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O Navio Negreiro – Castro Alves Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Do Espanhol as cantilenas ...

Que música suave ao longe soa! Requebradas de langor, Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu
(Tragédia no mar) Meu Deus! como é sublime um canto Lembram as moças morenas, Deus! Que horror!
ardente As andaluzas em flor!
Pelas vagas sem fim boiando à toa! Da Itália o filho indolente IV
Canta Veneza dormente,
Homens do mar! ó rudes marinheiros, — Terra de amor e traição,
I Ou do golfo no regaço
Tostados pelo sol dos quatro mundos! Era um sonho dantesco... o tombadilho
Crianças que a procela acalentara Relembra os versos de Tasso,
Que das luzernas avermelha o brilho.
'Stamos em pleno mar... Doudo no No berço destes pélagos profundos! Junto às lavas do vulcão!
Em sangue a se banhar.
espaço
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Brinca o luar — dourada borboleta; O Inglês — marinheiro frio,
Esperai! esperai! deixai que eu beba Legiões de homens negros como a noite,
E as vagas após ele correm... cansam Que ao nascer no mar se achou,
Esta selvagem, livre poesia Horrendos a dançar...
Como turba de infantes inquieta. (Porque a Inglaterra é um navio,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia... Que Deus na Mancha ancorou),
Negras mulheres, suspendendo às tetas
'Stamos em pleno mar... Do firmamento .......................................................... Rijo entoa pátrias glórias,
Magras crianças, cujas bocas pretas
Os astros saltam como espumas de Lembrando, orgulhoso, histórias
Rega o sangue das mães:
ouro... De Nelson e de Aboukir.. .
Por que foges assim, barco ligeiro? Outras moças, mas nuas e espantadas,
O mar em troca acende as ardentias, O Francês — predestinado —
Por que foges do pávido poeta? No turbilhão de espectros arrastadas,
— Constelações do líquido tesouro... Canta os louros do passado
Oh! quem me dera acompanhar-te a Em ânsia e mágoa vãs!
E os loureiros do porvir!
esteira
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Que semelha no mar — doudo cometa! E ri-se a orquestra irônica, estridente...
Ali se estreitam num abraço insano, Os marinheiros Helenos,
E da ronda fantástica a serpente
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Que a vaga jônia criou,
Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Faz doudas espirais ...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... Belos piratas morenos
Tu que dormes das nuvens entre as Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Do mar que Ulisses cortou,
gazas, Ouvem-se gritos... o chicote estala.
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as Homens que Fídias talhara,
Sacode as penas, Leviathan do espaço, E voam mais e mais...
velas Vão cantando em noite clara
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
Ao quente arfar das virações marinhas, Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas, Presa nos elos de uma só cadeia,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
II Vós sabeis achar nas vagas A multidão faminta cambaleia,
Como roçam na vaga as andorinhas...
As melodias do céu! ... E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Donde vem? onde vai? Das naus Outro, que martírios embrutece,
Que importa do nauta o berço, III
errantes Cantando, geme e ri!
Donde é filho, qual seu lar?
Quem sabe o rumo se é tão grande o
Ama a cadência do verso
espaço?
Que lhe ensina o velho mar! No entanto o capitão manda a manobra,
Neste saara os corcéis o pó levantam, Desce do espaço imenso, ó águia do
Cantai! que a morte é divina! E após fitando o céu que se desdobra,
Galopam, voam, mas não deixam traço. oceano!
Resvala o brigue à bolina Tão puro sobre o mar,
Desce mais ... inda mais... não pode olhar
Como golfinho veloz. Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Bem feliz quem ali pode nest'hora humano
Presa ao mastro da mezena "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Sentir deste painel a majestade! Como o teu mergulhar no brigue voador!
Saudosa bandeira acena Fazei-os mais dançar!..."
Embaixo — o mar em cima — o Mas que vejo eu aí... Que quadro
As vagas que deixa após.
firmamento... d'amarguras!
E no mar e no céu — a imensidade! É canto funeral! ... Que tétricas figuras!
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . São mulheres desgraçadas, Ontem plena liberdade, Fatalidade atroz que a mente esmaga!
E da ronda fantástica a serpente Como Agar o foi também. A vontade por poder... Extingue nesta hora o brigue imundo
Faz doudas espirais... Que sedentas, alquebradas, Hoje... cúm'lo de maldade, O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Qual um sonho dantesco as sombras De longe... bem longe vêm... Nem são livres p'ra morrer. . Como um íris no pélago profundo!
voam!... Trazendo com tíbios passos, Prende-os a mesma corrente Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! Filhos e algemas nos braços, — Férrea, lúgubre serpente — Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
E ri-se Satanás!... N'alma — lágrimas e fel... Nas roscas da escravidão. Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Como Agar sofrendo tanto, E assim zombando da morte, Colombo! fecha a porta dos teus mares!
V Que nem o leite de pranto Dança a lúgubre coorte
Têm que dar para Ismael. Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados! Lá nas areias infindas, Senhor Deus dos desgraçados! São Paulo, abril de 1868.
Dizei-me vós, Senhor Deus! Das palmeiras no país, Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se é loucura... se é verdade Nasceram crianças lindas, Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?! Viveram moças gentis... Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas Passa um dia a caravana, Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas Quando a virgem na cabana Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?... Cisma da noite nos véus ... Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades! ... Adeus, ó choça do monte, Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades! ... Adeus, palmeiras da fonte!... Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ... Adeus, amores... adeus!... Varrei os mares, tufão! ...

Quem são estes desgraçados Depois, o areal extenso... VI


Que não encontram em vós Depois, o oceano de pó.
Mais que o rir calmo da turba Depois no horizonte imenso
Que excita a fúria do algoz? Desertos... desertos só... Existe um povo que a bandeira empresta
Quem são? Se a estrela se cala, E a fome, o cansaço, a sede... P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
Se a vaga à pressa resvala Ai! quanto infeliz que cede, E deixa-a transformar-se nessa festa
Como um cúmplice fugaz, E cai p'ra não mais s'erguer!... Em manto impuro de bacante fria!...
Perante a noite confusa... Vaga um lugar na cadeia, Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira
Dize-o tu, severa Musa, Mas o chacal sobre a areia é esta,
Musa libérrima, audaz!... Acha um corpo que roer. Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
São os filhos do deserto, Ontem a Serra Leoa, Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Onde a terra esposa a luz. A guerra, a caça ao leão,
Onde vive em campo aberto O sono dormido à toa Auriverde pendão de minha terra,
A tribo dos homens nus... Sob as tendas d'amplidão! Que a brisa do Brasil beija e balança,
São os guerreiros ousados Hoje... o porão negro, fundo, Estandarte que a luz do sol encerra
Que com os tigres mosqueados Infecto, apertado, imundo, E as promessas divinas da esperança...
Combatem na solidão. Tendo a peste por jaguar... Tu que, da liberdade após a guerra,
Ontem simples, fortes, bravos. E o sono sempre cortado Foste hasteado dos heróis na lança
Hoje míseros escravos, Pelo arranco de um finado, Antes te houvessem roto na batalha,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . E o baque de um corpo ao mar... Que servires a um povo de mortalha!...

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