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UFCG – CH – UAL

Disciplina: Poesia brasileira: da literatura colonial ao pré-modernismo


Professora: Tássia Tavares

ANTOLOGIA
CASTRO ALVES

É brisa - nas calmarias,


O gondoleiro do amor É abrigo - no tufão;

Teus olhos são negros, negros, Por isso eu te amo, querida,


Como as noites sem luar... Quer no prazer, quer na dor...
São ardentes, são profundos, Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Como o negrume do mar; Do Gondoleiro do amor.

Sobre o barco dos amores, O “adeus” de Teresa


Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte A vez primeira que eu fitei Teresa,
Do Gondoleiro do amor. Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
Tua voz é cavatina E amamos juntos... E depois na sala
Dos palácios de Sorrento, "Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...
Quando a praia beija a vaga, E ela, corando, murmurou-me:
Quando a vaga beija o vento. "adeus."

E como em noites de Itália Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...


Ama um canto o pescador, E da alcova saía um cavaleiro
Bebe a harmonia em teus cantos Inda beijando uma mulher sem véus...
O Gondoleiro do amor. Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...
Teu sorriso é uma aurora E ela entre beijos murmurou-me:
Que o horizante enrubesceu, "adeus!"
— Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu; Passaram tempos... sec'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
Nas tempestades da vida Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu
Das rajadas no furor, [disse
Foi-se a noite, tem auroras — "Voltarei!... descansa!...”
O Gondoleiro do amor. Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me:
Teu seio é vaga dourada "adeus!"
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias, Quando voltei... era o palácio em festa!...
Arqueja, palpita nua; E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Como é doce, em pensamento, Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Do teu colo no languor Foi a última vez que eu vi Teresa!...
Vogar, naufragar, perder-se E ela arquejando murmurou-me:
O Gondoleiro do amor!? "adeus!"

Teu amor na treva é - um astro, Boa noite


No silêncio uma canção,
1
Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio. Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde... Numa rede encostada molemente...
Não me apertes assim contra teu seio. Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos... 'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Mas não mo digas descobrindo o peito Exalavam as silvas da campina...
— Mar de amor onde vagam meus desejos. E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
Julieta do céu! Ouve... a calhandra
Já rumoreja o canto da matina. De um jasmineiro os galhos encurvados,
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira... Indiscretos entravam pela sala,
Quem cantou foi teu hálito, divina! E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.
Se a estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto, Era um quadro celeste!... A cada afago
Eu direi, me esquecendo d'alvorada: Mesmo em sonhos a moça estremecia...
"É noite ainda em teu cabelo preto..." Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
E noite ainda! Brilha na cambraia
— Desmanchado o roupão, a espádua nua Dir-se-ia que naquele doce instante
— O globo de teu peito entre os arminhos Brincavam duas cândidas crianças...
Como entre as névoas se balouça a lua... A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores, E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Fechemos sobre nós estas cortinas... Mas quando a via despeitada a meio,
— São as asas do arcanjo dos amores. P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos... Eu, fitando esta cena, repetia
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos Naquela noite lânguida e sentida:
Ao doudo afago de meus lábios mornos. "Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
Mulher do meu amor! Quando aos meus
beijos O coração
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias, O Coração é o colibri dourado
Que escalas de suspiros, bebo atento! Das veigas puras do jardim do céu.
Um - tem o mel da granadilha agreste,
Ai! Canta a cavatina do delírio, Bebe os perfumes, que a bonina deu.
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda. O outro - voa em mais virentes balças,
Que importa os raios de uma nova aurora?!... Pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel — a que se chama — crenças,
Como um negro e sombrio firmamento, Vive do aroma - que se diz - amor.
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando: As duas flores
— Boa-noite! -, formosa Consuelo!...
São duas flores unidas,
Adormecida São duas rosas nascidas
2
Talvez do mesmo arrebol, Aquelas terras tão grandes,
Vivendo, no mesmo galho, Tão compridas como o mar,
Da mesma gota de orvalho, Com suas poucas palmeiras
Do mesmo raio de sol. Dão vontade de pensar...

