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Colegio

ANTROPOLOGIA SOCIAL GILBERTO VELHO


diregao: Gilberto Velho

Movimento Punk na Cidade Autoridade & Afeto


Janice Caiafa Myriam Lins de Barros

O Bspirito Militar Ilhas de Histéria


Celso Castro Marshall Sahlins

Velhos Militantes
Angela Castro Gomes,
Dora Flaksman, Eduardo Stotz
Desvio e Divergéncia
Individualismo e Cullura
Subjetividade e Sociedade
PROJETG
Da Vida Nervosa
A Utopia Urbana
Projeto e Metamorfose E METAMORFOSE
Luiz Femando D. Duarte Gilberto Velho
Antropolog1a das
Garotas de Programa O Mundo Funk Carioca
Maria Dulce Gaspar Hermano Vianna sociedades complexas
Cullura: O Mundo da Astrologia
um conceito antropolégico Luis Rodolfo Vilhena
Roque de Barros Laraia
Araweté: os deuses canibais
Carisma Eduardo Viveiros de Castro
Charles Lindhohn

Iorge Zahar Editor


R10 de Ianelro
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SUMARIO

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lndividuo e religiao na cultura brasilelra . . . . . . . . . . 49
lrnpi1.-,~.~»(m; 'l.1\'.m-> 0 Tristio l.td.\.
IV. Cultura popular e sociedade cle massas . . . . . . . . . . . 63
ISBN: 85-Tl ll!-Z*)l)-Ill.’/,lI, R1)
V. A vitoria de Collor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
VI. Sobre homens marginais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
(‘I|‘—lirasil. ('11hilogngfin-11a-fonts _ _ ’ _
?§imln'atu Xzrcionnl dos Hiilun!.\' do Livrus, R]. VH- Dlmensao CUltU1'a] 9 Plllltlca
do mundo das dl'OgdS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
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V5-Hp l’n>ji-In 0 nnztaniurfnset antropologia das so- Vlll. Literatura (3 d€S\'iO: Proust Q l\lE‘lSOl’l ROdI‘lgLl€S . . _ . 90
x ivihidvs (UlHPl\’\k\S /i Gilberto Vclhn. —- Rio do ’ _ _ _ _
_|‘,m.i,.\,; ‘;L.,-,4-Z‘,1\,1r is-117 1994, IX. Memorin, idonhdade 0 pro]cto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

I.iil~I|u3;i-a[i.i. X. O grupo 0 sous limites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106


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Y 1’ XI. Destmo u violcncia . . C . . . . . . . . . . , . . . . . . . . . . . . . . l14
I. ldentidadu social» 2. Mudanga social. 3. ’ K _ _ _ ' __
ldcntiilndu (l’s1cologi.\). 4. lkietologia social. |. * Rcfercnclas blbllografum . - - - - - - . - 4 - < - ~ . - - . - . . . - . 132
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1-

96 projeto e metamorfose

volo e decadente. De outro lado, temos um autor contempora- IX .


