Você está na página 1de 10

I:WO:>(l1l300

s ASCIENCIAS
s SOCIAIS
Relatório
da Comissão Gulbenkian
sobre a reestruturação
das Ciências Sociais

I'

li
,.7ia
ISBN-972-1-04099-1
BIBLlOT~cAjtc
. .....~

l
.

\f
;·~:~t
..
303A
'. ·;~~t
5 "601072"003040 PUBLICAÇÕES' EUROPA-AMÉRICA
100304961 ~. FUN'~
, - __ ~~ ..•.
,,,,-r-.-r,L __·
----

t:;:;

I
...

I':
1

I
I

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DAS CIÊNCIAS SOCIAIS,
DO SÉCULO XVIII ATÉ 1945

Pense-se na vida como um imenso problema,


uma equação ou, melhor ainda, uma família de
equações em parte dependentes mas também parcial-
mente independentes umas das outras ... subenten-
dendo-se que tais equações são bastante complexas
e cheias de surpresas e que muitas vezes somos inca-
pazes de lhes descobrir as «raizes».

FERNAND BRAUDEL'
,,
A ideia de que somos capazes de reflectir de uma maneira
inteligente sobre a natureza do ser humano, sobre as relações
que este mantém com os'seus semelhantes e com as forças es-
pirituais, e sobre as estruturas sociais que ele mesmo criou e
dentro das quais se move, é uma ideia pelo menos tão antiga

, Prefácio a Charles Morazé, Les bourgeois conquérants (Paris: Liv. Ar-


mand Colin, 1957).
-:

15
..
C:OlvIlSSIW (/(/l./lliNf,'/IIN
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS

qunnto n pl'(ípl'lll hl/'ll(~rln vonhccidc. Estas são questões já


ent:e ..2-'pass~c!~_~-ºJ:t-!tl!Xº,~Estava-lhe
subjacente UlTIaE~.r.s-;
v{\I'HndnH I'nnto pt\IOf texlOH religiosos que chegararn até nós,
' p~;gÇl~qllase ,t~.ol.~giç~_ª..exemplo de Deus, nós podemos
('01110 Ill\lml ll\xh)H [I quechamamos filosóficos. E há ainda a
chegar a certezas, e por esse motivo não precisamos de
Hnl")(\dol'lo ornl trunsmitlda ao longo dos tempos e tantas ve-
distinguir entre passado e futuro, UlTIavez que tudo coexiste
ln O rcgisto escrito. É evidente que muita desta sa-
nUlTIeterno presente. A.segunda premissa foi o d~~~§!110c~=
Iwd()I'i o ro i rcs LIlta do de UITlprocesso' de recolha indu tiva,
t:siat:t0' ou seja, o pressuposto de que existe UlTIadi?,!i}"!ç~º
11 nH111 aiti d iversas paragens e ao longo de UlTI grande período
fundamental en tre a na tllJ'~.~S seres l~':.':.~os, entre a ma-
lc tempo. feita a partir da plenitude da experiência vivencial
'. 'téria e ~!p.-~.!.1te,
entre o mundo físico e o mundo sociªl/ espi-
h urnana, não obstante os resultados serern apresentados sob
rituaL Quando, no ano ele] 663, redigiu os estatutos da Royal
" forma de revelação ou de UlTIadedução racional a partir de
Society, Thomas Hooke fixou C0l110 objectivo desta «aurnen-
algumas verdades eternas e intrínsecas.
tar o corihecirnen to
Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her-
úteis, Manufacturas, práticas IVICCflI1ICDS, IVIDQlunaS e mven-
deiro desta sabedoria. Mas trata-se de UlTIherdeiro distante
ções pela via da Experiment
e porventura frequentemente ingrato e nada reconhecido, já
que não entrem o Divino, a M
que as ciências sociais se defiriirarn a si próprias C01l10sendo
tica, a Retórica, ou a Lógíca-". UIHCH CStOLutOH truuuzto m
a busca de verdades para lá dessa sabedoria obtida por le-
já, assim, a divisão entre os rnod
gado ou dedução. As ciências sociais constituíram UlTI
Snow iria mais tarde designar por «as ciuns CLlIIUI'nfl»,
ertrpreerrdirnentodo rnurido moderno. As suas raízes lTIergu-
A ciência passaria a ser definida
lham na tentativa - UlTIatentativa plenamente arnaclurecida
versais da natureza que se manti v
já desde o século XVI, e que é parte integrante da construção
das barreiras de espaço e tempo. AI
do nosso mundo moderno - de desenvolver UlTIsaber siste-
tituindo a evolução das concepções
mático e secular acerca da realidade, que de algum modo
século xv ao século XVTlI, observou o'
possa ser empiricamente validado. A esse saber chamou-se
scientia, UlTIapalavra que significavasimplesmente conhe-
o universo infinito da nova COS1...,'"
irnento. É claro que, etimologicamente, filosofia também
duração e na extensão, no qual a r
ignifica conhecimento - ou/ mais exactamente, o gosto pelo
acordo COlTIleis eternas e necessárias, se I
nhecimento,
e sem objectivo no espaço eterno, havia her
hamada visão clássica da ciência, dominante desde há
-----
vários séculos, foi erigida sobre duas premissas. UlTIadelas
2 Apud Sir Henry Lyons, The Royal Society, 1660-1940 (NOVA IClrCJlI
fo io modelo newtoniano, segundo o qual existe UlTIasimetria
Greenwood Press, 1968), p_ 41.

