luzes


que continuarão vindo para aqui
até quando esse aqui for um próximo lugar

Possibilidades dos famosos que vão morrer


que já morreram
Fico pensando em quantas coisas se tornam possíveis
depois de cada nova desistência ou fim
no por que as coisas acabam
se hora ou outra voltam a brilhar

Como as luzes no fim dos anos


Como os fins do mundo no fim de cada ciclo
Como os aniversários e as velas
da vida e da morte

Penso nos hospitais 24 horas


como enquanto durmo uma ambulância
atravessa a cidade
aos prantos

Assim como o faltar


ou qualquer sentimento
que também atravesse
Qualquer sentimento

Mas me sinto bem pensando nisso


porque não somos nós que atravessamos a cidade
dentro desses furgões vermelhos com branco

Porque podemos ainda visitar o grande coração na praça cívica


entrar dentro dele fotografar as veias
e dar nosso diagnóstico: isso aqui ainda não morreu.

Daqui a pouco natal e ano novo


enquanto a tempestade cessa
ainda estamos nela

Penso quando ainda era menino com medo


de trovões
Ontem escutava atento os conselhos de mamãe
não conseguia dormir com o barulho do vento
da chuva

Deus parecia bravo comigo


só comigo

Hoje a cidade parece um pisca-pisca


embaraçado nas minhas pernas e as cores
mudam em um padrão indecifrável

É o que me obriga a buscar nessas ruas


cura pras angústias que não mais encaro.

Terei medo quando a tempestade cessar


e o céu se varrer?

Medo é o que acontece quando o sol brilha muito meus olhos


porque todas as portas parecem abrir

Tudo se renasce e me sinto uma ama sem leite


O que nos espera do lado de fora
O que nos espera quando

são 3 da manhã

Mamãe bate na porta me pedindo para dormir


Apago a luz.
Réveiller

O ano que vem vai chegar no natal de galochas


para acender as luzes

As luzes incríveis lembram


os cachos de nossa
filha-cyberpunk

O ano que vem vai chegar na páscoa de sobretudo


apenas a fazer sinais sagrados
das cabeças aos estômagos
seguindo a tradição

Quando olho
meus dentes no espelho me sinto Willy Wonka
estamos todos procurando amigos numa selva densa
que cresceu um dia por aqui

Ela é linda pois está sempre em chamas

O ano que vem vai chegar e me pegar te esperando


me chamar
para submergir
fugir do fogo
para aquela promoção no trabalho
:cargo que quis

Você sabe como quero as coisas e como sou


com as coisas que quero

O ano que vem vai chegar e não posso continuar


te esperando
para botar em cheque o partir e o ficar
para botar em cheque o ficar e o partir

Como no outono você gozava das pessoas que não se


falam por nunca mais
(nunca mais parecia tanto tempo ainda
naquela época)

O ano que vem vai chegar de vestido branco


para estourar os foguetes
(réveillon é uma palavra que costumava
nos dar água na boca)

O ano que vem vai chegar em trajes militares


para cumprir com desencontros marcados

Os amigos que chorem nos meus ombros


as quedas dos reis, dos edifícios
proclamação
das caspas de seu cabelo elétrico
Coroa linda na sua cabeça

Você me lembrava um ser mitológico

Li bastante na época em que lembrava


e li que Lilith nasceu antes de Eva
era adorada na Babilônia
não esperou que a serpente falasse

“Ei, este é o fruto do conhecimento


do bem e do mal”

e era Lilith quem dançava a música que escrevi


(os babilônios e Lilith dançavam a música
que escrevi para te
esperar)

Quando os anjos se reuniram para ver


o que fariam de Lilith
e dos babilônios
Deus acordava decidido a criar
nós dois

Neste mesmo ano Dadá terminava o ensino médio


e em vestes de formanda resmungava seu temor de que aquele ano
nunca fosse terminar.
17

Quando ainda morava sozinho

e tinha para mim duas rochas

que busquei no fundo do mar

para lembrar que posso me afundar

se não tiver fôlego suficiente

Quando as recordações

tornavam fantasmas por toda a casa

independente ao sal grosso nas janelas

seu morcego ainda voava por essa casa

e me fazia sentir calafrios

ao querer pronunciar teu nome

em meio a tantos outros nomes

que não vem ao caso agora

Quando ainda escrevia com sangue

e batia o martelo sobre os dedos

bebendo cerveja sendo o mar de ressaca

expulsando plástico e tartarugas

até a porta dos meus dentes


nesta época ainda queimamos pneus

no lugar de fogos de artifício

no fim de ano

É que as coisas se tornaram um pouco diferentes

logo após descobrirmos que não era tão ruim

nossa própria companhia

apesar de vez em quando

ainda sentirmos medo

porque alguma coisa passava da sala

para a cozinha

enquanto dichavávamos maconha

em cima dos livros de poesia

é, a literatura é realmente uma bruxaria

os grimórios que escrevi

os sapos que costurei a boca

com o verbo “viver” lá dentro

porque nunca fomos capazes de conjugar

de verdade o verbo viver

isso é um pouco mais que gramática ou literatura


Quando a solidão era o caminho mais fácil

de uma ponta a outra

meu amigo estava perdido no Rio de Janeiro

e havia um homem do outro lado do globo

morando no Japão com apenas dois sapos de pelúcia

porque ele financiou a formação de sua mulher

e ela separou dele quando se formou em medicina

mesmo assim ele não guarda rancor

É preciso viver é só o que sabemos

Não de onde vem as forças

que vão parar no furo de alguma rocha

e lá permanecem

Éramos violentos contra o verso

a poesia era inimiga

mesmo assim qualquer luta parecia melhor

que enfrentar nós mesmos

porque grandes artistas morrem

trabalhando para grandes empresas

o capitalismo é um sistema fracassado

anjos caem

e ainda escrevo
porque sinto que conjugávamos “eu vivo”