neo, brasileiro, acusado varias vezes de reacionario e vulgar. E
verdade que tem sido redescoberto e recuperado. Talvez seja
1 l
um tour de force tentar junta-los. Admito que outros autores
poderiam ser considerados, como Faulkner, por exemplo. Mas
MEMORIA, IDENTIDADE E PROIETO1
o contraste aparente entre Proust e Nélson Rodrigues é tao
grande que é dificil escapar a tentagao (!) de aproxima-los
dentro de uma Teoria da Cultura e da Sociedade verdadeira—
mente radical. Ou seja, que ponha em xeque, relativize e estra-
nhe as proprias regras basicas de sua constituigao.
O homossexualismo e 0 incesto sao apresentados como possi-
E vasta a literatura em antropologia sobre identidade em seus
bilidades e, mais do que isso, como altemativas ou até “inclina-
mais diferentes aspectos. As dimensoes étnica, de género, eta-
cao” que podem ter a ver com a natureza. Ambos os autores
ria estao entre aquelas que se somam as problematicas tradi-
apresentam a tensao e o prego que se paga pela hurnanizagao
cionais de classe e estratificagao social.
através da cultura, das normas e das regras, estabelecendo 0
Na realidade, é a preocupacao cientifica e politica com a dzfe—
controle social e, portanto, o desvio. Este nao é visto isolado nem
renga que, em parte, explica a riqueza e 0 desenvolvimento dessa
sob uma forma moralizante, a favor ou contra. E constatado quase
area de reflexao nas ultimas décadas.
como inevitavel n-a constituigao da vida social. A forca do destino
A complexidade e a heterogeneidade da sociedade moderno-
e dos deuses da tragédia grega aparece como o poder de coergao
contemporanea tem como uma de suas caracteristicas principals,
do social sobreios individuos. O desvio, assim, esta sempre proxi-
justamente, a existéncia e a percepcao de diferentes visoes de
mo a loucura. O enlouquecimento é possibilidade permanente
mundo e estilos de vida. Uma das questoes mais interessantes e
tanto para os personagens de Proust como de Nélson Rodrigues.
polémicas é verificar até que ponto a participagao em um est1lo
Proust chega a se perguntar se na realidade Charlus e Albertine
de vida e em uma visao de mundo, com algum grau de especifi-
nao seriam loucos. Em Nélson Rodrigues a insanidade e o delirio
cidade, implica uma adesfio que seja significativa para a’demarca-
estao colados as acoes dos individuos que transgridem as regras.
gao de fronteiras e elaboracao de identidades sociais. E evidente
O desvio, levado as ultimas conseqiiéncias, nao afasta propriamen—
que existe uma basica cliferenqa entre uma identidade, socialmen-
te o individuo da sociedade, mas vai conduzi-lo a um mergulho,
te ja dada, seja étnica, familiar etc. e uma adquirida em funcao
a uma viagem que muda os sinais, as direcoes e o mapa. O
de uma trajetoria com opcoes e escolhas mais ou menos drama-
conhecimento assim obtido é, de certa forma, incomunicavel. Essa
ticas. A multiplicidade de referéncias, seja em termos de grupos
solidao de incomunicabilidade, a tentativa infrutifera de explicar-
ou de atitucles, as vezes aparentemente contraditorias, leva a
se pode ser sinonimo da loucura, algo que, em ultirna analise, é
problematica da fragmentagao, para alguns autores, um dos in-
uma experiéncia essenciahnente culturalj ;
dicios da modernidadc. Se, por um lado, as ideologias individua-
listas marcam o advento do individuo-sujeito, por outro lado
expressam a fragmentagao de dominios que sucede a uma ordem

1. Publicado originalmente em Revista Tempo Brasileiro, 11- 95, Out-/del-I


l988, P. 119-Z6.