/6
Díverscs - 2 17
COMISSÃO GULBENKIAN PARA ABRIR AS CiÊNCIAS SOCIAIS

os atributos ontológicos da divindade. Mas só estes: comerciais e o subsequente alargamento da divisão do tra-
quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os balho, factores que, por sua vez, iriam fazer encurtar decisi-
com Ele3. vamente as distâncias sociais e temporais.
Contudo, essa finitude da terra não constituiu fonte de
Os outros atributos do Deus agora ausente eram, é claro, dissuasão, pelo menos até tempos recentes. Enquanto a visão
os valores morais do mundo cristão, tais como o amor, a ideal de um progresso ilimitado se alimentava da infinidade
humildade e a caridade. Neste seu texto, Koyré não se pro- de tempo e espaço, a concretização prática do progresso nos
'.
nuncia sobre os valores que os vieram substituir, no entanto assuntos humanos por via do avanço tecnológico dependia
sabemos que, ao sair de cena, Deus não deixou atrás de da disponibilidade do mundo para se deixar conhecer e ex-
Si, propriamente, um vazio moral. Se os céus se alargaram plorar, de uma confiança na finitude deste quanto a certas di-
para além de todos os limites, a verdade é que as ambições mensões-chave (com destaque para a sua epistemologia e
humanas não lhes ficaram atrás. O progresso passou a ser a geografia). Com efeito, era crença geral que para atingir o
palavra de ordem - dotada agora deste recém-adquirido progresso se impunha que nos livrássemos completamente
sentido de infinitude, e reforçada pelas conquistas materiais de todas as inibições e de todas as restrições, enquanto des-
da tecnologia. cobridores apostados em desvelar os segredos mais recôndi-
O «mundo» dé que fala Koyré não é o globo terrestre, mas tos e em sugar os recursos de um mundo mesmo ao alcance
sim o cosmo. De facto, poder-se-ia afirmar que por essa da mão. Parece que, até ao século xx, a finitude da esfera ter-
mesma altura a percepção do espaço terrestre no mundo oci- restre serviu antes de tudo para facilitar as viagens explora-
dental sofria uma transformação de sentido inverso, ou seja, tórias e a própria exploração exigidas pelo progresso e para
no sentido da finitude. Para a maioria das pessoas, só com as dar exequibilidade às aspirações de dominação ocidentais.
viagens dos descobrimentos que cruzaram o globo é que a No século xx, à medida que as distâncias terrestres começa-
terra acabaria por fechar-se na sua forma esférica. É certo que vam a encurtar a pon to de se afigurarem constrangedoras, as
a circunferência desta esfera era muito maior que aquela que limitações da terra puderam ser evoca das como um incenti-
Colombo havia imaginado, mas ela era, apesar de tudo, fini- vo mais para as arremetidas exploratórias (agora também pe-
ta. Além disso, por efeito do uso e com o decorrer do tempo, los confins do espaço celeste) necessárias ao alargamento
essas mesmas viagens de descoberta viriam a fixar as rotas dessa esfera de dominação. Em suma, a morada do nQSSOvi-
ver presente e passado passou a assemelhar-se menos a um
lar e mais a uma rampa de lançamento, lugar a partir do qual
3 Alexandre Koyré, Do Universo Fechado ao Universo Infinito (tradução

de Jorge Pires; Lisboa: Gradiva, s/d), p. 269. nós, enquanto homens (e umas tantas mulheres) de ciência,

