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A 0DADE NA HISTÓRIA

tem tido existência contínua e ainda é visível. Do Castel San Ângelo à CAPfnJLo ]]
casamata perto do Arco do Almirantado, em Londres, do Kremlin ao
Pentágono, e daí aos novos centros subterrâneos de controle, a cida­
dela resiste ainda, simbolizando os absolutismos e as irracionalidades A cristalização da cidade
de seus exemplares mais antigos. Também o santuário conservou uma
existência independente. Alguns dos santuários mais famosos jamais
vieram a se tomar grandes cidades de direito próprio, embora centros
maiores tenham posição secundária em relação a eles. Religiosamen­
te falando, Londres e Bagdá são secundárias em relação a CanterbU1Y
e Meca; ao passo que cidades que constituíram objetos especiais de pe­
regrinação, como Santiago de Compostela e Lourdes, usualmente não
promoveram outras funções urbanas, exceto aquelas que dizem res­ 1. A primeira transformação urbana
peito ao santuário. Cada novo componente da cidade, por essa mes­
ma razão, apareceu inicialmente fora de seus limites, antes que a ci­ Em vista de seus rituais satisfatórios a que se opunham suas ca­
dade o adotasse. pacidades limitadas, nenhum mero aumento numérico haveria, com
toda probabilidade, de bastar para transformar uma aldeia numa cida­
de. Essa modificação requeria um desafio exterior que violentamente

II. arrancasse a comunidade das preocupações centrais com a reprodu­


ção e nutrição: uma finalidade que fosse além da mera sobrevivência.
I A parte maior da população do mundo, na verdade, jamais respondeu
a esse desafio: até o atual período de urbanização, as cidades ainda
continham apenas uma pequena fração da espécie humana.
A cidade surgiu como um emergente definido na comunidade pa­
leoneolítica: um emergente no sentido definido em que Lloyd Mor­
gan e William Morton Wheeler usaram aquele conceito. Na evolução
emergente, a introdução de um novo fator não faz apenas aumentar a
massa existentet mas produz uma transformação geral, uma nova con­
figmação, que altera suas propriedades. Potencialidades que não po­
diam ser reconhecidas na fase pré-emergente, como a possibilidade
de vida orgânica que se desenvolve a partir da matéria "morta" relati­
vamente estável e não-organizada, tomam-se então visíveis pela pri­
meira vez. Assim também ocorre com o salto a partir da cultura de al­
deia. Os antigos componentes da aldeia foram transportados ao novo
plano e incorporados na nova unidade urbana; contudo, graças à ação
de novos fatores, foram eles recompostos num padrão mais complexo
e instável que o da aldeia - e, apesar disso, de uma forma que promo­
veu ulteriores transformações e desenvolvimentos. A composição hu­
mana da nova unidade tomou-se igualmente mais complexa; além do
caçador, do camponês e do pastor, outros tipos primitivos introduzi­
ram-se na cidade e emprestaram sua contribuição à sua existência: o
mineiro, o lenhador, o pescador, cada qual levando consigo os instru-
34 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTAUZAçAo DA CIDADE
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mentos, habilidades e hábitos de vida fonnados sob outras pressões.
O engenheiro, o barqueiro, o marinheiro surgem a partir desse fundo pacidade vocacional e a audácia da juventude contavam mais ainda, se
obtinham o apoio do rei.
primitivo mais generalizado, em um ou outro ponto da seção do vale:
de todos esses tipos originais, desenvolvem-se ainda outros grupos Quando aconteceu tudo isso, a arcaica cultura de aldeia cedeulu­
ocupacionais, o soldado, o banqueiro, o mercador, o sacerdote. Partin­ gar à "civilização" urbana, essa peculiar combinação de criatividade e
do dessa complexidade, criou a cidade uma unidade superior. controle, de expressão e repressão, de tensão e libertação, cuja mani­
Essa nova mistura urbana resultou numa enonne expansão das festação exterior foi a cidade histÓrica. Em verdade, a partir das suas
capacidades humanas em todas as direções. A cidade efetuou uma origens, a cidade pode ser descrita como uma estrutura especialmen_
mobilização de potencial humano, um domínio sobre os transportes te equipada para annazenar e transmitir os bens da civilização e sufi­
entre lugares distantes, uma intensificação da comunicação por longas cientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facili­
distâncias no espaço e no tempo, uma explosão de inventividade, a par dades num mfnimo de espaço, mas também capaz de um alargamen_
to estrutural que lhe pennite encontrar um lugar que sirva de abrigo
de um desenvolvimento em grande escala da engenharia civil, e, o que
não é menos importante, promoveu uma nova e tremenda elevação da
às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma socie­
produtividade agrfcola. dade crescente e de sua herança social acumulada. A invenção de for­
Aquela transfonnação urbana foi acompanhada, talvez precedi­ mas tais eomo o registro escrito, a biblioteca, o arquivo, a escola e as
da, por transbordamentos semelhantes do inconsciente coletivo. Em
universidades constitui um dos feitos mais antigos e mais caracteris­
ticos da cidade.
dado momento, ao que parece, os deuses familiares locais, que eram
encontrados perto da lareira, foram vencidos, parcialmente substituí­ A transfonnação que agora procuro descrever foi pela primeira
dos e sem dúvida superados em importância pelos distantes deuses vez chamada Revolução Urbana por Childe. Essa expressão faz justiça
ao papel ativo e criticamente importante da cidade, mas não indica de
celestiais ou terrenos, identificados com o Sol, a Lua, as águas da vida,
o trovão, o deserto. O chefe local passou a ser o rei dominante, toman­ forma precisa os processos, pois uma revolução implica uma reviravol­
do-se ao mesmo tempo o principal guardião sacerdotal do santuário, ta e um movimento progressivo de fuga às instituições gastas que fo­
agora dotado de atributos divinos ou quase divinos. Os vizinhos de ram deixadas para trás. Do ponto de vista de nossa própria época, isso
aldeia passavam agora a se manter a distância: não sendo mais fami­ parece indicar algo semelhante à movimentação geral que ocorreu com
liares e iguais, virarn.se reduzidos a súditos, cujas vidas eram supervi­ a nossa própria revolução industrial, com a mesma espécie de ênfase
sionadas e dirigidas por funcionários militares e civis, governadores, nas atividades econômicas. O termo antes obscurece do que esclarece
vizires, coJetores de impostos, soldados, diretamente responsáveis pe­ o que realmente Ocorreu. A ascensão da cidade, muito longe de apa-
rante o rei. gar antigos elementos de cultura, realmente os ajuntou e aumentou
Até mesmo os antigos hábitos e costumes de aldeia podiam ser SUa eficácia e alcance. O próprio incentivo de ocupações não-agrfco-
alterados em obediência ao comando divino. Já não era suficiente que " las acentuou a necessidade de alimentos e provavelmente causou a
o agricultor de aldeia produzisse alimento bastante para sua família ou '" multiplicação de aldeias e a entrega de mais terras ao cultivo. Dentro
sua aldeia: devia agora trabalhar mais arduamente e praticar a nega­ da cidade, muito pouco da antiga ordem foi eliminado no princfpio: a
ção de si mesmo, a fim de sustentar, com amplos excedentes, uma ofi­ própria agricultura, na Suméria, por exemplo, continuou sendo prati­
cialidade real e sacerdotal. Com efeito, os novos governantes eram cada em grande escala por aqueles que viviam pennanentemente den-
avaros alimentadores e não se furtavam de medir seu poder não ape­
tro das novas cidades muradas.
as em armas, mas em côdeas de pão e jarros de cerveja. Na nova so­ O que principalmente aconteceu com a ascensão das cidades foi
cIedade urbana, a sadoria dos mais velhos não mais representava a que muitas funções, que haviam até ali sido dispersas e desorganiza_
auto:,dade: f?ram os Jovens de Uruk que, contrariando a opinião dos das, ajuntaram-se dentro de uma área limitada, e os componentes da
AnClaes, apOIaram Gilgamesh, quando este propôs atacar Kish, em comunidade foram mantidos num estado de tensão e interação dinâ­
vez de se e_ntregar às exigências do governante daquela cidade. Embo­ " mica. Nessa união, que a reclusão rigorosa dentro das muralhas da ci­
ra as Iigaçoes de família ainda contassem na sociedade urbana, a ca- dade tomou quase compulsória, as partes já bem estabelecidas da pro­
tDeidade - santuário, fonte, aldeia, mercado, fortificação _ participaram
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36 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE

no alargamento e concentração geral dos números e sofreram uma di­ deias, atordoadas e transtornadas pela inundação dos campos ou pela
ferenciação estrutural que lhes deu formas reconhecíveis em todas as ruína das colheitas, devem ter-se afastado de seus Conselhos de An­
fases subseqüentes da cultura urbana. A cidade se revelou não simples­ ciães, cujos movimentos eram lentos e ultracautelosos, voltando-se para
mente um meio de expressar em termos concretos a ampliação do po­ uma figura única, que falava com autoridade e prontamente dava or­
der sagrado e secular, mas, de um modo que passou muito além de dens, como se esperasse ser instantaneamente obedecida.
qualquer invenção consciente, ampliou também todas as dimensões Sem dúvida, a imaginação do caçador, não menos do que sua
da vida. Começando por ser uma representação do cosmo, um meio bravura, existia desde o princípio, muito antes que qualquer das duas
de trazer o céu à terra, a cidade passou a ser um súnbolo do possível. coisas fosse canalizada num sentido político: na verdade, há, sem dú­
Utopia foi uma parte integrante da sua constituição original e, preci­ vida, um senso estético mais dominante na gruta do caçador paleolí­
samente porque tomou forma, no início, como uma projeção ideal, a tico do que numa antiga cerãmica ou escultura neolítica. Nada seme­
cidade trouxe à existência realidades que poderiam ter permanecido lhante ao soberbo gosto estético que encontramos nas grutas de Au­
latentes durante um tempo indefinido, em pequenas comunidades rignac voltou a aparecer, até a Idade do Cobre e da Pedra. Mas, a essa
mais sobriamente governadas, presas a expectativas mais mesquinhas altura, as façanhas heróicas outrora confinadas principalmente à caça
e não dispostas a fazer esforços que transcendessem tanto os seus há­ já se aplicavam à totalidade do ambiente físico. Nada do que a mente
bitos de trabalho cotidiano quanto as suas esperanças mundanas. projetava parecia impossível. O que um homem singularmente con­
Nesse emergir da cidade, o elemento dinâmico veio, como vimos, vencido de si mesmo ousava sonhar, por favor dos deuses, uma cida­
de fora da aldeia. Aqui, deve-se dar aos novos governantes o crédito de inteira, obediente à sua vontade, podia fazer. Não mais seriam do­
que merecem, pois suas práticas de caça os haviam acostumado a um minados apenas os animais selvagens: rios, montanhas, pântanos,
horizonte mais amplo do que o habitualmente divisado pela cultura massas de homens seriam atacados coletivamente por ordem do rei, e
de aldeia. Já mostraram os arqueólogos que é possível mesmo que os reduzidos à ordem. Esforços extremamente árduos. que nenhuma pe­
antigos colhedores de grãos, nas terras altas do Oriente Próximo, pos­ quena comunidade imporia a si mesma, enquanto a natureza atendes­
sam ter sido caçadores que juntavam as sementes em seus alforjes, se às suas necessidades costumeiras, eram agora intentados: o herói
para a alimentação cotidiana, muito antes de saberem como plantá-las. caçador, de Gilgamesh a Héracles, deu o exemplo em seus atos sobre­
A mobilidade exploratória do caçador, sua clisposição para jogar e as­ humanos de força. Ao concluir dificeis tarefas físicas, todo homem tor­
sumir riscos, sua necessidade de tomar decisões prontas, sua presteza nava-se um pouco herói, ultrapassando seus próprios limites naturais
em sofrer amargas privações e intensa fadiga na perseguição de sua _ ainda que apenas para escapar ao açoite do capataz.
caça, sua disposição para enfrentar a morte ao se defrontar com ani­ A expansão das energias humanas, as ampliações do ego huma­
mais ferozes - matar ou ser morto -, tudo isso lhe dava aptidões espe­ no, quiçá pela primeira vez destacado de seu envoltório comunal ime­
ciais para a liderança. Esses traços constituíam os fundamentos do do­ diato, a diferenciação de atividades humanas comuns em vocações es­
mínio aristocrático. Posta diante das complexidades da vida comuni ­ pecializadas, e a expressão dessa expansão e diferenciação em muitos
tária em grandes dimensões, a audácia inclividualista era mais viável do pontos da estrutura da cidade, todas essas coisas foram aspectos de
que as lentas reações comunais que a aldeia agrícola provocava. uma única transformação: o aparecimento da civilização. Não pode­
Numa sociedade que se defronta com mudanças sociais nume­ mos acompanhar essa modificação no momento em que ela ocorreu,
rosas provocadas pelos seus próprios aperfeiçoamentos mecãnicos e pois, como assinala Teilhard de Chardin a respeito de outras modifica­
agrícolas, que provocaram sérias crises as quais exigiam ação imedia­ ções evolucionárias, são as formas instáveis e fluidas que não deixam
ta, sob comando unificado, a sabedoria popular acumulada nascida marcas atrás de si. Mas as cristalizações posteriores mostram clara­
exclusivamente da experiência passada em situações desde muito fa­ mente a natureza da antiga evolução.
miliares era impotente. Apenas os que confiavam em si mesmos e os Para interpretar o que aconteceu na cidade, é preciso tratar igual­
aventurosos podiam, em certo grau, controlar essas novas forças e ter mente da técnica, da política e da religião, sobretudo do aspecto reli­
imaginação suficiente para usá-Ias, tendo em vista finalidades até en­ gioso da transformação. Se, no princípio, todos esses aspectos da vida
tão inimagináveis. O "ajuntamento" neolítico não bastava. Muitas al- eram inseparavelmente misturados, foi a religião que assumiu a pre-
38 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTAUZAçAO DA CIDADE 39

cedência e reclamou o primado, provavelmente porque uma imaginá­ Não obstante, existe uma diferença notável entre a primeira épo­
ria inconsciente e projeções subjetivas dominavam todos os aspectos ca urbana e a nossa. Vivemos numa era em que se verifica uma multi.
da realidade, só permitindo que a natureza se tomasse visível na me­ dão de avanços técnicos sem sentido social, divorciados de quaisquer
dida em que pudesse ser introduzida no tecido do desejo e do sonho. outras finalidades que não o progresso da ciência e da tecnologia. Na
Monumentos e documentos sobreviventes mostram que essa amplia­ realidade, vivemos num explosivo universo de invenções mecânicas e
ção geral do poder foi acompanhada por imagens igualmente exorbi­ cletrônicas, cujas partes se movem num ritmo rápido, distanciando-se
tantes, que brotavam do inconsciente e eram transpostas nas formas cada vez mais do seu centro humano e de quaisquer finalidades huma­
"eternas" da arte. nas racionais e autônomas. Essa explosão tecnológica produziu uma
Como vimos, as fases formadoras desse processo possivelmen­ explosão semelhante na própria cidade: a cidade arrebentou-se e se es­
te tiveram lugar no decorrer de muitos milhares de anos: até mesmo palhou, em órgãos e organizações complexas, por toda a paisagem. O
os últimos passos da transição entre a cidade rural neolítica, pouco recipiente urbano murado, na verdade, não apenas se rompeu: em gran.
mais que uma aldeia exageradamente crescida, e a cidade plenamen­ de parte, foi também desmagnetizado, dando, em resultado, o fato de.
te desabrochada, lar das novas formas institucionais, podem ter le­ estarmos assistindo a uma espécie de degeneração do poder urbano
vado séculos, talvez milénios, de tal sorte que muitas instituições das num estado de ocasionalidade e imprevisibilidade. Em suma, nossa ci­
quais temos registros históricos definidos noutras partes do mundo vilização está perdendo o controle, vencida por seus próprios recursos
- tais como o sacrifício humano cerimonial - podem ter tido tempo e oportunidades, bem como por sua superabundante fecundidade. Os
para florescer e para ser em grande parte eliminadas no Egito e na Estados totalitários que procuram impiedosamente impor o controle
Mesopotâmia. são vítimas de seus desajeitados freios tanto quanto as economias apa­
A enorme lacuna temporal entre as primeiras fundações no vale rentemente mais livres que descem colina abaixo se acham à mercê de
do Jordão, se suas datas mais recentes estão corretas, e as das cidades seus veículos desgarrados.
sumerianas, dá margem a muitas modificações profundas, mesmo que Justamente o oposto aconteceu, quando se deu a primeira gran­
não registradas. Mas a explosão final de invenções que acompanhou o de expansão da civilização: em vez de uma explosão de poder, houve,
nascimento da cidade provavelmente ocorreu dentro de uns poucos pelo contrário, uma implosão. Os muitos elementos diversos da comu­
séculos, ou mesmo, como sugeriu Frankfort a respeito da realeza, den­ nidade, até então dispersos num grande sistema de vales e, vez por ou­
tro de algumas gerações. Sem dúvida nenhuma, teve lugar dentro de tra, em regiões muito além, foram mobilizados e ajuntados sob pres­
um período de anos não maior do que os sete séculos entre a inven­ são, por trás das maciças muralhas da cidade. Até mesmo as gigantes­
ção do relógio mecânico c o desencadeamento da energia atômica. cas forças da natureza foram postas sob consciente direção humana:
A julgar pelo que revela a documentação atuaL o cultivo de ce­ dezenas de milhares de homens a se mover para a ação como uma
reais, a charrua, a roda do oleiro, o navio a vela, o tear, a metalurgia do máquina sob comando centralizado, construindo valas de imgaçâo,
cobre, a matemática abstrata, a obsetvação astronôrnica exata, o calen­ canais, montes urbanos, zigurates, templos, palácios, pirâmides, numa
dário, a escrita e outros modos de discurso inteligível em forma per­ escala até então inconcebível. Como resultado imediato da nova mi­
manente, tudo isso começou a existir mais ou menos ao mesmo tem­ tologia do poder, a própria máquina tinha sido inventada: por muito
po, por volta de 3000 a.c., com erro a mais ou a menos de uns poucos tempo invisível para os arqueólogos, porque a substância de que era
séculos. Os mais antigos restos urbanos até agora conhecidos, com ex­ composta - corpos humanos - fora desmantelada e decomposta. A ci­
ceção de Jericó, datam desse período. Isso constituiu uma singular ex­ dade foi o recipiente que provocou essa implosão e, embora sua pró­
pansão tecnológica do poder humano, cujo único paralelo é a mudan­ pria forma retivesse unidas as novas forças, intensificava suas reações
ça que se tem verificado em nosso tempo. Em ambos os casos, os ho­ internas e elevava o nível total de seus feitos.
mens, subitamente exaltados, comportaram-se como deuses: mas com Essa implosão aconteceu justamente no momento em que a área
pouco sentido das suas latentes limitações e vacilações humanas, ou de intercurso estava sendo grandemente ampliada, por meio de ata­
da natureza neurótica e criminal muitas vezes livremente projetada so­ ques e negociações comerciais, por meio de tomadas e dominações,
bre suas divindades. por meio de migrações e escravizamentos, por meio de coletas de im-
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40 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE

postos e da conscrição total da mão-de-obra. Sob pressão de uma ins­ templo com o privilégio de comerciar no exterior". Passando além de
tituição dominante, a da realeza, uma multidão de diversas particulas Frankfort, sugiro eu que um dos atributos do antigo deus egfpcio Ptah,
sociais, por muito tempo separadas e centralizadas em si mesmas, se­ revelado num documento proveniente do terceiro milênio a.c. - que
não mutuamente antagônicas, foi ajuntada numa área urbana concen­ ele fundava cidades -, é a função especial e, sem dúvida, universal dos
trada. Como ocorre com os gases, a própria pressão das moléculas reis. Na implosão urbana, o rei se coloca no centro: é ele o ímã polari­
dentro daquele espaço limitado produziu mais colisões e interações zador que atrai para o coração da cidade e coloca sob o controle do pa­
sociais, dentro de uma geração, do que teriam ocorrido em muitos sé­ lácio e do templo todas as novas forças de civi1ização. Algumas vezes,
culos, se ainda isoladas em seus habitats nativos, sem fronteiras. Ou, o rei fundava novas cidades; algumas vezes, transformava antigas ci­
para dizêlo em termos mais orgânicos, as pequenas células comunais dades do campo que tinham estado em construção por muito tempo,
de aldeia, não diferenciadas e não complicadas, em que cada parte de­ colocando-as sob a autoridade de seus governadores: em ambos os
sempenhava igualmente todas as funções, transformaram-se em com­ casos, seu domínio representava uma mudança decisiva em sua forma
plexas estruturas organizadas, num princípio axial, dotado de tecidos e conteúdo.
diferenciados e órgãos especializados e de uma parte do sistema ner­
voso central, pensando em nome do todo e o dirigindo.
Que tomou possível essa concentração e mobilização do poder? 2. A primeira implosão urbana
Que lhe deu a forma especial que tomou na cidade, com um núcleo
centra! religioso e político, a cidadela, dominando toda a estrutura so­ Essa grande transformação urbana teve lugar no limiar da histó­
cial e imprimindo direção centralizada a atividades que tinham sido ria escrita. Na criação final da cidade, a "pequena cidade", ou cidade­
outrora dispersas e não dirigidas, ou pelo menos localmente autogo­ la, alteou-se acima da aldeia e dominou seus humildes hábitos. Não
vemadas? O que vou sugerir como principal desenvolvimento, neste bastariam ampliações apenas das suas partes para transformar a aldeia,
passo, já havia sido pressagiado, numa época muito anterior, pela apa­ dando-lhe a nova imagem urbana; na verdade, a cidade era um novo
rente evolução do caçador, que tinha funções protetoras, à condição de mundo simbólico, representando não apenas um povo, mas todo um
chefe coletor de tributos: figura que repetidamente se confirmou em cosmo c seus deuses.
desenvolvimentos semelhantes, em muitos ciclos posteriores da civili­ O que ocorreu nesse passo ainda uma vez antecede a história es­
zação. Subitamente, essa figura assumiu proporções sobre-humanas: crita; contudo, se é válida a interpretação anterior das relações do che­
todos os seus poderes e prerrogativas tornaram-se imensamente am­ fe-caçador com as comunidades próximas, a cidadela não foi, na sua
pliados, ao passo que os de seus súditos, que já não tinham vontade origem, principalmente, um lugar defensivo de refúgio para o aldeão
própria nem podiam reclamar qualquer vida separada da vida do go­ ameaçado por "nômades invasores". Tão logo a guerra se tomou uma
vernante, foram correspondentemente diminuídos. instituição estabelecida, não há dúvida de que a fortaleza, cada vez
Ora, eu dificilmente teria coragem bastante para sugerir essa ex­ mais, prestou essa modalidade de serviços. Entretanto, o fato de se­
plicação, se um dos mais brilhantes arqueÓlogos modernos, o falecido rem as cidadelas rodeadas por muralhas, mesmo quando não o são as
Henri Frankfort, não tivesse fornecido a maior parte dos dados neces­ cidades, não dá primado no tempo às suas funções militares, pois a
sários e inconscientemente vislumbrado, senão previsto, essa conclu­ primeira utilização da muralha pode ter sido de natureza religiosa: de­
são. O que eu sugeriria é que o mais importante agente na efetiva­ fender os sagrados limites do têmenos e manter a distãncia antes os
ção da mudança de uma descentralizada economia de aldeia para uma maus espíritos do que os inimigos humanos.
economia urbana altamente organizada foi o rei, ou melhor, a insti­ Na medida em que teve utilização quase militar, a cidadela pri­
tuição da Realeza. A industrialização e a comercialização, que agora mitiva foi antes um ponto de armazenagem, onde o produto das pi­
associamos ao crescimento urbano, foram, durante séculos, fenôme­ lhagens do chefe, principalmente cereais e possivelmente mulheres,
nos subordinados, provavelmente mesmo surgindo ainda mais tarde: a estaria em segurança contra depredações puramente locais - em segu­
própria palavra mercador não aparece nos documentos escritos da Me­ rança, vale dizer, contra ataques por parte dos aldeões ressentidos.
sopotãmia, até o segundo milênio, "quando designa o agente de um Aquele que controlasse os excedentes agricolas anuais exerceria pode-
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res de vida e morte sobre seus vizinhos. Essa criação artificial de escas­ Em que ponto aconteceu tudo isso ninguém poderá dizer: sem
sez em meio à crescente abundância natural foi um dos primeiros triun­ dúvida, houve muitas uniões parciais ou efêmeras entre a fortaleza e o
fos característicos da nova economia da exploração civilizada: uma santuário, antes que se tomassem uma só coisa. Mas é significativo que,
economia profundamente contrária aos costumes da aldeia. segundo Childe, "os santuários ocupavam o lugar central nas aldeias
Contudo, um sistema de controle tão cruel tinha suas limitações protoletradas da Mesopotãmia". Em dado ponto, o santuário deve ter­
inerentes. O mero poder físico, mesmo que sustentado por um terro­ se deslocado para dentro da cidadela ou, antes, os sagrados limites do
rismo sistemático, não produz um fluxo contínuo de produtos em di­ santuário devem ter sido lançados ao redor da fortaleza, tornando-a
rcção a um ponto de armazenagem e, menos ainda, um máximo de igualmente um recinto sagrado e inviolável.
devoção comum à empresa produtiva. Mais cedo ou mais tarde, todo Certamente, quando a pá do arqueólogo desenterra uma cidade,
Estado totalitário, desde a Roma Imperial até a Rússia soviética, acaba encontra ele um recinto murado, uma cidadela, feita de materiais du­
descobrindo isso. Para alcançar uma aceitação cordata, sem exagerado ráveis, ainda que o resto da cidade não tenha muralha nem estruturas
desperdício, sob a forma de constante supervisão policial, o corpo go­ permanentes. Isto é verdade desde Uruk até Harapa. Dentro daquele
vernamental deve criar uma aparência de benemerência e utilidade, recinto, geralmente encontra ele três grandes edificações de pedra ou
suficiente para despertar certo grau de afeição, confiança e lealdade. de tijolos cozidos, edificações cuja própria magnitude as coloca apar­
Na efetivação desta mudança, a religião deve ter desempenhado tadas das demais estruturas da cidade: o palácio, o celeiro e o templo.
um papel essencial. Sem auxílio da crescente casta sacerdotal, o che­ A própria cidadela apresenta muitos traços de um recinto sagrado: a
fe-caçador jamais poderia ter alcançado o poder engrandecido e a au­ altura e espessura exagerada dessas muralhas, nas cidades mais anti­
toridade cósmíca que cercaram sua elevação à posição de rei e amplia­ gas, que chegam a rivalizar com a Khorsabad do século XVIII, mostra­
ram sua esfera de controle. Aqui, o curso natural de desenvolvimento, se significativamente fora de toda proporção aos meios militares que
segundo linhas abertas à simples interpretação econômíca, foi aumen­ então existiam para assaltá-las. É apenas a bem de seus deuses que os
tado por um desenvolvimento natural, que alterou o conteúdo e o pró­ homens se entregam tão extravagantemente a tais esforços. Todavia, o
prio significado de todo o processo. Tanto o poder sagrado quanto o que a princípio se destinava a assegurar o favor do deus mais tarde
poder temporal vieram a crescer, ao absorver as novas invenções da ci­ pode ter trazido recompensa, na prática, como uma proteção militar
vilização; e a própria necessidade de um controle inteligente de todas mais eficiente. O propósito simbólico provavelmente antecipou a fun­
as partes do ambiente deu mais autoridade àqueles que se dedicaram ção militar. Nesta questão, estou de acordo com Mircea Eliade.
à inteligência ou ao controle, às funções de sacerdote ou de monarca, Na época em que esta aliança entre os órgãos políticos, econômi­
muitas vezes unidas num único cargo. cos e religiosos estava sendo feita, não se haviam tomado claras, ain­
Assim, o que a coerção brutal não podia realizar sozinha, o que a da, muitas distinções posteriores. Podemos supor um considerável pe­
magia e o rih1al não poderiam conseguir sozinhos, as duas coisas fo­ ríodo, antes que a função do rei alcançasse as suas proporções finais
ram capazes de se efetivar dentro da crescente cidade, por meio de re­ tão ampliadas. No princípio, o chefe, o curandeiro, o mágico, o profe­
cíproco entendimento e ação conjunta, numa escala até então jamais ta, o astrônomo, o ancião, o sacerdote não eram funcionários separa­
concebida. Os modestos fundamentos da aldeia tinham sido lançados dos nem constituíam casta: seus deveres confundiam-se e a mesma
na terra: mas a cidade inverteu os valores da aldeia e virou de pernas pessoa sentia-se à vontade em diferentes papéis. Mesmo em tempos
para o ar o universo do camponês, colocando seus fundamentos no relativamente históricos, reis prontamente assumiram a liderança das
céu. Agora, todos os olhares se voltavam para o alto. A crença no eter­ igrejas nacionais, ao passo que bispos e papas cristãos governaram ci­
no e no infinito, no onisciente e no onipotente, conseguiu, no decor­ dades e chefiaram exércitos. Mas, em dado ponto, teve lugar uma gran­
rer de milênios, exaltar justamente as possibilidades de existência hu­ de exaltação do governante e do sacerdote: aparentemente, depois de
mana. Aqueles que mais proveito tiraram da cidade não se deixaram 3000 a.c., quando houve uma expansão semelhante de poderes hu­
atormentar pelas limitações animais da existência humana: procura­ manos em muitos outros departamentos. Com isso, surgiram a diferen­
ram, deliberadamente, por um ato concentrado de vontade, transcen­ ciação vocacional e a especialização em todos os campos. A antiga ci­
der a essas limitações. dadela' no que diferia da comunidade de aldeia, é uma sociedade go-
44 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE 45

vemada por castas, organizadas para a satisfação de uma minoria do­ santuário num vasto templo, também dotaram o templo de amplas ba­
minante: não é mais uma comunidade de famílias humildes que vi­ ses econâmicas, constituídas pelo trabalho compulsório de toda uma
vem por meio de aUXl1io mútuo. comunidade. Não será talvez por acaso que verificamos que as mais
Naquele ponto, O poder real reclamou e recebeu sanção sobrena­ antigas tabuinhas de Erech eram memorandos para ajudar na organi­
tural: o rei tomou-se mediador entre o céu e a terra, encarnando em zação do templo como oficina e armazém.
sua própria pessoa toda a vida e existência do país e seu povo. Algu­ Foi a construção do templo, com todos os vastos recursos ffsicos
mas vezes, um rei era indicado para o sacerdócio; mas, mesmo que que a comunidade agora tinha à sua disposição, o acontecimento cri­
fosse um usurpador, necessitava de algum sinal de favor do céu, a fim tico que veio ajuntar os Jfderes sagrados e seculares? Sem a menor dú­
de governar com êxito por direito divino. A antiga Lista dos Reis da vida, a aprovação dos sacerdotes e dos deuses era tão necessária para
Suméria registra que a realeza "foi baixada do céu". Os cinco reis in­ o exercício do poder do rei quanto seu domínio das armas e seu im­
dicados pela divindade receberam cinco cidades"em... lugares puros": piedoso comando de grandes forças humanas eram necessários para
Erion, Badtbira, Larak, Sippar, Shuhuppak, todas designadas como aumentar o deles.
centros de culto. A edificação de um grande templo, que em si mesma era algo ar­
Não indica tudo isso uma fusão do poder secular e sagrado, e não quitetônica e simbolicamente imponente, selou essa união. Aquela co­
foi esse processo de fusão que, como numa reação nuclear, produziu a nexão foi tão vital para a realeza que, como mostrou E. A. Speiser, os
explosão, inexplicável de outra forma, da energia humana? As provas últimos governantes mesopotâmicas gabavam-se de reconstruir um
parecem demonstrar que foi isso o que aconteceu. Quando Kish foi templo em Assur, depois de terem-se passado muitos séculos. Assur­
derrotada na batalha, conta-nos a mesma Lista dos Reis, a realeza foi banipal chegou a ponto de recapturar a imagem da deusa Nan, que ti­
removida para o sagrado recinto de Uruk, onde o novo monarca, filho nha sido transportada de Uruk para Susa nada menos de mil seiscen­
do deus sol Utu, tomou-se sumo-sacerdote ao mesmo tempo que rei. tos e trinta c cinco anos antes. Não sugere isso que a reconstrução e
Dessa união, sugiro eu, vieram as forças que ajuntaram todas as par. restauração do antigo templo não foi simples ato de piedade formal,
tes incoativas da cidade e lhes deram uma nova forma, visivelmente mas uma fixação necessária da continuidade legal, aliás uma revalida­
maior e mais temerosa do que qualquer outra obra do homem. Tão ção da antiga "aliança" entre o oratório e o palácio? Esse pacto hipoté­
logo essa grande ampliação se havia verificado, passaram os senhores tico, como vimos, na verdade transformou o chefe local num colossal
da cidadela não simplesmente a comandar os destinos da cidade: na emblema tanto do poder secular quanto do sagrado, num processo que
verdade, fixaram o novo molde da civilização, que combinava a máxi­ libertou energias sociais latentes em toda a comunidade. A própria
ma diferenciação social e vocacional possível, coerente com os proces­ magnitude do novo templo, com suas extravagantes decorações e ador­
sos cada vez mais amplos de unificação e integração. A realeza au­ nos, atestava os poderes tanto do deus quanto do rei.
mentou as funções do clero e deu à classe sacerdotal uma posição do­
. minante na comunidade, visível nos grandes templos que apenas os
reis tinham recursos suficientes para construir. Esse clero media o tem­ 3. Ansiedade, sacriffcio e agressividade
po, limitava o espaço, previa os acontecimentos temporários. Aqueles
que tinham dominado o tempo e o espaço podiam controlar grandes o desenvolvimento histórico da realeza parece ter sido acompa­
massas de homens. nhado por uma mudança coletiva dos ritos de fertilidade para o culto
Não apenas o clero, mas uma nova classe intelectual, passou a mais selvagem da força física. Esse deslocamento jamais foi completo,
existir dessa forma, os escribas, os doutores, os mágicos, os adivinhos, pois Osiris, Baco e Cíbele continuaram vivendo e chegaram a reclamar
bem como" os funcionários palacianos que residem na cidade e fize­ sua antiga posição. Mas, no início da civilização, provocou uma mu­
ram um juramento aos deuses", como diz uma carta citada por Geor­ dança de perspectiva, acompanhada por uma perda progressiva da
ges Cohtenau. Em troca de seu apoio, os antigos reis davam a esses re­ compreensão das necessidades da vida e por uma grande superesti­
presentantes do "poder espiritual" segurança, ócio, posição e moradias mação do papel da força física e do controle organizado como deter­
coletivas de grande magnificência. Ajudando a transformar um mero minantes da vida comunal, não apenas numa crise, mas na rotina diá-
46 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTAUZAçAO DA CIDADE 47