Unidas, bem como as penas das duas asas Lá todos vivem felizes,
pequenas Todos dançam no terreiro;
De um passarinho do céu... A gente lá não se vende
Como um casal de rolinhas, Como aqui, só por dinheiro".
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu. O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
Unidas, bem como os prantos, O fogo estava a apagar;
Que em parelha descem tantos E a escrava acabou seu canto,
Das profundezas do olhar... P'ra não acordar com o pranto
Como o suspiro e o desgosto, O seu filhinho a sonhar!
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar. O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Unidas... Ai quem pudera Bem antes do sol nascer,
Numa eterna primavera E se tardasse, coitado,
Viver, qual vive esta flor. Teria de ser surrado,
Juntar as rosas da vida Pois bastava escravo ser.
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor! E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
A canção do africano E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Lá na úmida senzala, Não viesse, em meio do sono,
Sentado na estreita sala, De seus braços arrancá-lo!
Junto o braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto, Canção do violeiro
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão... Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
De um lado, uma negra escrava Meu coração 'stá deserto,
Os olhos no filho crava, 'Stá deserto o mundo inteiro.
Que tem no colo a embalar... Quem viu a minha senhora
E à meia voz lá responde Dona do meu coração?
Ao canto, e o filhinho esconde, Chora, chora na viola,
Talvez, pr'a não o escutar! Violeiro do sertão.

"Minha terra é lá bem longe, Ela foi-se ao pôr da tarde


Das bandas de onde o sol vem; Como as gaivotas do rio.
Esta terra é mais bonita, Como os orvalhos que descem
Mas à outra eu quero bem! Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
O sol faz lá tudo em fogo, Mais triste é meu coração.
Faz em brasa toda a areia; Chora, chora na viola,
Ninguém sabe como é belo Violeiro do sertão.
Ver de tarde a papa-ceia!
E eu disse: a senhora volta
3
Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores, Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Foi o tempo, a flor desmaia. Que música suave ao longe soa!
Colhereira, que além voas, Meu Deus! Como é sublime um canto ardente
Onde está meu coração? Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão. Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Não quero mais esta vida, Crianças que a procela acalentara
Não quero mais esta terra. No berço destes pélagos profundos!
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra. Esperai! esperai! deixai que eu beba
Ai! triste que eu sou escravo! Esta selvagem, livre poesia...
Que vale ter coração? Orquestra — é o mar que ruge pela proa,
Chora, chora na viola, E o vento, que nas cordas assobia...
Violeiro do sertão.
Por que foges assim, barco ligeiro?
O navio negreiro Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Tragédia no mar Que semelha no mar — doudo cometa!

I Albatroz! Albatroz! águia do oceano,


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Brinca o luar — dourada borboleta Sacode as penas, Leviatã do espaço!
- E as vagas após ele correm... cansam Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...
Como turba de infantes inquieta.
II
'Stamos em pleno mar... Do firmamento Que importa do nauta o berço,
Os astros saltam como espumas de ouro... Donde é filho, qual seu lar?...
O mar em troca acende as ardentias, Ama a cadência do verso
— Constelações do líquido tesouro... Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a noite é divina!
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Resvala o brigue à bolina
Ali se estreitam num abraço insano, Como golfinho veloz.
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Presa ao mastro da mezena
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?... Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas, Do Espanhol as cantilenas
Veleiro brigue corre à flor dos mares, Requebradas de langor,
Como roçam na vaga as andorinhas... Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Donde vem? onde vai? Das naus errantes Da Itália o filho indolente
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Canta Veneza dormente,
Neste Saara os corcéis o pó levantam, — Terra de amor e traição –
Galopam, voam, mas não deixam traço. Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Bem feliz quem ali pode nest'hora Junto às lavas do Vulcão!
Sentir deste painel a majestade!... O Inglês — marinheiro frio,
Embaixo — o mar... em cima — o Que ao nascer no mar se achou,
firmamento... (Porque a Inglaterra é um navio,
E no mar e no céu — a imensidade! Que Deus na Mancha ancorou),
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Rijo entoa pátrias glórias, A multidão faminta cambaleia,
Lembrando orgulhoso histórias E chora e dança ali!
De Nelson e de Aboukir.
O Francês — predestinado — Um de raiva delira, outro enlouquece...
Canta os louros do passado Outro, que martírios embrutece,
E os loureiros do porvir... Cantando, geme e ri!