/8 i9
'(/MISSi\() lill/,/II'NiI/,'IN PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAl

ionando-nos como
I vamente) às~iências da natureza". Este facto assinalou o cul-
cósmica. i
. I
minar da tentativa das ciências naturais para chamar a si uma
-chave sejam progresso e ~ legitimidade sócio-intelectual que era de todo distinta - e na
não fica completo
, unidade, simplicidade,
sem recorrer
domínio,
a
e
I! verdade
mento chamada
até contrária -
filosofia.
de uma outra forma de conheci-

universo». As ciências da natureza, tais


I A ciência, ou seja, a ciência da natureza,
definição mais clara do que o seu contraponto,
foi objectode
para o qual o
uma
rarn construídas
provieram. primordialmente
no decurso
doestudo
dos séculos
da mecânica
XVII e XVIII/

celeste. I mundo -~ã;-~heg;·~~~~~~~~:~q~er"ã!i.~º-i:ª~t n:~l~.~.().~~ úni~().

Inicialmente,
dade e prioridade
aqueles que tentaram
da demanda
estabelecer a legitimi-
científica das leis da natureza
I Umas vezes
humanidades,
designada por artes, outras vezes
outras ainda letras ou belles-leures, e ainda de
chamada

outras vezes apelidada filosofia, simplesmente «cultura» ou,


quase não fizeram destrinça
mesmo modo que distinguiam
entre a ciência e a filosofia. Do
os dois domínios, assim os I como sucede em Alemão, Geisteswissenschaften,
à «ciência» foi assumindo uma face e uma ênfase variáveis,
a alternativa

consideravam
medida que o trabalho
aliados na busca da verdade
experimental
secular. 'Mas à
e empírico se tornava
l uma falta de coesão interna que não foi de molde a ajudar os
respectivos praticantes a defender a sua causa junto das auto-
cada vez mais crucial para a visão da ciência, a filosofia sur-
ridades, principalmente. se se considerar a sua aparente in-
gia cada vez mais aos olhos da gente das ciências naturais
capacidade de oferecer resultados «práticos». Com efeito,
como mera substituta da teologia, igualmente culpada de
começara a tornar-se evidente que a luta epistemológica por
asserções de verdade apriorísticas não passíveis de serem
aquilo que se considerava ser o conhecimento legítimo já não
postas à prova. Nos p~incípios do século XIX•...a divisão do
era uma luta para saber quem havia de controlar o conheci-
conhecímentnemdcíadcmíníos havia descartado a noção de
mento relativo à natureza (já que os cientistas naturais haviam
que se trataria de duas esferas «separadas mas iguais», para
claramente adquirido direitos exclusivos sobre este domínio
assumir - pelo menos na perspectiva dos cientistas natu-
por volta do século XVIII), mas antes uma luta em torno de
rais - o aspecto de uma hierarquia: o conhecimento tido
OlUO C~!tgjs!:~!lç.§),por oposição ao conhecimentoimagi-
~ e mesmo imaginário (a não c~~.nci.~).Finalmente, seria 4 Este fenómeno transparece claramente tanto em Inglês como nas lín-

também por volta do início do século ~ que o triunfo da guas românicas. É menos claro em Alemão, onde a palavra Wissensclltljl'
se iria firmar do ponto de vista linguístico. O termo continua a ser utilizada como termo genérico para o conhecimento sistcmá-
tico e onde as ch~madas «humanidades» são designadas por Geistesune-
provido de adjectivo qualificativo passou, então,
senschaften, o que à letra significa conhecimen to das co.isasdo espírito ou d n
r associado primordialmente (e muitas vezes exclusi- mente.