ria. Sustentada pela força militar, a palavra do rei era a lei. O poder de encarnava a comunidade mas, por suas próprias suposições, detinha
comandar, de se apoderar da propriedade, de matar, de dcstruir - to­ nas mãos seu destino. Isso preparou o terreno para um estado de an­
das essas coisas eram e continuaram sendo Hpoderes soberanos". As­ siedade coletiva. Milhares de anos após a primeira implosão urbana, o
sim, uma estrutura psíquica paranóica foi preservada e transmitida nome do faraó egípcio não podia ser pronunciado sem provocar a ora­
pela cidade murada: a expressão coletiva de uma personalidade reves­ ção: "Vida! Prosperidade! Saúde!" Ao lado de todo esse desenvolvi­
tida de armaduras por demais pesadas. mento existia, ao que parece, uma consciência intensificada da dese­
A medida que aumentavam os meios físicos, essa mitologia uni­ jabilidade da vida ou pelo menos da desejabilidade de prolongá-la e
lateral do poder, estéril e realmente hostil à vida, avançou à força para evitar a morte. O homem urbano procurava controlar os acontecimen­
todos os cantos do cenário urbano e encontrou, na nova instituição da tos naturais que seus precursores mais primitivos outrora aceitavam
guerra organizada, a sua expressão mais completa. com muda dignidade.
Para compreender a natureza dessa regressão, que deixou suas Pagou a realeza por esse aumento exorbitante do poder mágico?
marcas indeléveis na estrutura da cidade, é preciso penetrar mais a Há provas dispersas, demasiado antigas e demasiado afastadas para
fundo na origem da própria realeza. Nessa questão, tanto Hocart serem inteiramente postas de lado, de que os ritos de fertilidade des­
quanto Frankfort ajuntaram grandes quantidades de provas dispersas tinados a assegurar o crescimento das plantações eram consumados
que, creio eu, têm algo a ver com a natureza da cidade. Hocart, acom­ por meio de sacrifícios humanos. Em tempos de crise causada pela pe­
panhando Sir James Frazer, mostra que, em todo o mundo, encontram­ núria e pela fome, a necessidade de conquistar os deuses haveria de
se ainda evidências de ritos totêmicos, com fórmulas quase idênticas, ser peremptória. A princípio, muito possivelmente, a vitima do sacrifí­
destinadas a assegurar certa abundãncia de alimentos. Esses ritos in­ cio era o membro mais precioso da comunidade, o próprio rei-deus.
dicam um culto de fertilidade que pode ser ainda mais velho que a Infligindo voluntariamente a morte, a magia primitiva procurava evi­
prática da agricultura. Por toda parte, tanto no Velho quanto no Novo tar a ira divina e recuperar o controle das forças de vida.
Mundo, o nascimento e a morte da vegetação eram associados ao nas­ Infelizmente, as culturas urbanas já se achavam por demais adian­
cimento e à morte do deus do trigo, senhor das artes humanas da se­ tadas no seu desenvolvimento, pela época em que a escrita foi inven­
meadura e do cultivo. Com a realeza, as duas figuras, deus e rei. tor­ tada, para registrar qulquer das primeiras fases dos sacrifícios huma­
naram-se virtualmente intersubstituíveis, pois, supondo-se investido nos reais, embora o extermínio religioso de crianças, cativos e animais
de poderes divinos, o próprio governante personificava as forças pe­ significativamente continuasse, no decorrer da maior parte da história
netrantes da natureza, ao mesmo tempo que personificava sua própria antiga. Apenas o Berose babilõnico (século 1II a.c.) deixou um relato
comunidade particular e aceitava a responsabilidade da sua existên­ dos Festivais do Ano Novo, a indicar que o costume de escolher um
cia biológica e cultural. substituto para o rei, que poderia, de outra forma, ter sido sacrificado
Ora, com o crescimento da população, na agricultura neolítica, a com o ano agonizante, a fim de assegurar o nascimento da nova ve­
comunidade proto-urbana tomou-se cada vez mais dependente das getação no ano nascente, foi por muito tempo mantido.
forças naturais que escapavam ao seu controle: uma inundação ou uma Frazer sardonicamente mostra que a prática de sacrificar o rei para
praga de gafanhotos podiam causar grande sofrimento ou morte na­ assegurar a prosperidade da comunidade reduziu, de certo modo, a
queles incoativos centros urbanos, demasiado grandes para serem fa­ a!ração do nobre cargo. Logo que a pencia organizacional e a inteli­
cilmente evacuados ou supridos de alimentos vindos de longe. Quan­ gência dos chefes se tomaram tão importantes quanto suas supostas
to mais complexo e interdependente o processo de associação urbana, funções mágicas, deve ter-se sugerido um método mais racional: a es­
tanto maior o seu bem-estar material; por outro lado, quanto maior a colha de um "segundo", que seria inicialmente identificado com o rei,
expectativa de bem-estar material, tanto menos dar-se-á o povo por sendo temporariamente tratado com todas as honras e privilégios da
satisfeito com a sua interrupção e tanto mais difundida será a ansie­ realeza, a fim de ser finalmente morto em seu lugar em uma cerimô­
dade por sua possível retirada. nia sobre altar.
Para mobilizar essas novas forças e colocá-Ias sob controle, o rei Ainda que tais costumes tenham outrora predominado no Egito
juntou em si mesmo extraordinários poderes sagrados; não apenas ou na Mesopotâmia, é certo que surgiram numa data por demais re-
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48 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE

mota para deixar quaisquer traços diretos. Isto é, necessário se faz ad­ e o assalto e arrasamento de sua aldeia, mas, pelo contrário, o isola­
mitir, um grave hiato: pois é apenas em alguns pontos que se pode es­ mento de alguns cativos vivos, destinados à morte cerimonial e a ser­
tabelecer a conexão direta entre a guerra e o sacrifício humano ceri­ vir eventualmente num banquete canibal, que era em si mesmo um
monial. Ainda assim, esses próprios pontos são significativos, pois, na rito mágico-religioso.
evidência indiscutível que nos ficou dos astecas, temos também o tes­ Tão logo a cidade começara a existir, com seu aumento coletivo
temunho de uma comunidade mais ou menos do mesmo nível geral de poder em todos os setores, toda essa situação passou por uma mu­
de desenvolvimento que encontramos nos antigos centros urbanos. dança. Em vez de ataques e assaltos à procura de vítimas isoladas,
Entre os astecas, a necessidade de vítimas para os sacrifícios - chegan­ passaram a predominar o extermínio e a destruição em massa. O que
do até 20000 num só ano - foi a principal razão das ferozes guerras outrora tinha sido um sacrifício mágico para assegurar a fertilidade e
que esses povos travaram. as colheitas abundantes, um ato irracional para promover uma finali­
Como no caso de muitas outras instituições, tanto a guerra quan­ dade racional, foi transformado na exibição do poder que tinha uma
to o sacrifício humano podem ter tido mais que um ponto de origem; comunidade, sob seu deus irado e seu rei-sacerdote, de controlar, do­
talvez apenas num limitado número de lugares, foi a ligação entre elas minar ou apagar totalmente outra comunidade. Grande parte dessa
de natureza causal. As invasões muito numerosas para arrebanhar ca­ agressividade não era provocada nem moralmente justificada da par­
tivos destinados à escravidão, antes que ao sacrifício, podem bem ter te do agressor, embora, pela época em que os registros históricos se
sido urna fonte independente da guerra. Os invasores sumerianos que tomam claros, algum colorido econômico pudesse ser dado à guerra,
iam buscar madeira e minérios nas montanhas do Norte provavel­ em razão de tensões políticas surgidas sobre disputas de fronteiras ou
mente também levaram de volta cativos úteis: sugestivamente, o sím­ direitos de água. Mas as perdas humanas e econômicas resultantes,
bolo sumeriano de escravo é "mulher montanha". Essas incursões e nos tempos antigos não menos do que hoje, estavam fora de toda
expedições assaltantes eram, a princípio, por demais unilaterais para proporção com as finalidades tangíveis pelas quais as guerras eram
serem chamadas quer de guerra quer de comércio, pois são necessá­ declaradas. A instituição urbana da guerra teve, pois, suas raízes na
rios dois para que haja luta, e, enquanto o povo das montanhas não magia de uma sociedade mais primitiva: um sonho pueril que, ao tor­
aumentara em número nem melhorara suas armas, não representava nar-se maior o poder mecânico, se transformou num pesadelo adul­
ameaça quer para os egípcios, quer para os "exércitos" mesopotâmi­ to. Esse trauma infantil continuou existindo, servindo de base ao de­
coso Mas, no fim, as represálias e hostilidades bilaterais, violentas e im­ senvolvimento de todas as sociedades subseqüentes: não menos a
piedosas, vieram a ser nada menos que inevitáveis, e a província da nossa própria.
guerra prontamente se ampliou. Durante o século XIX, os assaltantes Se fosse necessária qualquer coisa para tomar plausíveis as ori­
árabes, comerciantes de escravos que penetravam no coração da Áfri­ gens mágicas da guerra, teríamos o fato de que esta, mesmo quando
ca, deram início a um ciclo semelhante de violências. se distingue por exigências econômicas aparentemente inarredáveis,
Se a cidade não tivesse servido como ponto de foco da agressão uniformemente se transforma numa função religiosa; nada menos que
organizada, a procura de vítimas para os sacrifícios não teria tido de um sacrifício ritual em grosso. Como agente central desse sacrifício, o
passar além dos limites relativamente inocentes que ainda eram visí­ rei tinha, desde os mais remotos princípios, uma função a desempe­
veis em muitas comunidades tribais primitivas, até o século XIX - um nhar. Acumular o poder, conservar o poder, manifestar o poder por de­
esforço pervertido mas seletivo para obter alguns cativos simbólicos liberados atos de destruição assassina - essa passou a ser a constante
de outra comunidade. Essa prática foi mal interpretada pelos missio­ obsessão da realeza. Ao exibir tal poder, o rei não podia errar. Pelo pró­
nários e até pelos antropólogos; historiadores urbanos como Henri Pi­ prio ato da guerra, o rei vitorioso demonstrava as possibilidades máxi­
renne, que tinha como certo que "a guerra é tão antiga quanto a hu­ mas de controle real e invocava novo apoio divino, pela imposição da
manidade", nunca se preocuparam em procurar cuidadosamente as morte em grande escala. Isso, como nos recorda Isaías, foi a desgraça
verdadeiras provas, ou em examinar as bases das suas gratuitas convic­ do Egito, da Babilõnia e de TIro.
ções. Contudo, a primitiva troca de golpes entre homens armados ti­ Assim, por um curioso ato de transposição de vestuário, uma ce­
nha por objetivo, não a morte de uma massa de pessoas em combate rimônia que começou pela invocação de uma vida mais abundante veio
50 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE 51