quando era intervalo

do trampo no centro

e visitávamos os sebos procurando

algum poeta que ainda não morreu

Acendíamos um cigarro

Várias torres vão cair

Estamos todos sozinhos em todo canto

preciso estar mais nos lugares que estou

este ano publiquei meu primeiro livro

e meu sobrinho nasceu

A vida já se renovou pelo menos sete vezes

Gael vai crescer e descobrir

as mesmas coisas que eu descobri

que meus pais descobriram antes de mim

que Deus não quis nos contar

o livre-arbítrio é uma mentira

primeiro pelo sistema que nos enche de gelados e feriados

segunda pelo que é predestinado divinamente

e aquela questão cotidiana:


a saidinha não é algo exclusivo dos presidiários.

Meu nome está sujo

e sei que sou adulto

porque já entendo as pedras

no caminho

o caminho e, também, Drummond

a autópsia é feita dos sapos que costurei

dentro deles o verbo “viver”

permanece intacto

no meio das moscas

e um fedor constante

que parece mais a morte

e perseguição

da mesma forma que aqui do lado de fora

mas está na hora de sair para trabalhar

porque ainda somos pobres demais

para pensar em fugir.


Geometria natural das coisas

Todos nós sabemos


a partir das formas dos objetos
da dança das plantas
dos animais marinhos que voam
dos incêndios diários
nos nossos apartamentos
internos

A encerrar no último suspiro


antes de dormir

A partir da forma em que lidamos


com as três grandes escolhas da vida

Processo de descarte
dos brinquedos da infância

Rasgar em autópsia
o animal selvagem da adolescência

Terminar com o fantasma caduco da morte

Todas as pessoas terão um dia


que não conseguirão se olhar
no espelho

Todos nós sabemos deste dia


os carros sabem
os gatos sabem
as cápsulas de revólver sabem
os suicidas sabem
os jornais fingem não saber
A partir das constatações dos antigos

A partir do que agora chamamos


de laboratório:
sendo quartos, esquinas, bares
A encerrar com um poema pronto

Renomeação
da volúpia triste de escrever

Encerrar novamente com os amigos


cretinos
com os mortos em guerra
com os líderes reunidos
para brindar
mais um dia de distância da paz mundial

A partir e a encerrar
no mesmo pavio aceso
do que dá origem
aos casais se dilacerando
aos homens que fazem a autópsia
dos crocodilos, leões, hienas
de cada um

Às mulheres que brigam por direitos


iguais
reconhecimento de sua heroína
nos hieróglifos do Egito

Hatshepsut - a rainha que foi rei

A encerrar no vale dos deuses


e nas tumbas faraônicas
onde um casal divide a eternidade
para contar as estrelas

Todos nós sabemos do fluxo natural


das coisas, dos negócios e da vida

A partir do sentimento que nos invade


varrendo tudo pelo caminho

A encerrar com a largada novamente


do autoconhecimento
do autoamor

Somos crianças ainda


buscando uma maneira de seguir em frente
sem precisar deixar pra trás.
Poema para frank’s

O natal se aproxima e tudo que anseio é ler poemas


sobre o cotidiano, como os de Cecilia Pavón
livros sobre o cotidiano são sempre
muito bonitos

Por exemplo, intitula-se lunch poems


o livro de poemas cotidianos de Frank O’hara
traduz-se - vinte e cinco poemas à hora do almoço

O que particularmente acho uma grande sacanagem


com o título original
que implicava uma metáfora sobre se alimentar de algo
mas agora assemelha-se a outra coisa meramente temporal

Foda-se

Há também - meu coração está no bolso


Livro de Frank O’hara que conta sobre
encontros em museus e morte de lady singers
noticiada em jornais impressos

Feito sob edição única e esgotado rapidamente

Cheguei a entrar em contato com a editora para


reivindicar novas edições
tudo que me disseram foi: era o que estava
no contrato - uma edição
e repetia: faz parte do contrato assinado

Como se minhas perguntas fossem certa acusação


felina sobre cadarço do all-star surrado ou não sei mais
do que se trata
Dois Frank O’hara - um esgotado e outro ferido semanticamente
(além de variar entre quatrocentos reais
e oitenta e dois e noventa, caramba!)

Por isso decidi comprar a versão em inglês de lunch poems

Por isso decidi traduzi-la mantendo dúvida no título

Sana também pelas novas edições de meu coração está no bolso


acho que choro

É de se estranhar como essa parte editorial sempre


tem tantos contratos perambulando
papéis por assinar

A poesia nega os contratos e só assina a vida por si só


mesmo quando fuga
Isso torna os poemas cotidianos muito caros!

Porque para escrevê-los basta viver

e viver é muito difícil.


espera, acabou a festa?

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