20 21
COMISSÃO GULBENKIAN PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS

quem havia de controlar o conhecimento relativo ao mundo unificada, mas que noutras conheceria um processo de sub-
humano. divisão) que os praticantes tanto das artes como das ciências
A necessidade, sentida pelo Esta~?~~ de ]2.Q.ssuir naturais iriam penetrar para aí edificarem as suas múltiplas
u~ C~~~C!_I!l:~!:!~gJ!1_ªis
elCa.S::!Q
~o]:>r€.9gua]J:>.~d~_~?e basea~ as estruturas disciplinares autónomas.
suas
----'
decisões havia conduzido
gorias de conhecimen~o já no século
ao surgimento de novas
---=_'.~p~ .. ~_._--.,---.
__._--
XVIII;
cate-
no entanto, tais ca-
A história intelectual do século XIX é marcada,
_
_-_ .._- -.-._, . -- .. _- _ ..•.._-
"'-'--'-~----
tudo, por este processo de disciplinarização
,-,
antes de
e l2.E0fi§sioilali-
---=_.~-----,-.._ .. __..- _.~-,-- &._-
tegorias afiguravam-se ainda incertas nas suas definições e zação do conhecimento, que o mesmo é dizer, pela criação de
frorrteiras. Os filósofos estrü.tur;;s·'i~stitü.cfà-n-';;-ispermanentes destinadas; simulta-
_.-- soc_!ai~~omeçaram,
'
"-'-".'-'.- ~----_.-- então, é!_Lalarde "
uma «fí~!<:~~<?~C?~ial}), e os pensadores europeus começaram neamente, a produzir um. novo conhecimento e a reproduzir
a reconhecer a existê~5~a, no mundo, de ~~tiplas espécies os produtores desse conhecimento. A criação de disciplinas
de s~~!~m~~.2çiªis (<<comoé que se pode ser persa?»), cuja múltiplas teve por premissa a crença segundo a qual a inves-
variedade se impunha explicar. Foi neste contexto que a~i- tigação sistemática exigia uma concentração especializada
vers.igade (que em larga medida se revelara uma instituição nos múltiplos e distintos domínios da realidade, um estudo
moribunda desde o século XVI, por força da sua anterior liga- racionalmente retalhado em cachos de conhecimento perfei-
ção estreita à Igreja) foi revitalizada nos finais do século XVIII tamente distintos entre si. Essa divisão racional prometia ser
e princípios do século xrx.rtornando-se o lugar institucio_ll_':!. eficaz, ou seja, intelectualmente produtiva. As ç~.~~.c;i._<.ts
na-

-A universidade
preferencial E.ara a criação de conhecimento.
-----_ _--------_.~-- ..
conheceu, assim, um processo de revitali-
turaisnão tinham ficado à espera da revitalização da uni-
versidade para gerarem uma vida institucional autónoma. A
zação e transformação. As faculdades de Teologia perderam razão por que puderam actuar mais cedo foi po~q1,1~
-- ... -.----_._ ..__.---_._~-~-----_._- - conse-
importância - por vezes desaparecendo completamente, de guiram angariar apoig_~<?<;:i.9_L~.I?()lí.tiço a troco da promessa
outras vezes dando lugar a simples departamentos de es- de produzirem resultados práticos traduzidos numa utili-
tudos religiosos no interior das faculdades de Filosofia. As dade imediata. O crescimento das academias reais durante
faculdades de Medicina mantiveram a sua função de centros os séculos XVII e XVIII e a criação, por Napoleão Bonaparte, das
de formação prática numa área profissional específica, de- grandes écoles reflectem a disposição de promover as ciências
finida agora inteiramente como conhecimento científico naturais por parte dos governantes. Os cientistas naturais
,.1
aplicado. Seria, antes de mais, no interior das faculdades de não precisavam sequer, porventura, das universidades para
Filosofi~ (e, em grau consideravelmente ~o~, nas faculda- levarem a cabo o seu trabalho.
des de I?~r~i!9)_CIueiriam ser erigidas as modernas estruturas E foram, de facto, outros estudiosos que não os das ciên-
do conhecimento. Seria, enfim, na faculdade de Filosofia cias naturais - os historiadores, os classicistas, os estudiosos
(que em muitas universidades se manteve estruturalmente das literaturas nacionais - quem mais fez para revitalizar a