a se transformar justamente no seu oposto: abriu caminho para o con­ Embora nunca venhamos a dispor de qualquer coisa semelhante
trole militar centralizado, o assalto sistemático e o parasitarismo eco­ a uma prova satisfatória da primitiva ligação entre a realeza, o sacrifi­
nómico - instituições que, todas elas, operavam contra os aspectos cio, a guerra e o desenvolvimento urbano, ajuntei fragmentos sobrevi­
promotores da vida, da civilização urbana, e finalmente vieram trazer ventes em número suficiente para lançar sérias dúvidas sobre as supo­
a ruína de uma após outra cidade. Tal coisa era uma ambivalência fi­ siçôes quer de uma beligerãncia biologicamente herdada, quer de um
nal e uma contradição, pois os numerosos ganhos alcançados graças "pecado origina!", como causa motora suficiente, na produção da
às mais amplas associações e laboriosas cooperações da cidade vieram complexa instituição histórica da guerra. Mas aqui, se tal ocorre em al­
a ser devidamente apagados pela atividade econômica negativa da gum lugar, a doutrina da seleção natural funcionou com exatidão clás­
guerra. Aquela desordem cíclica ficou encravada na própria constitui­ sica, pois, no decorrer de cinco ou seis mil anos, muitos dos troncos
ção da cidade antiga. mais fracos, mais brandos e mais cooperativos foram exterminados ou
Mas pelo menos isto há que se conceder: tão logo a guerra se tor­ desencorajados de se multiplicarem, ao passo que os tipos mais agres­
nara uma das razões da sua existência, a própria riqueza e poder da ci­ sivos e mais belicosos sobreviveram e floresceram nos centros da civi­
dade a transformaram num alvo natural. A presença de cidades prós­ lização. Os triunfos periféricos da cultura urbana compensaram seu
peras dava à agressividade coletiva um objeto visível, que jamais tinha fracasso central- seu compromisso com a guerra como elixir do poder
sido imaginado antes: a própria cidade, com sua crescente acumulação soberano e o mais eficiente purgativo para o descontentamento popu­
de instrumentos e equipamentos mecânicos, seus depósitos de ouro, lar com aquele poder.
prata e jóias, amontoados no palácio e no templo, seus celeiros bem Com demasiada facilidade, têm os historiadores atribuído a guer­
abastecidos e seus armazéns; não menos, talvez, seu excedente de mu­ ra principalmente ao passado selvagem do homem, e a têm conside­
lheres. Se a guerra tivera origem em simples grupos assaltantes envia­ rado como uma incursão dos chamados nômades primitivos, os "des­
dos pela cidade, a existência de uma nova casta profissional, a dos
providos", contra centros de indústria e comércio normalmente "pací_
guerreiros armados, pode ter transformado cada vez mais aqueles as­
ficos". Nada poderia estar mais longe da verdade histórica. A guerra e
saltos, afastando-os das fontes de matérias-primas para os lugares que
o domínio, mais que a paz e a cooperação, achavam-se arraigados na
possuíam as maiores reservas de produtos acabados. Odades que a prin­
estrutura original da cidade antiga. Sem dúvida, os excedentes urba­
cípio tinham cobrado tributos de povos primitivos aprendiam agora a
nos tentavam os povos mais fracos, pois cada cidade deve ter pareci­
fazer presa umas contra as outras.
do uma boa presa para os velozes assaltantes vindos das terras altas
Entrementes, tão logo a guerra se tomara plenamente estabele­
ou das estepes; contudo, as próprias facilidades que lhes permitiam
cida e institucionalizada, era natural que se propagasse além dos seus
deslocar-se rapidamente, com cavalos e barcos, só surgiram depois
centros urbanos originais. Povos primitivos, outrora de disposição pa­
que a cidade mesma já havia sido fundada. As antigas colônias da Su­
cífica ou quando muito satisfeitos em expressar sua ansiedade e agres­
méria acham-se tão perto umas das outras que também podem facil­
sividade por meio do simbolismo dos sacrifícios humanos, passavam
mente ter antecipado a guerra organizada. Em tempos posteriores, em
a evitar as novas técnicas e a dar uma utilização mais ousada às novas
armas, ainda mais prontamente se a invasão, o assalto e o escraviza­
verdade os nômades podiam, como os reis pastores hicsos, tomar pos­
menta, por meio de expediçôes urbanas, impeliam o grupo mais pri­ se de todo um país. Mas, tão logo se implantou a guerra, o principal
mitivo à vingança. Como no caso da realeza e da própria cidade, a inimigo da cidade era outra cidade que, sob outro deus, reclamava
guerra ganhou difusão mundial, passando a ser praticada por povos iguais poderes.
que "nada sabiam da realeza", como os invasores da Acádia, um sécu­ Não devemos esquecer que, na expansão geral do poder, a capa­
lo depois de Sargão. Sob a égide da cidade, a violência tomou-se as­ cidade de matar também aumentou; e a exibição de poderio armado
sim normalizada e se propagou muito além dos centros onde as gran­ passou a ser um dos atributos mais importantes da realeza. A cidade,
des caçadas humanas coletivas e orgias sacrificiais foram inicialmente com suas muralhas fortificadas, seus baluartes e fossos, impunha-se
instituídas. Durante a maior parte da história, a escravização, o traba­ como admirável exibição de uma agressividade sempre ameaçadora,
lho forçado e a destruição têm acompanhado - e imposto castigos - o que adquiria concentrações letais de suspeita e ódio vingativo, assim
desenvolvimento da civilização urbana. como de não-cooperação, nas proclamações dos reis. Os monarcas
52 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRlSTAUZAÇÃO DA CIDADE 53

egípcios, não menos que seus correspondentes mesopotâmicas, gaba­ Contudo, mais ainda, a guerra incentivou as práticas de arregi­
vam-se, em seus monumentos e tabuinhas, de seus feitos pessoais, mentação, militarização e conformismo compulsório. A guerra colocou
mutilando, torturando e matando com suas próprias mãos seus prin­ a concentração da liderança social e do poder político nas mãos de uma
cipais cativos. De fato, faziam pessoalmente o que os paranóicos mais minoria portadora das armas, incentivada por uma classe sacerdotal
doentios, como Hitler, realizavam por meio de seus agentes. Sob essa que possuía poderes sagrados e tinha conhecimentos cientificas e má­
liderança, a divindade urbana local opunha suas potências mágicas a gicos, secretos porém valiosos. Se a sociedade civilizada ainda não su­
cada divindade estrangeira ameaçadora: o templo tomou-se, ao mes­ percu a guerra, assim como superou manifestações menos respeitáveis
mo tempo, o ponto de partida e o objeto da ação agressiva. Assim, in­ de magia primitiva, como o sacrifício de crianças e o canibalismo, isso
citados por exorbitantes fantasias religiosas, números cada vez maio­ ocorre em parte porque a própria cidade, na sua estrutura e nas suas
res, com armas cada vez mais eficientes para o sítio e o assalto, foram instituições, continuou dando à guerra, ao mesmo tempo, forma durá­
arrastados aos insensatos rituais de guerra. vel e concreta e um pretexto mágico de existência. No fundo de todos
Nesse processo, a cidade veio a exercer uma nova função: tendo os melhoramentos técnicos da guerra, achava-se uma crença irracional,
o rei a dominar toda a sua capacidade manual, tomou-se, por assim ainda profundamente enraizada no inconsciente coletivo: apenas pelo
dizer, um exército regular permanentemente mobilizado e mantido
sacrifício em grande escala pode ser salva a comunidade.
em reserva. O simples poderio desse acúmulo de homens deu à cida­
Se a guerra não tem base suficiente em qualquer pugnacidade
de uma superioridade sobre as aldeias dispersas, escassamente povoa­
ancestral violenta, devemos procurar suas origens cm outra direção
das, e serviu de incentivo ao maior crescimento, tanto na área interna
bem diferente. Para encontrar um paralelo da guerra, devemos ver o
quanto na população. Para enfrentar esse desafio, as próprias aldeias
que se passa no mundo animal- particularmente nas perversões e fi­
aborígines podem ter-se muitas vezes combinado em unidades urba­
xações de uma espécie de sociedade muito mais antiga, o termitário
nas maiores, assim como mais tarde os fócios reuniram suas popula­
ou o formigueiro. Evidentemente, existem, ao mesmo tempo, comba­
ções numa única cidade, Megalópolis, a fim de resistir à ameaça de
tividade e agreSSividade com finalidades mortais no mundo animal:
conquista por parte dos lacedemônios.
entretanto, a primeira é quase exclusivamente sexual, entre os machos
Com a concentração na guerra, como supremo IIesporte dos reis",
velhos e jovens, e a última resume-se inteiramente ao fato de uma es­
uma porção cada vez maior dos novos recursos da cidade, na produ­
pécie fazer presa ou matar os membros de outra para ter alimento.
ção industrial, destinou-se à manufatura de novas armas, como o car­
ro de guerra da Idade do Bronze e o anete. A própria existência de
Afora as comunidades humanas, a guerra só existe entre os insetos
uma reserva de força militar, não mais necessária na agricultura, fo­ sociais, que, muito antes do homem urbano, chegaram à fase de uma
complexa comunidade, de partes altamente especializadas.
mentava fantasias de violência sem resetvas entre as classes dominan­
tes, tais como temos visto irromper mais de uma vez em nossa própria Até onde podem mostrar as observações externas, certamente não
era, mesmo entre espíritos supostamente racionais, adestrados nas se encontra religião ou sacrifício ritual nessas comunidades de insetos.
ciências exatas. Cada cidade passou a ser um foco de insolente poder, Mas as outras instituições que acompanharam a ascensão da cidade
indiferente àqueles meios humanos de conciliação e intercurso que a acham-se todas presentes: a rigorosa divisão do trabalho, a criação de
cidade, com outro espúito, havia promovido. uma casta militar especializada, a técnica da destruição coletiva acom­
Assim, tanto a forma física quanto a vida institucional da cidade, panhada pela mutilação e pela morte, a instituição da escravidão e até,
já desde o princípio da implosão urbana, foram configuradas, em me­ em certas espécies, a domesticação de plantas e animais. Mais signi­
dida não pequena, pelas finalidades irracionais e mágicas da guerra. ficativo do que tudo, as comunidades de insetos que apresentam es­
Dessa fonte brotou o complicado sistema de fortificações com mura­ sas características exibem a instituição que considerei como central
lhas, torreões, baluartes, canais e valas, que continuou caracterizando de todo esse desenvolvimento: a instituição da realeza. A realeza, ou
as principais cidades históricas, com exceção de alguns casos especiais seu equivalente feminino, com a rainha no centro, foi incorporada
- como durante a Fax Romana -, até o século XVIII. A estrutura física como um supremo fato biológico nessas sociedades de insetos; de sor­
da cidade, por sua vez, perpetuou o ânimo, o isolamento e a afirmação te que aquilo que é apenas uma crença mágica, nas antigas cidades
de si mesma que favorecia a nova instituição. - a crença de que a vida de toda a comunidade depende da vida do mo-
54 A CIDADE NA HI5TÓRIA A CRI5TAUZAÇÃO DA CIDADE 55

