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Ferreira Gullar – Poemas

Agosto 1964 Não há vagas

Entre lojas de flores e de sapatos, bares, O preço do feijão


mercados, butiques, não cabe no poema. O preço
viajo do arroz
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon. não cabe no poema.
Volto do trabalho, a noite em meio, Não cabem no poema o gás
fatigado de mentiras. a luz o telefone
a sonegação
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud, do leite
relógio de lilases, concretismo, da carne
neoconcretismo, ficções da juventude, do açúcar
adeus, do pão
que a vida O funcionário público
eu compro à vista aos donos do não cabe no poema
mundo. com seu salário de fome
Ao peso dos impostos, o verso sufoca, sua vida fechada
a poesia agora responde a inquérito em arquivos.
policial-militar. Como não cabe no poema
o operário
Digo adeus à ilusão que esmerila seu dia de aço
mas não ao mundo. Mas não à vida, e carvão
meu reduto e meu reino. nas oficinas escuras
Do salário injusto, - porque o poema, senhores,
da punição injusta, está fechado:
da humilhação, da tortura, “não há vagas”
do horror, Só cabe no poema
retiramos algo e com ele construímos um o homem sem estômago
artefato a mulher de nuvens
a fruta sem preço
um poema O poema, senhores,
uma bandeira não fede
nem cheira

(Ferreira Gullar: do livro Dentro da noite


veloz )
Traduzir-se Madrugada

Uma parte de mim Do fundo de meu quarto, do fundo


é todo mundo: de meu corpo
outra parte é ninguém: clandestino
fundo sem fundo. ouço (não vejo) ouço
Uma parte de mim crescer no osso e no músculo da noite
é multidão: a noite
outra parte estranheza a noite ocidental obscenamente acesa
e solidão. sobre meu país dividido em classes
Uma parte de mim ( Ferreira Gullar )
pesa, pondera:
outra parte
delira. Subversiva
Uma parte de mim
almoça e janta: A poesia
outra parte Quando chega
se espanta. Não respeita nada.
Uma parte de mim Nem pai nem mãe.
é permanente: Quando ela chega
outra parte De qualquer de seus abismos
se sabe de repente. Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Uma parte de mim Infringe o Código de Águas
é só vertigem: Relincha
outra parte, Como puta
linguagem. Nova
Traduzir-se uma parte Em frente ao Palácio da Alvorada.
na outra parte E só depois
- que é uma questão Reconsidera: beija
de vida ou morte - Nos olhos os que ganham mal
será arte? Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
No corpo E promete incendiar o país.