~J ..'
23
,

'1M IISSiII I tlllll/iJNlliAN PARA ABRIR AS CIt.NCIAS SOCIIII

1llllvlII'Hltlndll 11111'111111
(\ nl"l'ldo
1 XIX, LIS<1I'ldo-acomo 1.111.'1 me- dente que, nesse esforço de organizar uma nova ordem social
lli1~1111i1 nlillllll;tlO dI: npolo estatal aoseu
11111'1111 trabalho de sobre uma base estável, quanto mais exacta (ou «positiva»)
I1Vlliillp,i\(;r!o, IOl~H n ITnIrn m os cientistas naturais para o inte- fosse a ciência, melhor. Com esta ideia em vista,muitos
1'1111' estruturas
dll/1 11()I,(\t1~I'IlI'<':R universitárias, beneficiando daqueles que - sobretudo na Crã-Bretanha e na França -
-----_ .._----_._------------
II-Ifllllldu pC\I'fll positivo que os caracterizava. O resultado, começaram a lançar as bases das modeJ;".!:!:ª$.çignc.Íi:ls$ociais
----_-. .. _---_._-----_ .. .. -_._-- --.- .._.-,
,

(oi que a partir de então as universidades


1101'1'111, passaram na primeira metade do século XIX volrararn-se para a física
.spaço privilegiado da permanente tensão entre as newtoniana, tomando-a como modelo a seguir.
11'1<.'1-\ (h Llll1ani~~.d-~.~t~.-ª§._çiên..s::ias,
dois modos de conheci-
s>uh·.~,·~~i~·pr~~--'=up~ªgie~~rep<?f~Uitfé!él?~-~~~~~I_dos_
1,1('11
to agora definidos como sendo bast~~.dif.~fgnte..s ou até Estacios. que tinham conhecido a n:!:e.b:~~ ou que por ela se
d ntagónicos. viam ameaçados, vo!t~~~:-.s~_ E.(i~<3._ a_<:..riaç~g_.~
..as n~r:.:~.!i~as
Em muitos países - com especial saliência para a Crã-
históricas naciona!~.=- narrativas agora mais centradas nos
=Bretanha e a França - assistiu -se a uma certa clarificação de <--------~--'--- -" ~_.-.'-- .-.---
«povos» do que nos.príncipes - como forma de escorar as
toda esta discussão, forçada pelo surto cultural desenca-
novasou potenciais soberanias. A reformulação da «histó-
dea9:~~!~ R_~v~uçã.? Fr~~ce~a. As pressões no sentido da
ria» em termos de geschichte - isto é, de um acontecer real e
efectivação de transformações político-sociais haviam assu-
efectivo - fez com que ela conquistasse credenciais inata-
mido uma premência e uma legitimidade que dificilmente
cáveis. A história deixaria de ser uma hagiografia de justifi-
podiam continuar a ser contidas através da mera procla-
cação de ~~n~as para se tornar um v~dad_eir~rela..!Q.<!o
mação de teorias respeitantes a uma ordem supostamente
passado,
.--_._ .. __ _ capaz
~.-" -.-- _--
de_---_explicar
..-
o ..--._
_.'.- ..~
preser:.!~~_c:!~_2f~!~s_er
.. -. _.
_~. basf.ê.
natural da vida social. Em vez disso, muitos foram os que de- - -,,"-.. ".

para uma escolha avisada n0ut!1rQ. Este tipo de história (ba-


fenderam que a solução estaria antes em organizar e raciona-
seada na investigação empírica de arquivos) associou-se às
lizar a mudança social que surgia agora como inevitável num
ciências sociais e naturais na rejeição da «especulação» e da
mundo em que a soberania do «povo» passava cada vez mais
«dedução» (práticas acusadas de serem mera «filosofia»).
a constituira norma, sem dúvida na tentativa
essa via, a extensão do fertórneno. Mas se o que havia a fazer
ra organizar e racionalizar a mudança
de limitar, por

social, a verdade é
I Mas precisamente
com as histórias
porque
dos povos na sua grande
se preocupava profundamente
diversidade ernpí- .