Os marinheiros Helenos, No entanto o capitão manda a manobra,


Que a vaga iônia criou, E após, fitando o céu que se desdobra
Belos piratas morenos Tão puro sobre o mar,
Do mar que Ulisses cortou, Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Homens que Fídias talhara, "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Vão cantando em noite clara Fazei-os mais dançar!..."
Versos que Homero gemeu... E ri-se a orquestra irônica, estridente...
...Nautas de todas as plagas! E da roda fantástica a serpente
Vós sabeis achar nas vagas Faz doudas espirais...
As melodias do céu... Qual um sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
III E ri-se Satanás!...
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode olhar V
humano Senhor Deus dos desgraçados!
Como o teu mergulhar no brigue voador. Dizei-me vós, Senhor Deus!
Mas que vejo eu ali... que quadro de Se é loucura... se é verdade
amarguras! Tanto horror perante os céus...
Que cena funeral! ... Que tétricas figuras! ... Ó mar! por que não apagas
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Co'a esponja de tuas vagas
Deus! Que horror! De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
IV Rolai das imensidades!
Era um sonho dantesco... O tombadilho Varrei os mares, tufão!...
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar. Quem são estes desgraçados,
Tinir de ferros... estalar de açoite... Que não encontram em vós,
Legiões de homens negros como a noite, Mais que o rir calmo da turba
Horrendos a dançar... Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Negras mulheres, suspendendo às tetas Se a vaga à pressa resvala
Magras crianças, cujas bocas pretas Como um cúmplice fugaz,
Rega o sangue das mães: Perante a noite confusa...
Outras, moças... mas nuas, espantadas, Dize-o tu, severa musa,
No turbilhão de espectros arrastadas, Musa libérrima, audaz!
Em ânsia e mágoa vãs.
São os filhos do deserto,
E ri-se a orquestra, irônica, estridente... Onde a terra esposa a luz.
E da ronda fantástica a serpente Onde vive em campo aberto
Faz doudas espirais ... A tribo dos homens nus...
Se o velho arqueja... se no chão resvala, São os guerreiros ousados,
Ouvem-se gritos... o chicote estala. Que com os tigres mosqueados
E voam mais e mais... Combatem na solidão...
Ontem simples, fortes, bravos...
Presa nos elos de uma só cadeia, Hoje míseros escravos
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Sem luz, sem ar, sem razão... Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
São mulheres desgraçadas, Dança a lúgubre coorte
Como Agar o foi também, Ao som do açoute... Irrisão!...
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm... Senhor Deus dos desgraçados!
Trazendo com tíbios passos, Dizei-me vós, Senhor Deus!
Filhos e algemas nos braços, Se eu deliro... ou se é verdade
N'alma — lágrimas e fel. Tanto horror perante os céus...
Como Agar sofrendo tanto, Ó mar, por que não apagas
Que nem o leite de pranto Co'a esponja de tuas vagas
Têm que dar para Ismael... Do teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Lá nas areias infindas, Rolai das imensidades!
Das palmeiras no país, Varrei os mares, tufão! ...
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis... VI
Passa um dia a caravana, E existe um povo que a bandeira empresta
Quando a virgem na cabana P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
Cisma da noite nos véus... E deixa-a transformar-se nessa festa
... Adeus, ó choça do monte... Em manto impuro de bacante fria!...
... Adeus, palmeiras da fonte!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é
... Adeus, amores... adeus!... esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Depois, o areal extenso... Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Depois, o oceano de pó... Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só... Auriverde pendão de minha terra,
E a fome, o cansaço, a sede... Que a brisa do Brasil beija e balança,
Ai! quanto infeliz que cede, Estandarte que a luz do sol encerra,
E cai p'ra não mais s'erguer!... E as promessas divinas da esperança...
Vaga um lugar na cadeia, Tu, que da liberdade após a guerra,
Mas o chacal sobre a areia Foste hasteado dos heróis na lança,
Acha um corpo que roer... Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão, Fatalidade atroz que a mente esmaga!
