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ANTOLOGIA
CASTRO ALVES
Unidas, bem como as penas das duas asas Lá todos vivem felizes,
pequenas Todos dançam no terreiro;
De um passarinho do céu... A gente lá não se vende
Como um casal de rolinhas, Como aqui, só por dinheiro".
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu. O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
Unidas, bem como os prantos, O fogo estava a apagar;
Que em parelha descem tantos E a escrava acabou seu canto,
Das profundezas do olhar... P'ra não acordar com o pranto
Como o suspiro e o desgosto, O seu filhinho a sonhar!
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar. O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Unidas... Ai quem pudera Bem antes do sol nascer,
Numa eterna primavera E se tardasse, coitado,
Viver, qual vive esta flor. Teria de ser surrado,
Juntar as rosas da vida Pois bastava escravo ser.
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor! E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
A canção do africano E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Lá na úmida senzala, Não viesse, em meio do sono,
Sentado na estreita sala, De seus braços arrancá-lo!
Junto o braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto, Canção do violeiro
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão... Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
De um lado, uma negra escrava Meu coração 'stá deserto,
Os olhos no filho crava, 'Stá deserto o mundo inteiro.
Que tem no colo a embalar... Quem viu a minha senhora
E à meia voz lá responde Dona do meu coração?
Ao canto, e o filhinho esconde, Chora, chora na viola,
Talvez, pr'a não o escutar! Violeiro do sertão.
Hoje em meu sangue a América se nutre Parte, pois, solta livre aos quatro ventos
- Condor que transformara-se em abutre, A alma cheia das crenças do poeta!...
Ave da escravidão, Ergue-te ó luz! — estrela para o povo,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora Para os tiranos — lúgubre cometa.
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão. Há muita virgem que ao prostíbulo impuro
A mão do algoz arrasta pela trança;
Basta, Senhor! De teu potente braço Muita cabeça d'ancião curvada,
Role através dos astros e do espaço Muito riso afogado de criança.
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito... Dirás à virgem: — Minha irmã, espera:
Escuta o brado meu lá no infinito, Eu vejo ao longe a pomba do futuro.
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... — Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro...
Adeus meu canto
A cada berço levarás a crença.
I A cada campa levarás o pranto.
Adeus, meu canto! É a hora da partida... Nos berços nus, nas sepulturas rasas,
O oceano do povo s'encapela. — Irmão do pobre — viverás, meu canto.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela. E pendido através de dois abismos,
Com os pés na terra e a fronte no infinito,
O inverno envolto em mantos de geada Traze a bênção de Deus ao cativeiro,
Cresta a rosa de amor que além se erguera... Levanta a Deus do cativeiro o grito!
Ave de arribação, voa, anuncia
Da liberdade a santa primavera. II
Eu sei que ao longe na praça,
É preciso partir, aos horizontes Ferve a onda popular,
Mandar o grito errante da vedeta. Que às vezes é pelourinho,
Ergue-te, ó luz! — estrela para o povo, Mas poucas vezes — altar.
— Para os tiranos — lúgubre cometa. Que zombam do bardo atento,
Curvo aos murmúrios do vento
Adeus, meu canto! Na revolta praça Nas florestas do existir,
Ruge o clarim tremendo da batalha. Que babam fel e ironia
Águia — talvez as asas te espedacem, Sobre o ovo da utopia
Bandeira — talvez rasgue-te a metralha. Que guarda a ave do porvir.
Mas não importa a ti, que no banquete Eu sei que o ódio, o egoísmo,
O manto sibarita não trajaste —, A hipocrisia, a ambição,
Que se louros não tens na altiva fronte Almas escuras de grutas,
Também da orgia a coroa renegaste. Onde não desce um clarão,
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Peitos surdos às conquistas, As mulheres, o arrebol,
Olhos fechados às vistas, E o sino que chora triste,
Vistas fechadas à luz, Ao morno calor do sol.
Do poeta solitário Ouvi saudoso a viola,
Lançam pedras ao calvário, Que ao sertanejo consola,
Lançam blasfêmias à cruz. Junto à fogueira do lar,
Amei a linda serrana,
Eu sei que a raça impudente Cantando a mole tirana,
Do escriba, do fariseu, Pelas noites de luar!