.1e primeiramente se impunha estudá-Ia e entender as re- rica, é que este tipo de história encarava com suspeição e at
ras que lhe subjaziam. Verificava-se, assim, não apenas hostilidade as tentativas dos expoentes da nova «ciência so-
xistir um espaço para aquilo a que viríamos a chamar ciên-
f
; cial- no sentido de generalizar, ou seja, de estabelecer lei
is, mas também uma profunda necessidade social universais para a sociedade.
seu surgimento. Além disso, parecia ainda evi- No decurso do século XIX, as várias disciplinas como eu

21/ 2.5

••
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS'
COMISSÃO GULBENKIAN

se abriram em leque cobrindo toda uma gama de posições as questões colocadas pareciam bem reais: será que o mundo
epistemológicas. Num dos extremos situava-se a matemática é regido por leis deterministas? ou será que há lugar;ouca-
(uma actividade de natureza não empírica), e lo~o encostadas bimento, para a inventiva e para a imaginação (humanas)?
a ela as ciências naturais experimentais (perfiladas, por sua Além disso, as questões intelectuais fizeram-se acompanhar
vez, numa espécie de ordem decrescente segundo o respec- das suas alegadas implicações políticas. Do ponto de vista
tivo grau de determinismo - a física, a química, a biologia). político, o conceito de ,leis deterministas afigurava-se mais
No extremo oposto achavam-se as humanidades (ou artes e . útil às. tentativas de controlo tecnocrático dos movimentos
letras), começando pela filosofia (contraponto da matemá- '.
- potencialmente anarquizantes - apostados na mudança.
tica enquanto actividade não empírica), seguida do estudo E ainda do ponto de vista político, a defesa do particular, do
das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a não determinado e do imaginativo afigurava-se particu-
escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se larmente útil não só para os que se opunham às mudanças
aproximavam muitas vezes da própria história, ao prefigura- tecnocráticas em nome da conservas;ão das instituições e das
rem-se como uma história das artes. Por fim, entre as huma- tradições vigentes, mas também para aqueles que se batiam
nidades e as ciências naturais ficava o estudo das realidades
_,_._. .. ~.••._~~---_.-_._._, ••.•_.-----~.-_ .•.•-_ •._--_._ .••• " _"o" -' - .•.•----'---'---~ - por possibilidades mais espontâneas e mais radicais de inter-
soçj.~is,c::<:)J:Il
..~J:ti.?!_~~~aiidiggráfica)a situar-se junto das facul- ferência da acção humana no terreno sociopolítico. Tratou-se
dades de artes e letras ou mesmo no seu interior ,e comas
de um debate contínuo mas desequilibrado, que teve como
«ciên<::iA~_~ç~-ªi.§.~(!!ºmºté.!iç_as)
na pr.ºxiIIlÍ:ci~~~.9-asciências
resultado, no mundo do conhecimento, a circunstância de
dª:rtª.t.ucr:e~-ª
..Postos perante uma separação cada vez mais rí-
em toda a parte a ciência (física) passar a ser colocada num
gida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas
pedestal e de em muitos países a filosofia ser relegada para
com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das
um canto ainda mais esconso do sistema universitário. Neste
realidades sociais viram-se como que entalados e profunda-
cenário, uma das reacções assumidas pelos filósofos consis-
mente divididos por estas questões epistemológicas.
tiu em redefinir as respectivas actividades de maneira mais
Tudo isto, porém, se desenrolava num contexto em que a
consentânea com o eihos científico (veja-se a filosofia analítica
ciência (newtoniana) havia triunfado sobre a filosofia
dos positivistas de Viena).
(especulativa). afirmando-se como a incarnação mesma do
prestígio social no mundo do conhecimento. Augusto ÇOlIl:-:- A ciência foi proclamada como sendo a descoberta da
realidade objectiva através do recurso a um método que nos
-
te tinha-se referido ao corte entre ciência e filosofia em termos
._--~---~'"-"-----------_._--~
permitia sair para fora da mente, ao passo que aos filósofos se
de um divórcio, não obstante ele representar de facto, antes
de mais, uma rejeição da metafísica aristotélica e não tanto de não reconhecia mais do que a faculdade de cogitar e de escre-
preocupações filosóficas propriamente ditas. Mesmo assim, ver sobre as suas cogitações. Esta visão da ciência e da filoso-

