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Entre pedras e porco: as figurações flutuantes em Até que as pedras se tornem mais

leves que a água, de António Lobo Antunes

O romance Até que as pedras se tornem mais leves que a água tem 23 capítulos, e se
abre com um pequeno prólogo de duas páginas. Quem fala é uma mulher, prima de um dos
defuntos ali enterrados no cemitério de uma pequena aldeia do interior de Portugal, e ela
declara que toma conta do jazigo dele. Sabe-se que este primo lá enterrado foi alferes na
guerra de Angola, e trouxe de “lembrança” da guerra um menino preto de seus cinco ou seis
anos. Afinal, era comum os soldados portugueses trazerem recordações do horror: “uma
máscara, um boneco de pau, uma orelha numa garrafa de álcool, um garoto, um braço a
menos” (p. 11). Muitos anos depois, o filho preto mata o pai branco, algo que tinha sido
previsto quando do retorno, por outros companheiros de farda. No curto texto do prólogo
temos uma degustação dos horrores de que se compõe o romance. Há logo de início menção a
um cachorro degolado, um porco sacrificado e um homem branco assassinado pelo filho
adotivo preto, e o próprio filho preto sendo trucidado pelos homens que participavam da
matança do porco. Eis a cena, o aperitivo dos horrores:

conforme ninguém se lembra já do que sucedeu há dez anos na altura da matança do


porco, quando o filho preto assassinou o pai branco com a faca ainda cheia de sangue do
animal, não outra faca, a mesma faca e a mesma faca pareceu-me que para ele outra faca
muito antiga, o filho preto a gritar ao pai branco
(p. 12)

Este talvez seja o momento central, a grande figuração do romance: os três cadáveres
jazidos no chão da adega: o pai branco, o filho preto, o imenso porco sacrificado na data
tradicional da matança.
A voz da mulher do prólogo então desaparece para o resto do romance,
permanecendo dois enunciadores principais, o pai branco nos capítulos ímpares e o filho preto
nos pares, além de breves intervenções de outros atores. No capítulo 12 emerge a voz da irmã
do preto, a contar sua percepção da história toda, refere-se a toda a sua família e à aldeia com
ódio, bem como manifesta testar o livro, que na opinião dela deveria ser destruído para que
não sobrasse nada deles, nem de suas memórias, citações, referências, narrativas.
Considerando que os capítulos pares normalmente pertencem ao irmão preto, ele não deixa
de emitir uma espécie de protesto em relação à intromissão da irmã em sua seara. Muitas
páginas depois que a irmã começa seu discurso, quase ao final do capítulo, ele se intromete na
intromissão dela e declara: “este capítulo, que devia ser eu a escrever, a minha irmã roubou-
mo” (p. 236). Há ainda um capítulo inteirinho, o 21, em que a mulher do alferes toma a palavra
para relembrar sua época de namoro, o casamento, que parece ter sido feliz, e a própria
doença que a matou.
As memórias do horror parecem enterradas, como assinala a prima do pai branco,
“ninguém se lembra já do que sucedeu há dez anos” (p. 12). Entre as lembranças dos
retornados, havia ainda o silêncio, a deslembrança do horror, assim como a chacina da
matança do porco caiu no silêncio, na desmemória. Além de máscaras, bonecos, orelhas,
ostentavam “silêncios a meio das conversas em que se afastavam para muito longe
continuando ali” (p. 11). Assim como eram de puro silêncio as enormes noites de África, “com
o silêncio prestes a rasgar-se em mil ruídos, um silêncio ensurdecedor que nos impedia de de
nos escutarmos” (p. 171). Mas como a deslembrança do horror, se ele preside todos os
momentos do romance? Impossível narrar o que não pode parar de ser narrado, em flashes,
imagens sangrentas, borrões de memória. A narrativa, assim, é envolta em silêncios, sons
surdos e opacos envolvendo Angola, Lisboa e a aldeia, uns se sobrepondo aos outros,
inadvertidamente, atropelando-se sem uma ordem, obedecendo apenas à lógica do horror.
Como um mergulho no desconhecido envolto num pesado silêncio submerso nas mentes
neuróticas.
Não obstante, tudo o que se enterra pode ser refeito de outra forma, transformado
por palavras, criando uma memória do que ninguém se lembra mais, e assim segue o romance,
dando-nos a impressão de que está narrando algo realmente acontecido. No primeiro capítulo
o alferes (chamaremos assim doravante ao “pai branco”), atormentado pelos horrores da
guerra, tenta escrever uma carta para os pais mas sente-se bloqueado, “(como escrever acerca
disto numa carta aos meus pais?)” (p. 29), os horrores não cessam de persegui-lo, e ele se
sente cada vez mais impotente para escrever : “como se põe esta monstruosidade numa carta
pai, mãe” (p. 29). E transporta-se novamente para a aldeia onde viveu com os pais, a escrever
uma carta impossível, “limito-me a fazer riscos no quintal com um pauzinho, a apagar os riscos
e fazê-los de novo” (p. 30). E de volta à guerra em Angola, torna a escrever o que não pode ser
escrito: “de modo que agora, como os meus pais andam por aí, principiei a escrever-lhes esta
carta feita de riscos no chão” (p. 31). Nada a comunicar, nada a entender, “(também de que
serve entender?)” (p. 62). ”O que permanece na areia da memória quando as águas do
passado recuam” (p. 120), é o que se pode entender e desentender. Como entender o
assassinato do pai pelo filho adotivo? Afinal o filho preto era realmente um filho ou não
passava de um recuerdo trazido de África, uma orelha numa garrafa de álcool? Nos momentos
antecedentes ao golpe final o filho preto pensava, ou o pai branco achava que ele pensava
“que perder o pai branco era a única forma de conservar o preto” (p. 424). Neste momento de
extrema tensão, Sua Excelência, que era como o preto se referia a sua mulher branca,
tratamento que ela rejeitava — “Não me trates por Sua Excelência, trata-me pelo meu nome.”
— neste momento de extrema tensão a mulher do preto se encontrava instalada em um canto
a assistir à matança, “entendendo sem entender, compreendendo sem compreender” (p. 424).
O que há para entender? A morte do pai branco há de conservar a vida do pai preto? Viverão
ambos na morte? O próprio agente do sacrifício não era capaz de entender o que estava
acontecendo, ele que saíra de África aos cinco ou seis anos e agora tinha mais de cinquenta e
matava o pai que o havia arrancado do horror, como entender?