O sono dormido à toa Extingue nesta hora o brigue imundo
Sob as tendas d'amplidão... O trilho que Colombo abriu na vaga,
Hoje... o porão negro, fundo, Como um íris no pélago profundo!...
Infecto, apertado, imundo, ...Mas é infâmia de mais! ...Da etérea plaga
Tendo a peste por jaguar... Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
E o sono sempre cortado Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Pelo arranco de um finado, Colombo! fecha a porta dos teus mares!
E o baque de um corpo ao mar...
Vozes D’ África
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder... Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Hoje... cum'lo de maldade, Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Nem são livres p'ra... morrer. Embuçado nos céus?
Prende-os a mesma corrente Há dois mil anos te mandei meu grito,
— Férrea, lúgubre serpente — Que embalde desde então corre o infinito...
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Onde estás, Senhor Deus?... E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
Qual Prometeu tu me amarraste um dia No solo abrasador...
Do deserto na rubra penedia Quando subo às Pirâmides do Egito
— Infinito: galé! ... Embalde aos quatro céus chorando grito:
Por abutre — me deste o sol candente, "Abriga-me, Senhor!..."
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé... Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O cavalo estafado do Beduíno O siroco feroz...
Sob a vergasta tomba ressupino Quando eu passo no Saara amortalhada...
E morre no areal. Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
Minha garupa sangra, a dor poreja, No seu branco albornoz. . . "
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal. Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Minhas irmãs são belas, são ditosas... Por sobre o peito meu.
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas Lá no solo onde o cardo apenas medra
Dos haréns do Sultão. Boceja a Esfinge colossal de pedra
Ou no dorso dos brancos elefantes Fitando o morno céu.
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão. De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
Por tenda tem os cimos do Himalaia... O horizonte sem fim ...
O Ganges amoroso beija a praia Onde branqueia a caravana errante,
Coberta de corais ... E o camelo monótono, arquejante
A brisa de Misora o céu inflama; Que desce de Efraim...
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais... Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
A Europa é sempre Europa, a gloriosa!... De vingança e rancor?...
A mulher deslumbrante e caprichosa, E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Rainha e cortesã. Eu cometi jamais que assim me oprime
Artista — corta o mármor de Carrara; Teu gládio vingador?!...
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ... Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Sempre a láurea lhe cabe no litígio... Descia do Arará...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio E eu disse ao peregrino fulminado:
Enflora-lhe a cerviz. "Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
O Universo após ela — doudo amante - — Serei tua Eloá. . . "
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz. Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada O anátema cruel.
Em meio das areias esgarrada, As tribos erram do areal nas vagas,
Perdida marcho em vão! E o Nômada faminto corta as plagas
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; No rápido corcel.
Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus
clemente! Vi a ciência desertar do Egito...
Não descubras no chão... Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
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Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada — A ti que herdeiro duma raça livre
Amestrado falcão! ... Tomaste o velho arnês e a cota d'armas;
E no ginete que escarvava os vales
Cristo! embalde morreste sobre um monte... A corneta esperaste dos alarmas.
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original. É tempo agora p’ra quem sonha a glória
Ainda hoje são, por fado adverso, E a luta... e a luta, essa fatal fornalha,
Meus filhos — alimária do universo, Onde referve o bronze das estátuas,
Eu — pasto universal... Que a mão dos sec'los no futuro talha ...