narca -, é uma condição real em Insetópolis. Da saúde da rainha depen­ tuiçõcs operativas imediatas. Seu centro de gravidade deslocou -se do
dem a segurança, a capacidade reprodutiva e a continuação da exis­ castelo para o templo, da cidadela para o mercado e para o distrito de
tência da colmeia. Aqui, e apenas aqui, realmente se verifica a existência vizinhança, de onde voltou. Muito antes do Noé bíblico, "estava a tor­
daquela agressividade coletiva organizada por uma força militar espe­ ra cheia de violências". O fato de ter, ainda assim, emergido certa me­
cializada, que se encontra pela primeira vez nas cidades antigas. dida de lei e ordem é um testemunho do poder socializante da cidade.
Ao seguir estas indicações do aparecimento da cidade, creio ter­ Para compreender os processos e funções da cidade, acima de to­
mos deíxado a nu os mais tristes acontecimentos da história urbana, das as suas finalidades, em termos mais concretos, é necessário pene­
dos quais ainda nos envergonhamos. Não importa quantas ações va­ trar o nebuloso território do período protoletrado, quando a nova ins­
liosas a cidade tenha efetivado, também tem ela servido, através de qua­ tituição de realeza estava tomando forma. Talvez a melhor maneira de
se toda a sua história, de recipiente de violência organizada c transmis­ dar substãncia ao papel do rei como construtor de cidades seria re­
sora da guerra. As poucas culturas que, durante algum tempo, evitaram montar à antiga evidência histórica, chegando a um período em que
isso foram aquelas que mantiveram sua base de aldeia e se entrega­ apenas um punhado de artefatos e ossos, em túmulos reais, fornece
ram sem esforço a um comando central aparentemente benigno. material para dedução e especulação.
Pode-se mesmo levar mais adiante o argumento. A cidade mu­ O relato feito por Heródoto sobre a ascensão de Dejoces ao po­
rada não deu simplesmente uma estrutura coletiva permanente às der absoluto sobre os medos refere-se a um período muito recente, cm
pretensões e alucinações paranóicas da realeza, aumentando a sus­ grande parte livre da inundação de idéias mágicas e religiosas que
peita, a hostilidade, a não-cooperação, mas a divisão do trabalho e das abundavam no fim da Idade da Pedra e princfpio da Idade do Bronze;
castas, levada ao extremo, tomou normal a esquizofrenia; ao passo assim, dá-nos uma narrativa altamente racionalizada da passagem da
que o trabalho repetitivo e compulsório imposto a uma grande par­ cultura de aldeia para a cultura urbana. Os medos, conta.nos o antigo
te da população urbana, sob a escravidão, reproduziu a estrutura de historiador grego, achavam-se então distribuídos cm aldeias. E, nesse
uma neurose compulsiva. Assim, a cidade antiga, em sua própria cons­ caso, tão predominantes eram a desordem e a violência, que Dejoces
tituição, tendia a transmitir uma estrutura coletiva de personalidade obteve elevada reputação entre eles, como conselheiro, exercendo a
cujas manifestações mais extremas são agora reconhecidas como pa­ justiça com mão firme. Essa reputação fez com que pessoas de outras
tológicas nos indivíduos. Essa estrutura é ainda visível cm nossos pró­ aldeias se apresentassem diante dele para serem julgadas, quando em
prios dias, embora as muralhas exteriores tenham cedido lugar a cor­ conflito; e tão constante era a necessidade de suas funções, que deci­
tinas de ferro. diram transformá-lo em seu supremo governante.
O primeiro ato de Dejoces foi construir um palácio em condições
de abrigar um rei e pedir" guardas para a sua segurança". Pode-se,
4. Lei e ordem urbana justificadamente, presumir que, nos velhos tempos, os próprios guar­
das precederam ou acompanharam a edificação da cidadela e do pa­
Desde o princfpio, pois, a cidade apresentava um caráter ambiva­ lácio, e que o próprio palácio existia, como sede visível do poder e re­
lente que jamais perdeu por completo: combinava a quantidade máxi­ positório de tributos, antes que a função de justiça fosse exercida pelo
ma de proteção com os maiores incentivos à agressividade; oferecia a rei. NEstando assim investido do poder", Dejoces "compeliu os me­
mais ampla liberdade e diversidade possível, e entretanto impunha dos a construírem uma cidade e, tendo-a cuidadosamente adornado,
um drástico sistema de compulsão e arregimentação que, ao lado da a darem menos atenção às outras." Eu gostaria de chamar a atenção
sua agressividade militar c da sua destruição, tomou -se uma "segun­ para a última frase: o deliberado estabelecimento de um monopólio
da natureza" do homem cívilizado e é muitas vezes erroneamente iden­ econõmico e político foi um dos requisitos iniciais do rápido cresci­
tificado com suas propensõcs biológicas originais. Assim, a cidade mento da cidade. E, como os medos obedeceram a Dejoces naquele
teve, ao mesmo tempo, um aspecto despótico e um aspecto divino. Em caso, ele mandou também construir "muralhas altivas e fortes, uma
parte, era ela um Zwingburg, um centro real de controle: cm parte, uma colocada cm círculo dentro da outra. (...) Dejoces então construiu para
réplica do céu, um transformador do remoto poder cósmico em insti- si fortificações, ao redor de seu próprio palácio; c mandou que o resto
56 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE 57

do povo fixasse suas habitações ao redor da fortificação •. Talvez a me­ los arquitetônicos e esculturais que tomavam visível esse fato eleva­
lhor definição dos habitantes de uma cidade antiga é a de que consti­ vam a cidade muito acima da aldeia ou do pequeno povoado rural.
tuem uma população tributária permanentemente cativa. Sem os sagrados poderes que se achavam contidos dentro do palácio
Note-se que ao reduzir a distãncia física, concentrando a popu­ e do recinto do templo, a cidade antiga teria sido sem finalidade nem
lação na cidade, Dejoccs tomou o cuidado de aumentar a distância significado. Uma vez estabelecidos esses poderes pelo rei, ampliando
psicológica, isolando-se e tomando formidável o acesso a sua pessoa. a área de comunicação e unificando o comportamento através da lei,
Esta combinação de concentração e mistura, com isolamento e dife­ a vida ali prosperou como não podia jamais prosperar em qualquer
renciação, é uma das marcas características da nova cultura urbana. outra parte. O que teve início como controle terminou como comu­
Do lado positivo, havia a coabitação amistosa, a comunhão espiritual, nhão e entendimento racional.
a ampla comunicação e um complexo sistema de cooperação vocacio­ Muito significativamente, o texto egípcio que nos leva perto do
nal. Mas, do lado negativo, a cidade introduziu a segregação de clas­ antigo período da fundação da cidade, ao descrever os poderes da di­
ses, a falta de sentimentos afetivos e a insensibilidade, a dissimulaçâo, vindade dominante Ptah, afirma não apenas que ele "fundava nomes"
o controle autoritário e a violência extrema. - mas que "punha os deuses em seus escrínios". Os escribas que ainda se
O relato de Heródoto condensa numa única existência modifica­ achavam relativamente perto desses atas viram corretamente ambas
ções que, provavelmente, se verificaram em muitos diferentes lugares, as funções, creio eu, como essenciais ao exercício daqueles poderes
sob várias condições, no decorrer de milhares de anos, pois até mes­ ampliados que surgiram com a civilização.
mo a ascensão do chefe à liderança puramente local, baseada no domí­ Sem as potências religiosas da cidade, a muralha não poderia ter
nio das armas, pode ter sido um processo lento. Frankfort notou que tido êxito em moldar o caráter nem em controlar as atividades dos
não há sepulturas pré-dinásticas no Egito a indicar, como indicam tú­ seus habitantes. A não ser pela religião, assim como por todos os ritos
mulos posteriores, a eminência de qualquer figura ou família isolada. sociais e vantagens econômicas que a acompanharam, a muralha ha­
Mas a mudança crítica trouxe a existência tanto da realeza quanto da veria de ter transformado a cidade numa prisão cujos internos teriam
cidade, a primeira como encarnação, a segunda como corporificação tido apenas uma ambição: destruir seus carcereiros e fugir. Isso traz à
da •civilização., provavelmente dentro de um curto período, como par­ luz outra ambivalência urbana: numa cultura onde não havia cidades,
te da geral libertação da energia e implosão de poder que se seguiu, como a dos espartanos, que viviam em aldeias abertas e declinavam de
algum tempo depois da metade do quarto milênio. se refugiar por trás das muralhas, as classes dominantes tinham de
Não menos importante para a cidade do que sua segregação foi permanecer selvagemente alertas e ameaçadoras, em armas durante
sua centralização: mas segregação e centralização eram atributos do todos os tempos, não fossem seus servidores escravizados derrubá-Ias.
santuário, antes que fossem estendidos à comunidade urbana maior. Uma vez que tais governantes tinham de apoiar seu poder desguarne­
Uma vez efetuada a transformação urbana, a cidade como um todo cido no terrorismo aberto, nas cidades muradas, a própria muralha va­
. tomou-se um sagrado recinto, sob a proteção de seu deus: o próprio lia por um exército para controlar os rebeldes, manter os rivais sob vi­
eixo do universo passava, como deixou claro Mircea Eliade, através do gilância e bloquear a fuga dos desesperados. Assim, as cidades antigas
templo; enquanto a muralha, sob pressão da nova instituição da guer­ criaram algo que muito se assemelha à concentração de comando que
ra, era, ao mesmo tempo, um baluarte cívico de defesa e urna frontei­ se encontra num navio: seus habitantes se achavam "todos no mesmo
ra espiritual de significado ainda maior, pois preservava os que se barco", e aprendiam a confiar no capitão e a executar prontamente as
achavam dentro contra o caos e o mal sem forma que os rodeavam. A suas ordens.
"intimidadeH necessária para o maior desenvolvimento humano en. Desde o princípio, entretanto, a lei e a ordem suplementaram a
controu na cidade - acima de tudo, no recinto sagrado - a fórmula co­ força bruta. A cidade que tomou forma ao redor da cidadela real cons­
letiva que ajudaria a invocá-lo. tituía uma réplica do universo fabricada pelo homem. Isso abria uma
Thr trás das muralhas da cidade descansava um fundamento co­ perspectiva atraente: na verdade, um vislumbre do próprio céu. Ser
mum, colocado em posiçâo tão profunda quanto o próprio universo: a morador da cidade era ter um lugar na verdadeira morada do homem,
cidade era nada menos que um lar de um deus poderoso. Os símbo- no próprio grande cosmo, e esta própria escolha constituiu, em si mes-
58 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTALIZAÇÃO DA ODADE 59