Que ao Cristo eleva o patíbulo,
A fogueira a Galileu, Da infância o tempo fugindo
É o fumo da chama vasta, Tudo mudou-se em redor.
Sombra — que o século arrasta, Um dia passa em minha'alma
Negra, torcida, a seus pés; Das cidades o rumor.
Tronco enraizado no inferno, Soa a idéia, soa o malho,
Que se arqueia escuro, eterno, O ciclope do trabalho
Das idades através. Prepara o raio do sol.
Tem o povo — mar violento —
E eles dizem, reclinados Por armas o pensamento,
Nos festins de Baltasar: A verdade por farol.
"Que importuno é esse que canta
Lá no Eufrate a soluçar? E o homem, vaga que nasce
Prende aos ramos do salgueiro No oceano popular,
A lira do cativeiro, Tem que impelir os espíritos,
Profeta da maldição, Tem uma plaga a buscar
Ou cingindo a augusta fronte Oh! maldição ao poeta
Com as rosas d'Anacreonte Que foge — falso profeta —
Canta o amor e a criação..." Nos dias de provação!
Que mistura o tosco iambo
Sim! cantar o campo, as selvas, Com o tírio ditirambo
As tardes, a sombra, a luz; Nos poemas d'aflição! ...
Soltar su'alma com o bando
Das borboletas azuis; "Trabalhar!" brada na sombra
Ouvir o vento que geme, A voz imensa, de Deus
Sentir a folha que treme, — "Braços! voltai-vos pra terra,
Como um seio que pulou, Frontes voltai-vos pros céus!"
Das matas entre os desvios, Poeta, sábio, selvagem,
Passar nos antros bravios Vós sois a santa equipagem
Por onde o jaguar passou; Da nau da civilização! Marinheiro,
— sobe aos mastros, Piloto, —
É belo... E já quantas vezes estuda nos astros,
Não saudei a terra — o céu, Gajeiro, — olha a cerração!"
E o Universo — Bíblia imensa
Que Deus no espaço escreveu?! Uivava a negra tormenta
Que vezes nas cordilheiras, Na enxárcia, nos mastaréus.
Ao canto das cachoeiras, Uivavam nos tombadilhos,
Eu lancei minha canção, Gritos insontes de réus.
Escutando as ventanias Vi a equipagem medrosa
Vagas, tristes profecias Da morte à vaga horrorosa
Gemerem na escuridão?! ... Seu próprio irmão sacudir.
E bradei: — "Meu canto, voa,
Já também amei as flores, Terra ao longe! terra à proa! ...
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Vejo a terra do porvir!. . . " Levanta das orgias — o presente,
Levanta dos sepulcros — o passado,
III Voz de ferro! desperta as almas grandes
Companheiro da noite mal dormida, Do sul ao norte... do oceano aos Andes!!...
Que a mocidade vela sonhadora,
Primeira folha d'árvore da vida. Baile na flor
Estrela que anuncia a luz da aurora,
Da harpa do meu amor nota perdida, Que belas as margens do rio possante,
Orvalho que do seio se evapora, Que ao largo espumante campeia sem par!...
É tempo de partir... Voa, meu canto, Ali das bromélias nas flores doiradas
— Que tantas vezes orvalhei de pranto. Há silfos e fadas, que fazem seu lar...
E, em lindos cardumes,
Tu foste a estrela vésper que alumia Sutis vaga-lumes
Aos pastores d'Arcádia nos fraguedos! Acendem os lumes
Ave que no meu peito se aquecia P'ra o baile na flor.
Ao murmúrio talvez dos meus segredos. E então — nas arcadas
Mas hoje que sinistra ventania Das pet'las doiradas,
Muge nas selvas, ruge nos rochedos, Os grilos em festa
Condor sem rumo, errante, que esvoaça, Começam na orquesta
Deixo-te entregue ao vento da desgraça. Febris a tocar...
E as breves
Quero-te assim; na terra o teu fadário Falenas
É ser o irmão do escravo que trabalha, Vão leves,
É chorar junto à cruz do seu calvário, Serenas,
É bramir do senhor na bacanália... Em bando
Se — vivo — seguirás o itinerário, Girando,
Mas, se — morto — rolares na mortalha, Valsando,
Terás, selvagem filho da floresta, Voando
Nos raios e trovões hinos de festa. No ar!...