“Não queria fazer-lhe mal, juro, tomou conta de mim, gostava dele, não foi o meu pai
que eu matei, foram os tiros e a guerra, o gasóleo, o fogo, foi a lembrança do alferes
paraquedista junto à ponte, foram os fios de tropeçar, foram as minas saltadoras” (p. 453)

Foi isso tudo que ele matou sem matar, sem entender, e mais o cinismo do país
colonial a falar em alegria de ir servir a pátria, a tortura cruel e a obrigação de os pretos
abrirem as próprias covas antes de serem assassinados, a incredulidade de que isso possa ter
acontecido mas aconteceu, ou aconteceu somente na memória, na cabeça dos que se
neurotizaram?

E sua alma atormentada continua revolvendo horrores, sua mulher roga-lhe que pense
menos, e ele concorda, “e ora aí temos uma grande verdade, devia pensar menos eu,
sobretudo como aconselha o psicólogo do hospital fechar a cabeça ao passado mas como se o
passado nem sequer é passado, continua a acontecer, não mudou” (p. 61). Esta é uma reflexão
interessante para se pensar a memória, a escrita do passado. Isto a que chamam passado não
é algo que ocorreu, mas uma nuvem obscura que paira no presente e vai-se transformando em
escrita. Não há como fechar a cabeça ao passado, porque ele está aqui, agora, diante de mim,
e a própria escrita vai tecendo-o, construindo-o. Quarenta e cinco anos passados, quarenta e
seis, o embarque para Angola repleto de silêncios e gritos, “num barco cheio de silêncios e
gritos ou seja o silêncio gritava e os gritos calados, quem me traduz isto em linguagem de
gente” (p. 91). Tudo em silêncio, tudo calado, o que fica é o nada da escritura, o que não se
sustenta como evento, “e tens razão, estou a sonhar outra vez, é evidente que nada disso se
passou” (p. 424).
Nada para ser entendido, e quem parece menos entender de tudo do que todos é o
preto arrancado aos cinco ou seis anos de sua terra de horrores, de ardências e de sofrimentos
causados pelos portugueses. E arrancado para se instalar em Lisboa, o centro dos males de sua
terra natal, da terra do sofrimento e do horror para a terra da incompreensão, do preconceito,
da intolerância. Ele cujo epíteto mais delicado que recebia da mulher branca, a quem ele se
refere como Sua Excelência, era escarumba.