ma, um testemunho do aumento geral dos poderes e potencialidades Ao colocar o poder, em certa medida, a serviço da justiça, a cida­
que teve lugar em todas as direções. Ao mesmo tempo, morando na de, fugindo do tedioso reino arcaico da aldeia, mais prontamente in­
cidade, podendo ser visto pelos deuses e pelo seu rei, podiam-se rea­ troduziu a ordem nos seus assuntos internos: todavia, deixou um éle­
lizar as maiores potencialidades da vida. A identificação espiritual e a serto desguardado e sem lei na área entre as cidades, onde nenhum
participação vicária tomavam fácil obedecer aos imperativos divinos deus local podia exercer o poder ou impor sua jurisdição moral sem
que governavam a comunidade, por mais insondáveis, difíceis de com­ colidir com outro deus. E, à medida que aumentavam as frustrações
preender ou de intimamente aceitar que pudessem ser. interiores, as agressões exteriores tendiam a se multiplicar: o ânimo
Embora o poder, em todas as suas manifestações, cósmicas e huma­
contra o opressor local passava a ser proveitosamente voltado contra
nas, fosse a viga mestra da nova cidade, tornou-se cada vez mais confi­
o inimigo externo.
gurado e dirigido pelas novas instituições da lei, da ordem e da cortesia
social. Isto se verifica claramente, mais urna vez, na história de Dejoces,
que passa por alto as primitivas origens religiosas do rei e da cidade.
5. Da proteção à destruição
Em dado ponto, o poder e o controle se tomaram brilhantes sob a for­
ma de justiça. Com o ajuntamento de pessoas de muitas línguas e cos­
Constituindo, em parte, uma manifestação de ansiedade e agres­
tumes diferentes no novo centro, o lento processo de reconciliação e
sividade intensificada, a cidade murada substituiu uma imagem mais
acomodação foi apressado pela inteIVenção real: a obediência a um sé­
antiga de tranqüilidade rural e de paz. Os antigos bardos sumerianos
rio comando exterior era, sem dúvida, preferível ao não-conformismo
remontavam a uma idade de ouro pré-urbana, em que "não havia co­
rebelde e à interminável dissensão. Mesmo os costumes benéficos ten­
bras, nem escorpiões, nem hienas, nem leões, nem cães selvagens, nem
dem a levar em sua esteira resíduos acidentais e irracionais que se tor­
lobos": em que "não havia medo nem temor; o homem não tinha rival".
nam tão sagrados quanto os propósitos humanos mais centrais que o
costume corporifica. Era essa a fraqueza da aldeia. A lei escrita, assim Evidentemente, nunca existiu aquela época mitológica C, sem dúvida,
COIDO a linguagem escrita, tendia a deixar que se filtrassem para fora
os próprios sumerianos tinham certa consciência desse fato. Conrudo,
esses resíduos e produzia um cânone de eqüidade e justiça que apela­ os animais venenosos e perigosos, cuja presença despertava seu medo,
va para um prinápio superior: a vontade do rei, que era outro modo de haviam, com o desenvolvimento do sacrifício humano e da guerra sem
denominar o imperativo divino. A essência de direito, como mostrou o restrições, assumido uma nova forma: simbolizavam as realidades do
cientista Wl!helm Ostwald há meio século, é o "comportamento previ­ antagonismo e da inimizade humana. No ato de expandir todos os
sível", que a sociedade toma possível por meio de regras uniformes, seus poderes, o homem civilizado dera a essas criaturas selvagens um
critérios uniformes de julgamento, penalidades uniformes para a deso­ lugar gigantesco em sua própria constituição.
bediência. Essas uniformidades mais amplas surgiram com a cidade, Desarmado, exposto, nu, o homem primitivo tinha sido suficien­
transcendendo a mil diferenças locais insignificantes. temente esperto para dominar todos os seus rivais naturais. Entretan­
O crescimento da consciência própria, na cidade, graças ao em­ to, agora, criara afinal um ser cuja presença repetidamente levaria o
bate dos costumes de aldeia e das diferenças regionais, produziu o co­ terror a sua alma: o Inimigo Humano, seu outro eu e correspondente,
meço da moralidade reflexiva; isto porque o próprio governante egíp­ possuído por outro deus, congregado em outra cidade, capaz de ata­
cio era obrigado, numa data muito anterior, a explicar sua própria con­ cá-lo, assim como Ur foi atacada sem provocação.
duta perante os deuses e provar que evitava o mal e promovia o bem. Aquela mesma implosão que aumentara os poderes do deus, do
Quando a própria sociedade se tomou mais secularizada, graças à rei e da cidade, e que mantivera as complexas forças da comunidade
crescente pressão do comércio e da indústria, o papel desempenhado num estado de tensão, aprofundou também as ansiedades coletivas e
pela cidade como sede do direito e da justiça, da razão e da eqüidade, expandiu os poderes de destruição. Não constituíam os próprios po­
suplementou aquele papel que ela desempenhava como representa­ deres coletivos do homem civilizado, já aumentados, algo como uma
ção religiosa do cosmo. Para apelar contra o costume irracional ou a afronta aos deuses, que só se deixariam pacificar destruindo comple­
violência sem lei, devemos procurar proteção do tribunal de direito na tamente as pretensões e presunções dos deuses rivais? Quem era o ini­
cidade. migo? Alguém que adorava outro deus: que procurava igualar os po-
60 A CIDADE NA HISTÓRIA A CRISTALIZAçAO DA CIDADE 61

deres do rei ou resistir à sua vontade. Assim, a simbiose cada vez mais prio, em meio a todas as novas imposições das classes dominantes, o
complexa dentro da cidade e de seu domínio agrícola vizinho era con­ súdito urbano, não sendo ainda um cidadão de pleno direito, identifi­
trabalançada por uma relação destruidora e predatória com todos os cava seus próprios interesses com os de seus senhores. A melhor coi­
possíveis rivais: aliás, à medida que as atividades da cidade se toma­ sa que se pode fazer, quando não é possível opor-se a um conquista­
vam mais racionais e benignas dentro dela, passaram a ser, quase no dor, é ficar ao seu lado e ter possibilidades de receber uma parte da
mesmo grau, mais irracionais c malignas nas suas relações externas. possível presa.
Isto se verifica ainda hoje, com relação aos agregados maiores que su­ A cidade, quase desde seus primeiros momentos, a despeito de
cederam a cidade. sua aparência de proteção e segurança, trouxe consigo a expectativa
O próprio poder real media sua força e o favor divino pelas suas não apenas de ataques exteriores, mas, igualmente, da intensificação
capacidades não simplesmente de criação, porém, ainda mais, de pi­ da luta interior: mil pequenas guerras eram travadas no mercado, nos
lhagem, destruição e exterminio. "Na realidade - como declarou Pla­ tribunais, no certame de danças ou na arena. Heródoto foi testemu­
tão nas Leis -, todas as cidades se acham num estado natural de guer­ nha ocular de uma sangrenta luta ritual com bastões, entre as forças
ra umas com as outras." Suas palavras traduzem um simples fato da da Luz e das Trevas, realizada dentro do recinto de um templo egípcio.
observação. Assim, as percepções originais do poder, que acompanha­ Exercer o poder sob todas as formas constituía a essência da civiliza­
vam os grandes avanços técnicos e culturais da civilização, solaparam ção: a cidade encontrou uma vintena de maneiras de expressar a luta,
e muitas vezes anularam os grandes feitos da cidade, até a nossa pró­ a agressividade, o domínio, a conquista - e a servidão. Será de admi­
pria era. Será meramente por acaso que as mais antigas imagens so­ rar que o homem de antigamente remontasse ao período anterior à ci­
breviventes da cidade, aquelas das palettes egípcias pré-dinásticas, re­ dade como a Idade do Ouro, ou que, como Hesíodo, considerasse
tratam sua destruição? cada melhoramento da metalurgia e das armas como uma forma de
No próprio ato de transformar grupos dispersos de aldeias em po­ piorar as perspectivas de vida, de sorte que o mais mesquinho estado
derosas comunidades urbanas, capazes de manter um intercurso mais humano fosse justamente aquele da Idade do Ferro? (Não podia c1e
amplo e de construir estruturas maiores, cada parte da vida passou a antecipar o quanto as precisas técnicas científicas de extermínio total,
ser uma luta, uma agonia, um combate de gladiadores contra uma por meio de agentes nucleares ou bacteriológicos, haveriam de degra­
morte corpórea ou simbólica. Ao passo que a cópula sagrada entre o dar mais ainda o homem.)
rei e a sacerdotisa babilônica, na alcova divina, que coroava o zigurate, Ora, todos os fenõmenos orgânicos têm limites de crescimento e
recordava um antigo culto de fertilidade, dedicado à vida, os novos mi­ expansão fixados pela sua própria necessidade de continuarem sendo
tos eram principalmente a expressão incansável de oposição, de luta, sustentados e dirigidos por si mesmos: só podem crescer a expensas
de agressão, de poder sem reserva: os poderes das trevas contra os po­ de seus vizinhos, perdendo justamente as facilidades que as ativida­
deres da luz, 5eth contra seu inimigo Osíris, Marduk contra TIamat. En­ des de seus vizinhos emprestam a sua própria vida. As pequenas co­
tre os astecas, as próprias estrelas eram agrupadas em exércitos hostis munidades primitivas aceitavam essas limitações e esse equilíbrio dinâ­
do Ocidente e do Oriente. mico, assim como as apresentam as comunidades ecológicas naturais.
Embora as práticas mais cooperativas da aldeia continuassem As comunidades urbanas, concentradas na nova expansão do po­
em vigor na oficina e no campo, foi precisamente nas novas funções der, puseram a perder esse senso de limites: o culto do poder exultava
da cidade que O açoite e o bastão - polidamente apelidado de cetro ­ com sua própria ilimitada exibição; oferecia as delícias de um jogo de­
se fizeram sentir. Com o tempo, o cultivador de aldeia aprendia mui­ sempenhado pelo próprio jogo, bem como as recompensas do traba­
tas manhas e truques para resistir às coerções e exigências dos agen­ lho sem a necessidade da labuta cotidiana, pela tomada coletiva, à for­
tes governamentais: até mesmo sua aparente estupidez muitas vezes ça, e pela escravização em larga escala. O céu era o limite. Temos a
era um método de "não ouvir" ordens que não se dispunha a obede­ prova desse súbito sentido de exaltação nas crescentes dimensões das
cr. Mas aqueles que eram apanhados dentro da cidade tinham pou­ grandes pirâmides, assim como temos a sua representação mitológica
cas alternativas senão obedecer, quer fossem abertamente escraviza­ na história da ambiciosa torre de Babel, embora esta fosse vencida por
dos, quer mais sutilmente cativados. ?Ira preservar seu respeito pró- uma impossibilidade de comunicação que uma exagerada ampliação
62 A CIDADE NA HISTORIA A CRISTALIZAÇÃO DA CIDADE 63