De que vale tentar reconstruir com


palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.
( Ferreira Gullar )
Poema sujo (trecho) perdeu-se na profusão das coisas
acontecidas
turvo turvo constelações de alfabeto
a turva noites escritas a giz
mão do sopro pastilhas de aniversário
contra o muro domingos de futebol
escuro enterros corsos comícios
menos menos roleta bilhar baralho
menos que escuro mudou de cara e cabelos mudou de olhos e
menos que mole e duro menos que fosso e risos mudou de casa
muro: menos que furo e de tempo: mas está comigo está
escuro perdido comigo
mais que escuro: teu nome
claro em alguma gaveta
como água? como pluma? claro mais que Que importa um nome a esta hora do
claro claro: coisa alguma anoitecer em São Luís
e tudo do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz
(ou quase) de febre entre irmãos
um bicho que o universo fabrica e vem e pais dentro de um enigma?
sonhando desde as entranhas mas que importa um nome
azul debaixo deste teto de telhas encardidas
era o gato vigas à mostra entre
azul cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um
era o galo armário diante de
azul garfos e facas e pratos de louças que se
o cavalo quebraram já
azul um prato de louça ordinária não dura tanto
teu cu e as facas se perdem e os garfos
tua gengiva igual a tua bocetinha que se perdem pela vida caem
parecia sorrir entre as folhas de pelas falhas do assoalho e vão conviver
banana entre os cheiros de flor e bosta de com ratos
porco aberta como e baratas ou enferrujam no quintal
uma boca do corpo (não como a tua boca esquecidos entre os pés de erva-cidreira
de palavras) como uma e as grossas orelhas de hortelã
entrada para quanta coisa se perde
eu não sabia tu nesta vida
não sabias Como se perdeu o que eles falavam ali
fazer girar a vida mastigando
com seu montão de estrelas e oceano misturando feijão com farinha e nacos de
entrando-nos em ti carne assada
bela bela e diziam coisas tão reais como a toalha
mais que bela bordada
mas como era o nome dela? ou a tosse da tia no quarto
Não era Helena nem Vera e o clarão do sol morrendo na platibanda
nem Nara nem Gabriela em frente à nossa
nem Tereza nem Maria janela
Seu nome seu nome era… tão reais que
Perdeu-se na carne fria se apagaram para sempre
perdeu na confusão de tanta noite e tanto Ou não?
dia
Não sei de que tecido é feita minha carne e essência da casa)
essa vertigem E todos buscavam
que me arrasta por avenidas e vaginas entre num sorriso num gesto
cheiros de gás nas conversas da esquina
e mijo a me consumir como um facho- no coito em pé na calçada escura do
corpo sem chama, Quartel
ou dentro de um ônibus no adultério
ou no bojo de um Boeing 707 acima do no roubo
Atlântico a decifração do enigma
acima do arco-íris - Que faço entre coisas?
perfeitamente fora - De que me defendo?
do rigor cronológico Num cofo de quintal na terra preta
sonhando cresciam plantas e rosas
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras (como pode o perfume
furadas mesas gastas nascer assim?)
balcões de quitanda pedras da Rua da Da lama à beira das calçadas, da água dos
Alegria beirais de casas esgotos cresciam
cobertos de limo muros de musgos pés de tomate
palavras ditas à mesa do Nos beirais das casas sobre as telhas
jantar, cresciam capins
voais comigo mais verdes que a esperança
sobre continentes e mares (ou o fogo
E também rastejais comigo de teus olhos)
pelos túneis das noites clandestinas Era a vida a explodir por todas as fendas da
sob o céu constelado do país cidade
entre fulgor e lepra sob as sombras da guerra:
debaixo de lençóis de lama e de terror a gestapo a wehrmacht a raf a feb a
vos esgueirais comigo, mesas velhas, blitzkrieg
armários obsoletos gavetas perfumadas de catalinas torpedeamentos a quinta-coulna
passado, os fascistas os nazistas os
dobrais comigo as esquinas do susto comunistas o repórter Esso a discussão na
e esperais esperais quitanda a querosene o
que o dia venha sabão de andiroba o mercado negro o
E depois de tanto racionamento oblackout as
que importa um nome? montanhas de metais velhos o italiano
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os assassinado na Praça João
nomes do mundo: Lisboa o cheiro de pólvora os canhões
te chamo aurora alemães troando nas noites de
te chamo água tempestade por cima da nossa casa.
te descubro nas pedras coloridas nas Stalingrado resiste.
artistas de cinema Por meu pai que contrabandeava cigarros,
nas aparições do sonho por meu primo que passava
- E esta mulher a tossir dentro de casa! rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a de Ferro, por seu Neco
lâmpada fraca, que fazia charutos ordinários, pelo
O perfume ordinário, o amor escasso, as sargento Gonzaga que tomava
goteiras no inverno. tiquira com mel de abelha e trepava com a
E as formigas brotando aos milhões negras janela aberta,
como golfadas de pelo meu carneiro manso
dentro da parede (como se aquilo fosse a por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve, uma navalha
Stalingrado resiste. meu corpo cheio de sangue
A cada nova manhã que o irriga como a um continente
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos ou um jardim
jornais circulando por meus braços
Mas a poesia não existia ainda. por meus dedos
Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas. enquanto discuto caminho
Olhos. Braços. Seios. Bocas. lembro relembro
Vidraça verde, jasmim. meu sangue feito de gases que aspiro
Bicicleta no domingo. dos céus da cidade estrangeira
Papagaios de papel. com a ajuda dos plátanos
Retreta na praça. e que pode – por um descuido – esvair-se
Luto. por meu
Homem morto no mercado pulso
sangue humano nos legumes. aberto
Mundo sem voz, coisa opaca. Meu corpo
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto que deitado na cama vejo
clangor, lira singela? como um objeto no espaço
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: que mede 1,70m
fala humana, voz de e que sou eu: essa coisa deitada
gente, barulho escuro do corpo, barriga pernas e pés
intercortado de relâmpagos com cinco dedos cada um (por que
Do corpo. Mas que é o corpo? não seis?)
Meu corpo feito de carne e de osso. joelhos e tornozelos
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas para mover-se
flexível armação que me sustenta no sentar-se
espaço levantar-se
que não me deixa desabar como um saco meu corpo de 1,70m que é meu tamanho
vazio no mundo
que guarda as vísceras todas meu corpo feito de água
funcionando e cinza
como retortas e tubos que me faz olhar Andrômeda, Sírius,
fazendo o sangue que faz a carne e o Mercúrio
pensamento e me sentir misturado
e as palavras a toda essa massa de hidrogênio e hélio
e as mentiras que se desintegra e reintegra
e os carinhos mais doces mais sacanas sem se saber pra quê
mais sentidos Corpo meu corpo corpo
para explodir uma galáxia que tem um nariz assim uma boca
de leite dois olhos
no centro de tuas coxas no fundo e um certo jeito de sorrir
de tua noite ávida de falar
cheiros de umbigo e de vagina que minha mãe identifica como sendo de
graves cheiros indecifráveis seu filho
como símbolos que meu filho identifica
do corpo como sendo de seu pai
do teu corpo do meu corpo corpo que se pára de funcionar provoca
corpo um grave acontecimento na família:
que pode um sabre rasgar sem ele não há José Ribamar Ferreira
um caco de vidro não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no entre vitrinas de roupas
planeta nas livrarias
estarão esquecidas para sempre nos bares
corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
atravessados de cheiros de galinheiros e
esse coração oculto
rato
pulsando no meio da noite, da neve, da
na quitanda ninho
chuva
de rato
debaixo da capa, do paletó, da camisa
cocô de gato
debaixo da pele, da carne,
sal azinhavre sapato
combatente clandestino aliado da classe
brilhantina anel barato
operária
língua no cu na boceta cavalo-de-crista
meu coração de menino (…)
chato
nos pentelhos
Ferreira Gullar
com meu corpo-falo
Do livro: "Toda poesia - 1950-1980",
insondável incompreendido
Civilização Brasileira, 1980, RJ
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões
usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes
de Cézanne
matéria-sonho de Volpi
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
Mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da
Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de
Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como
um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do
meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus

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