27
26

(
! '1IAI/SS,1fI 1/11/ lI/NA I,IN PARA ABRIR AS Clt.NC/IIS /II/S

11/1 1'!1I11i11'llItltlll til' 111[111\111'11


1IIlIIlo 1'101'0 na primeira metade todos os aspectos, ao estudo~!l'.!~mático do que é, renun-
1/11111'11'1110 \1\ 1'111' ('tlllIl(' I' Mlllulturn crn que ambos os pen- ciando e descoberta da causa primeira e do destino finalx".
IIII! 111/'1 'li l'I'\I('lll'r!I'1I 1)1 ('/1Loh<.:l<.:ccl" as regras que iriam presidir [ohn Stuart Mill, que no conte~t()J~g!.~ correspondeu, de
11 1\llIlIrlll'H do mundo social. Ao fazer renascer a expressão alguma forma, ãCômte e que com ele se correspondeu, não
Illlkll H()çI(lI», Corntc tornou claras as preocupações políticas falou de uma ciência positiva mas sim de uma ciência exad'i:
Itll' () moviam. Era seu desejo salvar o Ocidente da «corrup- Contudo, o modelo da mecânica celeste manteve-se o mesmo:
----------
rica» que havia sido «elevada ao estatuto de ferra-
mcn ta indispensável da governação.» por força da «anarquia «[A ciência da natureza humana] fica muito aquém
intelectual» instalada desde a Revolução Francesa. Na sua dos padrões de exactidão que actualmente vigoram na
opinião, o partido da ordem assentava em doutrinas desac- Astronomia; mas não há razão para que ela não seja
tualizadas (de índole católica e feudal), enquanto o partido uma ciência corno hoje o é o estudo das Marés ou como

do movimento assentava em teses - absolutamente negati- à era a Astronomia quando os seus cálculos davam

vas e destrutivas - bebidas no Protestantismo. Para Comte, conta dos fenómenos principais mas não ainda das per-
turbações»>.
a físicasocialjria.permitir _ªJ~conciliação da.ordem.c .do .
progr~so
---=-- ao entregar a solução
----~----_ dos ..--~_._-_
problemas sociais
_-- a um
...__ ._~....
Embora os fundamentos das divisões existentes no inte-
«número reduzido de inteligências de elite» dotadas do nível
rior das ciências sociais mostrassem uma clara tendência
de instrução adequado. Deste modo, pôr-se-ia fim à Revo-
para cristalizarem já durante a primeira metade do século XIX,
lução a partir do momento em que fosse instalado um novo
a verdade é que só no período de 1850 a 1914 é que a diver-
poder espiritual. A base tecnocrática e a função social da
sidade intelectual reflectida nas estruturas disciplinares das
nova física social tornavam-se, assim, evidentes.
ciências sociais teve um reconhecimento formal por parte das
De acordo com esta nova estrutura do conhecimento, os
principais universidades, sob as formas por que hoje as
filósofos tornar-se-iam - para usar uma expressão bem
conhecemos. É certo que já entre 1500 e 1850 existira biblio-
conhecida - «especialistas em generalidades». O que isso
grafia respeitante a muitas das questões centrais tratadas
significava era que eles iriam aplicar ao mundo social a lógica
mecânica celeste (aperfeiçoada pela versão laplaciana do
5 Augusto Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo (tradução, intro-
rotótipo de Newton). A ciênci~p_<?~iti~a visava a libertação dução, tábua cronológica e sincrónica, e notas de [oel Serrão; Lisboa: Seara
total relativamente à teologia e à metafísica, bem como a Nova, 1947), p. 57.
6 [ohn Stuart Mill, A System ofLogic Raiiocinative and Induciiue, Vol. VTlf
todos os demais modos de «e;pli~ação»-da realidade. «As
das Collected Works of J0I171 Stuart Mill (Toronto: Univ. of Toronto Pr A
.,

nossas investigações positivas [00'] devem limitar-se, sob


1974), Livro VI; cap." III, par. 2, p. 846.