MEMÓRIA TRAUMÁTICA

Uma coleção de frases de total intolerância:


“Sua Excelência a desprezar-me
— Não têm alma os pretos” (p 73)
”— Um preto que cheira a preto
Com desprezo, com ódio
— O que me terá passado pela cabeça para casar com um escarumba bem vejo como
as pessoas nos olham como muito mais pena devim do que dele” (p. 183)

“Uma tarde ao descermos as escadas a senhora do segundo andar para uma amiga
— Não sentes o cheiro a macaco?” (P. 227)

O porco aparece como símbolo central do romance, sim, mas não um centro que
sustenta a narrativa, com um tronco forte e uma raiz poderosa a presidir as ações, mas um
centro móvel, incerto, hesitante, sem determinação. Um porco-rizoma, para lembrar Gilles
Deleuze. Certamente nele ressoa a morte, a amargura das relações, a impossibilidade de dizer
o que acontece, o que ninguém pode entender e finge que é o curso normal da vida. O porco é
o emblema sem couraça, o amigo e o inimigo, o parceiro e o traidor. A matança do porco é a
festa anual de tradição na aldeia, que o avô do pai do alferes comemorava, o pai do alferes
idem, o alferes também, até… Até que um filho preto se intromete na genealogia e o curso se
interrompe, por amor e por ódio. Quase toda a enunciação do romance é produzida na
véspera da matança do porco, a que o pai fazia questão de que o filho assistisse, desde criança,
embora horrorizado, apavorado com a cena de violência e crueldade. Ainda que os porcos se
renovassem de ano a ano, era o porco, a matança do porco, para produzir charcutaria e
alimento, e festejar a fartura. O porco se alimenta sem parar, de “maçã bichosa, pedaços de
cenoura velha, pedaços de lavadura, de cascas, de ossos, de restos” (p 173), e devora
memórias, relações,

“O porco a devorar a minha mãe, a devorar-nos a nós, o porco suspenso do gancho a berrar, o
porco
— Amor
Juro-te que o porco
— Amor
Mesmo que não acredites o porco
— Amor
Mesmo que a minha faca ou a faca do meu filho
— Amor”
(p. 173)

Aí está a escritura a confundir o símbolo, a fartura e o festejo, e ao mesmo tempo o


sofrimento, a violência, o desespero, o ódio e o amor, “o porco suspenso do gancho a berrar”
(p. 173). A faca do crime é a faca que nutre, que retira, que redime e que condena. E assim
transita este símbolo porco pelo romance, a errar como símbolo mal comportado, o diabolo
nas reflexões de Giorgio Agamben. O porco é uma figuração importante da escritura do
romance, uma imagem, um símbolo, sobre os quais teceremos algumas considerações.
A literatura comporta certos conceitos que a Teoria descreve muito bem, cumprindo
sua missão de estabelecer um conhecimento, um saber técnico que operacionalize o próprio
discurso sobre o texto literário. Desde o primeiro contato com a Teoria da Literatura,
aprendemos, às vezes com um certo sofrimento, devido aos deslizamentos, o que é metáfora,
metonímia, hipérbole, e as dezenas de outros conceitos que envolvem “imagens” que afloram
dos textos literários, cuja descrição perseguimos tenazmente conseguir fixar sem erro, para
que a Teoria cumpra sua função e nos traga o conforto dos estudiosos. Sobretudo, todos estes
conceitos geralmente vêm envoltos no invólucro “representação”, palavra que tenta se fazer
de descomplicada em nossas Teorias, mas que não resiste a questionamentos mais (ou menos)
sérios. Nosso projeto fala em “figurações”, termo cunhado, salvo engano, por Roland Barthes,
e que procura desestabilizar as certezas da Teoria. Lemos em Le plaisir du texte”:

La figuration serait le mode d’apparition du corps érotique (à quelque degré et sous


quelque mode que ce soit) dans le profil du texte. (p. 75)

[A figuração seria o modo de aparição do corpo erótico (em qualquer grau e sob
qualquer modo) no perfil do texto.] (trad. nossa)

La répresentation, elle, serait une figuration embarassée, encombrée d’autres sens que
celui du désir: um espace d’alibis (réalité, morale, vraisembance, lisibilité, verité, etc.). (p. 76)

[A representação, ela, seria uma figuração embaraçada, congestionada por outros


sentidos que não o do desejo: um espaço de álibis (realidade, moral, verossimilhança,
legibilidade, verdade, etc.)] (trad. nossa)