97
ii

98 projeto e metamorfose meimiriu, identidade e projetv 99

tradicional hipoteticamente mais integrada. Na realidade, sao as _ , - » ' ' ciedade a arecendo
nao e exclusivo, e bastante t1p1co diesta so de idéolggias indi-
. » - O
duas faces da mesma moeda? As possiveis unidades englobantes, fortemente sol1dar1o com o desenvo v1meI1
”encompassadoras" — nagao, linhagem, familia, partido, igreja vidualistas?
— variam no seu maior ou menor vinculo com os dois modelos
polares —— o da tradigao e o da modernidade. De qualquer forma,
a medida que o individuo se destaca e é cada vez mais sujeito,
>l<
muda o carater de sua relagao com as instituicoes preexistentes, E a partir deste quadro inicial que passo a estabelecer relagoss
que nao desaparecem necessariamente mas mudam de carater,
entre meméria e projeto e sua importancia para a constituigao e
embora de forma conflituosa, como a historia da Igreja demonstra identidade(s). . . . .
de maneira clara. Novas formas de sociabilidade vao se desenvol- Em uma sociedade tradicional, holista, em queo mdivlldugti
ver, acompanhando os paradigmas emergentes. Mas nao se esta- englobado pelo cla, linhagem, tnbo etc., a memoria socia me
belece uma dominancia absoluta — holismo, tradigao permane- relevante é a da unidade ”encornpassadora . Thomas _Maf\I'1,‘ I10
cem presentes em amplas areas da vida social e do sistema de
seu Iosé no Egito, percebe isso com muita Per5Pi§éC1a ‘:10 lézntlgfizg
representagoes. Assirn é que a famflia conjugal rnoderna nao se personagens bfblicos que podem ser um C01’l.]llTlf0.d€dlTl zvrznum
toma exclusiva, convivendo com maior ou menor nitidez, com a biolégicos, de diferentes geracoes, com uma 1dent1 a e co
familia extensa e o universo de parentesco tradicional.
dada pelo nome e pela linhagem. I _ lh
Essa coexisténcia, mais ou menos tensa, entre diferentes confi- Varios antropologos defrontaram-se com S1~f11a§°¢’f5 5em_e dfan;
guragoes de valores é uma das marcas de vida na sociedade
modema. Existem varias maneiras de lidar com essa ambigiiida-
de. A adesao vigorosa e militante a uma ordem de valores, reli-
-In O“
ii:i)d:iE?:l%:1€1(inIaa§afegziialzczigal Zllziziadgente, a ponto de nao ficar
giosa ou nao, é uma altemativa possivel, dentro de uma trajetoria
claro se um fato narrado ocorreu com o individuo biologlcoc Ag;-)1
de vida, podendo ser provisoria ou definitiva. A circulagao entre B, pertencentes a mesma linl'\ag€_1':1, Cfltegona etc‘ Qbv£am_eT e 1_tal
varios estilos de vida e uma participagao limitada ou, mesmo, um nag significa que nao haja consciencia ou percepqao o CIC o V1. _
certo grau de sincretismo pode ser outro caminho, bastante co- dos individuos A e B que nascem, vivem e morrem. lvlas a persis
mum. A atitude blasé, analisada por Simmel em contexto metro-
téncia da unidade englobante é permanentemente fixada atrcelives
politano, com uma certa indiferenca e distanciamento em relagao de mitos, narrativas que reforcam 0 pertenclrnento dos 11’\dlVl uos
a multiplicidade de estirnulos e situacoes é outra possibilidade.
biologicos aquelas unidades. Assim a memorza socralmerzte szgmf1—
O ceticismo radical, em parte expresso no Homem sem qualidades cativa é a da unidade englobante, havendopouca enfase ou reco-
de Musil onde nada tem significado relevante é também uma nhecimento da nogao de biografia no S€l\|t1Cl.O rnoderno. Ousegi,
resposta possivel as descontinuidades e fragmentacao da socie-
dade moderna. Enfim, existe um campo de possibilidades que, se
do at i§’°‘?.»‘iZi;Z i ?§‘§f§$?§dil
em qualquer sociedade ha processo de mdwzduagao, atravesnhe

de éessdpapels sofriifitolzliiciiaig olnvdeuiloregcem ideulogias indivi-


2. Ver Dumont, Louis. Homo hierarchicus: essai sur Ie systéme des castes. Paris,
Gallimard, 1966; id., Homo aequalis: genése et épanouissement de l’idéologie Zlfzlistgs i:Llguflj(e£l%I‘l 0 individuo socialmente signifiCHtiV0, Como
économique. Gallimard, Paris, 1977; e Simmel, Georg. On Individuality and valor basico da cultura.
Social Forms. Donald Levine (org.), Chicago, University of Chicago Press,
1971 ; 1d., The Sociology of Georg Simmel. Kurt H. Wolff (org.), Nova York, The
Free Press, 1964b. ."1 . S‘imme l .op. cit -; eMusil ' Robert - L’Homme sans q1la!ités.Paris, Seuil, 1956.

