O poema descreve a vida difícil dos trabalhadores brasileiros nos anos 1960, quando itens básicos como comida estavam caros demais para caber no salário. O poema também critica a ditadura militar que censurava a poesia e prendia opositores políticos.
O poema descreve a vida difícil dos trabalhadores brasileiros nos anos 1960, quando itens básicos como comida estavam caros demais para caber no salário. O poema também critica a ditadura militar que censurava a poesia e prendia opositores políticos.
O poema descreve a vida difícil dos trabalhadores brasileiros nos anos 1960, quando itens básicos como comida estavam caros demais para caber no salário. O poema também critica a ditadura militar que censurava a poesia e prendia opositores políticos.
Entre lojas de flores e de sapatos, bares, O preço do feijão
mercados, butiques, não cabe no poema. O preço viajo do arroz num ônibus Estrada de Ferro-Leblon. não cabe no poema. Volto do trabalho, a noite em meio, Não cabem no poema o gás fatigado de mentiras. a luz o telefone a sonegação O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud, do leite relógio de lilases, concretismo, da carne neoconcretismo, ficções da juventude, do açúcar adeus, do pão que a vida O funcionário público eu compro à vista aos donos do não cabe no poema mundo. com seu salário de fome Ao peso dos impostos, o verso sufoca, sua vida fechada a poesia agora responde a inquérito em arquivos. policial-militar. Como não cabe no poema o operário Digo adeus à ilusão que esmerila seu dia de aço mas não ao mundo. Mas não à vida, e carvão meu reduto e meu reino. nas oficinas escuras Do salário injusto, - porque o poema, senhores, da punição injusta, está fechado: da humilhação, da tortura, “não há vagas” do horror, Só cabe no poema retiramos algo e com ele construímos um o homem sem estômago artefato a mulher de nuvens a fruta sem preço um poema O poema, senhores, uma bandeira não fede nem cheira
(Ferreira Gullar: do livro Dentro da noite
veloz ) Traduzir-se Madrugada
Uma parte de mim Do fundo de meu quarto, do fundo
é todo mundo: de meu corpo outra parte é ninguém: clandestino fundo sem fundo. ouço (não vejo) ouço Uma parte de mim crescer no osso e no músculo da noite é multidão: a noite outra parte estranheza a noite ocidental obscenamente acesa e solidão. sobre meu país dividido em classes Uma parte de mim ( Ferreira Gullar ) pesa, pondera: outra parte delira. Subversiva Uma parte de mim almoça e janta: A poesia outra parte Quando chega se espanta. Não respeita nada. Uma parte de mim Nem pai nem mãe. é permanente: Quando ela chega outra parte De qualquer de seus abismos se sabe de repente. Desconhece o Estado e a Sociedade Civil Uma parte de mim Infringe o Código de Águas é só vertigem: Relincha outra parte, Como puta linguagem. Nova Traduzir-se uma parte Em frente ao Palácio da Alvorada. na outra parte E só depois - que é uma questão Reconsidera: beija de vida ou morte - Nos olhos os que ganham mal será arte? Embala no colo Os que têm sede de felicidade E de justiça. No corpo E promete incendiar o país.