Hoje em meu sangue a América se nutre Parte, pois, solta livre aos quatro ventos
- Condor que transformara-se em abutre, A alma cheia das crenças do poeta!...
Ave da escravidão, Ergue-te ó luz! — estrela para o povo,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora Para os tiranos — lúgubre cometa.
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão. Há muita virgem que ao prostíbulo impuro
A mão do algoz arrasta pela trança;
Basta, Senhor! De teu potente braço Muita cabeça d'ancião curvada,
Role através dos astros e do espaço Muito riso afogado de criança.
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito... Dirás à virgem: — Minha irmã, espera:
Escuta o brado meu lá no infinito, Eu vejo ao longe a pomba do futuro.
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... — Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro...
Adeus meu canto
A cada berço levarás a crença.
I A cada campa levarás o pranto.
Adeus, meu canto! É a hora da partida... Nos berços nus, nas sepulturas rasas,
O oceano do povo s'encapela. — Irmão do pobre — viverás, meu canto.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela. E pendido através de dois abismos,
Com os pés na terra e a fronte no infinito,
O inverno envolto em mantos de geada Traze a bênção de Deus ao cativeiro,
Cresta a rosa de amor que além se erguera... Levanta a Deus do cativeiro o grito!
Ave de arribação, voa, anuncia
Da liberdade a santa primavera. II
Eu sei que ao longe na praça,
É preciso partir, aos horizontes Ferve a onda popular,
Mandar o grito errante da vedeta. Que às vezes é pelourinho,
Ergue-te, ó luz! — estrela para o povo, Mas poucas vezes — altar.
— Para os tiranos — lúgubre cometa. Que zombam do bardo atento,
Curvo aos murmúrios do vento
Adeus, meu canto! Na revolta praça Nas florestas do existir,
Ruge o clarim tremendo da batalha. Que babam fel e ironia
Águia — talvez as asas te espedacem, Sobre o ovo da utopia
Bandeira — talvez rasgue-te a metralha. Que guarda a ave do porvir.