do território lingüístico e da cultura pode, por sua vez, ter repetida­ rigidas no sentido da destruição e do extermínio incessante. Em con­
mente provocado. seqüência dessa herança profundamente arraigada, a própria sobrevi­
Aquele ciclo de indefinida expansão da cidade até se tomar impé­ vência da civilização, ou mesmo de qualquer porção grande e não mlf­
rio é fácil de acompanhar. À medida que crescia a população da cidade, tilada da raça humana, acha-se agora em dúvida - e pode por muito
era necessário quer estender a área de imediata produção de alimentos, tempo permanecer em dúvida, sejam quais possam ser as acomoda­
quer ampliar as linhas de suprimento, e buscar apoio pela coopera­ ções temporárias. Cada civilização histórica, como há muito tempo
ção, pela troca, pelo comércio ou pelos tributos forçados, pela expro­ mostrou Patrick Geddes, começa com um núcleo urbano vivo, a pólis,
priação e pelo extermínio, em outra comunidade. Predação ou simbio­
e termina num cemitério comum de cinzas e ossos, uma Necrópolis,
se? Conquista ou cooperação? Um mito cuja base é o poder conhece
ou cidade dos mortos: ruínas chamuscadas pelo fogo, edifícios aluídos,
apenas uma resposta. Assim, o próprio triunfo da civilização urbana
oficinas vazias, montões de lixo sem significação, a população massa­
sancionou os belicosos hábitos e exigências que continuadamente a
crada ou conduzida à escravidão.
solaparam e anularam seus benefícios. O que começara como uma go­
"E ele tomou a cidade - lemos nos Juízes -; e matou as pessoas
tícula urbana contida em si mesma tomava-se por força inflado, até
dali; e destruiu a cidade e a serviu de sal." O terror desse episódio fi­
ganhar as dimensões da iridescente bolha de sabão de um império, im­
naL com sua fria miséria e seu descolorido desespero, é o ponto cul­
ponente nas suas dimensões, porém frágil em proporção ao seu tama­
minante para o qual aponta a [Uada; mas, muito antes disso, como pro­
nho. Não tendo uma coesão interior, as capitais mais belicosas eram
vou Heinrich Schliemann, seis outras cidades foram destruídas; e mui­
obrigadas, sob pressão, a continuar a técnica da expansão, não fosse
to antes da Ilíada encontra-se um lamento, igualmente amargurado e
o poder reverter de novo à aldeia e aos centros urbanos autônomos,
sentido, por aquela maravilha entre as antigas cidades, a própria Ur,
onde havia florescido inicialmente. Tal retrocesso de fato ocorreu du­
um gemido pronunciado pela deusa da cidade:
rante o interregno feudal egípcio.
Se interpreto corretamentc as provas existentes, as formas coo­
Em verdade todas as minhas aves e criaturas aladas voaram para longe
perativas da política urbana foram solapadas e viciadas desde o prin­
"'Ai de mim! Por minha cidade" - eu direi.
ápio pelos mitos destruidores e orientados para a morte que cercaram
Minhas filhas e meus filhos foram levados embora
e, talvez, em parte, incentivaram a exorbitante expansão do poder físi­
í\i de mim! Por meus homens'" - direi.
co e da habilidade tecnológica. A simbiose urbana coletiva foi repeti­
"Oh minha cidade que não mais existe, minha {cidade] atacada sem causa,
damente substituída por uma simbiose negativa, igualmente comple­
Oh minha {cidade] atacada e destruída!"'"
xa. Tão conscientes eram os governantes da Idade do Bronze desses
desastrosos resultados negativos que, muitas vezes, contrabalançavam
Finalmente, consideremos a inscrição de Senaqueribe, sobre a
suas numerosas ostentações de conquista e extermínio mostrando suas
aniquilação total da Babilônia: "A cidade e [suas] casas, desde seus ali­
atividades em favor da paz e da justiça. Hamurabi, por exemplo, orgu­
cerces até o alto, eu destruí, devastei, queimei com fogo; o muro e a
lhosamente proclamou: "Eu pus termo à guerra; promovi o bem-estar
muralha exterior, templos e deuses, torres de templos de tijolos de ter­
da terra; fIz com que os povos repousassem em habitações amistosas;
ra, tantas quantas existiam, arrasei e atirei no canal de Arakhtu. Pelo
não deixei que houvesse quem quer que fosse a aterrorizá-los." Con­
meio daquela cidade, abri canais, inundei seu sítio com água e os pró­
tudo, mal haviam saído essas palavras de sua boca, o ciclo de expan­
prios fundamentos da cidade eu destruí. Tomei essa destruição mais
são, exploração e destruição começou de novo. De acordo com as con­
completa do que por uma inundação."Tanto o ato quanto a moral an­
dições favoritas pedidas pelos deuses e reis, nenhuma cidade poderia
teciparam as ferozes extravagãncias de nossa própria Idade Nuclear;
assegurar sua própria expansão a não ser arruinando e destruindo ou­
Senaqueribe carecia apenas da nossa rápida destreza científica e da
tras cidades.
Assim, a mais preciosa invenção coletiva da civilização, a cidade,
... A menos que assinalado de outra maneira. essa e outras dtaçôes dos textos meso.
superada apenas pela linguagem, na transmissão da cultura, passou a
potâmicos ou egípcios são tiradas de Andent Near Eastem Tats, publicados por James li
ser, desde o prinápio, o recipiente de forças internas demolidoras, dí- Pritchar (Princeton University Press). (N. do A.)
64 A CIDADE NA HISTÓRiA

nossa maciça hipocrisia, quando disfarçamos as nossas intenções até CAPiTuLo III
de nós próprios.
Todavia, repetidas vezes, as forças positivas da cooperação e da Formas e modelos ancestrais
comunhão sentimental têm levado os povos de volta aos devastados
ciclos urbanos, "para reparar as cidades arrasadas, desolação de mui­
tas gerações". Ironicamente - ainda que consoladoramente -, as cida­
des têm repetidamente sobrevivido aos impérios militares que apa­
rentemente as destruíram para sempre. Damasco, Bagdá, Jerusalém,
Atenas erguem-se nos sítios que originariamente ocuparam, ainda vi­
vas, embora pouco mais do que fragmentos dos seus antigos alicerces
permaneçam visíveis.
1. Cidades da planície
Os crônicos descaminhos da vida na cidade poderiam perfeita­
mente ter causado o seu abandono, poderiam mesmo ter provocado
Este estudo das origens da cidade haveria de se mostrar mais cla­
uma generalizada renúncia da vida na cidade e de todos os seus dotes
ro, não fosse o fato de que talvez a maior parte das alterações críticas
ambivalentes, não fosse um único fato: o constante recrutamento de
teve lugar antes de ser aberto o registro histórico. Pela época em que
nova vida, saudável e não sofisticada, em regiões rurais cheias de crua
surge claramente à vista, a cidade já é antiga: as novas instituições da
força muscular, vitalidade sexual, zelo procriativo e crença animal. Es­
civilização já a configuraram de maneira firme. Contudo, há outras di­
sas populações rurais revigoraram as cidades eom seu sangue e ainda
ficuldades não menos formidáveis, porque nenhuma antiga cidade foi,
mais com suas esperanças. Ainda hoje, segundo o geógrafo francês
até hoje, completamente desenterrada, e algumas das mais antigas, que
Max Sorre, quatro quintos da população do mundo vivem em aldeias,
poderiam revc1ar muita coisa, continuam ainda existindo como luga­
funcionalmente mais próximas de seu protótipo neolítico do que as al­
tamente organizadas metrópoles que começaram a sugar a aldeia para
res de morada, obstinadamente imunes à pá do escavador.
sua órbita e, ainda mais rapidamente, a solapar seu antigo modo de
Por isso, as lacunas existentes nas provas são atordoantes: cinco
mil anos de história urbana e talvez outro tanto de história proto-ur­
vida. Contudo, tão logo permitamos que a aldeia desapareça, esse an­
tigo fator de segurança também desaparecerá. É esse um perigo que a bana se acham espalhados por algumas dezenas de sítios apenas par­
espécie humana tem ainda de levar em conta e combater. cialmente explorados. Os grandes marcos urbanos, Ur, Nipur, Uruk,
Tebas, Heliópolis, Assur, Nínive, Babilônia, cobrem um período de três
mil anos, cuja enorme vacuidade não podemos esperar preencher com
um punhado de monumentos e umas poucas centenas de páginas de
documentos escritos. Em terreno tão impalpável, até o mais sólido ele­
mento da realidade pode revelar-se traiçoeiro, e, muito freqüentemen­
te, é necessário escolher entre não avançar de maneira alguma e ser
arrastado a uma cova sem fundo de especulação. Seja o leitor adverti­
do: se seguir adiante, será por sua própria conta e risco!
Além da grande imperfeição dos restos visíveis, as duas grandes
civilizações em que a cidade a princípio provavelmente tomou forma,
o Egito e a Mesopotãmia, apresentam contrastes desconcertantes, que
apenas se tomam mais agudos se incluirmos a Palestina, o Irã e o vale
do Indo. Embora todas essas diferenças revelem significantes alterna­
tivas na revolução urbana, tomam difícil dar qualquer coisa semelhan­
te a um quadro geral das origens da cidade.

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