De que vale tentar reconstruir com
palavras O que o verão levou Entre nuvens e risos Junto com o jornal velho pelos ares O sonho na boca, o incêndio na cama, o apelo da noite Agora são apenas esta contração (este clarão) do maxilar dentro do rosto. A poesia é o presente. ( Ferreira Gullar ) Poema sujo (trecho) perdeu-se na profusão das coisas acontecidas turvo turvo constelações de alfabeto a turva noites escritas a giz mão do sopro pastilhas de aniversário contra o muro domingos de futebol escuro enterros corsos comícios menos menos roleta bilhar baralho menos que escuro mudou de cara e cabelos mudou de olhos e menos que mole e duro menos que fosso e risos mudou de casa muro: menos que furo e de tempo: mas está comigo está escuro perdido comigo mais que escuro: teu nome claro em alguma gaveta como água? como pluma? claro mais que Que importa um nome a esta hora do claro claro: coisa alguma anoitecer em São Luís e tudo do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz (ou quase) de febre entre irmãos um bicho que o universo fabrica e vem e pais dentro de um enigma? sonhando desde as entranhas mas que importa um nome azul debaixo deste teto de telhas encardidas era o gato vigas à mostra entre azul cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um era o galo armário diante de azul garfos e facas e pratos de louças que se o cavalo quebraram já azul um prato de louça ordinária não dura tanto teu cu e as facas se perdem e os garfos tua gengiva igual a tua bocetinha que se perdem pela vida caem parecia sorrir entre as folhas de pelas falhas do assoalho e vão conviver banana entre os cheiros de flor e bosta de com ratos porco aberta como e baratas ou enferrujam no quintal uma boca do corpo (não como a tua boca esquecidos entre os pés de erva-cidreira de palavras) como uma e as grossas orelhas de hortelã entrada para quanta coisa se perde eu não sabia tu nesta vida não sabias Como se perdeu o que eles falavam ali fazer girar a vida mastigando com seu montão de estrelas e oceano misturando feijão com farinha e nacos de entrando-nos em ti carne assada bela bela e diziam coisas tão reais como a toalha mais que bela bordada mas como era o nome dela? ou a tosse da tia no quarto Não era Helena nem Vera e o clarão do sol morrendo na platibanda nem Nara nem Gabriela em frente à nossa nem Tereza nem Maria janela Seu nome seu nome era… tão reais que Perdeu-se na carne fria se apagaram para sempre perdeu na confusão de tanta noite e tanto Ou não? dia Não sei de que tecido é feita minha carne e essência da casa) essa vertigem E todos buscavam que me arrasta por avenidas e vaginas entre num sorriso num gesto cheiros de gás nas conversas da esquina e mijo a me consumir como um facho- no coito em pé na calçada escura do corpo sem chama, Quartel ou dentro de um ônibus no adultério ou no bojo de um Boeing 707 acima do no roubo Atlântico a decifração do enigma acima do arco-íris - Que faço entre coisas? perfeitamente fora - De que me defendo? do rigor cronológico Num cofo de quintal na terra preta sonhando cresciam plantas e rosas Garfos enferrujados facas cegas cadeiras (como pode o perfume furadas mesas gastas nascer assim?) balcões de quitanda pedras da Rua da Da lama à beira das calçadas, da água dos Alegria beirais de casas esgotos cresciam cobertos de limo muros de musgos pés de tomate palavras ditas à mesa do Nos beirais das casas sobre as telhas jantar, cresciam capins voais comigo mais verdes que a esperança sobre continentes e mares (ou o fogo E também rastejais comigo de teus olhos) pelos túneis das noites clandestinas Era a vida a explodir por todas as fendas da sob o céu constelado do país cidade entre fulgor e lepra sob as sombras da guerra: debaixo de lençóis de lama e de terror a gestapo a wehrmacht a raf a feb a vos esgueirais comigo, mesas velhas, blitzkrieg armários obsoletos gavetas perfumadas de catalinas torpedeamentos a quinta-coulna passado, os fascistas os nazistas os dobrais comigo as esquinas do susto comunistas o repórter Esso a discussão na e esperais esperais quitanda a querosene o que o dia venha sabão de andiroba o mercado negro o E depois de tanto racionamento oblackout as que importa um nome? montanhas de metais velhos o italiano Te cubro de flor, menina, e te dou todos os assassinado na Praça João nomes do mundo: Lisboa o cheiro de pólvora os canhões te chamo aurora alemães troando nas noites de te chamo água tempestade por cima da nossa casa. te descubro