l
meméria, identidade e projeto 101
100 projeto e metamorfose
mo revalorizagao de universos de parentesco, de vizinhanga,
demonstram a presenga de um holismo, obviamente diferente
do hindu ou daquele do ocidente medieval, matizando ou con-
Nas sociedades onde predominam as ideologias individualis- trabalancando a predominancia das ideologias individualistas.
tas, a nogao de biografia, por conseguinte, é fundamental. A Alfred Schutz desenvolveu a nogao de projeto como ”conduta
trajetori-a do individuo passa a ter um significado crucial como organizada para atingir finalidades especificas".“ Embora o ator,
elemento nao mais contido mas constituidor da sociedade. E a em principio, nao seja necessariamente um individuo, podendo
progressiva ascensao do individuo psicologico, que passa a ser ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que
a medida de todas as coisas. Nesse sentido a memoria desse toda a nocao de projeto esta indissoluvelmente imbricada a idéia
individuo é que se toma socialmente mais relevante. Suas ex- de individuo-sujeito. Ou invertendo a colocacao — é individuo-
periéncias pessoais, seus amores, desejos, sofrimentos, decep- sujeito aquele que faz projetos. A consciéncia e valorizagao de uma
g6es, frustragoes, traumas, triunfos etc. sao os marcos que in- individualidade singular, baseada em uma memoria que da con-
dicam o sentido de sua singularidade enquanto individuo, que sisténcia a biografia, é 0 que possibilita a formulagao e condugao
e constantemente enfatizada. Carreira, biografia e trajetéria de projetos. Portanto, se a meméria permite uma visao retrospectiva
constltuem nocoes que fazem sentido a partir da eleigao lenta mais ou menos organizada de uma trajetoria e biografia, o projeto
e progressiva que transforma o individuo biologico em valor é a antecipagao no futuro dessas trajetoria e biografia, na medida
basico da sociedade ocidental moderna. A psicologizagao da em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a
sociedade é etapa decisiva nesse processo. O psiquismo indi- organizacao dos meios através dos quais esses poderao ser atin-
v1dual é, nesta vertente, o foco privilegiado de significados. gidos. A consisténcia do projeto depende, fundamentalmente, da
Nao se trata apenas da criagao e expansao de terapias de dife- meméria que fomece os indicadores basicos de um passado que
rentes tipos mas, sobretudo, da difusao de um discurso que produziu as circunstancias do presente, sem a consciéncia das
possa permear, inclusive, o senso comum de boa parte da so- quais seria impossivel ter ou elaborar projetos. Nao pretendo, nem
ciedade. A memoria tem um significado fundamental nesse pro- Schutz pretendia, trabalhar com a idéia de um individuo-sujeito
cesso. O inconsciente freudiano, a repressao, as associagoes, cognitivo racional, capaz de armar estratégias e fazer calculos,
asslm como as escolhas e opqoes a nivel individual constituem organizando seus dados e atuando cerebralmente. As circunstan-
a matéria-prima de toda uma vertente mais do que expressiva cias de um presente do individuo envolvem, necessariamente,
da producao e do consumo intelectuais contemporaneos. Cum- valores, preconceitos, emocoes. O projeto e a memoria associam-se
pre lembrar que, em termos antropolégicos, como foi mencio- e articulam-se ao dar significado a vida e as acoes dos individuos,
nado antes, esse processo nao é natural. Outras sociedades e em outros termos, a propria identidade. Ou seja, na constituicao
culturas privilegiam outras unidades como fundamentais e sig- da identidade social dos individuos, com particular énfase nas
nificativas. Mesmo dentro da chamada sociedade ocidental mo- sociedades e segmentos individualistas, a memoria e o projeto in-
derna, ha descontinuidades e diferencas em termos sociologi- dividuais sao amarras fundamentais. Sao visoes retrospectivas e
cos e culturais em relagao a maior ou menor valorizacao do prospectivas que situam o individuo, suas motivagoes e o signi-
individuo. Ha segmentos e situacoes sociais em que fica evi- ficado de suas aqoes, dentro de uma conjuntura de vida, na su-
dente a subordinacao do individuo a unidades englobantes e ccssao das etapas de sua trajetoria.
hierarquizantes. As instituicoes e grupos religiosos ja foram
objeto de consideracao a esse respeito. O mundo militar, mes- I Hchut/., Alfred. Fenomenologin 0 relmfics sociais Rio de janeiro, Zahar,
mo certas organizacoes empresariais, a continuidade ou mes- W79.
memoria, identidade e projeto 103
102 projeto e nu'tanmrfo.~:e