Mas não importa a ti, que no banquete Eu sei que o ódio, o egoísmo,
O manto sibarita não trajaste —, A hipocrisia, a ambição,
Que se louros não tens na altiva fronte Almas escuras de grutas,
Também da orgia a coroa renegaste. Onde não desce um clarão,
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Peitos surdos às conquistas, As mulheres, o arrebol,
Olhos fechados às vistas, E o sino que chora triste,
Vistas fechadas à luz, Ao morno calor do sol.
Do poeta solitário Ouvi saudoso a viola,
Lançam pedras ao calvário, Que ao sertanejo consola,
Lançam blasfêmias à cruz. Junto à fogueira do lar,
Amei a linda serrana,
Eu sei que a raça impudente Cantando a mole tirana,
Do escriba, do fariseu, Pelas noites de luar!
Que ao Cristo eleva o patíbulo,
A fogueira a Galileu, Da infância o tempo fugindo
É o fumo da chama vasta, Tudo mudou-se em redor.
Sombra — que o século arrasta, Um dia passa em minha'alma
Negra, torcida, a seus pés; Das cidades o rumor.
Tronco enraizado no inferno, Soa a idéia, soa o malho,
Que se arqueia escuro, eterno, O ciclope do trabalho
Das idades através. Prepara o raio do sol.
Tem o povo — mar violento —
E eles dizem, reclinados Por armas o pensamento,
Nos festins de Baltasar: A verdade por farol.
"Que importuno é esse que canta
Lá no Eufrate a soluçar? E o homem, vaga que nasce
Prende aos ramos do salgueiro No oceano popular,
A lira do cativeiro, Tem que impelir os espíritos,
Profeta da maldição, Tem uma plaga a buscar
Ou cingindo a augusta fronte Oh! maldição ao poeta
Com as rosas d'Anacreonte Que foge — falso profeta —
Canta o amor e a criação..." Nos dias de provação!
Que mistura o tosco iambo
Sim! cantar o campo, as selvas, Com o tírio ditirambo
As tardes, a sombra, a luz; Nos poemas d'aflição! ...
Soltar su'alma com o bando
Das borboletas azuis; "Trabalhar!" brada na sombra
Ouvir o vento que geme, A voz imensa, de Deus
Sentir a folha que treme, — "Braços! voltai-vos pra terra,
Como um seio que pulou, Frontes voltai-vos pros céus!"
Das matas entre os desvios, Poeta, sábio, selvagem,
Passar nos antros bravios Vós sois a santa equipagem
Por onde o jaguar passou; Da nau da civilização! Marinheiro,
— sobe aos mastros, Piloto, —
É belo... E já quantas vezes estuda nos astros,
Não saudei a terra — o céu, Gajeiro, — olha a cerração!"
E o Universo — Bíblia imensa
Que Deus no espaço escreveu?! Uivava a negra tormenta
Que vezes nas cordilheiras, Na enxárcia, nos mastaréus.
Ao canto das cachoeiras, Uivavam nos tombadilhos,
Eu lancei minha canção, Gritos insontes de réus.
Escutando as ventanias Vi a equipagem medrosa
Vagas, tristes profecias Da morte à vaga horrorosa
Gemerem na escuridão?! ... Seu próprio irmão sacudir.
E bradei: — "Meu canto, voa,
Já também amei as flores, Terra ao longe! terra à proa! ...
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Vejo a terra do porvir!. . . " Levanta das orgias — o presente,
Levanta dos sepulcros — o passado,
III Voz de ferro! desperta as almas grandes
Companheiro da noite mal dormida, Do sul ao norte... do oceano aos Andes!!...
Que a mocidade vela sonhadora,
Primeira folha d'árvore da vida. Baile na flor
Estrela que anuncia a luz da aurora,
Da harpa do meu amor nota perdida, Que belas as margens do rio possante,
Orvalho que do seio se evapora, Que ao largo espumante campeia sem par!...
É tempo de partir... Voa, meu canto, Ali das bromélias nas flores doiradas
— Que tantas vezes orvalhei de pranto. Há silfos e fadas, que fazem seu lar...
E, em lindos cardumes,
Tu foste a estrela vésper que alumia Sutis vaga-lumes
Aos pastores d'Arcádia nos fraguedos! Acendem os lumes
Ave que no meu peito se aquecia P'ra o baile na flor.
Ao murmúrio talvez dos meus segredos. E então — nas arcadas
Mas hoje que sinistra ventania Das pet'las doiradas,
Muge nas selvas, ruge nos rochedos, Os grilos em festa
Condor sem rumo, errante, que esvoaça, Começam na orquesta
Deixo-te entregue ao vento da desgraça. Febris a tocar...
E as breves
Quero-te assim; na terra o teu fadário Falenas
É ser o irmão do escravo que trabalha, Vão leves,
É chorar junto à cruz do seu calvário, Serenas,
É bramir do senhor na bacanália... Em bando
Se — vivo — seguirás o itinerário, Girando,
Mas, se — morto — rolares na mortalha, Valsando,
Terás, selvagem filho da floresta, Voando
Nos raios e trovões hinos de festa. No ar!...

Quando a piedosa, errante caravana,


Se perde nos desertos, peregrina,
Buscando na cidade muçulmana,
Do sepulcro de Deus a vasta ruína,
Olha o sol que se esconde na savana,
Pensa em Jerusalém, sempre divina,
Morre feliz, deixando sobre a estrada
O marco miliário duma ossada.

Assim, quando essa turba horripilante,


Hipócrita sem fé, bacante impura,
Possa curvar-te a fronte de gigante,
Possa quebrar-te as malhas da armadura,
Tu deixarás na liça o férreo guante
Que há de colher a geração futura...
Mas, não... crê no porvir, na mocidade,
Sol brilhante do céu da liberdade.

Canta, filho da luz da zona ardente,


Destes cerros soberbos, altanados!
Emboca a tuba lúgubre, estridente,
Em que aprendeste a rebramir teus brados.
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