nas pedras coloridas nas Stalingrado resiste. artistas de cinema Por meu pai que contrabandeava cigarros, nas aparições do sonho por meu primo que passava - E esta mulher a tossir dentro de casa! rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada Como se não bastasse o pouco dinheiro, a de Ferro, por seu Neco lâmpada fraca, que fazia charutos ordinários, pelo O perfume ordinário, o amor escasso, as sargento Gonzaga que tomava goteiras no inverno. tiquira com mel de abelha e trepava com a E as formigas brotando aos milhões negras janela aberta, como golfadas de pelo meu carneiro manso dentro da parede (como se aquilo fosse a por minha cidade azul pelo Brasil salve salve, uma navalha Stalingrado resiste. meu corpo cheio de sangue A cada nova manhã que o irriga como a um continente nas janelas nas esquinas nas manchetes dos ou um jardim jornais circulando por meus braços Mas a poesia não existia ainda. por meus dedos Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas. enquanto discuto caminho Olhos. Braços. Seios. Bocas. lembro relembro Vidraça verde, jasmim. meu sangue feito de gases que aspiro Bicicleta no domingo. dos céus da cidade estrangeira Papagaios de papel. com a ajuda dos plátanos Retreta na praça. e que pode – por um descuido – esvair-se Luto. por meu Homem morto no mercado pulso sangue humano nos legumes. aberto Mundo sem voz, coisa opaca. Meu corpo Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto que deitado na cama vejo clangor, lira singela? como um objeto no espaço Nem tuba nem lira grega. Soube depois: que mede 1,70m fala humana, voz de e que sou eu: essa coisa deitada gente, barulho escuro do corpo, barriga pernas e pés intercortado de relâmpagos com cinco dedos cada um (por que Do corpo. Mas que é o corpo? não seis?) Meu corpo feito de carne e de osso. joelhos e tornozelos Esse osso que não vejo, maxilares, costelas para mover-se flexível armação que me sustenta no sentar-se espaço levantar-se que não me deixa desabar como um saco meu corpo de 1,70m que é meu tamanho vazio no mundo que guarda as vísceras todas meu corpo feito de água funcionando e cinza como retortas e tubos que me faz olhar Andrômeda, Sírius, fazendo o sangue que faz a carne e o Mercúrio pensamento e me sentir misturado e as palavras a toda essa massa de hidrogênio e hélio e as mentiras que se desintegra e reintegra e os carinhos mais doces mais sacanas sem se saber pra quê mais sentidos Corpo meu corpo corpo para explodir uma galáxia que tem um nariz assim uma boca de leite dois olhos no centro de tuas coxas no fundo e um certo jeito de sorrir de tua noite ávida de falar cheiros de umbigo e de vagina que minha mãe identifica como sendo de graves cheiros indecifráveis seu filho como símbolos que meu filho identifica do corpo como sendo de seu pai do teu corpo do meu corpo corpo que se pára de funcionar provoca corpo um grave acontecimento na família: que pode um sabre rasgar sem ele não há José Ribamar Ferreira um caco de vidro não há Ferreira Gullar e muitas pequenas coisas acontecidas no entre vitrinas de roupas planeta nas livrarias estarão esquecidas para sempre nos bares corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato tic tac tic tac pulsando há 45 anos atravessados de cheiros de galinheiros e esse coração oculto rato pulsando no meio da noite, da neve, da na quitanda ninho chuva de rato debaixo da capa, do paletó, da camisa cocô de gato debaixo da pele, da carne, sal azinhavre sapato combatente clandestino aliado da classe brilhantina anel barato operária língua no cu na boceta cavalo-de-crista meu coração de menino (…) chato nos pentelhos Ferreira Gullar com meu corpo-falo Do livro: "Toda poesia - 1950-1980", insondável incompreendido Civilização Brasileira, 1980, RJ meu cão doméstico meu dono cheio de flor e de sono meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio de tudo como um monturo de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias sambas e frevos azuis de Fra Angelico verdes de Cézanne matéria-sonho de Volpi Mas sobretudo meu corpo nordestino Mais que isso maranhense mais que isso sanluisense mais que isso ferreirense newtoniense alzirense meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo sob as balas do 24º BC na revolução de 30 e que desde então segue pulsando como um relógio num tic tac que não se ouve (senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração) tic tac tic tac enquanto vou entre automóveis e ônibus