Na sociedade moderno-contemporanea o individuo, como ja rnento valoriza, de um modo geral, a forca constitutiva de mode-
foi observado, esta exposto a multiplas experiéncias, contradito- los, paradigmas e configuragoes culturais que atuam sobre a so-
rias e eventualmente fragmentadoras. A memoria e o projeto, de ciedade, produzindo efeitos a nivel sociologico, politico e econo-
mico.
alguma maneira, nao so ordenam como dao significado a essa
trajetoria. Embora a coeréncia linear nao seja um valor universal
em nossa sociedade, algum tipo de consisténcia, dentro de valores >l<
e modelos particulares e variados, parece ser importante para a
continuidade de trajetorias individuais e sociais. Algumas das Nos termos de Helmut Wagner, interpretando Schutz, "a me-
correntes e autores que enfatizam o “nonsense”, 0 absurdo, a falta moria, voltada retrospectivamente de forma reflexiva, é suple—
de sentido etc. de vida na sociedade moderna demonstram uma mentada pela antecipagao, voltada para a frente, prospectiva—
certa nostalgia de um passado em que o mundo faria mais senti- mente. A agao deliberada resulta de planejamento, do estabe-
do.5 E claro que céticos ou niilistas radicais negam qualquer sig- lecimento de um objeto e de imagina-lo sendo realizado, e ainda
nificado ou sentido a vida em qualquer momento da historia da da intengao de realiza-lo, independente do plano ser vago ou
humanidade. Mas nao pretendo me deter, aqui, na analise desta existir como projeto detalhado passo a passo"?
A memoria é fragmentada. O sentido de identidade depende
linha de pensamento. Por ora, quero enfatizar o sentimento e a
necessidade, sociologicamente identificaveis em vastos segmen- em grande parte da organizacao desses pedagos, fragmentos de
fatos e episodios separados. O passado, assim, é descontinuo. A
tos da sociedade moderna, de dar um sentido as experiéncias
individuais. O individualismo aparece qualificado, com conota- consisténcia e o significado desse passado e da memoria articu-
lam-se a elaboragao de projetos que dao sentido e estabelecem
coes e énfases variadas. Simmel fez a distincao, hoje classica, entre
continuidade entre esses diferentes momentos e situacoes?
individualisrno quantitativo, da igualdade, e qualitativo, da sin-
Por outro lado, o projeto existe no mundo da intersubjetividade.
gularidadefi
Por mais velado ou secreto que possa ser, ele é expresso em
Outras qualificagoes sao acionadas como, por exemplo, indi-
conceitos, palavras, categorias que pressupoem a existéncia do
vidualismo produtivista, narcisico, hedonistico, agonistico.7
Outro. Mas, sobretudo, o projeto é o instrurnento basico de nego-
Essas énfases estao mais ou menos coladas a fenomenos de
natureza sociologica como estratificagao social, grupo de status, ciagao da realidade com outros atores, individuos ou coletivos.
orientagao religiosa, ocupacao, grupo etario etc. Mas é importante Assim ele existe, fundamentalmente, como meio de comunicagao,
frisar o carater constitutivo das ideologias individualistas, quan- como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, senti-
do se valoriza a instauragao de significados, caracteristicas do mentos, aspiracoes para 0 mundo.
fenomeno cultural propriamente dito. Na realidade, esse movi- O projeto nao é abstratamente racional, como ja mencionei, mas
é resultado de uma deliberacao consciente a partir das circuns-
tancias, do campo de possibilidades em que esta inserido o sujeito.
5. Ver, por exemplo, Lasch, Christopher. The Culture of Narcisism. Nova lsso implica reconhecer limitacoes, constrangimentos de todos os
York, Norton, 1978; e Sennet, Richard. The Fall of Public Man. Nova York,
Vintage Books, 1978.
6. Simmel. op. cit.
8. Wagner, Helmut R. Alfred Schutz: an intellectual biography. Chicago, The
7. Ver Velho, Gilberto. Individualismo e culturaz notas para uma mztropologia
University of Chicago Press, 1983.
da sociedade contemporfinea. Rio de Ianeiro, Zahar, 1981; 3. ed., Jorge Zahar,
9. O trabalho classico sobre memoria, sem diivida, é o de Halbwachs,
1994; e id., Subjetividade e sociedade: uma experiéncia de geragao. Rio de Janeiro,
Maurice. Les cadres sociaux de Ia mémoire. La I-laye, Mouton, 1976.
Jorge Zahar Editor, 1986.
104 projetv e metamarfose memoria, identidade e projeto 105