28 29
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
COMISSÃO GULBENKIAN

naquilo a que hoje chamamos ciências sociais: o funciona- claro se as ciências SOCIaIS poderiam de algum modo ser
mento das instituições políticas, as políticas macroeconómicas pensadas como fazendo parte de uma «terceira cultura», si-
dos Estados, as regras que presidem às relações interestatais, tuada - na formulação posterior de Wolf Lepenies - «entre
a descrição dos sistemas sociais não europeus. Ainda hoje a ciência e a literatura». Em verdade, nenhuma destas questões
lemos Maquiavel e Bodin, Petty e Grócio, os Fisiocratas foi alguma vez resolvida em definitivo. O mais que podemos
franceses e o Ilurninismo escocês, assim como os autores da fazer será dar nota das decisões efectivamente tomadas ou
primeira metade do século XIX, desde Malthus a Guizot, das posições maioritárias que se revelaram tendencialmente
'0 prevalecentes.
passando por Ricardo, Tocqueville, Herder e Fichte. Temos
inclusivamente, no período em questão, algumas das pri- O primeiro aspecto a registar é onde é que esta instit.!:l_<;'ÍQ-:.o
meiras discussões sobre o tema do desvio social, como por Il~~i~~çãotevelugar. No decurso do século XIX a actividade
exemplo na obra de Beccaria. Mas a realidade é que tudo isto das ciências sociais deu-se em cinco espaços principais: a
não constituía exactamente ainda aquilo que hoje em dia Grã-Bretanha, a França, as Alemanhas, as Itálias e os Estados
entendemos por ciências sociais, da mesma maneira que ne- Uni~i~~.·oÃo~~io!:ia~~oõs·~~!.t:~ioso~~odª-~_l,mi;~!~~da_de;(em-
nhum dos pensadores aqui mencionados se via ainda a si bõrao~ãotodos, obviamente) en~on.!rayª_~.S~.num de~es cinco
próprio a funcionar no quadro daquilo que mais tarde viria espaços. Quanto às universidades dos restantes países, falta-
a ser considerado como .as diversas disciplinas do saber ~ va-lhes o peso ou o prestígio internacional das destes cinco.
A criação das múltiplas disciplinas das ciências sociais E até hoje a verdade é que a maior parte das obras oitocen-
inseriu-se no esforço global empreendido pelo século XIX no tistas que ainda lemos foram ali escritas.
sentido de garantir e de faze!:aV-ª~~ª};-o1J.m.s:onhecjmen.t~ob- O segundo aspecto a registar é o vasto e diversíssimo con-
jeçJi.Yº~.~:LQ.bxe.ooª._~<.r:~ªl!.~tª-c:l_~r:~obas~o
d~o.~chad()~l!l12íricos junto de nomes de «assuntos» e de «disciplinas» avançados
(entendidos por oposição ao trabalho de «especulação»). O no decurso do século passado. Todavia, por altura da
intuito era «aprender» a verdade, em vez de a inventar ou I Guerra Mundial verificava-se uma convergência ou con-
intuir. O processo de institucionalização deste tipo de activi- senso geral em torno de um punhado de nomes específicos,
dade do conhecimento não foi nada simples nem linear. ao mesmo tempo que os demais candidatos eram mais ou
Antes de mais, começava por não ser claro se uma tal activi- menos preteridos. Como adiante veremos, os nqg!es.elILc.au-
dade deveria ser singular ou, antes, dividida em disciplinas ~~_~!am,fundamentalmente, cinco: a história, a economia, a
várias, como mais tarde viria a acontecer. Como claro não era s09g!<?g~~L.~_r:.~êonc~~_
-
polític~
---~--- - ---
~~~.!!_<:P_<?!2Zi.a..:
Poderíamos
também, inicialmente, qual a melhor via para esse conhe- acrescentar à lista, como de resto veremos também, as chama-
cimento - ou seja, que tipo de epistemologia seria mais fru- das ciência~~i.en~~s (também designadas por orieritalisrno),
tuoso ou até legítimo empregar. E, sobretudo, não era nada não obstante o facto de estas se não verem a si próprias como

31
10

Você também pode gostar