Barthes contrapõe o desejo à doxa. A representação é ideológica, ou seja, estabelece


uma relação que se dirige da imagem gerada a alguma verdade externa. Algo como o que
(Derrida?) chamou-se transcendência, e Blanchot chamou transparência, isto é, a palavra, ou a
imagem se permite ser atravessada por algo que está ali adiante, mas não tão distante, e que
vai explicar e justificar o texto literário para que ele não caia no nada e no vazio. Já o desejo
não tem rumo certo.
Em “A linguagem de ficção”, Blanchot faz distinção entre os conceitos tradicionais de
mito, alegoria e símbolo e, particularmente no caso do símbolo, sua definição difere da que
estamos habituados. Enquanto o mito é uma narrativa que dá acesso a uma verdade, a
alegoria só se produz no momento da relação, da transparência: por trás da linguagem posta-
se o que Barthes chamou de álibi, uma imagem ideológica. Para Blanchot, o símbolo é opaco,
não transfere nada nem transcende o texto em que comparece. Ele se constrói a partir da
interação do leitor com a linguagem literária no momento em que lê. É como se ele fosse
absoluto, apenas fazendo girar as imagens que a literatura engendra.
Assim se desdobra pelo romance o nosso porco amoroso e horroroso, sem um
emblema que o sustente, sem uma relação segura e confortável que estabeleça sua direção.
Sua morte está marcada inapelavelmente para o dia seguinte, tornando-se o “porco de
amanhã”, aquele que vai morrer, o que está marcado para o sacrifício, “a comer afastando os
outros porcos, as pestanas dele, já o disse, transparentes, uma malha no dorso, os dentes tão
grandes” (p. 180), o porco de amanhã a comer no chiqueiro, e ele, o retornado que será
assassinado pelo filho preto, a sofrer “um arrepio esquisito ao ver o porco a comer no
chiqueiro e a suspender-se de súbito como uma espécie de lágrima nas pestanas
transparentes.” (p. 186)
Outro símbolo que transita insistentemente pelo romance é o das pedras, a começar
pelo título da obra, Até que as pedras se tornem mais leves que a água. Título estranho, a
sugerir pedras elevadas acima do peso da água, como aparece na ilustração da capa do
romance. A montagem é de autoria de um certo Rui Garrido.
A menção às pedras surge com referência às pedras nos rins da esposa do alferes, que
pesavam tanto quanto um câncer, que tinham o enorme peso de uma doença incurável. Sim,
havia as pedras, e havia o câncer, o marido a lamentar-se torcendo pelas pedras: “eu que
tenho muito medo desta doença e quero tanto acreditar nas pedras” (p. 176). Talvez a única
relação de amor verdadeiro no romance seja a do alferes pela sua esposa, a personagem
portadora de pedras nos rins e câncer. Condenada, como o próprio marido estava condenado,
como o próprio filho preto, como a filha, que não conseguia reconhecer como pais nem o pai
nem a mãe e nem como irmão o irmão preto. Ela própria, a filha, cuja voz se apropria do
capítulo 12, não esconde seu ódio à família, e nutre uma secreto desejo anual de que o pai seja
morto pelo africano vindo de Angola: “sempre que venho à aldeia, além da esperança que o
meu irmão mate o meu pai com a faca do porco não me interessa mais nada” (p. 225). Neste
capítulo ela se refere ao livro que estamos lendo como algo maldito, que deve ser
exterminado, como a casa da aldeia, sua família, todo aquele lixo entre o qual ela se incluía,
“mal acabem a última linha deste livro cheguem-he um fósforo para que nada sobeje da gente,
do que aqui ficou escrito é-nos esqueçam” .
As pedras mais leves que a água de início parecem uma espécie de eufemismo a
encobrir a gravidade da doença da mulher do alferes
A mulher das pedras a aguardar o sacrifício do porco e o próprio sacrifício, o médico
dissera ao marido que ela seria internada após a matança do porco, internada possivelmente
para não retornar, a mulher que não retornaria “a limpar a bancada da cozinha em gestos mais
lentos que dantes porque qualquer coisa, ou seja uma pedra que se escapou do rim, a
dificultar-lhe os movimentos” (p. 180). E a mulher a emagrecer, a pesar menos, “porque as
pedras do rim se tornavam pouco a pouco mais leves que a água” (p. 186). Ao mesmo tempo
que a condenava à morte no embalo da matança do porco, o médico acenava com a maravilha
da medicina que prometia transformar as pedras em elementos mais leves que a água

O sacrifício do porco de certa forma assinalava a própria morte dela ela dentre as
várias mortes. Filho de um lado, bengala de outro, os passos vacilantes percorrem o trajeto
entre a casa e a adega, cena do sacrifício, um sorriso forçado às pessoas, cumprimentos
hesitantes com a cabeça, todos a fingirem que ela tinha melhor aspecto, parecia bem. Mas a
travessia era inequívoca, a morte a aguardava, como aguardava a todos os demais:

“com medo não por mim, por ele, para nenhum de nós não falta muito tempo, é
assim, há mais defuntos debaixo da gente do que grãos de areia na praia e quanto à alma, o
que é isso, nem as pedras mais leves que a água continuarão aqui, desfazem-se com o resto do
corpo” (p. 408)

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