tipos, mas a propria existéncia de projeto é a afirmacao de uma quizantes, holistas, tradicionais, mais fechados, podem ocorrer
crenca no individuo-sujeito. A identidade, por conseguinte, de- fenomenos usualmente alocados a sociedade rnoderna." Creio
pende dessa relacao do projeto do seu sujeito com a sociedade, em que a tensao permanente entre hierarquia e processos de indivi-
um permanente processo interativo. Sem dfivida, um sujeito pode duagao, que podem estar associados a ideologias individualistas,
ter mais de um projeto, mas, em principio, existe um principal ao surge nos mais diferentes segmentos sociais e culturais. Até certo
qual estao subordinados os outros que 0 tém como referéncia. De ponto, sem rejeitar a objetividade cientifica, vejo a possibilidade
forma aparentemente paradoxal em uma sociedade complexa e de diferentes leituras, a partir de preocupacoes e perspectivas
heterogénea, a multiplicidade de motivacoes e a propria fragmen- teoricas distintas.
tagao sociocultural ao mesmo tempo que produzem quase que
uma necessidade de projetos, trazem a possibilidade de contradi-
cao e de conflito. Por isso mesmo, o projeto é dinamico e é perma-
nentemente reelaborado, reorganizando a memoria do ator, dan-
do novos sentidos e significados, provocando com isso repercus-
soes na sua identidade. Assim a biografia, valorizada ao extremo
em um mundo individualista, esta sujeita a periodicas revisoes e
reinterpreta<;oes.1° A idéia, ja do senso comum, de que a memoria
é seletiva, em parte se explica, por essa dinamica dos projetos e da
construqao de identidade, que leva as referéncias do passado a
um processo permanente de des e reconstrucao. E claro que estou
tangenciando as questoes psicanaliticas, que estao fora de minha
algada. Mas ao valorizar os processos conscientes de escolha, de
opcao, nao pretendo negar a importancia dos mecanismos incons-
cientes, estudados pela psicanalise. Obviamente ha pontes e vin-
culos entre esses dois mundos. Quero, no entanto, enfatizar, na
linha de Schutz, a dimensao da agao social, 0 que nao significa
desconhecer que as circunstancias e o campo de possibilidade de
onde brotam projetos estao profundamente afetados por uma di-
mensao irracional e nao-consciente.
Para finalizar, resta assinalar que é complexa a discussao-sobre
até que ponto o projeto referido a um individuo-sujeito é exclusivo
de sociedades ou segmentos onde as ideologias individualistas
predominaram. Schutz, até certo ponto, esta discutindo questoes
que pretende universais. De modo mais cauteloso, prefiro limitar
o alcance de minhas afirmagoes mais enfaticas aos mundos indi-
vidualistas. No entanto, insisto que mesmo nos sistemas hierar-

ll. Velho, Gilberto. "Destino e projeto: uma visao antropologica”, in Eduar-


10. Velho. op. cit. do Prado (org), Destino. Terceira Margern, 1988.

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